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16/11/2015 Utopia A emocionante racionalidade do inconsciente Roger Dadoun

Utopia - APPOA · 2016. 12. 3. · 1 Charles Fourrirer [1772-1837], socialista francês; um dos pais do cooperativismo. 2 Pierre -Henro Leroux [1798 1871], filósofo e político francês;

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16/11/2015

Utopia A emocionante racionalidade do inconsciente

Roger Dadoun

Page 2: Utopia - APPOA · 2016. 12. 3. · 1 Charles Fourrirer [1772-1837], socialista francês; um dos pais do cooperativismo. 2 Pierre -Henro Leroux [1798 1871], filósofo e político francês;

Roger Dadoun

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Utopia

A emocionante racionalidade do inconsciente

*tradução Elemar do Amor Divino

[uso interno à disciplina “A Melodia das Coisas”, PPGPSI-UFRGS, 2015/2]

Com uma notável constância, a noção de utopia opõe às análises e aprofundamentos efetuados por numerosos autores, de maneira iluminadora, o grave rumor de sua “pouca realidade”. Ela traz sempre, na sua esteira, qual uma cauda de cometa, uma carga negativa ou depreciativa: nas declarações ingênuas como nos discursos eruditos, vêmo-la associada, quase sistematicamente, às noções de ilusão, de evasão, de fantasia nebulosa, de devaneio definido como sonho vazio e, evidentemente, acima de tudo, de irrealidade. Sabe-se a que ponto a etiqueta de “utópicos” colada por toda uma gnose marxista ou aparentada aos socialismos de um Fourrier1 ou de um Leroux2 lhe foi funesta – escanteados assim para o lado da fantasia e do delírio.

Poderíamos nos contentar de ver, no uso comum e generalizado do termo “utopia”, uma

simples inércia da linguagem, um estereótipo característico de um discurso profano e superficial

– e como o eco, banalizado, de um uso polêmico e ideológico nutrido disto que poderíamos

nomear, indiferentemente, empirismo, realismo ou positivismo. Mas a persistência do rumor

desvalorizador e sua resistência aos esclarecimentos históricos como aos exigentes esforços de

racionalidade convidam a buscar uma origem ou uma função mais singulares, mais insólitas,

da utopia – e a buscá-las, não há outra escolha possível, do lado do inconsciente.

Não basta considerar a utopia, poderíamos dizer recorrendo ao léxico psicanalítico, nos

seus conteúdos manifestos, mais indispensáveis; importa identificar seus conteúdos latentes.

Trataria-se, de qualquer maneira, de substituir à expresão habitual, um tanto vaga e confusa, de

“espírito da utopia”, algo como um “inconsciente da utopia”; de ver, pois, na utopia, uma

formação do inconsciente, mas uma formação completamente inabitual naquilo que ela se

desdobra, e se afirma aquilo que sempre se recusou ao inconsciente: a racionalidade – uma

racionalidade que poderia ser qualificada, tendo em conta a intensidade dos afetos implicados,

de emocionante. No sentido pleno de cada um dos termos: a utopia expõe a emocionante

racionalidade do inconsciente.

1 Charles Fourrirer [1772-1837], socialista francês; um dos pais do cooperativismo. 2 Pierre-Henro Leroux [1798-1871], filósofo e político francês; defensor da classe operária e partidário de um socialismo místico e do feminismo. É considerado o fundador do termo “socialismo”.

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Dois vetores antagonistas

Para indicar, da maneira mais simples, o sentido da operação proposta, convém colocar,

abaixo da palavra “utopia”, a seta de um vetor. Na ideia corrente que se faz de utopia, a seta é

orientada, segundo a prática matemática habitual, da esquerda para a direita, de trás para frente;

e o que é visado, o fim buscado, é a realidade. Fica entendido assim que a utopia tem por

vocação, é orientada para a sua realização. Alvo de um tal vetor, de uma tal setagem: o real!

Nos propomos de andar francamente na contra-corrente, de inverter o sentido da seta e

de traçar um vetor antagonista que iria da direita para a esquerda, da frente para trás, isto é, no

sentido oposto à realidade; que ela se distanciaria radicalmente. E onde então, na verdade,

poderia submergir, se encaixar nossa seta, senão naquilo que é preciso nomear, na falta de outro

termo, o inconsciente?

Digamos de maneira mais explícita: em vez de seguir a inclinação habitual, de ir à

jusante, e assim avalizar, de confirmar uma preguiça do espírito, um uso mecânico da palavra

utopia, nós buscamos voltar a uma fonte, supondo que haja uma; em vez de replicar esse rumor

impróprio e prejudicial e forçarmos em direção a um mais-adiante, em direção a um além da

utopia, que desembocaria em alguma transcendência mais ou menos impregnada de luz, das

Luzes3, nós nos voltamos, numa torsão laboriosa e contrária, voltando-nos para trás, para um

aquém, que arrisca nos conduzir em direção a uma desconhecida, turva e obscura

profundidade...

3 Referência às luzes da razão, do Iluminismo.

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Resultante dessa operação de inversão, de reversão, que podemos também considerar

como um desvio, nós nos encontramos, de maneira clara e nítida, diante de dois vetores

antagonistas, expressão figurada de dois movimentos ou de duas formas de proceder remetendo

a duas concepções de utopia de sentidos completamente opostos: uma, mais corrente e objeto

de uma quase unanimidade – em nosso entendimento, desatrosa – volta a utopia à única

realidade, e valorando-a e apreciando-a apenas na perspectiva de sua realização, de uma

passagem ao ato; a outra, pelo contrário, a que tentamos aqui delimitar, vira deliberadamente

as costas à realidade, e volta a utopia em direção ao inconsciente, na esperança de aí encontrar

uma ancoragem original, recursos e orientação inéditas.

