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teologia vida para Volume II - nº 2 - Julho - Dezembro 2006 ISSN 1808-8880

VD Teologia p Vida v2 n2

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Volume II - nº 2 - Julho - Dezembro 2006

ISSN 1808-8880

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TEOLOGIA PAR A VIDA – VOLUME II – NÚMER O 26 |

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TEOLOGIAVIDAPARA

v o l u m e I I – n ú m e r o 2

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Teologia para Vida – Volume ii – número 22 |Junta de educação teológica: Pb. Francisco solano Portela neto (Presidente), rev. Paulo roberto batista anglada (vice-Presidente), Pb. gilson alberto novaes (secretário), Pb. eli dos santos Medeiros (tesoureiro), rev. JaiMe Marcelino de Jesus, rev. ashbel siMonton redua, rev. Wilson eMerick de souza.

Junta Regional de educação teológica: Rev. Daniel Fogaça (Presidente), Rev. Pb. Roberto Tambelini (Vice-presidente), Pb. Ronaldo Brisola (Secretário), Rev. Nelson Duilio Bordini Marino.

diRetoRia da Fundação educacional Rev. José Manoel da conceição: Pb. dante venturini de barros (Presidente), rev. roberto brasileiro silva (vice-Presidente), rev. Fernando de alMeida (secretário), Pb. valdnei alves de oliveira (tesoureiro).

congRegação do seMináRio teológico PResbiteRiano Rev. José Manoel da conceição: Rev. Ageu Cirilo de Magalhães Jr. (Diretor), Rev. Onezio Figueiredo (Capelão), Rev. Leandro Antônio de Lima, Rev. George Alberto Canêlhas, Rev. Alderi Souza de Matos, Rev. Dario de Araújo Cardoso, Rev. Cláudio Antônio Batista Marra, Maestro Parcival Módolo, Rev. Elieser Fer-reira, Rev. Gildásio Jesus Barbosa dos Reis, Sem. Francisco Alexandre Ferreira Nascimento.

conselho editoRial: rev. ageu cirilo de Magalhães Jr., rev. leandro antônio de liMa, rev. george alberto canêlhas, rev. alderi souza de Matos, rev. dario de araúJo cardoso, rev. cláudio antônio batista Marra, Maestro Parcival Módolo.

editoR: Rev. Cláudio Antônio Batista Marra

veRsão PaRa o inglês: Alceu Lourenço de Souza Junior.

Revisão: Alceu Lourenço de Souza Junior.

caPa e PRoJeto gRáFico: Idéia Dois Design.

gRavuRa da caPa: Entretien de Robert Olivétan avec le jeune Calvin [Robert Olivetan em conversa com o jovem Calvino] de H. Van Muyden. As outras gravuras da obra são do mesmo artista.

Teologia Para Vida / Seminário Teológico Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição. — São Paulo: Vol. 2, n. 2 (jul./dez.2009) — Seminário JMC, 2009 —

SemestraliSSn 1808-88801. Teologia Reformada. 2. igreja Presbiteriana do Brasil – História. 3. in-terpretação bíblica. i. Seminário Teológico Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição.

Cdd 21 ed. – 230.0462285.181

endeReço PaRa coRResPondência

Seminário Teológico Presbiteriano Rev. José Manoel da ConceiçãoRua Pascal, 1165, Campo Belo, São Paulo, sP, ceP 04616-004Telefone: 5543-3534 – Fax: 5542-5676Site: www.seminariojmc.brE-mail: [email protected]

Os artigos da revista são escritos pelos membros do Conselho Editorial, professores e alunos do Seminário. Ex-professores e ex-alunos poderão escrever, quando convidados pelo Conselho.

A revista Teologia para Vida é uma publicação semestral do Seminário Teológico Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição. Permite-se a reprodução desde que citados fonte e autor.

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S u m á r i o

E d i t o r i a l .................................................................................................................... 05

a r t i g o s

Salmo 130 – Um testemunho de esperança em Yahweh (Parte i) Rev. Dario de Araújo Cardoso ........................................................................... 09

Calvino e Aquino (Parte final) Rev. Donizete Rodrigues Ladeia ....................................................................... 29

As fontes do coral luterano Maestro Parcival Módolo ..................................................................................49

Relatório pastoral do Rev. George W. Chamberlain(Edição diplomática) Rev. Wilson Santana Silva ............ .................................................................... 73

Anotações sobre a hermenêutica de Calvino (Parte i) Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa .................. ........................................ 87

Uma filosofia bíblica de ministério Rev. Gildásio Jesus Barbosa dos Reis .......................................................... 123

r E s E n h a

Conselheiro capaz Fernando Jorge Maia Abraão ........................................................................ 143

a r t i g o s E s E r m õ E s d o s a l u n o s

O compromisso social e a Palavra de deus Lic. César Augusto Paiva ................................................................................. 151

As leis alimentares e a nossa santificação – Levítico 11 Lic. Alceu Lourenço de Souza Jr. ................................................................... 165

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Teologia para Vida – Volume ii – número 24 |

Esta edição só foi possível pela visão e apoio de:

Fundação Educacional Rev. José Manoel da ConceiçãoIgreja Presbiteriana da Vila Maria - SP

Igreja Presbiteriana de Osasco - SPIgreja Presbiteriana de São Bernardo do Campo - SP

Igreja Presbiteriana do Jardim Ipê - SPIgreja Presbiteriana do Centenário - SP

Igreja Presbiteriana de Santo Amaro - SPIgreja Presbiteriana da Lapa - SP

Igreja Presbiteriana de Brasilândia - SPIgreja Presbiteriana de Icaraí-Niterói - RJIgreja Presbiteriana de Casa Verde - SP

Igreja Presbiteriana de Vila Guarani - SPIgreja Presbiteriana Betel - SP

Igreja Presbiteriana do Parque São Domingos - SP

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e d i T o r i a l

a Publicação deste núMero significa a superação de dificuldades e uma importante vitória. A Revista Teologia para Vida passou por um recesso de produção devido a questões administrativas, mas retorna e retoma temas de interesse para a formação e edificação de seus leitores. Agradecemos aos professores que, além de inúmeras tarefas, dedicam-se também a contribuir aqui. Seu esforço explica, sob o prisma humano, a posição de destaque ocupada pelo Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição na IPB atualmente.

O estudo de Salmo 130 – Um testemunho de esperança em Yahweh (Rev. Dario de Araújo Cardoso) nos conduzirá na con-templação dos ricos tesouros desse salmo, que fala tanto de nossa miséria quanto de nossa esperança e redenção. Pastores e mestres da Palavra serão ajudados, porque o estudo exegético pode nos auxiliar no levantamento de temas concernentes ao texto e sua interpretação, tanto no aspecto acadêmico quanto pastoral.

O Rev. Donizete Rodrigues Ladeia sustenta que a fé é o ponto de contato entre Calvino e Aquino, os dois defenderam o cristianismo conforme compreendido por meio das Escrituras Sagradas em suas respectivas épocas. Mas os diferentes contextos intelectuais em que viveram, a escolástica para Aquino e o humanismo para Calvino, influenciaram grandemente seus métodos de interpretação bíblica, que foram determinantes para a história da igreja cristã. Nesta parte final do artigo, o autor apresenta a avaliação dos princípios da hermenêutica dos dois importantes teólogos.

O Maestro Parcival Módolo nos instrui com seu artigo As fontes do coral luterano. Lutero deu grande atenção à música sacra como meio de adoração a Deus e doutrinação dos fiéis e aqui o Maestro Parcival analisa as fontes utilizadas por aquele Reformador. Este trabalho será concluído com As fontes do salmo calvinista (próxima edição).

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Teologia para Vida – Volume ii – número 26 |

Na Edição Diplomática, o Rev. Wilson Santana Silva traz um retrato vivo dos tempos pioneiros com o relatório pastoral do Rev. George Whitehill Chamberlain, parte da “Coleção Carvalhosa”, conjunto de documentos primários reunidos e compilados pelo Rev. Modesto Perestrello Barros de Carvalhosa e encontrados no Arquivo Histórico da IPB.

O Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa inicia nesta edição uma série que exporá os princípios e a importância do método de interpretação bíblica desenvolvido por João Calvino. Nesta primeira parte de Anotações sobre a Hermenêutica de Calvino Compreensão a serviço da piedade e do ensino, o autor traça um breve panorama biográfico do reformador, destacando sua formação intelectual e sua relação com os valores humanistas que floresciam em sua época.

Em Uma Filosofia Bíblica de Ministério – Pilares inegociáveis do ministério reformado, o Rev. Gildásio Jesus Barbosa dos Reis defende a necessidade de uma filosofia ministerial segundo as Escrituras, fundamentada, portanto, numa correta compreensão de Deus, do homem, da Palavra de Deus, da igreja e da liderança eclesiástica.

A edição se encerra com a excelente resenha de O Conselheiro Capaz, de Jay Adams, preparada por Fernando Jorge Maia Abraão Artigos e com sermões O Compromisso Social e a Palavra de Deus, de César Augusto Paiva e As leis alimentares e a nossa santificação, de Alceu Lourenço de Souza Jr.

Boa reflexão!

Rev. Cláudio Antônio Batista MarraEditor da Revista Teologia Para Vida

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arTigoS

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rEv. dario dE araújo Cardoso

Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição.

Mestre em Teologia e Exegese do Antigo Testamento pelo Centro de Pós-graduação Andrew Jumper.

Pastor da Igreja Presbiteriana da Casa Verde.

D e p a r t a m e n t o d e T e o l o g i ab í b l i c a e e x e g é t i c a

salmo 130 – um tEstEmunho

dE EspErança Em yahwEh

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Teologia para Vida – Volume ii – número 210 |

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R e s u m oO Salmo 130 tem importante presença na história do cristia-nismo. Homens como Lutero e John Wesley foram tocados por seu ensino e deram testemunho de seu valor. O presente estudo nos conduzirá na contemplação dos ricos tesouros desse salmo, que fala tanto de nossa miséria quanto de nossa esperança e redenção. Poderemos também observar como o estudo exegético pode nos auxiliar no levantamento de temas concernentes ao texto e sua interpretação, tanto no aspecto acadêmico quanto pastoral. Ferramentas de interpretação como o estudo dos gêneros literários, a pesquisa estrutural e a pesquisa de termos-chaves serão utilizadas sob a perspectiva exegética reformada e corroboradas pela citação de diversos comentaristas bíblicos da atualidade.

P a l a v r a s - c h a v eSalmos Penitenciais; Confissão; Interpretação Bíblica; Crítica Literária; Crítica da Redação.

A b s t r a c tThe Psalm 130 has an important presence in the history of the Christianity. Men as Luther and John Wesley were touched by its teaching and gave testimony of its value. The present study will drive us in the contemplation of the rich treasures of that psalm, that speaks as much of our poverty as about our hope and redemption. We will also be able to observe how the exegetical study can help us in stressing the themes

salmo 130 – um tEstEmunho

dE EspErança Em yahwEh

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regarding to the text and its interpretation, in the academic aspects as much as in the pastoral ones. Interpretation tools like the study of the literary genre, the structural research and the research of key-words will be used under the reformed exegetical perspective and corroborated by several biblical commentators’ works.

K e y w o r d sPenitential psalms; Confession; Biblical interpretation; Lite-rary criticism; Redaction criticism.

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cântico dos degRaus

Das profundezas clamo a ti, YahwehMeu senhor escuta a minha voz[Sejam] Atentos os teus ouvidos às minhas súplicasSe iniqüidades observares Yah[weh]Meu senhor, quem permanecerá?Pois contigo [é] o perdão a fim de que temam Aguardo Yahweh, minha alma aguardaEu espero pela sua palavraA minha alma pelo meu senhor mais do que os guardas pela manhã,do que os guardas pela manhãEspera, Israel, por Yahwehpois com Yahweh [é] a misericórdia e com ele a muita redençãoE ele redime a Israel de todas as suas iniqüidades

intRodução

A história do Salmo 130 nos oferece alguns fatos interessantes e dignos de nota. O De profundis, como ficou conhecido devido à sua expressão inicial na versão latina, é um dos 15 hamma´aloth, ou cânticos dos degraus. Consta na liturgia católico-romana como o sexto dos sete salmos penitenciais (6, 32, 38, 51, 102, 130, 143).1 Também era grandemente valorizado por Lutero. Quando ques-tionado sobre os melhores salmos, o reformador o citou como um dos salmos paulinos2 e o chamava de “um digno mestre e doutor

Salmo 130 – um TeSTemunho de eSperança em yahweh

1 DAHOOD, Mitchell. Psalms:101-150. New York: Doubleday, 1970, v. III, p. 234. Catholic Encyclo-pedia, “Psalms” < http://www.newadvent.org/cathen/12533a.htm> acessado em 29/11/2004. MOLL, Carl Bernhard. The Psalms. In: LANGE, John Peter, SCHRÖEDER, Wilhem Julius (eds.). A commentary on the Holy Scriptures: critical, doctrinal and homiletical, with special reference to ministers and students. Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1971, p. 624. SCHÖKEL, Luís Alonso. Salmos: tradução, introdução e comentário. São Paulo: Paulus, 1998, v. II, p. 1512.

2 Os outros salmos chamados de paulinos por Lutero são o 32, o 51 e o 143. cf. LOCKYER, Herbert. Psalms: a devotional commentary. Grand Rapids: Kregel Publications, 1992, p. 667. PEROWNE, J. J. Stewart. Commentary on the Psalms. Grand Rapids: Kregel Publications, 1989, v. II, p. 402.

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das Escrituras”, querendo dizer com isso que o salmo ensina a ver-dade básica do evangelho; encontra-se “nele a expressão da graça imerecida e perdão que são o coração do evangelho”.3 John Wesley ouviu o cântico desse salmo na tarde do dia 24 de maio de 1738 na Catedral de Saint Paul e “o salmo certamente foi um dos fatores que direcionaram o seu coração para receber a certeza da salvação pela fé. Na noite daquele dia ele visitou um encontro de santos numa sala da Rua Aldersgate, onde seu coração foi estranhamente aquecido”.4

Estudar o Salmo 130 fará com que adentremos esse maravilhoso mundo da graça e do perdão, e nos ensinará a buscar e confiar em Deus tendo em vista nossa miserável condição de seres corrompidos e pecadores.

Começaremos nosso estudo atentando para o aspecto literário e estrutural, buscando definir, pela sua forma, o melhor modo de abordarmos a mensagem do salmo. Feito isso, passaremos ao estudo do conteúdo desse salmo procurando entendê-lo em suas partes para, finalmente, compreendê-lo como um todo.

1. classiFicação e estRutuRa

No estudo do aspecto formal, nossa primeira tarefa é classificar o salmo quanto ao seu gênero literário. Seguindo Gunkel,5 Mays o classifica como uma oração individual por ajuda.6 Westermann se refere a ele como um salmo de lamento individual.7 Schökel o define como uma súplica individual que se abre à participação coletiva.8

Leslie Allen, porém, levanta uma questão digna de nota; ele afir-ma que há duas grandes dificuldades para classificar esse salmo: a

3 MILLER, Patrick D.. “Psalm 130” em: Interpretation 33.02, Abr. 1979, p. 176 <http://63.136.1.23/pls/ eli/eli_bg.superframe?pid=n0020-9643_033_02_0176&artid=ATLA0000770843> acessado em 18/11/2004.

4 LOCKYER, op. cit., p. 667; MAYS, James L.. Psalms interpretation: A Bible commentary for teaching and preaching. Louisville: John Knox Press, 1994, p. 405.

5 GUNKEL, Hermann; BEGRICH, Joachim. Introduction to Psalms: the genres of the religious lyric of Israel. Macon: Mercer University Press, 1998, p. 140.

6 MAYS, op. cit., p. 405. 7 WESTERMANN, Claus. Psalms: the structure, content and message. Minneapolis: Augsburg

Press, 1980, p. 53. 8 SCHÖKEL, op. cit., p. 1512.

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| 15Salmo 130 – um TeSTemunho de eSperança em yahweh

ambivalência temporal dos verbos no perfeito nos versos 1b9 e 5; e o papel dos versos 7 e 8.10 No primeiro caso, sua argumentação é que se interpretar-se ytiar”q. (qera’thi) e ytil.x”wh (hohalthi), dos versos 1b e 5, no passado (“eu clamei”; “eu esperei”), eles pertencerão a uma ação de graças, como no Salmo 66.17 e Jonas 2.2 para o primeiro verbo, e Salmo 40.1 para o segundo. Dessa forma, o v.1b introduziria a recordação da queixa feita previamente, citada nos versos 2-4. Os versos 5 e 6 seriam o testemunho dirigido à comunidade religiosa. E os versos 7 e 8 podem ser interpretados como uma exortação, associada à ação de graças, para fortalecer a fé da comunidade.11 Deve-se notar, contudo, a ausência da referência à libertação de Deus que é característica dos salmos de ação de graças.

O próprio Allen, embora considere tal classificação uma possibi-lidade, argumenta que há também diversos elementos que apontam para a classificação do salmo como um lamento, pois os verbos acima também podem ser interpretados no presente.12 Perowne argumen-ta que a expressão marca uma longa experiência continuada até o presente momento.13 Barnes assim descreve o salmo:

Não há necessidade, afinal de contas, de supor que ele se refere à

nação como tal. Pode ser a linguagem de um indivíduo, lamentan-

do sobre seus pecados e suplicando por misericórdia, expressando

profunda convicção de pecado e uma humilde confiança em Deus

como a única fonte de esperança para um convicto, condenado e

penitente pecador. Como tal, ele representa o que tem ocorrido em

milhares de casos quando pecadores têm sido trazidos à convicção

de pecados, e têm clamado por misericórdia.14

Conforme descritos por Westermann e Brueggmann, os salmos de lamento têm as seguintes características básicas, que dependendo da situação estarão mais em evidência ou serão omitidas:

9 Para numeração dos versos e cláusulas seguiremos o texto da BHS. 10 ALLEN, Leslie C. Psalms: 101 - 150. Waco: Word Books Publishers, 1983, p. 192. 11 Cf. ibid., p. 192. 12 Cf. ibid., p. 193. 13 PEROWNE, op. cit., p. 403. 14 BARNES, Albert. Notes on the Old Testament: Psalms. Grand Rapids: BakerBooks, 1870, 1998

reimp., vol. III, p. 258.

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- Pedido:

- Endereçamento ou invocação. Um vocativo dirigido a Yahweh.

- Queixa. A exposição da situação desesperadora.

- Petição. Um pedido para que Deus aja decisivamente.

- Motivações. Apresenta as razões porque Deus deve agir.

- “Imprecação”. Uma afirmação de que Deus, em sua justiça,

punirá o ímpio.

- Louvor:

- Garantia de ser ouvido. Afirmação de certeza de ter sido ouvido.

- Pagamento de votos. O compromisso de servir a Deus conforme

prometido.

- Doxologia e louvor. O reconhecimento de que Deus é fiel e

salvador15

Se tomarmos os versos 1b e 2 como uma unidade, como veremos adiante ser a indicação da estrutura do salmo, então teremos que considerar a aflição como algo presente, tornando-se assim uma in-vocação e petição introdutória, características dos lamentos.16

Encontramos paralelos desse tipo de construção em:

Salmo 17.6 – Eu te invoco [perfeito], ó Deus, pois tu me respon-des [imperfeito]; inclina-me [imperativo] os ouvidos e acode [imperativo] às minhas palavras.

Salmo 141.1 – Senhor, a ti clamo [perfeito], dá-te pressa em me acudir [imperativo].

Entretanto, neste salmo, ao invés de um pedido por ajuda, te-mos, implícitos, uma confissão de pecados e um pedido de perdão (versos 3-4). Sua situação desesperadora pode ser percebida pela expressão ~yqim;[]m;mi (“das profundezas”) e pela questão apresentada: “Se observares, Yahweh, iniqüidades, quem, Senhor, subsistirá?”. Essa questão também deve ser considerada, juntamente com o v. 4, como a argumentação do salmista para que Deus o atenda.

15 Cf. WESTERMANN, op. cit., p. 60-61; BRUEGGMANN, Walter. The message of the Psalms: a theological commentary. Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1984, p. 54-56.

16 Cf. Westermann, ibid., p. 193. BRUEGGMANN, ibid., p. 104.

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| 17Salmo 130 – um TeSTemunho de eSperança em yahweh

Os versos 5 e 6 formam a expressão de confiança em Yahweh. O uso da terceira pessoa indica que não se trata mais da oração, mas de uma proclamação feita como um testemunho de fé.17

Chega-se, então, aos versos 7 e 8 que são interpretados de várias maneiras. O problema central é que suas expressões estão mais de acordo com um cântico coletivo do que individual. Kraus sugere ser o acréscimo de uma exortação sacerdotal à comunidade a quem o sal-mista está falando.18 Westermann, seguindo Mowinckel, vê apenas o louvor à graça redentora de Yahweh como original, e considera a expressão “espere Israel em Yahweh” e o verso 8 como uma aplicação posterior do salmo à comunidade, adaptando-o para fazer parte da coleção dos Salmos 120-134.19 Cornelius Houk afirma a natureza redacional dos versos 7 e 8 demonstrando através de análise esta-tística diferenças entre os versos 1-6 e 7-8. Estes últimos possuem mais semelhança com o Salmo 131.1-3 do que com os versos 1-6. Assim, sua sugestão é que os versos 7 e 8 sejam uma adição feita pelo autor do Salmo 131.20

Todas essas avaliações têm como quadro de referência os pressu-postos da crítica da redação e a tentativa de estabelecer qual teria sido a redação original do salmo. Do ponto de vista gramático-histórico, bem como da crítica dos gêneros literários, tal pesquisa não é relevante uma vez que nossa preocupação é o estudo do salmo tal como ele foi registrado no saltério e em função da sua utilidade para a comunidade de Israel. Ainda assim, faz-se necessária uma discussão sobre a unidade do salmo, visto que isso influenciará em sua classificação e que há diversos fatores que atestam a unidade do Salmo 130.

Dahood aponta para a unidade do salmo quando argumenta que nos versos 1-4 o salmista se dirige a Deus, e em 5-8, a Israel.21

17 Cf. DAHOOD, op. cit., p. 235. 18 KRAUS, H.-J., Psalmen, p. 1048, 1050-51, apud: ALLEN, op. cit., p. 193. 19 WESTERMANN, C., “Psalm 130” in: Herr, tue meine Lippen auf, v. 5, p. 609, apud: ALLEN, ibid.,

p. 193. 20 HOUK, Cornelius B., “Syllables and Psalms: a statistical linguistic analysis”. Journal for the study

of the Old Testament, 14.01 [1979], p. 58. < http://63.136.1.23/pls/eli/eli_bg.superframe?PID= n0309-0892_014_01_0055&artid=ATLA0000775689 >

21 Cf. DAHOOD, op. cit., p. 235.

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Dessa forma, as referências a Israel nos versos 7 e 8 não poderiam ser consideradas acréscimos, mas fazem parte da mensagem que o salmista quis registrar.

Um argumento mais relevante nos é oferecido por Anthony R. Ceresko, quando aponta um quiasmo ABBA formado pelos versos 5-7:22

.ytil.x/h /rb;d.liw. e pela sua palavra eu esperarei

rq,bol; ~yrim.Vomi minha alma pelo meu Senhoryn;doal; yvip.n; mais do que os guardas pela manhã

.rq,bol; ~yrim.vo guardas pela manhã

hw;hy.Äla, laer;f.yi lxey; Espera Israel por Yahweh

Onde o verbo lxy é usado na primeira e última linhas, e nas linhas centrais a expressão figurativa rq,bol; ~yrim.v. Que não deve ser considerada uma ditografia, mas o centro de um quiasmo formado pelos versos 3-8. Onde aparecem repetições nos versos 3,8 (tAnwO[, “iniqüidades”), e em 4,7 (~[iÄyki, “pois com”).23

Dessa forma, temos os versos 1 e 2 como uma introdução a um quiasmo formado pelos versos 3 a 8. E, assim, temos forte base estru-tural para defender os versos 7 e 8 como integrantes da composição original do salmo.24 Na estrutura dos salmos de lamento, o v. 7 serve como a afirmação da certeza de ser ouvido, e o v. 8 como doxologia.

Do exposto acima, podemos descrever a estrutura do salmo sob três pontos de vista:25

a) temático. Temos quatro grupos de linhas, dispostas em pares, intimamente relacionadas: 1b-2, 3-4, 5-6, 7-8;

22 CERESKO. Anthony R.. “The chiastic word pattern in hebrew”. Catholic biblical quarterly, 38.03 [1976], p. 308. < http://63.136.1.23/pls/eli/eli_bg.superframe?pid=n0008-7912_038_03_ 0303&artid=ATLA0000756766 > acessado em 1/12/2004.

23 Cf. ALLEN, op. cit., p. 194. 24 ALDEN, Robert L. “Chiastic Psalms III: a study in the mechanics of semitic poetry in Psalms

101-150”. Journal of the Evangelical Theological Society, 21.03 [1978], p. 210. < http://63.136.1.23/pls/eli/ eli_bg.superframe?PID=n0360-8808_021_03_cov1> acessado em 18/11/2004.

25 Cf. ALLEN, ibid., p. 194-195.

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| 19Salmo 130 – um TeSTemunho de eSperança em yahweh

b) estrutural. Nos versos 1b-2 temos o pedido do salmista ende-reçado a Yahweh e um quiasmo descrevendo sua confiança e esperança na resposta a este pedido nos versos 3-8.

c) interlocutório. Nos versos 1b-4 o salmista fala com Yahweh e nos versos 5-8 ao povo sobre Deus.

2. exPosição

Passemos ao estudo do conteúdo do Salmo 130. Seguiremos, para isso, o enfoque temático.

2.1 O clamor (v. 1b-2)2.1.1 O endereçamentoO salmo começa com uma sintética, mas profunda nota de

angústia: ~yqim;[]m;m (“das profundezas”). A preposição !mi iindica o “local”, a origem ou procedência do clamor do salmista. A colocação enfática serve como indicação da angústia sofrida pelo escritor.26 Não sabemos quais eram os seus sofrimentos, mas seu sentimento era de estar lançado às profundezas.

A palavra ~yqim;[]m; é rara e ocorre apenas 5 vezes no Texto He-braico.27 Apenas aqui ela não acompanha um substantivo, forman-do um construto e servindo como locução adjetiva. Vejamos essas ocorrências.

Em Isaías 51.10, ela acompanha o substantivo “mar” e designa o seu fundo, numa referência ao caminho que Deus fez para o povo de Israel através do Mar Vermelho. É importante lembrar que foi ali que pereceu o exército de faraó que perseguia o povo (cf. Êx 14.28-29).

Em Ezequiel 27.34, ela faz parte da lamentação profética sobre Tiro e acompanha o substantivo “águas” e implica o perecimento dos negócios e da multidão de Tiro.

Nos salmos, ela aparece apenas nos versos 2 e 14 do Salmo 69,28 também uma lamentação e também acompanhando o substantivo

26 Cf. SCHÖKEL, op. cit., p. 1513. 27 Salmo 69.2,14; Salmo 130.1; Isaías 51.10 e Ezequiel 27.34. 28 Almeida Revista e Atualizada.

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“águas”. Mas ali, como no Salmo 130, não são os ímpios e perversos egípcios ou fenícios que estão nas profundezas, mas o crente que clama a Deus. Ali, a expressão “profundezas das águas” indica a condição de grande dificuldade e aflição em que o salmista se en-contrava por causa da perseguição dos seus inimigos. No Salmo 69, o poeta pede para que Deus o tire das profundezas, ou seja, não o deixe sucumbir diante de seus inimigos. Eles eram numerosos e po-derosos, e o cercavam por todos os lados como se estivesse submerso em profundas águas. Era certamente uma situação desesperadora da qual somente o Senhor poderia livrá-lo.

Mesmo aparecendo isolada no Salmo 130, podemos atribuir à expressão essa mesma descrição de sofrimento, de estar sendo en-coberto pelas águas do mar. Certamente uma tremenda angústia, apropriada para os que se opõem a Deus, mas insuportável para o fiel. Por isso o seu clamor e a desnecessidade de uma mais acurada descrição da angústia enfrentada.

A profundeza não é para os hebreus um fator positivo como para

nós... Os hebreus relacionavam-na com o inacessível, incompreensí-

vel, inescrutável, com as profundezas do oceano, da terra, do xeol. O

salmo parte de situação pouco menos que desesperada. Referem-na

ao mar Is 51.10; Ez 27.34 e Sl 69.3,15. O salmo não menciona a

água; contudo, devemos imaginar o orante em abismo sem saída:

só sua voz pode sair e elevar-se.29

Contudo, é preciso reparar na distinção, sugerida por Allen, de que o que está na mente do salmista é mais a realidade de seus problemas do que o sentimento de desespero que eles poderiam causar. Embora, à primeira vista isto não pareça fazer diferença, o estudo dos versos 5 e 6 adiante, sugere que mesmo estando completamente carente, o salmista não está desesperado. Allen escreve: “Para o leitor moderno ‘profundezas’ sugere desespero; em seu ambiente cultural o termo evoca o mar de problemas em

29 SCHÖKEL, op. cit., 1514.

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que o orador está engolfado, é uma situação mortal de separação do Deus vivo”.30

Levanta-se, então, a voz do salmista dizendo hwhy $ytiar”q (“clamo a ti, Yahweh”). Temos aqui uma clara manifestação da atividade pactual. A pressão sofrida leva o salmista a buscar o auxílio do Deus com quem tem uma aliança. Sua angústia o impulsiona a buscar o auxílio do seu Senhor (v. 2), o que implica a pressuposição de que este agiria em seu favor. A invocação é clara, simples e direta.

2.1.2 A petiçãoTemos uma das mais básicas petições: yliAqb. h[‘m.vi (“escuta a

minha voz”, v. 2). O salmista deseja ser ouvido. Quer que Yahweh disponha seus ouvidos para lhe escutar o clamor.31 Sua condição de lançado às profundezas tem obstruído sua relação pactual. A tremenda distância entre as moradas do Altíssimo e as profundezas do salmista tem causado enorme angústia ao salmista, a terrível sensação de não estar sendo ouvido. O salmista não pede por cura ou livramento dos inimigos, por vitória nas batalhas ou sustento diário. Embora pudesse necessitar de uma ou de todas essas coisas, ser ouvido pelo seu Senhor, e assim, ter restabelecida a comunicação com ele, é tudo o que o escritor requer para alívio da sua angústia e elevação da sua alma.

A expressão tAbVuq; ̂ yn<z>a’ (“teus ouvidos atentos”) só é encontra-da aqui e no contexto da dedicação do templo. No final dela em 2 Crônicas 6.40, Salomão diz: “Agora, pois, ó meu Deus, estejam os teus olhos abertos, e os teus ouvidos atentos à oração que se fizer deste lugar”. E na resposta dada em seguida por Deus em 2 Crônicas 7.15: “Estarão abertos os meus olhos e atentos os meus ouvidos à oração que se fizer neste lugar”.32

Mas o que dava ao salmista a sensação de não estar sendo ou-vido? Qual era o problema que afligia o salmista? Os versos 3 e 4 nos dão um indício.

30 ALLEN, op. cit., p. 195. 31 Cf. BARNES, op. cit., p. 258-259. 32 Cf. ibid., 1514.

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2.2. Os motivos (versos 3-4)Após fazer seu pedido, o salmista passa a argumentar em favor

do atendimento de duas formas: uma pergunta e uma afirmação dela decorrente.

2.2.1 Uma pergunta com óbvia respostaTemos no verso 3 aquilo que podemos chamar de pergunta

retórica:

dmo[]y: ymi yn”doa] Hy”-rm’v.Ti tAnwO[]-~ai: “Se iniqüidades observares

Yah, meu senhor, quem permanecerá?”

A posição no início e a repetição no v. 8, o espelho no quiasmo, coloca em evidência a palavra tAnwO[ (“iniqüidades”).

Sobre esse termo Henry McKeasting escreve:

[...] ‘awonth em hebraico, é [uma palavra] um pouco ambígua. Nossas

versões padrão inglesas traduzem nesse ponto por ‘iniqüidades’, mas

há numerosos textos em que a palavra exige a tradução ‘punições’.

Isto quer dizer que ela pode se referir não somente ao pecado, mas

aos sofrimentos que são o resultado do pecado. Não é impossível

que algum sentido dessa natureza tenha estado na mente do escritor

quando ele a usou em Sl 130.33

Embora haja essa possibilidade em relação ao verso 8, no v. 3 a palavra tem, mais naturalmente, o sentido de pecados. Colocado como argumento fica ainda mais claro o que aflige o salmista. O relacionamento do homem com Yahweh se quebra quando aquele peca e se desvia do caminho da justiça. Sobejamente vemos nos salmos que Deus abençoa e socorre o justo e pune com destruição o pecador (p. ex., Salmo 1).

33 MCKEATING, Henry, “Divine Forgiveness in the Psalms”. Scottish Journal of Theology, vol. 18, n. 1 Março 1975, p. 73-74. E.g., em Gênesis 4.23, a Edição Almeida Revista e Atualizada traduz o termo por “punição”.

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| 23Salmo 130 – um TeSTemunho de eSperança em yahweh

Seria simples assim, se o salmista não nos colocasse diante de sua questão: que justo há que não peque? Quem é o homem que pode apresentar-se isento de iniqüidades diante do Senhor? Que homem tem cumprido com plenitude sua parte na aliança com Yahweh? E a resposta sempre será: ninguém, nenhum.34

[...] as temerosas profundezas de que o clamor sobe a Deus não são

a ameaça de forças externas ou hostis, mas a mental, emocional, e

espiritual noite escura da alma que encontra-se mergulhada no pecado

e na culpa, o relacionamento quebrado com Deus e seu próximo, e

sua falta de capacidade para libertar-se dessa grave situação.35

Aqui, Deus não é o protetor como no Salmo 121, mas o guardião atento a qualquer infração.36 Barnes escreve: “A idéia é: se Deus usasse seu olhar escrutinador, se ele tentasse ver tudo o que ele pode ver; se ele não permitisse que nada escapasse à sua observação, se ele lidasse conosco exatamente como nós somos...”.37 Perowne sugere o sentido de guardar na memória com o objetivo de punir.38 Jó, em sua luta por justiça, se deparou com essa questão. Em Jó 13.23-28 lemos:

Quantas culpas e pecados tenho eu? Notifica-me a minha trans-

gressão e o meu pecado. Por que escondes o rosto e me tens por teu

inimigo? Queres aterrorizar uma folha arrebatada pelo vento? E

perseguirás a palha seca? Pois decretas contra mim coisas amargas

e me atribuis as culpas da minha mocidade. Também pões os meus

pés no tronco, observas todos os meus caminhos e traças limites à

planta dos meus pés, apesar de eu ser como uma coisa podre que se

consome e como a roupa que é comida da traça.

Pouco antes (Jó 7.19-21) ele havia dito:

Até quando não apartarás de mim a tua vista? Até quando não me

darás tempo de engolir a minha saliva? Se pequei, que mal te fiz a

34 Cf. ibid., 1515. 35 MILLER, op. cit., p. 177. 36 Cf. ibid., p. 1513. 37 BARNES, op. cit., p. 259.

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ti, ó Espreitador dos homens? Por que fizeste de mim um alvo para

ti, para que a mim mesmo me seja pesado? Por que não perdoas a

minha transgressão e não tiras a minha iniqüidade? Pois agora me

deitarei no pó; e, se me buscas, já não serei.

Se estas fossem as exigências, o salmista sabe que não seria

ouvido, sua situação estaria além de toda esperança.39 “Em seu relacionamento [pactual] ele tem se mostrado um servo inútil e o ônus de mantê-lo pode recair apenas sobre o Senhor. Seu sofrimento presente, como ocorre freqüentemente no AT, é reconhecido ser devido ao seu mau procedimento pessoal.”40

O salmista sabe que não teria o direito de ser ouvido. Mas seu argumento é: ninguém teria. “O erro é entender o Senhor como um deus cujo principal trato com os seres humanos é procurar por iniqüidades. Se este fosse o caso, não haveria esperança para nin-guém. Mesmo aqueles que são reconhecidos como justos por causa da fé e fidelidade seriam pegos”.41

“O orador reconhece que ele é desqualificado para se aproximar do trono. Isto não é contestado, mas que a desqualificação é equi-parada e superada pela afirmação do verso 4”.42

Ficaria Deus alienado de todos os seus servos? Yahweh rejeitaria todo o seu povo? É baseado nessas impossibilidades que o salmista, mesmo tendo falhado em guardar a aliança, se anima a buscar a presença de Yahweh. “O salmista ousa lembrar a Deus que ele deseja não a morte de um pecador, mas a restauração à vida (cf. Ez 18.32; 33.11) – para a sua maior glória”.43 Lemos algo muito semelhante em Amós 7.2: “senhor Deus, perdoa, rogo-te; como subsistirá Jacó? Pois ele é pequeno”.

38 Cf. PEROWNE, op. cit., p. 403. 39 Cf. PHILLIPS, Exploring the Psalms. Neptune, New Jersey: Loizeaux Brothers, 1988, vol. II, p. 515. 40 ALLEN, op. cit., p. 195. 41 MAYS, op. cit., p. 406. 42 BRUEGGMANN, op. cit., p. 104. 43 ALLEN, op. cit., p. 195-6.

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| 25Salmo 130 – um TeSTemunho de eSperança em yahweh

2.2.2 A afirmação decorrente44

Há clara evidência de que Deus anda com o seu povo e que mantém relação pactual com homens que o temem, embora eles sejam pecadores. Isso é possível porque Deus traz consigo (um uso incomum e sugestivo da preposição que se repetirá no verso 7)45 o perdão (hx’yliS.h;;).

Ao contrário do que possa parecer, essa é uma palavra rara. Como substantivo só aparece aqui, em Neemias 9.17 e em Daniel 9.9. Como verbo encontra-se distribuído em lugares estratégicos:46

• Êxodo34.9.Ondeaparece juntocom !wo[‘ (iniqüidade). E expressa o pedido de Moisés para que Deus continue com o povo, mesmo após este ter pecado construindo e adorando o bezerro de ouro.

• Números14.19-20.Novamenteassociadaa!wo[‘. Usada no pedido para que Deus não destruísse o povo quando se re-voltou recusando-se entrar na terra de Canaã.

• 1Reis8.30,34,36,39,50.NaoraçãodeSalomãoparaade-dicação do templo.

• Isaías 55.7.Comouma exortação por arrependimento aoperverso e ao iníquo.

• Jeremias31.34e33.8.Anúnciodanovaaliançaedarestau-ração de Israel. Associada a !wo[‘.

• NoSalmo25.11,ondeosalmistapedeperdãoporsuasini-qüidades, e no 103.3, onde afirma que Deus as perdoa.

Seu argumento é que perdão é um ato que acompanha o Deus da aliança. É ele mesmo, o Senhor, que torna possível a relação entre um Deus santo e um homem pecador. “[...] o salmista per-cebe que a justiça divina é governada, controlada e dominada pela graça [...] em seu reconhecimento de que a natureza de Deus não é marcar ou guardar iniqüidades, mas perdoá-las”.47 O salmista

44 Cf. PEROWNE, op. cit., p. 403. 45 Cf. MILLER, op. cit., p. 179. 46 Cf. SCHÖKEL, op. cit., 1514. 47 MILLER, op. cit., p. 179.

