Velho Oeste Carioca Volume II

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Velho Oeste Carioca - Volume IIConta a história de Jacarepaguá e da Zona Oeste do Rio de Janeiro

Citation preview

  • O Velho Oeste CariocaVOLUME II

  • Andr Luis Mansur

    O Velho Oeste CariocaVOLUME II

    Mais Histrias da Ocupao da Zona Oeste do Rio de Janeiro(de Deodoro a Sepetiba)Do sculo XVI ao XXI

    Ibis LibrisIbis LibrisIRio de Janeiro

    2011

  • Copyright 2011 Andr Luis Mansur

    Editores: Th ereza Christina Rocque da Motta e Joo Jos de Melo FrancoImagens da capa, pgs. 1 e 2: Jean Baptiste Debret (1768-1848) de Viagem Pitoresca e Histrica ao Brasil (1816-1831) Santa Cruz; o Palcio [Fazenda] de Santa Cruz e Visita da Famlia Imperial fazenda de Santa Cruz.

    1 edio em julho de 2011.

    Mansur, Andr Luis, 1969-O velho oeste carioca Volume II Mais Histrias da Ocupao da Zona Oeste do Rio de Janeiro (de Deodoro a Sepetiba), do sculo XVI ao XXI / Andr Luis Mansur. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2011. 106 p., 21 cm. ISBN 978-85-7823-082-1

    Impresso no Brasil.2011

    Todos os direitos reservados ao autor.

    E-mail do autor: [email protected]

    Ibis LibrisRua Almirante Alexandrino, 2746-A

    Santa Teresa | 20241-263 Rio de Janeiro | RJTel. (21) 3546-1007 | 2556-0253

    [email protected]

    Associada LIBRE.www.libre.org.br

  • NDICE

    Trilhos da saudade, 11A carroa do seu Damzio, 18Caf e Bar do Lavrador, 21O nascimento da Zona Oeste, 23O Cine Progresso, 24O Teatro Rural do Estudante, 28Tombamentos, 32Coragem nos cus da Zona Oeste, 36Frustrao no Campo de Marte, 37Morte na Serra do Barata, 39O Aero Clube Brasileiro e a Escola de Aviao, 41O aribu do Capito Vilela, 43Mais proteo aos aviadores, 44A Aeronutica e a transferncia do campo, 46Das peladas na fbrica ao Estdio Proletrio, 48O Galo da Zona Oeste, 54Seu Chiquinho, datilgrafo e escritor, 57O Polgono de Tiro da Marambaia, 58Tiros no paraso, 59Milagre e idealismo, 61Crumarim e Grumari, 63Os imperadores em Santa Cruz, 65Como pinto no lixo, 67Lua de mel na fazenda, 68A morte do pequeno prncipe, 69A vidinha simples de D. Pedro II na fazenda, 70Os escravos-msicos de Santa Cruz, 73Os mistrios da Grande Candiani, 77Nos trens da Central, 79

  • O ramal de Mangaratiba, 83A linha de trem de Austin, 86As bem-amadas Sepetiba e Pedra de Guaratiba, 88Boias de cmaras de ar, 93Tiradentes em Campo Grande?, 95Maria Graham na Zona Oeste, 98

  • Meu Bairro (samba-cano)

    Meu bairro,Meu Campo Grande distante,

    No meu subrbio galante,Bero das canes de amor.

    Meu bairro,Da igrejinha do Desterro,

    Que d penso para o meu erro,Erro de ser um sonhador.

    Adelino Moreira

  • Pal

    cio

    de S

    anta

    Cru

    z

    dese

    nho

    de M

    aria

    Gra

    ham

    , dat

    ado

    de s

    bad

    o, 2

    3 de

    ago

    sto

    de 1

    823

    A

    pont

    amen

    to d

    e M

    aria

    Gra

    ham

    : Bei

    rais

    am

    arel

    os, p

    orta

    s, sa

    lvo

    as d

    a ig

    reja

    , ver

    des.