Três sequências em Utopia

Deixando por um momento em suspenso os dois pontos de chegada das concepções de

utopia que estamos apontando: realidade de um lado, e inconsciente, em oposição, do outro, é

útil distinguir, no trabalho da utopia, três sequências ou momentos, desenvolvimentos, linhas

de força etc., características:

1. a utopia nos aparece primeiramente, da maneira mais visível, mais concreta, como este

objeto, material, no qual ela se expõe, este livro que temos ou tivemos entre as mãos e que tem

por título “A Utopia” – nome dado por Thomas Morus, o autor à sua ilha imaginária, a qual

por ser admirável e célebre e paradigmática, não é mais que uma ilha de papel, nada além de

um texto, produto de uma escritura. A utopia é, assim, à primeira vista, o que está escrito, o que

se escreve – a utopia é uma escritura, com todo o trabalho que isto implica, onde se combinam

de maneira complexa fantasias, imaginário, percepções objetivas, práticas de língua e

elaboração racional. É bem verdade que se pode manifestar através de signos diferentes dos

linguísticos, literários: arquitetos, urbanistas, organizadores de festas, artistas, políticos etc.

podem “escrever” ou inscrever suas próprias utopias usando signos monumentais, urbanos,

plásticos, com figurinos, ornamentos, refrões, com a carne mesma, trêmula ou traficada, da

humanidade. Mas talvez seja preciso ver aí, também, uma prática “livresca” da realidade, a

dimensão da utopia residindo precisamente neste tipo de aplicação “livresca” onde escritura,

“inscrição” se encontram deslocadas, relocadas em suportes materiais ou orgânicos (a título de

ilustração, pensemos no corpo do prisioneiro de Na Colônia Penal, de Kafka, onde uma

máquina de inscrição, uma charrua, escreve a sentença na carne sôfrega);

2. o que o texto utópico propõe, por outro lado, é antes de tudo uma construção social, uma

organização que se quer inovadora, inaudita, extraordinária, maravilhosa ou apocalíptica da

condição humana considerada, se possível, em todos os seus aspectos: trabalho, poder, relações,

amor, conhecimento etc. Ao mesmo tempo que ela se esforça para não negligenciar nenhum

detalhe, às vezes dentre os mais ínfimos, uma tal construção se dá como sintética, exaustiva,

ela se apresenta como um modelo, uma forma perfeita, acabada, ideal;

3. esta construção de uma sociedade nova, esta organização admirável e total da existência

humana, se efetua, de maneira evidente, frequentemente entusiasta, até exibicionista, sob o

signo da razão; é a razão que assegura, regra, persegue e legitima a construção utópica, com

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uma insistência tal que a racionalidade assume o aspecto de uma racionalização, ela mesma

bem próxima de uma elucubração. São mobilizadas tanto uma razão instrumental, artesanal,

técnica, prodecendo por cálculos minuciosos, mediações múltiplas, modulores4 e outros

arranjos da medida áurea5 (na obra de Zamyatin6, Nós, o engenheiro-matemático jura apenas

pelo número, e exalta o taylorismo, do qual se orgulha de ser o modelo de organização

“científica”, “racional” do trabalho) que a Razão, com um grande R, triunfante como princípio

superior da humanidade e único digno de definir o sentido total de sua existência.

Racionalização, organização e escritura compõem um tríptico descrevendo o que há de

mais aparente, de mais manifesto, e mesmo de espetacular, no trabalho da utopia. Estas três

sequências, momentos ou procedimentos estão presentes, verifica-se facilmente, em graus

diversos, e segundo articulações mais ou menos originais e surpreendentes, em todas as

construções utópicas. E em todas as três, com modalidades específicas, se pode reconhecer a

presença de uma veia racional mais ou menos consistente. Verificamos rapidamente que estes

conteúdos manifestos, por mais ricos e esclarecedores que sejam, mantem-se muito na

superfície, que eles deixam muitos pontos nebulosos e é importante investigá-los mais adiante

e se perguntar em particular sobre os recursos energéticos - libidinais? – que conferem à utopia

sua face singular e lhe asseguram uma força de impacto sempre vivaz.

No leito da realidade

Jamais se dirá o suficiente quão imperiosa e opressora é a pressão exercida pelo

princípio de realidade sobre o trabalho utópico, para contorná-lo, para submetê-lo à sua lei,

fixá-lo no seu terreno, fazê-lo capotar em seu leito! Toda uma história da utopia poderia ser

escrita sob a perspectiva desta capotagem7 no real (“capotagem” que se pode nomear tanto:

4 Modulor: sistema de proporções criado e largamente utilizado pelo arquiteto Le Corbusier, em que medidas como o pé e a polegada [de um indivíduo imaginário] não eram convertidas ao sistema decimal, aproximando assim as medidas das construções das proporções humanas a quem se destinavam. 5 Constante algébrica irracional denotada pela letra grega Φ [em homenagem ao escultor Fídias que a teria usado para construir o Partenon] com o valor aproximado de 1,618 e usada para descrever o crescimento biológico [vegetais, colmeias, órgãos humanos etc.]. Utilizada também na arquitetura [Vitrúvio], na arte renascentista [Giotto, Leonardo], na música [Beethoven, Bartók, Debussy], na literatura [Shakespeare, Hugo, Valéry], no cinema [Eisenstein]. Era considerada um número divino. 6 Eugene Zamyatin [1884-1937], escritor russo cuja obra Nós, história de um futuro distópico, influenciou os romances Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley e 1984, de George Orwell. 7 culbute

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revolta, pulo, revolução, grande salto avante8, quanto queda, fracasso etc.). Sob o nome de

“real”, ou por referência ao “princípio de realidade”, designa-se geralmente a realidade exterior,

a necessidade, agnakē9, fatum, as exigências incontornáveis da natureza e da sociedade. Mas

como, as ditas “realidades”, não estamos jamais seguros de poder estabelecê-las com todo rigor

nem valorá-las com toda “objetividade”, é certo, de maneira mais ou menos constante, a uma

ideologia da realidade com que lidamos – ideologia realitária ou realista que busca impor a sua

lei, suas normas, seus procedimentos, sua finalidade exclusiva à utopia. É quase sempre sob a

luz crua, ofuscante do realismo, que a utopia avança, que ela expõe a sua face – e como ela

poderia por conseguinte, sob uma tal luz, dominadora, sob uma tal exposição fazer outra coisa

além de torcer o nariz? Em toda parte nós vemos operando este indestrutível automatismo de

repetição, que traz sem cessar sobre a cena política, filosófica, cultural, a velha cópula obcena

e antiética, “Utopia-Realismo”, onde a utopia figura uma baixa, miserável e vergonhosa

parceira no papel de coadjuvante.