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quer desfrutar desse tratamento que Deus concede a seus servos e, assim sendo, ser ouvido.

Miller aponta esse fato como a questão central do salmo. Ele escreve:

O salmo fala da paradoxal, mas bem real e humana experiência de

encontrar com Deus, que é a fonte do desespero nas profundezas

e ao mesmo tempo a única saída. Porque há um ser transcendente

cujo reto caminho não tem sido observado e cuja ordenação chama

para prestar contas aqueles que não observam aquele caminho, o sal-

mista encontra-se em uma angústia de mente e coração que é quase

a morte. Mas este justo e transcendente Deus é a única esperança e

fonte de resgate das profundezas, de modo que a resposta de alguém

atolado nas profundezas não é fugir de Deus, que conhece suas ini-

qüidades, mas um clamor a Deus por libertação. O ser humano que

fala em, por meio de, e com esse salmo é um lamentador, um fato

que significa uma realidade dupla: Ele ou ela está nas profundezas,

mas também é alguém que ora.48

A presença do perdão não torna Deus desprezível, antes leva os homens a temê-lo, a reverenciá-lo, a obedecê-lo por amor. Schökel assim escreve: “Porque o homem pecador depende totalmente de Deus para o perdão, há de respeitar a Deus; o perdão é competência de Deus, por isso o homem pecador deve recorrer a ele com humilde reverência”.49

São igualmente dignas de nota as observações de Lockyer: “Gra-tidão pelo perdão produz muito mais temor e reverência a Deus do que todo o medo que é inspirado pela punição”;50 de Perowne: “Deus livremente perdoa pecados, isso não quer dizer que os homem possam pensar amenamente acerca do pecado, mas que eles devem magnificar sua graça e misericórdia em perdoar, e assim dar a ele o

48 Ibid., p. 177. 49 SCHÖKEL, op. cit., p. 1515 50 LOCKYER, op. cit., p. 670.

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temor e a honra que são devidos ao seu nome”,51 e de Barnes, que diz: “O ofensor assim perdoado está disposto a adorar e honrar a Deus; pois Deus revelou-se como alguém que perdoa pecados, de maneira que o pecador possa encorajar-se a vir a ele e ser seu ver-dadeiro adorador”.52

No próximo número, veremos como o salmista passa do clamor à esperança e adoração.

51 PEROWNE, op. cit., p. 404. 52 BARNES, op. cit., p. 259.

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D e p a r t a m e n t o d e T e o l o g i a e C u l t u r a

Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição

Licenciatura Plena em Filosofia, História e Psicologia pelas Faculdades Associadas Ipiranga

Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie

Pastor auxiliar da 1ª Igreja Presbiteriana de São Bernardo do Campo

rEv. donizEtE rodriguEs ladEia

Calvino E aquino

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R e s u m oO autor sustenta que a fé é o ponto de contato entre Cal-vino e Aquino, os dois defendem o cristianismo conforme compreendido por meio das Escrituras Sagradas em suas respectivas épocas. Mas os diferentes contextos intelectuais em que viveram, a escolástica para Aquino e o humanismo para Calvino, influenciaram grandemente seus métodos de interpretação bíblica, que foram determinantes para a história da igreja cristã. Nesta parte final do artigo, o autor apresenta a avaliação dos princípios da hermenêutica dos dois impor-tantes teólogos.

P a l a v r a s - c h a v eHermenêutica, Tomás de Aquino, João Calvino, Dogmas católicos romanos; Escolástica.

A b s t r a c tThe author defends the faith as the point of contact between Calvin and Aquinas, both of them defending Christianity as understood through the Holy Scriptures in their respective times. But the different intellectual contexts in that they li-ved, the scholastic for Aquinas and the humanism for Calvin, influenced largely their methods of biblical interpretation, which became decisive for the history of the Christian chur-ch. In this final part of the article, the author presents the evaluation of the hermeneutical principles of both important theologians.

K e y w o r d sHermeneutics; Thomas Aquinas; John Calvin; Roman Ca-tholic Dogmas; Scholastic.

Calvino E aquino

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4. a heRMenêutica de aquino

Ao estudar a história da hermenêutica, do ponto de vista da história do cristianismo, nos deparamos com dois períodos funda-mentais, que direcionam os caminhos tomados pela igreja desde sua formação. São eles o período Medieval e o período da Reforma. Fica claro que dois rumos estão estabelecidos a partir dos dois momentos. O primeiro, influenciado por aquilo que se chama de regula fidei, “que significa uma afirmação compendiada da fé da igreja”;1 ou seja, a infalibilidade da igreja ao traçar normas de conduta. Já o segundo, um período totalmente influenciado pela Renascença, que tem na busca pelos originais – a Bíblia – a autoridade suprema; isto é, contra a infalibilidade da igreja abraçou-se a infalibilidade das Escrituras.2

4.1. Na busca de compreensão do ser, teólogos e filósofos se aproximam do mesmo conhecimento

Na tentativa de conciliar a ciência e a teologia, Tomás de Aqui-no ressalta que, ou as filosofias se enganam, ou elas acreditam de forma irracional, ou seja, no final, a ultima resposta deve ser dada pela fé. Por isso, a revelação, ou seja, a Escritura, terá a função de armazenadora de conhecimento acerca do que Deus é. Para Tomás isso é fundamental, tendo em vista que é a compreensão do ser, do sumo bem; por isso, os filósofos também alcançaram, em alguma medida, a compreensão do ser, de Deus – daí, duas teologias: uma natural, que a razão elabora; outra revelada, que parte do dogma.3

Tomás de Aquino indica que a Suma Teológica deve ter em seus leitores o mesmo poder de lucidez que tem a Escritura, pois,

CalVino e aquino

1 BERKHOF, Louis. Princípios de interpretação bíblica, p. 24. 2 Ibidem, p. 29. 3 Vd. GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média, p. 656-657. Com isso observamos o quanto

é séria a consideração de Tomás de Aquino com a revelação natural, pois para ele os filósofos atingiram um padrão digno de compreensão quanto ao ser de Deus; parece que isso deu margem para uma supervalorização da Filosofia a ponto de a Escritura ficar em alguns casos submissa ao pensamento filosófico. Mas, historicamente, sabemos que o que aconteceu foi que os ditames da igreja ajudaram a conter tal problema; porém, a supervalorização de Aquino mais adiante levará a Teologia ser analisada pela Filosofia e, como sabemos, isso traria grandes prejuízos para a igreja.

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segundo ele, é isto que exige a doutrina sagrada.4 Isto ele escreve antes de abordar uma das principais argumentações da Suma: Do que é e do que abrange a doutrina sagrada, no seu prólogo. Num período tão ligado à elitização da cultura, este tipo de pensamento é revolucionário, e Aquino foi tão querido por muitos devido à acessibilidade de suas obras.5

Aquino compreendeu que a doutrina sagrada, além das outras doutrinas – e por outras doutrinas aqui se entende aquelas da Filosofia, racionalmente obtidas6 –, é necessária para a salvação. Esta doutrina sagrada também é ciência, pois deriva-se de princí-pios conhecidos à luz da revelação, que para Aquino é uma ciência superior.7 Contudo, é ciência, segundo ele, mais especulativa que prática, “por conhecer antes as coisas divinas que os atos humanos, tratando destes, enquanto o homem por eles se ordena ao conheci-mento perfeito de Deus, essência de felicidade eterna”.8 A doutrina sagrada é mais digna do que outras ciências, pois as outras estão limitadas pelo erro humano, porém a sagrada está na segurança da perfeição de Deus.9

4.2. Aquino: seriedade e valor providencialAté aqui verificamos um homem sério em busca da verdade, e

que, por meio das Escrituras – a seu modo e de acordo com o seu tempo – evidencia na Filosofia o ponto de contato com a Teolo-

4 AQUINO, Tomás. Suma teológica, v. 1, VII, p. 1. 5 Lembrando que, como vimos na primeira parte do artigo, a educação estava voltada aos nobres e

não ao povo, e se assim não fosse, talvez a linguagem de Aquino ficasse inacessível. 6 AQUINO, Tomás. Suma teológica, v. 1, VII, p. 2-3. 7 AQUINO, Idem, p.4. 8 Ibidem, p.5. 9 Apesar de não reconhecer em Aquino um grande filósofo, chegando a dizer que “há pouco do

verdadeiro espírito filosófico em Aquino”, Russell, por outro lado, faz elogios a Tomás de Aquino como sistematizador, principalmente pela clareza com que distingue os argumentos derivados da razão e os derivados da revelação. Como diz: “Foi ainda mais notável pela sistematização que pela originalidade. Mesmo que cada uma de suas doutrinas fosse errônea, a Summa permaneceria como imponente edifício intelectual. Quando deseja refutar alguma doutrina, ele a expõe primeiro, às vezes com grande força e, quase sempre, procurando ser justo. A penetração e a clareza com que distingue os argumentos derivados da razão e os argumentos derivados da revelação são ad-miráveis.” Cf. RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia ocidental. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957. v. 1, p. 182-183.

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gia.10 Outro ponto que ressalta a importância de Aquino é a forma como ele superou os filósofos árabes,11 que muito influenciaram o pensamento europeu; sua defesa do pensamento cristão por meio da Filosofia ajudou a derrocada destes filósofos. Somos levados a imaginar o que seria do cristianismo com uma vitória dos mouros no mundo intelectual; talvez nós estaríamos sofrendo as discrimi-nações, ou até mesmo as perseguições do radicalismo islâmico. Mas, por hora, o que nos importa é verificar a sua forma de interpretação do livro sagrado.

4.3. Aspectos hermeneuticosNa sua obra Suma Teológica, temos mais subsídios para com-

preender sua Hermenêutica. Aquino defende que a doutrina é argumentativa:

[...] a doutrina sagrada, por não ter nenhuma superior, disputa

contra quem lhe nega os princípios, com argumentos, se o adver-

sário conceder algum ponto revelado; e assim, com as autoridades

da doutrina sagrada, discutimos contra os hereges e, por um artigo

da fé, contra os negadores de outro. Se, porém, o adversário não

acredita em algum ponto da revelação divina, já não há meio para

lhe provar com razões os artigos de fé, mas, sim, para lhe refutar as

objeções contra esta, porventura, assacadas.12

10 A história da filosofia cristã dos séculos 13 e 14 é essencialmente um debate vivo e intenso em torno das várias formas da filosofia aristotélica. De início predominam, ainda, certos elementos neoplatônicos; paulatinamente, porém, estes elementos vão cedendo terreno, sem contudo desa-parecer completamente. Várias sínteses emergem do vigoroso processo de fermentação que então se inicia. Na segunda metade do século 13 observa-se uma nítida delimitação de fronteiras. S. Alberto, S. Boaventura e, mais tarde, Henrique de Gand, representam o ponto culminante de uma corrente predominantemente neoplatonizante, e por esta razão mais próxima a Agostinho. A síntese levada a termo por S. Tomás tende a assimilar o mais fielmente possível o aristotelismo puro. Em Duns Escoto manifesta-se uma tendência intermédia. Com ele inicia-se também a crítica. Começa o período de seleção e discriminação, o qual irá culminar na obra de Guilherme Ockham. Em Mestre Eckhart, finalmente, as tendências místicas do neoplatonismo recebem sua expressão clássica. Cf. GILSON, Etienne; BOEHNER, Philotheus. História da filosofia cristã. Petrópolis: Vozes, 1982. p. 361,362.

11 Dois filósofos desta época, Avicena (980-1037) e Averróis (1138-1198), foram os responsáveis pelo contato do Aristotelismo com a teologia cristã na Idade Média. Esta filosofia chegou ao Ocidente por meio das invasões árabes na Espanha, Sicília, Nápoles e Portugal. Desta forma os séculos 11 e 12 presenciaram as lutas bélicas e ideológicas que gerariam no século 13 o total acolhimento da filosofia de Aristóteles. Cf. Ibidem, p. 361,362.

12 AQUINO, Tomás. Suma teológica, v. I, VIII, p. 10.

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A Escritura ganha o devido destaque, é a base estrutural do pensamento da igreja. Contudo, qual é a visão da Hermenêutica propriamente dita do “doutor angélico”? Na Suma teológica ele usa a tão conhecida visão da Idade Média, o uso quádruplo do sentido da Escritura. A Bíblia era vista como um livro cheio de mistérios, que só podia ser entendido misticamente. Suas bases interpretativas eram o modo literal, o tropológico, o alegórico e o analógico,13 como segue sua explicação:

O autor da Sagrada Escritura é Deus, em cujo poder está dar signi-

ficação não só às palavras, o que também o homem pode fazer, mas

ainda, às próprias cousas. Por isso, além do que se dá com todas as

ciências, nas quais as palavras têm significação, esta ciência tem de

próprio, que as cousas mesmas significadas pelas palavras, por sua

vez, também significam. Ora, a primeira significação, pelas quais as

palavras exprimem as cousas, é a do primeiro sentido, que é o histórico

ou literal. E a significação pela qual as cousas expressas pelas palavras

têm ainda outras significações, chama-se sentido espiritual, que se funda

no literal e o supõe. Mas, este sentido espiritual tem três subdivisões.

Pois, como diz o Apóstolo, a lei antiga é figura da nova e esta, por

sua vez, como diz Dionísio, o é da glória futura; e, demais, na lei

nova, as cousas feitas pelo chefe são sinais das que nós devemos fazer.

Ora, quando as cousas da lei antiga significam as da nova, o sentido é

alegórico; quando as realizadas em Cristo, ou no que significam, são

sinais das que devemos fazer, o sentido é moral; e quando significam

as cousas da glória eterna, o sentido é anagógico.14

Desta forma, observamos que Tomás não rompe com o sistema

de interpretação que foi tão comum na Idade Média, ou seja, o método quádruplo. Berkhof chega a dizer que Tomás de Aquino

13 BERKHOF, Louis, Princípios de interpretação bíblica. p. 26-27. 14 AQUINO, Tomás. Suma teológica, v. I, X, p. 13 (Grifos meus). Augustus Nicodemus, tratando deste

assunto, escreve que Tomás de Aquino não abandonou o método alegórico, mesmo evidenciando o método literal. Cf. LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus intérpretes: uma breve história da interpretação. p. 156.

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| 37CalVino e aquino

compreendeu vagamente certa incongruência no ponto de vista dominante da época, mas identifica que o mesmo alegorizou constantemente.15

Conforme verificamos em sua grande obra, “Suma teológica”, Tomás de Aquino, pelo menos em teoria, valorizava o sentido literal como um fundamento necessário, ou seja, primário, para a exposição das Escrituras. Sobre o assunto diz:

Mas, como o sentido literal é o que o autor tem em vista, e o autor

da Sagrada Escritura é Deus, cuja inteligência tudo compreende

simultaneamente, não há inconveniente, como diz Agostinho, se,

mesmo no sentido literal, uma expressão da Sagrada Escritura tem

vários sentidos. [...] É conveniente à Sagrada Escritura transmitir

as coisas divinas e espirituais por comparações metafóricas com

as corpóreas. Pois, provendo Deus a todos, segundo a natureza de

cada um, e sendo natural ao homem chegar, pelos sensíveis, aos

inteligíveis – pois todo o nosso conhecimento começa pelos sentidos

– convenientemente, a Sagrada Escritura nos transmite as cousas

espirituais por comparações metafóricas com as corpóreas.16

Em outro lugar, escreve de tal forma que sentimos que de fato

defende o método literal:

Quando o evangelista diz “No princípio era o Verbo”, sem dúvida se

refere à Palavra divina e não à palavra humana ou angélica, ambas

criadas, pois certamente a palavra não pode preceder àquele que

a profere e o homem e o anjo também foram criados: têm causa e

princípio em seu ser e em seu agir. Ora, a Palavra, e o Verbo a que

João se refere, não só não foi criado, como também “tudo por ele foi

criado”. Trata-se, pois, necessariamente do Verbo divino.17

15 BERKHOF, Louis, Princípios de interpretação bíblica. p. 27. 16 AQUINO, Tomás. Suma teológica, v. I, VIII, p. 10. 17 AQUINO, Tomás. Verdade e conhecimento. Tradução, estudos introdutórios e notas de: Luiz Jean

LAUAND e Mario Bruno SPROVIERO. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 291.

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Na verdade temos aqui um ponto de dificuldade quanto à hermenêutica de Aquino, pois em determinados momentos perce-bermos a incoerência da argumentação a favor do entendimento literal, logo seguida por outros nos quais ele aborda o sentido quádruplo:

A história, a etiologia, a analogia pertencem a um mesmo sentido

literal. Pois, como expôs o próprio Agostinho, a história propõe algo

puro e simplesmente; a etiologia assinala a causa de uma expressão,

como quando Moisés deu licença de repudiar as mulheres, isto é,

pela dureza do coração dos hebreus; a analogia mostra que a verdade

de um passo da Escritura não repugna a de outro. Ora, dentre as

quatro divisões propostas, só a alegoria, abrange os três sentidos

espirituais [...].18

De forma geral, percebemos que a grande dificuldade era aban-donar o método vigente da época, o quádruplo; por outro lado, essa possível e aparente confusão no método de interpretação nos faz vislumbrar um movimento de saída do alegórico para o literal. Tanto Berkhof como Virkler apontam que foi Nicolau de Cusa19 quem admitiu apenas dois sentidos no texto, o literal e o místico, fundamentando o místico no literal; esse método influenciou pro-fundamente Lutero, e conseqüentemente a Reforma.20 Por isso os teólogos da Reforma tenderam a recomendar o silêncio em partes que não podemos explicar, como o próprio Calvino que declarou que onde a Bíblia se cala não podemos ir adiante.

18 AQUINO, Tomás. Suma teológica, v. I, X, p. 10. 19 Nicolau de Cusa (1401-1464) estudou com os Irmãos da Vida Comum em Deventer, e nas Uni-

versidades de Heidelberg e Pádua, onde conheceu o cardeal Giuliano Cesarani, seu futuro amigo e protetor. A princípio se interessou principalmente pela ciência do Direito, mas estudou também com grande fervor as ciências naturais. Seu método, que tem por base o sentido socrático e místico, é meramente aproximativo das coisas intramundanas e supramundanas; desta forma, entende-se que a realidade última permanece inacessível aos nossos conceitos.

20 BERKHOF, Louis. Princípios de interpretação bíblica. p. 27. Ver também: VIRKLER, Henry A.. Hermenêutica: princípios e processos de interpretação bíblica. p. 47.

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5. a heRMenêutica de calvino

Seguem agora alguns pontos que evidenciam a hermenêutica de Calvino.21

1º Calvino não aceitava a supremacia do subjetivo sobre o obje-tivo, pois a Bíblia autentica a própria Bíblia;22 o que a Igreja Católica Romana fizera em tantas ocasiões fora errado, pois é da Bíblia que se deriva a igreja e, pela fidelidade para com a Bíblia que a igreja de Cristo é reconhecida.23

2º Antes da razão, por si mesma, temos o testemunho interno do Espírito Santo. Calvino escreve: “Devemos reconhecer, pois, que o evangelho não pode ser adequadamente conhecido a não ser através da iluminação do Espírito; e, conhecendo-o dessa forma, somos afastados deste mundo e elevados até ao céu; e ao percebermos a benevolência de Deus, descansamos em sua Palavra”.24

3º Mais que a visão especulativa filosófica, Calvino buscava a autoridade interna da Bíblia. No seu comentário sobre a Carta aos Hebreus ele ressalta isso: “Sempre que o Senhor se nos acerca com sua Palavra, ele está tratando conosco da forma mais séria, com o fim de mover todos os nossos sentidos mais profundos. Portanto, não há parte de nossa alma que não receba sua influência”.25 Seria, na verdade, submeter todo o nosso entendimento às verdades de Deus.

4º Lição importantíssima, a Escritura deve ser estudada à luz da Escritura. Com essa premissa, Calvino tem um identificador de verdade e falsidade diferente de Aquino; o ponto de in-terpretação não é a dialética entre filosofia e teologia, mas a

21 O que segue é uma reflexão sobre as aulas do Rev. Hermisten M. P. Costa no curso do Mestrado em Ciências da Religião.

22 Esta expressão é apresentada por Costa ao ressaltar o posicionamento da Igreja Romana quanto à sua forma de interpretação das Escrituras, mostrando a autoridade da interpretação à luz da compreensão da igreja. Cf. COSTA, Hermisten M. P. Anotações sobre a Hermenêutica de Calvino. Texto apresentado em sala de aula, no curso da Faculdade Mackenzie 1ª semestre de 2005, p. 27.

23 CALVINO, Juan. Institucion de la religion cristiana. Buenos Aires: Nueva Creación, 1967. p. 606. 24 CALVINO, João. Hebreus. São Paulo: Edições Paracletos, 1997, p. 153. 25 Ibidem, p. 108.

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verdade registrada na Palavra de Deus que é interpretada à luz da própria Escritura. Como mostra Hermisten ao falar sobre esse assunto: “[...] portanto, o trabalho do teólogo é procurar ouvir a voz de Deus e proclamá-la com fidelidade”.26 Com isso, a Teologia passa a ser um comentário das Escrituras.27

Diante disso, não nos surpreendemos com o fato de Calvino receber o título de “exegeta da Reforma”; seu método se evidencia nestes pontos:

1. Não se deve usar alegorias;2. Deve-se entender o sentido da palavra;3. Deve-se entender o contexto histórico, ou seja,4. O método histórico-gramatical-teológico.

Junto com esta metodologia, Calvino encontra a necessidade de enfatizar a responsabilidade dos que pregam a Palavra, que deveriam atuar sem influências humanas. O ministro deve agir sempre com a segurança de que sua pregação está firmemente baseada nos man-damentos de Deus.28 Como ele ressalta nas pastorais: “A Escritura é a fonte de toda a sabedoria, e os pastores terão de extrair dela tudo o que eles expõem diante do seu rebanho”.29

6. calvino questiona aquino

São cerca de 15 apontamentos sobre Aquino que encontramos no “Índice de autores e obras citadas” das Institutas de Calvino.30 Analisemos algumas delas:

26 Cf. COSTA, Hermisten M. P. Anotações sobre a Hermenêutica de Calvino. Texto apresentado em sala de aula, no curso da Faculdade Mackenzie, 1ª semestre de 2005, p. 27.

27 Hermisten ressalta um dado muito interessante quando escreve que Calvino ampliava as Institutas da Religião Cristã à medida que escrevia seus comentários da Bíblia. (cf. Ibidem, p. 42).

28 CALVINO, Juan. Institucion de la religion cristiana, p. 616. 29 CALVINO, João. As pastorais. São Paulo, Paracletos, 1998, p. 123. 30 CALVINO, Juan. Institucion de la Religion Cristiana, p. 1223.

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6.1. Aquino erra ao ensinar o sinergismoAo discorrer sobre livre-arbítrio, Calvino cita o mestre da esco-

lástica quanto à sua posição sobre o tema; segundo Tomás, “o livre-arbítrio é uma faculdade eletiva que, participando do entendimento e da vontade, se inclina, não obstante, mais à vontade”.31 A crítica de Calvino baseia-se no esforço colocado na razão e na vontade para comprovar o livre-arbítrio. Segundo Calvino não existe tal sinergismo ou capacidade no homem.

Em outro lugar, sobre boas obras, Calvino também aponta algo que é considerado fundamental a respeito da justificação. A discussão gira em torno da possibilidade do homem se justificar. Segundo parece, o reformador observa na posição do escolástico que “o pecador [é] gratuitamente libertado da condenação e que é justificado enquanto alcança o perdão”. Parece que Aquino compreende certo sinergismo na justificação, e este ponto será um grande divisor de águas entre a posição dos reformados e dos católicos romanos.32

Há mais um ponto ressaltado por Calvino na Suma Teológica, em que ele mostra que Aquino acredita que os homens são jus-tificados pela fé, mas as obras assumem o valor e a “virtude de justificar”.33

Ainda mais, Calvino critica Tomás, Duns Scoto e Boaventura, que são chamados para defender o ponto de vista das boas obras para a salvação. Para ele, há certa incoerência quando os tais falam sobre uma graça aceitável, ou seja, uma necessidade constante de que Deus conceda ao pecador durante toda a sua vida perdão em meio às obras, pois a justiça das obras é imperfeita, mas o perdão alcança o pecador como recompensa por obras. Segundo Calvino, isto seria incoerente, pois a expressão graça aceitável não seria mais que uma má interpretação da justificação encontrada em Cristo. Esta justificação ocorre de uma vez por todas, não precisando de

31 Ibidem, p. 176. Cf. AQUINO, Tomás. Suma teológica, v. I, parte 1 questão 83. 32 Salvação pela graça somente (Reforma), salvação pela graça e as obras (Pensamento católico). 33 CALVINO, Juan. Institucion de la religion cristiana, p. 616. AQUINO, Tomás. Suma teológica, v. I,

parte 2, art. 4.

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mais nada a não ser o próprio Cristo: “Ao sermos cobertos pela limpeza de Cristo nossas faltas e imundícies de nossas imperfeições não são mais imputadas [...]”.34

6.2. Aquino erra ao definir que muitos dos mandamentos na Bíblia não podem ser vistos como obrigatórios

Em outro lugar Calvino combate a questão das ordenanças da Igreja Católica, especialmente quanto aos votos, que não podem ser vistos como ordenanças. Ele mostra que os conselhos da Igreja Católica Romana se tornaram mandamentos ao adquirir o status de preceitos, de dever para todos. Ele cita a Suma Teológica de Aquino,35 mostrando que é grande erro de interpretação e enganoso descon-siderar alguns mandamentos como preceitos, adquirindo assim a possibilidade de não cumprimento. Ele argumenta mostrando que no evangelho os mandamentos são endereçados a todos.

6.3. Calvino critica a posição de Aquino quanto ao descanso nas fraquezas do coração

Calvino se coloca contra a posição da Suma Teológica quando Tomás fala de pecados veniais e pecados mortais.36 Para Aquino, pecado venial é um mau desejo sem consentimento deliberado, que não está tão arraigado ao coração.37 Calvino refuta mostrando que o crente, quando não tem a preocupação de oferecer a Deus todo o coração e fica tão viciado na divisão de pecados menores e maiores, perde a noção de que devemos valorizar a obediência a Deus em todos o aspectos. Para Calvino o crente deve ter o desejo de tão somente fazer com que toda a vida esteja em harmonia com a Palavra de Deus.38

34 CALVINO, Juan. Institucion de la religion cristiana, p. 602. 35 Ibidem, p. 998. 36 A Igreja Católica faz esta diferenciação para mostrar que existem pecados que podem ser graves

e que, se não forem absolvidos na hora da morte, tais pessoas morrem e vão para o inferno; já os pecados veniais não são tão graves assim. O pecado venial constitui uma desordem moral reparável pela caridade. Cf. Novo catecismo para o futuro. São Paulo: Ed. Santuário, 1999, p. 139.

37 CALVINO, Juan. Institucion de la religion cristiana, p. 306. 38 Ibidem, p. 306.

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| 43CalVino e aquino

6.4. Calvino mostra que erros de interpretação das Escrituras levam a atitudes erradas em termos de comportamento com o próximo.

Calvino critica de forma geral o posicionamento dos escolásti-cos quanto aos aspectos práticos de comportamento, por exemplo, quando se lida com o próximo. Refutando por meio de argumentação bíblica, ele se recusa a fazer distinção entre mandamento e conselho evangélico. A crítica é demonstrada pelo que Calvino chama de uma perniciosa ignorância sobre a ordem de não desejar a vingança e amar os inimigos: este mandamento foi dado tanto aos judeus como aos cristãos; mas para os escolásticos, tais ordens são conselhos, os quais se pode obedecer ou não.

Tomás de Aquino39 argumenta dizendo que deve-se aceitar a ordem de não-vingança e amor aos inimigos como conselho ao invés de preceito, pelo fato de ser muito difícil e pesada.40 Calvino contesta questionando: como podem “querer anular e cancelar a lei eterna de amar ao próximo, que Deus tem dado?”41 A argumentação de Calvino gira em torno da Palavra de Deus evidenciando o amor ao próximo como dever e não conselho (Pv 25.21), mostrando que as ordens são bem explícitas quanto ao inimigo que tiver fome e sede, que o mesmo seja saciado. Calvino utiliza o texto de Êxodo 23.4, tendo em vista que o texto sagrado fala da ajuda que deve ser dispensada aos animais, como uma mula, um jumento prostrado do inimigo; e argumenta que se o animal do inimigo deve ser ajudado, muito mais deve ser feito por aquele que causa o aborrecimento. Ainda citando Deuteronômio 32.35, Calvino mostra que o com-portamento para com um suposto inimigo deve ser de descanso na Palavra eterna de Deus (Lv 19.18). Calvino argumenta que Deus não é um mero conselheiro, e sim é legislador.

6.5. Quanto à questão do posicionamento católico referente aos sacramentos

A expressão “sacramento” se tornou objeto de mais uma argu-

39 AQUINO, Tomás. Suma teológica, capítulo 2, 1, questão 108, art. 4. 40 CALVINO, Juan. Institucion de la religion cristiana, p. 304. 41 Ibidem.

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mentação de Calvino. Compreendendo os católicos que sacramento é um sinal visível de uma graça invisível, como poderiam então os sete sacramentos ser vistos “como vasos do Espírito Santo, instrumentos e meios para alcançar justiça, e causa de remissão dos pecados?”42 Um exemplo é o sacramento considerado pela igreja de Roma cha-mado de extrema-unção. Calvino afirma que Tomás de Aquino não via nos sacramentos do Antigo Testamento algo que pudesse ser enfatizado como sacramento, pois para aqueles que viviam naquela época não tinham nem a significação nem o que figuravam.43 Para Calvino isso era um absurdo, pois se aquilo que Deus ordenara por sua Palavra não era sacramento, então como poderiam ordenanças inventadas por homens ser vistas, tranquilamente, como ordenanças sacramentais?44

Quanto à confissão de pecados, Calvino mostra que não há base nas Escrituras pela qual a confissão deveria ser por meio das penas e absolvições de homens. Ao provar que a confissão de pecados foi livre, ou seja, não havia uma intermediação entre o pecador e Deus, nem o ato de confissão auricular, Calvino ressalta que até o fim do século 12, isto é, até Inocêncio III que obrigou a igreja a se confes-sar,45 não havia tal erro, e que nem homem nem mulher deveriam passar por este rito. O questionamento de Calvino a Tomás é quanto à posição do sacerdote, pois pelo menos uma vez por ano homens e mulheres deveriam procurar o seu sacerdote para confessar seus pecados.46 Calvino, sobre isso, mais vez usa o argumento bíblico:

Por demais, nos refugiemos à estrita simplicidade da Escritura, não

temos por que temer que sejamos enganados com tais mentiras.

Porque nas Escrituras se nos propõe uma só maneira de confissão;

a saber, que é o Senhor que perdoa pecados, se esquece deles, e os

apaga, se os confessarmos a ele para alcançar o perdão dos mesmos.

42 Ibidem, 1139. 43 Ibidem. 44 CALVINO, Juan. Institucion de la religion cristiana, p. 1140. 45 CALVINO, Juan. Institucion de la Religion Cristiana, p. 478. 46 Esta crítica é tirada da Suma Teológica de Aquino, Suma Teológica, III, suplem. qu. 8; art. 4-5. in,

Ibidem.

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| 45CalVino e aquino

É ele o médico; descubramos, pois, nossas enfermidades. Deus é o

ofendido; a ele, portanto, é que devemos pedir misericórdia e paz.

Ele, que perscruta os nossos corações e conhece a imperfeição de

nossos pensamentos; apressemo-nos, portanto, a descobrir nossos

corações em sua presença.47

Contra outra doutrina, a penitência, mostra que a Igreja Cató-lica está apoiada na argumentação de Pedro Lombardo e de Tomás de Aquino, citando assim as respectivas obras Sentenças e Suma Teológica;48 nestas, entende que tais teólogos vêem o perdão dos pecados ocorrendo em um movimento concomitante entre a obra da cruz e as penitências. Calvino verifica que a doutrina mantida pelos papistas não evidencia a eficácia da obra de Cristo, pois “não há outra satisfação com aquilo que se pode aplacar a Deus uma vez que o temos ofendido”.49 Desta forma, não existe outra maneira de satisfação de Deus, a não ser pela propiciação perpétua de Cristo.

Numa outra referência feita por Calvino, Aquino defende que há necessidade de participação correta no sacramento da ceia, é neces-sário uma dignidade – que Calvino chamará de falsa dignidade, pois para ele esta dignidade seria pautada em critérios de purificação, tais como a confissão de pecados ao sacerdote, que geram apenas falsa segurança:50

Não faço caso da sutileza de Santo Tomás de Aquino, o qual disse

que, ainda que a presciência dos méritos não pode ser chamada

causa de predestinação no que se refere a Deus que predestina,

contudo se pode pelo que nos diz respeito, como quando afirma

que Deus predestina a seus eleitos para que com seus méritos

alcancem a glória; porque determinou dar a eles a sua graça para

que com ela mereçam a glória. Mas como o Senhor não quer que

consideremos outra coisa em sua eleição senão sua pura bondade,

47 CALVINO, Juan. Institucion de la Religion Cristiana, p. 481. 48 CALVINO, Juan. Institucion de la Religion Cristiana, p. 496. 49 CALVINO, Juan. Institucion de la religion cristiana, p. 496 (citando 1Jo 2.1 – 2.12). 50 Ibidem, p. 1115.

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se alguém quiser ver alguma outra coisa é evidente que se extrapola

excessivamente.

Se quiséssemos contrapor a uma outra sutileza, não nos faltaria

meios de abater a de Santo Tomás. Ele pretende provar que a glória

é em certa maneira predestinada aos eleitos por seus méritos, porque

Deus lhes predestina a graça com a qual mereçam a glória. Mas eu

replico que, pelo contrário, a graça que o Senhor dá aos seus serve

para sua eleição, e muito mais a segue que a precede; posto que se

dá àqueles a quem a herança da vida havia sido já determinada.

Porque a ordem que Deus segue consiste em justificar depois de

ter elegido. De onde se conclui que a predestinação de Deus com a

qual delibera chamar os seus à sua glória é precisamente a causa da

deliberação que tem de justificá-los, e não ao contrário.51

7. consideRações Finais

Para nossas considerações finais ressaltamos que Aquino foi um homem sério e responsável dentro de seu desejo de estabelecer os meios que seriam usados para transmitir o conhecimento de Deus. Podemos dizer que no seu afã, Deus o usou como um meio para impedir certo panteísmo que se estruturava por meio da filosofia árabe. Talvez, sem as obras de Aquino, poderíamos ter um misto de filosofia e religião anticristã vigentes em nossos dias, o que nos levaria a desafios muitos maiores dos que temos hoje, principal-mente ao falarmos de nossa pátria que ainda mantém a estrutura de pensamento católico.

Quanto a Calvino, sabemos que o seu valor se dá como um dos principais apologetas da Reforma, um sistematizador, que por meio de sua obra mostrou ao mundo as referências fundamentais da fé em meio à efervescência do humanismo e renascimento.

Temos por certo que entre Calvino e Aquino há muitas divergên-cias que correspondem ao desenvolvimento histórico de séculos de

51 Ibidem, p. 743.

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diferença, e que este fator deve ser considerado. Porém, devemos dizer que a melhor abordagem para uma visão comparativa entre os dois é por meio da hermenêutica bíblica.

A hermenêutica de Calvino, quanto aos pontos de clareza de ex-posição, doutrina da graça comum, teologia, exegese e a doutrina da soberania de Deus, enfatiza de forma clara e própria que o processo epistemológico do reformador possibilita o conhecimento humano de Deus. Já Aquino está preso, em muitos detalhes, ao método da Idade Média, principalmente ao regula fidei. Cremos que isso preju-dicou a criatividade do Doutor da Igreja Católica.

Creio que Calvino aponta o melhor caminho ao dar valor ao conhecimento oriundo do estudo sério do Livro Sagrado. Tratar a Bíblia com total reverência epistemológica era buscar óculos para a compreensão da realidade da existência de Deus, para enxergar a conduta e a verdadeira fé.52 Diferentemente de Aquino, Calvino “não estava interessado em minúcias metafísicas da teologia abstrata”,53 mas seu propósito era edificação daqueles que têm fé em Deus e que atuam em todas as áreas como agentes da fé pactual.

Contudo observamos que tanto Calvino como Aquino direciona-ram o futuro das duas igrejas representadas (a Reformada e a Cató-lica), na compreensão do relacionamento entre a teologia e filosofia:• ParaCalvinoopensamentohumanoestásempreemdescré-

dito se não tiver concomitância com a revelação de Deus. • ParaAquino há um espaçomais livre para aceitação das

especulações humanas. É claro que Aquino não queria isso, mas mesmo assim ele abriu espaço para, mais a frente, o desenvolvimento da neo-ortodoxia, do evolucionismo; uma conciliação de fé e especulações filosóficas. Não é sem motivo que vemos a Igreja Católica Apostólica Romana em muitos momentos aderindo a uma mistura de teologia e a filosofia da moda (como o marxismo).

52 GEORGE, Timothy. Teologia do Reformadores. São Paulo: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, p. 198.

53 Ibidem, 200.

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Damos graças a Deus por ter em nosso bojo uma teologia que, por meio de sua fidelidade à Palavra, sabe manter uma posição fir-me e irredutível às modas filosóficas que, por vezes, tentam minar a fé do crente.

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D e p a r t a m e n t o d e M ú s i c a

Regência na Westfälische Landeskirchenmusikschule,em Herford, Alemanha

Mestrado com especialização em música dos séculos 17 e 18 também na Westfälische Landeskirchenmusikschule

Bacharel em Teologia pela Escola Superior de Teologia do Instituto Presbiteriano Mackenzie

Mestrando em Ciências da Religião pelo Instituto Presbiteriano Mackenzie

Titular da Orquestra de Sunden, Westfalia

Direção da Orquestra Sinfônica Municipalde Americana por 14 anos

Regente regular da Orquestra Filarmônica de Rio Claro,SP, e da Orquestra Sinfônica da UNICAMP

Maestro convidado da Orquestra Sinfônica e da Orquestra de Câmara de Goiânia, GO, bem como da Sinfônica de Belém, PA

Maestro visitante da Orquestra Sinfônica de San Diego, USA

“Gastdirektor” da Orquestra do Teatro da Ópera deBielefeld, Alemanha

maEstro parCival módolo

as fontEs do

Coral lutErano

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R e s u m oO uso de música litúrgica nas igrejas filhas da Reforma é um capítulo à parte na história da igreja. Os reformadores, especialmente Lutero, deram grande atenção à música sacra como meio de adoração a Deus e doutrinação dos fiéis. Neste artigo, a importante obra do reformador alemão no âmbito da música será abordada pelo Mst. Parcival, que analisará as fontes utilizadas por Lutero. Este trabalho se concluirá com outro, “As fontes do salmo calvinista”, a ser publicado no próximo número desta revista.

P a l a v r a s - c h a v eMúsica Sacra; Música Litúrgica; História da Reforma; Mar-tinho Lutero; Coral Luterano.

A b s t r a c tThe use of liturgical music in the churches proceeding of the Reformation is a remarkable chapter in the Church History. The reformers, especially Luther, payed great attention to the sacred music as means of worship God and of believers doutrination. In this article, the important musical work of the German reformer will be approached by Mst. Parcival, that will analyze the sources used by Luther. This work will be concluded with another, “The sources of the Calvinist Psalm”, to be published in our next issue.

