14
VASSILI GROSSMAN Autor de VIDA E DESTINO «Vassili Grossman é o Tolstói da URSS.» MARTIN AMIS

VASSILI GROSSMAN - static.publico.ptstatic.publico.pt/docs/ipad/tudopassa.pdf · 8 Vassili Grossman Entre os seus vizinhos, um homem de nuca larga e inchada dormia, ressonando; outro,

  • Upload
    lekhanh

  • View
    218

  • Download
    1

Embed Size (px)

Citation preview

VASSILI GROSSMAN

Autor de VIDA E DESTINO

«Vassili Grossman é o Tolstói da URSS.»M A R T I N A M I S

7

1�

O comboio de Khabárovsk chegava a Moscovo às nove da

manhã. Um jovem de pijama e poupa no cabelo coçou a cabeça

e, pela janela, ficou a olhar para o crepúsculo da manhã outonal.

Bocejando, dirigiu -se às pessoas com toalhas e saboneteiras que

estavam no corredor:

– Cidadãos, quem é o último da fila?

Explicaram -lhe que uma senhora corpulenta marcara o lugar

na bicha depois do homem com um tubinho torcido de pasta

dentífrica e um sabão nas mãos.

– Porque é que só está aberta uma casa de banho? – perguntou

o jovem.

– Estamos quase no terminus, não tarda que cheguemos à

capital, mas os encarregados da carruagem só se preocupam com

o comércio que fazem, não têm tempo de servir o passageiro de

modo civilizado.

Passados alguns minutos, apareceu uma gorda de roupão, e o

jovem disse -lhe:

– Estou atrás da senhora, mas por enquanto vou até ao meu

compartimento para não estar a secar aqui no corredor.

No compartimento, o jovem abriu uma mala cor de laranja e

admirou com prazer as suas coisas.

8

Vassili Grossman

Entre os seus vizinhos, um homem de nuca larga e inchada

dormia, ressonando; outro, um jovem careca de faces coradas,

punha em ordem os papéis da sua pasta; o terceiro, um velho

magro, estava sentado, apoiando a cabeça nos punhos castanhos,

e olhava pela janela.

O jovem perguntou ao vizinho de bochechas coradas:

– Ainda o vai ler? É que tenho de arrumar o livrinho na mala.

Gostaria que o vizinho lhe admirasse a mala. Havia ali cami-

sas de viscose, um Breve Dicionário de Filosofia, calções de banho,

óculos escuros com armação branca. De lado, cobertas com um

jornal distrital de pequeno formato, estavam bolachas cinzentas

caseiras, da aldeia.

O vizinho respondeu:

– Faça o favor… Já li este livro, Eugénia Grandet, no ano pas-

sado, numa casa de repouso.

– É uma obra forte, nada a dizer – disse o jovem e guardou o

livro na mala.

Pelo caminho, tinham jogado às cartas e, comendo e bebendo

vinho, falaram de filmes, de discos, de mobílias, das casas de

repouso de Sótchi, da agricultura socialista, discutiram quem

tinha o melhor ataque, se o Spartak, se o Dínamo…

O careca de bochechas coradas trabalhava como instrutor no

Conselho Nacional dos Sindicatos, num centro regional, o da

poupa regressava a Moscovo onde era economista no Comité

Estatal de Planificação, depois de umas férias na aldeia.

O terceiro companheiro de viagem, mestre de obras siberiano,

e que estava agora a ressonar no banco de baixo, não lhes agradou

pela sua falta de cultura: soltava palavrões, arrotava depois de comer

e, quando soube que um companheiro de viagem trabalhava no

Comité de Planificação, na área das ciências económicas, declarou:

– Economia política? Pois, é a ciência que ensina como os

kolkhozianos vão da aldeia para a cidade comprar pão aos operários.

9

Tudo Passa

Num entroncamento ferroviário, bebeu muito no bufete

onde, pela expressão dele, tinha ido «picar o ponto», e nunca

mais deixava dormir os vizinhos, gritando:

– No nosso trabalho, não se consegue nada pela lei, se qui-

sermos cumprir o plano temos de trabalhar como a vida o exige:

«Dou -te isto, dás -me aquilo.» Nos tempos do czar chamava -se

«iniciativa privada», mas no nosso entender é isto: deixa que

o homem viva, o homem quer viver; isto é que é a economia!