Nós estamos, sem dúvida, bem conscientes de que o real está, de maneira determinante,

na origem da utopia: ora um real insuportável do qual queremos nos desfazer, que nos aplicamos

em afastar, e então surge a utopia que, deste real, emerge e se extrai – se abstrai – para edificar

“nas nuvens”, diz-se, na abstração, seus reinos de felicidade; ora, ao contrário, um real tão rico

de promessas, que basta prolongá-lo, aliviando-o na medida do possível – do impossível? – dos

pesos e restrições que lhe freiam o desenvolvimento, e eis as promessas reunidas culminando

em uma construção antecipadora onde se dá a ler e a provar o “porvir radiante”; onde, em

oposição a esta imagem idílica, e recusando-a, se contrapõe a ela com força, eis um real tão

saturado de horrores, tão repleto de ameaças, tão tenebroso, sem nenhum lampejo sequer de

esperança (“se é meia-noite no século” como dizia Victor Serge10), que o discurso, o relato,

para prestar-lhe contas, nisto que se denomina às vezes contra-utopias, não podem consistir

senão em expor o nervo do terror e da assustadora e terrível essência.

Mas mais que à origem, mais que sobre as causas “objetivas” – causalidade incerta e

sempre reconhecida a posteriori – é sobre a orientação, sobre o objetivo, sobre a finalidade da

utopia, que a ideologia realista pousa sua garra mais letal. Tudo se passa, na verdade, como se

a utopia não pudesse, não devesse ter por único e glorioso objetivo senão se realizar, de passar

ao ato e ser implementada, na prática, na realidade. Pela sua natureza, pela sua estrutura mesma,

8 Alusão ao Grande Salto Avante [1958-1960], campanha lançada por Mao Zedong que pretendia tornar a China uma nação desenvolvida e socialmente igualitária em tempo recorde acelerando a coletivização dos campos e a industrialização urbana. 9 Ἀνάγκη 10 Victor Serge [1890-1947], escritor russo nascido na Bélgica, revolucionário anarquista, participou do porcesso revolucionário na União Soviética a partir de 1919 e perseguido mais tarde pelo regime de Stálin ao qual era abertamente crítico. É sobre o período estalinista que trata o seu romance S’il est minuit dans le siècle, ainda sem tradução para o português.

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tal que nos reconhecemos nestas três sequências – escritura, construção social, trabalho de

racionalidade -, a utopia deveria tender, impertaivamente, inelutavelmente, em direção à sua

realização; e consequentemente, ela perde sua consistência própria por não ser mais que o eco

– o reflexo, a sombra... – daquilo ao qual ela tende, daquilo em direção ao que ela está projetada.

É preciso dar a esta locução “em direção a” toda a sua força restritiva, repressiva: a utopia está

curvada em direção ao real; está dobrada, deformada, descentrada para se submeter ao real.

Porque “em direção a” existe, e que este “em direção a” quer tudo dobrar sob sua lei

vale a pena dele de apossar, desviá-lo, transformá-lo em escárnio: digamos pois, por brincadeira

– uma brincadeira de consequências temíveis – que este “em direção a” que força a utopia a

copular no leito do real, é o “verme”11, o parasita alojado no fruto da utopia e que o roi, é o

agente da sua decomposição, de sua putrefação. A história traz sobre este ponto ilustrações

exemplares, esmagadoras, sob a forma, precisamente, de um teste de realidade: todas as vezes

que a utopia é forçada a entrar nos fatos, de passar ao ato, de se deitar no leito do real, não se

obtém nada além de obcenidade, podridão e desastre. É preciso concluir disso que a vocação

da utopia não é de ir “em direção à” realidade, mas exatamente ao contrário: utopia versus

realidade – utopia contra o real.

Uma volta12 no Inconsciente

O real estando interdito, em direção ao que então nos voltamos? Em qual direção se

comprometer para tentar identificar as fontes do trabalho da utopia e reconhecer seus

mecanismos específicos? Nada mais que, repitamos, andar contra-corrente, que subir

novamente a ladeira e voltar-se para uma outra realidade bem diversa, em direção outra

realidade, a realidade interna, acompanhada nos seus mais longínquos, seus mais profundos

limites, suas trincheiras mais obscuras: por todos esses termos é o inconsciente que é designado

e consideramos, desde então, a utopia como uma formação do inconsciente – uma formação

que não se encontra igual no que paradoxalmente ela se constitui daquilo mesmo que é negado

ao inconsciente, a saber um movimento de racionalidade, que nós qualificamos além disso de

emocionante, por claramente marcar a plena carga efetiva que a especifica.

11 Aliteração entre vers [em direção a] e ver [verme]: ambas se pronunciam da mesma forma. 12 Tour se presta tanto a volta, passeio quanto a volta, no sentido de voltar-se; o autor se vale dessa ambiguidade do termo: opto aqui pela primeira acepção, caso contrário algumas metáforas utilizadas pelo autor se perderiam.

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Esta não é uma posição insólita. Mais uma vez, o trabalho da utopia foi associado, e

mesmo assimilado, ao trabalho do sonho. Ele foi frequentemente apresentado como um avatar

dos devaneios e do sonho. Foi também vivamente colocado em evidência seus elos com o

desejo, e sua aptidão e exprimir as forças pulsionais: tanto pulsão sexual quanto pulsão de

morte, tanto pulsão de saber quanto pulsão de controle etc. A obra de Fourier é

supreendentemente propícia a este tipo de aproximação.

Fica a impressão, no entanto, que mesmo nas análises mais arriscadas, as expressões

utópicas são tratadas mais como sintomas, eflorecências mais ou menos fantasistas, do que

como as modalidades de uma estrutura determinante, desenvolvimentos necessários de uma

formação específica. Quer dizer que não se trata somente de dar uma volta, de ir olhar, assim,

do lado do inconsciente; mas se trata de descobrir, de surpreender alguma coisa como um giro,

uma “volta no inconsciente”, um movimento de torsão do inconsciente tal que se possa

entrever13, em uma de suas dobras ignoradas, o precioso filão de uma racionalidade. Assim,

convém passar, tratar, processar a utopia na volta no inconsciente, o movimento simétrico não

é menos legítimo, de maneira que tanto na volta da utopia é o inconsciente mesmo que se expõe

e se afirma.

