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1 | CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR Ano I | número 1 | 2012 ANO 1 | Nº. 1| 2012 | ISSN 2317-0182 Uno e trino: a visão de Deus de Nicolau de Cusa O amor é uma essência ternária Sonia Regina Lyra Navegar pela terceira margem: a nona bem-aventurança Albertina Laufer Sonhos: possíveis ferramentas para vir a ser inteiro em psicoterapia Franciele Engelmann A função compensatória dos sonhos Francisco Purcotes Júnior Santo Agostinho e a Lua Nova Sonia Regina Lyra comenta artigo de Pedro Sinde

Revista Coniunctio

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Revista de Psicologia e Religião

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CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PRAno I | número 1 | 2012

ANO 1 | Nº. 1| 2012 | ISSN 2317-0182

Uno e trino: a visão de Deus de Nicolau de CusaO amor é uma essência ternária Sonia Regina Lyra

Navegar pela terceira margem: a nona bem-aventurançaAlbertina Laufer

Sonhos: possíveis ferramentas para vir a ser inteiro em psicoterapia

Franciele Engelmann

A função compensatória dos sonhos Francisco Purcotes Júnior

Santo Agostinho

e a Lua NovaSonia Regina Lyra

comenta artigo de Pedro Sinde

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CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PR

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Ano I | número 1 | 2012

Edição Atual 52 páginasCuritiba | Ano 1 | Nº. 1| 2012 | ISSN 2317-0182

Copyright © 2012 by autores

Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

E-mail: [email protected]: Sonia Lyra

Jubal Sérgio Dohms

Comissão editorialSonia Regina LyraJairo FerrandinJuarez Francisco da SilvaAdriano Holanda

Conselho editorialDra. Sonia Regina LyraDr. Jairo FerrandinDr. Enio Paulo GiacchiniDr. Luiz Felipe PondéDr. Gilvan Luiz FogelDr. Nilo Agostini

Diagramação: Dohms ComunicaçãoRevisão: Enio Paulo GiachiniCapa: Imagem da NASA

Dados internacionais de catalogação na fonteBibliotecária responsável: Angela M. S. K. Cherobim CRB 9ª R/605______________________________________________

CONIUNCTIO Revista de Psicologia e Religião - v.1, n.1, Curitiba: Ichthys Instituto, 2012

Semestral

1. Psicologia - Periódicos 2. Religião – Periódicos 3. Filosofia – Periódicos 4. Arte – Periódicos 5. Teologia – Periódicos._______________________________________________

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CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PRAno I | número 1 | 2012

SUMÁRIO

|4Editorial

|5Sonia Regina Lyra comenta artigo de Pedro Sinde

Santo Agostinho e a Lua Nova

|10Sonia Regina Lyra Uno e trino: a visão de Deus de Nicolau de CusaO amor é uma essência ternária

|21Albertina Laufer Navegar pela terceira margem: a nona bem-aventurança

|36Franciele EngelmannSonhos: possíveis ferramentas para vir a ser inteiro em psicoterapia

|43Francisco Purcotes Júnior A função compensatória dos sonhos

|52Chamada para publicaçãoe normas para colaboração

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Ano I | número 1 | 2012

Coniunctio – Revista de Psicologia e Religião é um periódico científico, eletrô-nico, semestral, que está sendo criado neste ano de 2012, tendo por objetivo pu-blicar pesquisas, artigos, resenhas, críticas e entrevistas que contenham temas relacionados à Psicologia (Psicologia geral, Psicologia analítica e especialmente Psicologia da religião) e à Religião, em diálogo com áreas afins: filosofia, arte, mitologia, teologia, sociologia, etc. De qualquer forma, o que se quer com isso é fomentar a área de pesquisa em Psicologia da Religião por ser esta a “filha mais nova” da psicologia, no Brasil na contemporaneidade.

Coniunctio é uma publicação criada e mantida pelo ICHTHYS INSTITUTO DE PSICOLOGIA E RELIGIÃO. Neste ano de 2012 também foram criadas a Asso-ciação Cultural Ichthys, que congrega vozes que se erguem, além da cultura dominante, pela cultura do autoconhecimento, e a Biblioteca Ichthys, que já de início publicou os livros Jung leitor de Nietzsche: acerca da “morte de Deus”, já disponível, e Nicolau de Cusa: visão de Deus e teoria do conhecimento, com lançamento agora em setembro – ambos de autoria de Sonia Lyra, PhD., analista junguiana, membro da International Association for Analytical Psychology e dou-tora em Ciências de Religião.

Aproveitamos essa oportunidade para convidar pesquisadores(as) e professores(as) a contribuírem com a Coniunctio. A publicação ou não do material enviado será definida pela Comissão de Redação a partir dos critérios propostos pelo Conselho Editorial, integrado por professores/as e especialistas de várias Universidades e Centros de Estudos.

As propostas para publicação devem ser originais, não tendo sido publicadas em qualquer outro veículo do país. Publicam-se artigos em quatro línguas: portu-guês, espanhol, italiano e francês. Todos os números são divulgados por meios digitais, estando disponíveis online pela Internet.

Os editores

EDITORIAL

CONIUNCTIO: PSICOLOGIA E RELIGIÃO

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CONIUNCTIO Revista Científica de Psicologia e Religião | Ichthys Instituto | Curitiba - PRAno I | número 1 | 2012

Para esta primeira edição da Revista de Psicologia e Religião trazemos o belíssimo artigo de Pedro Sinde, de Portugal, o qual foi escolhido por vir ao encontro da temática princi-pal de nossa revista: O sol e a lua.

O texto será comentado trazendo recortes do original, bem como, algumas alterações no vocabulário do autor, que condizem mais com o português do Brasil.

Sonia Regina Lyra

Santo Agostinho e a Lua Nova

Ano I | número 1 | 2012

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Ano I | número 1 | 2012

Santo Agostinho e a Lua Nova*

Segundo Pedro Sinde, Santo Agostinho, em sua obra O Mestre1, dá, a determinada altu-ra, uma indicação bem preciosa para o conheci-mento humano. Tudo se passa no capítulo XII da referida obra, quando se fala das duas formas de conhecimento: a “sensorial” e a “inteligível”. Diz Santo Agostinho:

Todas as coisas que percebemos, ou as percebemos

pelos sentidos do corpo ou pela mente. Denomi-

namos as primeiras sensoriais; as segundas, inteli-

gíveis; ou, para falar à maneira dos nossos autores,

denominamos carnais as primeiras; espirituais, as

segundas. Interrogados sobre as primeiras, damos

resposta, se estão diante de nós essas coisas que

sensoriamos; por exemplo, quando nos perguntam,

estando nós a observar a lua nova [lunam novam],

qual é ou onde se encontra. Neste caso, se aquele que

pergunta não a vê, acredita nas palavras, e muitas

vezes não acredita; aprender, de modo nenhum

aprende, a não ser que também ele veja o que se

lhe diz2.

Como se sabe, a Lua Nova não é visível. Toda a luz, nesta fase, se apaga do globo notur-no, é o auge da escuridão. Mas, sabe-se também que é sempre da mais profunda treva que a luz brota para encher a madrugada. Antes de pros-seguir, observar-se-á uma analogia que Santo Agostinho faz no � nal do capítulo XI e que

Pedro Sinde(De Magistro, XII, 39 - Porto, Portugal)

por Sonia Lyra**

* http://www.hottopos.com.br/notand5/sinde.htm

** Sonia Regina Lyra

Doutora em Ciências da

Religião

[email protected]

1| Servimo-nos da edição SANTO AGOSTINHO, O Mestre, introdução e comentários de Maria Leonor Xavier, trad. de António Soares Pinheiro. Porto: Porto Editora, 1995 (Colecção Filosofia. Textos, 8); as citações serão feitas também se-gundo a divisão do texto original.

2| De Magistro, XII 39; ed. cit., p. 93, linhas 18-29, itálicos nossos.

3| De Magistro, XI 38; ed. cit., pp. 92, 93, linhas 35-8.

pode trazer alguma luz à compreensão do por-que do exemplo da Lua Nova:

Ora, acerca de todas as coisas que intelecciona-

mos, não consultamos alguém que fala e produz

um som fora de nós, mas a verdade que preside

interiormente à nossa mente, sendo talvez incita-

dos pelas palavras a consultá-la. E aquele que é

consultado, ensina: é Cristo, de quem se disse que

habita no “homem interior” [Efésios, 3, 16-17], e

é “o poder incomutável de Deus e a sempiterna

Sabedoria”. A esta, de fato, toda a alma racional a

consulta; ela, porém, manifesta-se-lhe na medida

em que cada um é capaz de a receber, em razão da

própria vontade, boa ou má. Se a alma alguma vez

se engana, não é por defeito da verdade consultada,

do mesmo modo que não é por defeito desta luz ex-

terior que os olhos corporais por vezes se enganam. É

manifesto que para nos certi� carmos acerca das coisas

visíveis recorremos a esta luz para ela no-las mostrar,

na medida em que somos capazes de ver3.

Tem-se então a analogia seguinte: Sol exterior – Sol interior. Tal como o Sol exterior se mostra, através dos sentidos que a mente usa, como de intérpretes, a realidade sensorial, assim também o Sol interior mostra a verdade. Diz Santo Agostinho que a esta, de fato, toda a alma racional a consulta. Mas, então, como é que não somos todos iluminados pelo Sol interior, todos co-

Porque o coração deste povo tornou-se duro, e duros também os seus ouvidos; fecharam os olhos, não fossem ver com os olhos, ouvir com os ouvidos,

compreender com o coração, e converterem-se para Eu os curar (Mt 13, 10-16)

Santo Agosti nho e a lua nova | Pedro Sinde por Sonia Lyra | 06 - 09

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nhecedores da sempiterna sabedoria? A resposta de Santo Agostinho prolonga a analogia dizendo que se a alma alguma vez se engana, não é por defeito da verdade consultada, do mesmo modo que não é por defeito desta luz exterior que os olhos corporais por vezes se enganam. A luz da verdade é sempre per-feita, dependendo da vontade de cada um, boa ou má, em recebê-la na íntegra. Parece, no entanto, que seria muita ingenuidade de Santo Agosti-nho acreditar que a verdade se revela apenas pela vontade boa. Tentar-se-á mostrar que é preciso bem mais do que vontade boa para receber a luz da verdade.

Para ampli� car a analogia “Sol exterior – Sol interior”, dir-se-ia que o homem pode receber a luz interior, tal como a Lua recebe a luz do Sol. A analogia parece tanto mais per-feita quando se pensa na teoria da iluminação de Santo Agostinho, onde nunca chega a haver transmutação do homem na verdade, sendo este apenas por ela iluminado, da mesma forma que a Lua nunca chega a ser Sol, sendo apenas por ele ciclicamente iluminada. Parece que a teoria da iluminação de Santo Agostinho segue no mes-mo trilho que a Lua, indo da sua fase Nova para a Cheia. É possível que Santo Agostinho esteja dando apenas uma indicação sutil sobre um de-terminado estado que o indivíduo deva realizar em si para poder receber a luz da verdade. Nesse caso o que signi� cará, então, o homem interior fazer em si a mais densa escuridão, fazer em si a Lua Nova? Diz no capítulo I:

Pelo que me parece, ignoras que por nenhum ou-

tro motivo nos foi ordenado que rezássemos em

quartos fechados [Mateus, 6, 6] – nome que signi-

� ca o santuário da mente – senão o de que Deus,

para nos conceder o que desejamos, não pretende

ser rememorado ou ensinado pela nossa locução.

Efectivamente, quem fala mostra exteriormente o

sinal da sua vontade, por meio dum som articu-

lado. Deus porém deve-se procurar e suplicar no

próprio íntimo da alma racional, o qual se denomi-

na – “o homem interior”. Quis Ele que fossem es-

ses os seus templos. Não leste no Apóstolo: “Não

sabeis que sois templo de Deus e que o Espírito

de Deus habita em vós?” [1 Coríntios, 3, 16] e que

“Cristo habita no homem interior” [Efésios, 3, 16].

Nem advertiste o que disse o profeta: “Falai nos

vossos corações, e compungi-vos nos vossos apo-

sentos; oferecei sacrifícios de justiça, e esperai no Se-

nhor”? [Salmo, 4, 5-6]. Onde pensas que é oferecido

o sacrifício de justiça, senão no templo da mente e nos

aposentos do coração? Ora, onde se deve sacri� car,

aí se deve também orar. Por isso, quando oramos,

não é preciso a locução, isto é, as palavras sonan-

tes; a não ser ocasionalmente, como fazem os sa-

cerdotes a � m de exprimirem o seu pensamento,

não para que os oiça Deus mas os homens, e assim

estes, graças à rememoração, se elevem para Deus

em certa conformidade de sentimentos4.

Repare-se que Santo Agostinho compa-ra aqui alguns signi� cados como, por exemplo, quartos fechados e santuário da mente. Por acaso um quarto fechado não é escuro, uma espécie de Lua nova, ainda não iluminada pelo Sol? Tudo se passa no interior ou, nas palavras do próprio Santo, no homem interior: nos quartos fechados, no íntimo da alma racional, no íntimo da consci-ência. A feminina, lunar via que Santo Agosti-nho aponta passa, não pela razão em si mesma, mas antes por uma procura e súplica no próprio íntimo da alma racional. Não na alma racional, mas no íntimo dela. Dir-se-ia ‘no centro’! São as próprias expressões usadas por Santo Agostinho que indicam esse lugar bem oculto no qual tudo se passa. Há três ou quatro pontos que imediata-mente ressaltam do excerto citado:

1. Deus é o desvelador da Verdade: na bus-ca da verdade o que se deve realmente buscar é Deus. Este se identi� ca com a verdade como o sol com a luz.

2. “Comunica-se” com Deus através da oração: a forma de encontrar Deus é através da oração do homem interior. A oração é puro si-

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4| De Magistro, I 2; ed. cit., pp. 58-59, linhas 22-2.

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lêncio, ausência de Verbo, como a Lua Nova é ausência de luz.

3. A oração é a procura do puro silêncio nos quartos fechados, no santuário da mente no íntimo da alma racional. Chega-se ao silêncio através da oferta de sacrifícios de justiça.

4. A oração faz-se em quartos fechados, na mente, local onde se deve oferecer sacrifícios. O sacrifício é a renúncia à sua própria luz, para que possa brilhar a luz da verdade5. Com isto, vê-se que é Deus quem desvela a verdade e, se assim é, é na oração – sendo esta a suprema forma de comunicação com Ele – que se deve procurar a Verdade. A oração é puro silêncio6, e o silêncio é o resultado do sacrifício oferecido. Santo Agos-tinho parece recomendar, veladamente, que se faça o sacrifício do falso intelecto, aquele cheio de ocas palavras, para que se possa conquistar o verdadeiro Intelecto – não o particular, ligado ao pequeno eu discursivo, mas o Si, o Cristo ilumi-nador. Corresponderia, neste caso, ao sacri� cium intellectus7, uma espécie de opus purgationis, para chegar a um conhecimento-visão. Aliás, o pró-prio Santo Agostinho, ao referir-se a este tipo de conhecimento, diz que: “Quando, porém, se trata de coisas que vemos por meio da mente, isto é, por meio do intelecto e da razão, falamos realmente de coisas que contemplamos presen-tes nessa luz interior da Verdade, de que é ilu-minado e goza aquele que se denomina homem interior8” .

Em relação ao sacrifício, Santo Agostinho diz claramente que é na mente que deve ser ofe-recido. Onde se deve sacri� car, aí se deve também orar. E onde se deve orar sem palavras? – nos aposentos do coração (Falai nos vossos corações). Há ainda outra referência importante, que pode aju-dar a compreender o sacrifício, que diz respeito à rememoração. O acesso à verdade interior faz-se por ela, como por uma escada. O silêncio, a tal escuridão da Lua Nova, requer uma faculdade

de pura atenção, capaz de, a todo o momento, se desidenti� car do conteúdo da alma , cujo ataque, o indivíduo que o tente fazer em si constante-mente vai sofrer. Quem quer que tenha tentado, por uns minutos apenas, fazer silêncio no seu interior verá que, em poucos segundos, já está encadeado, preso na corrente do pensamento, esquecendo-se rapidamente de prosseguir no silêncio a que se tinha proposto. Exige-se, por-tanto, uma atenção que não se deixe identi� car, caindo na corrente do pensamento, das emoções e da imaginação, ou melhor, da fantasia, e que seja capaz de ver:

O ouvinte, se também ele as [i.e., as «coisas que

vemos por meio da mente»] vê por meio dessa vi-

são íntima e pura, conhece pela sua contemplação

o que eu digo10.

Só uma faculdade deste tipo pode permitir descobrir o Sol-Cristo, atendo-se, � rmemente ancorada, ao centro e aí constantemente ofere-cendo sacrifícios. Quais sacrifícios? Os do seu falso intelecto, renunciando ao demônio da dialé-tica. A memória, a que estão inerentes as palavras, revolvendo-as faz vir ao espírito as próprias coisas, de que as palavras são sinais. Então, a memória, através das palavras que lhe estão inerentes, che-ga intuitivamente a esse mundo inteligível no qual está, em ato, a verdade. Cristo, no interior do homem, constantemente envia os raios ilu-minadores da verdade e a todo o momento lhe são interpostas as espessas nuvens dos pequenos pensamentos. A radical desvalorização das pala-vras por parte de Santo Agostinho neste diálogo deve-se, com certeza, à necessidade de enfatizar essa outra forma de comunicação, mais pura e direta, que permite a ligação imediata à fonte da verdade: o silêncio11.

Este é o veículo no qual é transportado o Verbo interior, a luz da verdade. O silêncio é a Lua Nova. É dito ainda que quando oramos, não é precisa a locução, isto é, as palavras sonantes; a não

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5| E o que é que significa essa outra alusão aos sacrifícios que se devem oferecer, mas desta feita no coração? Para o conhecimento e a crítica dos textos herméticos, em particular o Asclépius, vejam-se as abundantes citações em De civitate Dei, VIII cap. xxiii-xxiv.

6|A oração silenciosa / Deus transcende tudo de tal modo, que nada se pode dizer. / Portanto é também em silêncio que melhor o adoras. É através do silêncio que ouvimos / A Palavra ressoa em ti mais que na boca do outro; / Se podes calar-te diante dela, no mesmo instante a ouves, Angelus Silesius: A rosa é sem porquê (ex-certos da segunda edição de 1675 do Cherubinischer Wandersmann), tradução de José Augusto Mourão, Vega, 1991.

7|Dado um conceito, dado um esquema, logo as imagens acorrem impeli-das por uma necessidade íntima, a que se pode cha-mar espírito de associação ou de contiguidade, a tentar subordiná-lo. É en-tão que o espírito tem de manter-se bem firme no conceito, atuando como um poder que, em vez de se deixar dominar, pelo contrário a si submete a energia da imagem, dirigin-do-a e modificando-a de harmonia com o fim que se propôs. Ao exercício deste poder que é, aliás, a própria atividade do pen-samento, chama Bergson «esforço intelectual. Tal atividade é comparável à espada com que Ulisses afasta os espíritos atraídos pelo sangue do sacrifício” (TELMO, António, Arte Poética. Lisboa: Guimarães Editores, 1993, p. 21).

8|Op. cit. p. 94, linhas 9-12.

9| A este propósito, leia-se o tratado de MESTRE ECKHART, Du Détache-ment, in: Les Traités et le Poème, Albin Michel, 1996 (Spiritualités vivantes).