Os meus montadores de armações durante todo um trimestre,

até termos recebido um novo crédito, assinaram as folhas de

pagamento como educadoras de infância. A lei vai contra a vida,

mas a vida faz as suas exigências! Cumprimos o plano, dão -nos

um aumento de salário e um prémio, mas, a propósito, podem

também espetar -nos com dez anos no lombo. A lei contra a vida,

e a vida contra a lei.

Os jovens calaram -se, mas quando o mestre de obras ficou em

silêncio, ou melhor, não ficou em silêncio porque começou a res-

sonar alto, censuraram -no:

– É preciso também estar de olho nestes. Disfarçados de nos-

sos irmãos operários.

– Interesseiro sem escrúpulos. E sem princípios. Como se

fosse um judeuzeco.

Estavam ressentidos porque aquele homem grosseiro, provin-

ciano, os desprezava.

– Nas minhas obras há trabalhadores presidiários, e à gente

como vocês chamam pridúrki1, mas quando chegar a altura de

definir quem é que construiu o comunismo, os heróis serão

vocês – dissera -lhes, numa ocasião, o mestre de obras e foi para o

compartimento vizinho jogar ao burro.

1 Pridúrki – no calão dos campos correcionais, presidiários que têm possibilidade de esquivar-

-se aos trabalhos; normalmente são os mais perigosos criminosos comuns. (N. dos T.)

10

Vassili Grossman

O quarto companheiro de viagem não costumava, pelos vis-

tos, andar em carruagem de segunda classe. A maior parte do

tempo manteve -se sentado com as mãos nos joelhos, como que

a tapar os remendos das calças. As mangas da camisa preta de

cetim não lhe chegavam aos pulsos, e os botões brancos no cola-

rinho e no peito davam à camisa um aspeto infantil. Costuma

haver qualquer coisa de cómico e de comovedor nesta combina-

ção de botões brancos infantis na roupa com as têmporas enca-

necidas e os olhos velhos, extenuados.

Quando o mestre de obras disse com uma voz habituada a

mandar: «Paizinho, deixa -me o lugar à mesinha, vou tomar chá»,

o velho levantou -se de um salto, como um soldado, e saiu para o

corredor.

Na sua mala de madeira com a tinta descascada, ao lado da

roupa gasta havia um pão esboroado. Fumava tabaco barato e,

depois de enrolar um cigarro, ia até à porta da carruagem para

que o fumo fedorento não incomodasse os vizinhos.

De vez em quando, os vizinhos ofereciam -lhe chouriço, e o

mestre de obras deu -lhe um ovo cozido e um copinho de vodca.

Mesmo os que eram duas vezes mais novos do que ele

tratavam -no por tu, e o mestre de obras não parava de entrar com

ele, dizendo que, chegado à capital, o «paizinho» ia fingir -se sol-

teiro e casar -se com uma jovem.

A certa altura começou na carruagem uma conversa sobre

os kolkhozes, e o jovem economista começou a censurar os man-

driões da aldeia.

– Acabei de ver com os meus próprios olhos e de me con-

vencer: juntam -se ao lado do prédio administrativo a coçar -se.

O presidente do kolkhoze e os chefes das brigadas suam as esto-

pinhas para os porem a trabalhar. E os kolkhozianos ainda se

queixam de que, se nos tempos de Stálin não lhes pagavam nada,

hoje também nada lhes pagam.

11

Tudo Passa

O inspetor sindicalista, baralhando pensativamente as cartas,

apoiou -o:

– Porque é que lhes devem pagar se eles não cumprem os pla-

nos de fornecimento? É preciso educá -los, mas assim – e abanou

um grande punho branco, o do camponês desabituado de tra-

balhar.

O mestre de obras passou a mão pelo peito grosso com fitas

de condecorações ensebadas:

– Nós, na frente de combate, tínhamos pão, o povo russo deu-

-nos o alimento. E ninguém precisou de o educar.

– Certo – disse o economista. – Seja como for, o principal é

que somos russos. O homem russo não é brincadeira!

O inspetor, sorrindo, piscou o olho ao seu companheiro de

viagem: isso mesmo, o russo é o irmão mais velho, o primeiro

entre os iguais!

– Aí é que está a chatice – disse o jovem economista. – É que

eles são russos, não são de uma minoria nacional qualquer!

Um tipo foi falar comigo: «Há cinco anos que andamos a comer

folhas de tília, não recebemos nada desde o ano quarenta e sete.»

Mas trabalhar não é com eles. Não querem perceber que, agora,

tudo depende do povo.

Olhou para o mujique encanecido que ouvia a conversa em

silêncio e disse:

– Não te zangues, paizinho. Vocês não cumprem o dever labo-

ral, embora o Estado se tenha virado para o camponês.