Trabalho do sonho e trabalho da utopia

É preciso ainda que seja distintamente uma volta, um modo de formação e de instituição

que convenha propriamente à utopia – e, para fazer isso, evitar de se engajar em um deste

numerosos passeios14 turísticos que acolhem benevolentemente um inconsciente demasiado

ecumênico, vasto e sombrio saco onde se embrulham as “escapinadas”15 da psicanálise.

Amiúde, recordemo-lo, a utopia é tratada como uma espécie de devaneio, um tipo de

sonho acordado, um equivalente simultaneamente mais superficial e mais articulado do sonho.

13 S’entr’apercevoir: neologismo “entre aperceber-se”, um entrever acompanhado de um dar-se conta de algo. 14 Tournées 15 Neologismo, provavelmente de escapilade (rapel, escalada), a única referência encontrada é o título de uma peça teatral releitura de Artimanhas de Scarpino, de Molière. Pela sinopse da peça parece ter a ver com a maneira como os atores encarnam as personagens, de maneira mais livre e misturada ao público.

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Que, a partir da utopia e do sonho, se possa retomar um umbigo comum, eis o que se oferece

como uma preciosa probabilidade. Mas ainda resta por fazer a parte desta e daquelas formações,

destes entroncamentos que criam raízes no inconsciente – e operar, então, algumas distinções

necessárias.

Os sonho continua sendo uma atividade individual, estreitamente ligada ao sono – a

neurofisiologia a qualifica, como base em características orgânicas desde então bem

estabelecidas, de “fase paradoxal do sono”. Ele se apresenta como um desenrolar mais ou menos

fragmentário de imagens; a interpretação psicanalítica mostrou que esta textura imaginária

adere intimamente aos valores pulsionais, libidinais, que dão ao sonho seus ritmos afetivos tão

perturbadores, desde a euforia erótica até a angústia do pesadelo. É reconhecido que o sonho se

opõe bravamente às intervenções da racionalidade, às pressões das regras sociais, às exigências

de coerência e rigor da linguagem. Pode-se falar de um imaginário bruto – com a condição de

que esse termo não apague tudo o que, de história individual e experiências memoráveis e

complexas do sujeito, projetam, inscrevem, reformularm na imagem onírica.

O trabalho do sonho, em suma, perece todo voltado para a face interna da realidade

psíquica individual. Dir-se-á então, do trabalho da utopia, que ele desenha como uma outra

vertente dessa mesma realidade, que ele designa uma potência do inconsciente voltado, de

alguma maneira, para a face externa da realidade individual.Vê-se aí um esforço para transpor

ou arrancar-se deste estrato individual: visando a algo de universal, fazendo recurso à

racionalidade; visando à realidade social, graças a construções sociais apropriadas; visando

enfim a uma expressão linguística clara, precisa, comunicável pela escrita. O que poderia ser

definido como específico do trabalho da utopia não são tanto suas características conhecidas e

manifestas (a saber: o tríptico racionalidade, sociabilidade, escrita) – elas seriam muito mais

apropriadas à literatura ou à filosofia – mas a maneira na qual o inconsciente se se pode dizer,

as direciona, as produz, as sustenta, mantém fortes e sutis ligações com as energias libidinais,

as pressões do desejo.

Continuamos, depois de Freud, a definir sumariamente o sonho como uma “realização

do desejo”. Duas interpretações são possíveis aqui: uma mínima, frágil, reconhece no sonho

uma capacidade de trazer ao sujeito uma gratificação, uma satisfação para desejos não

realizados, deixados em suspenso em estado de vigília – cumulando em uma frustração. Cada

noite, deixamos a terrena e piolhenta realidade para dar uma caminhada no “país da bonança”,

terra da utopia. Para uma outra concepção, mais vigorosa e ampla, a vocação do sonho residiria

menos nessas parcas satisfações fragmentadas, anedóticas, imaginárias do desejo, do que na

potente recarga energética do desejo que ela satisfaz. “Satisfação de desejo” teria significado

então, para bem além das nossas gratificações noturnamente mordiscadas, que é o desejo como

tal, como estrutura de base, que se realiza, que encontra potência vital, que se reformula, se

recria, se regenera qual uma fênix para afrontar a um novo custo a odiosa e opressiva realidade.

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É nos inspirando nessa análise, e afirmando que existe uma raiz de inconsciente comum

com o sonho, que nós podemos considerar a utopia como uma satisfação do desejo: mais

precisamente, do desejo de utopia! Reafirmemos: não está na vocação, na essência da utopia a

passagem ao ato, o desembocar no real, o oferecer um lugar, um topos16 concreto, material,

exterior, a um projeto qualquer. Seu lugar, diríamos, é ela mesma; e é nela mesma, enquanto

ancorada ao inconsciente e nutrida do inconsciente, que ela encontra sua realização – nela

mesma e não fora; pois então, precisamente, ela estaria fora de si, ela estaria furiosa17, ela se

perderia longe de seu eixo inconsciente, ela mostraria os dentes, como se diz de uma roda18 e a

volta do inconsciente não passaria de uma olhadela da consciência.

Dela mesma, o que há de dizer? Trata-se de ver como a utopia, a partir do inconsciente,

e recebendo deste útimo uma marca, um matiz específico (pulsional, desejante, afetivo,

libidinal), insiste, persevera nas suas características essenciais já conhecidas: racionalidade,

construção social, escrita. A vocação da utopia é de dizer, não de fazer – de dizer-se, de

desdobrar-se como formação do inconsciente, de manifestar a presença do inconsciente no

campo mesmo onde não se espera desse último nenhum acesso. A construção utópica é para ela

mesma o seu fim – este fim sendo, mesmo que possa parecer circular, exprimir, expor e realizar

o desejo de utopia (desejo de racionalidade onde se efetiva – que nos perdoe esta indispensável

reversão retórica – a racionalidade do desejo).