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ser ocasionalmente, como fazem os sacerdotes a � m de exprimirem o seu pensamento, não para que os ouça Deus mas os homens, e assim estes, graças à re-memoração, se elevem para Deus em certa conformi-dade de sentimentos. Con� rma-se, pelas palavras de Adeodato, que mesmo quando Cristo ensi-nou a orar – o Pai Nosso – foi apenas para que, pelas palavras, os homens recordassem a quem e o que deveriam pedir, ao rezarem no íntimo da cons-ciência. Santo Agostinho parece ir reconhecendo um papel fundamental nas palavras, enquanto capazes de cristalizar uma determinada energia, servindo-lhe de suporte, e permitindo guardar sem mácula essas realidades expressas. Não foram palavras que Ele lhes ensinou, mas, por meio de palavras, realidades expressas. Como poderia al-guém dizer simultaneamente que as palavras são mero ruído e que, no entanto, permitem servir de suporte às tais realidades expressas? Parecem

coexistir duas doutrinas: uma aparente e outra para quem tiver ouvidos.

Neste texto, todo o diálogo se dá num jogo de pergunta a resposta, em que Adeodato se vê constantemente forçado a contradizer-se, para em seguida negar o que tinha já dado como ponto assente. O ambiente que se forma nesta incessante busca propicia o advento da verdade, pois o estado interrogativo cria no interior do in-divíduo um pólo de atração / evocação. Por isso se diz, tradicionalmente, que colocar a questão é saber já a resposta ou, nas palavras de Al-Makkî, que metade do conhecimento é a pergunta, a outra metade é a resposta. A forma como o diálogo de-corre é já em si representativa do estado de Lua Nova, que o indivíduo terá de fazer em si mesmo – tal como o próprio Adeodato vendo-se cons-tantemente forçado a fazer para poder receber a iluminante luz da verdade-sol.

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10| De Magistro, XII 39; ed. cit., p. 94, linhas 12-14.

11|Se, por um lado, Santo Agostinho nos diz que as palavras são mero ruído até sabermos o seu significado, por outro lado, fala numa conexão das palavras à memória, “à qual estão ligadas interiormente”.

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Uno e trino: a visão de Deus de Nicolau de CusaO amor é uma essência ternáriaSonia Regina Lyra

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* Sonia Regina Lyra

Doutora em Ciências da

Religião

[email protected]

** Este artigo foi

apresentado inicial-

mente no I Colóquio

Nacional de Ciências Da

Religião - Espiritualidade,

Educação e Ciências da

Religião na pós-moder-

nidade, em Curitiba, no

período de 12 e 13 de

maio de 2009.

Uno e trino: a visão de Deus de Nicolau de CusaO amor é uma essência ternária*

Introdução

Neste livro Nicolau de Cusa propõe um método em três etapas, com a � nalidade de edu-car os monges e iniciá-los na busca do símbolo e, com isso, no entendimento do uno que, para ele, só pode ser trino. Para tal, é do modo mais simples e comum que lhes dará acesso à teolo-gia mística. Antes, porém, de iniciar, roga a Deus que lhe dê “as palavras mais elevadas e o discurso

Sonia Regina Lyra**

que só a si próprio pode revelar” (CUSA, 1998, p. 133) querendo com isso transmitir de acordo com a capacidade de compreensão de cada um “as coisas admiráveis que se mostram acima de toda visão sensível, racional e intelectual” (Id., p. 133).

Desse modo tentará o Cardeal, também a nós, conduzir “até a mais sagrada obscuridade” (Id., p. 133), quando então caberá a cada um ten-tar por si só “e do modo que Deus lhe conceder

Resumo

Esclarecendo uma polêmica entre a interpretação afetiva e a intelectual, da visão contemplativa, aos monges beneditinos de Tegernsee, Nicolau de Cusa (1401-1464) envia àquela comunidade uma reprodução do rosto de Cristo, cujo olhar parecia � xar-se no espectador, qualquer que fosse a sua posição, e acompanhá-lo em todas as suas deslocações, juntamente com a obra De visione Dei. O intuito era de guiá-los nas suas re� exões e com isso levá-los a experimentar a escuridão sagrada e luminosa da teologia mística e da douta ignorância. A obra baseada no quadro motivador da re� exão converte a meditação mística num profundo solilóquio com Deus, gerando uma densidade especulativa e metafísica que parecem contrastar com a dimensão dialógica do escrito; no limiar da luz com as trevas o discurso se inscreve entre espiritualidade, educação e ciências da religião. Mais ainda, na � loso� a da religião.

Palavras-chave: Nicolau de Cusa, visão de Deus, mística, espiritualidade, ciências da religião, � loso� a da religião.

Abstract

While making clear to Benedictine monks of Tegernsee a controversy between a� ectional and intellectual interpretation of the contemplative vision, Nicholas of Cusa (1401-1464) sent to that community a repro-duction of Christ’s face whose eyes seemed to stare the viewer no matter what his/her position was and to follow him/her in all his//her movements, and he also sent the work De visione Dei. � e aim was to guide them on their re� ection and, this way, take them to experiment the sacred and luminous darkness of mystic theology and of learned ignorance. � e work based on the motivating picture of the re� ection converts the mystic meditation in a profound soliloquy with God generating a speculative and metaphysical density that seems to contrast with the dialogical dimension of the writing and in the threshold of light and darkness the discourse inscribes itself between spirituality, education, and sciences of religion, and more, in philosophy of religion.

Keywords: Nicholas of Cusa, vision of God, education, spirituality, sciences of religion, philosophy of reli-gion.

Uno e trino: a visão de Deus de Nicolau de Cusa – O amor é uma essência ternária | Sonia Lyra |11 - 20

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Ano I | número 1 | 2012

aproximar-se cada vez mais do festim da felicida-de eterna à qual somos chamados na palavra da vida” (Id., p. 133) pelo evangelho de Jesus Cristo.

Primeiramente diz Nicolau de Cusa que para conduzir às coisas divinas é necessário re-correr a comparações. Para tal, usará a imagem que lhe pareceu, entre as obras humanas, a mais conveniente, que é um rosto que “por sutil arte de pintura se comporta como se tudo olhasse em seu redor” (Id., p. 135), � gura essa que chamou de ícone de Deus.

Sugere aos monges que o coloquem numa parede onde seja possível que todos se mante-nham em volta, à mesma distância dele, quando cada um experienciará que “é o único a ser olhado por ele” (Id., p. 136).

Perceber-se-á que olhando nas diferentes direções o olhar estará olhando, ao mesmo tempo, todos e cada um. Os monges deverão mudar de lugar para experienciar que, estando o ícone � xo e sem se mover, cada um “admirar-se-á com a mu-dança do olhar imóvel” (Id., p. 136) e ainda que cada um se mova, percebe que o olhar do ícone move-se com ele sem o abandonar, admirando-se pelo fato de ele “se mover permanecendo imóvel” (Id., p. 136) acontecendo o mesmo com outros monges que se movam em direção contrária. Com base nos relatos dos outros monges, perceber-se-á que “aquele rosto não abandona todos aqueles que se deslocam, ainda que com movimentos contrá-rios” (Id., 137).

Percebe-se agora que o rosto imóvel move-se simultaneamente tanto para um lugar como para outro e “tanto para um movimento como para todos” (Id., p. 137). Compreender-se-á que aquele olhar não abandona nenhum, tendo “tanto cuidado como se se preocupasse só com aquele que experiência ser visto e com nenhum outro” (Id., p. 137), tendo, portanto, um cuidado diligen-tíssimo “com a mais pequena criatura, como se se tratasse da maior de todo o universo” (Id., p. 137).

É a partir deste fenômeno sensível (appa-rentia) que Nicolau de Cusa convida à teologia

mística, “através de uma prática de devoção” (Id., p. 137) sendo que, para que tal efeito ocorra, algu-mas coisas deverão ser observadas.

A visão de Deus

A perfeição do que aparece veri� ca-se em relação a Deus perfeitíssimo, isto é, Deus, que é a própria sumidade de toda a perfeição e maior do que se pode pensar, e que “recebeu o nome de theos exatamente porque tudo vê” (Id., p. 138). Constata-se que o olhar abstraído está contraído “relativamente ao tempo, às zonas do mundo, aos objetos singulares etc. (Id., p. 139) sob tais con-dições que não pertence à essência desse olhar, “olhar mais para um do que para outro objeto” (Id., p. 139). Deus, porém, “na medida em que é o olhar verdadeiro, não contraído” (Id., p. 139), não é inferior àquilo que o intelecto pode conceber sob o olhar abstrato, mas “improporcionalmente mais perfeito” (Id., p. 139).

É desse modo que o olhar absoluto abraça todos os modos. Deve-se considerar que o olhar é diferente em cada um, “consoante a diversidade da sua contração” (Id., p. 140), diferindo de acor-do com os estados de ânimo, as paixões ou as eta-pas da vida, seja criança, adulto ou velho.

Contudo, “o olhar desvinculado (Absolutus) de qualquer contração abraça simultaneamente e de uma só vez todos e cada um dos modos de ver como se fosse a medida mais adequada e o modelo mais verdadeiro de todos os olhares” (Id., p. 140) de tal modo que permanece totalmente desvinculado de toda a diversidade.

No olhar absoluto estão, “duma forma não contraída, todos os modos de ver das contrações” (Id., p. 140), isto é, sendo incontraível, a mais simples das contrações coincide com o absoluto. Assim, a visão absoluta está em cada olhar, porque “é através dela que é toda a visão contraída, e, sem ela, de modo algum pode ser” (Id., p. 140).

Portanto, todas as coisas que se a� rmam de Deus não diferem realmente, ainda que por

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razões diferentes se atribua a Deus nomes dife-rentes. Pois, “todas as coisas que se a� rmam de Deus não podem, devido à suprema simplicidade de Deus, diferir realmente” (Id., p. 141), uma vez que Deus é a medida absoluta de todas as razões formáveis e “complica em si todas as razões” (Id., p. 141). Em Deus “o ato de ver não é diferente do ato de ouvir, gostar, cheirar, tocar, e de com-preender” (Id., p. 141), dizendo-se por isso que toda a teologia tem uma “natureza circular” (Id., p. 141), dado que um dos atributos se a� rma de outro. Porque ele é a razão absoluta na qual toda a alteridade é unidade e toda diversidade, iden-tidade. Então “a diversidade das razões, que não é a própria identidade de acordo com a qual nós concebemos a diversidade, não pode existir em Deus” (Id., p. 141).

A visão de Deus é dita providência, graça e vida eterna e para entendê-la Nicolau de Cusa sugere aos monges que se aproximem agora do ícone de Deus. Perceba-se que “o olhar da ima-gem te olha igualmente em todo o lado e não te abandona para onde quer que te dirijas” (Id., p. 142); pode-se intuir a sua providência estando ele “com todos e com cada um, tal como em todos e em cada um está presente o ser, sem o qual não podem ser” (Id., p. 142).

Num solilóquio com Deus, o Cardeal roga-lhe que não permita, “por qualquer imaginação” (Id., p. 143), que este possa amar mais que a si, qualquer outro diferente de si – “porque só a mim o teu olhar não abandona” (Id., p. 143).

Aqui, o ver de Deus é seu amar, porque “onde estão os olhos está o amor” (Id., p. 143) e porque “o teu ser, Senhor, não abandona o meu ser” (Id., p. 143) então “eu sou na medida em que tu és comigo” (Id., p. 143).

Surge então um detalhe que parece de ex-trema importância e que está nessa semelhança:

“Jamais poderás abandonar-me enquanto eu for capaz de te receber” (Id., p. 143) diz o Car-deal. Cabendo, porém, a cada um “fazer quanto puder” (Id., p. 143), fazer com que possa tornar-se

capaz de o receber. É sabido que “a capacidade de recepção, que preside a união, não é senão seme-lhança” (Id., p. 144). No caso da semelhança, no entanto, é pela vontade livre que se pode “ampliar ou restringir a capacidade de receber a tua graça” (Id., p. 144), voltando, cada um, todo o seu esfor-ço na sua direção, porque todo o seu esforço está voltado na direção de cada um, com a máxima atenção.

É dado por Deus, a cada um, um ser tal que se pode tornar cada vez mais capaz de receber a sua bondade e a sua graça. Quanto à Vida Eterna, sendo ela “o máximo absoluto de todo o desejo racional, o qual não pode ser maior” (Id., p. 145), é contemplada “no espelho, na imagem, no enigma” (Id., p. 145) porque é através dela que o olhar de Deus se torna num vivi� car.

“Não é senão infundir continuamente um dulcís-

simo amor por ti, in� amar-me de amor por ti, pela

infusão do amor, e in� amando-me alimentar-me,

e alimentando-me acender desejos, e acendendo-os

beber o orvalho da alegria, e bebendo-o introduzir-

me na fonte da vida, e introduzindo-me crescer e

permanecer eternamente” (Id., p. 145).

É ai a� rma Nicolau de Cusa que “reside a origem de todas as delícias que puderam ser dese-jadas” (Id., p. 145). Em seguida, explica como ver é saborear, procurar, ter misericórdia e atuar. Dando continuidade ao solilóquio, ou o que assim parece, o Cardeal completa dizendo que “ninguém pode ver-te senão na medida em que concedes que se-jas visto” (Id., p. 146), e esse ver é apreender “num contato experimental” (Id., p. 146), isto é, sabore-ar a própria sabedoria1. Aqui, invocar é procurar, e procurar é já “voltar-se para ti” (Id., p. 148), e ninguém pode voltar-se para Deus se ele já não estiver presente. O ver de Deus, a� rma o Cardeal, é a sua misericórdia, assim como esse mesmo ver é atuar. “E é assim que tudo atuas” (Id., p. 148), pois “és aquele que tudo provê, cuida e conserva” (Id., p. 148).

1| Na obra Un ignorante discurre sobre la mente, encontra-se uma nota de rodapé onde o cusano fala acera de Un ignorante discurre acerca de la sabiduría, I, n.1: “De esta manera, entonces, aquello que te he expuesto de esta forma en este breve lapso, sea suficiente para que sepas que la sabiduría no reside en el arte oratorio o en grandes volúmenes, sino en el alejarse de estas cosas sensibles y en volver-se a la forma más simple e infinita” (CUSA, 2005, p. 151).

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A visão frontal

Contemplando a face do ícone e com ele dialogando, Nicolau de Cusa propõe que, sen-do a sua verdadeira face desligada de qualquer contração, por isso, não pertence ao domínio da quantidade e nem da qualidade, nem do tempo ou do lugar. Percebe-se que aos poucos começa a introduzir a noção de proporção e medida e pro-vavelmente, com isso, a noção de símbolo.

Tudo isso por perceber que uma face não pode ser pintada sem cor “e a cor não existe sem quantidade” (Id., p. 149). Não sendo do domínio da quantidade, a verdadeira face “não pode ser maior nem menor; nem é, porém, igual a nenhu-ma, porque não é do domínio da quantidade, mas absoluta e sumamente exaltada” (Id., p. 149).

É desse modo que o Cardeal compreende que o rosto divino é “anterior a todas as faces formáveis” (Id., p. 150) sendo o modelo do qual todas as faces são imagens. Toda face, então, que pode olhar para a sua face nada vê senão a si mes-ma, ainda que a imagem não seja o próprio mo-delo. O seu olhar é, pois, a sua face sempre voltada simultaneamente para todas as direções.

Essa face é concebida por cada um segun-do seu próprio julgamento, isto é, “o homem não pode julgar senão humanamente” (Id., p. 151). Assim como os olhos corpóreos vêem que tudo é vermelho quando olha através de um vidro ver-melho ou verde, através de um vidro verde, assim também os olhos da mente.

Segundo o Cusano, conceber o modelo único da face divina requer que se transcenda “as formas de todas as faces formáveis e de todas as � guras” (Id., p. 151). E questiona como seria con-cebida então essa face, “uma vez transcendidas todas as semelhanças e � guras de todas as faces, todos os conceitos que podem ser formados sobre a face, toda a cor, ornamento e beleza de todas as faces?” (Id., p. 151).

É por isso, diz Nicolau de Cusa, que “quem se resolve a ver a tua face, enquanto concebe algo,

permanece longe da tua face” (Id., p. 151), pois a face divina não aparece a descoberto enquanto “se não penetra, para além de todas as faces, num se-creto e oculto silêncio, onde nada resta da ciência ou do conceito de face” (Id., p. 152).

Aproximamo-nos então das trevas ou da ignorância, semelhante àquele que quer ver a luz do sol e que precisa transcender a luz visível, sa-bendo o buscador “que é necessário que aquilo em que mergulha careça de luz visível” (Id., p. 152), pois, estando os olhos nas trevas que são escuri-dão, “se sabem que estão na escuridão, sabem que se aproximam da face do sol” (Id., p. 152). Tanto mais atingem a luz-escuridão, tanto mais se apro-ximam da luz invisível.

Questiona agora qual o fruto da visão fron-tal e como se adquire. Nicolau de Cusa mesmo responde que o fruto da visão frontal é ser de si mesmo. Mas o que signi� ca ser de si mesmo e como adquirir esse fruto?

O fruto da visão frontal

Primeiro ele dá indícios de como se adquire, usando das comparações que diz serem tão agradáveis e inspiradas por Deus. Sendo Deus a força e o princípio a partir do qual “todas as faces são o que são” (Id., p. 154), voltar-se-á o Cardeal para uma árvore e descreverá como se pode ver nela esse mesmo princípio e essa mesma força.

Com os olhos sensíveis vê uma árvore gran-de, extensa, colorida e carregada de ramos. Com os olhos da mente vê que, na semente essa mes-ma árvore é não como agora, mas apenas virtu-almente. Considere-se então “atentamente a ad-mirável virtude (Virtutem) daquela semente, na qual se encontrava toda aquela árvore, todas as nozes, toda a força da semente das nozes e todas as árvores virtualmente [existentes] nas sementes das nozes” (Id., p. 154). Percebe-se então, como essa força da semente, “embora inexplicável, está, contudo contraída, porque não tem a sua virtude senão nessa espécie de nozes” (Id., p. 155). É por isso que, vendo a árvore na semente, essa visão é a

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de uma “virtude contraída” (Id., p. 155).

Chega-se então à visão que deve transcen-der toda a virtude seminal susceptível de ser sa-bida ou concebida e “entrar naquela ignorância na qual não resta absolutamente nada da virtude ou do vigor seminal” (Id., p. 155). Vê-se então na escuridão a “admirabilíssima virtude inacessível a qualquer virtude que possa ser pensada” (Id., p. 155).

Complicatio e explicatio se desdobram aqui na visão do Cusano. Sendo a virtude absoluta quem dá “o ser a toda virtude seminal” (Id., p. 155), tal virtude é a face ou o modelo de toda face da árvore que é quando se pode ver a nogueira não na sua virtude seminal contraída, mas “como ela é na causa fundadora da sua virtude” (Id., p. 155).

É por essa razão que tal árvore pode ser agora entendida como uma “explicação da virtude seminal e que a semente é uma certa explicação da virtude omnipotente” (Id., p. 156).

Sintetizando esse desdobramento (explica-tio), diz o Cusano:

“E vejo que assim como a árvore na semente não é

árvore, mas força seminal, e que essa força seminal

é aquela a partir da qual se explica a árvore – de tal

maneira que nada se pode encontrar na árvore que

não proceda da virtude seminal –, assim também

a virtude seminal na sua causa, que é a virtude das

virtudes, não é virtude seminal, mas virtude absolu-

ta” (Id., p. 156).

Assim, a árvore é em Deus ele mesmo e nele a virtude e o modelo de si própria. Deus é, pois, a verdade e o modelo, sendo a força da semente, “que está contraída” (Id., p. 156), a força da na-tureza da espécie, que “está contraída na espécie” (Id., p. 156) e que lhe é inerente como princípio contraído.