– É claro – disse o mestre de obras. – Não têm consciência

nenhuma, querem comer todos os dias.

Esta conversa, como a maioria das conversas de carruagem e

não só, não deu em nada. Um major da aviação, brilhando com

os dentes de ouro, espreitou para o compartimento e disse aos

jovens em tom de censura:

– Então, camaradas? E que tal trabalhar?

12

Vassili Grossman

E foram para o compartimento vizinho para acabar a série de

jogos.

Mas já termina a grande viagem… Os passageiros guardam nas

malas os chinelos, põem em cima das mesinhas bocados de pão

seco, ossos de frango trincados até ficarem azulados, restos de

chouriço esbranquiçado, embrulhado na tripa.

Já passaram pelas carruagens as encarregadas soturnas, jun-

tando a roupa de cama amarrotada.

Dali a pouco, aquele mundo de carruagem ficará desfeito.

As brincadeiras, os rostos, os risos e as vidas contadas por acaso e

os ocasionais desabafos dolorosos serão esquecidos.

A gigantesca cidade, capital do grande Estado, está cada vez

mais perto. E as reflexões e as preocupações da viagem já se des-

vaneceram. As conversas com uma vizinha de compartimento na

plataforma fechada, onde corre em frente dos nossos olhos, por

trás dos vidros embaciados, a grande planície russa e a água bor-

bulha nos reservatórios de água da carruagem, foram esquecidas.

O estreito mundo de carruagem, que dura só alguns dias, está

a derreter -se, um mundo igual, pelas suas leis, a todos os outros

mundos criados pelos homens e que se movimentam em linhas

retas e curvas pelo espaço e pelo tempo.

A força da gigantesca cidade é grande. Faz com que se aper-

tem mesmo os corações despreocupados daqueles que vão à

capital de visita, para percorrerem as lojas, para verem o jardim

zoológico, o planetário. Quem cair no seu campo de força, onde

se esticam as linhas invisíveis da energia viva da cidade de impor-

tância universal, sente de repente uma ansiedade, uma emoção.

O economista por pouco não perdeu a vez na bicha para a casa

de banho. Agora, penteando o cabelo, voltou para o seu lugar e

passou os olhos pelos vizinhos de compartimento.

O mestre de obras, com os dedos trementes (bebeu -se muito

pelo caminho), estava a folhear as faturas.

13

Tudo Passa

O inspetor sindicalista já vestira o casaco e tornou -se acanhado

e tímido ao cair no campo de força da ansiedade humana – o que

irá dizer -lhe a senhora biliosa, de cabelo branco, supervisora dos

inspetores do Conselho Nacional?

O comboio corre ao longo das casinhas de troncos rurais e das

fábricas construídas em tijolo, ao longo dos campos de repolho

cor de estanho, ao longo de plataformas de apeadeiros com char-

cos cinzentos no alcatrão, deixados pela chuva noturna.

Nas plataformas estão pessoas sombrias, os habitantes dos

arredores, de impermeáveis de plástico por cima dos casacos.

Os fios das linhas de alta tensão pendem, bambos, sob as nuvens

cinzentas. Nas vias de resguardo, os vagões cinzentos, sinistros:

«Estação Matadouro da Linha Circular».

Entretanto, o comboio ribomba e corre a uma velocidade que

parece maldosa, cada vez maior. Esta velocidade espalma, quebra

o espaço e o tempo.

O velho estava sentado, olhando pela janela, apoiando as

têmporas nos punhos. Muitos anos atrás, um jovem mal pente-

ado, desgrenhado, ia sentado da mesma maneira junto à janela

da carruagem de terceira classe. E, embora as pessoas que iam

com ele naquela carruagem se tivessem desvanecido da sua

memória, e também as suas caras e os seus discursos, na cabeça

encanecida voltou a surgir o que, ao que tudo indicava, já não

existia.

O comboio já entrava na cintura verde dos arredores de Mos-

covo. O fumo cinzento, rasgado, agarrava -se aos ramos dos abe-

tos, colava -se a eles empurrado pelas rajadas de vento, fluía por

cima das cercas das casas de campo. Que familiares lhe são estas

silhuetas de severos abetos nortenhos, e que estranhas parecem,

ao lado deles, as ripas azul -claras, os telhados pontiagudos das

casas de campo, os vidros multicores dos terraços, os canteiros

de dálias.