O desejo de utopia

Temos o direito de falar de um desejo de utopia? Que é então a utopia, à sua própria

maneira como nenhuma outra, poderia nos fazer ver, compreender, a natureza do desejo? De

fato, existe desejo, no sentido geral desse termo, desde que, considerando as construções

utópicas, podemos seguir , através das modalidades, roupagens e metamorfoses diversas, as

16 Τόπος [lugar]. 17 Elle sortirait de ses gonds [lit. « ela sairia de suas escápulas »] significando irritar-se ao ponto de « sair de si ». 18 Elle tournerait folle, comme on dit d’une roue [lit. « Ela ficaria louca como se diz de uma roda » : jogo de palavras impossível de reproduzir em sua riqueza. Em francês, chamamos roues folles [lit. “rodas loucas”] as rodas dentadas das engrenagens.

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linhas de força libidinais, as determinações pulsionais privilegiando, umas a sexualidade, outras

o poder, outras ainda a relação social ou as cenas fantasmáticas.

Sobre esse substrato, esse “sujétil19” libidinal, o desejo de utopia inscreve uma versão

que lhe é própria, efetua uma incursão original. Incursão, verdadeiramente, nisto que a utopia

nos conduz mais longe e revela uma profundidade mais singular. Nos traços que lhe atribuimos

correntemente, o inconsciente aparece como o lugar de embates pulsionais (pulsões de

conservação e pulsões sexuais, pulsão de domínio, pulsão de morte etc.) Ele ignoraria a

contradição, o “não”, o “ou isto... ou aquilo20”; ele carregaria o peso do passado, arcaísmos,

origens, anterioridades – se esforçando, poderia-se dizer, para “negociá-los” asperamente com

a consciência ou com o superego.

Esses traços característicos do inconsciente, o desejo de utopia se ocupa deles, mas para

integrá-los, mobilizá-los e inscrevê-los numa dinâmica original, que vai além deles, que os

transforma, que os metamorfoseia. O desejo de utopia parece tentar efetuar um impulso21 para

além do inconsciente. Assim, ele conserva e preserva e se alimenta da força pulsional, mas sem

procurá-la, sem propor-lhe objetos de satisfação precisos, adequados, “enredeçados”. Ele não

se contenta em ignorar a contradição, ele se encarrega mais ambicioso, de absorvê-la, removê-

la ou conduzí-la para formas unitárias, homegêneas, totalizantes. Enfim, não hesitando a

recolher e a explorar o peso do passado, o arcaico, ele a conduz assim numa movimento que

atravessa o presente, conquista o futuro e visa à eternidade.

Na relação que buscamos estabelecer entre inconsciente e utopia, estão as características

do inconsciente que permitem esclarecer de maneira original a estrutura da utopia. Mas a

recíproca não é menos válida, e abre novas perspectivas: o texto utópico remeteria assim a um

inconsciente mais surpreendente, mais complexo, mais “dialético” que nós gostaríamos de

admitir. O desejo de utopia seria desejo de superar todos os cortes, separações, exclusões –

todos os “esquizos”, diria-se – constitutivos da condição humana, interminavelmente

atravessada por pelas divisões entre o racional e o irracional, individual e social, dito e não-

dito, expressão linguística e outros sistemas de sentido etc.

19 “Subjectile”: sujet (sujeito) + projectile (projétil) 20 Também é o título de um livro do filósofo dinamarquês Søren Kierkeggard [1813-1855] cuja tese principal é a escolha individual entre uma vida ética ou uma vida estética. 21 Poussée, também pode significar surto.

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A construção utópica aparece como um esforço sui generis para prolongar e articular,

salvaguardando seus laços originários, e para expor e trazer à luz, preservando sua coloração

libidinal, esses diversos fatores habitualmente separados e conflituais, e cuja composição e

intrincamento formam o núcleo do desejo de utopia. Na utopia, racionalidade, socialidade e

linguagem mantém uma rica ligação umbilical com sua fonte inconsciente; sua vocação, sua

finalidade, sua razão de ser consiste precisamente em fazer funcionar tal ligação, a desenrolar

todas as suas virtualidades – e não de desviar dela ou de rompê-la para responder – de maneira

errada! – às solicitações vorazes do real. Visto que, justamente, para a utopia, é nesta fonte

inconsciente que reside a força principal de resistência à realidade – o que nos leva a reconhecer

a utopia, através de uma simetria com a “função do real”, cara à psiquiatria normativa, uma

função do irreal.

Função do irreal, da irrealização, do surreal.

Consideramos a “função do irreal” – enquanto ela consciência e avaliação ativa,

racional, operatória e eficaz dos objetos constitutivos do mundo exterior, bem como

necessidades, relações, movimentos e outros dados externos – como uma das expressões mais

finas e mais preciosas da atividade psíquica. Estruturas cerebrais altamente desenvolvidas

constituem seu embasamento. Numa tal perspectiva, o fato de se distanciar ou se desviar do real

seria o sinal de uma posição regressiva, arcaica, até mesmo mórbida. Também, ao contatar a

recusa de uma consistência própria, o irreal seria o negativo, o menos-ser, deplorável, do real.

É possível ver as coisas de outro modo. Nota-se inicialmente a que ponto a noção mesma

de “real” permanece confusa e relativa, e que seu uso está saturado e praticamente inseparável

de uma ideologia realista, isto é, de uma metafísica que valoriza e exalta a “realidade” de uma

maneira tal que esta conta menos, em útima instância, que a valorização ela mesma, efetuada

para objetivos e metas nas quais a “realidade” como tal – se é que essa expressão tem ainda um

sentido – se encontra transbordada, deformada, negada, aniquilada. Se admitimos enfim que

possa existir um “núcelo duro” de realidade, isto é, uma realidade reduzida a alguns dados

irredutíveis, irrecusáveis, uma tal realidade imporia ao ser humano as mais ferozes restrições;

ela seria sinônimo de necessidade no pior sentido do termo: uma necessidade devastadora e

sufocante da humanidade.

Dito de outra forma, então, o quão é propriamente vital para o homem de poder fazer

funcionar uma função do irreal, de poder opor às terríveis pressões do real odioso um processo

capaz de manter o real à distância, de suspender seu controle, de colocá-lo entre parênteses –

ao menos pelo tempo de o homem recobrar o fôlego. Tal será a função do irreal nas construções

utópicas: ela cinde, destaca, desprende, liberta o homem do peso emagador da realidade, a fim

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de que possa restituir a si mesmo, de proporcionar à humanidade uma respiração mais profunda,

mais essencial.