K e y w o r d sSacred music; Liturgical music; History of Reformation; Martin Luther; Luther Choral.

as fontEs do

Coral lutErano

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Embora o uso de música vocal e instrumental no culto das igre-jas filhas da Reforma seja hoje uma prática comum e natural, foi tema que mereceu muita atenção e consideração dos reformadores do século 16. Alguns deles, ao pensarem na música de suas igrejas nascentes, colocaram-se em posições distintas, por vezes opostas. Real ou aparente controvérsia sobre a música litúrgica não havia só entre Lutero e Calvino.

Lutero não hesitava em afirmar que o Espírito Santo honrava a música como ferramenta para sua obra, o que nos parece conse-qüente e natural, já que ele estava convencido de que boa música1 era um presente de Deus exclusivo aos homens, o que a tornava veículo óbvio e eficiente para a pregação da Sua Palavra.

Calvino acreditava que a música devia ter parte nos ofícios reli-giosos, dos quais, porém, excluía as artes plásticas e visuais. O uso de música apropriada, adaptada ao serviço religioso, podia enriquecer o culto e ser um importante veículo para o homem adorar seu Deus. Por isso encorajava a congregação a cantar – e os seus seguidores cantaram tanto que tornaram o cântico de salmos uma marca da igreja reformada, mesmo nas horas mais difíceis, enfrentando prisão e a morte, até: “Os protestantes franceses, ao serem levados para a prisão ou para a fogueira, cantavam salmos com tanta veemência que foi proibido por lei cantar salmos, e aqueles que persistiam tinham sua língua cortada.”2

Exatamente por se preocuparem com a música no culto, os refor-madores produziram um novo tipo de cântico litúrgico, contendo a Palavra de Deus e o evangelho no vernáculo, para uso congregacional no culto dominical ou em qualquer outra ocasião. Na Alemanha esse novo tipo de cântico passou a chamar-se “Coral Reformado”, “Coral Luterano” ou “Coral Alemão”,3 em contraposição ao “Coral Grego-

1 “Boa Música” nesse caso é valor objetivo. Sobre os conceitos de “boa música” e “música má” no final da Idade Média, cf. MÓDOLO, Parcival. Musica: explicatio textus, praedicatio sonora. Fides Reformata, v. 1, n. 1, Janeiro-Junho 1996, p. 60-64.

2 LEITH, John H. A tradição reformada. São Paulo: Pendão Real, 1997, p. 299. 3 O “Coral Reformado”, “Coral Luterano”, “Coral Alemão” ou ainda “Coral Protestante”, foi o gênero

nascido com a Reforma luterana. É muito diferente do canto gregoriano em todos os sentidos, tanto a estrutura musical, o texto, a execução e a finalidade. Deixemos a professora Henriqueta descrevê-lo: “língua vulgar ao invés do latim usado no canto gregoriano. Melodia no soprano e

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riano”, da igreja romana, cantado por dez séculos.4 Na Suíça, com Calvino, será chamado “Salmo Calvinista”.

coRal PRotestante x coRal gRegoRiano

Durante a Reforma, na Alemanha, Lutero mesmo preparou mui-tos Corais. Para isto metrificou salmos, traduziu e adaptou antigos hinos latinos, arranjou e espiritualizou canções sacras de diferentes origens, escreveu textos e compôs melodias. Suas revisões e melhorias de material preexistente resultaram, na maior parte das vezes, em cânticos novos e originais.

As melodias, segundo Lutero, deviam ser “fáceis de aprender e de memorizar”. Compostos ou adaptados, textos e melodias deviam ser sempre apropriados um ao outro. A declamação silábica tinha prima-zia, sem melismas,5 facilitando a compreensão do texto, preservando todas as características da língua local, o que Lutero assim justificava: “O texto e as notas, a acentuação, a melodia e os movimentos, tudo deve vir da língua local; senão será mera imitação, como fazem os macacos”.6 Os textos agora eram doutrinários, cantados por todo o povo e não pelo clero somente. O canto gregoriano é música do clero e é música “de impressão”. O coral alemão é canção popular – no sentido de ser “do povo” – música para ensino e expressão para cada parte do culto. Traduções e adaptações deviam ser bem feitas e perfeitamente adaptadas à forma de falar do local.

A propósito, essa preocupação e cuidado com a língua foi uma constante na vida de Lutero.

desenvolvendo-se em valores longos, lentamente escandidos; harmonização a quatro vozes na tonalidade moderna, nota contra nota; seccionamento fraseológico, verso por verso, formando cadência; execução silábica; articulação simultânea de todas as vozes; acompanhamento ao órgão” (BRAGA, H. Contribuição da Reforma ao desenvolvimento musical. Revista Teológica, v. 11, n. 21, p. 31-43, jan. 1960, p. 34).

4 O canto gregoriano se origina nas práticas musicais das sinagogas judaicas e na música dos antigos núcleos cristãos da igreja (Jerusalém, Antioquia, Roma e Constantinopla). Com Gregório Magno, bispo de Roma entre os séculos 6º e 7º, começou a espalhar-se, tornando-se, ali pelos anos 800, a música por excelência da liturgia católica romana até a Reforma no século 16.

5 Passagens melódicas com seqüências de várias notas para uma única sílaba de texto. 6 Lutero apud BERNSDORF-ENGELBRECHT, Christiane. Geschichte der evangelischen Kirchenmusik.

Wilhelmshaven: Heinrichshofen, 1980. 2 v, p. 108, tradução nossa.

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uMa PalavRa de luteRo sobRe tRadução

Em 8 de setembro de 1530, mesmo ano da Dieta de Augsburg7 e 4 anos antes de completar a Bíblia Alemã, Lutero escreveu uma “Carta aberta sobre tradução interpretativa”, (Sendbrief vom Dolmetschen).8 É provavelmente o documento que melhor revela sua idéia sobre tradução: esforçar-se por alcançar o texto mais inteligível possível para os leitores.9 Para isso Lutero recusa a tradução literal, “palavra por palavra”, e orienta-se pela linguagem popular, pela maneira usual das pessoas falarem: traduz para uma língua“wie die Menschen reden” ou “como o povo fala”. De fato, sua preocupação não foi apenas a de verter o texto sagrado para o alemão, mas fazê-lo para um alemão compreensível, falado pelas pessoas comuns. Não um texto para eruditos, mas um texto para o homem que devia ser salvo. Se assim não fosse, como tornar as Escrituras a norma para todas as decisões da fé e da vida cotidiana?10 Como fazer dela sua prática diária sem conhecê-la?

Não deve nos surpreender, portanto, que o alemão de Lutero, especialmente a tradução da Bíblia, tenha se tornado padrão para a língua alemã moderna. Mas Gerhard Ebeling nos lembra que é a teologia a mola que impulsiona Lutero:

Confrontar-se com Lutero como acontecimento lingüístico não

significa uma esquiva da problemática teológica em direção àquele

7 A Dieta de Augsburgo foi convocada por Carlos V e iniciada no mês de junho. Lutero não pôde participar por já ter sido excomungado pelo papa em 1520.

8 Até mesmo por respeito às idéias de Lutero sobre traduções, talvez a melhor tradução de Sendbrief vom Dolmetschen seja, mesmo, Carta aberta sobre Tradução Interpretativa, já que qualquer Sendschreiben (inclusive Brief) sempre se refere a uma missiva circular, enviada para ser divulgada, lida por muitos. E Dolmetschen é “interpretar, servir de intérprete”, mais que “traduzir” (=Übersetzen). Nesse mesmo sentido, Lutero também utiliza a expressão verdeutschen, algo como alemanizar, germanizar o texto.

9 A sendbrief de Lutero aparece integralmente publicada em inúmeros autores. Utilizamos o traba-lho de STÖRIG, Hans Joachim, Das Problem des Übersetzens. Wissenschaftliche Buchgesellschaft: Darmstadt, 1973.

10 Para Lutero, o princípio da sola scriptura destinava-se a salvaguardar a autoridade das Escrituras de qualquer dependência servil à igreja. As Escrituras são a norma normans (norma determinadora), não a norma normata (norma determinada) para a vida. Elas são superiores à igreja. A igreja depende da Escritura e não a Escritura da igreja.

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aspecto cultural geral sob o qual, com razão, se costuma enaltecer

a sua obra, independente de um juízo confessional. “Ninguém que

sabe o que é uma língua”, escreve Klopstock, “comparece sem reve-

rência diante de Lutero. Em nenhum povo um homem só formou

tanto a sua língua”.11

De forma análoga, apesar do grande amor de Lutero pela mú-sica, era a teologia a própria fonte de suas convicções sobre pro-pósito e uso da música no culto. Seu cuidado com a tradução dos textos para as canções é similar ao da tradução do texto bíblico. Ele traduz para o fiel cantar, não para o clero; para gente simples e não para os letrados; e tem total consciência de que uma boa tradução do texto musical deve “soar bem” e fazer total sentido na língua traduzida, ou o resultado será: “mera imitação, como fazem os macacos”.

luteRo e os cancioneiRos

Para Lutero,12 a música é Donum divinum et excellentissimum, um “maravilhoso presente divino” dado exclusivamente aos homens, consciência que o levou à natural conclusão de que música era um dom para ser recebido com gratidão e apreço, e que devia ser usado para a glória de Deus e o bem da humanidade. Nada parecia mais natural para ele, portanto, do que o fato de que a música devia ser juntada à Palavra: se o evangelho é a boa nova que traz fé, esperança e alegria, era a música que melhor poderia acender esta mensagem, dar vida às palavras, impressionar o coração humano e exprimir a alegria que a boa nova traz. Por seu poder de comunicação, assim, nada haveria melhor do que a música para preservar e espalhar o evangelho.

Em 1538, Lutero escreveu na apresentação de uma coletânea de músicas publicada por Georg Rhau:

11 EBELING, Gerhard. O pensamento de Lutero. São Leopoldo: Sinodal, 1986, p.21. 12 LUTHER. Encomion musices. In: D. Martin Luther Werke. Weimar, 1944. v. 50. p. 372.

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Eu sinceramente desejo que todo cristão possa amar e compreender

o quanto é valioso e amável o dom da música, que é um precioso,

valioso e caro tesouro, dado aos homens por Deus […]. Ela pode

orientar nossos pensamentos, mentes, corações e espíritos. [...] Nos-

sos queridos pais e profetas não desejavam sem razão que música

fosse sempre usada nas igrejas. Por isso herdamos tantas canções

e salmos.13

Lutero achava que se os jovens fossem educados na arte da música e cantassem boas músicas, aprenderiam a discernir o que é verdadeiramente bom, afastando-se das “canções carnais e lascivas”. A esse respeito escreveu no prefácio do Geistliches Gesangbüchlein, um volume contendo canções sacras arranjadas a quatro e cinco vozes por Johann Walther, publicado em 1524:

Assim como muitos outros eu também coletei um bom número de

canções sacras [...] para que por meio delas a Palavra de Deus e a

doutrina cristã possam ser pregadas, ensinadas e postas em prática

[...]. Desejo isso em especial pensando nos jovens, que deviam ser

educados na arte da música e também nas outras artes se quisermos

tirá-los das canções carnais e lascivas, e fazê-los interessarem-se no

que é bom salutar. Só assim eles aprenderão, e devem fazê-lo, a

apreciar e amar o que é intrinsecamente bom [...]. Infelizmente o

mundo tornou-se relapso quanto às reais necessidades dos jovens

e esqueceu-se de treinar e educar seus filhos e filhas por caminhos

corretos. O bem da nossa juventude deveria ser nossa maior preo-

cupação. Deus nos conceda sua graça. Amem.14

Talvez ainda seja oportuno observar que a citação acima nos revela Lutero consciente de uma música má, imprópria para a ju-ventude, e outra, “intrinsecamente boa”.15 Ele fazia, assim, clara

13 Lutero In. KARL, Anton. Luther und die Musik. Zwickau: W.E. Buszin 1948, p. 53, tradução nossa. 14Apud KARL, Anton. Luther und die Musik. Zwickau: W.E. Buszin 1948, p. 50, tradução nossa. 15 Novamente remetemos o leitor ao artigo de MÓDOLO, Parcival. Musica: explicatio textus, pra-

edicatio sonora. Fides Reformata, v. 1, n. 1, Janeiro-Junho 1996, p. 60-64.

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distinção entre sacro e profano; entre música apropriada para o cristão e música imprópria, fosse no culto ou fora dele.

Em 1524 o primeiro hinário luterano foi publicado, o Achtlieder-buch, ou “Livro de oito cânticos”. Como diz o nome, era um volume contendo oito corais métricos, quatro deles compostos pelo próprio Lutero. No mesmo ano dois outros volumes foram publicados em Erfurt com o triplo de cânticos, dos quais 18 eram de Lutero.16

Lutero, confiante na experiência musical de seu colaborador, o hábil compositor Johann Walther,17 ainda em 1524 preparou e pu-blicou – com Walther – o Wittenberg Gesangbuch. Como a finalidade era a educação, as harmonizações eram simples, para que até os mais jovens pudessem cantá-las facilmente.

Lutero viveu no tempo áureo da música coral desacompanhada, isto é, da polifonia coral a cappella. A escola neerlandesa de compo-sitores elevou a arte do canto coral (a polifonia coral) a um ponto de grande elaboração técnica. Lutero admirava essas obras, esses motetos polifônicos18 baseados em melodias gregorianas, melodias essas artisticamente enriquecidas por várias linhas vocais simul-tâneas. Era de se esperar que Lutero, sensível à beleza da música, tendo cantado em corais desde a adolescência, maravilhado pelo dom da voz, pela habilidade de expressar idéias e emoções através da canção, conhecedor das elaboradas técnicas da composição, se entusiasmasse ao ouvir as grandes obras polifônicas corais dos seus dias. De fato, Lutero escreve:

16 Entre 1524 e 1545 Lutero compilou e publicou nove hinários. 17 Johann Walther (1496-1570), compositor e Kantor (mestre responsável por toda a vida musical

de uma igreja) alemão. Estudou na Universidade de Leipzig. Atuou em Capelas de várias cortes, especialmente as de Torgau e Dresden. Luterano rigoroso, teve seu hinário prefaciado por Lutero e o viu amplamente difundido. Ao lado de sua produção musical para o cântico congregacional, há obras mais ambiciosas para coros de quatro a sete vozes, oito Magnificats e duas Paixões. Seu trabalho ao lado de Lutero, sua atividade como músico de igreja devotado e suas composições litúrgicas alicerçadas em inabalável fé cristã, garantiram-lhe reconhecimento como músico sacro modelo da Reforma Protestante.

18 O Moteto foi uma das formas mais importantes de música polifônica desde aproximadamente o ano 1250 até 1750. Originou-se no século 13 da prática dos músicos da Catedral de Notre Dame de Paris de acrescentar palavras (“moteto” deriva do francês mot, “palavra”) em linhas puramente melódicas que faziam contraponto com um cantus firmus. Era o início das experiências de polifonia na música vocal religiosa.

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Essa preciosa dádiva [a música] foi dada somente aos homens para

lembrá-los de que eles foram criados para louvar e exaltar o Senhor.

Mas, quando música natural é aguçada e polida pela arte, aí se pode

principiar a ver, maravilhado, a grande e perfeita sabedoria de Deus

em sua maravilhosa criação, a música, quando uma voz principia

cantando uma simples linha em torno da qual são cantadas três,

quatro ou cinco vozes, saltando, movendo-se ao redor da primeira,

acima e abaixo, magistralmente enfeitando a simples melodia, como

uma dança coreografada no céu, com encontros de parceiros, abraços,

reverências entre amigos. Aquele que não acha isso um inexplicável

milagre do Senhor é de fato um tolo.19

Fica claro que Lutero enfatiza, aqui, a importância da “arte”, isto é, do domínio técnico do músico, que consegue “aguçar e polir” a “música natural”. Domínio da técnica que transforma sons naturais em arte, era, a propósito, exigência antiga, muito anterior a Lutero, para a música que se cantava a Deus. Já o salmista, ao exortar o povo para que louvasse ao Senhor, insiste para que o façam “com arte e com júbilo” (Sl 33.3b). E se é verdade que a expressão “com júbilo”, h[‘Wrt.B, pode ter aqui diferentes interpretações, a expressão “com arte”, Wbyjiyhe, da raiz bjy, “ser bom”, “ser o melhor”, “ser belo”, não apresenta nenhuma dificuldade: refere-se, mesmo, à questão da técnica; no nosso caso, da técnica musical.20

as Fontes do coRal luteRano

Em 1542 Lutero escreveu para Spalatin:21 “Eu quero produzir

19 LUTHER, Martin. Luthers sämmtliche Schriften. BUSZIN, W.E. (ed.). St. Louis Edition 1972, p. XXI, tradução nossa.

20 A mesma expressão, Wbyjiyh, aparece em Oséias 10.1c: “Quanto melhor a terra, ...” (a Bíblia de Jerusalém traduz “...quanto mais bela se tornava sua terra...”), utilizada, ali também, com o sentido de “mais trabalhada”, “mais tratos culturais”.

21 Spalatin, cujo nome era Georg Burkhardt (1484-1545), nasceu em Spalt, cidade próxima a Nürnberg – daí o epíteto “Spalatin”. Doutorou-se em Artes (Filosofia) na então nova Universi-dade de Wittenberg, onde havia ingressado em 1502. Logo passou a servir Frederico, o Sábio, príncipe eleitor da Saxônia, tornando-se educador do jovem príncipe Johann Friedrich. Pouco depois foi nomeado secretário privado do próprio príncipe, e a seguir, seu conselheiro. Defendeu

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salmos alemães para o povo [...] para que a Palavra de Deus seja conservada no meio do povo através dessas canções”.22

Segundo o atual estado das pesquisas, se reconhece com certeza 36 canções da autoria de Lutero, assim classificados: 12 adaptações de hinos latinos; 4 transcrições do folclore religioso alemão; 7 salmos métricos parafraseados; 8 hinos baseados em versos bíblicos e 5 hinos totalmente originais. Além dos cânticos de sua comprovada autoria, portanto, Lutero adaptou outros, extraindo-os de várias fontes, para compor o acervo musical da igreja luterana. Sempre se esforçando por não lançar fora o que a tradição litúrgica trazia de bom e procurando aproximar-se do povo sem criar uma ruptura com tudo o que era conhecido, Lutero utilizou muitas canções sacras pré-reformadas. Obviamente, traduzia as canções para o alemão quando estavam em qualquer outra língua, adaptando métrica e ritmo para a nova realidade, para o estilo musical que nascia e que seria chamado Coral Alemão.

É necessário lembrar que, embora nas cerimônias litúrgicas roma-nas formalmente só cantasse o clero, com muito pouca ou nenhuma participação dos fiéis, havia muita música sacra do povo e pelo povo – música “folclórico-eclesiástica”, portanto – nas procissões, nas peregrinações, nas reuniões informais e na devoção individual. Bons compositores sempre compuseram boas músicas sobre temas religiosos, que se tornaram conhecidas e utilizadas fora da igreja. Assim, cânticos religiosos acompanhavam o povo em sua história muito antes da Reforma, mesmo que não pudessem cantá-los na liturgia romana. Eram canções entoadas pelo povo, portanto, mas apenas durante atos privados de devoção, já que o canto dos fiéis havia sido praticamente suprimido do culto cristão oficial por volta do século 6º.

a causa da Reforma na corte, mesmo que o príncipe Frederico ainda permanecesse fiel à doutrina católica, influenciando na atitude benevolente do príncipe em relação ao próprio Lutero, com quem mantinha relações estreitas. Seu conselho era muito apreciado também na escolha dos professores da Universidade, o que contribuiu para que esta alcançasse sua máxima glória: du-rante o período de sua supervisão o número de matrículas excedia o de todas as demais escolas superiores da Alemanha.

22 LUTHER, Martin. Briefwechsel. In: D. Martin Luthers Werke. Weimar,1969. v. 3. p. 590, tradução nossa.

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É fato, ainda, que movimentos litúrgicos independentes de Roma nasciam em vários lugares e em diferentes épocas da história do cristianismo, e que alguns desses movimentos valorizaram a músi-ca litúrgica. Hustad se lembra, por exemplo, de Francisco de Assis (1182-1226), que no século 13 “dirigiu um movimento de reforma na Itália [...]. O cântico constituía uma parte tão grande da sua missão que Francisco apelidou a si mesmo de ‘cantor de Deus’”.23 Os seus hinos de louvor e devoção eram chamados laude, canções nas quais se pode notar a influencia das canções dos trovadores franceses24 daquele período.

De sua parte, também a própria igreja latina já produzira grandes hinos que se tornaram imortais, como o Dies irae, o Stabat mater e o Jesu dulcis memória, que podiam ser cantados em ocasiões especiais, acrescentados ao Ordinarium da missa, ou em devoções pessoais. Mas esses e outros hinos, ou as “Seqüências”25 de São Hilário, São Ambrosio, Fortunatus, São Bernardo, São Tomás de Aquino, entre muitos outros, também eram cantados apenas pelos sacerdotes ou o coro clerical, em latim, e soavam tão incompreensíveis para as pessoas comuns quanto as partes fixas da missa latina.

Isso significa que, para a elaboração do cancioneiro reformado, Lutero tinha à disposição farto material acumulado por séculos, boa poesia e música cristã, bastando adaptá-lo às novas necessidades e exigências da igreja que nascia, o que de fato ele fez.

canções de tRadições litúRgicas anteRioRes

Entre as primeiras fontes utilizadas como matéria prima para a

23 HUSTAD, Donald P. Jubilate!: a música na igreja. São Paulo: Vida Nova, 1986, p. 126. 24 Os trovadores (troubadours e trouvères), foram músicos poetas da tradição francesa de canção e

poesia lírica cortesã secular que floresceu particularmente entre os séculos 12 e 14. Os Minnesänger podem ser considerados uma versão germânica dos troubadours e trouvères da França, mas foram movimentos independentes.

25 Seqüência era um tipo de cantochão medieval que floresceu entre 850 e 1150 aproximadamente. Era uma peça de canto sacro extensa, de grande âmbito, com texto latino, mas musicada silabi-camente, isto é, sem melismas. Após o ano 1000 os textos foram cada vez mais se escandindo e rimando, até se transformarem finalmente em versos. Esses textos estavam associados às datas do ano litúrgico e eram cantados durante a missa imediatamente após o Aleluia, como uma acrésci-mo ao Ordinarium. Com o passar do tempo algumas seqüências foram ganhando importância e autonomia, podendo subsistir mais tarde como peça musical independente.

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música da Reforma, estão seqüências, tropos,26 antífonas27 e cantos gregorianos originais. O Erfurt Enchiridion,28 publicado em 1524 por Justus Jonas,29 traz três corais baseados em antigos hinos la-tinos: Nun komm, der Heiden Heiland (“Vem chegando o redentor dos gentios”), Christum Wir sollen loben schon (“A Cristo devemos já louvar”, uma canção de natal), e Komm, Gott Schöpfer heiliger Geist (“Vem, Deus criador, Espírito Santo”, para o Pentecostes). Eles são traduções, respectivamente, dos hinos latinos Veni, Redemptor Ge-nitum (atribuído a Santo Ambrósio30 ), A solis ortus Cardine (escrito por Sedulius31 no século 5º), e Veni, Creator Spiritus (atribuído a São Gregório).

O Kyrie alemão, Kyrie, Gott Vater in Ewigkeit (“Kyrie, Deus Pai, eternamente”) foi uma adaptação de Lutero do antigo tropus latino Kyrie fons bonitatis (Cf. ANEXO A).

26 Tropos são acréscimos ou interpolações aos corais gregorianos, completando ou interpretando os textos litúrgicos. Podiam servir também como introduções a esses cantos, constituindo-se de mú-sica com ou sem palavras. Nos manuscritos do século 10 e 11 aparecem tropos introdutórios para o Intróito, Ofertório, Comunhão e outros cantos do Proprium da missa. A prática, porém, aparece com mais freqüência a partir dos manuscritos do século 12. Um tropo podia ganhar independência e ser cantado no lugar da liturgia onde originalmente se cantava um coral gregoriano tradicional, desde que, naturalmente, transmitisse o mesmo significado daquele coral. Há casos em que os tropos são tão apreciados que passam a substituir definitivamente o canto original ao qual foram inicialmente acrescidos.

27 “Antífonas” são cantos litúrgicos com texto em prosa, cantados por dois coros, ou oficiante e coro, que se respondiam.

28 Coletânea de corais luteranos, não necessariamente para uso na igreja, mas especialmente para as casas, como expresso no próprio título. A melodia, não harmonizada, vinha anotada acima das palavras do texto, facilitando a leitura e o aprendizado da melodia por toda a família.

29 Justus Jonas (1493-1555) estudou jurisprudência e depois teologia na Universidade de Erfurt, tornando-se Mestre em Artes em 1510. Em 1521 foi a Wittenberg como professor, retornando a Erfurt em 1514 ou 1515. Tornou-se amigo e colaborador de Lutero tanto na tradução da Bíblia quanto nas discussões teológicas – acompanhou Lutero a Worms, por exemplo.

30 Ou da Liturgia Milanesa, da tradição de Ambrosio, bispo de Milão (339-397). 31 Sedulius [Caelius Sedulius] (primeira metade do século 5º), poeta cristão latino, tornou-se conhe-

cido especialmente por seu Carmen paschale, um épico bíblico em cinco livros de textos poéticos em hexâmetros dáctilos (dactylic hexameter), provavelmente escritos no período entre 425–50. O Carmen paschale ainda era bem conhecido até o fim do quinto século e permaneceu popular até pelo menos o século 12; ele era freqüentemente copiado e citado, e foi a fonte para o texto intro-dutório da Missa Votiva à Virgem, Salve, sancta parens, e para a Antífona de natal Genuit puerpera regem. Outros dois breves poemas são também atribuídos a Sedulius: um texto sobre a historia da salvação, Cantemus socii Domino, e o famoso hino alfabético em metro iâmbico, A solis ortus cardine, a que aqui nos referimos, e que reconta a vida de Cristo da encarnação à ascensão. Tanto o A solis ortus cardine quanto o Carmen paschale influenciaram significativamente os poetas medievais.

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A antífona Veni Sancte Spiritus, do século 11, cuja primeira estrofe já vinha sendo cantada em alemão desde 1480, na região de Eber-sberg, como Komm, Heiliger Geist, Herre Gott (“Vem, Santo Espírito, Senhor Deus”), ganhou mais duas estrofes de Lutero em 1524. A melodia original de Ebersberg, de 1480, foi preservada com alte-rações feitas em Erfurt, em 1524, prática usual para torná-la mais próxima ao estilo musical do Coral Luterano. A antífona Da pacem, Domine, in diebus nostris, do século 9º, foi adaptada por Lutero em 1529, letra e música, para seu Verleih uns Frieden gnädiglich (“Dá-nos paz misericordiosamente”).

As LeisenOutra fonte importante para a música da Reforma foram as

Leisen (pronuncia-se “Láizen”), antigas estrofes devocionais, espécie de refrão, que vinham sendo cantadas pelos fiéis excepcionalmente até mesmo durante a liturgia. Na celebração da missa esses cânticos estróficos concluídos por Kyrie eleison eram acrescidos ao próprio Kyrie da liturgia, mas fora da igreja eram cantados pelo povo em sua devoção individual como hinos independentes. Lutero utilizou algumas das Leisen que já vinham sendo cantadas pelo povo e adap-tou várias outras: a seqüência Grates nunc omnes tornou-se a canção de natal Gelobet seist du, Jesu Christ (“Louvado sejas, Jesus Cristo”). A seqüência pascal Victimae paschali laudes tornou-se Christ lag in Todesbanden (“Cristo jazia nas amarras da morte”). Para a antífona Media vita in morte sumus, que já no fim do século 15 era cantada em alemão como Mitten wir im Leben sind (“No meio da vida estamos”), Lutero escreveu mais duas estrofes.

Canções de peregrinaçãoEram inúmeras as boas composições musicais sacras cantadas nas

peregrinações, a caminho de Santiago de Compostella, nas cruzadas a Jerusalém, nas romarias a Colônia, por exemplo, durante as quais, com maior liberdade e longe da autoridade do clero, todos os fiéis podiam cantar enquanto caminhavam, ou nas paradas para descan-so. Da conhecida canção de peregrinação In Gottes Namen fahren wir (“Em nome de Deus nós vamos”), do século 12, Lutero utilizou a

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música para sua canção de catecismo Dies sind die heilgen zehn Gebot (“Estes são os dez mandamentos sagrados”) (Cf. ANEXO B).

Salmos metrificadosUm outro grupo é composto pelos salmos, isto é, canções cujos

textos são os próprios salmos bíblicos metrificados por Lutero: o Salmo 12, Ach Gott vom Himmel, sieh darein (“Ah, Deus, do céu olhe para nós”); o Salmo 46, Ein feste Burg ist unser Gott (“Castelo forte é nosso Deus”); o Salmo 67, Es wolle Gott uns gnädig sein (“Queira Deus apiedar-se de nós”); o Salmo 124, Wär Gott nicht mit uns diese Zeit (“Se Deus não estivesse conosco”); o Salmo 130, Aus tiefer Not schrei ich zu dir (“Das profundezas clamo a ti”); e muitos outros.

É fato que, dentre todas as composições de Lutero, há especial predileção pelo seu famoso Ein feste Burg (“Castelo forte”). E essa predileção não é recente, nem localizada: tornou-se desde sua com-posição e em todos os países onde foi cantado, o principal coral luterano (Cf. ANEXO C).

Diferentemente dos salmos reformados posteriores, cujos textos conservaram-se substancialmente fiéis aos textos dos salmos bíblicos, apenas metrificados e organizados em estrofes, os salmos de Lutero traziam, declarada ou implícita, a mensagem do Cristo, isto é, os salmos luteranos foram “cristianizados”.

Canções de autores contemporâneosÉ evidente que as idéias e os ensinos da Reforma foram cantados

por muitos compositores contemporâneos de Lutero, que viviam nas redondezas de Wittenberg. Algumas dessas canções foram recolhi-das por Lutero e as melhores foram publicadas. Bons exemplos são: Allein Gott in der Höh sei Ehr (“Somente a Deus, nas alturas, seja a glória”), de Nikolaus Decius; Herr Christ, der einig Gotts Sohn (“Cristo o Senhor, o unigênito de Deus”), de Elisabeth Creuzigter (a partir da Reforma, também uma mulher podia escrever uma canção para a liturgia!); Es ist das Heil uns kommen her (“A salvação chegou a nós”), de Paul Esperatus; Wo Gott der Herr nicht bei uns hält (“Onde o Senhor Deus não está conosco”), de Justus Jonas; Ihr lieben Christen, freut euch nun (“Vós amados cristãos, alegrai-vos já”) e Christe, du bist der

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helle Tag (“Cristo, tu és o claro dia”), ambos de Erasmus Albert. Da distante Königsberg vieram Nun lob, mein Seel, den Herren (“Louva agora, minha alma, ao Senhor”) de Johann Gramann e Was mein Gott will, das g’scheh allzeit (“A vontade de meu Deus seja feita”), do Duque Albrecht da Prússia.

Canções de coletâneas anterioresOutras contribuições importantes foram os hinos extraídos do

Cancioneiro de Estrasburgo (o Strassburger Liederbücher, editado em 1525), e do repertório dos Irmãos Boêmios,32 tais como Gottes Sohn ist kommen (“O filho de Deus é chegado”) de Michael Weisse, Christus, der uns selig macht (“Cristo, que nos faz bem-aventurados”) e Gelobet sei Gott im höchsten Thron (“Louvado seja Deus em seu sublime trono”).

Poesia latino-germânicaOutra curiosa fonte para a hinódia protestante foi a antiga poesia

mista, da qual se fez menção acima, aquela que se compunha de algumas frases em alemão e outras em latim. Era prática relativa-mente comum, já que muitas frases latinas faziam parte da rotina litúrgica dos fiéis, que as ouviam domingo após domingo durante a missa. Além do exemplo acima transcrito (In dulci jubilo, nun singet uns sei froh), há vários outros, bem conhecidos, como os tradicionais Quem pastores laudavere, den die Hirten lobten sehre (“Quem os pastores louvaram”, apelidado de Quempas, por flexão das duas primeiras palavras do texto), o Resonet in laudibus e a antiga canção de ninar Joseph, lieber Joseph mein (“José, meu querido José”).

Contrafactura (Contrafactum) 33

A adaptação de novo texto sacro a uma conhecida melodia de

32 O movimento dos Irmãos boêmios e morávios foi um movimento pré-reformatório dos séculos 15 e 16 originado em Johann Hus (1369-1415).

33 Contracfaturas são canções originalmente não-sacras, mas adaptadas, conservando metro e melodia, mas com o texto alterado. O novo texto, agora sacro, era derivado do original, secular, sem prejuízo para o novo: a idéia central do texto original devia ser preservada e, assim, enriquecer o novo texto (nesse ponto o Contrafactum difere da paródia). É óbvio que poucas canções prestavam-se a esse tipo de adaptação, pois o texto original deve ser, já, bastante apropriado para o novo tema, sacro. Há pouquíssimos bons exemplos dessa espécie.

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| 65aS fonTeS do Coral luTerano

Ó mundo, eu vou deixar-te,

Vou seguir minha estrada,

Vou para a eterna pátria do Pai.

Meu espírito quero entregar,

E com ele meu corpo e minha vida

Deporei na mão misericordiosa de

Deus.

Innsbruck, eu vou deixar-te

Vou seguir minha estrada,

Vou para uma terra estranha.

Minha alegria me foi roubada,

Já que eu não posso saber,

Aonde deverei desditoso estar.

canção profana é prática bem mais rara na hinódia luterana. Já que a lembrança do texto original, secular, enquanto se canta o novo, sacro – fato inevitável – não pode ser prejudicial ao conjunto agora litúrgico, boas contrafacturas são raras. A mais célebre é a canção de despedida de Heinrich Isaacs,34 Innsbruck, ich muss dich lassen (“Innsbruck, eu vou deixar-te”), que foi adaptada como O Welt, ich muss dich lassen (“Ó mundo, eu vou deixar-te”), uma canção de sepultamento. A canção original, logo depois de composta, passou a ser cantada em festas e reuniões de despedida – de qualquer pes-soa, de qualquer lugar e para qualquer lugar – tornando-se, assim, uma espécie de “canção de partida”, muito conhecida, a exemplo de tantas que há também no Brasil, na qual “Innsbruck” é apenas um símbolo de lugar onde se vive e que se ama.35

texto oRiginal de 1495 tRadução (nossa)

Innsbruck, ich muß dich lassen,

Ich fahr dahin mein Straßen

In fremde Land dahin.

Mein Freud ist mir genommen,

Die ich nit weiß bekommen,

Wo ich im Elend bin.

contRaFactuRa de

nüReMbeRg36, 1555 tRadução (nossa)

O Welt, ich muß dich lassen,

Ich fahr dahin mein Straßen

Ins ewig Vaterland.

Mein Geist will ich aufgeben,

Dazu mein’ Leib und Leben

Legen in Gottes gnädig Hand.

34 Heinrich Isaac (1450-1517) serviu aos Médici em Florença onde foi organista da catedral. Traba-lhou em Viena e Constança. Foi o mestre de capela da corte imperial de Innsbruck e compositor da corte em Augsburgo e Torgau, até retornar a Florença, onde faleceu.

35 Dessa forma e com essa finalidade ainda é muito cantada nos países europeus de fala germânica. Vezes sem conta pudemos nós também cantá-la na Alemanha em várias despedidas, e ouvi-la cantada na nossa, quando regressávamos ao Brasil.

36 Já havia uma adaptação sacra anterior à Reforma, de 1505.

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Por sua importância como modelo para esse gênero de adaptação, consideremos algumas de suas características:

1. Na contrafactura o texto original foi consideravelmente pre-servado. Os dois primeiros versos são praticamente idênticos, com exceção da troca de Innsbruck por O Welt.

2. O terceiro verso do texto original informa que a partida é para lugar desconhecido, para uma terra estrangeira. Mas a contrafactura assegura que a viagem é “de regresso”, de “volta para casa”: para a eterna casa do Pai.

3. O que se segue é conseqüência da partida para lugar desco-nhecido, no texto original, e da almejada jornada à casa do Pai, na contrafatura: a segunda parte da estrofe original lamenta a partida para a terra estranha, talvez inóspita, onde certamente a vida será desditosa, ao menos pela saudade de Innsbruck. Na contrafactura é clara a idéia de tranqüilidade da jornada ao encontro de Deus, que também é quem garante a segurança da própria viagem. Há, assim, uma espécie de paralelismo entre a idéia original e a nova, mas uma espécie de “palalelismo antitético”,37 já que a afirmação do original é negativa e na contrafactura é positiva.

Assim, é obvio que quando se canta a contrafactura, o texto original é imediatamente lembrado. Mas a lembrança do primeiro texto, não sacro, de despedida de uma cidade, intensifica e enriquece o sentido do novo texto, de despedida do mundo terreno. A cada linha cantada, a sensação de tristeza e insegurança da antiga canção em homenagem a Innsbruck vai dando lugar à sensação de seguran-ça desta outra jornada. A inevitável comparação entre uma viagem e outra fortalece a segurança nesta nova. Eis aí a mais importante característica da contrafactura: a lembrança do texto original é ine-vitável e isso deve necessariamente contribuir enriquecendo o novo. Onde isso não acontece não há boa contrafactura (Cf. ANEXO D).

Talvez ainda se deva dizer, a respeito desta contrafactura, que não ela foi feita para ser utilizada exatamente como uma canção para a liturgia regular do culto comunitário, e sim para uma cerimônia de

37 Apesar do empréstimo da expressão “paralelismo antitético” do ambiente da análise da poesia hebraica – e semita em geral – não pretendemos com isso fazer nenhuma relação entre uma técnica poética e outra.

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sepultamento. Até hoje está no hinário luterano alemão – é o número 521 do Evangelisches Gesangbuch da edição de 1996, atualmente em uso nas igrejas alemãs – na seção reservada às canções para ocasiões especiais, nesse caso numa subdivisão chamada Sterben und ewiges Leben (“Morte e vida eterna”). Assim, não se tratava exatamente de música para o culto, de louvores a Deus, ou confissão de pecados, por exemplo, o que pode justificar ainda mais a liberdade com que Lutero recorreu ao recurso.

Outra contrafatura, nesse caso de canção folclórica, Mein Freud’ möcht sich wohl mehren (“Minha alegria quer crescer”), foi a adapta-ção de Elisabeth Cruciger, em 1524, Herr Christ, der einig Gotts Sohn (“Senhor Cristo, o unigênito filho de Deus”). O mesmo se deu com Aus fremden Landen komm’ ich her (“De outra terra eu venho”) que parece ter sido utilizada pelo próprio Lutero para sua canção infantil de natal Vom Himmel hoch, da komm ich her (“Do alto céu eu venho”). Como se disse, contrafaturas não foram freqüentes na Reforma por causa da dificuldade que podiam trazer consigo: durante o canto do novo texto com a antiga música, a inevitável lembrança do texto original terá que ser considerada e deverá contribuir para enriquecer o novo texto. Quando a memória do texto antigo perturba o texto novo não houve boa contrafactura.