    C

    ole

    o d

    o M

    useu

    Bri

    tni

    co.

  • Faze

    nda

    dos

    Afo

    nsos

    d

    esen

    ho d

    e M

    aria

    Gra

    ham

    C

    ole

    o d

    o M

    useu

    Bri

    tni

    co.

  • Vila de So Francisco Xavier de Itagua desenho de Maria Graham Coleo do Museu Britnico.

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 11 |

    TRILHOS DA SAUDADE

    A escritora Rachel de Queiroz, primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de Letras, escreveu, em sua crnica Bondes, que os moradores de Campo Grande e Santa Cruz eram felizardos por ter andado de bonde quando praticamente todo o restante da cidade j havia abolido esse tipo de transporte, o mais civilizado veculo concebido pela tcnica: bonde que no esquenta, no queima leo, no vomita fumaa, no buzina, no sai do caminho, no ultrapassa os outros (A no buzina, no sai do caminho, no ultrapassa os outros (A no buzina, no sai do caminho, no ultrapassa os outros (Longa Vida que j Vivemos, Rachel de Queiroz). Assim como a grande escritora cearense, esses veculos ainda despertam uma profunda memria afetiva nos moradores de Campo Grande. Muitos acham que alguns trechos do bairro poderiam muito bem ser percorridos por bonde at hoje, como acontece em Santa Teresa. O ponto de encontro dessa turma o bar Chopp da Villa, na localidade de Villa Santa Rita, onde o dono Ernesto Pires mantm uma diversi cada coleo de fotos antigas da regio, atraindo a cionados pelas memrias do bairro. Um desses frequentadores, Luiz Damsio, coleciona rplicas perfeitas de bondes e lotaes, e uma raridade, um caminho de laranjas, idntico aos que trafegavam no bairro na poca em que a regio foi a maior produtora dessa fruta no Brasil, entre os anos 30 e 40.

    Com tanto conhecimento, Ernesto, de vez em quando, d palestras sobre o assunto em colgios ou conversa com quem tiver interesse em ouvir. Alm de informaes tcnicas, sempre busca, no rastro de sua memria privilegiada, fatos curiosos, como a passagem do bonde que puxava muita eletricidade e provocava a queda de energia nas casas prximas a televiso, por exemplo, cava sem imagens por alguns minutos.

    Havia tambm o bonde taioba ou de segunda classe,

  • | 12 | Andr Luis Mansur

    para o transporte da colheita e de cargas em geral, com um espao maior entre os bancos, e que, ainda segundo Rachel de Queiroz, algum j pensou que, depois de extintos os bondes de segunda classe, no existe mais maneira alguma de pobre carregar seus fardos lavadeira a sua trouxa, mascate a sua mala, vassoureiro as suas vassouras, verdureiro a sua cesta? Que foi que botaram em substituio do bonde taioba? Nada, claro (A Longa Vida que j Vivemosclaro (A Longa Vida que j Vivemosclaro ( , Rachel de Queiroz).

    A partir de 1967,os bondes de Campo Grande passaram a ser apenas um quadro na parede do bar como a Itabira de Drummond , mas chegaram ao bairro bem antes, mais precisamente em 16 de outubro de 1894, quando o Conselho Municipal da cidade fez uma concesso Companhia de Carris Urbanos para operar a linha de bondes de trao animal entre a Estao Ferroviria de Campo Grande e a localidade de Santa Clara, no caminho para a Pedra de Guaratiba. Era uma linha basicamente de transporte de capim para os animais de carga e teve seu primeiro trecho inaugurado em julho de 1896, entre Campo Grande e a Estrada do Monteiro. Nesse mesmo ano, foi concedido a Domingos Guilherme de Braga Torres a permisso para estabelecer uma linha de bondes entre Guaratiba e Santa Cruz, mas o negcio no foi adiante.

