3
Brasil, Irã e protagonismo Fábio Wanderley Reis O acordo que Brasil e Turquia celebraram co m o Irã em torno da questão da política nuclear do país, com a novidade da importante  participação brasileira num p roblema de política internacional de alcance mundial, levou a avaliações desencontradas entre nós. A julgar por pequena  pesquisa pessoal na internet sem preocupações de rigor, a discordância foi mesmo bem maior do que a manifestada na opinião internacional: os comentários de leitores a artigos sobre o assunto publicados no New York Times e no The Economist em seguida à divulgação do acordo eram em ampla maioria de aplauso a ele, vendo-o como algo favorável ao encaminhamento positivo das dificuldades com o Irã. As avaliações  brasileiras tiveram caráter “projetivo”, cada qual lançando s obre o evento aquilo que suas inclinações simpáticas ou hostis ao governo Lula recomendavam ou condicionavam. Isso está provavelmente relacionado, em alguma medida, à especial desatenção do público brasileiro em geral relativamente a problemas de  política externa. Se m esmo nos Estados Unidos, cuja política externa tem impacto de grande importância por toda parte, poucos cidadãos prestam atenção real nela, que dizer aqui, onde a presença do país na cena internacional é tradicionalmente reduzida. Naturalmente, em tempos recentes (e governos, particularmente o atual) temos tido a intensificação dessa presença. O que não impede que o papel de Lula num acordo  potencialmente tão importante quanto o costurado há pouco surja com o algo desmesurado, passível de ser festejado como feito notável ou xingado e escarnecido como prova de arrogância ingênua.  A disposição crítica assumiu com frequência a forma de denunciar a aproximação do governo brasileiro com o Irã e Ahmadinejad, dado o caráter autoritário do regime iraniano. Não há dúvida quanto à impropriedade de manifestações de Lula com respeito ao Irã, exemplificada nas tolas declarações em que os conflitos relacionados com as eleições  presidenciais do ano pass ado foram equiparadas a disputas ent re torcidas de 1

ValorII-002-Brasil, Irã e protagonismo

Embed Size (px)

Citation preview

7/29/2019 ValorII-002-Brasil, Irã e protagonismo

http://slidepdf.com/reader/full/valorii-002-brasil-ira-e-protagonismo 1/3

Brasil, Irã e protagonismo

Fábio Wanderley Reis

O acordo que Brasil e Turquia celebraram com o Irã em torno daquestão da política nuclear do país, com a novidade da importante

 participação brasileira num problema de política internacional de alcancemundial, levou a avaliações desencontradas entre nós. A julgar por pequena

 pesquisa pessoal na internet sem preocupações de rigor, a discordância foimesmo bem maior do que a manifestada na opinião internacional: os

comentários de leitores a artigos sobre o assunto publicados no New York 

Times e no The Economist em seguida à divulgação do acordo eram emampla maioria de aplauso a ele, vendo-o como algo favorável aoencaminhamento positivo das dificuldades com o Irã. As avaliações

 brasileiras tiveram caráter “projetivo”, cada qual lançando sobre o eventoaquilo que suas inclinações simpáticas ou hostis ao governo Lularecomendavam ou condicionavam.

Isso está provavelmente relacionado, em alguma medida, à especialdesatenção do público brasileiro em geral relativamente a problemas de

 política externa. Se mesmo nos Estados Unidos, cuja política externa temimpacto de grande importância por toda parte, poucos cidadãos prestamatenção real nela, que dizer aqui, onde a presença do país na cenainternacional é tradicionalmente reduzida. Naturalmente, em temposrecentes (e governos, particularmente o atual) temos tido a intensificaçãodessa presença. O que não impede que o papel de Lula num acordo

 potencialmente tão importante quanto o costurado há pouco surja comoalgo desmesurado, passível de ser festejado como feito notável ou xingadoe escarnecido como prova de arrogância ingênua. 

A disposição crítica assumiu com frequência a forma de denunciar aaproximação do governo brasileiro com o Irã e Ahmadinejad, dado ocaráter autoritário do regime iraniano. Não há dúvida quanto àimpropriedade de manifestações de Lula com respeito ao Irã, exemplificada

nas tolas declarações em que os conflitos relacionados com as eleições presidenciais do ano passado foram equiparadas a disputas entre torcidas de

1

7/29/2019 ValorII-002-Brasil, Irã e protagonismo

http://slidepdf.com/reader/full/valorii-002-brasil-ira-e-protagonismo 2/3

times de futebol. E cabe discutir, neste como em outros casos, até que ponto interesses nacionais de um tipo ou outro justificarão que se ignore ocomprometimento dos direitos humanos em algum país que em princípio sequeira ter como parceiro.

 Relativamente ao acordo alcançado, porém, quanto mais

 problemático o regime ou o governo do Irã, tanto mais a festejar no fato deque se tenha conseguido obter dele a novidade de alguma disposição ànegociação. É com certeza possível que o ânimo iraniano quanto ao acordoseja na verdade pérfido, visando a ganhar tempo para objetivos militares,como na leitura feita pelos EUA. Mas é patentemente absurdo, sobretudodiante da carta dirigida por Obama a Lula um par de semanas antes do

acordo, que a oportunidade que ele representava tenha sido não sórechaçada por inteiro não mais que um dia após se saber que as discussõestinham tido êxito, mas que Obama se tenha mesmo empenhado

 pessoalmente em impedir tal desfecho. É claro que a posição sensata, emvez da reafirmação ultrarrápida da busca por sanções, teria sido, com oscuidados que parecessem necessários, a de conceder algum prazo, mínimoque fosse, para se tentar fazer do acordo obtido a plataforma inicial de umavanço diplomático mais seguro – e são igualmente claras as conexões da

linha adotada com questões e pressões de política interna estadunidenseque têm imposto distorções ao que presumivelmente se deveria esperar daatuação de Obama em assuntos de política externa, segurança e correlatos.E é simplesmente lamentável ver até um líder com o perfil especial deObama trazer corroboração tão rápida à regra de que a estreiteza dos

 princípios do terreno baldio da política internacional leva a que supostosestadistas – ou, pior, estadistas verdadeiros – devam com frequência agir aoestilo de chefes de gangues de adolescentes.

De maneira afim à modéstia de nossa tradicional presençainternacional, tem sido repetida a pergunta de o que é que fomos fazer noOriente Médio e em Teerã, afinal tão longínquos – e a resposta, tomadacomo algo suficiente para desqualificar a iniciativa, tem se referido à buscade Lula por protagonismo. Mas há um sentido bem claro em que essaresposta serve para a pergunta de por que alguém se mete em política ouluta por ser presidente da República, e a questão real é a de se cabe esperar 

que o protagonismo pessoal dos líderes resulte na promoção de interesses

2

7/29/2019 ValorII-002-Brasil, Irã e protagonismo

http://slidepdf.com/reader/full/valorii-002-brasil-ira-e-protagonismo 3/3

coletivos ou até de valores compartilhados – nacionais ou, eventualmente,transnacionais ou globais. Quanto à Teerã longínqua, Celso Amorim

 ponderava em entrevista que temos responsabilidades internacionais(somos até membros do Conselho de Segurança da ONU: caberia

renunciar?), que têm crescido com nossa expansão. No mais, adiversificação de protagonismos nacionais em direção multipolar e maisigualitária é com certeza condição da construção institucional capaz decriar, quem sabe, política internacional mais democrática e responsável.

Valor Econômico, 10/6/2010

3