Mas, com isso, diz o Cardeal: “Ninguém pode apoderar-se de ti se tu não te lhe deres” (id., p. 156), o que parece contraditório com a passa-gem seguinte, que diz: “Colocaste na minha liber-

dade a possibilidade de eu ser, se quiser, de mim próprio. Por isso, se eu não for de mim próprio, tu não serás meu” (Id., p. 157). Essa liberdade neces-sária, também ela, impõe que Deus não possa ser meu se eu não for de mim próprio e, no entanto, me dá essa escolha em que espera que eu seja de mim próprio. E conclui o Cusano com a ques-tão: “De que modo serei de mim próprio, se tu, Senhor, não me ensinares?” (Id., p. 157). E, como resposta, entende que os sentidos devem obedecer à razão e esta deve dominar. Por isso, “quando os sentidos servem à razão, eu sou de mim próprio” (Id., p. 157). Mas quem dirige a razão é Deus, que é o verbo e a “razão das razões” (Id., p. 158).

A visão de Deus é, pois, amar, causar, ler e conservar em si todas as coisas. Para Nicolau de Cusa, o ver de Deus é amor tanto quanto é causar. Também entende que enquanto o homem lê uma página, letra por letra e linha por linha, Deus “vê simultaneamente toda a página e lê sem qualquer demora temporal” (Id., p. 161). O olhar de Deus, “sendo olhos e espelho vivos, vê em si todas as coisas. Ele é antes causa de tudo o que é visível” (Id., p. 162). Enquanto em nós os olhos se voltam para o objeto e com isso vemos sob um ângulo quantitativo. O olhar de Deus não sendo quan-titativo, mas in� nito, é círculo e esfera in� nita, por isso vê tudo em redor e simultaneamente em cima e em baixo. A visão de Deus é igualmente universal e particular e a via que a ela conduz é a coincidência dos opostos. Aproxima-se a idéia da trindade da unidade.

Símbolo

No símbolo, para Nicolau de Cusa, coincide o universal com o singular. É quando, “considerando a humanidade contraída e, através dela, a absoluta, isto é, vendo no contraído o absoluto como no efeito a causa e na imagem o modelo, vens ao meu encontro” (Id., p. 164). Da mesma forma, quando se volta em todas as espécies “para a forma das formas, em todas vens ao meu encontro como idéia e modelo” (Id.,

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p. 164). Percebe-se então que Deus está “em todas as coisas, ao mesmo tempo e de uma só vez e no que quer que seja” (Id., p. 165), estando completamente presente. E contudo, “não te moves nem repousas, porque és sobrexaltado e desligado (Absolutus) de tudo o que pode ser concebido ou denominado” (Id., p. 165). Por exemplo, se eu me movo, Deus move-se comigo, enquanto um outro que � ca parado, olhando o mesmo ícone de Deus, parecerá imóvel com o que está imóvel. Deus, porém, está “acima de toda a imobilidade e movimento na sua in� nitude profundamente simples e absoluta” (Id., p. 166).

A experiência agora é de, na escuridão, “admitir a coincidência dos opostos sobre toda a capacidade racional [...], acima também de toda ascensão intelectual mais elevada” (Id., p. 166). É aí que Deus está. A via para aceder a Deus é então aquela “completamente inacessível” (Id., p. 166), só podendo ser visto ali onde se depara com a impossibilidade, para lá da coincidência dos contraditórios. Nessa coincidência dos opostos encontra-se o símbolo.

Deus, porém, é visto para lá da coincidência dos contraditórios e o seu ver é ser. Neste mo-mento, Nicolau de Cusa, estando diante do qua-dro e vendo a imagem da face de Deus com os olhos sensíveis, tenta intuir com os olhos interio-res a verdade que está representada na pintura.

Ocorre-lhe o pensamento de que o olhar ali pintado fala, porque entende que o falar de Deus não é diferente do seu ver. Diz experienciar então com clareza que Deus vê ao mesmo tempo todas as coisas e cada uma delas. Analogicamente per-cebe que, sendo ele mesmo um, fala para toda a igreja congregada e ao mesmo tempo a cada um dos indivíduos que lá estão. “Digo uma só pala-vra e com essa única palavra falo a cada um dos indivíduos” (Id., p. 168). Entende que aquilo que para si é a igreja é para Deus todo esse mundo e cada uma das criaturas, tanto as que são, quanto as que podem ser. Do mesmo modo, sendo um indivíduo e tendo uma única face, é visto por todos aqueles a quem prega simultaneamente,

enquanto o seu discurso é ouvido por cada um. Mas ele mesmo não pode ouvir de modo distinto e simultâneo todos os que falam, mas “um depois do outro” (Id., p. 168), enquanto que, em Deus, entende que coincide ver e ouvir simultaneamen-te todos e cada um dos indivíduos.

É agora, nessa porta da coincidência dos opostos, que chama de “porta do paraíso” (Id., p. 169), que na verdade é o mesmo o ver todas as criaturas que o ser visto por elas, porque as criatu-ras só são pela visão de Deus. “O ser das criaturas é simultaneamente o teu ver e o ser visto” (Id., p. 169).

Louva então o Cusano a Deus, pois o seu “conceber é falar” (Id., p. 170). Mas em seguida questiona: como é que partindo de um único con-ceito, de uma única concepção, todas as coisas não são simultaneamente, mas, uma depois da outra?

A resposta que ouve, estando na porta do paraíso, é que “a duração in� nita, que é a eterni-dade, abraça efetivamente toda a sucessão” (Id., p. 170), pois tudo aquilo que para nós é sucessão, no conceito divino é a eternidade simples. É o conceito único que complica todas as coisas e cada uma delas.

Assim, entende que a palavra eterna que é a eternidade simples não pode ser múltipla nem diferente, nem variável e nem mutável. Nessa eternidade simples em que Deus concebe, “toda a sucessão temporal coincide, no mesmo momento, com a eternidade. Por isso, nada há de pretérito ou de futuro onde o futuro e o pretérito coinci-dem com o presente” (Id., p. 171).

Entende agora o Cardeal que Deus, por ser omnipotente, está dentro do muro do paraíso, porque o muro é a coincidência dos opostos, ali onde o antes coincide com o depois e o � m coin-cide com o princípio, em que “alfa e omega são o mesmo” (Id., p. 171).

Na verdade, insiste o Cusano, “o agora e o então são depois do teu verbo. E assim aqueles que se aproximam de ti deparam com o muro que circunda o lugar em que habitas na coincidência”

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além da qual existes desligado de tudo o que pode dizer-se ou pensar-se” (Id., 174).

Onde se vê o invisível, vê-se o criador in-criado, isto é, como o ser da criatura é o ver de Deus, a visão preexiste ao ato, porque a visão de Deus é a sua essência. Assim, Deus é visível e simultaneamente invisível. É visível enquanto a criatura é, pois esta é na mesma medida em que o vê, e é invisível enquanto é. Deus invisível então é visto em qualquer visível “por todos e em todo olhar” (Id., p. 175). Percebe agora o Cusano a ne-cessidade de transpor o muro da visão invisível em que Deus se encontra, pois, enquanto concebe um criador que cria, ainda está para cá do muro do Paraíso e, enquanto concebe um criador criá-vel, ainda não está dentro do muro, mas apenas no muro.

Começa-se a ver com mais clareza apenas quando se pode ver que à in� nidade absoluta não convém nem “o nome de criador que cria e nem o de criador criável” (Id., p. 177), porque Deus “nunca é nada de semelhante ao que pode ser dito ou concebido” (Id., p. 178) mas, in� nitamente mais que criador, ainda que nada possa ser feito sem ele.

Segundo o Cardeal, Deus aparece como in-� nidade absoluta, pois qualquer conceito ou qual-quer nome não pode dizer ou nomear Deus. Sabe que vê, porque nada vê do mundo visível. Desse modo, se alguém descrever ou comparar Deus a algo, querendo oferecer um modo pelo qual Deus possa ser compreendido, permanecerá longe dele. Por isso, diz Nicolau de Cusa, “enquanto me elevo o mais alto possível, vejo-te como in� nidade, sen-do por isso inacessível, incompreensível, inomi-nável, imultiplicável e invisível” (Id., p. 180). Mas a questão é: como chegar a Deus, como elevar-se para além do � m? A resposta é que o intelecto se coloque na sombra, que se torne ignorante.

Quando o intelecto sabe que não pode cap-tar a Deus, quando se sabe ignorante, é quando dele pode se aproximar. “Entender a in� nidade é, pois, compreender o incompreensível. Sabe o in-

(Id., p. 171). Deus, no entanto, fala para além do agora e do então, para além do muro da coinci-dência dos opostos. Nesse muro o que se vê é o símbolo.

Em Deus vê-se a sucessão sem sucessão

Um exemplo simples é o do relógio, que complica em si toda a sucessão temporal. Apas-centado com o leite das comparações, até que lhe seja concedido por Deus um alimento mais forte, o Cusano apropria-se do relógio em analogia com o conceito, para então explicar a sucessão. O faz do seguinte modo:

A eternidade complica e explica a sucessão. Por exemplo: se o relógio fosse o conceito, “ainda que ouvíssemos o som das seis horas primeiro que o das sete, não se ouve o som das sete senão quan-do determina o conceito” (Id., p. 172).

Desse modo, as seis horas, no conceito, não são antes das sete, e nenhuma hora é antes ou depois da outra, ainda que o relógio nunca bata uma hora que não tenha sido determinada pelo conceito. Passa-se a ver então que o que quer que se experimente na sucessão sai do conceito e, com isso, a sucessão é a explicação do conceito, “porque o conceito dá o ser a qualquer coisa” (Id., p. 173).

Por isso, se o conceito do relógio é como que a própria eternidade, então o movimento do relógio é a sucessão. Fica claro que o conceito do relógio, que é a eternidade, complica e explica igualmente todas as coisas.

Con� a o Cardeal que possa encontrar a Deus para lá do muro da coincidência dos opos-tos, para lá da coincidência da complicação e da explicação, para além do símbolo.

Parte “das criaturas para o criador, dos efei-tos para a causa” (Id., p. 174) e sai partindo de Deus, o criador, para a criatura, “da causa para o efeito” (Id., p. 174). O que quer dizer com isso é que, “com efeito a disjunção e simultaneamen-te a conjunção são o muro da coincidência para

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telecto que te ignora, porque sabe que não podes ser conhecido, salvo se souber o que não é suscep-tível de se saber e se vir o que não é visível e se tiver acesso ao que não é acessível” (Id., p. 180).

Essa a� rmação escapa a qualquer razão, porque quando se a� rma um � m sem � m, ad-mite-se que “a treva é luz, a ignorância ciência, o impossível necessário” (Id., p. 181). Admite-se ainda que na in� nidade “a oposição dos opostos é oposição sem oposição” (Id., p. 182) e, como a in-� nidade absoluta tudo abraça, nada há fora dela, não podendo ser maior nem menor.

A in� nidade então está acima de tudo, ain-da que não seja o todo, a que se opõe a parte, nem a parte do todo, pois não é grande nem peque-na, nem o que quer que seja. A in� nidade não é maior nem menor nem igual a nada, sendo, ainda assim, a medida de todas as coisas.

Dessa forma, é concebida pelo Cusano a igualdade do ser. “Tal igualdade, porém, é in� -nidade, e, assim, não é igualdade do modo pelo qual à igualdade se opõe o desigual, mas aqui, a desigualdade é igualdade” (Id., p. 183).

Permanecendo absoluto, o in� nito não é contraível. Por exemplo, a linha deixa de ser linha se não tiver quantidade nem � m, e, por isso, na in� nidade a linha in� nita não é linha, mas, in� -nidade.

A in� nidade é, pois, in� nidade absoluta que não é nem princípio nem � m, sendo Deus; isso porque Deus é in� nito, a medida imensurável de tudo, sendo princípio por ser � m e sendo � m por ser principio.

Nicolau de Cusa percebe que em Deus todas as coisas não são diferentes de Deus. Não podendo a alteridade ser em si, e não sendo em Deus, o Cusano pergunta: Como então procurar a alteridade que “não é em ti nem fora de ti” (Id., p. 185)? Sem a alteridade, pensa o Cardeal que a diferença entre o céu e a terra não pode ser conce-bida. A alteridade então, “não podendo ser princí-pio de ser porque se diz a partir do não ser” (Id., p. 186), não é alguma coisa. Diz o Cardeal agora que

“a razão pela qual o céu não é a terra está em que o céu não é a própria in� nidade que abraça todo o ser” (Id., p. 186).

A infinidade é a unidade, e nela a representação é a verdade

Ainda diante do quadro mencionado, Ni-colau de Cusa diz ver na face pintada a represen-tação da in� nidade. Não sendo o olhar limitado diante de algum objeto ou lugar, e, por não estar mais voltado para este que para outro lugar, é in� -nito. Mas, para quem o olha, parece limitado, pois quem o olha olha de modo determinado. Enten-de, então, que a potência absoluta, a in� nidade, está para além do muro da coincidência, “em que o poder ser feito coincide com o poder fazer” (Id., p. 188/189), da mesma forma como a potência coincide com o ato.

Sendo Deus a forma das formas, “espelho vivo da eternidade” (Id., p. 190), quando alguém intui a si, ao olhar para esse espelho, só o faz por-que Deus mesmo lhe permite tal coisa. Ele vê a sua forma na forma das formas que é o espelho e pensa que o que vê é a representação da sua for-ma, mas “aquilo que vê no espelho da eternidade não é a representação, mas a verdade da qual o próprio sujeito que vê é a representação” (Id., p. 190). Finalmente, entende o Cardeal que a repre-sentação em Deus é a verdade e o modelo de tudo e de cada coisa que é ou que pode ser.

O Cardeal percebe que a imagem da face do ícone muda à medida de suas próprias mu-danças. Com isso, entende que a face de Deus não abandona a verdade da face do homem, mas, da mesma forma não acompanha a mudança da imagem alterável. Deus então é a sua imagem ou de um outro qualquer por ser o modelo, e cada face é a imagem que não é a própria verdade ab-soluta, mas a imagem da verdade absoluta. Ainda que Deus não possa abandonar a face mutável do homem Nicolau de Cusa, a sua face é imutável. Deus então, simultaneamente, não abandona e não acompanha as criaturas.

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e o nexo, são o que o Cardeal chama de “essência mais simples absoluta” (Id., p. 198), que não são três mas uma só. Não há aqui, portanto, a distin-ção numérica de três, porque a essência trina é sumamente simples. O exemplo a seguir é suma-mente esclarecedor:

Se alguém disser um, um, um, diz um três vezes, não diz três, mas um, e este um três ve-zes. Não pode, todavia, dizer um três vezes sem três, ainda que não diga três. Na verdade, quando diz um três vezes, repete o mesmo e não numera. Numerar é alterar o um, mas repetir o um e o mesmo três vezes é pluri� car o número. Daí que a pluralidade que é vista em Deus é alteridade, “porque é uma alteridade que é identidade” (Id., p. 199/200).

Admitindo que seja possível que eu veja, diz o Cardeal, em mim mesmo o amor, porque me vejo como o amante, e, na medida em que amo a mim próprio me vejo como o amável, então, vejo também que sou o nexo entre ambos. “Eu sou o amante, eu sou o amável e eu sou o nexo” (Id., p. 201).

Um só é o amor sem o qual não pode haver nenhum três mas, eu sou um só e não três. Sou um só do qual brota o amor com que me amo a mim mesmo. Se o meu amor puder ser entendido como a minha essência, então na minha essência existe a unidade das três coisas referidas: “a uni-dade da essência” (Id., p. 201).

Essa trindade que é a unidade da essência é contraidamente na minha essência aquilo que em Deus é verdadeira e absoluta. Outro exemplo do próprio Nicolau de Cusa não poderia ser mais claro:

Em virtude do amor amante que estendo a outra coisa para além de mim, como se o � zesse a algo de amável exterior à minha essência, segue-se o nexo pelo qual sou ligado a essa coisa tan-to quanto isso pode resultar em mim. Essa coisa não está unida a mim por tal nexo porque me não ama. Daí que ainda que eu a ame a tal ponto de o meu amor amante se estender sobre ela, o meu

É por isso que amamos aquilo que participa do nosso ser e o acompanha, abraçando a nossa semelhança, enquanto nos representamos a nós próprios na imagem em que nos amamos a nós próprios.

Assim, se Deus não fosse in� nito, não seria o � m do desejo, pois sendo a forma desejável e a verdade desejada, como um tesouro inumerável e inesgotável, Deus atrai a si, assim, as criaturas. O Cardeal explica que quanto mais incompreensí-vel, mais é compreendido Deus que é a in� nidade. Atingi-lo é atingir o � m do desejo, pois o próprio desejo rejeita tudo que é � nito e compreensível, não podendo descansar nas coisas � nitas, justa-mente por ser atraído pelo próprio Deus ao que é in� nito.

É, pois, o desejo conduzido ao � m sem � m, ao princípio sem princípio que é de onde rece-be o próprio desejo. Por isso é que “aquilo que o intelecto entende não o sacia nem é o seu � m” (Id., p. 196). Da mesma forma não pode saciá-lo aquilo que não entende apenas, mas que, “não en-tendendo entende” (Id., p. 196), como uma fome insaciável não é saciada com pouco pão nem com o pão que não chega até ela, mas somente com o pão que até ela chega e que, embora comendo-o continuamente, jamais pode ser plenamente en-golido, de tal modo que essa fome não diminui à medida em que o pão é engolido, “por ser in� nita” (Id., p. 196).

Deus não pode ser visto plenamente a não ser como unitrino

Não sendo o in� nito multiplicável e, podendo ser a sua amabilidade, que é simultaneamente o seu poder ser in� nitamente amado, Deus ama in� nitamente. Do poder amar e do poder ser in� nitamente amado, “surge o nexo in� nito do amor entre o amante in� nito e o in� nito amável” (Id., p. 197).

Deus é amor. É amor amante e amor amá-vel, assim como é o nexo entre eles. Essas coisas que ocorrem como sendo três, o amante, o amável

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cional com o seu amor amante, estas não amam a Deus como esposo, mas mais frequentemente a um outro com o qual estão ligadas.

Porque Deus é entendido como “o intelecto inteligente, o intelecto inteligível e o nexo entre ambos, pode então o intelecto criado atingir em ti, Deus, seu inteligível, a união contigo e a fe-licidade” (Id., p. 205). Entendido ainda como o próprio amor amável, diz Nicolau de Cusa que pode a vontade amante criada obter em Deus, seu amável, a união e a felicidade.

Referências

CUSA, Nicolau de. A visão de Deus. Trad. e in-trodução de João Maria André, Prefácio de Mi-guel Baptista Pereira. 2ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998.

CUSA, Nicolau de. Um ignorante discurre acer-ca de La mente (Idiota. De mente). Edición Bilíngüe. Introducción de Jorge M. Machetta y Claudia D´Amico, Traducción de Jorge M. Ma-chetta e Notas de Círculo de Estudios Cusanos de Buenos Aires. Buenos Aires: Editorial Biblos, 2005

amor amante não arrasta consigo o meu amor amável. Não me torno, pois, amável para ela. E de mim não cuida, ainda que a ame fortemente, assim como o � lho, por vezes, não cuida da mãe que com tanta ternura o ama. E assim experimen-to que o amor amante não é o amor amável, nem o nexo, mas “vejo que se distingue o amante do amável e do nexo” (Id., p. 201).

Essa distinção, no entanto, a� rma Nicolau de Cusa, não pertence à essência do amor, “por-que não posso amar-me a mim, ou a outra coisa diferente de mim, sem amor” (Id., p. 202). É, pois, o amor de uma essência ternária.

Sendo assim, se Deus não fosse trino não haveria felicidade, pois, assim como o amável é o objeto do amante, da mesma forma é o inteligível que é o objeto do intelecto.

A proposta do Cusano agora é que, sendo as almas racionais, lhes é dada a liberdade de amar ou não a Deus. Ainda que Deus esteja unido pelo nexo a todas as coisas, “nem todo o espírito racio-nal” (Id., p. 205) está unido a ele, pelo fato de não projetar o seu amor na sua amabilidade, mas, “em outra coisa a que está unido e ligado” (Id., p. 205).