    Antes disso, no entanto, existiu a linha entre Santa Cruz e Sepetiba, cujo trecho inaugural foi aberto em 27 de junho de 1884. O terminal cava na Baa de Sepetiba, que, na poca, ainda sem a devastao ambiental das ltimas dcadas, devia ser uma chegada deslumbrante para quem embarcava nos veculos. Prestou essa linha utilssimos servios no transporte dirio de peixe, provindo das guas piscosas de Sepetiba e suas redondezas com destino a Santa Cruz, onde se fazia o embarque para o mercado da cidade do Rio de Janeiro.

    Alm disso, manteve a empresa, com regularidade, o servio martimo entre Sepetiba e os pequenos portos do sul da provncia do Rio (Meios de Transporte no Rio de Janeiro, Vol. I,

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 13 |

    Noronha Santos). O percurso tinha, em 1893, 9.500 metros de extenso e quatro carros de passageiros. A concesso durou at 1911, quando a linha foi desativada e os carros entregues ao poder pblico.

    No caso dos bondes de Campo Grande, somente a partir de 1908 comearam a transportar passageiros, mas, a princpio, numa velocidade muito baixa, entre 10 e 20 km/h, ou seja, era preciso muita pacincia para viajar nesses veculos, o que compensava, no entanto, pela bela paisagem em volta, com montanhas, poucas casas, muito verde, pouca poluio e rios (alguns navegveis), que ainda no haviam sido transformados em ftidos vales.

    Em 1913, foi dada permisso a Wilhelm Brossenius para construir uma linha entre Madureira e Santa Cruz, mas no obteve sucesso. Quatro anos depois, com a eletri cao das linhas, surgiu a Companhia de Bondes Eltricos de Campo Grande a Guaratiba, iniciando o transporte de massa na regio. Alis, foi nesse ano que os moradores de Campo Grande passaram a ter luz eltrica em casa. H, na Praa Dom Joo Esberard, que abriga a Igreja de Nossa Senhora do Desterro de Campo Grande, um marco para comemorar o acontecimento.

    A linha eltrica Campo Grande-Pedra de Guaratiba foi inaugurada em 1917, a Campo Grande -Ilha de Guaratiba no ano seguinte e a Campo Grande-Rio da Prata em 1920, por determinao do intendente municipal Antnio Jos Teixeira, de famlia tradicional da localidade.

    Todos, do povo em geral at pessoas a uentes e in uentes, apreciavam passeios at o Rio da Prata com seus cenrios imponentes de montanhas e orestas, o Pico da Pedra Branca, ponto culminante do Rio de Janeiro (...) e at a Pedra de Guaratiba, em meio copiosa vegetao e ares saudveis, a nal, chegando ao balnerio, onde todos viviam momentos de indizvel prazer pessoal e familiar numa praia tranquila, de

  • | 14 | Andr Luis Mansur

    mar sereno e num convvio de absoluta civilidade (Desastre Ecolgico na Baa de Sepetiba, Dlson de Alvarenga Menezes).

    O servio dos bondes foi municipalizado em 1937. Em 1960, com a transferncia da capital do Rio de Janeiro para Braslia e o surgimento do Estado da Guanabara, os bondes da agora chamada Zona Oeste passaram a fazer parte do Servio de Transporte Rural (STR). Mas, apesar de o bonde ser o veculo mais popular da cidade, enaltecido em prosa e verso, e no cinema por msicos, escritores e cineastas, e totalmente inserido no cotidiano da populao, a dcada que se iniciava foi o canto do cisne desse transporte em toda a cidade.

    Em 1 de janeiro de 1964, a Companhia de Transportes Coletivos (CTC) adquiriu os veculos de Campo Grande e, alm de mudar a tradicional cor verde-escura dos bondes do STR para azul e prata, fechou a linha da Ilha em outubro desse ano, a da Pedra no ano seguinte e, por m, a do Rio da Prata, em 1967.