De todas essas fontes veio matéria prima para o Cancioneiro de Wittenberg. Como dissemos no início deste trabalho, Lutero tinha à disposição séculos de tradição musical sacra que bastou modelar, tanto letra quanto música, para dar forma ao novo gênero musical que nascia, o “Coral Alemão”. Diferentemente, portanto, do que tem sido freqüentemente afirmado nos nossos dias, Lutero não “saiu à cata”, aleatoriamente, da música profana do seu tempo para introduzi-la na nova liturgia. Nem havia necessidade, pois o acervo sacro era imenso! As poucas canções seculares adaptadas por ele foram exceções especiais, contrafacturas bem construídas, que enriqueciam ocasiões também especiais: sepultamentos, música para crianças, canções para festas litúrgicas… Repitamos: Lutero certa-mente “popularizou” o cântico litúrgico, já que o antigo gregoriano era cantado apenas pelo clero. O coral alemão tornou-se “cântico do povo”, cantado pelos fiéis, para seu ensino e instrução. É este o

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“cântico popular” defendido por Lutero para o culto: música cantada por todos os participantes do culto, homens, mulheres e crianças, que explicava o evangelho e a doutrina reformada para o povo, fa-cilitando sua memorização. “Cântico popular”, neste contexto, não se refere à música profana da época, quando considerada “música má” e, portanto, agradável apenas aos ouvidos de Satanás. “Cântico popular” aqui é expressão contraposta ao “cântico clerical”, sem participação popular, característico da igreja romana até então. O canto litúrgico luterano popularizou-se, de fato, e o fez “de dentro para fora”, isto é, saiu do espaço do templo onde ficara aprisionado por dez séculos, desde Gregório Magno até a Reforma.

Nesse ponto é fundamental lembrarmos que, segundo o pensa-mento medieval, toda música, mesmo a secular, podia e devia ser escrita para a glória de Deus. Mas nas palavras do próprio Lutero, a música cantada no culto deve “fortalecer e intensificar o santo evangelho e também impulsioná-lo”.38 Acima de tudo, “popularizar o cântico litúrgico” quer dizer tirá-lo da posse do clero e torná-lo laico; é fazer o povo cantar. A intensificação do canto de hinos foi gradual. Os corais de Lutero tornaram-se muito conhecidos, can-tados em casa, nos campos, no mercado, no caminho do trabalho, estando as pessoas sós ou em agrupamentos de toda ordem. Nas igrejas o cântico era liderado pelo coro, sem acompanhamento. Quando os cancioneiros se tornaram mais disponíveis para a con-gregação, o canto foi se tornando antifônico, as estrofes repartidas entre a congregação, o coro e o órgão. A igreja luterana passou a ser conhecida como “a igreja que canta”.

Durante a vida de Lutero cerca de 100 cancioneiros foram publicados. Como já dissemos, eram de canções que tinham impor-tante finalidade didática: as pessoas podiam aprender a doutrina da igreja e do evangelho mesmo quando não estavam no culto. Ante o ímpeto da proposta musical luterana na Alemanha, já nas

38 “Das heylige Evangelion[...] treyben und ihn schwanck [...] bringen”. M. Lutero, no prefácio da 1ª edição do Geistlichen Gesanbüchlein de Wittenberg, editado por J. Walther, 1524 (edição fac-simile), p. 3, tradução nossa.

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primeiras décadas da Reforma, o número de hinos aproximou-se de 75.000!39

Era música “de expressão”, que devia ser cantada por todos os fiéis na língua local, para que fosse compreendida, assimilada, e servisse de ensino religioso. Por isso importava que os textos fossem apropriados para os diversos momentos do culto (louvor, confissão, dedicação, etc.) e sobre variados temas religiosos, para diferentes datas litúrgicas e do calendário cristão. Cantando teologia e doutrina, a música auxiliava na memorização e no esclarecimento do sentido das palavras. Música sacra devia ser a “explicação do texto” e uma espécie de “sermão em sons”.40 A partir desse momento os hinários passaram a ter importância para o ensino religioso já que os que podiam ler levavam seus volumes para suas casas, cantavam com seus familiares e amigos, no trabalho ou no lazer.

Lutero certamente não trouxe a música da taberna para a liturgia. Mas pode ter, isto sim, provocado a expansão da música do culto, de forma que, transcendendo os limites da liturgia, entrasse em todos os lugares, até na taberna, levando com ela a doutrina Reformada.

39 Cf. BLANKENBURG, Walter. Kirche und Musik. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1979, p. 327. 40 Vide, sobre esse tema, MÓDOLO, Parcival. Musica: explicatio textus, praedicatio sonora. Fides

Reformata, v. 1, n. 1, Janeiro-Junho 1996.

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TEOLOGIA PAR A VIDA – VOLUME II – NÚMER O 270 |

ANEXO A – Antigo Kyrie gregoriano e o de Lutero.Nota-se na versão alemã acréscimo de sílabas de texto nos antigosmelismas

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| 71AS FONTES DO CORAL LUTERANO

ANEXO B – Canção de peregrinação, séc XII e adaptação de LuteroIn Gottes Namen fahren wir

Dies sind die heiligen zehn Gebot

ANEXO C

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TEOLOGIA PAR A VIDA – VOLUME II – NÚMER O 272 |

ANEXO D

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Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição

Licenciado em Pedagogia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie

Bacharel em Filosofia pelas Faculdades Associadas Ipiranga

Pós-graduado em Estudos Brasileiros pela Universidade Presbiteriana Mackenzie

Pós-graduado em História do Brasil do Século 20 pelas Faculdades Associadas Ipiranga

Mestre em História e Teologia pela Universidade Metodista de São Paulo

Doutorando na Pontifícia da Universidade Católica - PUC - SP

Pastor da Igreja Presbiteriana do Jardim Marilene

D e p a r t a m e n t o d e T e o l o g i a H i s t ó r i c a

rEv. wilson santana silva

rElatório pastoral do

rEv. gEorgE w. ChambErlain

edição diplomáTiCa

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Teologia para Vida – Volume ii – número 274 |

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| 75

R e s u m oDentre os muitos nomes estrangeiros importantes para a his-tória da implantação do Protestantismo em nosso país, figura o do Rev. George Whitehill Chamberlain (1839-1902), que apesar de ter vindo ao Brasil por recomendação médica, logo se ligou aos missionários presbiterianos, trabalhando como evangelista em São Paulo e Bahia. Foi em sua residência que iniciou a Escola Americana (1870). Nesta edição, trazemos seu relatório pastoral, apresentado ao Presbitério do Rio de Janeiro em 1866.O relatório pastoral do Rev. Chamberlain é parte da “Coleção Carvalhosa”, conjunto de documentos primários reunidos e compilados pelo Rev. Modesto Perestrello Barros de Carva-lhosa (1846-1917), encontrados no Arquivo Histórico da IPB, a quem, novamente, agradecemos a gentileza da cessão.

P a l a v r a s - c h a v eHistória da Igreja; História da Igreja Presbiteriana do Brasil; Coleção Carvalhosa; Rev. George Whitehill Chamberlain.

A b s t r a c tAmong the many important foreign names in the history of the implantation of the Protestantism in our country, figures Rev. George Whitehill Chamberlain (1839-1902), that in spite of having come to Brazil for medical recommendation, quickly joined the Presbyterian missionaries, working as

rElatório pastoral do

rEv. gEorgE w. ChambErlain

edição diplomáTiCa

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Evangelist in São Paulo and Bahia. It was in his residence that the American School began (1870). In this edition, we bring his Pastoral Report, presented to the Rio de Janeiro Presbytery in 1866. The pastoral report of Rev. Chamberlain is part of the “ Carvalhosa Collection”, a group of primary documents ga-thered and compiled by Rev. Modesto Perestrello Barros de Carvalhosa (1846-1917), found in the Historical Archive of IPB, to whom we thanks.

K e y w o r d sChurch History; History of the Presbyterian Church of Brazil; Carvalhosa Collection; Rev. George Whitehill Chamberlain.

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5.

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“E guiarei os cegos pelo caminho qual n’unca souberam; os farei caminhar pelas veredasque não souberam; tornarei as trevas em • 5 lúz perante elles; e as cousas tortas fareidireitas; estas cousas lhes farei e núnca as desampararei.” Esaias XLII:16. Sirvo-me d’estaspalavras • 10 que ha muito se tornarão uma lampada para os meus pés, afim de indicar elouvar a Divina Providencia que me ligou á missão da Igreja Presbyteriana no Brasil. • 15

Partindo de minha terra em junho de 1862, não tinha em vista senão recoperar a vistaestragada em estudos, por uma viagem de már que durasse 4 me- • 20 zes. No fim de 4annos, chamado

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como membro como membro da Egreja Presbyteriana do Rio de Janeiro a narrar algunsdos trabalhos nos quais tem sido o meu • 5 previlegio participar. Tencionei passar unsdias n’este porto como melhor me aprouvesse. Desembarquei no dia 21 de julho de1862, e logo no mes • 10 mo dia travei relações com o Rev. Blackford (por via d’uma cartade recomendação) que tinhão um alcance imprevisto – relações que hoje não posso con-templar sem • 15 recordar-me das palavras bellas e cheias de consolação que acima heicitado. Estes annos são cheios de gratas recordações, “mas não é aqui • 20 o lugar defallarmos de tudo isto

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individualmente.” Passo por alto uns meses que occupou uma visita ao Rev. F. J. L.Schneider da nossa missão aos colonos Alle- • 5 mães do interior da Provincia de S. Paulo,como também o anno que em seguida gastei na província de S. Pedro do Rio Grande doSul. Annuindo ao • 10 pedido do Rev. A. G. Simonton a tomar parte nos trabalhos do seuministério, deixei Porto-Alegre, capital daquella província a 16 de Maio de 1864, chegan-do á Côr- • 15 te no dia 23 do mesmo. Na providencia de Deos estas relações forãosuspensas, e no dia 1º de Novembro, parti para S. Paulo, onde dividi o meu • 20 tempo noensino de Inglês e tra-

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trabalho da missão. Em Março e Abril de 1865 acompanhei o Rev. Simonton a Brotas.Agosto e Septembro passarão em quanto visi- • 5 tei muitas cidades e villas afim deespalhar as Escripturas Sagradas. Os seis mezes em seguida passei-os na Côrte ajudandoo Pastor desta Igreja; e durante • 10 a sua ausência a Sessão 1ª do Presbyterio, desempe-nhei como melhor podia os deveres que me couberão. No dia 6 de janeiro de 1866, subepor uma carta da mesa • 15 administrativa de missões no estrangeiro sua decisão pela qualfiquei sendo missionário coadjutor no Brasil. No dia 6 de Abril parti para • 20 S. Paulo,d’onde em seguida fui a

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a Brotas ajudar na missão já empreendida pelo nosso digno irmão o Rev. Jose M. daConceição. A elle cabe por direito a narra- • 5 ção do acontecido nessa sua antiga parochia.Visto ser o seu relatorio mui resumido neste poncto, passo a dar alguns pormenores. • 10

A igreja de Brotas, não por ser importante em si, mas em razão da sua posição é calculadapara prestar grande auxilio na Evangelisação do interior • 15 Hoje é digna das ricas pro-messas. O interesse do Evangelho manifesta-se mais nos sitios circunvizinhos do que napropria villa. • 20 A vantagem nisso é: 1º A obra

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não dá tanto na vista dos adversarios, e por isso é livre de embaraços que aliás serião postosnos caminhos. • 5 2º A simplicidade da vida dos occupados em lavoura offerece a propaga-ção mais rapida da verdade. Vivem mais isolados, sabem menos das afamadas “con- • 10

viniencias sociais,” e não na luz destas, mas na sua propria luz encarão o Evangelho. Teêm-no ouvido e aceito muitas vezes, antes de saberem o que disem fula- • 15 no e sicrano, eestão firmes em oppiniões formadas sobre a palavra de Deos, e independente prevençõesdos homens. São mais mestre de si mesmos. • 20 3º Será mais difficil organisar

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opposição. Além destas razões, por dirigirem a nossa attenção principalmente aos Sítios,como esta é a obra de Deos e não dos • 5 homens, não nos resta senão seguir os indicios dasua providencia, para alcançar o fim o estabelecimento do Reino do Nosso Salvador. Comquanto, • 10 pois, não deixássemos de pregar na villa em tempo e fóra de tempo, foi princi-palmente nos sitios que colhemos fructos. De 15 pessoas que se offerecerão para fa- • 15 zerprofissão de sua fé, só 4 erão moradores na villa. Depois de algumas semanas de pregaçãodentro e fóra da povoação, com auditorio que n’um- • 20 ca a excedia a 50 pesoas e ás

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vezes consistião dos membros de uma só familia. Celebrámos a Céa do Senhor no dia 6de Maio na casa pertencente á • 5 viuva de Pedro Garcia d’Almeida. Forão recebidas (ebatizadas confórme a fé Evangelica em nome do Pai, do Filho e do Espírito Sancto, septepessoas á • 10 communhão da Igreja. O Rev. F. J. C. Schneider dirigiu os exercicios ajuda-dos pelos Snrs. Conceição e Chamberlain. Foi baptizada a filha de José Rufino e Gertruda• 15 C. Leite, que nesta occasião fizerão profissão de fé. A principal opposição que expe-rimentamos tinha por alvo tirar-nos a casa que o Senhor Jesus • 20 nos preparou paranella comer

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mos a nossa Paschoa. Frustrados os esforços dos nossos inimigos, vierão-nos á lembrançaas palavras de David: • 5 “Aparelhas a meza perante mim, em frente de meus adversarios.”(Sal. XXIII. Almeida) Na volta passei por Sorocaba onde preguei no dia 20 dia 20 • 10 deMaio. Demorei-me em S. Paulo até 25 de Junho desempenhando os deveres com que meincubiu o pastor da Igreja nessa cidade, partimos nesta da- • 15 cta a assistir na actualreunião, Sessão do Presbyterio que hoje tem de findar. Rio de Janeiro 10 de Julho de1866. (Assignado) George Chamberlain.

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Bacharel em Teologia pelo Seminário Presbiteriano do Sul

Licenciado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Licenciado em Pedagogia pela Universidade Mackenzie

Pós-graduação: Estudo de Problemas Brasileiros pela Universidade Mackenzie

Pós-graduação: Didática do Ensino Superior pela Universidade Mackenzie

Mestre em Teologia e História pela Universidade Metodista de São Paulo

Doutor em Teologia e História pela Universidade Metodista de São Paulo

Pastor auxiliar da 1ª Igreja Presbiterianade São Bernardo do Campo

D e p a r t a m e n t o d e T e o l o g i a S i s t e m á t i c a

rEv. hErmistEn maia pErEira da Costa

anotaçõEs sobrE ahErmEnêutiCa dE Calvino

ComprEEnsão a sErviço da

piEdadE E do Ensino

p a r T e i

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R e s u m oEste artigo inicia uma série que procurará expor os princípios e a importância do método de interpretação bíblica desen-volvido por João Calvino. Nesta primeira parte, num texto fartamente documentado, o autor traça um breve panorama biográfico do reformador, destacando sua formação intelec-tual e sua relação com os valores humanistas que floresciam em sua época.

P a l a v r a s - c h a v eHermenêutica; João Calvino; Reforma Protestante; Huma-nismo.

A b s t r a c tThis article begins a series that will try to expose the rudi-ments and the importance of John Calvin’s method of biblical interpretation. In this first part, in a richly documented text, the author presents a brief biographical panorama of the re-former, enhancing his intellectual formation and relation to the humanistic values that bloomed in his times.

K e y w o r d sHermeneutics; John Calvin; Protestant Reformation; Hu-manism.

anotaçõEs sobrE ahErmEnêutiCa dE Calvino

ComprEEnsão a sErviço da

piEdadE E do Ensino

P a r t e I

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[Calvino] foi o habilidoso exegeta entre os reformadores, e seus

comentários estão entre os melhores do passado e do presente –

Philip Schaff.1

[...] Eu poderia feliz e proveitosamente assentar-me e passar o resto

de minha vida somente com Calvino – Carta de Karl Barth (1886-

1968) a um amigo, Eduard Thurneysen, escrita em 8 de junho de

1922.2

Poucos teólogos foram tão equilibrados quanto Calvino em sua

tentativa de dar expressão à plenitude do ensinamento bíblico –

Moisés Silva.3

IntRoduçãoCalvino, falando das diversas calúnias que levantavam contra

ele,4 partindo inclusive de falsos irmãos, diz: “Só porque afirmo e mantenho que o mundo é dirigido e governado pela secreta provi-dência de Deus,5 uma multidão de homens presunçosos se ergue contra mim alegando que apresento Deus como sendo o autor do pecado.”6 “Outros tudo fazem para destruir o eterno propósito di-

1SCHAFF, Philip e SCHAFF, David S. History of the christian church. Peabody, Massachusetts: Hen-drickson Publishers, 1996, v. III, p. 261.

2BARTH, Karl. Revolutionary theology in the making. p. 101. Apud GEORGE, Timothy. Teologia dos Reformadores. São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 163. Também citada em PARKER, T. H. L. Calvin’s Old Testament Commentaries. Edinburgh: T &T Clark, 1993 (reprinted), na folha de rosto.

3SILVA, Moisés. Em favor da Hermenêutica de Calvino: In: KAISER, Walter C. SILVA, Moisés. Introdução à Hermenêutica bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 256.

4 Comentando o Salmo 64 Calvino extrai um exemplo extremamente prático concernente a este ponto: “Ao ouvirmos Davi, homem em todos os aspectos muito mais santo e justo em sua conduta do que nós, suportava as infundadas afrontas contra seu caráter, não temos razão alguma para ficarmos perplexos ante o fato de que é possível sermos expostos a uma semelhante provação. Este conforto pelo menos sempre temos, a saber, que podemos recorrer a Deus e obter sua defesa para a causa justa” [CALVINO, J. O Livro dos Salmos. São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 64.4), p. 601].

5Esta expressão é comum a Calvino. Ver: O Livro dos Salmos. São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, p. 37-38; Vol. 2, (Sl 47.3), p. 343. Depois de ser expulso de Genebra (O exílio foi votado pelo Conselho de Genebra em 23 de abril de 1538 – cf. Calvin, Textes Choisis par Charles Gagnebin, Egloff Paris, c. 1948, p. 297), escreveria a Farel (04/8/1538): “Se sabemos que eles não podem caluniar-nos, exceto na medida em que Deus permitir, sabemos também o objetivo que ele tem em vista em dar essa permissão. Portanto, humilhemo-nos, a menos que desejemos lutar contra Deus.” CALVIN, J., To William Farel, Letters. John Calvin Collection. Albany, OR: Ages Software, 1998, (CD-ROM), (04/08/1538), n. 22.

6Ver: CALVINO, J. O Livro dos Salmos. v. 2, (Sl 51.4), p. 429.

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vino da predestinação, pelo qual Deus distingue entre os réprobos e os eleitos [...]”.7

O que nos chama a atenção na aproximação bíblica de Calvino, é, primeiramente, o seu amplo e em geral preciso conhecimento dos clássicos de teologia e da exegese bíblica, os quais cita com abundância, especialmente Crisóstomo (c. 347-407)8 – pregador profícuo9 e “o primeiro tutor exegético de Calvino”10 –, Agostinho (354-430) e Bernardo de Claraval (1090-1153).11 Outro aspecto, é o domínio de algumas das principais obras dos teólogos protestantes contemporâneos, tais como: Melanchthon (1497-1560) – a quem considera um homem de “incomparável conhecimento nos mais elevados ramos da literatura, profunda piedade e outros dons” e que por isso “merece ser recordado por todas as épocas”12 –, Bucer (1491-1551) e Bullinger (1504-1575). Contudo, o mais fascinante, é o fato de que ele, mesmo se valendo dos clássicos – o que aliás, nunca escondeu13 –, conseguiu seguir um caminho por vezes dife-rente,14 buscando na própria Escritura o sentido específico do texto: a Escritura se interpretando a si mesma.

7 CALVINO, J. O Livro dos Salmos. São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, p. 44,45. Vd. também: CAL-VIN, J., “To the Seigneurs of Berne,” John Calvin Collection. Albany, OR: Ages Software, 1998, (CD-ROM), nº 398.

8 “Quando comparados com os escritos de Crisóstomo, a maior parte dos escritores subseqüentes parecia prolixa” [SILVA, Moisés. Em favor da Hermenêutica de Calvino. In: KAISER, Walter C.; SILVA, Moisés. Introdução à Hermenêutica bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 245-246].

9 Ver: OLD, Hughes Oliphant. The reading and preaching of the Scriptures in the worship of the christian church. Grand Rapids, Mi./Cambridge, UK.: Eerdmans, 1998, v. 2, p. 173.

10GAMBLE, Richard C. Current trends in Calvin research, 1982-1990. In: NEUSER, Wilhelm H. (ed.). Calvinus Sacrae Scripturae professor: Calvin as confessor of Holy Scripture. Grand Rapids, MI.: Eerdmans, 1994, p. 95.

11 Vejam-se: REID, W. Stanford. Bernard of Clairvaux in the thought of John Calvin. In: GAMBLE, Richard C. (ed.). Articles on Calvin and Calvinism. New York & London: Garland Publishing, Inc., 1992, p. 35-53 e TAMBURELLO, Dennis E. Union with Christ: John Calvin and the mysticism of St. Bernard. Louisville, Kentucky: Westminster John Knox Press, 1994, 167p.

12CALVIN, J. Commentaries on the Prophet Jeremiah. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin’s Commentaries, v. IX), 1996 (reprinted), (Carta Dedicatória do seu comentário do Livro de Jeremias), p. xxi.

13“[Deus] jamais abençoou a seus servos numa medida tal que nenhum deles chegasse a possuir pleno e perfeito conhecimento de todas as áreas do saber humano” [CALVINO, J. Exposição de Romanos. São Paulo: Edições Paracletos, 1997, p. 24].

14 “Ainda quando, sob outros aspectos, é algo extremamente desejável, não devemos esperar que haja na presente vida concordância durável entre nós na exposição de passagens da Escritura. Quando, pois, dissentimos dos pontos de vista de nossos predecessores, não devemos, contudo, deixar-nos estimular por algum forte desejo a inovação, nem impelidos por algum intuito de difamar outros,

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Teologia para Vida – Volume ii – número 292 |

Escapar de um clichê histórico-teológico é especialmente difí-cil.15 Para que possamos ter uma visão mais clara da perspectiva de Calvino a respeito das Escrituras, precisamos refletir um pouco sobre a sua forma de aproximação da Bíblia; assim, poderemos entender a sua visão hermenêutica16 e exegética.17

o Homem, SuA FoRmAção e SeuS PRoPóSItoS

Para se entender Calvino é necessário ler Calvino – Alister E. Mc-

Grath, A vida de João Calvino, São Paulo: Editora Cultura Cristã,

2004, p. 171.

1. A ForMação de calvino18

Calvino foi, sem dúvida, o principal arquiteto da tradição refor-

nem despertados por algum ódio, nem induzidos por alguma fortuita ambição. A nossa única necessidade é a de não ter em vista nenhum outro objetivo além do desejo sincero de só fazer o bem” [CALVINO, J. Exposição de Romanos. São Paulo: Edições Paracletos, 1997, p. 24].

15“A imagem de Calvino, organizador e disciplinador, como pai da frouxidão na ética social, é uma lenda” [TAWNEY, R. H. A religião e o surgimento do capitalismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971, p. 113]. Richard C. Halverson, faz comentário semelhante a respeito do estereótipo puritano. Veja-se: HALVERSON, Richard C., na Introdução da obra de Richard Baxter, O pastor aprovado, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1989, p. 15.

16 Hermenêutica provém da junção de duas palavras gregas: ermnneu/w e texnh/ (“arte de interpretar”). Ainda que esta palavra não apareça desta forma no Novo Testamento, encontramos a sua raiz em algumas ocasiões: ermhneu/w (“explicar”, “interpretar”, “traduzir”, “tornar claro”: Jo 1.38,42; 9.7; Hb 7.2); ermhnei/a (“interpretação”, “tradução”, “explanação”: 1Co 12.10; 14.26); diermhneuth/j (“intérprete”, “tradutor”: 1Co 14.28); diermhneu/w (“traduzir”, “interpretar”, “explicar”, “expor”: Lc 24.27; At 9.36; 1Co 12.30; 14.5,13,27). Todas estas palavras são derivadas de Ermh=j (“Her-mes”), deus grego (Mercúrio na mitologia romana) filho de Júpiter e Maia, sendo considerado o intérprete e porta-voz dos deuses, tido também, como modelo de eloqüência (At 14.12). Paulo saúda um cristão de Roma chamado Hermes (Rm 16.14).

17A palavra “exegese” é uma transliteração do grego ech/ghsij, que significa “narração, “exposição”. A palavra é formada por ec (fora de) e hge/omai (conduzir, guiar, liderar), daí o sentido de “tirar”, “trazer para fora”, “relatar”, “explicar”, “expor” (O substantivo não ocorre no NT, contudo o verbo echge/omai, é encontrado seis vezes: Lc 24.35; Jo 1.18; At 10.8; 15.12,14; 21.19). Aplicando a palavra ao texto, significa extrair a mensagem do texto (Vd. BARTH, Karl. La Proclamacion del Evangelio. Salamanca: Ediciones Sigueme, 1969, p. 57). Portanto, a função da exegese bíblica é, humanamente falando, trazer à luz a mensagem da parte de Deus conforme registrada nas Escrituras. Deste modo, a “exegese” é oposta à eish/ghsij (introdução), atitude que consiste em tentar fazer o texto dizer o que queremos, torcer as evidências em favor de nossas concepções previamente dogmatizadas.

18Cabe aqui uma nota de advertência: alguns dados referentes à juventude de Calvino são incertos, havendo disputa quanto à datas e lugares.

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mada do Protestantismo.19 Vejamos como isso começou. Comecemos do início. João Calvino nasceu em 10 de julho de 1509 em Noyon,

Picardia,20 sendo o segundo filho de uma família de cinco irmãos.21 Seu pai, Gérard Cauvin, era de origem humilde; sua mãe, Jeanne Le-franc, uma senhora piedosa, proveniente de família abastada, morreu quando Calvino tinha uns 5 ou 6 anos. Como Gérard era secretário apostólico de Charles de Hangest – bispo de Noyon (1501-1525) – e procurador fiscal do município, a sua família mantinha íntimas relações com as famílias nobres de sua região, sendo ele próprio um ambicioso visionário que procurou encaminhar a educação de seus filhos da melhor maneira possível, usando dos meios e recursos de que dispunha. Calvino ainda criança (29/05/1521) recebeu um be-neficio eclesiástico na catedral, que ajudaria a custear as despesas de sua educação, então um privilégio não raro.22

No entanto, Calvino recebeu a sua primeira educação junta-mente com as crianças da nobre família de Hangest. Aqui, foi que Calvino aprendeu e adquiriu educação e modos refinados próprios da nobreza que lhe permitiram posteriormente transitar em todos os meios sociais com polidez. Entre os seus amigos de infância, destaca-se um dos filhos de Adrien, Lorde de Genlis, Claude de Hangest (Mommor), que se tornaria abade de St. Eloi

19 Cf. BATTLES, Ford Lewis. Preface. In: BATTLES, F. L. e TAGG, Stanley (eds.). The Piety of John Calvin: an anthology illustrative of the spirituality of the reformer. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1978, p. 7.

20 Cidade eminentemente religiosa, que distava cerca de 92 quilômetros de Paris com uma população de aproximadamente 12 mil pessoas. “Noyon a Santa, como se dizia por vezes, tantas eram as igrejas e as relíquias que possuía – era a sua cidade natal, capital diocesana, dotada de um clero poderoso e de um bispo com assento entre os doze pares da França” (DANIEL-ROPS, Henri. A igreja da Renascença e da Reforma: a reforma protestante. São Paulo: Quadrante, 1996, p. 365-366).

21 Ver: BEZA, Theodoro. A vida e morte de João Calvino. Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 2006, p. 8. 22 Ver: BEZA, Theodoro. A vida e morte de João Calvino. Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 2006,

p. 10; FERREIRA, Wilson de Castro. Calvino: vida, influência e teologia. Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1985, p. 32-33; LESSA, Vicente Temudo. Calvino 1509-1564: sua vida e sua obra. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, [s.d.], p. 27-28; GEORGE, Timothy. Teologia dos Reforma-dores. p.168-169. Havia quatro capelães em Noyon os quais alternavam na recitação da missa matinal. Calvino sendo ainda muito jovem, não podendo portanto ser ordenado, pagava a um padre para cobrir a sua escala. (Cf. SCHAFF, Philip. History of the christian church. v. VIII, p. 300; LESSA, Vicente Temudo. Calvino: 1509-1564: sua vida e sua obra, p. 27; WILEMAN, William, John Calvin: his life, his teaching and influence. John Calvin Collection. Albany, OR: Ages Software, 1998, (CD-ROM), p. 11-12.

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em Noyon.23 Além de professores particulares, Calvino estudou na mesma escola dos filhos dos nobres de sua cidade, o Colégio de Capeto.

Posteriormente, Calvino, acompanhado de alguns amigos filhos de nobres de sua terra natal, foi para Paris, onde recebeu seu trei-namento para o sacerdócio estudando alguns meses no Collège de la Marche (Humanidades e latim, a partir de agosto de 1523),24 tendo como mestre o grande humanista Maturinus Corderius, e depois, foi para uma escola menos requintada em seus costumes e mais dura em sua disciplina e de orientação escolástica: Collège de Montaigu25 (Gramática, Filosofia e Teologia, em 1524), por onde também passa-ram Erasmo de Roterdã e Rabelais (c. 1483-1553), estudando sob a direção de um mestre espanhol grandemente competente,26 Antonio Coronel, com quem Calvino fez grandes progressos, destacando-se entre os seus colegas no estudo da gramática.27 Neste período, Calvino foi também, ao que parece,28 grandemente influenciado por outro de seus professores, que havia retornado a Montaigu em

23O Comentário de Calvino sobre Sêneca publicado em abril de 1532 seria dedicado a Claude; na Dedicatória, redigida em Paris (04/4/1532), reconhecendo a sua dívida para com a família de seu amigo, diz: “Nosso Comentário que recomendo à sua guarda, receba-o como os primeiros frutos de nossa colheita, dedicado e inscrito por direito e mérito a você; não só porque eu devo a você tudo que sou e que tenho, pois desde bem cedo, ainda menino fui educado dentro da sua casa e iniciado nos mesmos estudos junto com você, eu estou endividado com a sua mui nobre família por meu primeiro aprendizado na vida e nas letras” (CALVIN, J. “Commentary on Seneca’s de Clementia.” John Calvin Collection. Albany, OR: Ages Software, 1998, (CD-ROM), p. 8.

24 McGrath discute a possibilidade de esta interpretação tradicional ser equivocada. Em sua opinião Calvino não estudou do Collège de la Marche (Ver: MCGRATH, Alister E. A vida de João Calvino. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 37-43).

25 As regras do Collège de Montaigu eram bastante rígidas e a alimentação precária. É famosa a descrição de Erasmo a respeito desta Escola. Entre outros trabalhos, vejam-se: BAINTON, Roland H. Erasmo da Cristandade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1988), p. 39ss.; MCGRATH, Alister E. A vida de João Calvino. p. 44-45. Para um estudo detalhado de Montaigu, a obra clássica é: GODET, Marcel. La Congrégation de Montaigu. Paris: Libraire Ancienne Honoré Champion, 1912, 220p.

26 Foi aqui que Calvino se familiarizou com a teologia de Aquino, Agostinho e Jerônimo, entre outros teólogos antigos. (Cf. FERREIRA, Wilson de Castro. Calvino: vida, influência e teologia, p. 41. Do mesmo modo: WALLACE, Donald S. Calvino, Genebra e a Reforma. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 10).

27Cf. BEZA, Theodore. Life of John Calvin. John Calvin Collection. Albany, OR: Ages Software, 1998, (CD-ROM), p. 4. Ver: TORRANCE, Thomas F. The Hermeneutics of John Calvin. Edinburgh: Lindsay & Co. Ltd., 1988, p. 80.

28 A amplitude da influência de seus professores é discutível. McGrath dá-nos um resumo de algumas posições, Ver: MCGRATH, Alister E. A vida de João Calvino, p. 53ss.

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1525-1531, o escocês John Major (1469-1550). Major (ou Mair) “tinha ligações com a Irmandade da Vida em Comum”.29 Foi ele quem instruiu Calvino na filosofia e lógica30 medieval bem como na teologia bíblica e patrística.31

Neste período dá-se algo curioso:

Em fevereiro, 1528, Inácio de Loyola, o fundador da ordem dos Je-

suítas, entrou na mesma faculdade e estudou sob o mesmo professor.

Os líderes das duas correntes opostas no movimento religioso do

décimo sexto século viveram muito próximos, debaixo do mesmo

telhado e se sentando à mesma mesa. Calvino já durante este perí-

odo mostrou as características proeminentes do seu caráter: ele era

consciencioso, estudioso, silencioso, reservado, animado por um

estrito senso de dever, e sumamente religioso.32

No entanto, todos esses jovens, Erasmo, Calvino e Loyola – foram

formados lendo entre outras obras piedosas, a atribuída ao místico Thomas à Kempis (c. 1380-1471), Imitação de Cristo, a qual mesmo sem citar, parece tê-lo influenciado em sua formação,33 destacando-se, ainda que não exclusivamente,34 As Institutas (III.7-10) e a Verdadeira Vida Cristã.35

29 WALLACE, Donald S. Calvino, Genebra e a Reforma, p. 10. 30 Torrance diz que Major considerava a lógica como “A arte das artes e a ciência das ciências”

(TORRANCE, Thomas F. The Hermeneutics of John Calvin, p. 27). 31 Cf. TORRANCE, Thomas F. The Hermeneutics of John Calvin, p. 80ss. Para uma visão panorâmica

do pensamento de Major, ver: TORRANCE, Thomas F. The Hermeneutics of John Calvin, p. 23ss. 32 SCHAFF, Philip. History of the christian church, v. VIII, p. 302. Loyola contudo, ficaria pouco tempo

no Colégio de Montaigu; em 01/11/1529 foi estudar Filosofia no já tradicional Colégio de Santa Bárbara (fundado em 1460), dirigido pelo padre português Diogo de Gouveia, o Velho (nascido por volta de 1471), que se propusera, entre outras coisas, à formação de teólogos portugueses com bolsas fornecidas pela coroa portuguesa. (Vd. CARVALHO, Rómulo. História do ensino em Portugal. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1986), p. 143-144, 170ss; 284).

33 Ver: TORRANCE, Thomas F. The Hermeneutics of John Calvin, p. 74-75. Ver também: WALLACE, Donald S. Calvino, Genebra e a Reforma. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 10, 158-160. Segundo Peter Toon, a obra de Kempis tem hoje mais de 2000 edições impressas (Peter Toon, Tomas de Kempis: In: DOUGLAS, J. D. (ed.). Diccionario de Historia de la iglesia. Miami: Editorial Caribe, 1989, p. 632).

34 Ver outras correlações em: TORRANCE, Thomas F. The Hermeneutics of John Calvin, p. 75ss. 35CALVINO, J. A verdadeira vida cristã. São Paulo: Novo Século, 2000, passim.

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No mesmo ano (1528), concluído o seu curso de Artes, dá-se algo inusitado: devido a uma disputa de seu pai com os clérigos de Noyon – assunto ainda não esclarecido satisfatoriamente36 –, ele resolveu enviar o filho para a conceituada e concorrida universidade de Orléans, de cunho mais humanista, onde se dedicaria ao estudo de Direito civil,37 sob a influência do conceituado jurista, Pierre L’Étoile, cognominado de “rei da jurisprudência”38 e “príncipe dos juristas”,39 que posteriormente se tornaria presidente do Tribunal do Parlamento em Paris.40 Calvino, ao que parece ficou impressio-nado com a erudição de L’Étoile.41 Ali Calvino tornou-se Bacharel em Direito (“licencié ès lois”) (14/2/1531). Como resolvera deixar a universidade antes de completar os seus estudos, a universidade – em reconhecimento aos seus serviços prestados –, resolveu por voto unânime de seus professores conferir-lhe o grau de Doutor em Direito, sem cobrar-lhe as taxas habituais; no entanto, não há consenso se Calvino aceitou ou não o título.42 Foi para Bourges, certamente atraído43 pelo famoso humanista e mestre de Direito, o italiano Andreas Alciati (1492-1550), “um jurista de primeira linha, teórico da soberania do Príncipe”.44 Na já famosa Universidade de Bourges, fundada em 1463 por Luís XI, estudaria com Alciati e Melchior Wolmar, a quem conhecera em Orléans.

36 Beza apenas registra que o pai de Calvino fê-lo estudar Direito, “vendo que seria um meio melhor para chegar às riquezas e às honrarias” (BEZA, Theodoro. A vida e morte de João Calvino. Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 2006, p. 10).

37MCGRATH, Alister E. Teologia sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã. São Paulo: Shedd Publicações, 2005. p. 103.

38 Cf. FERREIRA, Wilson de Castro. Calvino: vida, influência e teologia, p. 45. 39 Cf. LESSA, Vicente T. Calvino 1509-1564: sua vida e obra, p. 50. 40 Cf. BEZA, Theodoro. A vida e morte de João Calvino, p. 10. 41 Cf. DE GREEF, W. The writings of John Calvin: an introductory guide. Grand Rapids, Michigan:

Baker Book House, 1993, p. 21. 42Beza diz que Calvino se recusou a receber este privilégio (Ver: BEZA, Theodoro. A vida e morte de

João Calvino. Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 2006, p. 11;Theodore Beza. Life of John Calvin: In: Tracts and Treatises on the Reformation of the Church, v. I, lxi; Theodore Beza. “Life of John Calvin.” John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), p. 5 . Vejam-se: SCHAFF, Philip. History of the christian church. v. VIII, p. 306;. LESSA, Vicente T. Calvino 1509-1564: sua vida e obra, p. 51; FERREIRA, Wilson de Castro. Calvino: vida, influência e teologia, p. 45-46.

43Cf. BEZA, Theodoro. A vida e morte de João Calvino. Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 2006, p. 11. 44LADURIE, Emmanuel Le Roy. O mendigo e o professor: a saga da família Platter no século XVI. Rio de

Janeiro: Rocco, 1999, v. 1, p. 325.

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Ele mesmo resumiria a sua infância:

Quando era ainda bem pequeno, meu pai me destinou aos estudos

de teologia. Mais tarde, porém, ao ponderar que a profissão jurídica

comumente promovia aqueles que saíam em busca de riquezas, tal

prospecto o induziu a subitamente mudar seu propósito. E assim

aconteceu de eu ser afastado do estudo de filosofia e encaminhado

aos estudos da jurisprudência. A essa atividade me diligenciei a

aplicar-me com toda fidelidade, em obediência a meu pai; mas Deus,

pela secreta providência, finalmente deu uma direção diferente ao

meu curso.45

Calvino recebeu um encargo no curato de Saint-Martin de Martheville (05/09/1527); mas em 30 de abril de 1529 resignou a capelania de La Gesine em favor do irmão mais jovem, Antoine e, em 5 de julho de 1529, trocou o cargo de Saint-Martin pelo da aldeia Pont-l’Evèque (local de nascimento de seu pai). Com a morte de seu pai (25 ou 26 de maio 1531) tornou a Paris para continuar seus estudos literários e durante certo período voltou a Orléans para concluir seu curso de Direito.