14

Vassili Grossman

E o homem que, durante três longínquos decénios, não se

tinha lembrado nem uma vez de que existiam no mundo os

arbustos de lilases, os amores -perfeitos, os carreiros dos poma-

res, cobertos de areia, os carrinhos com aparelhos de água gasosa,

soltou um «ah!» ao voltar a convencer -se, de maneira nova, de

que a vida tinha corrido também sem ele, que tinha continuado.

15

2�

Ao ler o telegrama, Nikolai Andréevitch lamentou a gorjeta

dada ao carteiro – o telegrama, pelos vistos, não era para ele –,

mas de repente lembrou -se, e admirou -se: ah, o telegrama era do

primo Ivan.

– Macha! Macha! – gritou à mulher.

Maria Pávlovna pegou no telegrama e disse:

– Sem óculos sou completamente cega, tu bem sabes. Dá -me

os óculos. É pouco provável que o registem em Moscovo…

– Ah, não fales do registo.

Nikolai Andréevitch passou a mão pelo sobrolho e disse:

– Imagina, o Ivan vem aí e encontra só campas, apenas campas.

Maria Pávlovna disse pensativamente:

– Os Sokolov… aquilo é um pouco embaraçoso. Vamos man-

dar uma prenda, é claro, mesmo assim… é que Sokolov faz cin-

quenta anos, uma data especial.

– Não faz mal, eu explico -lhes.

– E a partir do banquete de homenagem vai correr a notícia

por toda a Moscovo: que o Ivan voltou e foi da estação direta-

mente para a tua casa.

Nikolai Andréevitch brandiu o telegrama em frente da cara

dela:

16

Vassili Grossman

– Mas não compreendes o que significa o Ivan para a minha

alma?

Estava irritado com a mulher: o disparate que Maria

Pávlovna acabava de lhe dizer já surgira na mente dele ainda

antes de ela o ter pronunciado. Não era a primeira vez que tal

acontecia. Nikolai Andréevitch explodia ao ver nela as suas

próprias fraquezas, mas não compreendia que se indignava

com as imperfeições dele, e não dela. O rancor nas discussões

com a mulher também lhe desaparecia muito fácil e rapida-

mente porque gostava de si próprio: ao perdoar à mulher, era

a si que perdoava.

Neste momento, obcecava -o também o pensamento estúpido

sobre o cinquentenário de Sokolov. Então, como a notícia do

regresso do primo o comoveu e porque a sua própria vida, cheia

de verdade e não verdade, se levantou perante ele, sentiu vergo-

nha por ter pena de faltar ao jantar de gala e não beber vodca do

belo jarro em casa dos Sokolov.

Teve vergonha da miséria das suas considerações: a ideia de que

seria preciso atarefar -se com o registo de Ivan, de que o regresso

do primo seria conhecido por toda a Moscovo e que este aconte-

cimento o afetaria nas eleições para a Academia, pois, bem, tam-

bém a ele tinha passado pela cabeça esta ideia…

Entretanto, Maria Pávlovna continuava a atormentar Nikolai

Andréevitch, exprimindo em voz alta, transformando numa evi-

dência diurna os pensamentos dele, ocasionais e ilusórios, ou

seja, que não chegavam a tornar -se reais.

– Que estranha tu és, mulher – disse ele –, parece que

seria mais agradável receber este telegrama se não estivesses

em casa.

Estas palavras eram ofensivas, mas Maria Pávlovna sabia que

o marido iria abraçá -la a seguir e dizer: «Macha, Macha, teremos

esta alegria juntos. Com quem mais senão contigo?»

17

Tudo Passa

E foi, realmente, o que ele fez. E ela ficou parada com uma

expressão paciente e desagradável que significava: «As tuas pala-

vras carinhosas não me dão prazer nenhum, mas aguento.»

Logo que os seus olhos se cruzaram, contudo, o sentimento

de amor varreu todas aquelas maldades.

Viviam juntos, sem separações, havia vinte e oito anos – é difí-

cil compreender a essência das relações entre pessoas que vivem

juntas há quase um terço de século.

Agora ela, de cabelo branco, ia à janela, olhava para ele, de

cabelo branco, a entrar no automóvel. Mas em tempos, em jovens,

costumavam almoçar no pobre refeitório da rua Brônnaia.

– Nikolai – disse Maria Pávlovna baixinho –, o Ivan nunca viu

o nosso Vália. Quando foi preso, Vália ainda não tinha nascido.

E agora que Ivan está de volta, Vália está no túmulo há já oito

anos.

E esta ideia deixou -a abalada.