    Na Estrada do Monteiro, que passa pelas terras da antiga sesmaria dos Monteiro, restou o ltimo smbolo do transporte na regio, a antiga O cina de Manuteno de Bondes Eltricos, no Largo do Monteiro, que pertence Companhia Municipal de Limpeza Urbana (COMLURB). Ainda possvel ver alguns trilhos no local e em outros locais, como na Praa do Rio da Prata, mas os bondes mesmo s existem como rplicas de colecionadores, pois os veculos foram entregues a siderrgicas e destrudos.

    A ltima viagem do bonde de Campo Grande, no fatdico 30 de outubro de 1967, foi registrada em foto por Oswaldo Machado, profundo conhecedor da histria da regio e que sempre morou no bairro.

    Naquele dia, um sbado, lembra Oswaldo, ele estava bebendo no tradicional bar do Almir Charuteiro, na Estrada do Monteiro, quando circulou a informao de que iria passar ali o ltimo bonde (embora a linha que ainda circulasse fosse a

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 15 |

    do Rio da Prata, o bonde seria recolhido para a citada o cina, na Estrada do Monteiro).

    Oswaldo, ento, reuniu os frequentadores do bar, botou seu carro em cima da linha e sacou a mquina fotogr ca. Quando o bonde chegou e comeou a buzinar sem parar, Oswaldo e os outros participantes do bloqueio explicaram a situao. Assim, todos desceram do bonde, tanto passageiros quanto funcionrios, beberam umas e outras no bar e posaram para uma animada foto, simbolizando um perodo que deixou saudades, e que permanece, obviamente, emoldurada na parede do Chopp da Villa.

    O Guia Rex do Rio de Janeiro de 1949 traz o percurso das linhas de bonde de Campo Grande:

    MONTEIRO Estao de Campo Grande, Rua Ferreira Borges, Rua Coronel Agostinho, Avenida Cesrio de Melo e Estrada do Monteiro. SANTA CLARA Estao de Campo Grande, Rua Ferreira Borges, Rua Coronel Agostinho, Avenida Cesrio de Melo, Estrada do Monteiro e Estrada do Magara. RIO DA PRATA Estao de Campo Grande, Rua Ferreira Borges, Rua Aurlio de Figueiredo, Estrada do Cabuu e Praa Mrio Valadares (atual Praa Elza Pinho Osborne). PEDRA DE GUARATIBA Estao de Campo Grande, Rua Ferreira Borges, Rua Coronel Agostinho, Avenida Cesrio de Melo, Estrada da Pedra, Rua Belchior da Fonseca e Praa Raul Barroso.

    H outras histrias curiosas e alegres ouvidas por quem cansou de pegar o bonde na regio. Os veculos, em geral, trafegavam sobre apenas um trilho e os que vinham em sentido contrrio precisavam esperar a vez para passar pelo desvio, o que atrasava muito o tempo das viagens.

  • | 16 | Andr Luis Mansur

    Algumas vezes, descarrilavam e os passageiros precisavam descer para colocar o bonde novamente no trilho. Havia tambm aquele que transportava os caixes at o cemitrio. O casal Celso e Jose na Soares lembra com preciso desse tempo, quando o velrio ainda era feito em casa, uma verdadeira festa, com comidas e bebida. Jose na diz que, quando algum morria, a notcia corria rpida e todos se preparavam para a ocasio. Depois do velrio, o caixo era carregado de bonde at o cemitrio da Ilha de Guaratiba.

    Eram outros tempos, mais calmos, quando todos ainda se cumprimentavam nas ruas. Ningum tinha pressa para chegar a lugar algum e a paisagem era belssima, com muito verde, poucos carros e construes, como se pode assistir num rarssimo vdeo sobre os bondes da Amrica do Sul, produzido pela companhia inglesa que os fabricava, e que dedica cerca de quinze minutos aos bondes de Campo Grande. lgico que Ernesto possui uma cpia desse documentrio e o exibe vez por outra no bar.