Embora ele tenha desposado toda alma ra-

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Albertina Laufer

Navegar pela terceira margem: a nona bem-aventurança

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Navegar pela terceira margem: a nona bem-aventurança

Introdução

Percorrendo várias passagens, percebe-se que o Evangelho é um convite, um apelo, para que se possa construir um caminho propício rumo à vivência alternativa do Novo Testamen-to em relação ao Decálogo. Cada momento, cada passo, cada fragmento da vida de Jesus, cada pala-vra proferida pela sua boca, leva a buscar a Deus com mais amor, com maior intensidade. É a pos-sibilidade da construção de uma vida de virtudes e de dons. Tal vida é realidade, é construção da vida eterna, do paraíso, presente na alma de todo indivíduo. No intuito de tornar compreensível essa realidade, a Bíblia usa o termo beatitude, o que equivale à felicidade. Comumente se fala que beatos ou bem-aventurados são os que vivem no céu. Mas, para Jesus, não é bem assim. No Evan-

Albertina Laufer*

* Licenciada em peda-

gogia com habilitação

em administração

escolar. Especialista em

counseling. Especialista

em psicologia analítica

e religião oriental e

ocidental pelo ICHTYS

– Instituto de Psicologia

e Religião. Mestranda

em teologia - Puc/Pr.

E-mail:

[email protected]

gelho de Mateus (Cap. 5), ele proclama serem fe-lizes todos aqueles que optarem por viver as bem-aventuranças, uma vez que elas se constituem em um caminho possível de ser percorrido por todos e permitem adentrar na realidade da felicidade, participando dela e vivenciando-a aqui e agora.

Bem-aventurança é um termo técnico para indicar também uma forma literária que se encontra não somente no Antigo, mas também no Novo Testamento. É uma declaração de bên-ção que, proclamada assim por Jesus, adquire a característica ou a forma de um paradoxo: a bem-aventurança não é proclamada somente em vir-tude do que se considera como sendo uma boa sorte: dinheiro, bem-estar, amigos, vida sem di� -culdades. Mas é proclamada também em virtude do que comumente se caracteriza como sendo

Resumo

Este artigo objetiva aprofundar o sentido das oito bem-aventuranças, conforme o relato do Evangelista Mateus, onde Jesus proclama felizes todos aqueles que optarem por percorrer este caminho em suas vidas. São apresentadas aqui como pontes, que uma vez atravessadas, permitem adentrar na realidade do contenta-mento, na nova esfera da felicidade, no novo modo de ser, no rio onde se navega por um leito não físico, não material e, portanto, um lugar não geográ� co, possuindo, dessa forma, o signi� cado metafórico da terceira margem ou nona bem-aventurança.

Palavras-chave: Bem-aventurança, felicidade, contentamento, terceira margem.

Abstract

� is article aims to deepen the meaning of the eight beatitudes as the story of the Evangelist Matthew, where Jesus proclaims happy all those who choose this path in their lives. Presented here are like bridges that once crossed, let drift into the reality of contentment in the new realm of happiness in the new way of being in the river where we sail on a bed no physical, no material and therefore a place no geographic, having thus the metaphorical meaning of the third margin or the ninth beatitude

Keywords: Beatitudes, Happiness, Contentment, � ird Margin.

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humildade aquilo de que necessita. Ou então: “o ego que tem consciência do seu próprio vazio espiritual (sentido da vida) está numa feliz con-dição, pois se encontra aberto ao inconsciente e tem e possibilidade de experimentar a psique ar-quetípica (o reino dos céus)” (EDINGER, 1972, p. 191).

A pobreza da qual se trata aqui, portanto, não é um “fenômeno simplesmente material. A simples pobreza, materialmente falando, não re-dime” (RATZINGER, 2007, p. 81), mesmo que se possa contar de modo muito particular com a graça e a bondade de Deus. “Mas o coração da-queles que nada possuem pode estar endurecido... cheio de cobiça pela posse das coisas, esquecen-do-se de Deus” (Id., p. 81). Mas sabe-se também que a pobreza tampouco é uma “simples atitude espiritual” (Id., p. 81). O mundo necessita de pes-soas que seguem Jesus, vivendo também na sim-plicidade, a � m de poderem mostrar com a vida a verdade contida nas bem-aventuranças. Dessa forma, é possível “sacudir a todos para que este-jam despertos, para compreenderem a proprieda-de apenas como serviço” (Id., p. 81), contrapondo assim à cultura do ter uma cultura da liberdade interior, formada por pessoas que se sabem pobres também interiormente, pessoas que amam e que pretendem viver a concordância entre o ser e a palavra de Deus.

Por outro lado, para Jesus, pobre não é o que se deprecia. Não é tampouco aquele que é covar-de e nem o que ofusca ou esconde seu talento. Isso seria miséria, e Jesus jamais compactuou com ela. Por pobres em espírito Jesus não entende os homens desprovidos de inteligência, mas sim os humildes, pois ele mesmo disse que o reino dos céus pertence a eles e não aos orgulhosos.

Para Jesus, rico é aquele que crê que tudo pode ser comprado, até mesmo em se tratando do amor. “Rico é alguém a quem tudo é devido e o pobre é alguém para quem tudo é doação” (LELOUP, 2007, p. 62). Em várias passagens Jesus enfatiza que são infelizes os que possuem um espírito de riqueza, os que crêem que a saúde,

uma má sorte: pobreza material, fome, dor, lágri-mas, perseguição.

O texto é também chamado sermão da mon-tanha ou sermão das bem-aventuranças e, segundo a narrativa, foi pronunciado por Jesus no topo de um monte, em Cafarnaum. Com ele Jesus sinte-tiza as normas que têm por � nalidade reger um caminho possível para a humanidade. Nume-rosas pessoas o aguardavam para ouvi-lo. Entre elas estavam alguns daqueles que seriam os seus seguidores e que deveriam dar prosseguimento à divulgação da boa nova. Nele estava contida a es-sência do que a alma necessitava saber a respeito de Deus, da criação e da vida quotidiana, tanto naquela época, como também nas vindouras.

Existe também outro sentido que se pode deduzir do texto das bem-aventuranças e que re-mete ao estar em marcha ou então, estar a caminho, qual rio, cujas correntezas se direcionam para o mar. Dessa forma, descobrir-se a caminho já é fe-licidade e se opõe à infelicidade de estar parado, estagnado, qual lago circundado por uma margem só. Para Jesus a abertura, o movimento, já é ante-cipação do céu, da felicidade, da bem-aventurança, experimentada aqui e agora, ao passo que estar no inferno equivale a estar fechado no sofrimento, nos pensamentos, no modo de ser ou até mesmo nas emoções. Por essa razão, cada bem-aventuran-ça é um convite a dar sempre um passo a mais, a retomar a marcha a partir do lugar em que se está e do caminho até então percorrido. Esse passo a mais tem sua importância, pois permite a saída do que se caracteriza como sendo o inferno, ou seja, daquela prisão que paralisa e que impede não so-mente a abertura, o movimento, mas também as mais variadas formas de crescimento.

1 “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles

é o reino dos céus” (Mt 5,3)

Pobre pode também ser considerado todo aquele que busca o espírito, isto é, o que, tendo consciência de sua pobreza espiritual, busca com

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lhe é devido, mas tudo lhe é dado, e isso permite que ele esteja sempre em marcha, sempre pronto a percorrer novos caminhos. Equivale a dizer que é feliz porque sabe descontrair-se, tornando-se capaz de acolher todas as coisas que a vida lhe dá como uma dádiva, ou seja, como um presente valioso, nobre e encantador. Torna-se, dessa for-ma, também presente para os outros, porque, não estando apegado, não retendo nas mãos o que re-cebe, permite-se ser um presente delicadamente desembrulhado, doando-se naquilo que possui e naquilo que é.

2 “Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra” (Mt 5,4)

Esta bem-aventurança remete à dinâmi-ca da mansidão. Subjetivamente falando, pode estar relacionada “à atitude do ego com relação ao inconsciente” (EDINGER, 1972, p. 191). É o momento em que o ego deixa-se trabalhar, pre-dispõe-se, coloca-se em estado de abertura para que o novo possa lhe presentear com uma heran-ça sempre mais rica. Dessa forma, herdar a terra pode signi� car adquirir uma “consciência de estar relacionado ao todo ou de ter uma participação pessoal no todo” (Id., p. 191).

A própria terra tem atitudes de resistência ao violento e não se doa aos invasores que vêm e vão. “Permanecem sempre os simples e os hu-mildes, que cultivam a terra e que continuam a semear e a colher entre dores e alegrias” (RAT-ZINGER, 2007, p. 86). Historicamente falando, os simples e humildes são mais persistentes em relação aos que praticam a violência. Mas aqui se trata de algo a mais, isto é, do aspecto da univer-salização, da compreensão de totalidade também em relação à terra. Herdar a terra, tendo em vista a superação de uma visão unicamente nacionalis-ta. É um convite ao alargamento das fronteiras, que vai de mar a mar, com o objetivo de construir a cada dia uma terra renovada.

Ser manso não signi� ca ser um covarde ser-vil, mas alguém consciente de suas capacidades e

a amizade, a inteligência lhes são devidas e até mesmo o bom tempo lhes é devido. Esses são os eternos exigentes e difíceis na convivência, por-que jamais estão contentes. Sempre querem mais, de forma a possuir até a própria verdade e o co-nhecimento. Crendo-se os melhores e, portanto, justos, tomam-se por modelo dos outros. São os que pretendem ”ter não somente coisas materiais, mas também riquezas intelectuais e espirituais” (Id., p. 63). Na verdade, pretendem não somente ter a verdade em si, mas anseiam ter nas mãos até mesmo o próprio Deus e, por essa razão, di-� cultam o processo de comunhão consigo, com os outros e com as outras religiões. Ainda não se abriram ao fato de que “Deus não é um bem que se pode possuir, como a verdade não é um ter que se pode possuir” (Id., p. 64).

Visto sob o anterior ponto de vista de eluci-dação, rico pode ainda ser comparado com aquele indivíduo que ganha um belo presente. Por um instante se alegra com o presente, acaricia-o, mas logo o guarda dentro da mão a � m de retê-lo para si. Agindo assim, permite o fechamento da pró-pria mão para uma única utilidade: a de guardar o presente. Tem consigo um presente valioso, mas pelo fechamento, acaba perdendo a utilidade da mão, isto é, perde as várias possibilidades que po-deriam vir através do exercício de abrir as mãos e dispor do presente como dom.

Quando o indivíduo adota a atitude de uma vida pobre em espírito, cumpre a ele exercitar-se constantemente a � m de ter mãos que recebem e que também se dão. Na visão de Leloup (2007, p. 64), as mãos estão ligadas ao punho e assim sendo podem acariciar o vento, podendo também acolher o sopro que dele provém. Diz ele que o punho se espalha pelo corpo, permitindo, dessa forma, que ele chegue aos pés, no coração e na ca-beça, ou seja, na pessoa inteira. O punho conduz a mão para a doação, para a gratuidade. Assim sendo, para o pobre em espírito, a amizade é um presente, um raio de sol é um presente, a saúde é um presente, a própria riqueza e a própria po-breza constituem-se também em presentes. Nada

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Para retirar as projeções e assimilar seu conteúdo

à nossa própria personalidade, faz-se necessário a

perda da projeção como um prelúdio à redescober-

ta do conteúdo ou do valor dentro de nós mesmos

(EDINGER, 1972, p. 191).

Os que choram encontram-se envolvidos, portanto, num contínuo processo de cresci-mento e receberão a consolação a partir do mo-mento em que “o valor projetado, perdido” (Id., p. 191), voltar a ser recuperado no interior de sua psique.

Considerando a tristeza como uma proje-ção, surge então uma questão que se faz necessá-rio aprofundar. É bom chorar e recuperar como feliz a própria a� ição, a própria tristeza? Na visão de Joseph Ratzinger, o Papa Bento XVI (2007, p. 88), há dois tipos de tristeza: uma tristeza que perdeu a esperança, que já não con� a nem na ver-dade e que por isso desagrega e fragmenta o ho-mem por dentro; mas também há a tristeza que vem do abalo, da comoção provocada pela verda-de, que leva o homem à conversão. Esta tristeza tem poder de cura, porque ensina e orienta o in-divíduo de que é possível acreditar e voltar a amar novamente. Como exemplo desses dois tipos de tristeza, o Papa evidencia as � guras de Judas e de Pedro. Diz ele que Judas encontra-se na primeira tristeza, porque tocado pelo susto provocado pela própria queda, já não ousa acreditar e, no deses-pero, se enforca. Na segunda espécie de tristeza encontra-se Pedro, que tocado pelo olhar de Je-sus, desata em lágrimas, que são salvadoras e ao mesmo tempo redentoras. Elas são e� cazes e for-tes a ponto de lavrar e regar em profundidade o terreno ressecado e pedregoso de sua alma. Então, com a alma regada, começa de novo, acredita que é possível e, dessa forma, torna-se novo.

Sabe-se que o choro, por si só, não tem nenhum valor, por isso os que choram dessa for-ma não recebem consolação. O choro com valor é aquele que evoca a consciência diante do erro cometido, evoca o arrependimento, a dor diante da perda. Nesse sentido, o choro traz saúde não somente física, mas também psíquica e espiritu-

de seus limites, crente na bondade de Deus e na benignidade do universo, mesmo quando a alma vive imersa no sofrimento e não vê razão aparente para isso. A mentalidade em que se vive hoje vê na mansidão uma atitude de quem é covarde, va-cilante, fraco. Mas mansidão não é fraqueza, e sim uma grande força trabalhada, isto é, tornada gen-til. A mansidão é uma atitude interna de quem abraça o processo de ser pobre em espírito. Na mansidão, na doçura, existe sempre um grande se-gredo. A mansidão é respeito. “É respeitar o que se toca, o que se vê, o que se escuta” (LELOUP, 2007, p. 75). A mansidão compreendida do ponto de vista intelectual é respeitar o pensamento do outro e, embora muitas vezes não concordando, sair enriquecido com ele. Do ponto de vista reli-gioso, é compreendida como atitude de respeito ao credo do outro, mesmo sem compactuar com ele ou compreendê-lo. É acreditar que a vida, as-sim como as idéias, as concepções, não é algo para ser agarrado como se fosse a verdade máxima ou a única verdade. Nem mesmo a vida é para se com-preender, mas para se acariciar, porque ela só pode se doar na carícia, na mansidão, na bondade. Só quem é doce consigo mesmo pode saborear a feli-cidade que a vida proporciona. “Ser doce consigo mesmo não quer dizer ser complacente” (Id., p. 76). Signi� ca viver em constante contentamento, isto é, aceitar onde e com quem se está, o que se faz e com quem se faz, porque “é a partir de onde estamos que podemos dar o passo a mais” (Id., p. 76). É sempre mais valioso dar passos lentos, corajosos e signi� cativos “em direção a um oásis, que ir correndo para o abismo” (Id., p. 76).

3 “Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados” (Mt 5,5)

É bem provável que esta bem-aventurança possa evocar três elementos signi� cativos na vida do indivíduo: a tristeza, o pranto e o luto. Estes são causados em decorrência da perda de algo, como, por exemplo, um objeto ou alguém, pelos quais se atribui ou se projeta um grande valor.

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al. Esta é, portanto, uma beatitude que tem um lado muito prático e que evoca a necessidade de lidar com a perda, com o luto. Por outro lado, percebe-se que, muitas vezes, “as pessoas não são felizes porque não aprenderam a lidar com o luto” (LELOUP, 2007, p. 67). Mas é preciso perceber o que isso signi� ca concretamente. “Costumamos lamentar, sempre que algo importante nos fal-ta, perdeu-se ou nos foi tirado” (ZEILINGER, 2008, p. 49) e isso prejudica, perturba e diminui sensivelmente a vitalidade ou a qualidade de vida. Pode acontecer mediante a morte de uma pes-soa querida, a perda de valores humanos, mate-riais e espirituais, a perda do que se possui pelas catástrofes naturais ou pela sombra humana que se manifesta nas revoltas e também nas guerras. “Quando idéias, ideologias, convicções revelam-se como o grande engano da vida, então isso sig-ni� ca a� ição profunda e árduo pesar para poder viver de novo” (Id., p. 49). Quando o luto sobre-vém, é sempre a vida que está ameaçada. “Cons-ciente ou inconsciente, a a� ição acompanha cada experiência de nossas inúmeras limitações e, por conseguinte, é parte integrante de nossa vida hu-mana” (Id., p. 49).

Proclamando essa bem-aventurança, Jesus quer dar a entender que é preciso aprender a � car de luto, isto é, aceitar que o presente é pre-sente e que o passado se torna passado. Não é o luto em si, mas a aceitação dele que se torna condição de felicidade. O grande drama das pes-soas é que, na maior parte do tempo, o passado se projeta sobre o presente, impedindo que vivam plenamente, que tenham “vida em abundância” ( Jo 10,10). Assim sendo, é bem-aventurado o que sabe aceitar que aquilo que foi já não pode mais ser. Com isso não se quer dizer que o passa-do deva ser esquecido, mas sim que é necessário cessar de projetá-lo sobre o presente. A felicida-de consiste em aceitar que o presente não seja o passado, que a cada instante existe uma grande novidade que não deixa a pessoa permanecer de forma passiva, como um mero espectador, diante dos fatos da vida.

Outro grande convite de Jesus nessa bem-aventurança é o de colocar-se em marcha, em movimento. Ele não quer ninguém parado, es-tagnado ou fechado na tristeza, numa atitude de quem vive apenas para massagear o luto. É um convite a dar sempre um passo a mais. Ele mes-mo não se conteve somente em chorar a morte de Lázaro. Colocou-se em ação a ponto de reanimá-lo. Também não se contentou em chorar sobre Jerusalém, em lamentar a infelicidade do mundo. Propôs metas para que a condição do mundo pu-desse ser cada vez melhor.

É preciso, portanto, viver o luto e com ele colocar-se em marcha para poder fazer a traves-sia. É uma forma de abrir o coração para apreciar adequadamente o novo lugar diante do luto, per-cebendo com isso que o lugar do luto anterior foi modi� cado, transformado. É possível transformar o modo de ser, a casa anteriormente construída em um novo modo, em uma nova morada.

Aprofundando um pouco mais essa idéia, percebe-se que “há também o luto por certas imagens de si mesmo” (LELOUP, 2007, p. 71). É a grande di� culdade encontrada por muitos indi-víduos para � car de luto por sua juventude, pela beleza física, pela saúde e até mesmo pela perda da memória. “Ficar de luto pelo seu passado não é denegá-lo” (Id., p. 71), pelo contrário, é ter a certeza de que a vida conduz sempre a algo novo, desconhecido, porém fascinante. Ter a certeza de que aquilo que foi bom em uma época, em uma realidade, em uma determinada cultura, pode não ser igualmente em outra. Por vezes, é preciso também aceitar que aquela imagem de Deus que se conheceu na infância já não é mais su� ciente quando a vida se torna adulta. É um imperativo que impulsiona sempre mais à coragem de se en-lutar por certas imagens de Deus que acalentaram a vida na infância.

Constata-se, na vivência do luto, que al-gumas vezes se traduz em lágrimas, a grande oportunidade para a liquefação do coração que se encontra rígido, endurecido. É o momento opor-tuno diante do qual toda dureza se enternece e

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todo fechamento se abre e, assim, “a água viva, a natureza � uídica é reencontrada” (Id., p. 74). É uma realidade fecunda, capaz de fazer nascer, crescer e fruti� car a semente também em “terre-no pedregoso ou entre os espinhos” (Mt 13,1-9), uma vez que estes também podem ser transfor-mados. Isso é estar em marcha rumo ao caminho da felicidade.