Os termos “real” e “irreal”, por si já vagos, se apresentam, além disso, como estáticos:

parecem definir dados, estados bem definidos, e que se excluiriam um ao outro numa irredutível

oposição. Não seria mais pertinente e mais judicioso, até mais prático, falar de “realização”, de

“irrealização”, de “desrealização” entendendo por isso processos dinâmicos, ao mesmo tempo

antagônicos e complementares, gravitando um ao redor do outro numa espiral complicada, por

vezes alucinante, e tal que o sujeito não cesse jamais de construir e desfazer a realidade, sem

possuí-la nem roubá-la. Os objetos do mundo estão sempre para serem reconstruídos, e é uma

tarefa penosa, precária, desgastante, interminável – a mais ínfima distração deixa-os escapar ou

os degrada. Mas ao mesmo tempo, os objetos estão sempre por desfazer, para que o homem

possa submetê-los – e está aí um dos seus projetos mais constantes e mais característicos

(“torna-se mestre e possuidor”22) – ou, ao menos, preservar seu lugar próprio, assegurar, diante

do objeto sempre ameaçador, sua posição de sujeito. A função do irreal consagrada à utopia é

uma função de subjetividade: o lugar da utopia (a qual se apresenta etimologicamente, mas

também sintomaticamente como “não-lugar”), é o lugar mesmo da subjetividade, da

subjetivação, do trabalho de construção, de elaboração, de reparação, todos os fatores

misturados e compostos, do sujeito humano.

Seria necessário considerar que a realização e o real próprios do sujeito passam,

imperativamente, por uma desrealização e um irreal do objeto? Que haja aí uma espécie de

conflito ontológico, onde cada um, sujeito ou objeto, buscar impor sua lei e sair vencedor deste

embate implacável? Essa seria, para nós, uma maneira demasiado simplista, demasiado

mecanicista, demasiado ideológica de conceber uma relação que se exerce a um nível de

profundidade e segundo um mergulho no inconsciente que faça pouco caso da lógica

tradicional.

Para abordar a singularidade de uma tal relação, seria conveniente libertar-se da imagem

corrente dos vasos comunicantes, na qual um dos níveis sobe enquanto o outro desce e vice-

versa. A imaginação utópica nos incita, por sua vez, a conceber um arranjo irreal de vasos

22 Referência ao Discurso do Método onde Descartes afirma, na sexta parte, que o homem está destinado a “tornar-se senhor e possuidor da natureza”.

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comunicantes nos quais, paradoxalmente, os níveis sobem ou baixam juntos, solidariamente –

como para revelar uma incontornável comunidade de destino.

Pareceria assim que a subjetividade – isto é, o trabalho de instituição do sujeito humano,

o lugar e a forma específicas do seu advento – se afirma e se desenvolve na proporção em que

o objeto a seu lado recolhe uma realidade mais forte, ganha esse acréscimo de real que lhe traz,

paradoxalmente, o processo de desrealização ao qual o sujeito se entrega a seu próprio governo.

Paralelamente, a subjetividade falharia quando o próprio objeto falha, se encontra em condição

de perda, não se prestando mais desde então ao processo de desrealização conduzido pelo

sujeito – o qual, é preciso insistir nesse ponto, só está firmemente na posse de si, confirmado

no seu trabalho de subjetividade, em face à firme realidade do objeto.

Esta relação de contornos paradoxais, repitamo-lo, frequentemente notável por outro

lado, nos conduz às paragens do surrealismo – o qual poderia nos convidar a reconhecer na

utopia algo como uma função do surreal. Nota-se, mais de uma vez, que as construções utópicas

influenciaram um estilo “surrealista”, no sentido banalisado, mesmo trivial, do termo onde a

tônica está colocada, um pouco apressadamente, na fantasia, no insólito. A imagem dos Vasos

Comunicantes23, texto célebre, uma abertura ao surreal, nos lembra que é no surrealismo que o

espírito de utopia prosseguiu, na contemporaneidade, seus percursos mais apaixonados, mais

emocionantes. É num mesmo movimento, de fato, que o surrealismo recorre à utopia e ao

inconsciente – a um inconsciente de utopia, pois, que sustentaria a um só tempo a valorização

do imaginário e do racional e do emocionante, e que suscita projetos de sociedade, recorrendo

à potência da escrita. Tomado de empréstimo à tradição psicanalítica, o inconsciente dos

surrealistas se ilumina com os vivos e estranhos brilhos da utopia.

A utopia casada com seus celibatários, mesmo

23 Livro [1933] do poeta francês André Breton [1896-1966] em que ele afirma em que o mundo real e o mundo dos sonhos são um só.

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A “Utopia” de Morus é uma ilha, a “Cidade” de Campanella24 é dita do “Sol”; Fourrier

compõe com cuidado extremo seu “Falanstério25”: a utopia se aproxima cada vez mais do

concreto, das imagens, das práticas – mesmo que elas se mostrem impossíveis. Para tentar dar

forma sensível e radiante às laboriosas hipóteses aqui apresentadas sobre as raízes inconscientes

e as funções da utopia, nos parece pertinente tomar Duchamp, o artista Marcel Duchamp26, e

de fazer refletir “o belo rosto pleno de significado27” da utopia no espelho do Grande Vidro28.

Esta obra singular, a mais célebre de Duchamp, oferece, com a ressonância estranho e

tangível de seu título, A noiva despida pelos seus celibatários, mesmo, os traços múltiplos aptos

a ilustrar o trabalho da utopia. Ei-la, nossa Prometida – nossa Promessa? – claramente destacada

diante de nós, tal como uma ilha utópica, bem protegida e isolada pela sua carapaça de vidro –

o vidro, essa substância utópica por excelência, que canta com lirismo o engenheiro de Zamiatin

em Nós. Sobre essa vidraça formando um espelho, e que o choque do real fendeu, despedaçou,

estão contudo os reflexos do real que acabam de ser produzir – um real subitamente

desrealizado, irrealizado. O real está ainda presente, mas deslocado, desviado, re-formado, no

interior do Grande Vidro, sob a forma de máquinas ou de “troços29”, de engrenagens e objetos

diversos que remetem, pervertendo-a, à vida quotidiana mais pé-no-chão.

