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Valor semiológico do ritual “Guarda Cabeça”

Valor semiológico do guarda cabeça

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Page 1: Valor semiológico do guarda cabeça

Valor semiológico do ritual “Guarda Cabeça”

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Introdução

“Em todas as sociedades existem os chamados “ ritos de passagem”, que acompanham e simbolizam quaisquer mudanças de idade, estado ou condição social”1.

Segundo o livro, Retalhos do Quotidiano, de João Lopes Filho, num período muito difícil da história de cabo verde, em que havia muitas carências, aconteceram com frequência mortes de recém-nascidos, logo nos primeiros dias de vida, certamente originados por complicações de saúde da criança, aliado a falta de cuidados médicos. O fenómeno, assustador, marcava a sociedade cabo-verdiana. E havia um detalhe: muitas dessas mortes aconteciam antes do sétimo dia de vida da criança. Detalhe, este, que fez com que os familiares e amigos começassem a questionar o “porquê” da não passagem do sétimo dia de vida, daí as crenças de que forças malignas, os maus espíritos estariam a roubar a vida dessas crianças e era preciso contrapor-lhes com as forças do bem, sobretudo com orações, juntando com os objectos a que atribuíam algum poder.

1 Retalhos do Quotidiano, João Lopes Filho

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O Ritual

Ritual Antigo

Segundo o autor, “O sétimo dia após o nascimento de uma criança é festejado com grande entusiasmo, reunindo em casa dos pais do bebé todos os familiares, vizinhos e amigos, numa vigília com o objectivo de defendê-lo das bruxas. Acredita-se que elas podem vir buscar os recém-nascidos abrindo-lhes a cabeça enquanto dormem comendo-lhes os miolos ou lhes sugar o sangue ao sétimo dia, sem que alguém dê por isso, outra ainda é que a gordura das criancinhas é aproveitada por elas para o fabrico de poções mágicas.

A cerimónia começa no momento em que a parteira coloca a tesoura com que cortou o cordão umbilical, aberta em cruz debaixo do travesseiro da criança a servir de amuleto. Nalgumas zonas, alem da tesoura colocam, também, uma faca formando com ela uma cruz e ainda um terço (chamam a este conjunto ritual a «Defesa das três Marias») e em seguida vestem a criança com a «saia de baixo» que a mãe trouxe durante os sete dias após parto.

A outra técnica consiste em envolver a criança numa peça suja de vestuário («normalmente pertence ao pai ») , pois, assim, as bruxas já não a «comerão».

Todo este ritual e acompanhado, por vezes, de uma fogueira acesa numa das empenas da casa para afastar «coisa ruim» (que tem medo do fogo). Dai que, também, durante todo este tempo as crianças nunca são deixadas as escuras, pois ficariam a mercê dos maléficos dos espíritos maus.

Todo aquele pessoal passa a noite comendo, bebendo, contando histórias e anedotas ou jogando cartas, mas procurando estar sempre atentos e fazer barulho para afugentar as bruxas. Ao som de violões, cavaquinhos e chocalhos (feitos de grão de milho dentro de latinhas e sumo), vocalistas improvisados cantam música tradicional e acontece também a assistência dançar no cubículo térreo, iluminado por lamparinas pelo arrastar dos pés e o fumo do tabaco originam uma atmosfera muito densa (portanto, imprópria para um bebe).

A meia-noite em ponto, duas «pessoas de coragem» saem a rua, sorrateiramente, para um de cada lado do edifício atirarem punhados de cinza da fogueira (já referida) e sal sobre o casebre, enquanto murmuram orações para afugentar os espíritos maus.A partir deste momento o perigo passou e as bruxas já não têm poder sobre a vida da criancinha. Assim sendo, a festa rija prolonga-se pela noite fora, com toda a gente participando animadamente e cantando em honra da criancinha que acabou de ultrapassar um período decisivo da sua vida”.

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A festa “Guarda-Cabeça” noutras paragens

Segundo o autor do livro Retalhos do Quotidiano, “existem cerimónias de carácter semelhante” como em São Tomé e Príncipe, no Brasil.

“No Nordeste brasileiro, a cerimónia do sétimo dia do nascimento, as pedras de sal são lançadas sobre a casa, acredita-se que este vai distrair as bruxas, pois elas irão contá-las e esquecerão de fazer mal às crianças”2.

Ritual Actual

Actualmente, o ritual de “guarda-cabeça” é encarada com menos tradição, pois, são poucas as pessoas que praticam-no no sétimo dia após o nascimento da criança. A cerimónia começa quando todas as pessoas se reúnem em casa dos pais da criança, principalmente, a madrinha, o padrinho e a pessoa que faz a oração. Quando todos os convidados estiverem presentes coloca-se a agulha e a tesoura debaixo do travesseiro, a criança nos braços da madrinha, enquanto o padrinho segura uma vela acesa e os pais seguram um copo de água. Daí, começa-se a oração (Pai Nosso, Avé Maria e o Credo).

Quando termina a oração, coloca-se a água na cabeça da criança e depois pede-se aos pais e/ou familiares para tocarem na cabeça a fim de receber a bênção de Deus. Depois da cerimónia todos os convidados cantam a música “ nah mininu nah”, e seguem-se pela noite dentro comendo, dançando, jogando cartas até ao amanhecer.

A musica “Nah mininu nah” é do compositor Eugénio Tavares, foi interpretada e gravada, unicamente, por Sãozinha Fonseca no álbum “Andorinha di Bolta”.