4 “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” (Mt 5,6)

“A justiça é aqui apresentada como algo que nutre. Trata-se de um princípio orientador inte-rior, de caráter objetivo, que traz um sentimen-to de realização do ego que o busca com fome” (EDINGER, 1972, p. 191-192). É a justiça de estar vivendo de acordo com a necessidade inte-rior. Segundo o Papa Bento XVI (2007, p. 92), a justiça consiste em não se vergar diante dos que ditam as opiniões e os hábitos dominantes. Justos são os que oferecem resistência ao sofrimento, os que mantêm o olhar atento em direção àquilo que é maior, de verdadeira justiça, de verdadeiro bem. Esta bem-aventurança volta-se para o cultivo do desejo, “para os homens que não se contentam com o que está disponível e que não sufocam a in-quietação do coração” (Id., p. 92), de tal modo que eles se põem a caminho, como os magos do orien-te, à procura de Jesus, nutrindo a sua esperança de justiça com a estrela que os guia no caminho da verdade e do amor. São pessoas que não medem esforços para aguçar sempre mais a sensibilidade, que as “capacita para ouvir e para ver os sinais su-aves que Deus envia para o mundo” (Id., p. 92), quebrando, dessa forma, a ditadura imposta pelo costume, pelo sempre igual, pelo sempre foi assim.

Essa beatitude é um forte estímulo, porque evoca o desejo de um mundo e de uma vida me-lhores, sempre mais coerentes com a proposta de Cristo. “É uma beatitude de não estar satisfeito com a situação presente” (LELOUP, 2007, p. 76), nem com a própria, nem a do outro, porque o ca-

minho da felicidade também se constrói a partir do olhar coerente sobre as injustiças. No Evan-gelho, a justiça adquire a dimensão de santidade e exatidão. É sempre a atitude correta em relação a algo ou a alguém, ou seja, a atitude que tem por � m não diminuir a integridade da pessoa, bem como a sua dignidade de poder crescer como imagem de Deus. É importante alimentar sem-pre mais esse grande desejo de justiça em todas as relações. Sempre, é claro, optando pela utilização da dinâmica entre a distância justa e a proximi-dade justa.

5 “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão

misericórdia” (Mt 5,7)

Torna-se oportuno aqui fazer um paralelo com um dos princípios da Psicologia Analítica: “o inconsciente assume, com relação ao ego, a mesma atitude que o ego assume em relação ao inconsciente” (EDINGER, 1972, p. 192). Se o ego estiver disposto a se relacionar com a sombra de forma respeitosa e delicada, portanto, essa será de grande utilidade para ele. Se o ego mostrar-se misericordioso, ele receberá da mesma forma a misericórdia no seu íntimo. Logo, se o ego for violento, receberá violência, na mesma proporção, e perecerá em decorrência dessa atitude.

O Antigo Testamento, quando fala de mi-sericórdia, não usa a palavra coração, mas útero. O ser humano é aquele que possui um coração. Mas somente ter coração não basta. “É preciso tam-bém ter uma matriz” (LELOUP, 2007, p. 77), é preciso que este coração seja matricial, isto é, que possua também um ventre, cujas entranhas tor-nam-se capazes de acolher e manter a vida, ofe-recendo ao feto, ali abrigado, o alimento de que necessita para poder viver e assim desenvolver-se.

Dessa forma, é concebido como feliz e mise-ricordioso o indivíduo que possui espaço interior para acolher e alimentar a vida, as pessoas. Sendo assim, torna-se capaz de perceber que Deus tem materna misericórdia, uma vez que fora gerado

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em seu divino útero. Ser misericordioso assim como Deus é misericordioso, portanto, equivale a ter um lugar, um útero no coração, na casa, no trabalho e no laser, para que as pessoas possam encontrar esse espaço fecundo e gerador de vida.

A Bíblia apresenta a � gura de Maria é exemplo vivo de misericórdia. Ela teve ouvidos para ouvir a proposta do anjo Gabriel. Teve espa-ço interior aconchegante para acolher o Filho de Deus em seu útero. Esteve atenta às necessidades de sua prima Isabel. Ouviu. Silenciou. Duvidou. Respondeu sim e serviu. Saiu de si mesma. Em Caná, enquanto todos se preocupavam em comer e beber, o olhar atento da mulher clemente per-cebeu que ali havia uma di� culdade. Sua miseri-córdia a levou a falar com seu � lho. Misericórdia é para ela também sinônimo de sensibilidade, de atenção, de zelo. É virtude que a torna atenta e solícita às necessidades dos outros.

Uma das características típicas do indiví-duo misericordioso é sua capacidade de ouvir. O mundo de hoje carece de pessoas com tal dispo-nibilidade. É o que a Bíblia fala a respeito da mãe de Jesus: “Maria, contudo, conservava cuidadosa-mente todos esses acontecimentos e os meditava em seu coração” (Lc 2, 19). Ela ensina com isso que ouvir é importante, mas somente isso ainda não basta. É preciso escutar, ou seja, acolher a pa-lavra que vem de dentro para que ela germine no coração. Para isso, é necessário que se cultive um útero saudável a � m de que o Deus gerado no seu interior não morra sem antes ter tido a opor-tunidade de nascer. Gerar Deus é também um exemplo de misericórdia. É fazer algo simples de um jeito novo, com um diferencial, estando com o pensamento e o coração sempre presentes na-quilo que se faz. Mas é importante ressaltar ainda que “agir a partir da identi� cação com aquele que necessita de ajuda certamente não pode hoje con-sistir numa generosa doação de esmolas” (ZEI-LINGER, 2008, p. 58). Misericórdia é algo mais. É crer que a vida é um dom e como tal necessita desenvolver-se totalmente para assim ser imagem e semelhança daquele que é o seu criador.

6 “Bem-aventurados os puros de coração,

porque verão a Deus” (Mt 5,8)

“A pureza ou limpeza pode signi� car um estado do ego, livre da contaminação de conte-údos ou motivações inconscientes” (EDINGER, 1972, p. 192). Aquele, portanto, que é consciente é também puro, porque é consciente não só da sua sombra, mas igualmente da potencialidade nela contida. Esse, sim, abre uma porta para experi-mentar a sua própria essência, ou seja, o si mesmo.

É comum se a� rmar que o órgão com o qual se pode experimentar adequadamente a totalida-de do ser, ou seja, ver a Deus, é o coração. “O sim-ples entendimento não basta” (Ratzinger, 2007, p. 93). Para que o homem se torne capaz de conhe-cer a Deus, e conhecer equivale a experimentá-lo em profundidade, todas as forças de sua existên-cia devem agir conjuntamente: vontade, entendi-mento, afeto, alma. Por coração, entende-se “pre-cisamente esse jogo de relações das capacidades de percepção do homem, no qual também está em jogo a correta interligação entre corpo e alma, que pertence à totalidade dessa criatura homem” (Id., p. 94). Diz ainda o Papa Bento XVI que a fundamental determinação afetiva do homem depende precisamente também desta unidade entre alma e corpo, e dela depende também que o homem aceite ser ao mesmo tempo corporal e espiritual; que coloque corpo na cultura do espíri-to, mas que não isole nem o entendimento nem a vontade, mas que se aceite a si mesmo a partir de Deus e assim reconheça e viva a corporeidade de sua existência como riqueza para o espírito.

Segundo o Apóstolo Paulo, a pureza de co-ração se dá no seguir os passos de Cristo, na ex-periência de ser um com ele. “Já não sou eu quem vive, mas é Cristo quem vive em mim” (Gl 2,20). É esse algo novo, diferenciado, que deve apare-cer “como condição para a subida para Deus que acontece precisamente na descida do serviço hu-milde, a descida ao amor incondicional, que é a essência de Deus e, portanto a verdadeira força puri� cadora que capacita o homem para conhecer

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a Deus e para vê-lo” (RATZINGER, 2007, p. 95). Só se pode ver a Deus com um coração puro. E por coração puro compreende-se o coração que ama e que se coloca em atitude de obediência e de serviço a Cristo, na realidade em que se encontra. O amor é o fogo capaz de puri� car e unir o en-tendimento, a vontade, o sentimento. Só o amor une o homem consigo mesmo, na medida em que une a partir de Deus e, assim sendo, é possível en-trar na habitação de Deus para poder vê-lo. Isso signi� ca precisamente participar da bem-aventu-rança que faz “ver a realidade, as coisas tais como são. O coração puro é o coração lavado de todas as projeções” (LELOUP, 2007, p. 78) tornando-se capaz de ver a realidade, a “grande realidade em todas as pequenas realidades” (Id., p. 78).

7 “Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5,9)

“O papel apropriado do ego é mediar en-tre as partes oponentes do con� ito intrapsíquico” (EDINGER, 1972, p. 192). Por isso, para que haja uma solução capaz de levar à totalidade, o ego não pode se identi� car com nenhum dos la-dos do con� ito. Caso ele se identi� que com um desses lados, a “dissociação torna-se permanente” (Id., p. 192) Cabe ao ego cumprir então a sua função conciliatória de ser paci� cador, pois, assim sendo, torna-se capaz de agir na construção da to-talidade “do si mesmo e, portanto, como Filho de Deus” (Id., p. 192).

Saber fazer-se � lho de Deus, eis o lugar para o espaço vital no qual cada um é chamado a viver. É uma decisão fundamental que se dá a cada dia. Já o caminho que afasta de Deus “é o ponto de partida de todos os envenenamentos do homem; a sua superação é condição fundamental para a paz no mundo” (RATZINGER, 2007, p. 88).

Quando o ego se afasta do si mesmo, por-tanto, causa então a dissociação do indivíduo. A superação desse afastamento é condição funda-

mental para a construção da paz. Só o homem reconciliado com Deus, ou então só um ego re-conciliado com o si mesmo pode igualmente se reconciliar consigo e estar de acordo, sendo, por-tanto, bem-aventurado, ou seja, construtor da paz em seu interior e em toda a vastidão do mundo.

“Que haja paz na terra” (Lc 2,14), é a gran-de vontade de Deus e tarefa que interessa aos homens, haja vista ser a paz um componente que evoca ao campo do relacionamento, da con-vivência humana. No Antigo Testamento, paz se chama shalon, declaração e promessa. Não é unicamente a ausência de guerra, mas acima de tudo “aquela ampla condição da convivência onde todos se sentem bem, no mais profundo sentido da palavra” (ZEILINGER, 2008, p. 62). É uma circunstância propícia e possibilita a felicidade pessoal e social no âmbito do amor e da justiça. Tem como pano de fundo, no seu sentido religio-so, o signi� cado da aliança de Deus com seu povo, compreendida como “aliança de paz” (Is 54,10) aqui e agora, e “que também é parte integrante e conteúdo da expectativa futura” (ZEILINGER, 2008, p. 62); evoca a irrupção de um tempo qua-litativamente novo. Não se trata, portanto, apenas da paci� cação entre partidos e grupos litigantes, embora esforços nesse sentido também sejam im-portantes e até mesmo necessários. “Falar de paz e fomentar a paz não é ainda fazer a paz” (Id., p. 62), visto que em relação a isto diversas potências já reivindicaram tal restabelecimento pelas suas ações: paz romana pelo poder militar; paz pela in-timidação atômica; paz oriunda da separação das raças; paz pela expatriação ou genocídio; paz pela opressão aos que pensam diferente do estabele-cido. Sabe-se que tais ações não podem produzir uma paz no sentido que Jesus quer.

Outro aspecto importante a ser considerado na construção da paz é a temática da reconcilia-ção.

“Portanto, se estiveres para trazer a tua oferta ao

altar e ali lembrares que o teu irmão tem algo contra

ti, deixa a tua oferta diante do altar e vai primei-

ro reconciliar-te com o teu irmão; e depois virás a

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apresentar a tua oferta” (Mt 5,23-24). “A reconci-

liação só pode ser promovida pelo aliado e atacado,

não pelo agressor e pelo rancoroso” (ZEILINGER,

2008, p. 63).

Vê-se aqui que a construção da paz exige que se dê o inverso: “é questão de renunciar ao próprio direito a � m de possibilitar a paz (Id., p. 63). Percebe-se essa dinâmica no Evangelho (Mt 5,38-42), quando este relata que em vez da vin-gança lógica, cobra-se a outra face. Finalmente a interpretação ao extremo feita por Jesus em rela-ção ao amor ao próximo: “Amai os vossos inimi-gos e orai pelos que vos perseguem” (Mt 5,44). Seguindo a ótica de Jesus, portanto, a construção da paz remete ao fato de que, algumas vezes re-quer a renúncia do próprio direito a � m de criar uma condição prévia para a verdadeira paz. É o que se percebe claramente Nele, quando da sua morte na cruz. Ali ele selou o fundamento, o ali-cerce sobre o qual é possível surgir a autêntica paz.

Outra realidade que evidencia que a paz é dom e também construção que se dá a partir de dentro é a palavra artesão. Ela não remete a falar, fazer belos discursos a respeito da paz, mas indica que a promoção da paz implica em construção. Para isso, é preciso abrir espaços na mente e no coração, ser capaz de aprofundar sempre mais o poço interior, que por vezes é ainda muito raso e, assim sendo, não consegue conter ali toda a água necessária para a construção da paz. É preciso alargar sempre mais as margens do coração para perceber que há lugares ali inconscientes, sim, po-rém privilegiados, que ainda não foram visitados e, dessa forma, não foram transformados em se-mente de paz. Se visitados, tornam-se conscien-tes, fontes de fecundidade, verdadeiros espaços e condição para aí se começar a paz.

Em seu discurso, Jesus deixa claro que a paz é um trabalho concreto. “Jesus era um artesão, um carpinteiro” (LELUOP, 2007, p. 79) e como um bom carpinteiro sabia que para ser mestre na arte de fazer móveis era preciso saber aplainar muito bem. Com a construção da paz se dá a mesma

coisa. É necessário um trabalho de aplainamento das arestas. O individuo traz consigo uma força que pode ser comparada com um pássaro interno, que possui não somente asas, mas também gar-ras. No seu interior existem ideais de vôos não realizados, retalhos de tecido não costurados. É preciso costurar, fazer a paz entre o retalho da ra-zão e do coração, entre o que é instinto e o que é afeto, entre o que constrói a vida e o que evidencia os sinais de morte. Fazendo isso, o indivíduo cria sempre mais condições para, � nalmente, � car em paz e assim poder pôr-se em marcha, isto é, deixar alçar vôo e cantar livremente o pássaro interior que a cada dia se liberta, para a construção da sua própria paz e para a paz de todos.

8 “Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus”

(Lc, 5,10)

Com a temática da perseguição, destaca-se aqui a importância que tem para o ego a sua ca-pacidade de “suportar a dor e o sofrimento, sem sucumbir ao amargor e ao ressentimento, para relacionar-se à lei interna objetiva” (EDINGER, 1972, p. 192). Tal atitude é de grande valia para o ego, pois agindo assim é recompensado através do contato que estabelece com a psique arquetí-pica, bem como com suas imagens, que contém poder de cura e são capazes de transmitir a vida. “Jesus promete alegria, júbilo, grande recompen-sa” (RATZINGER, 2007, p. 91), àqueles que por causa dele forem insultados e perseguidos e até mesmo difamados de todos os modos possíveis. Assim sendo, o eu de Jesus e a � delidade à sua pessoa tornam-se critérios, não só de justiça, mas também de salvação. Fica evidente aqui a cristo-logia mencionada quase que de forma oculta nas outras bem-aventuranças. “Jesus atribui ao seu Eu uma qualidade de critério que nenhum mestre de Israel nem mestre algum da Igreja podiam pre-tender para si” (Id., p. 91). Ele mesmo se apre-senta como ponto de partida para a vida correta. Ele é o começo e o � m, o Alfa e o Ômega, o “ca-

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minho, a verdade e a vida” ( Jo 14,6). Ele próprio pagou com a vida o alto preço da integridade e da � delidade a Deus; enfrentou as piores formas de injustiças e perseguição por andar na contra-mão do mundo. Sofreu a difamação e a calúnia porque estava ao lado da verdade. Dessa forma, entende-se que todo aquele que optar por seguir o seu modelo de ser singular, único, estará possi-velmente exposto a toda espécie de difamação e perseguição. É, de certa forma, o grande aviso de Jesus: a sua mensagem sempre foi e sempre será um “empreendimento arriscado” (ZEILINGER, 2008, p. 68).

9 “Bem-aventurados os que atravessam pontes para chegar

à terceira margem do rio, porque encontrarão contentamento”

(LAUFER, A)

Por observação e também por experiência, sabe-se que a normalidade de todo rio consiste no fato de ele possuir duas margens. Guimarães Rosa (1908-1967), em seu conto intitulado A terceira margem do rio (ROSA, 1972, p. 32-37), acena para outra realidade quando evidencia um rio com algo a mais. É, segundo ele, um rio di-ferenciado, que possui duas margens concretas, terrenas, conhecidas, e uma terceira, considera-da abstrata, desconhecida. Conta Rosa que o pai “encomendou a canoa especial, de pau vinhado, pequena” (Id., p. 32), porém resistente, com todas as condições “próprias para durar na água por uns vinte ou trinta anos” (Id., p. 32), ou seja, o tem-po necessário que se passa no conto. Entrando na canoa, o pai, que segundo o autor, já era quieto, decide viver mais quieto ainda, dentro da canoa, estando sempre no rio “largo de não se poder ver a forma da outra beira” (Id., p. 32). Apesar de o conto dizer que o pai nunca tinha voltado, tam-bém narra ele, “não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não soltar nunca mais” (Id., p. 33).

Da narrativa de Rosa, colhe-se ainda a idéia de que os rios são grandes, desconhecidos e pro-fundos, ora calmos, ora violentos, como é igual-mente a alma do homem. Percebe-se que, para ele, há certa correspondência entre rio e alma. Evidência disto é o fato de o homem decidir abandonar tudo o que havia construído até então: família, trabalho, amigos, projetos. Passa então a viver sozinho, dentro de uma canoa, em um gran-de rio, para ali viver “solto, solitariamente” (Id., p. 33), cumprindo, dessa forma, outro programa: o de interiorizar-se para conhecer sua alma em profundidade.

No texto de Rosa percebe-se também a imagem do rio como presença da eternidade, o que dá uma sensação de aparente contraste com a solidão necessária ao homem que o atravessa numa canoa de um assento só. Considera-se que para tal travessia é preciso estar só, sendo neces-sário também direcionar a opção a � m de dar um grande salto: da terra para a água, da solidez e da concretude dos dias, rompendo com o já co-nhecido, já vivido até então, para dar início a uma nova passagem para adentrar num rio que agora é margeado não somente por duas, mas por três margens.

Diz o texto ainda que, para adentrar nesse rio, necessita-se algo mais do que o simples im-previsto. É preciso antes ter se preparado com os instrumentos adequados, no caso, com o remo e a canoa, com a coragem e também com a atitude de silêncio. Para navegar, adentrando na terceira margem do rio, é preciso deixar a terra e lançar-se na escuta, que agora se dirige para a voz e os ruídos de dentro. Este é um trabalho que se faz sentado na canoa, dentro do rio ladeado por duas margens e perpassadas por uma terceira, descon-tínua, não paralela, quase que intrusa e não natu-ral. É nesse lugar ocupado por essa margem que se pode vislumbrar e habitar no silêncio. Nela o homem deixa a solidez e mergulha na � uidez, ampliando a sua condição cotidiana e instau-rando a sua própria rotina, fundada, ancorada no contínuo movimento da água que o leva curiosa-

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mente, sem afastá-lo. É na realidade deste rio que ele se torna o autor, o construtor, transgredindo os próprios limites, ultrapassando as próprias mar-gens e fundando aí uma nova forma de vida, um novo habitat interior. Para adentrar na terceira margem é preciso, portanto, navegar colocando-se a caminho, fazendo a travessia com empenho, prudência e perseverança. A felicidade, a bem-aventurança, é realidade que se encontra não no comum da superfície, mas no contínuo navegar em busca daquilo que nos rasos da vida não se encontra, mas que se experiencia nas ondas da eterna profundidade.