    A Rua Coronel Agostinho, hoje a principal do centro do bairro, onde h um calado que rene vrias lojas, era o caminho do bonde que vinha da Avenida Cesrio de Melo e virava a esquina em frente tradicional Sorveteria Campo Grande, que tinha sabores variadssimos.

    Ao lado, paralela a esta, ca a Rua Augusto Vasconcelos, com o nome de um senador, tambm bastante tradicional, onde h casas bem antigas e o Bar do Amndio, um dos bares mais tradicionais do bairro, que continua de portas abertas no centro. O comrcio da regio ainda seguia a forte in uncia dos mascates, principalmente os turcos e libaneses, que hoje formam uma in uente comunidade, com reunies e festas peridicas, mantendo viva a sua tradio.

    A ltima viagem de bonde de Campo Grande no foi a ltima a acontecer na cidade e, sim, a da Usina-Alto da Boa Vista, na Zona Norte, em 21 de dezembro de 1967, exceo, claro, dos bondes de Santa Teresa.

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 17 |

    Numa poca em que se fala tanto em aquecimento global e em efeito estufa, os bondes, que no poluam o ar, j eram um transporte limpo h quase um sculo, como bem ressaltou a imortal Raquel de Queiroz.

  • | 18 | Andr Luis Mansur

    A CARROA DO SEU DAMZIO

    Alm dos bondes, outro meio de transporte importante da zona rural carioca at meados do sculo XX era o veculo de trao animal, mais conhecido como carroa. E para quem considera rigorosas as regras do Departamento de Trnsito impostas aos motoristas de hoje, interessante estudar o caso de Florncio Antnio Damzio, examinado e aprovado em 26 de junho de 1927 pela Inspectoria de Vehiculos do Rio de Janeiro, da antiga Capital Federal, a dirigir carroa de Fiador a dois muares.

    Aos 53 anos, residente na antiga Estrada Real de Santa Cruz, n 2.735, na altura do atual bairro de Augusto Vasconcelos, Florncio precisava seguir uma rgida cartilha denominada Obrigaes dos Conductores de Vehiculos. Eram quatorze obrigaes, algumas divididas em itens, como o XI, que recomendava, entre outras exigncias (usando o vocabulrio da poca), tratar com polidez os passageiros; no fazer correrias na via pblica, para angariar passageiros e no promover ajuntamento nem fazer assuada e vozeria nas ruas e praas.

    No item XI, tambm consta a determinao de dirigir os animais sem castigos brbaros, ou immoderados, e no item XIV, no dar fuga a criminosos de qualquer espcie no acto de serem perseguidos pela polcia ou pelo clamor pblico o tradicional Ladro, ladro!, ainda muito ouvido em desabaladas correrias pelo centro da cidade.

    Como o Rio era a Capital Federal, no podia faltar a regra que ordenava parar o vehiculo para dar passagem ao carro do Presidente da Repblica, em qualquer occasio, alm de vrias outras sobre a passagem dos bondes, como a que manda retirar o vehiculo de cima da linha dos bonds ao bonds ao bondsprimeiro signal do motorneiro.

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 19 |

    Outro retrato bem claro da poca a regra que manda o condutor no cortar os Cortejos fnebres, quer compostos de outros vehiculos, quer de pedestres, nem formaturas ou prstitos, uma lei que s poderia existir mesmo numa poca em que ainda se velavam os corpos em casa, conforme foi dito, com bebida, comida e msica e depois o levavam de bonde ou a p at o cemitrio.

    interessante observar que o regulamento imposto aos condutores de carroas como Florncio Damzio s era rigoroso porque o trnsito selvagem, apesar de muitos pensarem o contrrio, no uma inveno recente, apenas se agravou com uma maior quantidade de veculos cada vez mais velozes. Se a coisa fosse to tranquila no seria necessria uma regulamentao to severa, a nal, a lei vem sempre a reboque do que est errado. Alis, basta assistir a algumas comdias do cinema mudo da dcada de 1920 para descobrir o que possvel fazer com um calhambeque em termos de barbeiragem.