Quando um de seus amigos, Nicolás Cop foi eleito reitor da Universidade de Paris, Calvino talvez o tenha ajudado a pre-parar o seu discurso,46 que foi lido na igreja dos Maturinos,47 como de costume no dia 1º de novembro de 1533. Neste discurso propunha-se uma reforma na igreja. A resposta foi imediata: Cop e Calvino tiveram de fugir de Paris; Cop voltou à sua terra natal, Basiléia, e Calvino para outras cidades francesas. Em 1534, Cal-vino completaria 25 anos, idade legal para ser ordenado; agora é o momento de assumir de fato a sua fé e ofício. Assim, em 4 de maio de 1534, voltou a Noyon e renunciou aos seus benefícios

45 CALVINO, J. O Livro dos Salmos. São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, p. 37-38. 46 Este ponto não é consensual entre os especialistas. Ver: Alexandre Ganoczy. The Young Calvin. Phi-

ladelphia: The Westminster Press, 1987, p. 80-83; DANIEL-ROPS, Henri. A igreja da Renascença e da Reforma: a reforma protestante. p. 370; Jacques Pannier em Introdução. As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 1, p. 10.

47 Cf. DANIEL-ROPS, Henri. A igreja da Renascença e da Reforma: a reforma protestante, p. 370.

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Teologia para Vida – Volume ii – número 298 |

eclesiásticos.48 As perseguições então intensificaram-se.49 Nova-mente ele inicia as suas peregrinações: Paris, Angoulême, Poitiers; passaria algum tempo na Itália, Estrasburgo e Basiléia (1535). Como fica evidente, nesse ínterim, Calvino havia sido convertido ao protestantismo; a questão é: como e quando?

2. a conveRsão de calvino

Na verdade, o Senhor chama eficazmente só os eleitos – João Calvino,

Exposição de Hebreus, São Paulo, Paracletos, 1997, (Hb 6.4), p. 153.

O fundamento de nossa vocação é a eleição divina gratuita pela

qual fomos ordenados para a vida antes que fôssemos nascidos.

Desse fato depende nossa vocação, nossa fé, a concretização de

nossa salvação – João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998,

(Gl 4.9), p. 128.

Não nos é possível precisar as circunstâncias e data da “súbita conversão” de Calvino, contudo as evidências apontam para um período entre cerca de 1532 a 1534 – portanto, em Orléans ou Paris. Devemos estar atentos também para o fato de que a vida de Calvino, mesmo antes da sua conversão, não fora marcada por um comportamento dissoluto e imoral – já tão comum nos jovens de seu tempo –; antes, a sua conversão, como observa Schaff, “foi uma transformação do Romanismo para o Protestantismo, da superstição papal para a fé evangélica, do tradicionalismo escolástico para a simplicidade bíblica”.50

48Vejam-se: Alexandre Ganoczy. The Young Calvin. Philadelphia: The Westminster Press, 1987, p. 85; MCGRATH, Alister E., A Vida de João Calvino, p. 91-92.

49 Ver: LESSA, Vicente Temudo. Calvino: 1509-1564: sua vida e sua obra, p. 63; FERREIRA, Wilson de Castro. Calvino: vida, influência e teologia, p. 64-65.

50SCHAFF, Philip. History of the christian church, v. VIII, p. 310. Bem mais tarde, seu discípulo e sucessor, Theodore Beza (1519-1605), escreveria: “Estes são os eventos principais na vida e morte de Calvino que eu mesmo testemunhei durante os últimos dezesseis anos. Eu penso que estou qualificado para declarar que nele foi exibido diante de todos os homens, um dos mais belos e ilustres exemplos de vida piedosa e morte triunfante de um verdadeiro cristão; que será fácil pela malevolência caluniar, como será difícil devido a sua exaltada virtude imitar”. [Theodore Beza. “Life of John Calvin.” John Calvin Collection. Albany, OR: Ages Software, 1998,

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Crê-se que o seu primo Olivétan – ainda que não isoladamente51 –, teve uma participação importante na sua conversão ao Protes-tantismo.52 Félice chega a afirmar que, “...a Bíblia que recebeu das mãos de um de seus parentes, Pedro Roberto Olivetan, o arrebatou do catolicismo....”.53 Lembremo-nos de que Calvino não é muito pródigo ao falar da sua vida. Quanto à sua conversão, em 1539 diz:

Contrariado com a novidade, eu ouvia com muita má vontade e,

no início, confesso, resisti com energia e irritação; porque (tal é a

firmeza ou descaramento com os quais é natural aos homens resistir

(CD-ROM), p. 65; Outra tradução: BEZA Theodore. Life of John Calvin: In: Tracts and Treatises on the Reformation of the Church, v. I, p. cxxxviii. Vd. SCHAFF, Philip. History of the christian church, v. VIII, p. 272].

51 Fala-se também de Jacques Lefèvre D’Étaples (1455-1536), a “estrêla-d’alva” da Reforma, e de seu discípulo, Melchior Wolmar († 1561), professor de grego de Calvino e “fanático de Lutero”, conforme expressão de DANIEL-ROPS, Henri, A igreja da Renascença e da Reforma: a reforma pro-testante, p. 367. Vd. SCHAFF, Philip, History of the christian church, v. VIII, p. 305, 310; MCNEILL, John T. The history and character of calvinism. New York: Oxford University Press, 1954, p. 110,195; IRWIN, C. H. Juan Calvino: su vida y su obra. Barcelona: CLIE., (1991), p. 22. O sábio Lefèvre desejava uma reforma na igreja romana. O historiador católico Daniel-Rops (pseudônimo de Henri Petiot, 1901-1965) mesmo não admitindo que Lefèvre nutria simpatia para com o luteranismo (p. 356), escreve: “Na prática, o que ele preconizava era uma reforma levada a cabo na igreja e pela igreja, uma reforma intelectual que substituísse a degenerada escolástica por uma teologia positiva, baseada no estudo da Escritura e dos Santos Padres, e também uma reforma moral e disciplinar que pusesse fim aos abusos gritantes. Por que meios se realizaria tal reforma? Por um regresso da alma fiel à verdade de Cristo e por uma penetração do evangelhoevangelho em todas as consciências. Era à Escritura, à palavra sagrada, que, muitos anos antes de Lutero, Lefèvre d’Étaples confiava as possibilidades da indispensável renovação” (DANIEL-ROPS, Henri, A igreja da Renascença e da Reforma: a reforma protestante, p. 352).

52MCNEILL, John T., The history and character of calvinism, p. 108-117; LESSA, Vicente T. Calvino 1509-1564: sua vida e obra. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, [s.d.], p. 47; CAIRNS, E. E. O Cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 1984, p. 252; SCHAFF, Philip. The creeds of christendom. 6ª ed. Revised and Enlarged, Grand Rapids, Mi-chigan: Baker Book House, (1931), v. I, p. 425ss.; BIÉLER, André. O pensamento econômico e social de Calvino. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 115 e 121; MCGRATH, Alister, The intellectual origins of the european Reformation, p. 54; HARKNESS, Georgia. John Calvin: the man and his ethics. New York: Abingdon Press, 1958, Preface, p. 6-7; FERREIRA, Wilson de Castro. Calvino: vida, influência e teologia. Campinas,SP.: Luz para o Caminho, 1985, p. 50-51; FISHER, Jorge P. Historia de la Reforma. Barcelona: CLIE., (1984), p. 196-198; WILLIAMS, William R. Eras and characters of History. New York: Harper & Brothers, p. 207; DANIEL-ROPS, Henri, A igreja da Renascença e da Reforma: a reforma protestante, p. 368ss.; WENDEL, François. Calvin. New York: Harper & Row, Publishers, 1963, p. 37ss.

53 FÉLICE, G. de. História dos protestantes da França. São Paulo: Typographia International, 1888, p. 51. Provavelmente, a “Bíblia” mencionada por Félice, seja a edição do Novo Testamento de 1534.

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no caminho que outrora tomaram) foi com a maior dificuldade que

fui induzido a confessar que, por toda minha vida, eu estivera na

ignorância e no erro.54

Na introdução do seu comentário de Salmos (1557), afirma:

Inicialmente, visto eu me achar tão obstinadamente devotado

às superstições do papado, para que pudesse desvencilhar-me

com facilidade de tão profundo abismo de lama, Deus por um

ato súbito de conversão,55 subjugou e trouxe minha mente a

uma disposição suscetível, a qual era mais empedernida em tais

matérias do que se poderia esperar de mim naquele primeiro

período de minha vida.56

Também na já citada carta ao Cardeal Sadoleto (01/09/1539), Calvino descreve as suas angústias espirituais no romanismo, resul-tantes do que a igreja pregava.57 No entanto, em nenhum momento Calvino menciona o instrumento humano usado por Deus.

A Bíblia Francesa (04/06/1535), traduzida por Pierre Robert – apelidado de “Olivetanus”, daí, Olivétan (c.1506-1540)58 –, primo de Calvino, foi a primeira tradução Protestante francesa das Es-crituras, feita a pedido e às expensas dos Valdenses, que gastaram na impressão 1.500 escudos.59 A tradução, feita diretamente dos

54CALVINO, J. Respuesta al Cardeal Sadoleto. 4ª ed. Barcelona: Fundación Editorial de Literatura Reformada, 1990, p. 63; CALVIN, J., Tracts and Treatises on the Reformation of the Church, v. I, p. 62.

55 Este ato “súbito” não precisa ser entendido necessariamente como “repentino”. Pode indicar também algo “não-premeditado” (Cf. GEORGE, Timothy, Teologia dos Reformadores, 174).

56CALVINO, J., O Livro dos Salmos, v. 1, p. 38. Veja-se: GEORGE, Timothy, Teologia dos Reformadores, p. 171-185 (especialmente).

57 Vd. CALVINO, J., Respuesta al Cardeal Sadoleto, p. 61-64. 58Olivétan estudou grego e hebraico com Bucer em Estrasburgo (1528). (Cf. SCHAFF, Philip, History

of the christian church, v. VIII, p. 299). 59Cf. TRON, Ernesto. Historia de los Valdenses. Colonia Valdense: Libreria Pastor Miguel Morel,

1952, p. 25; LINDER, Robert. D. Olivétan: In: DOUGLAS, J. D. (ed. ger.). The new international dictionary of the christian church. p. 730; LESSA, Vicente Temudo, Calvino 1509-1564: sua vida e obra, p. 47; FRITZSCHE, O. F., Bible Versions: In: SCHAFF, Philip, ed. Religious encyclopaedia: or dictionary of biblical, historical, doctrinal, and practical theology, v. I, p. 288; DE GREEF, W. The writings of John Calvin: an introductory guide. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1993, p. 90.

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originais hebraicos e gregos,60 foi utilizada pela primeira geração de calvinistas franceses na proclamação do evangelho.61 Aliás, Olivetán em seu prefácio (12/02/1535), dedicou a sua tradução “à igreja po-bre”. O Novo Testamento foi editado em 1534, saindo a segunda edição em 1535, acompanhado do Antigo Testamento. Esta edição (segunda do Novo Testamento e primeira da Bíblia completa), foi revisada e prefaciada por Calvino, intitulado: “A todos os que amam a Jesus Cristo e a seu evangelho”. Aqui temos o primeiro testemunho público de Calvino que indica a sua conversão. Posteriormente, Beza (1519-1605) fez nova revisão da Bíblia Francesa, que continuou sendo revista de quando em quando nos séculos seguintes.62

3. calvino coMo huManista

Os homens jamais encontrarão um antídoto para suas misérias,

enquanto, esquecendo-se de seus próprios méritos, diante do fato de

que são os únicos a enganar a si próprios, não aprenderem a recorrer

à misericórdia gratuita de Deus – João Calvino, O livro dos Salmos,

v. 1, (Sl 6.4), p. 128-129.

Podemos dizer no sentido mais pleno da palavra que Calvino (1509-1564) era um genuíno humanista, estando profundamente interessado pelo ser humano. Ainda que de passagem, examinemos alguns pontos que ilustram a nossa tese.

1) Seu conhecimento humanísticoJá bem cedo Calvino revela o seu fino método de análise filológica

60 Contudo Olivétan valeu-se também de outras traduções, especialmente da realizada por Lefèvre D’Étaples (1455-1536) (NT 1523 e AT 1530). (Cf. DE GREEF, W., The Writings of John Calvin, p. 90).

61 Cf. LINDER, Robert. D., Olivétan: In: DOUGLAS, J. D. (ed. ger.). The new international dictionary of the christian church, p. 730.

62 Cf. ANGUS, J. História, doutrina e interpretação da Bíblia. 3ª ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1971, p. 126; LESSA, Vicente Temudo, Calvino 1509-1564: sua vida e obra, p. 47. Nunca é demais lembrar, que Calvino dominava o latim, hebraico e grego (Vd. WALKER, W., História da igreja cristã, v. II, p. 69-71; LATOURETTE, K. S., Historia del Cristianismo, II, p. 100-101; SCHAFF, Philip, The creeds of Christendom, v. I, p. 424ss; KRAUS, Hans-Joachim, Calvin’s exegetical principles. Interpretation 31, 1977, Virginia, p. 14-15.

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e literária aprendido com os humanistas.63 Ele evidencia isso na sua primeira obra escrita,64 publicada inclusive com os seus próprios recursos:65 a edição comentada do livro de Sêneca, De Clementia (4 de abril de 1532) – “o principal monumento dos conhecimentos humanísticos do jovem Calvino”, diz McNeill;66 “sólido trabalho de um humanista muito jovem e já brilhante”, comenta Boisset;67 um “erudito de primeira linha”, acrescenta Parker.68 Resume Gano-czy: “O seu comentário sobre De Clementia é um modelo de estudo humanista de um documento antigo”.69 Nessa obra – da qual uma cópia foi enviada a Erasmo –, o então jovem autor (23 anos) já revelava o seu gosto literário, erudição,70 amplo conhecimento da literatura grega e romana, uma perspectiva sóbria e um estilo próprio de análise – lapidado dentro de uma análise filológica e literária da melhor qualidade – que se tornaria uma de suas marcas em seus comentários bíblicos.71 Já nesse trabalho pioneiro, Calvino parece desafiar o soberano, quando define o tirano como aquele que governa contra a vontade de seu povo e, seguindo a concepção de Aristóteles (384-322 a.C.),72 interpreta a tirania como “uma transgressão dos

63Cf. SILVA, Moisés. Em favor da Hermenêutica de Calvino. In: KAISER, Walter C.; SILVA, Moisés. Introdução à Hermenêutica bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 246-247.

64Não consideramos aqui o prefácio de Calvino ao trabalho de seu amigo Nicholas Duchemin, Antapologia, (6/3/1531).

65Cf. CALVIN, J. “To Francis Daniel,” John Calvin Collection, Albany, OR: Ages Software, 1998, (CD-ROM), (23/05/1532), nº 5, p. 37 e CALVIN, J. “To Francis Daniel,” John Calvin Collection, Albany, OR: Ages Software, 1998, (CD-ROM), (1532), nº 6, p. 38.

66MCNEILL, John T., The history and character of calvinism, p. 104. “Os Comentários sobre Sêneca foram de certo modo a culminação do humanismo do jovem Calvino” (BREEN, Quirinus. John Calvin: a study in french Humanism. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1931, p. 67).

67BOISSET, Jean, História do Protestantismo, p. 57. 68 PARKER, T. H. L. Portrait of Calvin. London: SCM Press, 1954, p. 19. 69GANOCZY, Alexandre. The young Calvin. Philadelphia: The Westminster Press, 1987, p. 179. 70George a denomina de “Obra-prima de erudição” (GEORGE, Timothy, Teologia dos Reformadores,

p. 171). 71Vd. WARFIELD, B. B. Calvin and Calvinism. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House [The

works of Benjamin B. Warfield; v. V], 1981, p. 4; GEORGE, Timothy, Teologia dos Reformadores, p. 171; MCGRATH, Alister C., The intellectual origins of the european Reformation, p. 54; FERREIRA, Wilson C., Calvino: vida, influência e teologia, p. 141ss.; WALLACE, Ronald S. Calvin, Geneva and the Reformation. Grand Rapids, Michigan/Edinburgh, UK.: Baker Book House/Scottish Academic Press, 1990, p. 5; GONZALEZ, Justo L., A era dos reformadores, p 109; SCHAFF, Philip, The creeds of Christendom, v. I, p. 424-425; SCHAFF, Philip, History of the christian church, v. VIII, p. 308-309; SILVA, Moisés. Em favor da Hermenêutica de Calvino. In: KAISER, Walter C.; SILVA, Moisés. Introdução à Hermenêutica bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 246-247.

72Aristóteles escrevera que “Na tirania há pouca ou nenhuma amizade. Com efeito, onde nada aproxi-ma o governante dos governados não pode haver amizade, uma vez que não há justiça” (Aristóteles. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1973, VIII.11, 1160 30. p. 391 [Os Pensadores, v. IV]).

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verdadeiros limites de realeza”,73 revelando, ainda que embriona-riamente a sua ousadia, que tão bem caracterizará a sua vida como pregador, escritor e administrador. Esta perspectiva humanista vai ser o fator determinante na sua aproximação pedagógica.74

73CALVIN, J. Commentary on Seneca’s de Clementia. John Calvin Collection. Albany, OR: Ages Software, 1998, (CD-ROM), p. 133. “Muitas farpas que disparava tinham em vista a ordem estabelecida, a igreja e a escolástica” (DANIEL-ROPS, Henri, A igreja da Renascença e da Reforma: a reforma pro-testante, p. 367-368). Mais tarde, escreveria em lugares diferentes: “Os príncipes e os magistrados devem, pois, recordar de Quem são servidores quando cumprem seu ofício, e não fazer nada que seja indigno de ministros e lugar-tenentes de Deus. A primeira de suas preocupações deve ser a de conservar, em sua verdadeira pureza, a forma pública da religião, conduzir a vida do povo com boas leis, e procurar o bem, a tranqüilidade pública e doméstica de seus súditos” (CALVINO, J. Breve instruccion cristiana. Barcelona: Fundación Editorial de Literatura Reformada, 1966, p. 83). Partindo do princípio de que as formas de governo estão sujeitas a falhas, escreve: “É verdade que o rei, ou qualquer indivíduo que exerça o poder monárquico, facilmente baixa à condição de tirano. Mas é igualmente fácil, quando elementos de alta posição exercem o governo, eles conspirarem para impor uma dominação iníqua. E ainda é muito mais fácil o surgimento de sedições quando é o povo que exerce a autoridade”, conclui, mostrando que Deus Se digna em manifestar a Sua providência através da variedade de governos, aos quais devemos nos submeter: “se deixarmos de fixar o nosso olhar só numa cidade e observarmos o mundo inteiro ou alguns países, por certo veremos que não é sem a ação da providência de Deus que diversas regiões sejam governadas por formas diversas de governo. Porque, assim como não se podem manter os elementos senão com uma proporção e uma temperatura desiguais, assim também não se pode manter os governos senão por meio de uma certa desigualdade. Contudo, não há necessidade de demonstrar todos os aspectos disto para aqueles para os quais a vontade de Deus é argumento suficiente. Porque, se é da vontade de Deus constituir reis sobre os reinos, e outras formas de autoridade sobre povos não sujeitos à monarquia, a nós compete sujeitar-nos e obedecer às autoridades que nos dominarem onde vivermos” (CALVINO, J. As Institutas, (1541), IV.16). “[Os governantes] encontram amplíssima consolação ao verificarem que a sua vocação não é algo profano nem alheio a um servo de Deus, mas um cargo sacratíssimo, já que, ao exercê-lo, eles fazem as vezes de Deus e executam o Seu ofício” (CALVINO, J. As Institutas, (1541), IV.16). “[Davi] prescreve uma norma aos reis terrenos, a saber: que, devotando-se ao bem público, seu único desejo para que sejam preservados é o bem de seu povo. Quão longe a realidade se acha disto, nem é preciso dizer. Cegados de soberba e presunção, desprezam o resto do mundo, como se sua pompa e dignidade os elevassem totalmente acima do estado comum do homem. Nem é para se admirar que a humanidade seja tão insolente e habitualmente pisoteada pelos pés dos reis, já que a maioria rejeita e desdenha carregar a cruz de Cristo” [CALVINO, J. O Livro dos Salmos. São Paulo, Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 28.9), p. 610]. Comentando o Salmo 45, faz uma crítica aos reis de sua época que governam pela força e não pela persuasão dos argumentos: “Quão manifestamente isso reprova a pobreza de espírito dos reis de nossos dias, por quem é considerado como derrogatório de sua dignidade dialogar com seus súditos e empregar a censura a fim de assegurar sua submissão; mas qual? exibem um espírito de bárbara tirania, buscando antes compeli-los pela força do que persuadi-los com humanidade; e em preferir antes abusar deles, como se fossem escravos, do que governá-los por leis e com justiça como pessoas tratáveis e obedientes” [CALVINO, J., O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 45.2), p. 307]. Ver: MCNEILL, John T., Los Forjadores del Cristianismo, v. II, p. 210.

74 Cf. REID, W. Stanford, Calvin and the founding of the Academy of Geneva: In: Westminster Theological Journal, 18, (1955), p. 4.

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2) Amigo de humanistas:75

O “humanismo” de Calvino é visível em sua formação, escritos e atitudes. Ele apoiou o humanista Guillaume Budé (1467-1540), que era chamado de “Prodígio da França”, e, juntamente com Eras-mo (1466-1536) e Juan Luis Vives (1492-1540), foi considerado o “triunvirato do humanismo europeu”.76

Budé, como historiador, filósofo e helenista, contribuiu para o reavivamento do interesse pela língua e literatura gregas e colaborou na introdução do Humanismo na França. Calvino também dedicou o seu Comentário da Primeira Epístola aos Tessalonicenses (Genebra, 17/02/1550) ao seu mestre de gramática e retórica, conhecido hu-manista, Maturinus Corderius (1479-1564) – que foi fundamental na formação do estilo de Calvino –, a quem Calvino chama de “homem de eminente piedade e erudição”,77 reconhecendo a sua dívida para com ele.78 Posteriormente, Corderius já convertido ao Protestantismo, Calvino o convidou a lecionar na Academia de Genebra, o que Corderius aceitou, sendo inclusive durante algum tempo diretor daquela instituição, permanecendo ali até a sua morte em 08/09/1564, quatro meses depois de Calvino.79 Corderius, além

75 Veja-se um bom resumo a respeito da influência de seus professores sobre a sua formação em BATTLES, Ford L. Interpreting John Calvin. Grand Rapids, MI.: Baker Books, 1996, p. 47-64. A discussão sobre este assunto é extensa. Vejam-se, entre inúmeros outros: BREEN, Quirinus. John Calvin: a study in french Humanism. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1931; GAMBLE, Richard C. (ed.). Articles on Calvin and Calvinism, New York & London: Garland Publishing, Inc., 1992; MCGRATH, Alister E. A vida de João Calvino. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 37ss. Para uma revisão bibliográfica, ver: COMPIER, Don H., The independent pupil: Calvin’s transformation of Erasmus’ theological Hermeneutics. The Westminster Theological Journal, Phila-delphia, Pennsylvania: Westminster Theological Seminary, (1992) 217-233.

76Cf. FRAILE, Guillermo. Historia de la Filosofia. Madrid: La Editorial Catolica, S.A. 1966, v. III, p. 62. 77CALVIN, J. Calvin’s Commentaries. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1981,

v. XXI, (Prefácio do seu comentário de 1ª Tessalonicenses) p. 234. 78 Na Dedicatória de 1ª Tessalonicenses, disse: “Eu me reconheço endividado para com você pelo

progresso que foi feito desde então. E isto eu estava desejoso de testemunhar à posteridade que, se qualquer vantagem provirá a eles de meus escritos, eles saberão que, em algum grau, se originaram com você” (CALVIN, J. Calvin’s Commentaries, v. XXI, p. 234).

79Vd. Theodore Beza. Life of John Calvin. John Calvin Collection, Albany, OR: Ages Software, 1998, (CD-ROM), p. 4; GEORGE, Timothy, Teologia dos Reformadores, p. 170; FISHER, Jorge P. Historia de la Reforma. Barcelona: CLIE., (1984), p. 195-196; IRWIN, C. H., Juan Calvino: su vida y su obra, p. 16s.; MCNEILL, John T., The history and character of calvinism, p. 98,192; MCNEILL, John T., Los Forjadores del Cristianismo, v. II, p. 207; SCHAFF, Philip, History of the christian church, v. VIII, p. 301-302.

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de brilhante e laborioso professor, 80 era conhecido por sua erudição, piedade e integridade.

Calvino dedicou o seu comentário de 2 Coríntios (01/08/1546) a outro humanista de influência luterana, que lhe ministrara aula de grego (e também a Beza),81 Melchior Wolmar († 1561), quem, como já fizemos menção, possivelmente pode ter despertado em seus alunos o interesse pela Reforma.82 Calvino diz que Wolmar era “o mais distinguido dos mestres [de grego]”.83

3) Humanismo e a graça comum:Calvino tinha uma visão ampla da cultura, entendendo que Deus

é Senhor de todas as coisas; por isso, toda verdade é verdade de Deus. Esta perspectiva amparava-se no conceito da “graça comum” ou “graça geral” de Deus sobre todos os homens.84 Ele diz: “... visto que toda verdade procede de Deus, se algum ímpio disser algo verdadeiro, não devemos rejeitá-lo, porquanto o mesmo procede de Deus. Além disso, visto que todas as coisas procedem de Deus, que mal haveria em empregar, para sua glória, tudo quanto pode ser corretamente usado dessa forma?”.85 Em outro lugar: “Se reputamos ser o Espírito

80 Beza registra que Corderius (Cordier) faleceu em Paris “aos oitenta e cinco anos, instruindo alunos do sexto ano, até três ou quatro dias antes de morrer” (BEZA, Theodoro. A vida e morte de João Calvino, Campinas. SP.: Luz para o Caminho, 2006, p. 9).

81 Beza testemunha a respeito de seu generoso mestre: “De quem me lembro com tanto maior agrado em que foi ele meu fiel preceptor e guia de toda a minha juventude, pelo que louvarei a Deus por toda minha vida” (BEZA, Theodoro, A vida e morte de João Calvino, p. 12).

82Vd. MCNEILL, John T., The history and character of calvinism, p. 110,195; IRWIN, C. H., Juan Calvino: su vida y su obra, p. 22; SCHAFF, Philip, History of the christian church, v. VIII, p. 305.

83CALVINO, J. Exposição de 2 Coríntios. São Paulo: Paracletos, 1995, Dedicatória, p. 8. 84Cf. As Institutas, II.2.16-17,27; II.3.4. Esta doutrina, que nada mais é do que a compreensão de

que o Espírito Santo exerce influência comum sobre os homens em geral, pode ser resumida em três pontos: 1) Uma atitude favorável da parte de Deus para com a humanidade em geral – eleitos e réprobos –, concedendo-lhes os bens necessários à sua existência: chuva, sol, água, alimento, vestuário, abrigo; 2) A restrição do pecado feita pelo Espírito Santo na vida dos indivíduos e na sociedade: “A obra da graça divina se vê em tudo que Deus faz para restringir a devastadora influ-ência e desenvolvimento do pecado no mundo....” (BERKHOF, L. Teologia Sistemática. Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 436); 3) A possibilidade da aplicação da justiça civil por parte do não regenerado: Aquilo que é certo nas atividades civis ou naturais. No entanto, deve ser dito que esta graça: a) Não remove a culpa do pecado; b) Não suspende a sentença de condenação, portanto, o homem continua sob o juízo de Deus. Deste modo, esta ação do Espírito deve ser distinta da Sua operação efetiva no coração dos eleitos através da qual Ele os regenera.

85CALVINO, J. As Pastorais. São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 1.12), p. 318. Vd. também: As Institutas, I.5.2; I.15.6; II.2.13,15, 16. CALVIN, J., To Bucer, “Letters,” John Calvin Collection, Albany, OR:

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de Deus a fonte única da verdade mesma, onde quer que ela haja de aparecer, nem a rejeitaremos, nem a desprezaremos, a menos que queiramos ser insultuosos para com o Espírito de Deus”.86 Por exemplo em passagem magistral, analisando Gênesis 4.20, destaca o fato de que mesmo na amaldiçoada descendência de Caim há espaço para a graça de Deus, concedendo-lhe dons que permitissem a invenção das artes e de outras coisas úteis para a vida presente. “Verdadeiramente é maravilhoso, que esta raça que tinha caído profundamente de sua integridade superaria o resto da posteridade de Adão com raros dons”.87 Entende que Moisés registrou isso para realçar a graça de Deus que não se tornou vã sobre estes homens, visto que “havia entre os filhos de Adão homens trabalhadores e habilidosos, que exerceram sua diligência na invenção e no cultivo da arte”.88 Por isso, as “artes liberais (Humanidades) e ciências chegaram até nós pelos pagãos. Realmente, somos compelidos a reconhecer que recebemos deles a astronomia e outras partes da filosofia, a medicina e a ordem do governo civil”.89

Hooykaas (1906-1994) resume o humanismo de Calvino: “Ele era um humanista talentoso e realista demais para aceitar que a

Ages Software, 1998, (CD-ROM), Fevereiro de 1549, nº 236. Fiel a esse princípio, na Academia de Genebra, estudavam-se autores gregos e latinos, tais como: Heródoto, Xenofonte, Homero, Demóstenes, Plutarco, Platão, Cícero, Virgílio, Ovídio, entre outros. (Ver: SCHAFF, Philip, History of the christian church, Vol. VIII, p. 805; WALLACE, Ronald S., Calvin, Geneva and the Reformation, p. 99). NAs Institutas, escreveu: “Admito que a leitura de Demóstenes ou Cícero, de Platão ou Aristóteles, ou de qualquer outro da classe deles, nos atrai maravilhosamente, nos deleita e nos comove ao ponto de nos arrebatar” [CALVINO, J., As Institutas, (1541), I.24]. Calvino conside-rava Platão, “entre todos o mais religioso [filósofo] e particularmente sóbrio” [CALVINO, J. , As Institutas, I.5.11]. Ver também: CAMPOS, Heber Carlos, A “filosofia educacional” de Calvino e a fundação da Academia de Genebra. Fides Reformata, São Paulo: Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, 5/1, 2000, 41-56, p. 51.

86CALVINO, J., As Institutas, II.2.15. Ele acrescenta: “Se o Senhor nos quis deste modo ajudados pela obra e ministério dos ímpios na física, na dialética, na matemática e nas demais áreas do saber, façamos uso destas, para que não soframos o justo castigo de nossa displicência, se negligenciarmos as dádivas de Deus nelas graciosamente oferecidas” (CALVINO, J., As Institutas, II.2.16). (Vd. CALVINO, J., As Institutas, II.2.12-17).

87 CALVIN, J. Calvin’s Commentaries. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. I, (Gn 4.20), p. 217.

88 CALVIN, J., Calvin’s Commentaries, Vol. I, (Gn 4.20), p. 218. 89 CALVIN, J., Calvin’s Commentaries, Vol. I, (Gn 4.20), p. 218. “É bem verdade que os que recebe-

ram instrução sobre as artes liberais, ou que provaram algo delas, têm nesse conhecimento uma ajuda especial para aprofundar-se nos segredos da sabedoria divina” (CALVINO, J., As Institutas (1541), I.11).

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queda tivesse levado o homem a uma total depravação no campo científico”.90 Wallace, por sua vez, acentua que Calvino

sempre insistiu que a tradição precisava ser constantemente corrigida

pelo ensino das Sagradas Escrituras e ser subordinada a elas. Porém,

ele sempre foi cuidadoso e criterioso em examinar minuciosamente

dentro da tradição o que devia ser rejeitado e o que devia ser aceito.

Ninguém foi mais obstinado em manter aquilo que ele tinha experi-

mentado como algo bom, qualquer que fosse sua origem, contanto

que sua retenção não atrapalhasse a total sujeição de sua mente e

de sua vida à Palavra de Deus ou o desviasse de seguir a Cristo.91

4) Objetividade desejadaCalvino procurava ser objetivo em sua análise bíblica, teoló-

gica e mesmo nas questões cotidianas. Analisando a divergência entre os zuinglianos e os luteranos concernente à ceia do Senhor, comentou: “Uns e outros erraram em não ter paciência para escutar-se a fim de seguir a verdade sem parcialidade, onde quer que se encontrasse”.92

a) Limitações de nosso conhecimentoEssa compreensão tinha implicações em outras áreas; por exemplo:

Calvino entende que a divergência em questões secundárias não deve servir de pretexto para a divisão da igreja; afinal, todos, sem exceção, estão envoltos de “alguma nuvenzinha de ignorância”:

São palavras do apóstolo: ‘Todos quantos somos perfeitos sintamos

o mesmo; se algo entendeis de maneira diferente, também isto vos

90 HOOYKAAS, R. A religião e o desenvolvimento da ciência moderna. Brasília, DF.: Editora Universidade de Brasília, 1988, p. 152. Ver: CALVINO, J., As Institutas, II.12-13; WALLACE, Donald S., Calvino, Genebra e a Reforma. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 91-96.

91 WALLACE, Donald S. Calvino, Genebra e a Reforma. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 11-12. Veja-se uma boa análise em: ENGEL, Mary Potter. John Calvin’s perspectival anthropology. Eugene, Oregon: Wipf and Stock Publishers, 2002, p. 199-205.

92 CALVINO, J. Breve tratado sobre la santa cena. In: Tratados Breves. Buenos Aires/México, La Au-rora/Casa Unida de Publicaciones, 1959, p. 46. Vd. PACKER, J. I. “Fundamentalism” and the Word of God. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1988 (Reprinted), p. 34.

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haverá de revelar o Senhor’ [Fp 3.15]. Não está ele, porventura, a

suficientemente indicar que o dissentimento acerca destas cousas

não assim necessárias não deve ser matéria de separação entre

cristãos? Por certo que estará em primeira plana que em todas as

cousas estejamos em acordo; mas, uma vez que ninguém há que

não esteja envolto de alguma nuvenzinha de ignorância, impõe-se

que ou nenhuma igreja deixemos, ou perdoemos o engano nessas

cousas que possam ser ignoradas não somente inviolada a suma da

religião, mas também aquém da perda da salvação.

Mas, aqui, não quereria eu patrocinar a erros, sequer os mais

diminutos, de sorte que julgue devam ser fomentados, com agir

com complacência e ser-lhes conivente.93 Digo, porém, que não

devemos por causa de quaisquer dissentimentozinhos abandonar

irrefletidamente a igreja, em que somente se retenha salva e iliba-

da essa doutrina, mercê da qual se mantém firme a incolumidade

da piedade e conservado é o uso dos sacramentos instituído pelo

Senhor.94

Não vejo, porém, nenhuma razão por que uma igreja, por mais uni-

versalmente corrompida, desde que contenha uns poucos membros

santos, não deva ser denominada, em honra desse remanescente, de

santo povo de Deus.95

93 “Paulo, pois, nos ensina [Ef 5.11] que, quando não reprovamos os maus, essa é uma espécie de comunhão com as obras infrutíferas das trevas. É certamente um modo de agir muito perverso quando certas pessoas, buscando alcançar o favor humano, indiretamente desdenham de Deus; e todos são coniventes em fazer com que seus negócios sejam do agrado dos perversos. Davi, contudo, sente deferência, não tanto pela pessoa do perverso, mas pelas suas obras. O homem que vê o perverso sendo honrado, e pelos aplausos do mundo se torna ainda mais obstinado em sua perversidade, e que de bom grado dá seu consentimento ou aprovação, com isso não estará enaltecendo o vício, em vez da autoridade, e o envolvendo de soberano poder?” [CALVINO, J., O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 15.1), p. 293].

94 CALVINO, J., As Institutas, IV.1.12. Em outro lugar: “Onde se professava o Cristianismo, se adorava um único Deus, se praticavam os Sacramentos e se exercia algum gênero de ministério, ali permaneciam as marcas da igreja. Nem sempre encontramos nas igrejas tal pureza como era de se desejar. Ainda a mais pura tem suas máculas, e algumas têm não só umas poucas manchas aqui e ali, mas são quase que completamente deformadas. Não devemos ficar tão desconcertados pelo ensino e vida de alguma sociedade que, se não ficamos satisfeitos com tudo o que se procede ali, então prontamente negamos ser ela uma igreja” [CALVINO, J. Gálatas. São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 1.2), p. 25].

95 CALVINO, J. O Livro dos Salmos. São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 50.4), p. 401.

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Contanto que a religião continue pura quanto à doutrina e ao culto,

não devemos deixar-nos abalar em demasia ante os erros e pecados

que os homens cometem, como se com isso a unidade da igreja fosse

dilacerada. Entretanto, a experiência de todas as épocas nos ensina

quão perigosa esta tentação se torna quando vemos a igreja de Deus,

que deve prosseguir isenta de toda e qualquer mancha poluente

e resplandecer em incorruptível pureza, nutrindo em seu seio um

grande número de hipócritas ímpios ou pessoas perversas. […] Mas

Cristo, em Mateus 25.32, com justa razão alega ser seu, com toda

propriedade, o ofício peculiar de separar as ovelhas dos cabritos; e

por isso nos admoesta que devemos suportar os maus, e que não está

em nosso poder corrigi-los, até que as coisas se tornem amadurecidas

e chegue o tempo próprio de purificar a igreja. Ao mesmo tempo, os

fiéis são aqui intimados, cada um em sua própria esfera, a empregar

todos os seus esforços para que a igreja de Deus seja purificada das

corrupções que nela ainda persistem.

[…] O sagrado celeiro de Deus não estará perfeitamente purificado

antes do último dia, quando Cristo, em sua vinda, lançará fora a

palha. Mas ele já começou a fazer isso através da doutrina do seu

evangelho, que chama crivo de joeirar. Não devemos, pois, de forma

alguma ser indiferentes acerca desse assunto; ao contrário, devemos

antes mostrar-nos absolutamente sérios, para que todos nós que

professamos ser cristãos possamos levar uma vida santa e imaculada.

Acima de tudo, porém, o que Deus aqui declara com respeito a toda

injustiça deve ficar indelevelmente impresso em nossa memória; ou

seja, que ele os proíbe de entrar em seu santuário, e condena sua

ímpia presunção em irreverentemente intrometer-se na sociedade

dos santos.96

Todavia, ainda quando a igreja seja remissa em seu dever, não por

isso será direito de cada um em particular a si pessoalmente assumir

a decisão de separar-se.97

96 CALVINO, J., O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 15.1), p. 287-289. 97 CALVINO, J., As Institutas, IV.1.15. Em outro lugar Calvino diz: “Deus só é corretamente servido

quando sua lei for obedecida. Não se deixa a cada um a liberdade de codificar um sistema de religião ao sabor de sua própria inclinação, senão que o padrão de piedade deve ser tomado da Palavra de Deus” (CALVINO, J., O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 1.1), p. 53).