Percebe-se, no dia-a-dia, que a superfície é o caminho percorrido pela maioria das pessoas, que ancoram suas embarcações e se cristalizam na margem do cotidiano da vida, na busca con-tínua por soluções sempre mais rápidas e fáceis. Logo, para se navegar e atingir a terceira margem não basta apenas avistar o rio. É preciso habitar nele inteira e ininterruptamente, numa atitude de espera, com paciência. Tal atitude auxilia no ato de viver também no imprevisto, de conhecer habitando no desconhecido, com seus contínuos movimentos de chegada e de partida. Tais movi-mentos revelam a partida e o retorno das águas e proporcionam o encontro da profundidade com a superfície, de forma a não mais haver oposição entre elas.

Adentrar na terceira margem remete ainda à entrada no mundo do inconsciente, do abstrato, do que não se vê e não se toca e por isso ainda não se conhece, mas que pode ser avistado, to-cado, vislumbrado e assim sendo, transformado. Nesse processo de busca do desconhecido dentro de si mesmo, o estar só é inevitável e constitui-se em uma das formas de procurar entender os mistérios da alma no incompreensível da vida. Pode-se dizer ainda que o autor faz menção à re-alidade do processo da individuação da experiência, simbolizada aqui pela canoa ocupada por uma só pessoa. Nesse contexto, a experiência pertence tão profundamente à esfera individual que nem mes-mo o � lho pode falar da experiência do pai, pois

nem a ele fora transmitida.

“Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhu-

ma parte. Só executava a invenção de se permane-

cer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre

dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais”

(ROSA, 1972, p. 33).

O fato de o pai nunca ter voltado deixa cla-ro que certas experiências não têm a menor pos-sibilidade de serem contadas, narradas, explica-das. Não são, de forma alguma, compartilháveis. Pertencem à dimensão mística, que não pode ser explicada, nem mesmo apreendida pela razão. É um estado de bem-aventurança que quebra todas as regras postuladas pela inteligência humana. É o rompimento da margem anteriormente nave-gada, do caminho conhecido, até então traçado.

Quando se menciona que são bem-aventu-rados os que atravessam pontes para navegar pela terceira margem do rio, quer apontar-se para a construção de um modo de ser capaz de adentrar metaforicamente e em profundidade na dinâmi-ca da singularidade da experiência. É aí que se encontra o espaço da construção, da criação que permite sair da segurança do velho lar: costumes, regras, manias, ativismo, do sempre foi assim, do já estabelecido como correto, do não é possível, para então habitar no espaço � utuante e ininter-rupto das águas deste novo rio, incorporando-se, tornando-se um com ele. Esse é o espaço da criação e nele é possível viver permeado por mais de duas margens: as duas já dadas, a outra que é escolhida e está para ser construída. As duas pri-meiras têm a função de ser limite de contenção das águas e, ao mesmo tempo, ponto de partida. São indispensáveis, mantêm o percurso do rio no seu leito, mas estão aí para serem transpostas, a � m de se poder � uir rumo a uma terceira com maior leveza, profundidade e bem-estar.

São tantos os rios passíveis de travessia. Adentrando neles é possível aprofundar o seu leito navegando pela margem do contentamento, que é caracterizado como sentimento de felicida-de, estado de espírito duradouro, bem-aventuran-

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ça. Pode ser entendido ainda como a capacidade de estar satisfeito ou feliz em qualquer situação. É um estado de espírito que não se explica pelas cir-cunstâncias favoráveis e/ou confortáveis, mas sim pela capacidade que se tem de exercer domínio sobre elas. Dessa forma, os fatores externos que o abalam transformam-se em número cada vez menor. O contentamento é realidade que não está fora da pessoa, mas vem de dentro, brota da ex-periência. Poder-se-ia compará-lo como o grande rio já mencionado, que existe, sim, mas existe no leito que se preparou para ele. Mas a grande di-� culdade em viver o contentamento é que quase nunca se prepara o leito do rio no lugar onde se está. No mundo dos descontentes o rio que corre ao lado ou no terreno alheio é sempre mais belo, mais atraente e mais fecundo.

Existe também a expressão típica dos con-siderados descontentes, pois só serão contentes “assim que” ( JONHSON; RUHL, 2000, p. 11). Visto dessa forma, o contentamento poderia ser assim que (ser o mesmo que) arranjar um tra-balho novo, uma casa nova, uma nova forma de se vestir, um novo líder no trabalho, habitar com novas pessoas, um novo curso para se fazer. Esse estilo de vida assim que coloca o contentamen-to somente no futuro e perpetua sempre mais o descon-tentamento. Assim sendo, impede a ale-gria de des¬frutar o momento presente, as pes-soas que se têm em volta, as circunstâncias reais e imediatas que se apresentam como possibilidades de crescimento e de realização.

O contentamento tem a função de instaurar um novo modo de ser, no qual é possível “cada dia estar satisfeito, de não desejar mais do que você tem” ( JOHNSON; RUHL, 2000, p. 15). Consiste em estar apaixonado pelo que se dá no momento presente, assumindo a realidade assim como ela é, respeitando e acolhendo as coisas como elas são, superando dessa forma o estilo de vida permeado pelo assim que.

A palavra contentamento possui ainda outro signi� cado, sendo derivada do latim contentu, que quer dizer contido; sugere também a idéia

de conteúdo. Entendido assim, contente é aquele que tem conteúdo em si mesmo ou que é capaz de usufruir o conteúdo da realidade, daquela realida-de na qual está inserido. Para estes, em qualquer lugar, em qualquer companhia, trabalho ou país, e em qualquer circunstância existe a possibilidade de contentamento.

O contentamento é realidade possível, sim, mas somente para aqueles que sabem explorar sua riqueza interior, os que navegam em águas sempre mais profundas ou, então, para os que aproveitam as potencialidades de cada momento ou, então, ambas. Contentamento é aquele estado em que tudo parece certo: não há necessidade de mudar o que se está fazendo, nem a pessoa com quem se está, nem o lugar onde a gente se encontra. O que muda é a atitude interior em relação ao que se está vivendo ou encontrando.

Sabe-se que “o contentamento nunca é o re-sultado de fazer ou ter” (Id., p. 25). Almejar nave-gar o rio, sem nunca ter entrado nele, não produz contentamento ou, pelo menos não por muito tempo, porque o “contentamento é uma experi-ência interior” (Id., p. 25). De forma alguma se constitui em “mercadoria que pode ser comprada” (Id., p. 39) e também não está disponível para ser “usufruído, divorciado da experiência cotidiana” (Id., p. 67). Não se pode adquiri-lo como se fosse um mero artigo de consumo, mas pode-se sempre “acordar para as suas dádivas” (Id., p. 69), uma vez que ele sempre chega às pessoas como uma “graça divina” (id., p. 69).

Embora o contentamento não seja um ato da vontade, pode-se sempre construir e atraves-sar pontes que direcionam o percurso até ele, que abrem caminhos para que ele possa se manifestar e isso pode se dar em cada situação do dia-a-dia. O contentamento é, pois, “a arte de aceitar a reali-dade” (Id., p. 73). Ele se dá aqui e agora, desde que superada a já citada fórmula do assim que, não só nas situações que trazem alegrias e vitórias, mas também naquelas que são motivo de frustrações e de derrotas. Para que possa adentrar na dádiva do contentamento, portanto, o indivíduo precisa ter

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claro que este não consiste em “conseguir o que se quer” (Id., p. 74), mas acima de tudo em “querer o que se tem” (Id., p. 74). Ele não se encontra nas “coisas, nos objetos ou nas relações, mas na ade-são do coração e da inteligência ao Ser que nos informa” (LELOUP, 2000, p. 121), e nem sempre as realidades informadas são as mais agradáveis. Assim sendo, “não proporcionam prazer nem fe-licidade psíquica e, no entanto, são e têm o direito de ser o que são” (Id., p. 121).

É imprescindível mover-se a � m de lançar-se no exercício evolutivo do constante aprendiza-do de “transformar esta vida não em uma prova-ção, mas em uma ocasião” (Id., p. 123): a grande ponte para adentrar na terceira margem. Trata-se, portanto, de exercitar-se não somente em base da renúncia, embora às vezes ela seja também necessária, mas no sentido da possibilidade: de desprendimento, de crescimento, de ocasião, de evolução. É possível ser contente também a partir das infelicidades e dos descontentamentos. Nes-sa linha de pensamento faz sentido parafrasear o que Jesus diz: “Eu vos dou a minha paz, mas não como o mundo a dá” ( Jo 14,27). Ou seja, cada um encontra na ocasião o seu contentamento, a sua alegria, a sua felicidade, que já não dependem das circunstâncias externas. Remetem sempre a algo que permanece e a um modo de ser onde nada nem ninguém retiram o fascínio de poder nave-gar adentrando por águas sempre mais profundas, percorrendo margens até então desconhecidas. É o grande convite a existir de forma singular, sem contrários, pois tendo sido integrados, tornam-se ocasião, momento oportuno, tomada de consci-ência.

É sempre possível viver em outro plano, adentrando no rio da vida por outra margem, o lugar no qual tudo o que é encontrado se torna recompensa, impulso para nova busca, alento para nova coragem. É o lugar do amor, que sobrevive das buscas contínuas, dos intervalos que dese-nham as pausas nas canções. Na construção das partituras, tais intervalos indicam os momentos em que a orquestra precisa parar para descan-

sar. Ali, no instante fecundo de cada um deles, acontece o movimento em que a continuidade se prepara. É o tempo do cultivo, da qualidade e da harmonia de toda melodia. É o lugar no qual a esperança se torna o invólucro da vida, onde é possível experimentar “a imagem divina como a qualidade mais íntima da própria alma” ( Jung, Vol. XII, 1991, p. 24). É o lugar sagrado, onde o desenvolvimento interior acompanha o exterior e o Cristo das bem-aventuranças atinge as profun-dezas da alma, transformando-a “naquela totali-dade que corresponde ao modelo” (Id., p. 20-21). Nesse lugar já não há espaço para a fragmenta-ção, e o indivíduo, tocado em sua natureza mais profunda, permanece singularmente, embora es-tando com muitos. É o lugar da devolução das esperanças perdidas, do empréstimo de palavras benditas, do impulso que leva a encontrar o per-fume da � or rara, inexistente nos jardins comuns, do encontro da imagem que jaz escondida na pedra, do canto do pássaro livre das gaiolas da vida, do verso redentor oculto na grande poesia. Nesse lugar, se ancoram os destinos dos signi� -cados das palavras não ditas, porque tamanha é a realidade que representam. Experimentadas, elas desconstroem as armaduras e reinventam a auro-ra e o ocaso da vida, transformando-a em estado de êxtase, em perpetuação da eterna felicidade. É este o lugar no qual já não se pode ser menor do que o próprio sonho. É o espaço do novo êxodo, da terra prometida, que vai além da simples con-quista geográ� ca. É o estado de abertura que leva ao pleno “desprendimento” (ECKHART, 2006, p. 148), onde se vive “apartado de todas as coisas, livre de todas as ilusões” (MARTI, 2008, p. 146). Constitui-se, portanto, num constante exercício de soltura. Vive-se solto de si mesmo, das coisas e das pessoas, quando assim a vida concreta o exigir. É assim o encontro da liberdade desejada, do oásis do silêncio e da solidão. É a metáfora que engloba a totalidade do grande conjunto de felicidades, o lugar da proteção, do descanso dos pesos do mundo. É assim a terceira margem, a nona bem-aventurança. Ela evidencia o encontro desse novo modo de ser no rio onde se navega

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por um leito não físico, não material, estando lá sem mesmo ter que ir, mas que sugere, ao mesmo tempo, o espaço dos desejos e das conquistas, da “perfeição, totalidade, desígnio cumprido, começo e � m, e a realização completa do sentido inato da existência” ( JUNG, 2006, p. 192). É a eterna morada onde se assentam as esperanças humanas, cujo curso de águas se intensi� ca e “se movimenta inexoravelmente para a meta � nal” (Id., p. 192).

Referências

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Sonhos: possíveis ferramentas para vir a ser inteiro em psicoterapiaFranciele Engelmann

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Sonhos: possíveis ferramentas para vir a ser inteiro em psicoterapia

I. Introdução

Companheiros da jornada humana, des-de a antiguidade, os sonhos con� guraram-se, ao longo da história, como espaço signi� cativo para a compreensão e cumprimento do vir a ser humano.

Para os antigos egípcios, os sonhos apre-sentavam um caráter premonitório, que comu-mente manifestava a intenção dos deuses e o destino da pessoa. Provavelmente, este povo foi,

Franciele Engelmann*

* Psicóloga graduada

pela UFPR – Universi-

dade Federal do Paraná.

Especialista em psico-

logia analítica e religião

ocidental e oriental pelo

ICHTHYS – Instituto de

Psicologia e Religião.

conforme Ramos (1994) o primeiro povo a ins-titucionalizar uma forma de interpretação oní-rica, nos assim chamados, templos de incubação (apud GALLBACH, 2003).

Se os egípcios foram os primeiros a utili-zar a interpretação dos sonhos, coube aos gregos aprimorar tais técnicas e inserí-las no diagnósti-co e tratamento de doenças. Com base na visão mítica, acreditavam que a doença era a conse-qüência da violação de um tabu ou de uma ofen-

Resumo

Os sonhos acompanham a humanidade desde a antiguidade. Constituídos de natureza premonitória e tidos como manifestação de forças ocultas para os egípcios; utilizados nos rituais de cura pelos gregos, os sonhos revelaram-se ao longo da história como ferramentas úteis na relação com a alma. Para Jung, o ser humano é habitado por um impulso que o impele à totalidade. O objetivo deste artigo é abordar a importância dos sonhos no processo psicoterapêutico de vir a ser inteiro. O método utilizado é a revisão de literatura com base na psicologia analítica. O tornar-se inteiro, a individuação, se origina e culmina no si-mesmo, o arquéti-po central, promovedor do desenvolvimento humano. Os sonhos, enquanto compensação de unilateralidade da consciência e como manifestação do si-mesmo, con� guram-se como possibilidades de uma conexão com a alma, expressões que podem contribuir para encontrar o sentido da vida e realizar a � nalidade à qual se é chamado a ser.

Palavras-chave: sonhos, psicoterapia, processo de individuação.

Abstract

Dreams come mankind since antiquity. Consisting of premonitory nature and taken as a manifestation of hidden forces to the Egyptians, used in healing rituals by the Greeks, the dreams have proved throughout history useful tools in relation to the soul. For Jung, the human being is inhabited by an impulse that propels the whole. � e aim of this paper is to address the importance of dreams in the psychotherapeutic process of becoming whole. � e method used is a literature review on the basis of analytical psychology. Becoming a full-individuation originates and culminates in the Self, the central archetype, promoter of human de-velopment. Dreams, while compensation of one-sidedness of consciousness as a manifestation of the Self, con� gured a possible connection to the soul, words that can help � nd the meaning of life and achieve the purpose for which it is required to be.

Keywords: dreams, psychotherapy, process of individuation.

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sa aos deuses. A cura, segundo RAMOS (1994), consistia em restabelecer a relação entre o plano somático e o espiritual, buscando-se identi� car no sintoma, o aspecto com o qual o indivíduo havia se desconectado e deveria voltar a se re-conectar. As práticas curativas caracterizavam-se como verdadeiros rituais, desenvolvidos nos templos dedicados a Esculápio, o deus da medi-cina. A atenção e o entendimento dos Sonhos, ao lado da música, meditação e dieta caracteri-zavam-se nesta época, como atividades, median-te as quais era possível um restabelecimento do equilíbrio entre psique e corpo (RAMOS, 1994 e MEIER, 1999).

Estudos e curiosidades acerca da vida oní-rica estenderam-se ao longo da história, perme-ando culturas e presenti� cando-se em diferentes âmbitos do conhecimento e no trilhar dos dife-rentes caminhos de realização da alma.

O que são os sonhos? De onde provêm? Expressarão eles algum signi� cado, sentido para a vida do sonhador?

II. O sonho como manifestação simbólica do inconsciente

O sonho surge espontaneamente durante o sono como fruto de um “processo involuntário que ocorre num estado de consciência relaxado e não focalizado” (GALLBACH, 2003, p. 17). Segundo Jung (1971), suas raízes estão no in-consciente. Conforme Gallbach (2003), o sonho não apresenta um caráter de inconsciência total, uma vez que ocorre num estado limiar em que há um resíduo de consciência e percepção.

Para Jung (1971), o sonho é expressão simbólica do inconsciente. Expressão esta que pode se dar mediante ideias, sensações, emoções, imagens e situações que, ao serem desencadea-das no processo onírico, podem envolver de for-ma mais intensa, ou não, o sonhador.

O sonho traz um sentido ( JUNG, 1971) para a vida do sonhador. Articula uma “mensa-

gem única para um sujeito único” (GALLBA-CH, 2003, p.13). Esta mensagem se encontra na interioridade humana, tecida no entrelaçamento da história pessoal e coletiva.

Nos sonhos, o inconsciente se manifesta mediante símbolos. Em sua obra O homem e seus símbolos, Jung de� ne símbolo como:

um termo, um nome ou mesmo uma imagem que

nos pode ser familiar na vida diária, embora pos-

sua conotações especiais além do seu signi� cado

evidente e convencional. Implica alguma coisa

vaga, desconhecida ou oculta... uma palavra ou

imagem é simbólica quando implica alguma coi-

sa além do seu signi� cado manifesto e imediato.

Esta palavra ou esta imagem tem um aspecto “in-

consciente” mais amplo, que nunca é precisamen-

te de� nido ou de todo explicado. Por existirem

inúmeras coisas fora do alcance da compreensão

humana, é que frequentemente utilizamos termos

simbólicos como representação de conceitos que

não podemos de� nir ou compreender integral-

mente... Mas este uso consciente que fazemos de

símbolos é apenas um aspecto de um fato psico-

lógico de grande importância: o homem também

produz símbolos, inconsciente e espontaneamente,

na forma de sonhos (1964, p. 20-21).

A manifestação do símbolo no sonho pode se dar de diferentes formas: apresentar um caráter claro, estranho, obscuro ao sonhador. Em suas mais variadas expressões, o símbolo articula um signi� cado, um sentido, os quais por sua vez po-dem estar ocultos, sob determinadas imagens, pensamentos, emoções, à espera de vir a serem descobertos, compreendidos e assimilados pelo sonhador.

Ao abordar o conceito de sentido nos sonhos, Jung situa os mesmos no contexto de � nalidade, destacando que esta designa a “ten-são psicológica imanente dirigida a um objetivo futuro” (1971, p. 181). Além de considerar o as-pecto causal, Jung destaca a importância de se considerar o porquê do sonho. Ao falar sobre as assimilações que sucessivamente acontecem em

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relação ao sonho, ressalta que elas conduzem a uma meta; para o além do aqui e agora da vida do sonhador, conduzem “à plena realização do homem inteiro, à individuação” (2008, p. 31). No tocante à prática psicoterapêutica, assim escreve:

todo médico deveria estar consciente do fato de

que qualquer intervenção psicoterapêutica, e, em

especial, a analítica, irrompe dentro de um pro-

cesso e numa continuidade já orientados para um

determinado � m, e vai desvendando, ora aqui, ora

acolá, fases isoladas do mesmo, que à primeira vis-

ta podem até parecer contraditórias. Cada análise

individual mostra apenas uma parte ou um aspec-

to do processo fundamental (Id., 2008, p. 31).