    Naquele tempo, outro personagem interessante de Campo Grande e, de certa forma, relacionado aos transportes, foi Luiz de Castro Alves, chefe da estao do bairro e um integralista fervoroso. O grupo dos integralistas, a propsito, foi bastante destacado em Campo Grande, responsvel por vrios con itos de rua na dcada de 1930. Mas Castro Alves, com seu nome de poeta trovador, era um nacionalista ferrenho e no toa nasceu em 7 de setembro de 1898. Radioamador, foi dono do 21 telefone de Campo Grande e tornou-se muito conhecido no bairro. Uma de suas maiores distraes era pegar os netos, entre eles, a professora Louise Alves, que me contou toda essa histria, e dizer-lhes: Hoje vamos brincar de liberdade! A brincadeira inocente, e praticamente impossvel de ser praticada nos dias pragmticos e mal-humorados de hoje, consistia simplesmente em passar pelos txis que faziam ponto no centro do bairro e perguntar ao motorista:

    Est livre?

  • | 20 | Andr Luis Mansur

    E aps ouvir a resposta positiva, bradar, em alto e bom som, com a ajuda dos pimpolhos:

    Ento, viva a liberdade!

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 21 |

    CAF E BAR DO LAVRADOR

    Quando no existiam ainda as agncias bancrias e suas incmodas portas giratrias, era no Caf e Bar do Lavrador, no centro de Campo Grande, que os agricultores recebiam o pagamento das colheitas. Traziam o produto da lavoura, geralmente, do Rio da Prata ou da Ilha de Guaratiba, no j mencionado bonde taioba. Chegando a Campo Grande, a colheita era entregue ao distribuidor e o dinheiro recebido no Caf e Bar do Lavrador. Na maioria das vezes, os agricultores cavam algum tempo nos bares da regio, aproveitando, provavelmente, a nica chance no ms de sair da roa e ir cidade grande.

    A vida na roa do Rio da Prata era dura, porm bem mais saudvel do que hoje em dia. Levantavam muito cedo, comiam bem antes de ir trabalhar, e o almoo comeava com uma sopa de praticamente tudo o que se plantava no local. noite, iam dormir cedo.

    Um detalhe interessante que, como no havia geladeira, a carne era conservada em banha de porco. Nada de aditivos, conservantes ou outras porcarias. Quem vai quela regio encontra muita gente passando dos 90 e ainda com muito boa sade, resultado, com certeza, da vida na roa.

    Moradores antigos contam que o posto de sade do Rio da Prata, assim como outros da regio, ofereciam populao uma sopa de entulho com todos os tipos de verduras e legumes produzidos l mesmo. Alguns quartis faziam o mesmo, numa atitude que hoje recebeu o nome de medicina preventiva, pois a boa alimentao elimina as probabilidades de contrair certas doenas.

    Uma das principais festas de Campo Grande era justamente a festa da lavoura, quando era eleita a Rainha da Lavoura. A ltima rainha, Maria das Dores Santos Pinto, foi

  • | 22 | Andr Luis Mansur

    escolhida em 1957, na inaugurao do Viaduto Alim Pedro, no centro do bairro. Uma fotogra a mostra-a no alto de um carro puxado por um par de bois, com as damas de honra na frente e, em volta, o povo amontoado. claro que o pai da rainha, seu Jos dos Santos, mais conhecido como Z dos Santos, estava ao lado dela, atento a qualquer galanteador mais ousado.

    Maria das Dores mora at hoje no Rio da Prata, e mantm a tradio de reunir a famlia (bem grande, por sinal) em caprichados almoos de domingo, com receitas aprendidas no saudvel perodo em que vivia na zona rural.