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Há tanta rabugice em quase todos esses indivíduos que, estando

em seu poder, de bom grado fariam para si suas próprias igrejas,

porquanto se torna difícil acomodarem-se aos modos das demais

pessoas.98

É indubitável que a nós compete cultivar a unidade da forma a

mais séria, porque Satanás está bem alerta, seja para arrebatar-nos

da igreja, ou para desacostumar-nos dela de maneira furtiva.99

b) Humildade necessáriaNa sua concepção a humildade se constitui num primeiro passo

para alcançar a unidade. Continua:

Donde procede a impudência, a soberba e as injúrias lançadas con-

tra os irmãos? Donde procede as questiúnculas, os escárnios e as

exprobrações, a não ser do fato de cada um amar excessivamente a si

próprio e de querer agradar em demasia a si próprio? Aquele que se

desfaz da arrogância e cessa de agradar a si próprio se tornará manso

e acessível. E quem quer que persista em tal moderação ignorará e

tolerará muitas coisas nos irmãos.(...) Será inútil ensinar a mansidão,

a menos que tenhamos iniciado com humildade.100

Portanto, “devemos ser unidos, não apenas em uma parte, mas

no corpo e na alma”.101 Em 19 de agosto de 1561, na Dedicatória de seu comentário do Profeta Daniel, Calvino fala de seu esforço por manter a paz102 – o que nem sempre havia sido possível –, e, ao mesmo tempo, estimula seus irmãos a não ultrapassarem deter-minados limites. Escreve:

Mais ainda, é vossa incumbência, amados irmãos, tomar prudente

cuidado para que a verdadeira religião possa novamente readquirir

uma posição sã; isto é, até onde cada um tiver o poder e a vocação.

98 CALVINO, J., Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 10.25), p. 272. 99 CALVINO, J., Exposição de Hebreus, (Hb 10.25), p. 273. 100CALVINO, J. Efésios. São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 4.1), p. 108. 101CALVINO, J., Efésios, (Ef 4.1-4), p. 109. 102 Veja-se: BEZA, Theodoro, A vida e morte de João Calvino, p. 30-31.

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Não é necessário dizer o quanto tenho lutado para remover toda e

qualquer ocasião geradora de tumultos até agora. Clamo aos anjos e a

vós para testemunhardes diante do supremo juiz que não é de minha

responsabilidade que o progresso do reino de Cristo não tenha sido

calmo e inofensivo. De fato, julgo ser em decorrência de meu cuidado

que pessoas particulares ainda não passaram dos limites.103

Ele entende que Satanás muitas vezes se vale de nossos bons sentimentos para fazer com que quebremos a unidade da igreja, su-postamente, em busca de uma igreja ideal. Para este mister, somos capazes até de reunir textos que falam da santidade da igreja como pretexto para a nossa atitude.104 “Recordemos sempre, quando o diabo nos empurrar para as controvérsias, que as desavenças dos membros, no seio da igreja, não nos levam a parte alguma, senão para a ruína e destruição de todo o corpo”.105 Como os jovens são mais irritáveis, dá uma orientação mais específica:

Os jovens, em meio às controvérsias, se irritam muito mais depressa

do que os de mais idade; se iram mais facilmente, cometem mais

equívocos por falta de experiência e se precipitam com mais ousadia

e temeridade. Daí ter Paulo boas razões para aconselhar a um jovem

precaver-se contra os erros próprios de sua idade, os quais, de outra

forma, poderiam facilmente envolvê-lo em disputas inúteis.106

c) Unidade na PalavraApós argumentar contra aqueles que chamavam os reformados

de hereges, ressalta que a unidade cristã deve ser na Palavra:

Com efeito, também isto é de notar-se: que esta conjunção de amor

assim depende da unidade de fé que lhe deva ser esta o início, o fim,

a regra única, afinal. Lembremo-nos, portanto, quantas vezes se nos

103 CALVINO, J. O Profeta Daniel: 1-6. São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, p. 26. 104 Cf. CALVIN, J. Calvin’s Commentaries. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company,

1996, (Reprinted), v. XV, (Ag 2.1-5), p. 351. 105 CALVINO, J., Gálatas, (Gl 5.15), p. 165. 106 CALVINO, J. As Pastorais. São Paulo: Paracletos, 1998, (2Tm 2.22), p. 244.

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recomenda a unidade eclesiástica, isto ser requerido: que, enquanto

nossas mentes têm o mesmo sentir em Cristo, também entre si

conjungidas nos hajam sido as vontades em mútua benevolência

em Cristo. E, assim, Paulo, quando para com ela nos exorta, por

fundamento assume haver um só Deus, uma só fé e um só batismo

[Ef 4.5]. De fato, onde quer que nos ensina o apóstolo a sentir o

mesmo e a querer o mesmo, acrescenta imediatamente: em Cristo

[Fp 2.1,5] ou: segundo Cristo [Rm 15.5], significando ser conluio de

ímpios, não acordo de fiéis, a unidade que se processa à parte da

Palavra do Senhor.107

Em outro lugar, instrui: “A melhor forma de promover a unidade é congregar [o povo] para o ensino comunitário....”.108

Calvino, em 1554, consola os irmãos refugiados em Wezel (Ale-manha), que sofriam diversas pressões de luteranos e sobreviviam numa pequena Igreja Reformada, mostrando que apesar dos grandes problemas pelos quais passava o mundo, Deus lhes havia concedi-do um lugar onde poderiam adorar a Deus em liberdade. Também os desafia a não abandonarem a igreja por pequenas divergências nas práticas cerimoniais, sendo tolerantes a fim de preservar a unidade. Contudo, os exorta a jamais fazerem acordos em pontos doutrinários.109

Portanto, mesmo desejando a paz e a concórdia, Calvino entendia que essa paz nunca poderia ser em detrimento da verdade; pois, se assim fosse, tal paz seria maldita:

Naturalmente, há uma condição para entendermos a natureza desta

paz, ou seja, a paz da qual a verdade de Deus é o vínculo. Pois se

temos de lutar contra os ensinamentos da impiedade, mesmo se for

107 CALVINO, J., As Institutas, IV.2.5. Calvino entendia que “onde os homens amam a disputa, estejamos plenamente certos de que Deus não está reinando ali” (CALVINO, J. Exposição de 1 Coríntios. São Paulo: Edições Paracletos, 1996, (1Co 14.33), p. 436). T. George comenta com acerto que “Calvino não estava disposto a comprometer pontos essenciais em favor de uma paz falsa, mas ele tentou chamar a igreja de volta à verdadeira base de sua unidade em Jesus Cristo” (GEORGE, Timothy, Teologia dos Reformadores, p. 182-183).

108 CALVINO, J., Efésios, (Ef 4.12), p. 125. 109CALVIN, J. To the brethren of Wezel, “Letter.” John Calvin Collection. Albany, OR: Ages Software,

1998, (CD-ROM), nº 346, p. 32-34.

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necessário mover céu e terra, devemos, não obstante, perseverar na

luta. Devemos, certamente, fazer que a nossa preocupação primária

cuide para que a verdade de Deus seja mantida em qualquer con-

trovérsia; porém, se os incrédulos resistirem, devemos terçar armas

contra eles, e não devemos temer sermos responsabilizados pelos

distúrbios. Pois a paz, da qual a rebelião contra Deus é o emblema,

é algo maldito; enquanto que as lutas, indispensáveis à defesa do

reino de Cristo, são benditas.110

Em 20 de março de 1552, Thomas Cranmer (1489-1556)111 escreveu a Calvino – bem como a Melanchthon (1497-1560)112 e a Bullinger (1504-1575)113 –, convidando-o para uma reunião no Palácio de Lambeth com o objetivo de preparar um credo que fosse consensual para as Igrejas Reformadas.114 Cranmer tinha em vista também a realização do Concílio de Trento115 que estava em andamento, estando preocupado de modo especial com a questão

110 CALVINO, J., Exposição de 1 Coríntios, (1Co 14.33), p. 437. 111 Arcebispo de Canterbury, que em 1549 havia elaborado o Livro de Oração Comum, no qual dava

ênfase ao culto em inglês, à leitura da Palavra de Deus e, ao aspecto congregacional da adoração cristã.

112 Melanchthon, mesmo sendo luterano e amigo pessoal de Lutero, desfrutou também de boa amizade com Calvino, mantendo com este ampla correspondência. Nos dizeres de Schaff, Melanchthon “permaneceu como um homem de paz entre dois homens de guerra” (SCHAFF, Philip, History of the christian church, v. VIII, p. 260). O seu principal trabalho teológico foi Loci Communes (abril de 1521). Este tratado foi a primeira obra de teologia sistemática protestante do período da Reforma, marcando época portanto, na história da teologia. Nele Melanchthon segue a ordem da Epístola aos Romanos. (Ver: SCHAFF, Philip, History of the christian church, v. VII, 368-370). A tradução francesa do trabalho de Melanchthon foi prefaciada por Calvino (1546). (Cf. DE GREEF, W. The writings of John Calvin: an introductory guide. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1993, p. 205).

113Bullinger foi amigo, discípulo e sucessor de Zuínglio (1484-1531), tendo escrito cerca de 150 obras, entre elas, A segunda Confissão Helvética (1562-1566).

114 Cranmer, na carta a Calvino, escreve: “Como nada mais tende a separar as igrejas de Deus que as heresias e diferenças sobre as doutrinas de religião, assim nada mais eficazmente os une, e fortalece a obra de Cristo mais poderosamente, que a doutrina incorrupta do evangelho, e união em opiniões reconhecidas. Eu tenho freqüentemente desejado, e agora desejo que esses homens instruídos e piedosos que superam outros em erudição e julgamento, constituíssem uma assembléia em um lugar conveniente, onde se realizasse uma consulta mútua, e comparando as suas opiniões, eles poderiam discutir todas as principais doutrinas da igreja.... Nossos adversários estão agora organizando o seu concílio em Trento, no qual eles podem estabelecer os seus erros. E devemos nós negligenciar convocar um sínodo piedoso que nos possibilite refutar os erros deles, e purificar e propagar a verdadeira doutrina?” (Thomas Cranmer to Calvin, “Letter.” John Calvin Collection. Albany, OR: Ages Software, 1998, (CD-ROM), 16).

115Cranmer era um teólogo e estadista; a sua preocupação com Trento era pertinente e a história já demonstrou amplamente esse fato.

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da ceia do Senhor. Calvino então responde (abril de 1552), enco-rajando Cranmer a perseverar no seu objetivo. A certa altura diz: “Estando os membros da igreja divididos, o corpo sangra. Isso me preocupa tanto que, se pudesse fazer algo, eu não me recusaria a cruzar até dez mares, se necessário fosse, por essa causa”.116 O próprio Cranmer comporia no Livro de oração comum uma oração para o culto anual anglicano, quando se comemorava a coroação do monarca. A oração diz:

Ó Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, nosso único Salvador, o

Príncipe da Paz: Dá-nos a graça para com seriedade nos compene-

trarmos dos grandes perigos em que nos encontramos por causa de

nossas lamentáveis divisões, retira todo o ódio e preconceito e tudo

o mais que possa impedir-nos de ter uma união e concórdia piedosas;

para que, como existe somente um só corpo e um só Espírito e uma

só esperança de nossa vocação, um só Senhor, uma só fé, um só ba-

tismo, um só Deus e Pai de todos nós, assim possamos de agora em

diante ser todos de um só coração, de uma só alma, unidos em um

único e santo vínculo de verdade e paz, de fé e caridade, e possamos

de uma só mente e com uma só boca glorificar-te: por meio de Jesus

Cristo, nosso Senhor. Amém.117

116 Letters of John Calvin: selected from the Bonnet Edition. Edinburgh, The Banner of Truth Trust, 1980, p. 132-133. Comentando sobre o egoísmo humano que gera divisões na igreja e, ao mesmo tempo a falta de tolerância, Calvino escreve, exortando-nos a amar os nossos irmãos (retomo, aqui, parte de citação feita acima) “Há tanta rabugice em quase todos esses indivíduos que, es-tando em seu poder, de bom grado fariam para si suas próprias igrejas, porquanto se torna difícil acomodarem-se aos modos das demais pessoas. Os ricos invejam uns aos outros, e raramente se encontra um entre cem que acredite que os pobres são também dignos de ser chamados e incluídos entre seus irmãos. A menos que haja similaridade em nossos hábitos, ou alguns atrativos pessoais, ou vantagens que nos unam, será muitíssimo difícil manter uma perene comunhão entre nós. Essa advertência, pois, se torna mais que necessária a todos nós, a fim de sermos encorajados a amar, antes que odiar, e não nos separarmos daqueles a quem Deus nos uniu. Torna-se urgente que abracemos com fraternal benevolência aqueles que nos são ligados por uma fé comum. É indubitável que a nós compete cultivar a unidade da forma a mais séria, porque Satanás está alerta, seja para arrebatar-nos da igreja, ou para desacostumar-nos dela de maneira furtiva” (CALVINO, J. Exposição de Hebreus. São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 10.25), p. 272-273). Schaff analisa: “A igreja de Deus era a sua casa, e aquela igreja não conhece nenhum limite de nacionalidade e idioma. O mundo era a sua paróquia. Tendo rompido com o papado, ele ainda permaneceu um católico na melhor acepção da palavra, e orou e trabalhou para a unidade de todos os crentes” (SCHAFF, Philip, History of the christian church, v. VIII, p. 799).

117 Apud NOLL, Mark A. Momentos decisivos na história do Cristianismo. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2000, p. 204.

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d) Humanismo teológico1) A valorização do homem como imagem de Deus:Robert D. Knudsen, tratando da visão “humanística” de Cal-

vino, diz:

É um erro supor que o duradouro interesse de Calvino pelos estudos

humanísticos e pelo desenvolvimento cultural do homem fosse um

simples remanescente do tempo que precedeu sua conversão à fé

evangélica. Sua preocupação para com os estudos humanísticos e

para com aquilo que diz respeito ao que é humano, está muito in-

separavelmente ligado ao seu modo global de pensar, para permitir

uma tal interpretação.

De fato, num sentido que precisa ser bem definido e cuidadosa-

mente preservado de má compreensão, Calvino pode ser chamado

de ‘humanista’. Através de toda a sua vida, ele teve um profundo

compromisso para com aquilo que é humano [...]

Calvino ataca aqueles humanistas que fazem a apoteose do ser

humano e pensam que a realização daquilo que é humano pode ser

alcançada somente na presumida independência de Deus e de sua

revelação. Ele mesmo como um humanista, rejeitou aquilo que era o

coração da idéia de personalidade do Renascimento, a idéia de que

o homem é a fonte criadora de seus próprios valores e, portanto, no

fundo, incapaz de pecar.118

[Segundo Calvino] o homem só se conhece verdadeiramente quando

se conhece à luz de Deus e de sua revelação, com o corolário implícito

de que, se se conhece verdadeiramente, conhece verdadeiramente

também a Deus. Não é muito extrair desta correlação o pensamento

de que o homem, estando verdadeiramente relacionado com Deus

pela piedade, estará verdadeiramente relacionado consigo mesmo,

e estando relacionado consigo pela piedade, estará verdadeiramente

relacionado com Deus.119

118 KNUDSEN, Robert D. O Calvinismo como uma força cultural. In: REID, W. Stanford (ed.). Calvino e sua influência no mundo ocidental. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 13-14.

119 KNUDSEN, Robert D. O Calvinismo como uma força cultural. In: REID, W. Stanford (ed.), Calvino e sua influência no mundo ocidental, p. 19

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Para Calvino, tornou-se possível relacionar a idéia de humanidade

à antítese religiosa retratada na Escritura. O caminho foi aberto

pela idéia de que o homem se torna humano em sua relação com

Deus. O homem, em si mesmo, é verdadeiramente homem quando

responde àquilo que constitui o modo de ser de sua natureza, àquilo

para o que foi criado [...]. A autonomia humana pecaminosa, longe

de ser o caminho para a auto-realização humana, é, em si mesma,

uma distorção daquilo que é humano.120

De modo semelhante, escreve André Biéler:

A diferenciação clara das atribuições desses dois campos (teocen-

trismo e antropocentrismo) explica a grande liberdade com que

Calvino soube combinar as valiosas conquistas do humanismo com

os ensinamentos insubstituíveis da teologia, sem todavia cair nas

enganosas sínteses almejadas pela escolástica romana e que impor-

tava evitar a todo preço [...].

Calvino, foi portanto, um humanista. E o foi no seu mais alto grau

porque, ao conhecimento natural do homem pelo próprio homem,

acrescentou, sem confundir, o conhecimento do homem que Deus

revela à sua criatura através de Jesus Cristo. Não se tratava, pois, de

dar as costas ao humanismo e sim de suplantá-lo dando-lhe, talvez,

as suas mais amplas dimensões. De um conhecimento puramente

antropocêntrico, Calvino queria passar ao conhecimento do homem

total, cujo centro se localiza no mistério de Deus.

Por vezes, ele se opôs aos humanistas, mas sua oposição não visava

tanto ao humanismo como tal, e sim ao ateísmo e ao antropocen-

trismo exclusivo de alguns, confinados no seu orgulho intelectual e

numa confiança ilimitada no homem incompatíveis com a fé cristã.

Resumindo, enquanto a ciência da Idade Média foi a Teologia, o

estudo de Deus, a da Renascença foi o humanismo, o estudo do ho-

mem. A ciência de Calvino, por sua vez, é um humanismo teológico

que inclui a um tempo o estudo do homem e da sociedade através

120 KNUDSEN, Robert D. O Calvinismo como uma força cultural. In: REID, W. Stanford (ed.), Calvino e sua influência no mundo ocidental, p. 20.

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do duplo conhecimento do homem pelo homem, de um lado, e do

homem por Deus, de outro.121

Em suma, podemos dizer, que o “humanismo” de Calvino era

um “humanismo cristocêntrico”, caracterizando-se pela compre-ensão de que o homem encontra a sua verdadeira essência no conhecimento de Deus.122 Conhecer a Deus significa ter uma perspectiva clara de si mesmo; a recíproca também é verdadeira: não há conhecimento genuíno de Deus sem um conhecimento correto de si mesmo.

A dignidade e beleza do homem estão em ter sido criado “à imagem e semelhança de Deus”,123 podendo, portanto, relacionar-se com o seu Criador.124 No homem a “sua imagem e glória peculiar-mente brilham”.125 O conhecimento de Deus, deve nos conduzir ao temor e à reverência, tendo a Deus como guia e mestre, buscando nele todo o bem.126

2) A Academia de GenebraFiel ao seu princípio de que “...as escolas teológicas [são] berçá-

rios de pastores”,127 Calvino (1509-1564), criou uma Academia em

121BIÉLER, André. O humanismo social de Calvino. São Paulo: Edições Oikoumene, 1970, p. 12-13. 122 “Esse humanismo cristocêntrico, essa nova imagem do homem, redescoberta pelo Cristianismo

reformado, permitia a cada indivíduo compreender que sua natureza atual era uma natureza degradada e que devia ser restaurada. Mas essa nova concepção permitia-lhe também descobrir que ele trazia em si, como toda pessoa, os traços maravilhosos de sua identidade primeira. Cada indivíduo podia, portanto, conhecer-se a si mesmo e redescobrir que toda a criação era também convidada para sua renovação (Rm 8.20-21)” (BIÉLER, André. A força oculta dos protestantes. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 47).

123 Vejam-se: CALVINO, J., As Institutas, I.15.3 e 4; CALVIN, J. Commentaries on the first book of Moses called Genesis. Grand Rapids, Michigan: Eerdamans Publishing Co., 1996 (Reprinted), v. 1, (Gn 1.26-27), p. 92, (Gn 5.1), p. 227; CALVINO, J., A Verdadeira Vida Cristã, p. 37-38; CALVINO, J., O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 8.7-9), p. 173-174; CALVINO, J. Breve instruccion cristiana. Barcelona: Fundación Editorial de Literatura Reformada, 1966, p. 25;

124 Vd. ERICKSON, Millard J. Introdução à teologia sistemática. São Paulo: Vida Nova, 1997, p. 207. 125 CALVIN, J. Commentaries on the Epistle of James. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House

Company, 1996, (Calvin’s Commentaries, v. XXII), (Tg 3.9), p. 322. 126 Cf. CALVINO, J., As Institutas, I.2.2. 127 CALVINO, J., As Pastorais, (1Tm 3.1), p. 82. Schaff usa essa expressão referindo-se à Academia

de Genebra, um “berçário de pregadores evangélicos” (SCHAFF, Philip, History of the christian church, v. VIII, p. 820).

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Genebra (5/6/1559)128 – contando com 600 alunos, aumentando já no primeiro ano para 900 alunos129 –, a quem coube a educação dos protestantes da língua francesa, atingindo em sua maioria alunos estrangeiros vindos da França, Holanda, Inglaterra, da Alemanha, da Itália e de outras cidades da Suíça.130 Além disso, Genebra se tornou

128 Data da sessão solene de inauguração, presidida por Calvino na Catedral de São Pedro. (A. Biéler, O pensamento econômico e social de Calvino, p. 192; SCHAFF, Philip, History of the christian church, v. VIII, p. 805; Calvin, Textes Choisis par Charles Gagnebin. Egloff, Paris, c. 1948, p. 302; VAN HALSEMA, Thea B. João Calvino era assim, p. 195). Na ocasião estavam presentes todo Conselho e os ministros. Calvino rogou a bênção de Deus sobre a Academia, a qual estava sendo dedicada à ciência e religião. Michael Roset, o secretário de Estado, leu a Confissão de Fé o os estatutos que regeriam a instituição. Beza foi proclamado reitor, ministrando uma aula inaugural em latim. A reunião foi encerrada com uma breve palavra de Calvino e oração pelo próprio. (Cf. SCHAFF, Philip, History of the christian church, v. VIII, p. 805; VAN HALSEMA, Thea B., João Calvino era assim, p. 195). John Knox (1515-1572), que estudou na Academia, escreveria mais tarde a uma amiga (09/12/1556) dizendo ser a Igreja de Genebra “a mais perfeita escola de Cristo que jamais houve na terra desde os dias dos Apóstolos” (MCNEILL, John T., The history and character of calvinism, p. 178; SCHAFF, Philip, History of the christian church, v. VIII, p. 263; SCHAFF, Philip, The creeds of Christendom, v. I, p. 460; GEORGE, Timothy, Teologia dos Reformadores, p. 167; HALL, Basil, John Calvin: humanist and theologian. London: The Historical Association by George Philip & Son, Ltd., 1956, p. 6, 36; Schaff observa que havia uma faculdade em Genebra, desde 1428, chamada “Faculdade Versonnex”, que se destinava à preparação de clérigos; no entanto ela havia entrado em decadência, sendo reorganizada por Calvino em 1541. A instrução era gratuita. Ain-da segundo Schaff, Calvino incentivou a educação fundando diversas escolas estrategicamente distribuídas na cidade. As taxas eram baixas até que foram abolidas (1571) conforme pedido de Beza. “Calvino às vezes é chamado o fundador do sistema de escola pública”. Calvino desejava criar uma grande universidade, contudo os recursos da República eram pequenos para isso, as-sim ele se limitou à Academia. Contudo até para criar a Academia ele teve de pedir de casa em casa donativos, conseguindo arrecadar a soma respeitável de 10,024 guilders de ouro. Diversos estrangeiros que ali residiam contribuíram generosamente, havendo também um genebrino, Bonivard, o Velho, que doou toda a sua fortuna à instituição. (Cf. SCHAFF, Philip, History of the christian church, v. VIII, p. 804-805).

129Cf. SCHAFF, Philip, History of the christian church, v. VIII, p. 805; WALLACE, Ronald S., Calvin, Geneva and the Reformation, p. 99. Em 1564 a Academia contaria com 1200 alunos nos cursos superiores e 300 nos inferiores. (Cf. FERREIRA, Wilson C., Calvino: vida, influência e teologia, p. 196; A. Biéler, O pensamento econômico e social de Calvino, p. 192; DANIEL-ROPS, Henri, A igreja da Renascença e da Reforma: a reforma protestante, p. 413).

130Genebra chegou a abrigar mais de 6 mil refugiados vindos da França, Itália, Inglaterra, Espanha e Holanda (Cf. SCHAFF, Philip, History of the christian church, v. VIII, p. 802; CERNI, Ricardo. Historia del Protestantismo. 2ª ed. Corregida, Edinburgh: El Estandarte de la Verdad, 1995, p. 63), aumentando este número com os estudantes que para lá se dirigiram com a fundação da Academia de Genebra (1559). Lembremo-nos que a população de Genebra era de 9 a 13 mil habitantes (9 mil segundo REID, W. S. A propagação do calvinismo no século XVI. In: REID, W. Stanford (ed.). Calvino e sua influência no mundo ocidental, p. 52; 12 mil conforme MCNEILL, J. T., Los forjadores del Cristianismo, v. II, p. 211; 13 mil de acordo com NICHOLS, Robert H. História da igreja cristã. São Paulo: CEP., 1978, p. 164; em torno de 10 mil conforme NAPHY, William G. Calvin and the consolidation of the genevan reformation. Louisville: Westminster John Knox Press, 2003, p. 21, 36). Em 1550 Genebra dispunha de 13.100 habitantes, saltando para 21.400 em 1560. Dez anos depois, em 1570, a população voltaria a 16.000. A casa dos 20 mil habitantes

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um grande centro missionário, uma verdadeira “escola de missões”, porque os foragidos que lá se instalaram puderam, posteriormente, levar para os seus países e cidades o evangelho ali aprendido. “O estabelecimento da Academia foi em parte realizado por causa do desejo de suprir e treinar missionários evangélicos”, informa-nos Mackinnon.131 Destacamos que, com exceção de Isaías, todos os comentários de Calvino sobre os profetas “consistem em sermões direcionados a alunos em treinamento para o trabalho missionário, principalmente na França”.132

Este objetivo da Academia faz jus à compreensão missionária de Calvino. Comentando 1 Timóteo 2.4, Calvino afirma: “.... ne-nhuma nação da terra e nenhuma classe social são excluídas da salvação, visto que Deus quer oferecer o evangelho a todos sem exceção”.133 Por isso, “o Senhor ordena aos ministros do evangelho

só seria ultrapassada em 1720, atingindo 20.800. (Cf. PERRENOUD, Alfred. La Population de de Genève du Seizième au Début Du Dix-Neuvième Siècle: Étude Démographique. Genève: Libraririe A. Jullien, 1979, v. 1, p. 37). Schaff apresenta dados mais específicos relativos a cada período: Cerca de 12 mil habitantes no início do século XVI, aumentando para mais de 13 mil em 1543, tendo um surto de crescimento de 1543 a 1550, quando a população saltou para 20 mil (SCHAFF, Philip, History of the christian church, v. VIII, p. 802. Vd. também: Tomas M. Lindsay, La Reforma y su desarrollo social, Barcelona: CLIE., (1986), p. 117; VAN HALSEMA, Thea B., João Calvino era assim, p. 193. Segundo McGrath, em 1550 a população foi estimada em 13.100 habitantes. Em 1560 era de 21.400 habitantes. (MCGRATH, Alister E. A vida de João Calvino. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 145). Biéler estima 10.300 habitantes em 1537, chegando a 13.000 em 1589 (BIÉLER, André, O pensamento econômico e social de Calvino, p. 216, 220 e 251, n. 514).

131 MACKINNON, James. Calvin and the Reformation. Londres: Penguin Books, 1936, p. 195. 132 PARKER, T. H. L., Prefácio à versão inglesa do Comentário de Daniel (cf. CALVINO, J. O Profeta

Daniel: 1-6. São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, p. 13). 133CALVINO, J., As Pastorais, (1Tm 2.4), p. 60. Ver também: CALVIN, J. Calvin’s Commentaries.

Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. XII, (Ez 18.23), p. 246-249. Para um estudo sobre a visão missionária de Calvino, ver: HUGHES, Philip E. John Calvin: Director of Missions. In: BRATT, J. H. (ed.). The heritage of John Calvin. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1973, p. 40-54; BEAVER, R. Pierce, The genevan mission to Brazil. In: BRATT, J. H. (ed.). The heritage of John Calvin. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1973, p. 55-73; REID, W. Stanford. Calvin’s Genebra: a missionary centre. In: GAMBLE, Richard C. (ed.). Calvin’s work in Geneva. New York: Garland Pub., 1992; BERG, J. Vanden. Calvino y las misiones. In: HOOGSTRA, Jacob T. (org.). Juan Calvino, profeta contemporáneo. Barcelona: CLIE., 1973, p. 169-185; MORRIS, S. L. The relation of Calvin and calvinism to missions. In: MAGILL, R. E. (ed.). Calvin memorial addresses. Richimond, VA.: Presbyterian Committee of Publication, 1909, p. 127-146; BARRO, Antonio Carlos. A consciência missionária de João Calvino. Fides Reformata, São Paulo: Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, 3/1, 1998, 38-49; NESTE, Ray Van. John Calvin on Evangelism and Missions. In: http://www.founders.org/FJ33/article2.html (Capturado em 30/06/06); JAMES, Frank A., Calvin, the evangelist. In: http://www.rts.edu/quarterly/fall01/james.html (Capturado em 01/07/06).

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[que preguem] em lugares distantes, com o propósito de espalhar a doutrina da salvação em cada parte do mundo”.134 Analisando uma das implicações da petição “venha o teu reino”, comenta: “Por-tanto, nós oramos pedindo que venha o reino de Deus; quer dizer, que todos os dias e cada vez mais o Senhor aumente o número dos seus súditos e dos que nele crêem [...]”;135 “[...] é nosso dever para proclamar a bondade de Deus a toda nação”.136

A Academia tornou-se grandemente respeitada em toda a Eu-ropa; o grau concedido aos seus alunos era amplamente aceito e considerado em universidades de países protestantes como, por exemplo, a Holanda. O historiador católico Marc Venard, comenta que a Academia “será daí em diante um viveiro de pastores para toda a Europa reformada”.137 A Academia contribuiu em grandes proporções para fazer de Genebra “um dos faróis do Ocidente” ad-mite Daniel-Rops.138 A formação dada em Genebra era intelectual e espiritual; os alunos participavam dos cultos das quartas-feiras bem como em todos os três cultos prestados a Deus no domingo.139 Um escritor referiu-se a Genebra deste modo: “Deus fez de Genebra sua Belém, isto é, sua casa do pão”.140

134CALVIN, J. Calvin’s Commentaries. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. XVII, (Mt 28.19), p. 384.

135CALVINO, J., As institutas da religião cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, v. 3, (III.9.39), p. 124.

136CALVIN, J. Calvin’s Commentaries. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. VII, (Is 12.5), p. 403.

137 VENARD, Marc. O Concílio Lateranense V e o Tridentino. In: ALBERIGO, Giuseppe (org.). His-tória dos Concílios Ecumênicos. São Paulo: Paulus, 1995, p. 339. Do mesmo modo escreve Willemart: “Genebra torna-se o centro de formação dos pastores que serão enviados para todas as comu-nidades francesas e que permitirão a unidade da Igreja Evangélica Reformada” (WILLEMART, Philippe. A Idade Média e a Renascença na literatura francesa. São Paulo: Annablume, 2000, p. 42).

138DANIEL-ROPS, Henri, A igreja da Renascença e da Reforma: a reforma protestante, p. 414. 139Cf. BAIRD, Charles W. A liturgia reformada: ensaio histórico. Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP.,

2001, p. 29. 140 Apud BAIRD, Charles W., A liturgia reformada: ensaio histórico, p. 30. 141 DELUMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Lisboa: Editorial Estampa, 1984, v. I, p. 128-

129; DANIEL-ROPS, Henri, A igreja da Renascença e da Reforma: a reforma protestante, p. 415 e EISENSTEIN, Elisabeth L. A revolução da cultura impressa: os primórdios da Europa moderna. São Paulo: Editora Ática, 1998, p. 185. Expressão já usada por Schaff. Vd. The creeds of Christendom, v. I, p. 445. É curioso que mesmo Calvino tendo uma alma francesa, ele jamais deixaria a igreja de Genebra; quando foi convidado a pastorear a Primeira Igreja Protestante de Paris, não aceitou. (Cf. SCHAFF, P. History of the christian church, v. VIII, p. 807).

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O conceituado historiador católico contemporâneo Delumeau, fazendo eco a um dito comum, afirma – a bem da verdade com tons românticos e caricatos –, que Calvino fez de Genebra “a Roma do Pro-testantismo”.141 Bem, essa perspectiva pode ser adotada por analogia por um católico; no entanto, para nós Reformados, essa figura não existe: não temos meca, nem basílica, nem catedral, nem bispo, nem papa.142 Que Deus nos livre disso tudo!143 E nos tem livrado...

Retornemos a Calvino. Ele insistiu junto aos Conselhos para melhorar as próprias condições do ensino, bem como os recursos das escolas. Visto que o Estado estava empobrecido, apelou para doações e legados.144 Sem dúvida, entre os reformadores, Calvino foi quem mais amplamente compreendeu a abrangência das implicações do evangelho nas diversas facetas da vida humana,145 entendendo que “o evangelho não é uma doutrina de língua, senão de vida. Não pode assimilar-se somente por meio da razão e da memória, senão que chega a compreender-se de forma total quando ele possui toda a alma, e penetra no mais íntimo recesso do coração”.146 Por isso, ele exerceu poderosa influência sobre a Europa e Estados Unidos. Schaff chega dizer que Calvino “de certo modo, pode ser considerado o pai da Nova Inglaterra e da república americana”.147

142“No Cristianismo evangélico não existe papa que possa falar ex catedra, e assim impor pronun-ciamentos infalíveis aos fiéis” (DE WITT, John Richard. O que é a fé reformada? In: DE WITT, John Richard; JOHNSON, Terry L.; PORTELA, F. Solano. O que é a Fé Reformada? São Paulo: Editora Os Puritanos, 2001, p. 9).

143 Barth combatendo a figura de Genebra como a Roma do Protestantismo, escreveu que era um equívoco revestir “a Instituição cristã, as ordenanças eclesiásticas e a própria pessoa de Calvino de uma autoridade profética e apostólica. [...] Primeiramente, o termo Roma protestante é uma flor de retórica sentimental. A ‘Roma protestante’ nunca existiu – senão em caricaturas, bem-intencionadas ou malévolas” (BARTH, Karl, em introdução à obra. Calvin, Textes Choisis par Charles Gagnebin, p. 11).

144Conforme mencionamos, Calvino pessoalmente chegou a sair pedindo donativos de casa em casa para a escola. Vd. BIÉLER, André, O pensamento econômico e social de Calvino, p. 192-193; SCHAFF, Philip, History of the christian church, v. VIII, p. 804-805. Veja-se, também, LUZURIAGA, L. História da educação e da pedagogia. 17ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1987, p. 108-116; NUNES, Ruy A. C. História da educação no Renascimento. São Paulo: EPU/EDUSP, 1980, p. 97-102; GILES, T. R. História da Educação. São Paulo: EPU., p. 119-128; FERREIRA, Wilson C., Calvino: vida, influência e teologia, p. 193,196.

145 Vd. BIÉLER, André, O pensamento econômico e social de Calvino, p. 28; FERREIRA, Wilson C., Calvino: vida, influência e teologia, p. 188-189.

146CALVIN, J. Golden booklet of the true christian life. 6ª ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1977, p. 17. Ver também; CALVINO, J., As Institutas, (1541), IV.17.

147 SCHAFF, P., The creeds of Christendom, v. I, p. 445.

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rEv. gildásio jEsus barbosa dos rEis

Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Presbiteriano Rev José Manoel da Conceição

Bacharel em Psicanálise Clínica

Licenciado em Filosofia Plena pelas Faculdades Associadas Ipiranga

Mestrado em Teologia com área de concentração em Educação Cristã pelo Centro de Pós-graduação

Andrew Jumper

Pastor da Igreja Presbiteriana de Osasco

D e p a r t a m e n t o d e T e o l o g i a P a s t o r a l

uma filosofia bíbliCa

dE ministério

pilareS inegoCiáVeiS do

miniSTério reformado

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Teologia para Vida – Volume ii – número 2124 |

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R e s u m oDiante de um cenário evangélico onde a prática pastoral é pautada pelas novidades do momento, muitas vezes sem uma reflexão bíblica, o autor deste artigo procura defender a ne-cessidade de uma filosofia ministerial pautada nas Escrituras Sagradas. Assim, expõe os fundamentos bíblicos e teológicos que determinam uma prática pastoral reformada: uma correta compreensão de Deus, do homem, da Palavra de Deus, da igreja e da liderança eclesiástica.

P a l a v r a s - c h a v eMinistério pastoral; Liderança eclesiástica; Autoridade bíblica.

A b s t r a c tBefore an evangelical scenery where the pastoral practice is ruled by the innovations of the moment, sometimes without a biblical reflection, the author of this article defends the need of a ministerial philosophy rooted in the Holy Scriptures. Thereby, he explains the biblical and theological foundations that establish a reformed pastoral practice: a correct unders-tanding of God, of man, of the Word of God, of the church and of the ecclesiastical leadership.

K e y w o r d sPastoral ministry; Ecclesiastical leadership; Biblical authority.

uma filosofia bíbliCa

dE ministério

pilareS inegoCiáVeiS do

miniSTério reformado

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Teologia para Vida – Volume ii – número 2126 |

Não lograremos progresso a menos que o Senhor faça próspera a

nossa obra, os nossos empenhos e a nossa perseverança, de modo

a confiarmos à sua graça a nós mesmos e a tudo o que fazemos –

João Calvino.

Precisamos nos determinar a permitir que nossas convicções sejam

moldadas pela imutável Palavra de Deus e não pelas mutáveis ten-

dências da cultura moderna – Thomas Ascol.

Se existe algo que a história nos ensina, este ensino é que os ataques

mais devastadores desfechados contra a fé sempre começaram com

erros sutis dentro da própria igreja – John F. MacArthur.

Se você não puder ver os resultados, enquanto estiver nesta terra,

lembre-se de que você é apenas responsável por seu labutar e não

pelo seu sucesso – C. H. Spurgeon.

intRodução

Conscientemente, ou não, todo pastor tem a sua filosofia de ministério. Talvez não seja tão óbvia ou ainda não esteja claramente articulada, mas ela está presente em sua maneira de exercer o seu pastorado, determinando como suas ações são executadas.

Podemos pensar em algumas perguntas que mostram a neces-sidade e os princípios por trás de uma filosofia ministerial: O que nós, ministros, devemos fazer para ter um ministério eficaz? Quais os princípios que devem dirigir o nosso ministério? Como deter-minamos o que precisa ser feito? Nosso ministério é dirigido pelo pragmatismo ou por princípios? Temos optado pela relevância em detrimento da verdade? Temos trocado a fidelidade pelo sucesso? A Escritura dita a prática do nosso ministério, ou não importa exa-tamente o que ela diz sobre nossos métodos?

i. deFinição de FilosoFia de MinistéRio

Uma filosofia de ministério é um conjunto de princípios que determina como desenvolvemos o nosso ministério. Trata-se de

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| 127uma filoSofia bíbliCa de miniSTério

1 MONTOYA, Alex. Concepção bíblica do ministério pastoral. In: Redescobrindo o ministério pastoral. Rio de Janeiro: CPAD, 1995. p.88.

uma série de princípios bíblicos, os quais nos guiam em nossas escolhas e decisões. Em outras palavras, podemos dizer que uma filosofia de ministério define o porquê de fazermos o que fazemos. Uma filosofia de ministério claramente estabelecida serve para nos influenciar em tudo aquilo que nos propomos a fazer. Ela nos dá o tom do porquê fazer e como levar à execução nossos planos para a vida da igreja. Podemos perceber pelo menos quatro benefícios em se ter uma filosofia de ministério clara:

a) Ela proporciona unidade e direção: Tendo uma filosofia de ministério bem articulada e estabelecida, conseguimos facilmente caminhar objetiva e consistentemente em direção aos propósitos pessoais, bem como os da igreja como um todo. Ela nos permite a concentração em alvos definidos e o estabelecimento de objetivos bíblicos para a vida da igreja (1Co 9.26).

b) Ela nos mantém fiéis às Escrituras (2Tm 3.16): A base para toda a atividade da igreja precisa ser extraída da Palavra. Como pastores, precisamos submeter cada decisão, cada aspecto do nosso ministério, bem como os métodos pelos quais a igreja opera, ao escrutínio da Escritura. O ministro que desconsidera o que a Bíblia diz sobre seus vários assuntos, termina por sucumbir, desviando-se de seu principal objetivo. Como diz o Salmo 11.3: “Destruídos os fundamentos, que poderá fazer o justo?”

c) Ela nos ajuda a delinear as prioridades para o ministério: “Frequentemente, problemas, programas e trabalhos que têm pouca ou nenhuma relação com o propósito principal da igreja consomem as energias desta e do pastor”.1 Uma filosofia de mi-nistério nos ajuda a ser eficazes (fazer as coisas certas; isto é, fazer aquilo que consideramos importante e prioritário) e também eficientes (fazer certo as coisas, isto é, com a menor quantidade de recursos possível). Ser produtivo é fazer certo (eficiência) as coisas certas (eficácia).