III. Sonhos, individuação e psicoterapia

Em seu ensaio1 Da Formação da Personali-dade, Jung (1998) salienta que, além dos aspec-tos de necessidade e decisão, há a designação que, perpassando o eu, o convoca a individuar-se. Esta é de� nida como: “um fator irracional traçado pelo destino que impele a emancipar-se da massa gregária e de seus caminhos desgas-tados pelo uso” ( JUNG, 1998, p.181). A ideia vinculada no conceito de designação remete ao2 si-mesmo (Self ), que enquanto instância maior, promove a individuação. Aceitar a designação, a ação do si-mesmo na vida, implica em “� delidade à sua própria lei” (Id. p. 179).

A noção de destino expressa no conceito de designação não pode ser tomada como pre-determinação: o Self enquanto arquétipo laten-te na vida do indivíduo é uma possibilidade de vir a ser. Possibilidade esta que assume, segundo Fogel, o caráter de destino, numa perspectiva de circularidade: no sentido de ser um envio de si para si, uma “possibilidade de possibilidade” (1999, p. 152). A individuação, como designa-ção, requer que a pessoa se empenhe na tarefa de dar-se conta do movimento do próprio Self em sua vida, pois, na perspectiva de destino, en-quanto movimento de circularidade, o Self é ao

mesmo tempo germe (designação) e meta (uni-dade, totalidade) da Individuação.

Os sonhos constituem-se como um dos espaços para o dar-se conta desta a ação do si-mesmo na vida. Para Sanford (2007), originam-se no centro da personalidade, constituindo-se o elo de ligação entre a realidade menor do ego e a maior do si-mesmo. Von Franz, assim se expressa:

Os sonhos não nos protegem das vicissitudes, do-

enças e eventos dolorosos da existência. Mas eles

nos fornecem uma linha mestra de como lidar com

esses aspectos, como encontrar um sentido em

nossa vida, como cumprir nosso próprio destino,

como seguir nossa própria estrela, por assim dizer,

a � m de realizar o potencial de vida que há em nós

(1988, p. 25).

Para esta realização, é preciso uma busca a � m de se compreender o signi� cado, a mensa-gem que o Self envia a cada noite, sob a forma de símbolos.

No tocante à prática psicoterapêutica, Jung (2008, 1964) ressalta que os sonhos são a forma especí� ca de o inconsciente se comunicar com a consciência. Seus conteúdos podem exprimir fatos passados, desenfreadas fantasias, planos, antecipações, visões telepáticas ( JUNG, 1971); vincular-se a realidades problemáticas ou con� i-tantes do presente, bem como manifestar com-ponentes da personalidade do sonhador (Id., 2008).

Considerando que os sonhos são mani-festações do inconsciente, é importante lembrar que Jung identi� cou quatro conteúdos incons-cientes que simbolicamente são personi� cados nos sonhos:sombra, anima, animus e self. Em função da brevidade deste artigo, não se abor-dará aqui o trabalho com tais elementos; reme-temos o leitor aos escritos de Marie-Louise Von Franz: O Caminho dos Sonhos (1988) e O Processo de Individuação – contido na obra de Jung: O Homem e seus Símbolos (1964), nos quais a au-tora discorre ampla e profundamente sobre tais conteúdos.

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1| Neste escrito, Jung identifica o processo de individuação com o desenvolvimento da personalidade, donde os termos individuação e personalidade, serem utili-zados como sinônimos.

2| No contexto deste trabalho, o si-mesmo (Self) será abordado como centro ordenador da per-sonalidade. Em Memórias, sonhos e reflexões, Jung o define como: “arquétipo central da ordem, da totalidade... é uma reali-dade ‘sobre-ordenada’ ao eu consciente. Abrange a psique consciente e a inconsciente, constituin-do por esse fato uma personalidade mais ampla, que também somos... É também a meta da vida, pois é a expressão mais completa dessas combi-nações do destino que se chama indivíduo” (1963, p. 358).

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Ao se buscar compreender um sonho, é preciso a colaboração do sonhador ( JUNG, 1971). Faz-se necessário, ainda, conhecer as si-tuações concretas nas quais o indivíduo está in-serido, pois o sonho, conforme Jung: “não é um acontecimento isolado, inteiramente dissociado do cotidiano e do caráter do mesmo” (2008, p. 25).

Com base nas experiências dos primitivos, Jung (1971) distingue entre grandes sonhos e pe-quenos sonhos. Estes últimos, também denomi-nados banais, articulam signi� cados ordinários, diários, derivam da dimensão subjetiva e pessoal, vindo a ser esquecidos facilmente. Os grandes sonhos, também chamados de signi� cativos/importantes, brotam do inconsciente coletivo, relacionam-se a temas arquetípicos, mitológicos, cujo signi� cado principal se encontra intrínseco, com base nas experiências que acompanharam a humanidade nas diferentes épocas e culturas. Normalmente, ocorrem em momentos cruciais da existência: na infância, puberdade e no meio da vida, � cando frequentemente gravados na memória por toda a vida, vindo a con� gurar eta-pas do processo da individuação.

Jung (1971) destaca ainda que há uma predominância de sonhos médios, cuja dinâmica apresenta, normalmente, quatro fases, as quais se assemelham à estrutura do drama. A exposição refere-se à situação inicial que esboça a temática ou problemática; contextualiza, no tempo e no espaço, o cenário no qual os personagens atuam. A segunda fase, a do desenvolvimento da ação, apresenta o desenrolar da problemática, mani-festando a complicação e a tensão da situação, sem saber no que dela vai resultar. A culminação ou peripécia evidencia o auge do desenvolvimen-to dramático em sua dinâmica oposta; nesta, algo decisivo acontece ou a situação se altera inteiramente. A quarta fase, a lise, mostra a si-tuação � nal, apresenta a solução e a conclusão esboçada pelo sonho.

No que concerne à interpretação oníri-ca, Jung (1971) estabelece dois níveis: o do sujei-

to e o do objeto. A interpretação a nível do sujeito identi� ca as diferentes imagens do sonho como personi� cações da personalidade do sonhador. Nesta perspectiva, a elaboração apresenta um caráter essencialmente subjetivo: “o sonhador funciona, ao mesmo tempo, como cena, ator, ponto, contra-regra, autor, público e crítico” (Id., p. 205). Já, em nível de objeto, a interpretação con-cebe as diferentes � guras como representações do mundo concreto, no qual o sonhador está inserido. Para orientar-se por uma interpretação ou outra, Jung (1971) ressalta a necessidade de se levar em conta as especi� cidades de cada caso, buscando identi� car qual é o aspecto predomi-nante; se uma imagem é reproduzida por causa de seu signi� cado objetivo – quando, por exem-plo, uma relação de importância vital é o conte-údo e a causa do con� ito – ou devido ao signi-� cado subjetivo – ou quando, por exemplo, uma imagem se relaciona à dinâmica do indivíduo ou às etapas do próprio processo psicoterapêutico, como no caso de se sonhar com o nascimento de uma criança.

Para a psicologia analítica, os sonhos são manifestações do Self. Têm a função de compensar atitudes unilaterais da consciência, as quais podem estar em desacordo com o todo psíquico ou ameaçar necessidades vitais do indi-víduo ( JUNG, 1964, 1971, 2004, 2008).

Para Jung (2008), a teoria das compen-sações é a regra básica do comportamento psí-quico: a insu� ciência num aspecto cria excesso em outro aspecto. Cada sonho é, então, uma ten-tativa da própria natureza psíquica de centrar o indivíduo. Justi� ca-se, desta forma, a importân-cia de se considerar o contexto de vida e os as-pectos da personalidade do sonhador no ato de compreensão de um sonho. A autorregulação do equilíbrio psíquico, realizada mediante a com-pensação do sonho, vincula-se em uma perspec-tiva mais profunda e mais ampla à individuação ( JUNG, 2008). Decorre daí a importância que o autor atribui para a análise e interpretação de um sonho no contexto de uma série de sonhos.

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Em sua obra A prática da psicoterapia, ao falar da individuação, Jung (2004) discorre sobre o importante papel da consciência na compre-ensão dos símbolos compensatórios produzidos em sonho pelo inconsciente: “Um sonho não compreendido não passa de um simples episó-dio, mas a sua compreensão faz dele uma vivên-cia” (Id., p. 117).

Com base no fenômeno da compen-sação, JUNG (1971) reconhece que os sonhos podem favorecer grandemente o processo de cura. Convém destacar que cura, numa aborda-gem analítica junguiana, exprime, segundo Gu-ggenbühl-Craig (1983), o signi� cado do termo alemão a ele correspondente: heilen – cura total. A cura con� gura-se, assim, como uma busca da totalidade, do si-mesmo. Donde temos um dos propósitos da psicoterapia: curar, vir, a ser in-teiro, total, consciente da ação do Self na vida ( JUNG, 2004).

Segundo Ja� e (2002), a consciência de-sempenha um componente essencial no indi-viduar-se: o próprio eu se esforça para integrar as forças desconhecidas surgidas durante o ca-minho e contribui para a ativação da cura, para a totalidade psíquica se instalar. A consciência exerce, pois, uma in� uência estimuladora sobre o inconsciente, uma vez que se esforça para com-preender as mensagens que este lhe apresenta. Assim, escreve Sanford: “... O potencial total de cura contido em nossos sonhos não se atualiza-rá a não ser que seja acompanhado pelo cresci-mento e desenvolvimento da consciência” (2007, p. 49). O hábito de registrar e re� etir sobre os sonhos constitui, segundo o autor, uma possibi-lidade de a consciência trazer à luz aspectos do inconsciente, bem como participar do � uxo de energia que dele emana. O próprio Jung (2008) orientava seus pacientes a efetuarem tais proce-dimentos.

Em sua conceituação mais simples, a individuação, conforme Ja� e, consiste no pro-cesso permanente e contínuo de tornar-se um indivíduo consciente (2002, p. 27). Segundo o

autor, a palavra consciência deriva dos termos la-tinos “con”, que expressa “com”, e “sciere”, “sa-ber”, vindo a signi� car “saber com” “outro”, sen-do que este outro pode ser uma pessoa, alguma parte de si ou o próprio Deus. Para Ja� e (2002), a consciência integra cabeça e coração, sendo sua base formada pelo conhecimento animado pelo coração. Isso converge com o que Jung escreve acerca do processo psicoterapêutico: “O paciente não deve ser instruído acerca de uma verdade. Se assim � zermos, estaremos nos dirigindo apenas à sua cabeça. Ele tem que evoluir para esta ver-dade. Assim, atingiremos o seu coração. Isso o toca mais fundo e age mais intensamente” (2008, p. 18). Registrar, pintar, re� etir afetivamente so-bre as imagens oníricas são formas concretas de a consciência participar da individuação.

Considerações finais

Diferentes visões e abordagens teóricas surgiram, no decorrer dos tempos, acerca dos sonhos. Para alguns, são imagens desprovidas de sentido; para outros, resíduos de memória ativados; para esotéricos e adivinhos, indicam caminhos e apontam soluções para diferentes problemas; para místicos e crentes religiosos, exprimem a vontade divina; para a psicologia analítica, con� guram-se como possibilidades do vir a ser humano.

Enquanto mensagens do Self, da totalida-de psíquica maior, os sonhos personi� cam dife-rentes aspectos da vida e da busca do indivíduo, bem como elementos essenciais com os quais este pode ter se desconectado. Todo drama ar-ticulado no sonho – trama de relações, cenário, protagonistas, plateia... – fala do indivíduo em uma composição mais ampla, revela vivências, afetos e atitudes indispensáveis para a vivência da individuação.

Se os antigos rituais de cura ofereciam um espaço simbólico para restaurar ofensas, integrar conteúdos e religar o humano ao divino, consta-ta-se, atualmente, que a psicoterapia constitui-se como um novo temenos3, onde se pode integrar

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3| Segundo CHEVALIER e GHEERBRANT, teme-mos é uma palavra grega, que tem a mesma origem do radical indu-europeu tem: cortar, delimitar, dividir, e “significava o local reservado aos deuses,o recinto sagrado que cercava um santuário e que era um lugar intocável”((2008, p. 874).

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diferentes aspectos da vida e estabelecer uma re-lação viva com o Self. Com base na revisão de literatura desenvolvida neste trabalho, identi-� cou-se que as mensagens simbólicas enviadas pelo Self à noite, con� guram-se como ferramen-tas signi� cativas na busca de sentido e na desco-berta dos caminhos que conduzem à realização do vir a ser da totalidade humana.

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Francisco Purcotes Júnior

A função compensatória dos sonhos

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A função compensatória dos sonhos

Introdução

De acordo com Jung, nascemos incons-cientes e com o passar do tempo, por meio das experiências que vamos tendo na infância, nosso ambiente e a educação que recebemos, a cons-ciência vai se criando. Entretanto, esse incons-ciente não desaparece, ele se manifesta na vida dos indivíduos de diversas maneiras, uma delas é por meio dos sonhos.

Os sonhos são estudados há séculos pelas mais diversas pessoas, cada uma com um objeti-vo diferente. Com eles, algumas pessoas querem prever o futuro, outras procuram por mensagens secretas, e há outras linhas de pensamento, ainda,

Francisco Purcotes Júnior*

* Francisco Purcotes

Júnior, psicólogo, es-

pecialista em psicologia

analítica e religião orien-

tal e ocidental.

[email protected]

que buscam fatos do passado que possam estar agindo na vida do indivíduo, enquanto religiosos a� rmam que os sonhos são recados de Deus.

A psicologia analítica, por meio de toda uma base teórica, oriunda de experiências de consultório do psiquiatra Carl Jung, descreve di-versos métodos de trabalho com sonhos e como as imagens trazidas pelos pacientes são impor-tantes para o processo de individuação do ser.

Os sonhos, em geral, possuem algumas funções na vida da pessoa, sendo uma delas cha-mada de compensatória. Compreender como ocorre essa compensação auxilia o paciente a descobrir novos potenciais em sua vida, a enten-

Resumo

Este texto tem a � nalidade de apresentar, explicar e descrever uma das funções principais dos sonhos, segun-do a proposta teórica do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung. Esta função é chamada compensatória, ou seja, restabelece o equilíbrio psíquico do sujeito. Pelo fato de cada vez mais as pessoas apresentarem problemas psicológicos, di� culdades e com a necessidade de lidarem com as mudanças da vida, pode-se utilizar os sonhos como um instrumento terapêutico, pois são de grande utilidade no que se refere ao desenvolvimento e autoconhecimento. Para compreender como isso ocorre, o texto propõe uma básica explanação sobre a psique, bem como, da estrutura do aparelho psíquico, por meio de uma revisão na literatura já existente.

Palavras-chave: sonhos, função compensatória, psique, Jung.

Abstract

� is paper aims to present, explain and describe one of the main functions of dreams according to the theoretical proposal of Swiss psychiatrist Carl Gustav Jung. � is function is called compensatory, it restores the psychic balance of the subject. Because more and more people experiencing psychological problems, di� culties and need to deal with life’s changes, you can use dreams as a therapeutic tool, because they are very useful when it comes to development and self-knowledge. To understand how this happens, the text o� ers a basic explanation of the psyche and the structure of the psychic apparatus through a review of existing literature.

Keywords: dreams, compensation function, psyche, Jung.

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der fatos, pensamentos e sentimentos, e a mudar de atitude em relação à sua vida atual.

A justi� cativa para se estudar o assunto provém da constante necessidade do pro� ssional que trabalha com a psique humana, seja ele tera-peuta, religioso ou conselheiro, de não ignorar o sonho em seu trabalho, mas agregar o conteúdo dos sonhos ao processo terapêutico, tendo em vista que o sonho e seu material fazem parte do sujeito e são essenciais para o desenvolvimento de todo o processo que deverá ocorrer durante o tratamento.

Não com o objetivo de cura, como enten-dido no modelo médico, mas com o objetivo de autodesenvolvimento ou do que Jung chama, na psicologia, de processo de individuação, os so-nhos são materiais essenciais para o tratamento psicológico, visto trazerem informações impor-tantíssimas sobre o andamento e o ritmo do de-senvolvimento psíquico do sujeito.

Por meio de uma revisão de literatura, o texto procura abordar o que pensam os autores Junguianos sobre o tema dos sonhos, quais são as suas de� nições, como utilizar o sonho em uma terapia, e como se dá a compensação efe-tivada pelos sonhos. Busca-se resposta ainda ao que seria essa função, e como se pode dela lançar mão para avançar no caminho de tornar-se si-mesmo.

Desenvolvimento

Segundo Hall (1983, p. 14), ao falar sobre a divisão estrutural da psique humana de acor-do com a psicologia analítica criada por Carl Gustav Jung, a psique pode ser representada da seguinte maneira: a percepção consciente da pessoa, chamada de consciência pessoal; o in-consciente pessoal, ou seja, o que dela é exclusi-vo, mas não é consciente; a psique objetiva, ou o inconsciente coletivo, que contém uma estrutura universal na humanidade e o mundo exterior da consciência coletiva, a cultura.

Grinberg (2003, p. 80) a� rma que nasceu junto com a humanidade a experiência do in-

consciente. Os antigos hindus, egípcios e he-breus, bem antes de Freud e Jung, já tinham consciência da existência de aspectos desconhe-cidos e estranhos nas pessoas, que a consciência não era capaz de compreender nem controlar.

Grinberg também ressalta que quando deixamos de dar atenção conscientemente a al-guma ideia ou emoção, essas não desaparecem nem deixam de ter in� uência sobre nossas vidas, mas surgem no inconsciente por meio de ima-gens e sonhos.

Chamados de “visitantes da noite” por Jo-hnson e Ruhl (2010), desde a antiguidade, os sonhos são objetos de interesse das pessoas. Os gregos antigos acreditavam que os sonhos pode-riam nos orientar sobre o futuro ou nos oferecer informações do outro mundo, de tal modo que nos poderiam ajudar a curar doenças.

Johnson e Ruhl (2010, p. 150) de� nem os sonhos como “uma das criações da nature-za, uma expressão espontânea, manifestação da força da vida que � ui em e através de nós”. Por diversos motivos, é importante prestar atenção aos sonhos; os complexos causam “nós” em nos-sas vidas que os sonhos ajudam a desatar. Os sonhos nos “oferecem uma fonte abundante de criatividade, renovação, força e sabedoria. São um portal direto para que aquilo que está madu-ro possa se manifestar na consciência” ( JOHN-SON; RUHL, 2010, p. 150).

Segundo Von Franz (2007, p. 14), Jung te-ria descoberto que enquanto as pessoas dormem, por meio de seus sonhos, despertam para aquilo que são realmente. Desta forma, “a coisa mais saudável que o ser humano pode fazer é prestar atenção aos seus sonhos”.

Bosnak (2006, p. 50) diz que os sonhos se reúnem ao redor de temas especí� cos que se ma-nifestam no tempo. “Suas imagens passam atra-vés de um processo contínuo de transformação, às vezes comum a uma série de imagens que se apresentam como sonhos”.

Sobre a linguagem dos sonhos, Whitmont

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(1969) explica:

O sonho fala na linguagem simbólica arcaica da

psique objetiva. Ele fala a sério e exprime, em ter-

mos simbólicos, o lado desconhecido da situação

de vida da maneira que é apreendida e espelhada

pelo inconsciente. Os sonhos, portanto, não são

sintomáticos, mas simbólicos. Eles são simbólicos,

visto que a psique objetiva não conceitualiza; ela

não fala inglês, francês, alemão ou chinês; ela fala

imagens, que são formas aborígenes de percepção

e expressão (1969, p. 35)

O sonho não funciona como estamos acos-tumados a ver o mundo enquanto acordados. No sonho não existe tempo nem espaço, passado e presente se misturam, e, junto com esses conte-údos, há resquícios de atividades que ocorreram durante o dia. Há imagens estranhas e contra-ditórias, uma combinação fantástica de ideias (GRINBERG, 2003, p. 112).