Deportados de seu meio ordinário, sua função utilitária é, como suas formas mesmas,

suspensa, colocada entre parênteses (parênteses de vidro – parênteses de sonho!): eles não têm

outro sentido, esses “troços”, senão o de serem postos e depostos. Pode-se então considerar

como representando mecanismos, articulações ou acontecimentos do inconsciente – eles

encontram seu fim em si mesmos, na expressão que os afirma: nomeá-los-emos pois “máquinas

celibatárias”, ainda livres de todo compromisso institucional, de toda relação objetal. A mão

operária virtuosa do artista os reúne e os agencia num encontro surrealista que desdobra o

espaço de um não-lugar (a utopia entendia como “ou-topos”) (e onde, na verdade, o Grande

24 Tomasso Campanella [1568-1639], monge dominicano e filósofo italiano. 25 Phalanstère [φάλαγξ, falange; στερεός, firme] regrupamento orgânico dos elementos considerados necessários à vida harmoniosa de uma comunidade, inspirada na formação das falanges militares. 26 Marcel Duchamp [19897-1968], artista plástico e escritor francês naturalizado americano. 27 “beau visage à tous sens”, referência à coletânea póstuma Un beau visage à tous sens[1967] de cartas de Romain Rolland [1866-1944], escritor e músico francês, dentre as quais constava a carta a Freud, de 5 de dezembro de 1927, em que, comentando o recém publicado O Futuro de uma Ilusão, ele sugere a noção de “sentimento oceânico” que Freud posteriormente utilizará no seu O Mal-Estar da Civilização, de 1930. 28 O Grande Vidro, obra de Marcel Duchmap realizada em Nova Iorque de 1915 a 1923. 29 Machins, palavra usada para designar qualquer coisa cujo nome não venha à mente. Também usada para palavras-tabu que façam referência aos órgãos sexuais.

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Vidro poderia encontrar seu verdadeiro lugar – senão talvez em um museu supersaturado de

“libido museal”?, cf. bibliografia) – não-lugar servindo para acolher e formular, sem que jamais

seja consumado, o casamento, sal livre à terra, do inconsciente e da razão: inconsciente para

todas as cargas simbólicas afetivas, angustiantes de que são portadores esses objetos e “troços”,

a razão para as explicações abundantes, eloquentes, pedagógicas, analíticas que a articulação

com o inconsciente suscita e alimenta. Ao fim desta rápida aproximação firmando talvez uma

estranha má aliança, a utopia de estilhaços de vidro se apresenta como uma noiva de núpcias

surrealistas durante as quais as energias pulsionais, libidinais, do inconsciente, ardentes

cônjuges, preservam, ainda, seu estatuto de “celibatários”.

Na transparência profusa do Grande Vidro, nos pegamos observando, na filigrana, a

fácies ascética, à maneira de Tomas Morus, de Marcel Duchamp. A coletânea de seus textos,

de seus “escritos”, Marchand du Sel30, poderia se ler também Marchant au Self, avançando ao

ritmo desse “Self”, desta estrutura forte do Eu que é o artista capaz de fazer circular, de

“regatear31”, “marchandiser” e de “fazer caminhar32” (e é uma loucura o que Duchamp nos

“regateia” e nos “faz caminhar”!) sob forma de “títulos”, de “cheque”, de “mala”, de

“zombarias” etc. – a energia do Eu, do Sujeito, esta rica e sempre negociável “mercadoria”

libidinal.

Admitimos sem pena que o é o Si, o Self de Duchamp que está no coração de todas as

operações insólitas, idiossincráticas, “únicas”, que ele conduz. Salvo que convém precisar isto,

que importa mais que tudo: o Self de Duchamp não trabalha, não caminha pelo narcisismo, ele

não visa a aumentar uma assinatura, não busca colocar em destaque um indivíduo preciso,

designado, datado, localizado, “tópico”, isto é, ocupando pesadamente, gordurosamente, por si

só, o espaço, o “lugar” de seu nome – em suma, o pequeno Si identitário tão adulado (e que

sabemos verdadeiramente, de nossa parte, do ser portador do nome Marcel Duchamp?). Este

Self funciona em uma direção oposta: enquanto agente ou porta-voz – singular, “single”, sem

sombra de dúvida – de uma interrogação apaixonada, emocionante, insaciável, sobre o princípio

mesmo da Subjetividade. Esta, do fato que a encontramos em todo lugar, e que ela varre

incessantemente tudo a partir de sua casa (ela varre incessantemente em frente à sua porta, seria

30 “Mercador de sal” [1956], obra ainda sem tradução para o português. 31 Marchander. 32 Marcher.

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correto dizer!) não existe lugar limpo, ela se move no não-lugar, território da construção

utópica.

Um dos objetos, desses chamados “ready made” entre os mais célebres de Duchamp, e

que estabeleceu sua reputação de provocador, é o mictório em porcelana que expôs em Nova

Iorque sob o título de Fonte no qual ele assinou, com letras negras destacadas sobre a porcelana

branca, R.Mutt, 1971. Nos parece legítimo, da nossa perspectiva, definir a “fonte-mictório”

como sendo, eminentemente, um objeto utópico – no que ele casa, celibatariamente por certo,

razão e inconsciente. Razão, o mictório inscrito como objeto utilitário, “científico” de certa

maneira, respondendo “racionalmente” a uma função fisiológica essencial, e produto de uma

técnica combinando matemática, química, física, biologia, organização social. Inconsciente,

incontestavelmente, se decifrarmos a forma de sua assinatura: R. Mutt, ao contrário, se lê

Mutter, mãe, em alemão. O nome Mutt é tomado de empréstimo a uma empresa de instrumentos

de higiene, “Mott Works”. Tanto “Mott” quanto “Mutt” levam a pensar em mutismo, o mutismo

da morte, por pouco que dela nos aproximemos. “Mott” e “Mutt” de “Mate” no xadrez, que

Duchamp praticava como profissional – “Mate” vindo, por sua vez, de uma palavra persa que

significa morte. Colocando, por outro lado, o foco sobre o “R” de R. Mutt, o inscrevemos no

eixo ardente dos “R”s que atravessam tantas obras de Duchamp: a pequena ampola de vidro de