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d) Ela nos ajuda na avaliação de nossas atividades ministeriais: Tendo clara a nossa filosofia de ministério, ela nos servirá de pa-râmetro ou guia para medir se estamos fazendo aquilo que Deus quer que façamos. Podemos utilizar estes parâmetros e fazer um diagnóstico da situação, identificando problemas e verificando se os objetivos propostos estão ou não sendo alcançados. Assim, é possível fazer modificações, adequar determinadas posturas, e redimensionar os rumos do processo com o intuito de atingir os objetivos propostos.

ii. PRessuPostos teológicos FundaMentais PaRa uMa

FilosoFia bíblica de MinistéRio

Quais são as convicções bíblicas que devem determinar e contro-lar o nosso ministério? Como podemos desenvolver uma filosofia ministerial, sem que para isso tenhamos de comprometer nossa teologia? Sem tentar diminuir a complexidade do tema, podemos dizer que há pelo menos cinco pressupostos teológicos que são inegociáveis numa filosofia ministerial dentro da visão reformada:

1. Uma visão correta de DeusUma visão biblicamente orientada acerca de Deus deve, obriga-

toriamente, nos conduzir a uma visão correta do nosso ministério. Há muita confusão e muitos erros praticados em algumas igrejas, devido à ausência ou deficiência do conhecimento do ser de Deus. G. K. Chesterton observou que quando o ser humano deixa de crer no verdadeiro Deus, conforme revelado na Escritura, não significa que ele deixou de crer em algo, mas que ele agora crê em tudo ao mesmo tempo.2 Como disse Michael Horton: “A melhor tática de Satanás não são as suas heresias óbvias, mas a transformação gradual do Deus bíblico em um ídolo de religião domesticada”.3

2 Citado por HORTON, Michael. A face de Deus: os perigos e as alegrias da intimidade espiritual. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999. p. xv.

3 HORTON, Michael. Creio: redescobrindo o alicerce espiritual. São Paulo: Ed. Cultura Cristã, 2000. p. 25.

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O Deus que encontramos na Bíblia é muito diferente do “deus” que está sendo pregado em algumas igrejas evangélicas em nossos dias. O conceito de deidade que predomina, mesmo entre aqueles que dizem professar e defender as Escrituras, é uma grotesca imi-tação da verdade. Não poucas vezes, os sermões têm apresentado Deus como sendo um ser incapaz e impotente, e um argumento para isso é que Deus não consegue impedir catástrofes naturais (como as ondas gigantes do tsunami). Outras vezes, Deus é apre-sentado como um servo que está ao nosso serviço, pronto a resolver qualquer problema, bastando apenas uma oração mais poderosa ou uma declaração positiva e cheia de fé, acompanhada de ordens e confissões antecipadas de uma suposta e esperada vitória. Este “deus”, fruto da mente popular, é um produto que nada tem a ver com a verdade, mais servo do que Senhor, e que não gera temor e respeito nas pessoas.

Uma filosofia ministerial bíblica considera atentamente a auto-revelação que Deus faz nas Escrituras e procura conhecê-lo como é de seu desejo. As Escrituras nos falam de sua natureza, seus propósitos e suas atividades. Ali tomamos conhecimento dos atributos pertencentes à natureza de Deus: auto-existente, auto-suficiente, imutável, onisciente, onipotente. santo, bom, imanente e transcendente.

Quando conhecemos corretamente o Deus revelado nas Escritu-ras, somos bem orientados em nossos sermões, em nossas orações, em nossa forma de culto e adoração, em nossos métodos evangelís-ticos, em nossa conduta moral, profissional, familiar, etc.

Uma visão distorcida do ser de Deus acaba por levar-nos a dei-dades da nossa própria imaginação. Tudo o que conhecemos sobre Deus irá determinar a nossa prática ministerial – como pregamos, a forma como oramos e a maneira como aconselhamos; como visita-mos, administramos, ou planejamos os rumos da igreja. Tudo está intimamente ligada à visão que temos de Deus.

2) Uma visão correta do homemOs pressupostos que alguém adota sobre a natureza do homem,

sua queda, o propósito de sua criação, irão determinar suas muitas

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práticas ministeriais. Nossa compreensão é que a crença ou a teologia molda nossa prática pastoral. Por exemplo: o ponto de vista que alguém toma a respeito da salvação será determinado, em grande escala, pelo conceito que essa pessoa tem a respeito do pecado e de seus efeitos sobre a natureza humana. Precisamos ter convicções bíblicas sobre o homem:

2.1. O homem é criatura e pessoa4

As Escrituras nos ensinam que o homem é uma pessoa e uma criatura. Como pessoa, o homem tem desejo e vontade para tomar decisões, planejar, e estabelecer objetivos. Como ser criado, ele é absolutamente dependente de Deus. Não pode fazer nada à parte da vontade de Deus.5 Nossa correta compreensão do homem deve manter estas duas verdades em equilíbrio.6 Qualquer concepção do ser humano que não o vê como alguém que está relacionado com Deus, totalmente dependente dele e também responsável perante ele, irá nos conduzir a praticas ministeriais erradas.

2.2. O homem foi criado à imagem e semelhança de DeusO homem distingue-se das demais criaturas de Deus porque foi

criado de uma maneira singular. Apenas do homem é dito que foi criado à imagem de Deus. Esta expressão descreve o homem na totalidade de sua existência, ele é um ser que reflete e espelha Deus. (Gn 1.26-28). O conceito de imagem de Deus é o coração da antropologia cristã.7

2.3. O homem, a queda e a imagem desfiguradaComo sabemos, o estado de integridade (“posso não pecar”) de

nossos primeiros pais não foi mantido até o fim. Veio a desobediên-cia e consequentemente a queda. Nossos primeiros pais, criados

4 A. Hoekema traz um capítulo que trata de maneira abundante este aspecto da natureza do homem em HOEKEMA, Anthony. Criados à imagem de Deus. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999.

5 HOEKEMA, op. cit., p.19. 6 Ibidem, p. 19 7 VAN GRONINGEN, Gerard, Revelação messiânica no Velho Testamento. Campinas: Editora Luz para

o Caminho. 1995

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para refletir e representar Deus, não passaram no teste. Provados, caíram e deformaram a imagem de Deus neles.8 Historicamente, temos utilizado a terminologia “depravação total” para descrever a condição de todo ser humano após a queda, querendo com isso dizer que o homem é corrupto, pervertido e anti-Deus em todas as suas faculdades (Gn 6.5; Jr 17.9; Rm 3.10-12). Este deve ser um pressuposto teológico norteando nossas práticas no ministério. Nossa soteriologia orienta nossa metodologia evangelística.

2.4. Cristo e a imagem renovadaO homem, antes criado para refletir Deus, agora após a queda,

precisa ter esta condição restaurada; restauração esta que se esten-derá por todo o processo da redenção (santificação). Esta renovação da imagem original de Deus no homem significa que o homem é capacitado a voltar-se para Deus, a voltar-se para o próximo e também a voltar-se para a criação para governá-la. Esta restauração da imagem só é possível através de Cristo, porque ele é a imagem perfeita de Deus, e o pecador precisa agora tornar-se mais seme-lhante a Cristo. Lemos em Colossences 1.15 que “ele é a imagem do Deus invisível” e em Romanos 8.29 que Deus nos predestinou para sermos “conformes à imagem de seu Filho” (cf. 1Jo 3.2; 2Co 3.18).

2.5. A imagem aperfeiçoadaA completação da perfeição dos cristãos será a participação

da final glorificação de Cristo Jesus. Não somos apenas herdeiros de Deus, mas também co-herdeiros com Cristo, com ele sofre-mos para que também com ele sejamos glorificados (Rm 8.17). Não podemos pensar em Cristo separado de seu povo, nem seu povo separado dele. Assim será na vida futura: a glorificação dos cristãos ocorrerá junto com a glorificação do Senhor Jesus. É exatamente isto que Paulo nos ensina em Colossences 3.4: “Quando Cristo que é a nossa vida, se manifestar, então vós

8 Para Calvino, a imagem de Deus não foi totalmente aniquilada com a queda, mas foi terrivelmente deformada; ele descreve esta imagem depois da queda como “uma imagem deformada, doentia e desfigurada” (Cf. Institutas, I, XV, 3).

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também sereis manifestados com ele, em glória”. A glorificação é voltar à perfeição na qual fomos criados por Deus, é voltar à imagem de Deus. Este é o propósito último de nossa redenção. Esta perfeição da imagem será o auge, a consumação do plano redentivo de Deus para o seu povo.

3. Uma visão correta da EscrituraUma filosofia bíblica de ministério, dentro de uma perspectiva

reformada, precisa ser consistente na maneira de encarar sua relação com a Escritura. A mensagem cristã vem a nós através da Bíblia; portanto, nossa visão sobre a Bíblia precisa estar correta.

Não é novidade que tem crescido muito uma aversão ao cris-tianismo doutrinário, bem como uma intolerância em relação à doutrina e à confessionalidade. Muitos líderes evangélicos acolhem práticas ministeriais sem perceber que tais práticas não encontram autorização na Escritura.9 Nosso pressuposto é que o ministério reformado fundamenta-se na revelação. A doutrina protestante de Sola Scriptura (somente a Escritura) afirma que Deus tem um plano eterno que só pode ser corretamente compreendido através de sua revelação especial. Todos os outros meios de que o homem lançar mão o levarão ao misticismo e às falsas religiões. Por outro lado, o que vai determinar se nosso ministério está sendo fiel é a nossa submissão à Escritura. Pelo menos quatro convicções acerca das Escrituras devem nortear nossas práticas:

3.1. A convicção de que a Bíblia é inspirada por DeusSobre o fundamento da divina inspiração da Bíblia permanece ou

cai o edifício inteiro da verdade cristã. Será inútil discutir qualquer doutrina ensinada pela Escritura até que se esteja preparado para reconhecer, sem reservas, que ela é divinamente inspirada. Tudo o que chamamos de Escritura foi inspirado por Deus. Tudo da Escri-tura procede de Deus (2Tm 3.16; 2Pe 1.20,21).

9 MOHLER, R. Albert. Lutar pela verdade numa era de anti-verdade. In: BOICE, J. M. et al.. Reforma hoje. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999. p. 60.

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3.2. A convicção de que a Bíblia é inerranteA infalibilidade da Escritura acompanha necessariamente a

inspiração. A Bíblia é fonte segura e infalível de qualquer infor-mação e assunto tratado por ela. Não contém erros; é correta em tudo o que declara. Visto que Deus não erra, e sendo a Bíblia a sua Palavra, segue-se que tudo o que ela diz está correto (Jo 10.35; Lc 16.17).

3.3. A convicção de que a Bíblia é autoritativaA autoridade da Escritura é conseqüência natural de sua inspi-

ração e infalibilidade. Conforme declarada na Confissão de Fé de Westminster (4): “A autoridade da Escritura Sagrada, razão pela qual deve ser crida e obedecida, depende [...] somente de Deus (que é a própria verdade) que é o seu autor; tem portanto, de ser recebida, porque é a Palavra de Deus”

3.4. A convicção de que a Bíblia é suficienteTudo o que o Senhor desejou revelar à sua igreja em matéria de

fé e pratica está registrado nas paginas da Escritura (Jo 20.30-1; 2Tm 3.16,17; Sl 119.105; 2Ts 2.2; 1Co 2.9; Dt 12.32).

A Igreja Reformada, através de seus símbolos de fé, também deu grande ênfase ao relacionamento cuidadoso do ministério com as Escrituras. Confira o que responde o Catecismo Maior:

Aqueles que são chamados a trabalhar no ministério da Palavra de-

vem pregar a sã doutrina, diligentemente, em tempo e fora de tempo,

claramente, não em palavras persuasivas de humana sabedoria, mas

em demonstração do Espírito de Deus; sabiamente, adaptando-se às

necessidades e às capacidades dos ouvintes; zelosamente, com amor

fervoroso para com Deus e para com as almas de seu povo; since-

ramente, tendo por alvo a glória de Deus e procurando converter,

edificar e salvar as almas.10

10 Catecismo maior de Westminster, na resposta à pergunta 159: “Como a Palavra de Deus deve ser pregada por aqueles que para isto são chamados?”

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MacArthur afirma que “a perda de uma fundamentação bíblica é o motivo primário do declínio da pregação na igreja contemporâ-nea”.11 E Kenneth Macrae, em seu artigo “A pregação e o perigo do comprometimento”, pondera o seguinte:

Não deveríamos tentar aprimorar o evangelho. Não podemos

melhorá-lo; é presunção tentar melhorar aquilo que Deus, em sua

perfeição nos outorgou. Se começarmos a brincar com o evangelho,

diminuindo aqui e acrescentando ali, para torná-lo mais aceitável

aos nossos ouvintes, não podemos esperar que Deus abençõe aquilo

que ele não outorgou. Temos de pregar o evangelho assim como ele

se encontra na Palavra de Deus; e, quando nos propomos a expor

um texto, precisamos declarar exatamente o que o texto afirma.12

A prática ministerial, portanto, na perspectiva reformada, crê que Deus continua governando a igreja através da Bíblia. Assim, nossa atitude para com ela reflete nossa atitude para com Deus. Ninguém que afirma amar a Deus poderá ter uma atitude para com a Palavra de maneira que desonre a Deus. Quem reivindica amá-lo deve dar provas desse amor demonstrando zelo para com a Escritura Sagrada: “Oh! quanto amo a tua lei! Ela é a minha meditação o dia todo”. “Oh! quão doces são as tuas palavras ao meu paladar! Mais doces do que o mel à minha boca” (Sl 119.97,103).

4. Uma visão correta da igrejaQual deve ser a tarefa da igreja? Para que ela existe? Uma

filosofia bíblica de ministério, dentro da perspectiva reformada, precisa estar associada a uma visão correta da natureza da igreja. Isto porque, para se definir o papel do ministro, é preciso definir o papel da igreja.

11 MACARTHUR, John. Com vergonha do evangelho. São José dos Campos: Editora Fiel, 1997. p. 283. 12 MACRAE, Kenneth A. A pregação e o perigo do comprometimento. Revista fé para hoje, São José

dos Campos, n. 7, p. 4, 2000.

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Quem quer que tente formular uma filosofia bíblica do ministério

e desenvolver uma estratégia e uma metodologia contemporânea

firmemente alicerçada em fundamentos bíblicos, deve fazer algumas

perguntas bem fundamentais e a elas responder: Por que a igreja

existe? Qual é seu propósito principal? Por que, antes de qualquer

coisa, Deus a deixou no mundo?13

Considerando que a igreja, como povo de Deus, encontra sua razão de ser não em si mesma, mas em Deus, podemos relacionar algumas maneiras como a igreja cumpre a sua função:

4.1. A igreja existe para adorar e glorificar Deus (1Co 10.31; Hb 13.15; Cl 3.16; Ef 1.12; 5.16-19)

Glorificar a Deus não significa torná-lo mais glorioso, pois Deus tem glória intrínseca à sua própria natureza (cf. Is 6.3). Sua glória não é algo que lhe foi dada, mas lhe pertence em virtude daquilo que ele é. Mesmo que ninguém viesse a dar glória a ele, ainda assim ele continuaria sendo glorioso, pois tal glória é uma combinação de todos os seus atributos.

Calvino disse que a “glória de Deus é quando sabemos o que ele é”.14 Isto significa dizer que reconhecemos quem é Deus e, assim, o valorizamos acima de todas as outras coisas (1Co 10.31). Novamente, Calvino é enfático: “Não busquemos nossos próprios interesses, mas antes aquilo que compraz ao Senhor e contribui para promover sua gloria”.15

Como podemos glorificar a Deus? 1) Glorificamos a Deus crendo nele (Fl 2.9-11). 2) Glorificamos a Deus colocando-o em primeiro lugar em nossa vida (1Co 10.31). 3) Glorificamos a Deus fazendo a sua vontade (Jo 12.27,28; Mt 26.39,42; Mc 14.36; Lc 22.42).

13 GETZ, Gene A. Igreja: forma e essência. São Paulo: Editora Vida Nova, 1994. p. 53. Embora Getz esteja equivocado ao definir a principal razão da existência da igreja, seguindo princípios pragmáticos do movimento de crescimento de igrejas, ele corretamente pontua que não é possível delinear uma filosofia de ministério se ignorarmos o papel da igreja do Senhor.

14 Citado por VAN HORN, Leonard T. Estudos no Breve catecismo de Westminster. São Paulo: Editora Os Puritanos, 2000. p. 7.

15 Calvino, João. A verdadeira vida cristã. 4. ed. São Paulo: Editora Novo Século, 2008. p. 31.

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4) Glorificamos a Deus quando confiamos e descansamos nele (Fl 4.11,12; 2Co 1.30). 5) Glorificamos a Deus quando testemunhamos dele (2Ts 3.1; At 13.48).

4.2. A igreja é uma comunidade que existe para anunciar entre as nações a glória de Deus (Mt 28.19-20; Tt 2.11-15)

O salmista diz: “Cantai ao senhor, bendizei o seu nome; pro-clamai a sua salvação, dia após dia. Anunciai entre as nações a sua glória, entre todos os povos, as suas maravilhas. Porque grande é o senhor e mui digno de ser louvado, temível mais que todos os deuses (Sl 96.2-4). O envolvimento da igreja na obra missionária não tem como objetivo alcançar o maior número de pessoas possível. A motivação não pode ser as pessoas, mas Deus.16 Como bem afirma John Piper, nosso alvo ao querer fazer a obra missionária deve ser o de levar as nações a regozijarem-se em Deus e glorificá-lo acima de tudo. O alvo da obra missionária é a alegria dos povos na grandeza de Deus (Sl 97.1; 67.3-4; cf. 47.1; 66.1; 72.11,17; 86.9; 102.15; 117.1; Is 25.6-9; 52.15; 56.7; 66.18-19). O grande objetivo de Deus em toda a história é manter e manifestar a glória do seu nome para o contentamento do seu povo de todas as nações.17

4.3. A igreja existe como um centro de treinamento por meio do qual as pessoas possam crescer e aplicar seus dons na edificação de toda a igreja (1Co 12 – 14; Rm 12; Ef 4)

De acordo com as Escrituras, um propósito da igreja deve ser a edificação de seus membros. Em Colossences 1.28 Paulo afirma que seu objetivo era o de “apresentar todo homem perfeito [maduro] em Cristo”. E escrevendo aos efésios, ele diz que Deus havia concedido dons à igreja “com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo, até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo (Ef 4.12-13).

16 PIPER, John. Alegrem-se os povos: a supremacia de Deus em missões. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001. p. 42,43.

17 Ibidem, p. 36,37

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Esta foi uma das estratégias de Paulo (1Co 12-14). Ele preparava os membros para desenvolverem seus dons: pregar, ensinar, lidar com os pobres, administrar os problemas que surgiam. É preciso descobrir na igreja pessoas que tenham potencial, e treiná-las para áreas específicas. É responsabilidade do pastor, equipar os santos para o ministério (Ef 4.12-16).

5. Uma visão correta da liderança da IgrejaUma quinta convicção que precisamos ter é quanto à função ou

natureza da liderança. Penso já ser de nosso conhecimento que mui-tos pastores em nossos dias imaginam-se a si mesmos como homens de negócios; profissionais da mídia evangélica, ou promotores de eventos eclesiásticos. Ricardo Barbosa, ao fazer algumas considera-ções sobre o ministério do pastor no mundo moderno, chama-nos a atenção para uma mudança sutil quanto à natureza do ministério:

A igreja moderna transformou-se num negócio, numa empresa, e o

pastor, num executivo que luta para manter-se no mercado. Esta é,

talvez, uma das mudanças mais significativas e sérias que estamos

atravessando. Somos agora executivos eclesiásticos, circulando

com agendas eletrônicas, telefones celulares, secretárias, auxiliares

e assistentes, para atender a um volume cada vez maior de reuni-

ões, entrevistas, conferências, aconselhamentos, etc. Ser ocupado

tornou-se símbolo de status e sucesso tanto no mundo secular como

no religioso. Ter uma agenda repleta de compromissos é sinal de

competência; afinal, ninguém considera competente um médico

cuja sala de espera do consultório encontra-se absolutamente vazia,

e ele, confortavelmente sentado em sua cadeira lendo uma boa re-

vista. Para ser competente, precisa estar com a agenda dos próximos

meses completamente cheia. Este sim é um bom profissional. Nesta

busca por sucesso e status não temos mais tempo para construirmos

amizades verdadeiras e profundas, nem tempo para caminharmos

com nossos amigos no caminho do discipulado.18

18 BARBOSA, Ricardo. Em artigo intitulado “Da Profissão à Vocação”- disponível em: http://www.elnet.com.br/canais/igreja/miolo2.php?art=26174. Acesso em 08/03/2006.

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Entendo que esta mudança deve-se a uma filosofia contempo-rânea de ministério pastoral orientada por resultados (assimilando o estilo empresarial), negando assim a visão bíblica da nossa tarefa como pastores. Estes pastores-empresários estão distorcendo a vo-cação, deixando de pastorear pessoas e se tornando administradores e profissionais de igrejas.

Quando olhamos para o ministério de Jesus, verificamos que ele passou mais tempo cuidando de pessoas e conversando com elas do que em qualquer outra coisa. Jesus não era inclinado aos pro-gramas, mas às pessoas. Diferentemente de alguns líderes que são movidos pela produção. Para uma filosofia de ministério saudável, precisamos entender o conceito bíblico de liderança. Eu a defino da seguinte forma:

Liderança (espiritual) é a capacidade dada por Deus para que pos-

samos, através dos nossos dons e do desenvolvimento dos mesmos,

ajudar outros a cumprirem seu papel dentro do reino de Deus, de tal

maneira que sejam capazes de atingir o propósito para o qual foram

criados, cumprindo assim a vontade de Deus, em Cristo, conforme

prescrita nas Sagradas Escrituras.19

Ao desdobrarmos esta definição, podemos ver pelo menos cin-co aspectos essenciais do conceito de líder: 1) A liderança é uma iniciativa divina; 2) Já nascemos com algumas habilidades, mas não podemos abdicar de treinamento; 3) Nossa função é ajudar a desenvolver e aperfeiçoar os crentes para cumprirem a vontade de Deus; 4) Esta liderança deve ser cristocêntrica, 5) O padrão é a Sagrada Escritura e não a criatividade do líder.

5.1. A Liderança é uma iniciativa divinaO líder já nasce feito ou se torna líder? Em outras palavras,

liderança é inata ou adquirida? MacArthur, fazendo uma análise da liderança dos 12 apóstolos, deixa claro o ensino bíblico de que

19 REIS, Gildásio Jesus Barbosa. Apostila de liderança cristã (material utilizado no Seminário Pres-biteriano Rev. José Manoel da Conceição), 2006.

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a liderança é uma capacitação dada por Deus. Diz ele: “O que qualificava esses homens para serem líderes? Obviamente não era qualquer aptidão intrínseca ou talento patente neles próprios… não foi por terem talentos extraordinários, aptidões intelectuais singulares, poderosa influência política ou uma posição social especial”.20 Ele afirma que ainda que não haja ninguém que seja naturalmente qualificado, é o próprio Deus quem deseja salvar pecadores, santificá-lo e então transformá-lo de seres incapazes em instrumentos úteis a ele.21

5.2. O líder já nasce com algumas habilidades, mas não pode abdicar de treinamento.

Ao analisar a liderança do apóstolo Pedro, vemos um homem que possuía alguns dons para exercer a liderança, mas isso não significa dizer que Pedro pudesse abdicar de treinamento específico a fim de ser moldado e assim melhorar sua capacidade de liderança.22

5.3. A função do líder é ajudar a desenvolver e aperfeiçoar os crentes para cumprirem a vontade de Deus

Encontramos em toda a Escritura esta tarefa como sendo essen-cial à uma filosofia bíblica de ministério, mas é especialmente em 2 Timóteo 2.2 que encontramos este princípio claramente expresso: “E o que de minha parte ouviste através de muitas testemunhas, isso mesmo transmite a homens fiéis e também idôneos para instruir a outros”. Jay Adams, ao comentar esta passagem da Escritura, diz: “Os homens que se qualificam para a obra do ministério são aqueles que conseguem manter a tocha do evangelho bem acessa, de modo que possam passá-la (inalterada) aos que vêm depois.” Paulo tem em mente os homens que “têm (de Deus) o que é necessário para fazer a obra ministerial. São homens que aprenderam a empregar seus dons habilmente na obra do pastorado”.23

20 MACARTHUR, John. Doze homens comuns. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004. p. 24-26. 21 Ibidem, p.26. 22 Ibidem, p.50. 23 ADAMS, Jay. Shepherding God’s flock. Grand Rapids: Zondervan, 1975. p. 16.

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5.4. A liderança cristã deve ser cristocêntricaO modelo supremo e perfeito do exercício de liderança é no-

toriamente visto na pessoa de Jesus. Não é tarefa nada fácil tecer comentários a respeito de sua postura frente aos liderados. Ele é incomparável! Ele desnuda por completo a nossa vulnerável forma de liderar. Uma liderança cristocêntrica procura imitar Jesus. Não vive para si mesmo, mas para a glória do Mestre. “Aqueles que lideram o povo de Deus têm de ser, antes de tudo, exemplos de sacrifício, devoção, submissão e humildade”.24 Um servo que serve bem não se preocupa com sua fama ou bem-estar, conquanto possa realizar os desejos de seu Senhor”.25

5.5. O padrão é a Sagrada Escritura e não a criatividade do líderUm pouco acima já vimos sobre este aspecto da liderança, ao

dizer que o líder cristão precisa ter uma visão correta da Escritura. Não obstante, insistimos em que o caminho para honrar a Deus em nossa liderança não é a tradição denominacional, nem a sabedoria ou criatividade pessoal do homem, nem a conveniência, mas a con-cordância com os princípios ensinados nas Escrituras.

Paulo encarrega o jovem Timóteo da responsabilidade de instruir a igreja quanto a certos líderes que estavam pregando algumas he-resias e prejudicando a igreja (1Tm 1.18-20). Dentre estes líderes estavam Himeneu e Alexandre,26 os quais se faziam de mestres da lei, mas sequer sabiam as coisas que ensinavam (cf. 1Tm 1.7). Vi-sando orientar o jovem ministro a preparar a igreja para enfrentar os falsos mestres, Paulo diz: “Mantêm o modelo das sãs palavras que de mim tens ouvido, na fé e no amor que há em Cristo Jesus” (2Tm 1.13). O termo grego aqui para “sãs” é u`giainontwn (hugiainonton, da mesma palavra de onde temos “higiene” em português). Daí o significado de“sadio”, em contraste com a gaggraina27 (gangraina, de onde temos “gangrena”) que aparece em 2 Timóteo 2.17 tradu-

24 MACARTHUR, John. Pastores ou potentados? Revista fé para hoje, São José dos Campos, p. 7. 25 SHEDD, Russel. O líder que Deus usa. São Paulo: Edições Vida Nova, 2000. p. 51. 26 O nome Himeneu deriva-se de Hímen, o deus do matrimônio; Alexandre significa “defensor dos

homens”. 27 Este termo grego dá origem a nossa palavra gangrena, que é um termo médico para a necrose (morte)

de tecidos causada por perda de suprimento de sangue, seguida de decomposição e apodrecimento.

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zida para o português por câncer.28 Aqui, Paulo tem em mente o erro devastador dos falsos mestres, pois a “linguagem deles corrói como um câncer”, como uma gangrena.

William Hendriksen, comentando 2 Timóteo 2.17, fala do pre-juízo provocado pelos falsos mestres: O câncer não somente devora os tecidos sadios, mas também agrava a condição do paciente. De forma semelhante, a heresia que recebe publicidade, quando se lhe empresta demasiada atenção, se desenvolverá tanto em extensão quanto em intensidade. Ao afetar de forma adversa uma proporção crescente da membresia, tentará destruir o organismo da igreja.29

Sabendo da erosão que as heresias podem causar na vida da igreja, e da disposição natural dos homens de resistirem à sã doutrina (cf. 2Tm 4.1-4), e da sua inclinação à rebeldia e à apostasia, Paulo diz que é responsabilidade daqueles que estão em posição de liderança guardar o bom depósito, ou seja, as Escrituras:30 “Mantém o pa-drão das sãs palavras que de mim ouviste com fé e com o amor que está em Cristo Jesus. Guarda o bom depósito, mediante o Espírito Santo” (2Tm 1.13,14).

conclusão

Chegamos ao fim de nossa reflexão, e, sem pretender que o assunto tenha recebido um tratamento completo, esperamos ter apresentado satisfatoriamente a idéia de que estes cinco pressupostos são indispensáveis para o desenvolvimento de um ministério que seja fiel e que glorifique a Deus.

28 Cf. ROBERTSON, Archibald Thomas. Word pictures in the New Testament. Grand Rapids: Baker Book House. 1931. p. 620.

29 HENDRIKSEN, Willliam. 1 Timóteo, 2 Timóteo e Tito. São Paulo: Ed. Cultura Cristã, 2001. p. 325. (Comentário do Novo Testamento).

30 Cf. FEE, Gordon. 1 e 2 Timóteo, Tito. Deerfield: Editora Vida, 1994. p. 247 (Novo comentário bíblico contemporâneo): “Desde que depósito é descrito como bom, é certo que se refere às sãs palavras do evangelho”.

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reSenhaS

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r e s e n h a

Cirurgião-Dentista pela Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FOUSP)

Especialista em Cirurgia e TraumatologiaBuco-Maxilo-Faciais (CTBMF) pelo Colégio Brasileiro de CTBMF

Pós-Graduado em Anatomia Cirúrgica da Face Humana

pelo Instituto de Ciências Biomédicas da Universidadede São Paulo (ICB-USP)

Mestre em Deontologia, com atenção à Bioética,pela FOUSP

Mestrando em Teologia Filosófica pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper

Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Filosofia da Ciência e Ciências da Vida

do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Presbiteriano ‘Rev. José Manoel da Conceição’

fErnando jorgE maia abraão

ConsElhEiro Capaz

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ADAMS, Jay E. Conselheiro Capaz. São Paulo: Editora Fiel Ltda., 1977, 267 p.

Publicação antiga, surgiu no mercado norte-americano em 1970 com o título Competent to Counsel, pela Presbyterian and Reformed Publishing Company. Para o português, verteu o Rev. Odayr Olivetti, com publicação em 1977 pela editora Fiel. São passados, portanto, 30 anos desde o primeiro acesso do público brasileiro aos trabalhos do Rev. Jay E. Adams1 e esta breve resenha pretende, mui simples-mente, celebrar tal fato.

Conforme David Powlison,2 Jay E. Adams nasceu em 1929 em Baltimore, sendo o único filho numa humilde família. Creu em Cris-to ainda na high school,3 e passou a dedicar-se ao preparo teológico e ministerial. Graduado em Divindade pelo Reformed Episcopal Semi-nary e em Artes Clássicas pela Johns Hopkins University em 1952, foi ordenado ao ministério no mesmo ano. Pós-graduou-se em Teologia (mestrado) pela Temple University (1958) e em Oratória (PhD) pela University of Missouri (1969).

Enfrentar os problemas das pessoas às quais pastoreava despertou nele o desejo de obter maior preparo para aconselhá-las. Confor-me seu próprio relato na Introdução da obra aqui resenhada, sua busca causou-lhe desilusão. As publicações que leu ou valorizavam “os métodos não diretivos de Rogers ou advogavam os princípios freudianos” (p. 9). Sua prática inicial tornou-se frustrante e, preten-dendo o melhor para suas ovelhas, Adams, como muitos pastores contemporâneos, acabou por encaminhar as pessoas com proble-mas mais graves para psiquiatras e instituições especializadas em doentes mentais.

1 A Editora Fiel Ltda. publicou em 1982, com a tradução de João M. Bentes, O Manual do Conse-lheiro Cristão, dando continuidade à difusão do aconselhamento noutético aos leitores de língua portuguesa.

2 Powlison, David Biblical Counseling in the Twentieth Century. In: MacArthur, John & Mack, Wayne (eds.) Introduction to Biblical Counseling. United States of America: Word Publishing, 1994, p.44-60. Obra traduzida e publicada em português (Cf. Canelhas, George A. Resenha. In: Teologia para a Vida, vol. 1, no 1, 2005, p.131.).

3 Em nossos dias, o equivalente ao nível médio de ensino.

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Gradualmente, ele foi notando que quanto mais diretivamente aplicava as exortações bíblicas, mais êxito alcançava no auxílio a pessoas com problemas, os mais complicados.

Como em muitíssimos casos isso funcionava bem para mim, nas

consultas comecei a sugerir a outros que fizessem o mesmo, e vi

algumas pessoas receberem ajuda ainda maior. Mas, tendo em vista

que estes e outros fins e métodos começaram a surgir como por acaso,

eu continuava sendo um conselheiro assaz confuso4 .

Quando foi convidado para ensinar Teologia Prática, especial-mente Poimênica, no Westminster Theological Seminary, Adams passou a estudar exegeticamente todas as passagens que considerava úteis para apoiar suas aulas. Ficou abismado com a riqueza da Escritura a respeito do assunto, questionando-se se aquilo que, ainda hoje, se denomina como doença mental não seria o que a Bíblia denomina de pecado. Ao invés de atribuir a causa dos problemas de uma pessoa a outra que lhe traumatizou, a Bíblia atribui o pecado à pecamino-sidade humana, fruto da “depravação da natureza decaída” (p. 12). Motivado por algumas leituras especializadas e estágios clínicos, mesmo entre incrédulos (como O. Hobart Mowrer), e criticado por uma miríade de pesquisadores e praticantes da psicanálise e psiquiatria, inclusive cristãos, Adams desenvolveu seu método, a respeito do qual trata sua obra.

Sua base não são “descobertas científicas. Meu método”, diz ele, “tem base em pressupostos. Aceito francamente a Bíblia inerrante como o padrão de toda fé e prática. Portanto, as Escrituras constituem a base, e contém os critérios segundo os quais procurei emitir todo juízo” (p. 18). Noutro trecho, diz: “Jesus Cristo está no centro de todo genuíno aconselhamento cristão. Qualquer forma de aconselhamento que remova a Cristo dessa posição de centralidade deixa de ser cristã na proporção em que o faça” (p. 55).

Definindo confrontação noutética, o autor enumera três elementos básicos: (1) Há uma condição no consultante que deve ser trans-

4 Adams, p.11.

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formada por Deus. “O propósito básico da confrontação noutética [é] efetuar mudança de conduta e de personalidade” (p.58). (2) Con-frontação verbal da pessoa. O conselheiro cristão, i.e., noutético, jamais pergunta por que ou para quê algo aconteceu, mas questiona o que foi feito pelo aconselhando. Afinal, “a razão pela qual as pes-soas se envolvem em problemas em suas relações com Deus e com o próximo está em sua natureza pecaminosa. Os seres humanos já nascem pecadores” (p. 61). (3) “A correção verbal visa beneficiar o interessado” (p. 62). Este é o terceiro elemento, o bem e a cura do pecador, deve ser ressaltado. Não deve haver qualquer desejo de humilhar ou desqualificar o aconselhando. Seus pecados devem ser evidenciados para que sejam confessados em arrependimento pela mediação de Cristo, o único remédio para a doença da existência humana.

No desenvolvimento da obra, o autor parece recepcionar, com amplas restrições, a psicologia. Resiste formalmente, por outro lado, à psiquiatria (“a psiquiatria, essa filha ilegítima da psicologia que historicamente fez as mais grandiosas autopromoções, está meti-da em sérios problemas”, p. 20). Seu desenvolvimento se dá com citações de procedimentos e críticas à psicanálise e à psiquiatria, atribuindo a ambas a carência de fundamentação científica e influ-ências humanistas (naturalistas e antropocêntricas) em sua filosofia (p. 18). Freud, Rogers, May, e mesmo Mowrer, entre outros citados, são rebatidos e negados enfaticamente (ex.: “a escola de Rogers deve ser repudiada in toto”, p. 108). Em suma, “a tese deste livro é que conselheiros cristãos treinados nas Escrituras são competentes para aconselhar – mais competentes do que os psiquiatras e qualquer outra pessoa” (p. 35).

Por outro lado, no capítulo III (Que há de errado com os doentes men-tais?), no ponto denominado de “Adrenocromo ou Esquizofrenia?” (p. 51ss), o autor faz referência às pesquisas de uma dupla, Hoffer e Osmond, que afirma certos desequilíbrios fisiológicos (bioquímicos) como causadores de algumas manifestações de alteração mental tratáveis por medicação (niacinamida). Sua conclusão expõe humil-dade e lucidez ao mesmo tempo em que convicção: “Pode ser que haja várias coisas erradas com os [assim chamados] ‘mentalmente

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enfermos’ [...], mas a causa que deve ser excluída, na maior parte dos casos, é doença mental” (p. 54).

Assim, Adams admite doenças físicas como causadoras de ma-les psicológicos, mas isso deve ser verificado exaustivamente caso a caso, pois toda doença tem como causa última o pecado, seja o de Adão, seja o do aconselhado. Cabe identificar isso, confrontar o aconselhado com sua real condição e auxiliá-lo em suas atitudes de arrependimento e mudança de conduta, biblicamente orientados. Em última instância, embora possam contribuir com seus dados verdadeiramente científicos, nem a psicologia, nem a psiquiatria escapam às críticas de Adams.

O aconselhamento noutético, em busca da glória de Deus, dedica-se a promover a disciplina do aconselhado sem subterfúgios ou transferências de responsabilidades. Faz isso pela intensa atenção que dedica aos seus aconselhandos, ouvindo-os, valorizando-os sem bajulações e confrontando-os com a realidade de seus pensamentos mais profundos, originários de suas ações e verdadeiro foco da re-generação em Cristo. Uma nova criatura será diferente do normal e corrupto ser humano e, conseqüentemente, mais santo e seme-lhante ao Senhor. Não há meio natural de promover isso. Somente pela Palavra e no poder soberano de Deus isto terá lugar. Assim, o aconselhador noutético é, nada mais, que um evangelista e um discipulador, um pastor (p. 76) proclamando a verdade eterna a um público reservado e carente da disciplina do Senhor.