Os sonhos podem ser didaticamente divi-didos em quatro fases: na primeira, aparecem as cenas onde se passa a ação, onde são conhecidos os personagens e as pessoas envolvidas; na se-gunda fase, desenvolve-se o enredo do sonho, as complicações, a história; a fase três é chamada de clímax, e é onde geralmente acontece algo deci-sivo ou que muda o enredo; a última fase apre-senta o resultado do sonho, a solução, a situação � nal (GRINBERG, 2003, p. 112).

Cavalcanti con� rma que “os sonhos [...] comportam-se como compensações da situa-ção da consciência em determinado momento” (apud JUNG, 2007, p. 35).

Grinberg reitera que o sonho é um “re-gulador do equilíbrio psíquico. Pode-se a� rmar que seu signi� cado principal é estabelecer uma relação entre a vida consciente e inconsciente” (2003, p. 116).

Sobre o termo “compensatório”, utilizado por Jung para explicar a função deste tipo de sonho, ele próprio diz: “Uso de propósito a ex-pressão ‘compensatória’ e não a palavra ‘oposta’, porque consciente e inconsciente não se acham

necessariamente em oposição, mas se comple-mentam mutuamente, para formar uma totali-dade: o si-mesmo” (1996, p. 53).

Segundo Grinberg, a palavra compensar vem do latim compensare, e signi� ca “igualar, ba-lancear e comparar diferentes dados e pontos de vista, a � m de produzir um ajuste ou reti� cação” (2003, p. 118).

Por outro lado, de acordo com Whitmont: “O sonho não censura ou distorce”. E, diferen-ciando a visão freudiana sobre a abordagem dos sonhos da visão junguiana, continua: “Os apa-rentes fenômenos de distorção, de condensação e de substituição realmente ocorrem nos sonhos, mas não servem necessariamente ao propósito de disfarçar um desejo inaceitável” (1969, p. 34).

Whitmont (1969) exprime a ideia de que o sonho fala em forma simbólica sobre situações desconhecidas da vida. Completa sinalizando que, diferentemente de Freud, seu professor e mestre, Jung não vê o conteúdo manifesto no sonho na forma de imagens, como se ali se ocul-tasse algum conteúdo latente.

Segundo Hall, “na psicologia junguiana, o sonho é considerado um processo psíquico na-tural, regulador, análogo aos mecanismos com-pensatórios do funcionamento corporal” (1983, p. 30).

Santos a� rma que os sonhos compensató-rios são aqueles que corrigem um autoconceito pobre que temos a nosso respeito e se referem ou a situações que acreditamos não termos tido um bom desempenho ou a pessoas com quem con-vivemos. Desta forma, estes sonhos poderão dis-torcer pessoas que admiramos, nos dando uma imagem diminuída desta pessoa (2009, p. 30).

De acordo com Von Franz, “o sonho corri-ge nossas atitudes” (2007, p. 50).

Grinberg con� rma que o “objetivo é a compensação da unilateralidade, dos erros, des-vios e atalhos da atitude consciente. O incons-ciente encarrega-se de registrar e fazer a� orar o

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que a consciência deixou passar despercebido” (2003, p. 118).

Hall diz que o sonho pode compensar es-tas distorções temporárias na estrutura do ego, direcionando o sujeito para entender melhor suas atitudes e ações. Como exemplo, o autor cita uma pessoa que está furiosa com um amigo, por reprimir esta fúria, sonha que violentamente se volta contra este amigo. É importante para o sonhador, identi� car qual complexo foi ativado nesta situação (1983, p. 31).

Para Hall, essa seria uma primeira forma de compensação inconsciente para o sonho. Ja-mes Hall continua seu texto dissertando então sobre uma segunda forma de compensação, veri-� cada no processo onírico. Diz ele:

Um segundo e mais profundo modo de compen-

sação é aquele em que o sonho, como autorepre-

sentação da psique, pode colocar uma estrutura do

ego em funcionamento face a face com a necessi-

dade de uma adaptação mais rigorosa ao proces-

so de individuação. Isso em geral ocorre quando

o indivíduo se desvia do caminho pessoalmente

correto e verdadeiro. A meta da individuação nun-

ca é simplesmente um ajustamento às condições

existentes; por mais adequado que tal ajustamento

pareça, uma tarefa adicional está sempre à espera.

[...] Um exemplo desse segundo tipo de compen-

sação é o sonho de uma pessoa que estava muito

bem adaptada socialmente, nas áreas da vida co-

munitária, familiar e de trabalho. Ela sonhou que

uma voz impressionante dizia: “Não estás levando

tua verdadeira vida!” A força dessa declaração, que

a despertou em sobressalto, durou por muitos anos

e in� uenciou um movimento na direção de hori-

zontes que não estavam claros na época do sonho

(1983, p. 31).

Arespeito da função de compensação, Jung a� rma que os processos inconscientes de com-pensação do ego possuem todos os elementos para a autorregulação da psique. No nível pes-soal, estes processos são constituídos por razões que a consciência desconhece, mas que apare-

cem nos sonhos, ou também por situações igno-radas no dia-a-dia, afetos ou críticas que não nos permitimos (1996, p. 53).

Por sua vez, ao ser questionada sobre a fun-ção dos sonhos, Santos diz que o sonho mostra à pessoa coisas que ela não está tendo a possibili-dade de ver. Infelizmente a linguagem do sonho não é sempre entendida pelo sonhador, de forma que muita coisa acaba sendo perdida, o que não gera aprendizado (1976, p. 139).

Von Franz a� rma que o sonho nunca diz o que já sabemos. “Ele indica algo desconheci-do, um ponto cego. É como tentar olhar para as costas. Você pode mostrá-las para o médico, que examinará como estão, mas não pode vê-las” (2007, p. 51).

Grinberg fala sobre o princípio da equi-valência na teoria Junguiana, onde sempre que uma quantidade de energia é gerada em um dos polos da psique, automaticamente surge no ou-tro polo uma quantidade de energia equivalente, com o objetivo de regular e neutralizar a energia psíquica. Este princípio pode ser utilizado para analisar os polos conscientes e inconscientes da psique. A� rma Grinberg: “Se imaginarmos a psique como um sistema fechado, podemos a� r-mar que a energia psíquica está em � uxo cons-tante de um sistema da personalidade para o outro, do consciente para o inconsciente e vice-versa” (2003, p. 92).

Deste modo, Grinberg (2003, p. 93), a respeito da ligação sobre a energia psíquica e os sonhos, con� rma que o inconsciente tem a ca-pacidade de criar espontaneamente coisas novas, ativar uma certa quantidade de energia e forças sua entrada na consciência. Podemos sonhar com coisa que consideramos estranhas, e às ve-zes, com a solução de algum problema.

Grinberg faz uma analogia da psique com um velho baú, aonde podemos esconder coisas que não recordamos ou que não queremos lem-brar. Todavia, faz uma ressalva sobre esses con-teúdos. Segundo ele, os conteúdos que foram

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reprimidos voltarão inexoravelmente e tentarão voltar à consciência na forma de sintoma ou de sonho.

Sobre os sintomas e os sonhos que podem ser manifestos pela pessoa quando reprime al-gum conteúdo, Grinberg diz:

Antes de chegar a desenvolver sintomas, a pessoa

costuma ter sonhos ou receber outras “dicas” a res-

peito do conteúdo reprimido. Na realidade, quan-

do algum conteúdo desaparece da consciência, não

quer dizer que ele deixou de existir, mas, sim, que

perdeu sua energia consciente. A energia psíqui-

ca que desaparece gera um produto inconsciente

que apresenta traços em comum com o conteúdo

desaparecido. Esse produto inconsciente pode sur-

gir em sonho ou fantasia como imagem simbólica

(2003, p. 95).

Para Hall e Nordby “Quando re� etimos sobre os nossos sonhos, estamos re� etindo sobre a nossa natureza básica” (2005, p. 105).

Sobre o equilíbrio que a função compensa-tória procura trazer, Jung a� rma que os sonhos têm como função geral tentar restabelecer nos-sa balança psicológica, produzindo um material nos sonhos que reconstitui sutilmente o equilí-brio psíquico total (2008, p. 56).

Um exemplo interessante sobre a análise de sonhos e a compensação que o inconscien-te proporciona para o indivíduo pode ser é vis-to em Santos (1976), quando a autora relata o sonho de uma paciente que foi educada a ver a raiva como algo negativo, e reprimindo, assim, qualquer tipo de manifestação de raiva durante a vida e tornando-se passiva diante de muitas ocasiões em que precisaria se impor.

Uma pessoa adulta, cuja vida se caracterizava por

passividade imensa, entrara em sério quadro reacio-

nal depressivo. Contou-nos um sonho: Via-se na

posição horizontal e sendo puxada, por cada perna

e por cada braço, numa direção, por várias pesso-

as. Sua falta de reação, decorrente de falta de rai-

va, punha-a como joguete, completamente inerte,

frente aos outros, fazendo-a sentir-se puxada vio-

lentamente para todos os lados, como uma coisa.

A partir da compreensão do sonho, passou a ter

uma atitude, a saber, passou a ter raiva contra isso

ou aquilo e a conseguir se conduzir, em vez de se

deixar puxar servilmente (SANTOS, 1976, p. 15).

Outro exemplo clínico de análise de sonho compensatório é visto em Jung:

[...] uma jovem que amava apaixonadamente a

mãe, sempre sonhava com ela de modo desfavo-

rável. Esta aparecia em seus sonhos como bruxa,

como um fantasma ou como uma perseguidora. A

mãe a mimara exageradamente e a cegara com sua

ternura; a � lha não podia, pois, reconhecer cons-

cientemente a in� uência nociva da mãe sobre ela.

Seu inconsciente, no entanto, exerceu uma críti-

ca nitidamente compensadora em relação à mãe

(1996, p. 55)

Von Franz (2007) a� rma que quando exis-te uma atitude unilateral da consciência, mate-rialista demais, espiritual ou racional, ou seja, algo dirigido demais por um único impulso, os sonhos irão compensar essa situação, trazendo nas imagens o que está pesando do outro lado.

Sobre a mensagem do sonho: “É como se o sonho dissesse: – Você está desequilibrado em relação à sua totalidade. Essa é a sabedoria essencial dos sonhos: preservar um equilíbrio entre todos os nossos opostos psíquicos e esta-belecer uma espécie de via intermediária” (VON FRANZ, 2007, p. 230).

“Por meio do sonho, o inconsciente estaria alertando: – Olhe melhor! Um lado necessita do outro. O lado bom contém a semente do mal, e o lado ruim contém a semente do bem” (GRIN-BERG, 2003, p. 118).

Em sua vasta obra, onde mais de 80.000 sonhos foram analisados durante sua prática clí-nica, Jung obteve material su� ciente para elabo-rar sua teoria. Ele reitera que o sonho compensa as de� ciências de personalidade, além de preve-nir as pessoas dos perigos dos seus rumos atuais, e, caso estes avisos sejam rejeitados e ignorados, podem ocorrer acidentes reais ( JUNG, 2008, p.

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56).

Segundo Von Franz, “80% do que nos per-segue em sonhos é, na verdade, algum aspecto valioso da nossa personalidade que deveria ser integrado” (2007, p. 93).

Para Jung, esses avisos ou mensagens do inconsciente são de real importância. Cons-cientemente, no nosso dia-a-dia, nos expomos a diversos tipos de in� uência. As pessoas podem nos estimular ou deprimir, eventos de nossa vida pessoal e social desviam nossa atenção. Estes desvios podem nos levar a caminhos diferentes daquele que leva à nossa individuação, podemos ou não perceber os efeitos dessas in� uências: O fato é que nossa consciência é perturbada e convive, quase sem defesa, com esses incidentes (2008, p. 56).

Entretanto, a respeito do trabalho do tera-peuta com os sonhos dos pacientes, Jung fala que não é seguro querer interpretar um sonho sem observar os detalhes do contexto, e com todo o cuidado possível. Diz Jung: “Nunca aplique uma teoria, mas pergunte sempre ao paciente como ele se sente em relação às imagens que produz” (1972, p. 145).

Jung de� ne os sonhos como “a reação natural do sistema de autorregulação psíquica” (1972, p. 145).

Sobre os conteúdos que podem vir à tona nos sonhos, Jung a� rma que há alguns aconte-cimentos que não tomamos consciência, e que � cam abaixo do seu limiar. Estes acontecimen-tos foram absorvidos de forma subliminar pelo sistema consciente. Como ignoramos esses pro-cessos, visto que estes conteúdos poderiam de alguma forma gerar emoção, eles retornam em forma de imagens em um sonho.

Geralmente, o aspecto inconsciente de um aconte-

cimento nos é revelado por meio de sonhos, onde

se manifesta não como um pensamento racional,

mas como uma imagem simbólica. Do ponto de

vista histórico, foi o estudo dos sonhos que per-

mitiu, inicialmente, aos psicólogos investigar o as-

pecto inconsciente de ocorrências psíquicas cons-

cientes. (2008, p. 22)

Con� rma Jung (2008, p. 58) que muitas das crises que passamos em nossas vidas têm uma longa história inconsciente.

É deveras É deveras importante para a compreensão da teoria Junguiana sobre os so-nhos, deixar claro como funciona a linguagem simbólica e qual a importância dos símbolos para a humanidade. Jung (2008) explica que, pelo fato da compreensão humana ser tão limi-tada e existirem coisas fora do alcance do campo consciente, precisamos utilizar símbolos, formas de expressão que tornem possível a compreensão das coisas que não conseguimos de� nir.

O símbolo demonstra o estado da psique atual, ele funciona como uma “ponte” entre o consciente e o inconsciente.

Em toda a sua obra, Jung explicou a ne-cessidade e a importância do processo de análi-se dos sonhos, de atenção para e percepção das imagens internas do indivíduo. Atualmente en-contramos diversos autores e pro� ssionais que demonstram interesse em trabalhar com análise de sonhos.

Santos (2009, p. 30) acrescenta que, a par-tir do momento em que iniciamos um trabalho com sonhos e começamos a anotá-los, eles vão seguindo uma sequência na organização da vida psíquica. Mesmo para as pessoas que não têm conhecimento sobre os símbolos dos sonhos, é vantajoso que se os anote, pois cada vez mais o inconsciente vai entrando em contato com es-sas imagens, e os sonhos vão se tornando mais claros.

A relação entre o terapeuta e o paciente também é amplamente abordada nas obras de Jung, onde são enfatizados todos os pontos re-levantes que um pro� ssional da mente humana precisa adotar e se inteirar para que haja efeti-vidade no processo terapêutico. A terapia não é apenas um processo do paciente, mas uma rela-ção entre duas psiques. Tanto paciente, quanto

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terapeuta devem procurar a análise para tratar suas questões pessoais. Jung alerta sobre a im-portância do autocuidado que deve ter o tera-peuta em seu cotidiano clínico:

O terapeuta deve perceber a todo instante o modo

pelo qual reage em confronto com o doente. Não

se reage só com o consciente; é necessário pergun-

tar sempre: como meu inconsciente vive esta situ-

ação? É preciso, pois, tentar compreender os pró-

prios sonhos, prestar uma atenção minuciosa em

si mesmo e observar-se tanto quanto ao doente,

senão o tratamento poderá fracassar (2006, p.160).

Desta forma, compreende-se como deve ser mútuo o processo de terapia e a própria aná-lise dos sonhos. Ignorar os conteúdos dos so-nhos deixa as pessoas a mercê do inconsciente.

O processo de análise Junguiana, que tem como um dos instrumentos o trabalho com so-nhos, deve ser feito da forma mais verdadeira possível, a � m de que o paciente consiga entrar em contato com as imagens encontradas no so-nho. Esse diálogo entre a imagem e o indivíduo é extremamente necessário para que o paciente possa se desenvolver. Ele entra em contato com todas as imagens que pertencem a ele mesmo e que de alguma maneira in� uenciam sua psique.

Por colocar o paciente em contato com elementos inconscientes, o trabalho com sonhos pode gerar certa resistência. Na sua autobiogra-� a, Memórias, sonhos e re� exões, Jung expõe como entrou em contato com seu inconsciente, fazen-do um relato de como foi para ele a experiência de analisar seus próprios sonhos e de enfrentar seus medos:

Desde o início, concebera o confronto com o in-

consciente como uma experiência cientí� ca efe-

tuada sobre mim mesmo e em cujo resultado eu

estava vitalmente interessado. Hoje, entretanto,

poderia acrescentar: tratava-se também de uma

experiência tentada comigo mesmo. Uma das

maiores di� culdades que tive de superar foi supor-

tar meus sentimentos negativos. Abandonava-me

livremente às emoções que, entretanto, não podia

aprovar. Anotava as fantasias que frequentemente

me pareciam insensatas e que provocavam minhas

resistências. Enquanto não se compreende sua

signi� cação, elas parecem uma mistura infernal de

elementos solenes e ridículos. Foi a duras penas

que perseverei nessa prova através da qual o desti-

no me desa� ara. E só depois dos maiores esforços

consegui en� m sair do labirinto (2006, p. 205).

Desta forma, o processo de análise das próprias fantasias, por mais difícil que seja, deve ser encarado como natural no desenvolvimen-to do ser e a compensação do inconsciente por meio dos sonhos deve ser vista como normal e positiva para a psique.

Conclusão

De acordo com o trabalho apresentado e com a bibliogra� a consultada, percebe-se que o trabalho com sonhos e a análise dos mesmos são de suma importância para o desenvolvimento psíquico do sujeito, já que são instrumentos psí-quicos de manifestação inconsciente.

O inconsciente pode se “comunicar” com o ego do indivíduo e apresentar diversas funções. Uma delas é a função compensatória, ou seja, o inconsciente compensa as atitudes conscientes, de forma a proporcionar a homeostase para o sujeito.

Os exemplos apresentados deixam um alerta para a relevância do problema onírico, deve-se � car atento às imagens que aparecem nos sonhos, levar estas imagens para a terapia e trabalhá-las.

O contato com o inconsciente, como a� r-mou Jung, é muito difícil. É mister que cada pes-soa envolvida na terapia, seja paciente ou ana-lista, enfrente os conteúdos de sua psique, pois este enfrentamento trás para o sujeito os pontos obscuros de sua vida, coisas entendidas como ruins ou más, o que pode deixá-lo extremamen-te resistente. Entretanto, o único caminho para a individuação é o contato com tais conteúdos.

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O sonho de função compensatória trás possi-bilidades de reconhecimento das falhas que se cometem conscientemente, indicando também caminhos que podem ser seguidos e atitudes que o sujeito não está desenvolvendo, mas que tem em potencial. O inconsciente reconhece essa fal-ta e direciona o indivíduo por meio das imagens oníricas.

Como pro� ssional da mente humana e reconhecendo toda a subjetividade do ser como parte essencial do processo terapêutico, o tera-peuta considera o sonho como conteúdo do su-jeito e as imagens que aparecem não podem ser ignoradas. Essas imagens pertencem ao paciente e dizem algo sobre ele.

Uma análise adequada e que traga o pa-ciente ao caminho correto é fundamental na te-rapia, na vida, e em todo o percurso que a pessoa ainda irá percorrer.

Referências

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CAVALCANTI, Tito R. de A. Jung. São Paulo: Publifolha, 2007. (Col. Folha explica)

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HALL, Calvin Springer; NORDBY, Vernon J.

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HALL, James. Jung e a interpretação dos so-nhos. São Paulo: Cultrix, 1983.

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JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2008.

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WHITMONT, Edward C. A busca do símbo-lo. São Paulo: Cultrix, 1969.

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