Música: “Na oh mininu na” Compositor Eugénio Tavares

Oh rostu dosi di odju aguaduEz bo kudadu botal pa trazNhor Dez ta danu um bida di pazOh nha pecadu di odju maguadu

Coro:Na oh mininu naSombra runhu fuji di liNa oh mininu naDixa nha fidju durmi

2 Retalhos do Quotidiano, João Lopes Filho

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Sonu di bida, sonhu di amorO grasa o dor, es e noz sortiSi Deuz maz logu mandanu mortiKem ki tem medu ta morri sedu

CoroToma nha ombru inkosta kabesaDja-n dabu petu ama ragazOh spritu dosi ka bo tem presaDeta ku djetu, durmi na paz

Coro

Que as entidades denominadas superiores protejam o/a… (diz o nome da criança).

“Guarda-Cabeça” como passagem de Ritual á Festa

As mudanças que normalmente ocorrem nas estruturas sociais contribuem para as alterações de aspectos das tradições. Antigamente, o ritual “guarda-cabeça” era feito num ambiente de apreensão, em que os familiares e amigos reuniam para esconjurar os maus espíritos. Actualmente o ambiente é de festa, porque a geração nova desconhece a história dos rituais do guarda-cabeça.

Segundo, o antropólogo, Orlando Borja, “o tempo” surge como um “factor de desgaste” que “pode a pouco e pouco imprimir mudanças de hábitos” favorecendo “a recriação”, permitindo a introdução de novos elementos, como: a música (“nah mininu nah” de Eugénio Tavares, que conhecia bem a tradição), e a agulha.

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Análise dos Símbolos

A tesoura era o objecto que a parteira utilizava para cortar o cordão umbilical. Como a maior parte dos objectos cortantes, a tesoura, é um símbolo de energia masculina e da acção. Na mitologia grega está associado ás Moiras (deusas que detêm o poder sobre o destino dos homens), se utilizam da tesoura para “ cortar a linha da vida”.

Entre muitos povos é usada como amuleto para repelir as energias negativas.

È uma oração católica em honra da Santíssima Virgem Maria formando tradicionalmente por três terços. Cada terço compreende 5 mistérios da vida do nosso Senhor, Jesus Cristo e de Nossa Senhora. Os mistérios são formados basicamente por um Pai Nosso e dez Avé Marias. Cada mistério recorda uma passagem importante da história da salvação, segundo a doutrina católica.

Ao conjunto deste ritual juntando estes elementos chama-se “Defesa das 3 Marias”.

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RELAÇÃO SINTAGMÁTICA

Consiste na relação de dois ou mais signos produzindo um novo significado.

TESOURA/FACA + TERÇO = CRUZ

A tesoura e/ou a faca em forma de cruz simboliza a luta contra as forças malignas, a busca de protecção de Deus para a vida. Segundo o dicionário de Símbolos, Jean Chevalier, a Cruz é o símbolo do intermediário, do mediador.

7 Segundo a simbólica pitagórica, o número sete é um número sagrado, é, por

assim dizer, divino. Segundo o dicionário de Símbolos de Jean Chevalier, o número sete, comporta uma ansiedade pelo facto de indicar a passagem do conhecido para o desconhecido.

O fogo é considerado um símbolo sagrado na maioria das religiões, incluindo o Hinduísmo e Islamismo. Quase todos os rituais religiosos são realizados na presença deste elemento, seja em forma de fogueira ou mesmo simplesmente representado por uma vela. Neste contexto, a fogueira e/ou o fogo assumem como símbolo para afastar a “coisa ruim”. Acredita-se que as bruxas têm medo do fogo, uma vez que, esta possui um misticismo.

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Momento em que o Sol passa por um meridiano diametralmente oposto ao meio dia. Simbolicamente a hora que os aprendizes e mestres, e em muitos outros graus maçónicos encerram seus trabalhos á meia-noite em ponto.

A cinza extrai o seu simbolismo do facto de ser por excelência valor residual: o que resta depois da extinção do fogo.

Alimento considerado como indispensável para o corpo, simboliza a força vital e as virtudes morais e espirituais. O sal Grosso actua no plano astral e na esfera psíquica, como esterilizador. Limpa o ambiente e as pessoas das energias negativas.

RELAÇÃO SINTAGMÁTICA

Ao conjunto de todos estes signos produz-se o ritual do “guarda-cabeça”, que é a reunião no sétimo dia depois do parto, para se guardar e festejar o neófito3.

Obs. do professor: relação sintagmática das palavras guarda+cabeça.

3 Dicionário Crioulo, Léxico do Dialecto Crioulo do Arquipélago de Cabo Verde, de Armando Napoleão Fernandes

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Conclusão

Concluímos que o ritual “guarda-cabeça”, embora esteja presente na sociedade e na vida das pessoas, poucos conhecem o seu verdadeiro significado, devido ao desaparecimento de vestígios e que não foi transmitido pelos “antigos”, que conservaram para si todo o conhecimento destas tradições. Daí, o nosso trabalho, a recolha de informações, afim de, compreender, analisar, o “porquê”, “como se faz” o ritual de guarda-cabeça. Cremos que este ritual contem elementos que reunidos acabam por traduzir a memória de um povo.

Fonte:

O livro, Retalhos do Quotidiano, João Lopes Filho

Dicionário Crioulo, Léxico do dialecto Crioulo do Arquipélago de Cabo Verde, de Armando Napoleão Fernandes

Para consulta de símbolos:

Dicionário dos Símbolos, Jean Chevalier

http://consolatajovem.blogspot.com

http://symbolon.com.br

http://www.girafamania.com.br/montagem/simbolos.htm

O Trabalho contou com a ajuda do Antropólogo, Orlando Borja

Nosso sincero agradecimento,