Ar de Paris que ele envia a Arensberg em Nova Iorque, o “R” presente nas formas e ouvido nos

título “célibatR” do Grande Vidro, no bico auer33 (Eau-Air) da obra monumental intitulada,

Sendo dados: 1) a cascata; 2) o gás de iluminação34, e, evidentemente e acima de tudo, o

próprio “R” maiúsculo que entra disfarçada e redundantemente na composição deste

personagem emblemático que é Rrose Sélavy, que se pronuncia facilmente “Eros, c’est la

vie35”... A partir do que, e sem levar adiante uma análise que se revelaria interminável, o

inconsciente de Fonte faz surdir num mesmo jorro pulsão de morte e pulsão de vida, Eros e

Thanatos. Quanto à forma, virando o mictório e seu vazio habilitado a coletar a urina, exceção

corporal, veremos ali, sem dificuldade, uma gravidez virtual, anúncio, anunciação, promessa

de um novo nascimento, de uma regenerescência – o que nos reconduz, diretamente se podemos

dizer, à utopia!

33 Bico de gás da marca Auer, popular na primeira metade do século XX. 34 Étant donnés: 1 la chute d’eau, 2 le gaz d’éclairage, elaboradas de 1946 a 1966 em Nova Iorque e expostas permanentemente no Museu de Arte da Filadélfia. 35 “Eros, é a vida”

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De um Eros divino

Aquém das vibrações frágeis do Grande Vidro, e como eco à voz singular, aérea e

“rachada36” de Marcel Duchamp, não podemos deixar de ouvir a um outro “Marcel”, o

“Marcel” que Charles Péguy37 coloca no início de de sua primeira obra, Marcel, premier

dialogue de la cité harmonieuse38 - texto de plena, alegre e juvenil efervescência utópica, texto

sempre tão obstinadamente ocultado, justamente pelos mesmos que vão filar em Péguy

alimento, recurso ou juventude, pois é a ele que convém pedir, ao fim e ao cabo, para desdobrar

em todo o seu fausto o arco-íris subterrâneo de um inconsciente de utopia.

Podemos situar Marcel no centro do que aparece como o tríptico péguiano da utopia.

Em um dos polos, tentando manter-se mais próximo do real, figura um artigo da Revue

socialiste, de 1987, intitulado “De la cité socialiste39”. Uma espécie de manifesto político

bastante sumário, no qual a sucessão de proposições se alona ao ritmo do verbo “ser” conjugado

no futuro, conjugado futurista: “o trabalho social será socialisado”; “a educação será igual para

todas as crianças”; “a concorrência será suprimida”; “a produção será centralizada” – artigo que

conclui com esta frase triunfal: “a cidade socialista será perfeita naquilo em que for socialista”

– onde se constata que um cuidado demasiado realista conduz a uma tautologia (a “cidade

socialista será... socialista!). Consciente dessa pálida equivalência, Péguy se corrige

imediatamente, e prepara uma fenda, considerando uma cidade fendida, acrescentando:

“naquilo que será uma cidade humana, pode ser que seja imperfeita ainda”.

No outro polo, que poderia ser o de um extremo irreal, colocamos a abertura do Porche

du Mystère de la Deuxième Vertu, texto de 1912, no qual é Deus em pessoa que toma a

palavra, para louvar com arroubos a virtude “Esperança” – diria-se hoje, com Ernst Bloch, as

Luzes do “princípio Esperança”, virtude ou princípio que são talvez o nervo mais vivo da

utopia. Deus canta incessantemente a divina amplidão do mundo, sua Criação: “eu transbordo40

na minha criação”, proclama ele. Tranbordamento semelhante colore o universo inteiro de um

Eros divino, o inconsciente de utopia se amplificando e transbordando (são conhecidas as

36 Também podendo significar “louca”. 37 Charles Péguy [1873-1914], poeta e ensaísta francês. 38 Marcel, primeiro diálogo da cidade harmoniosa. 39 Da cidade socialista. 40 Eclater, estourar (de rir), mas também brilhar, tranbordar, gozar (sexualmente)

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expressões “je m’éclate” ou “j’éclate” para designar o clímax do prazer sexual) até se fundir,

se perder no Espírito Santo. O projeto atribuído por Deus à Esperança é aquele mesmo que pode

caracterizar a utopia: esta “pequena filha de ninguém41” – Esperança ou Utopia – “atravessará

os mundos”, “penetrará as trevas eternas”, “vê o que ainda não é e o que será”, “ama o que

ainda não é e o que será”, “no futuro do tempo e da eternidade”...

No cruzamento de uma cidade terreste que se quer real, embora puxada em direção a

um futuro hipotético e de uma Cidade divina perfeitamente irreal (em todo caso: irrealmente

perfeita!) prenhe de potência criativa e de energia erótica de Deus (“eu transbordo....”), A

Cidade harmoniosa de Marcel se desdobra em um presente atemporal – tempo do

inconsciente. Ela se expõe em proposições claras e racionalmente articuladas, em uma escritura

que se quer incolor e como que branca - cândida? – mantendo-se à distância de todo objeto que

lhe oefereça o risco de refratar-se. E talvez formule, com seu ritmo atado por “nem” que abre

todas as possibilidades ao infinito, a regra mesma de toda utopia que busca uma plena aliança

com o ímpeto primordial de todo desejo:

“Nenhum ser vivo é banido da cidade harmoniosa”.

Bibliografia

DADOUN Roger, “Avoir le vivre et le musée », in Musées, revue des conservateurs de France,

n 205, décembre 1994.

DADOUN Roger, Marcel Duchamp, ce Mécano qui Met À Nu, Hachette, 1996.

DADOUN Roger, Eros de Péguy, la guerre, l’écriture, la durée, PUF, 1998 (traduction

italienne)

DUCHAMP Marcel, Marchand du Sel, Le Terrain vague, 1958.

PÉGUY Charles, Marcel, premier dialogue de la cité harmonieuse, accompagné d’une série

d’articles publiés en 1897 et 1898 dans La Revue Socialiste, Gallimard, 1973.

ZAMIATINE Evguéni, Nous autres, Gallimard.

41 Referência ao poema Le Porche du mystère de la deuxième vertu (1912) de Péguy.