Isso, e mais, com detalhes e argumentos exegéticos pertinentes e enriquecedores, é o que se encontra no clássico Conselheiro Capaz, leitura necessária não somente aos ministros e conselheiros formais, mas a cada cristão.

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arTigoS eSermõeS

doS alunoS

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a r t i g o

liC. César augusto paiva

Bacharel em Direito pela Universidade São Francisco

Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição

Licenciado pelo Presbitério Centro Norte Paulistano - SPN

o Compromisso soCial

E a palavra dE dEus

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o Compromisso soCial

E a palavra dE dEus

R e s u m oNeste artigo, o autor pretende demonstrar que a responsa-bilidade social é um mandamento do Senhor, claramente ensinado nas Escrituras Sagradas, tanto no Antigo quanto no Novo Testamentos. E que a desobediência à Palavra de Deus neste aspecto não fica sem conseqüências para a igreja. Assim, conclui pela necessidade de um compromisso social da igreja brasileira, praticado de acordo com o mandamento divino.

P a l a v r a s - c h a v eCompromisso Social; Ordenanças Divinas; Eclesiologia.

A b s t r a c tIn this article, the author intends to prove that the social responsibility is a commandment of the Lord, clearly taught in the Holy Scriptures, so much in the Old as in the New Testament. And that the disobedience to the Word of God in this aspect is not without consequences to the church. Like this, it concludes for the need of a social commitment of the Brazilian church, practiced in agreement with the divine commandment.

K e y w o r d sSocial commitment; Divine ordinances; Ecclesiology.

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intRodução

O presente trabalho visa investigar a base escriturística para o compromisso social da igreja. Veremos que a Bíblia, a Palavra reve-lada de Deus, nos ordena o comprometimento com a questão social.

1. o coMPRoMisso social no PeRíodo do êxodo

Desde o período mosaico, havia para Israel a ordenança de acudir ao excluído pela sociedade. Para exemplificar esta realidade, tomemos algumas passagens do Pentateuco. O texto de Levítico 19.10 ordena: “Não rebuscarás a tua vinha, nem colherás os bagos caídos da tua vinha; deixá-los-ás ao pobre e ao estrangeiro. Eu sou o senhor, vosso Deus”.1

Como vemos, o Senhor veda ao seu povo a rebusca; os filhos de Israel estavam proibidos por Deus de buscar, por mais de uma vez, por frutos em uma planta, pois pertenciam ao pobre e ao estrangei-ro, para seu mantimento. É importante observar a razão pela qual Deus emite tal proibição: ele é o Deus de Israel, tanto para ordenar tal prática, quanto para suprir o seu povo de modo a que nada lhe faltasse, mesmo que ele amparasse ao pobre.

Comentando esta passagem, Matthew Henry traz uma inte-ressante aplicação para este texto: “Os tempos de alegria, como o tempo da colheita, são ocasiões próprias para a caridade; quando nos regozijamos, os pobres devem regozijar-se conosco, e quando nossos corações louvam a Deus, seus estômagos também devem nos abençoar”.2

O capítulo 15 de Deuteronômio fala muito sobre a compreensão mosaica do compromisso social de Israel. Para ilustrar isto, dois ver-sículos são bastante significativos. Primeiro, o verso 7: “Quando entre ti houver algum pobre de teus irmãos, em alguma das tuas cidades, na tua terra que o senhor, teu Deus, te dá, não endurecerás o teu coração, nem fecharás as mãos a teu irmão pobre”.

1 Almeida Revista e Atualizada. 2 HENRY, Matthew. Commentary on the whole Bible. Grand Rapids: Zondervan, 1961, p. 132.

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A ordem do Senhor aqui é clara: o povo de Israel não deveria fechar as mãos ao pobre; Deus escolhera aquele povo não só para ser abençoado, mas também para abençoar a todas as nações da terra (Gn 12.3), e seu compromisso social deveria refletir esta realidade.

O verso 11 do mesmo capítulo de Deuteronômio é esmagador em relação ao cuidado com o necessitado: “Pois nunca deixará de haver pobres na terra; por isso, eu te ordeno: livremente, abrirás a mão para o teu irmão, para o necessitado, para o pobre na tua terra”.

Aqui, além da ordenança sobre cuidar dos necessitados; há a interessante anotação que Deus faz, de que sempre haveria pobres na terra. É o que, de fato, observamos em nosso dia-a-dia. Estes preceitos serviam para evitar que um eventual hebreu ambicioso pudesse explorar ou negligenciar os necessitados, apesar das pro-messas de Deus.3 Se estas ordenanças valiam para o povo de Deus da época de Moisés, não valerão também para nós, Israel de Deus dos tempos modernos?

2. o coMPRoMisso social no PeRíodo MonáRquico

As melhores exposições sobre a ética social de Israel nos tempos da monarquia estão nos livros poéticos. Vejamos, primeiro, o Salmo 82, verso 4: “Socorrei o fraco e o necessitado; tirai-os das mãos dos ímpios”. Deus, por meio de Asafe, exorta aqui o povo a um compromisso social com os pobres da terra. Observe-se que o verbo empregado aqui é WjL.P;, o qual significa, literalmente, “libertar”. Ou seja, o dever do povo de Israel era libertar o pobre de seu estado de angústia e de opressão.

Em Provérbios 19.17, a sabedoria de Salomão acrescenta um outro fator ao compromisso social do povo de Deus: “Quem se compadece do pobre ao senhor empresta, e este lhe paga o seu benefício”. Deus promete aqui sua benção sobre aquele que se com-padecer do pobre. É algo claro que se compreende do contexto de

3 GRAY, James M. The concise Bible Commentary, p. 253.

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toda a Escritura, a benção de Deus sobre aqueles que obedecerem às suas ordenanças.

No mesmo livro de Provérbios, capítulo 21, verso 13, lemos: “O que tapa o ouvido ao clamor do pobre também clamará e não será ouvido”. Se no versículo que vimos anteriormente é prometida a benção do Senhor sobre aquele que obedecer, o que vemos aqui é a sua maldição sobre a desobediência. No hebraico, esta imprecação, aqui traduzida por “não será ouvido”, tem também o sentido de “não será respondido”, ou seja, Deus promete também tapar os ouvidos ao clamor de quem tapa os seus ao clamor do pobre.

De todo o visto até aqui, temos que Israel compreendia o com-promisso social, neste período, como uma ordenança do Senhor, a qual, uma vez obedecida, implicaria bênçãos sobre o povo; mas que, desobedecida, acarretaria maldição. Tal desobediência foi manifesta no período profético, com conseqüências trágicas para o povo eleito.

3. PRoFecia e coMPRoMisso social

Em seu tempo, o profeta Isaías já profetizava contra a opressão do necessitado:

Seria este o jejum que escolhi, que o homem um dia aflija a sua

alma, incline a sua cabeça como o junco e estenda debaixo de si

pano de saco e cinza? Chamarias tu a isto jejum e dia aceitável ao

senhor? Porventura, não é este o jejum que escolhi: que soltes as

ligaduras da impiedade, desfaças as ataduras da servidão, deixes livres

os oprimidos e despedaces todo jugo? Porventura, não é também

que repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os pobres

desabrigados, e, se vires o nu, o cubras, e não te escondas do teu

semelhante? (Is 58.5-7).

O que se vê aqui é a condenação de uma religiosidade hipócrita, que louva ao Senhor por meio de atos externos de culto, mas não o faz mediante a obediência dos preceitos de cuidado com o neces-sitado, que expusemos acima. Isaías condena o povo eleito por não atentar ao seu compromisso social.

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4 CLARKE, Adam. Prophet Ezekiel, Grand Rapids: Baker Book House, 1967. p. 899. 5 THAYER, Joseph Henry. Greek-english lexicon of the New Testament Grand Rapids: Baker Book House, 1977.

Durante o cativeiro babilônico, o profeta Ezequiel também falou da impiedade de Jerusalém, comparando-a a Sodoma: “Eis que esta foi a iniqüidade de Sodoma, tua irmã: soberba, fartura de pão e próspera tranqüilidade teve ela e suas filhas; mas nunca amparou o pobre e o necessitado” (Ez 16.49).

Vale observar aqui o fato de que, além da sua conhecida imo-ralidade sexual, Sodoma foi condenada por permanecer em uma situação econômica cômoda, sem, entretanto, cuidar do pobre e do necessitado. Concordo, aqui, com Adam Clarke:

Se tomarmos esta passagem literalmente, Sodoma era culpada de

outros crimes além deste pelo qual ela aparenta haver sido especial-

mente punida; em adição ao seu crime não-natural, ela foi acusada

de orgulho, luxúria, lassidão e não-caridade; e isto era suficiente para

afundar qualquer cidade em um poço sem fundo.4

4. Jesus e o coMPRoMisso social da igReJa

Nos tempos neotestamentários, a condição do povo de Israel, quanto à sua indiferença em relação aos menos favorecidos da sociedade, não era melhor. No Sermão do Monte Jesus exorta os seus discípulos a serem diferentes daqueles que não são cidadãos do reino dos céus: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mt 5.7).

O Greek-english lexicon de Thayer5 indica que o termo evleh,monej, aqui traduzido por “misericordioso” tem um sentido de prontidão a ajudar. Aquele que está pronto a ajudar é bem-aventurado, pois encontrará, também, um Deus pronto a ajudá-lo. É uma promessa de benção ao povo eleito, caso este cumpra o preceito divino de atentar para a necessidade do pobre.

Comentando esta passagem, Calvino diz:

O mundo incentiva tais homens a serem felizes, os que não tem ne-

nhuma preocupação com o sofrimento dos demais, mas consideram

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seu próprio conforto. Cristo diz que são felizes os que não apenas

preparam-se para enfrentar suas próprias aflições, mas também

para partilhar a aflição dos demais – assistindo os miseráveis – que

voluntariamente partinham com aqueles que sofrem.6

O reformador entendia, portanto, que são felizes aqueles que não apenas consideram o seu próprio bem-estar, como também o bem-estar dos demais. O parâmetro para a igreja de Cristo deve ser diferente do mundo egoísta em que vivemos. Ainda no contexto do Sermão do Monte, Jesus insiste em que os discípulos tenham um padrão diferenciado de conduta, fazendo diferença no contexto de mundo em que estão inseridos: “Vós sois o sal da terra; ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens” (Mt 5.13). A palavra aqui é de condenação a um discípulo de Jesus que não atente para a sua ordem de abençoar a um mundo pecador e sem sabor. Se não o fizermos, para que servimos?

Na parábola do bom samaritano (Lc 10.25-37), tal como fez Isaías no texto citado acima, Jesus condena os atos de religiosidade hipócrita, a vida daqueles que, honrando o Senhor com os seus lábios, não o honram cuidando do necessitado. Jesus, aqui, elogia um samaritano, alguém que foi capaz de um ato que os judeus negligenciaram.

Por fim, observamos o texto de Lucas 14.12-14:

Disse também ao que o havia convidado: Quando deres um jan-

tar ou uma ceia, não convides os teus amigos, nem teus irmãos,

nem teus parentes, nem vizinhos ricos; para não suceder que

eles, por sua vez, te convidem e sejas recompensado. Antes, ao

dares um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os

cegos; e serás bem-aventurado, pelo fato de não terem eles com

6 CALVIN, John. Harmony of the Gospels. Grand Rapids: Baker, 1981. v. 1, p. 226.

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que recompensar-te; a tua recompensa, porém, tu a receberás na

ressurreição dos justos.7

Mais uma vez, está presente aqui a idéia de retribuição de Deus à misericórdia que empregarmos em relação ao necessitado.

5. a coMPReensão da igReJa PRiMitiva quanto ao coMPRo-Misso social

O cuidado do necessitado era um dos sinais da igreja apostólica. Vejamos o testemunho do conhecido texto de Atos 4.34-35: ”Pois nenhum necessitado havia entre eles, porquanto os que possuíam terras ou casas, vendendo-as, traziam os valores correspondentes e depositavam aos pés dos apóstolos; então, se distribuía a qualquer um à medida que alguém tinha necessidade”.8

Notamos aqui a existência de uma vida comunal na comunidade cristã primitiva: não havia acumulação de riquezas; este modo de vida da igreja primitiva é contrário à mentalidade egoísta atual, em que cada um pensa mais em si do que no bem comum. Isto se coaduna com a idéia de Calvino de que a propriedade não podia atender exclusivamente ao seu possuidor, mas à coletividade.

Esta idéia é reforçada pelo apóstolo Paulo: “Aquele que furtava não furte mais; antes, trabalhe, fazendo com as próprias mãos o que é bom, para que tenha com que acudir ao necessitado” (Ef 4.28).9 Para o apóstolo Paulo, o trabalho não deve ser um meio para sa-

7 Calvino diz, a respeito desta passagem: “Você pode servir uma mesa para os ricos, mas, ao mesmo tempo, você não deve negligenciar o pobre; você pode festejar com seus amigos e parentes, mas você não pode fechar a porta aos estranhos, se a pobreza sobrevier a eles, e se você tiver os meios para satisfazer às suas necessidades. Numa palavra, o sentido desta passagem é que aqueles que são gentis aos parentes e amigos, mas que usam de mesquinhez com o pobre não são dignos de admiração, pois não exercitam a caridade, mas visam apenas seu próprio ganho ou ambição”. CALVIN, op. cit., v. 2, p. 122.

8 Segundo Clarke esta assistência era prestada àqueles pobres que haviam sido excluídos da parte que cabia aos sacerdotes nos sacrifícios por haverem se convertido ao cristianismo. Cf. CLARKE, Adam. Acts of the Apostles, Grand Rapids: Baker Book House, 1967. p. 438.

9 Hodge diz acerca desta passagem que “nenhum homem vive para si mesmo; e nenhum homem deve trabalhar apenas para si, mas com o objetivo definido de estar apto a assistir outros. Os princípios cristãos, se corretamente cumpridos, poderiam rapidamente banir a pobreza e outros males correlacionados de nossa civilização moderna”. HODGE, Charles. A commentary on Ephesians. Grand Rapids: Baker, 1980. p. 273.

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tisfazer aos nossos próprios prazeres, mas para que façamos o que é bom, ou seja, atendamos ao que está passando necessidades. É notável esta ênfase neotestamentária no tocante à nossa mordomia quanto aos bens que Deus coloca em nossas mãos: devemos pensar mais nos outros do que em nós mesmos.

Por fim, o segundo capítulo de Tiago que, em minha avaliação, é a suma de tudo o quanto a Escritura fala a respeito de compromisso social do cristão. Primeiramente, Tiago nos ordena a não menos-prezar os pobres, a não os ignorar, mas dar a eles o mesmo local de honra que daríamos a qualquer pessoa de destaque na sociedade, pois Deus mesmo não faz acepção de pessoas. Exorta ainda o povo de Deus a manifestar a sua fé por meio de obras. Isto fica muito claro nos versos 15 e 16 deste capítulo: “Se um irmão ou uma irmã estiverem carecidos de roupa e necessitados do alimento cotidiano, e qualquer dentre vós lhes disser: Ide em paz, aquecei-vos e fartai-vos, sem, contudo, lhes dar o necessário para o corpo, qual é o proveito disso?”.10

Para Tiago, a fé, vivida ou pregada sem obras, é morta. A meu ver, ao afirmar que de nada adianta proclamarmos a paz que exce-de todo o entendimento a um necessitado carente de alimento ou roupas, Tiago está implicitamente ordenando aqui uma tarefa para a igreja, que se expressa num compromisso social efetivo.

conclusão

Neste arrazoado sobre a base bíblica para o compromisso social da igreja percebemos que o envolvimento social desta não era mera sugestão, mas uma ordenança do Senhor à sua igreja. Aliás, nos momentos em que a igreja fecha-se apenas no âmbito de templos confortáveis, sem atentar para seu compromisso de ser luz no mun-do, a expansão do evangelho sofre considerável declínio.

10 Julgo ser oportuno o comentário de John Wesley sobre este capítulo, afirmando que, aqui, Tiago “não opõe a fé às obras; mas aquela fé nominal vazia àquela fé operosa por amor. Pode aquela fé que é sem obras salvar o homem? Não mais do que poderia beneficiar ao seu próximo”. WESLEY, John. Notes on the Bible: New Testament. Grand Rapids: Francis Asbury Press, 1987. p. 779.

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| 163o CompromiSSo SoCial e a palaVra de deuS

Ainda assim, a igreja brasileira está em débito em relação ao seu compromisso social. Parece que os evangélicos contaminaram-se pelo individualismo de nossos tempos, e a regra passou a ser o “bus-car a benção”, negligenciando o serviço que a Palavra nos ordena. Como podemos esconder as mesmas mãos que recebem de Deus toda a sorte de bênçãos de nosso semelhante – criado à imagem e semelhança de Deus?

É preciso despertar para os valores que a Bíblia defende, a partir de uma pregação fiel do evangelho. Que o Senhor, que nos abençoa e nos provê de tudo o quanto necessitamos, possa nos iluminar a fim de que, com base em sua Palavra, possamos ser uma bênção neste mundo caído.

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| 165

S e r m ã o

liC. alCEu lourEnço dE souza jr.

Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Presbiteriano “Rev. José Manoel da Conceição”

Licenciado pelo Presbitério de Pirituba – SUN

as lEis alimEntarEs Ea nossa santifiCação

leVíTiCo 11

Sermão pregado no Seminário.

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intRodução

Nós vivemos num mundo que realmente acredita no ditado de que “você é o que você come”. Podemos ver isto claramente na ver-dadeira obsessão pelos alimentos, por descobrir novas dietas capazes de curar ou prevenir doenças, retardar o envelhecimento, melhorar a aparência da pele ou dos cabelos, emagrecer, etc.

Às vezes, determinado alimento sai da “lista dos proibidos” di-retamente para a “lista dos recomendados pelos médicos”; como o café, por exemplo, que já migrou de uma lista para a outra algumas vezes... Nos últimos anos, todos nos assustamos ao ouvir notícias sobre a “vaca louca” na Europa, ou a “gripe do frango”, na América; os nomes das doenças viraram piada, mas na verdade, causaram mortes e prejuízos gigantescos em diversos países, e nos mostraram que nenhum alimento é completamente confiável.

O que causa alguma estranheza é encontrarmos um capítulo inteiro das Escrituras Sagradas prescrevendo uma dieta alimentar. O capítulo onze de Levítico é exatamente isso: uma lei dietária, ou seja, uma lei cerimonial que alista os animais apropriados para co-mer, chamados “limpos”; e os animais que não podiam ser comidos, devendo ser considerados “imundos”, ou “abominação”.

Para a maioria dos cristãos, este é um trecho da Palavra de Deus que parece especialmente sem significado atual. Eu conheço mesmo bons crentes que, ao fazerem sua leitura bíblica sistemática, chegam em trechos como o capítulo onze de Levítico e não sabem o que fazer com ele. Acabam fazendo uma leitura mais superficial, e isso quando não, simplesmente, pulam para a próxima passagem!

Cabe a nós nos perguntarmos, juntamente com eles: Por que a Palavra de Deus registra isto?

contextualização

De fato, esta lei sobre animais limpos e imundos faz parte de uma série de leis dadas por intermédio de Moisés ao povo de Israel no deserto. Aquele povo havia acabado de sair da escravidão do Egito, mas ainda tinha os antigos costumes bastante arraigados em seu dia-a-dia; aliás, arraigados em seu coração, conforme po-

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demos perceber pelas inúmeras vezes em que murmuraram contra Moisés, dizendo: “era melhor que tivéssemos ficado como escravos no Egito”.

Deste modo, Deus entrega a Moisés uma perfeita regra de justiça, geralmente chamada lei moral, para que seu povo aprendesse como deveria viver diante do seu Deus. Deus quis também dar ao povo de Israel, como um corpo político, numerosas leis judiciais que pro-moviam a justiça e eqüidade nas suas relações sociais. Além destas leis, Deus entregou ainda um conjunto de leis cerimoniais para Israel, como sua igreja na menoridade; estas variadas ordenanças diziam respeito ao modo pelo qual eles deveriam adorar ao Senhor por meio de sacrifícios, mas também como poderiam manter-se puros em seu cotidiano, como adoradores do Deus santo.

Tais leis cerimoniais prefiguravam a pessoa e obra de Cristo, que nas palavras do autor da epístola aos Hebreus, é o sumo sacerdote “santo, inculpável, sem mácula, separado dos pecadores, feito mais alto que os céus”, assentado “à destra do trono da Majestade nos céus”. A obra de Cristo ab-rogou, ou seja, anulou completamente as ordenanças “baseadas somente em comidas e bebidas e diver-sas abluções” da antiga aliança, substituindo-as pela nova aliança no seu sangue, capaz de “purificar a nossa consciência de obras mortas para servirmos ao Deus vivo” (Hb 7.26; 8.1; 9.10,14). Por isso, “não é a comida que nos recomendará a Deus, pois nada perderemos, se não comermos, e nada ganharemos, se comermos” (1Co 8.8).

Sendo assim, todas aquelas ordenanças que nós lemos em Levíti-co perderam completamente seu efeito: a igreja cristã não está presa ou obrigada ao seu cumprimento, e mesmo sua função de apontar para a obra de Cristo fica prejudicada, pois já temos bem presente a realidade da cruz.

Mas permanece a pergunta do crente comum: “Por que eu tenho isto na minha Bíblia?”

O apóstolo Paulo garante a Timóteo que “toda a Escritura é inspi-rada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça” (2Tm 3.16); por isso, a passagem de Levítico 11 também é proveitosa para nosso processo de santificação.

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Mas, como leis que não guardamos podem ser proveitosas para nosso processo de santificação? Primeiramente, por ensinar que é necessário discernir o que é puro do que é impuro.

as leis aliMentaRes nos ensinaM a disceRniR

o PuRo do iMPuRo

De fato, este é o proveito mais direto que o povo de Israel obteve do cumprimento destas leis; nos versículos 46 e 47 a afirmação é clara: “Esta é a lei dos animais, e das aves, e de toda alma vivente que se move nas águas, e de toda criatura que povoa a terra, para fazer diferença entre o imundo e o limpo e entre os animais que se podem comer e os animais que se não podem comer.” Veja bem: “Esta é a lei... para fazer diferença”.

Esta lei não apenas aponta, informa, descobre diferenças inerentes entre as espécies animais – ela estabelece estas diferenças! É bem ver-dade que muitos estudiosos sérios já apontaram questões de saúde pública que estariam sendo evitadas por Deus no meio de seu povo; considerar “imundos” e impróprios para o consumo animais como o porco, hospedeiro comum de parasitas que causam verminoses, só faria bem; e o cadáver de um animal morto espontaneamente pode carregar a doença que o matou – tanto mais se considerarmos as pre-cárias condições de higiene que prevaleciam naquele tempo e lugar.

Entretanto, devemos nos lembrar das palavras de Deus em Gênesis 9.3, “Tudo o que se move e vive ser-vos-á para alimento; como vos dei a erva verde, tudo vos dou agora.” Certamente Deus não perece preocupado ali em restringir a alimentação de Noé e de sua posteridade.

E já que nenhum critério parece ligar os tipos tão díspares de proibições de nossa lista, a explicação mais simples e direta é que Deus, numa sábia e santa pedagogia, deseja ensinar ao seu povo que as coisas não são todas iguais, mas que há uma fundamental diferença entre coisas aprovadas e não-aprovadas, entre bem e mal, e que é a sua Palavra o critério para distinguir entre ambos.

Na repetição parcial desta lei, em Levítico 20.25, o texto é ainda mais claro: “Fareis, pois, distinção entre os animais limpos

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e os imundos e entre as aves imundas e as limpas; não vos façais abomináveis por causa dos animais, ou das aves, ou de tudo o que se arrasta sobre a terra, as quais coisas apartei de vós, para tê-las por imundas.”

Ainda que se possa traduzir este texto como “separei de vós por serem imundas”, a tradução em nossas Bíblias faz mais jus ao sentido do original: Deus é que as separa para serem consideradas impuras. Os israelitas não poderiam recorrer aos costumes das outras nações, nem tampouco poderiam apelar aos seus instintos, apetites e paladar para discernirem o que era bom para comer – a Palavra de Deus era o critério.

É o mandamento do Senhor que faz o salmista do Salmo 119 mais sábio do que seus inimigos, mais entendido do que seus mes-tres e que os anciãos; mas na Bíblia a sabedoria sempre está ligada à capacidade de discernir o mal e praticar o bem, a uma resposta coerente à justiça de Deus conforme revelada nas Escrituras.

Porém, o que está predito em Jeremias 31.33?: “Naqueles dias, na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas inscreverei”; e Ezequiel 36.27: “Porei dentro de vós o meu Espírito e farei que andeis nos meus estatutos, guardeis os meus juízos e os observeis”. E qual a promessa de Cristo à sua igreja em seu último discurso em João, a partir do capítulo 14?: “O Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas; o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade”.

Num certo sentido, não há diferença real entre o povo no de-serto e nós. É a obediência à lei do Senhor que manifesta que não andamos mais como também andam os gentios, obscurecidos em seu entendimento. Porém, é a sua lei gravada em nosso íntimo pelo seu Espírito que nos faz discernir um tipo mais sutil de impu-rezas, conforme a exortação de Paulo aos Efésios, capítulos 4 e 5: impudicícia e cobiça, que nem sequer deve ser nomeada entre nós; blasfêmia, amargura, gritaria e malícia, que devem estar longe de nós; incontinência e avareza, pelas quais vem a ira de Deus. Ain-da seguindo a exortação de Paulo, é pela santa lei divina que nós, cheios do Espírito, discernimos que em nosso lar a mulher deve ser submissa ao seu próprio marido, como ao Senhor; que o marido

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deve amar sua mulher, a ponto de se entregar por ela; que filhos devem obedecer aos pais, e que os pais devem criá-los na disciplina do Senhor, sem provocá-los à ira.

Será que podemos recorrer aos costumes e conceitos dos ímpios para discernir o que é bom para nossas famílias e nossos filhos? Poderemos extrair nosso critério dos conceitos mutáveis e limitados da Psicologia ou Sociologia? Será que podemos apelar aos nossos instintos, apetites e bom senso para distinguir o que é bom para nossas vidas? Não, o texto de Levítico nos ensina que o Espírito de Deus, falando nas Escrituras e pelas Escrituras, será sempre o nosso critério.

Quase como uma implicação direta da distinção entre puro e impuro, estas leis também são proveitosas por apontar a necessidade de separação do povo de Deus.

as leis aliMentaRes nos aPontaM a necessidade

de sePaRação

Isto está muito claro na lógica do texto: Deus lhes dá a lei para que eles possam se separar dos demais povos, sendo santos como ele mesmo o é. No versículo 44 há duas ordens diretas, uma positiva, “vós vos consagrareis”, e outra negativa, “não vos contaminareis”.

Porém, não devemos imaginar que na antiga dispensação da graça a consagração (ou a religião) era algo meramente exterior. Profetas como Isaías alertaram constantemente contra um cum-primento meramente exterior dos preceitos divinos, contra o oferecimento meramente formal dos sacrifícios ao Senhor: “não me agrado do sangue de novilhos, nem de cordeiros, nem de bo-des; não continueis a trazer ofertas vãs” (Is 1.11-16). E o Salmo 51.16,17: “Pois não te comprazes em sacrifícios; do contrário, eu tos daria; e não te agradas de holocaustos. Sacrifícios agradáveis a Deus são o espírito quebrantado; coração compungido e contrito, não o desprezarás, ó Deus.”

Por mais que houvesse ritos, cerimônias e ordenanças externas – que, nas palavras da epístola aos Hebreus, eram apenas sombras daquilo que era real, Jesus Cristo – ainda assim, o culto ao Senhor

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no Antigo Testamento era uma religião espiritual, e estas leis ali-mentares que estamos estudando não são exceção.

Entretanto, como vimos a pouco, o texto não aponta para um mal inerente daqueles animais, mas enfatiza a ordenança divina: “estes serão para vós outros abominação”. E diz: “não vos façais abomináveis”, e não algo como: “cuidem mais da saúde” ou “não fiqueis doentes...” Daí concluímos que o fundamento da lei é a vontade soberana do doador da lei; e que, portanto, cumprí-la ou descumprí-la nunca é apenas uma questão formal, mas sempre uma questão moral. Tem a ver com nossa submissão à vontade revelada do Criador; com nossa fé em que sua vontade é boa, agradável e perfeita, conforme Romanos 12.2.

Mais um detalhe: Na repetição destas leis em Deuteronômio 14.3-21, interessantemente é acrescentado que os israelitas pode-riam dar ou vender um animal achado morto, considerado impuro, a um estrangeiro, que estivesse morando em Israel, por exemplo; além disto, os povos em derredor certamente não seguiam estas leis. Isto tudo significa que cada filho de Israel era constantemente confrontado com a realidade de que eles não podiam comer aquilo que seus vizinhos e estrangeiros podiam comer – e, como indica o Salmo 73, eram tentados a cobiçar a aparente fartura em que os ímpios viviam.

Agora, imagine um israelita em pleno deserto tendo de selecionar aquilo que poderia comer; tendo de utilizar a valiosa água para lavar utensílios, roupas e instrumentos (v. 32); tendo mesmo de quebrar vasos e fornos de barro (vs. 33 a 35) e lançar fora sementes (v. 38) – e tudo isto em razão de incidentes considerados completamente normais entre outros povos!

Meus irmãos, o fato é que era necessária verdadeira fé na Palavra de Deus, verdadeiro desejo de guardar sua santa lei, para obedecer a estas ordenanças. A distinção do povo de Deus não seria o cumprimento formal e externo de alguns preceitos, mas esta fé viva e verdadeira. Deveria haver um esforço consciente de se separar, submetendo cada aspecto da vida comum ao mandamento divino, ainda que isto pudesse custar alguns bens materiais, mesmo que valiosos. Quando Daniel e seus compa-

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nheiros resolveram firmemente não se contaminar com as finas iguarias do rei, puseram em risco sua própria segurança no império babilônico. Eles não estavam sendo legalistas; eles estavam, por meio de sua obediência e fé, distinguindo-se daqueles que não pertenciam ao seu Deus.

Aliás, aqui no versículo 47, a expressão “fazer diferença” é uma tradução do mesmo verbo que aparece lá em Levítico 20.24 como “separar”: “Eu sou o senhor, vosso Deus, que vos separei dos povos”, e no 26: “e separei-vos dos povos, para serdes meus.”

Ou seja, na sua misericórdia Deus fez diferenciação, distinguiu, separou um povo para si. O que seus mandamentos requerem é que seu povo se distinga, se separe. É óbvio que povo de Deus hoje não tem menos necessidade de se distinguir (ou seja, de se separar das práticas do mundo que nos rodeia) do que o tinha o povo de Israel.

Mais ainda: João, em sua primeira carta afirma que se amarmos o mundo o amor do Pai não estará em nós; e que, se nossas obras forem justas, o mundo nos odiará. Aliás, Em sua oração sacerdotal, em João 17, no versículo 15, Jesus afirma que o mundo nos odeia mesmo, porque não somos do mundo; e pede ao Pai, não que nos retire do mundo, mas que, no mundo, sejamos guardados do mal. Por isso, 1 Pedro 2.11 nos chama de peregrinos e forasteiros no mundo e nos exorta a lutarmos contra as paixões pecaminosas, para vivermos vidas santas e separadas, bem no meio dos gentios, para que eles emudeçam. Na verdade, os cristãos da igreja primitiva mantinham um padrão de vida tão distinto dos demais que eram chamados de “seita do caminho” (At 24.14).

Cada cristão é igualmente chamado a um esforço consciente de se separar, ainda que a um alto custo, submetendo cada aspecto da vida comum ao mandamento divino, para que a obra de Deus dentro de nós seja manifesta e manifestamente reconhecível pelos de fora, para vergonha deles e glória do Pai.

Mas, se estas leis são proveitosas por ensinar o povo de Deus de todos os tempos a distinguir o puro do impuro e por apontar a necessidade de o próprio povo do Senhor se separar, também são proveitosas por nos exortar a imitar o caráter santo do Senhor.

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as leis aliMentaRes nos exoRtaM a buscaR a santidade

Veja que não era apenas uma proibição de comer certos animais, mas até mesmo de tocá-los! Podemos calcular que muitas vezes era inevitável tocar um animal destes que tivesse aparecido morto no campo, ou coisa assim; mas os versículos 8, 11, 27 em diante nos esclarecem que quem tocasse nos cadáveres destes animais seria “imundo” por certo tempo, isto é, teria contraído uma impureza cerimonial “até à tarde”, e portanto estaria afastado dos serviços do tabernáculo por aquele dia. Estas leis diziam respeito diretamente ao relacionamento do povo com seu Deus.

O grande fundamento desta lei é afirmado duas vezes, para maior ênfase e clareza: “Eu sou o senhor” (v. 44 e 45); Yahweh, o nome que faz referência ao pacto de Deus com seu povo, o pacto que impele o povo do Deus santo a ser santo também: “portanto, vós sereis santos, porque eu sou santo”, igualmente repetido no 44 e no 45.

Se dissemos acima que o critério para distinguir o puro do impuro é a Palavra de Deus, aqui estamos afirmando que o fundamento para esta distinção é o caráter de Deus: Deus é santo, sua Palavra é santa, seu povo é santo.

Apesar da concepção muito popular de que o conceito básico da palavra santo é simplesmente de “separado”, na Bíblia esta palavra nunca aparece num contexto secular, mas sempre religioso; também nunca é contrastada com “misturado”, mas com “profano” ou com aquilo que é “culticamente impuro” – que é bem o nosso caso aqui em Levítico.

Assim, os objetos consagrados do tabernáculo ou do templo tinham de ser totalmente dedicados àquela função; e a separação de pessoas daquilo que podia torná-las cerimonialmente impuras era um símbolo desta santidade, que é espiritual e ética.

Quando relacionado a Deus, podemos ver que “santidade” se refere especificamente ao seu caráter totalmente bom, e inteiramente isento de mal. É o atributo divino de perfeição transcendente, uma pureza que não pode tolerar nenhuma forma de pecado – que não pode contemplar o mal, segundo Habacuque 1.13.

Santidade é esta separação de tudo que é profano e pecaminoso, e o livro de Levítico enfatiza isto em cada linha! Num livro de 27

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capítulos, mais de 120 vezes aparece a palavra “santo” ou o verbo “santificar”; e a palavra “imundo”, mais de 130 vezes! É quase como um luminoso gigantesco em néon, com setas apontando claramente a impureza e o pecado na vida humana. Apontando para Deus: Santo! Santo! Santo! E apontando para nós: é necessário santificar-vos, santificai-vos já a Deus!

O versículo 45 ressalta que Deus, este Deus santo, havia entrado em aliança com este povo pecaminoso, ao tirá-los do Egito para ser seu Deus; e que cada aspecto de suas vidas agora deveria refletir este relacionamento.

O apóstolo Paulo esclarece em Romanos 8.29 que fomos predes-tinados por Deus para sermos conformes à imagem de seu Filho; e em 2 Coríntios 3.18 diz que isto acontece ao sermos transformados, de glória em glória, na imagem de Cristo pela atuação do Espírito. É a cristãos que 1 João 1.7 afirma que o sangue de Jesus nos purifica de todo pecado: nós, que cremos no nome de Cristo, não precisamos mais lavar nossas vestes contaminadas, pois o sangue de Jesus já nos cobriu e nos lavou completamente, ao ponto de nos apresentar com vestes alvas como igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem defeito (Ef 5.27). Paulo, em suas epístolas, chega mesmo a denominar mais de 40 vezes os crentes das igrejas locais de “os santos”. Esta é a nossa realidade em Cristo.

Em Cristo, de modo algum estaremos “imundos até a tarde”, apartados da presença e do amor do Pai. Entretanto, esta mesma expressão “Sede santos porque eu sou santo”, é repetida em 1 Pedro 1.16, ao afirmar que os cristãos são filhos da obediência, chamados a não se amoldar às paixões mundanas, mas a andarem segundo a santidade de Deus. Em Efésios 5.1, Paulo exorta seus convertidos a serem imitadores de Deus, como filhos amados; e a andarmos em amor, como também Cristo nos amou e se entregou a si mesmo por nós, como oferta e sacrifício a Deus, em aroma suave.

Portanto, não pelo temor de sermos apartados dos serviços do tabernáculo, nem pela libertação do Egito, mas como resposta amorosa ao nosso grande Deus e Salvador, daquele que nos ado-tou como filhos em sua família, sejamos santos como ele mesmo é santo.

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conclusão

Quanto àquela pergunta inicial – “Por que eu tenho leis alimen-tares na minha Bíblia?” –, podemos concluir que, ainda que não estejamos debaixo de tais leis para cumpri-las, elas são extremamente proveitosas para nosso processo de santificação, por ensinar o povo de Deus a distinguir o puro do impuro, por apontar a necessidade de o próprio povo do Senhor se separar, e finalmente por nos exortar a imitar o caráter santo do Senhor.

Meus irmãos! Este processo de santificação é o resultado da habitação do Espírito Santo nos crentes, mas vimos que de modo algum descarta um comprometimento consciente do cristão em discernir e se separar daquilo que desagrada a perfeita vontade de Deus, conforme sua Palavra, que dizemos ser nossa única regra de fé e prática.

Como para o povo no deserto, nossa santificação tem de al-cançar cada detalhe do nosso cotidiano. Se somos estudantes, por exemplo, temos de distinguir que há formas impuras de fazer uma prova, ainda que os colegas achem perfeitamente aceitável “passar cola”; temos de distinguir claramente que a internet não pode fazer nossos trabalhos por nós. Sejamos santos como santo é o Senhor!

Atinge igualmente nossa vida profissional. Devemos nos sepa-rar das práticas desonestas e injustas do mundo por meio de um santo proceder, ainda que o custo seja alto! Se você é funcionário, considere abominação assinar a folha de ponto de forma desonesta ou receber pela hora extra que você não fez. Se é empresário, não seja injusto ao definir salários e horários de seus funcionários; pague seus impostos corretamente, não espere ser acionado na justiça para acertar o direitos de ex-empregados! Sejamos santos como santo é o Senhor!

Precisamos nos separar, ainda, das práticas imorais dos ímpios nos nossos relacionamentos afetivos. Santificar os momentos de namoro, ainda que isto signifique não ter mais momentos a sós com a pessoa amada. E nos separar das práticas impuras dos ímpios no tempo que passamos em frente ao computador, ainda que isto signifique restringir os momentos de acesso à internet. Sejamos santos como santo é o Senhor!

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Ainda que isto venha a nos custar mais do que a restrição ali-mentar ou a perda de simples utensílios, devemos submeter nossa vida, desde os aspectos mais corriqueiros do cotidiano, ao Senhor. Temos de cultivar um desejo por santificação, num esforço cons-ciente de sermos santos, tal como nosso Pai celestial, porque assim ele é. A santidade de Deus é a fonte, o padrão e a motivação da nossa santificação.

Que a nossa comida consista em fazer a vontade daquele que nos salvou. Amém!

reViSTa Teologia para Vida

Projeto Gráfico e Capa – Idéia Dois DesignFormato – 16 x 23 cmTipologia – Arrus BT

Papel – Off-set 90g e Couchê 90gTiragem – 1.000 exemplaresImpressão – Imprensa da Fé

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

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“Dar-vos-ei pastores segundo o meu coração, que vosapascentem com conhecimento e com inteligência.”

(JR 3.15)

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Volume II - nº 2 - Janeiro - Junho 2009

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