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 23 |

    O NASCIMENTO DA ZONA OESTE

    Trs anos depois da eleio da Rainha da Lavoura, a capital federal foi transferida para Braslia, quando a poca urea dos laranjais de Campo Grande tambm chegava ao m e surgiam, nos imensos prados vazios, os loteamentos que atrairiam milhares de novos moradores. Por estar deixando de ser essencialmente rural, cou em aberto como nomear a regio que integraria o recm-criado Estado da Guanabara. Quem pensa que o nome de Zona Oeste surgiu naturalmente est bem enganado.

    A ideia de usar esse nome, por estarem localizados na regio oeste da cidade, surgiu, por iniciativa do professor Moacyr Barros Bastos e de Miguel Borges, um dos nomes mais importantes do Cinema Novo. Como os cinemas que ainda existiam em profuso exibiam curtas-metragens antes das pelculas, Moacyr e Miguel angariaram recursos e lmaram o curta Zona Oeste, de apenas oito minutos, com depoimentos de moradores e um resumo da histria local.

    O lme foi distribudo de graa pelos cinemas da regio e cou em cartaz por trs meses, o que serviu para consolidar a denominao de Zona Oeste, que permanece at hoje, porm no mais a Zona Oeste do Estado da Guanabara, mas, sim, da cidade do Rio de Janeiro.

    Infelizmente, segundo o professor Moacyr Bastos, perderam-se todas as cpias do curta-metragem, que s cou mesmo na memria de quem assistiu.

  • | 24 | Andr Luis Mansur

    O CINE PROGRESSO

    Uma das salas de cinema que exibiu o curta Zona Oeste foi o Cine Progresso, a mais antiga na poca, fundada em 30 de julho de 1928, com 320 lugares, na Rua Campo Grande. A televiso s chegou na dcada de 1940 e, mesmo assim, de forma muito precria, por isso, pode-se dizer que o cinema era realmente a principal diverso local, bem como em toda a cidade, principalmente na Cinelndia, que tinha esse nome por abrigar o maior nmero de salas de projeo do Rio de Janeiro algumas bem luxuosas. Hoje a nica delas que sobrevive o Cine Odeon, e a denominao Cinelndia perdeu o sentido. Mas, diferente dos cinemas do centro, o luxo no era exatamente a caracterstica do Cine Progresso, mais conhecido como o cinema do Seu Vertulli, por causa do nome do seu dono, Emlio Vertulli. Segundo Cndido Dias Gonalves, o Candinho, que frequentou muito o Cine Progresso, quando chovia, era preciso levar um guarda-chuva ao cinema e algumas vezes, durante um faroeste, era comum ver o cavalo do mocinho cavalgando pela parede. Mas tudo isso era relevado. O jornalista Slvio Alves lembra a estreia, em 1964, do lme Help, dos Beatles, quando a rua em torno do cinema cou tomada por estudantes. O Cine Progresso exibia tambm seriados como Flash Gordon, Zorro e Tarzan, alm de cinejornais. Cerrou as portas em 17 de julho de 1966.

    Depois do Cine Progresso, surgiu o Cine Th eatro Campo Grande, na Rua Campo Grande. Inaugurado em 1938, tinha 1.463 lugares e funcionou at 23 de outubro de 1994, passando a ser denominado, a partir do ano seguinte, Cine Star Campo Grande. Fechou em 2001, e hoje um restaurante popular.

    Outro cinema importante do bairro foi o Palcio

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 25 |

    Campo Grande, o maior do Rio de Janeiro, com 1.749 lugares, e que funcionou de 1962 a 1990. Esses dois, como se v, j eram cinemas de grande porte, mas no eram aconchegantes como o cinema do Seu Vertulli.

    O destino dessas salas de cinema foi o mesmo de todos os demais da Zona Oeste e subrbios que, com o tempo, receberiam o apelido pejorativo de poeirinhas, exibindo, nos derradeiros momentos, a dupla sexo e carat, ou alguns nem isso.

    Bangu, que hoje ostenta modernas salas de cinema no Bangu Shopping e teve, h alguns anos, a experincia do Cine Art Bangu, j tem uma vivncia com a tela grande h bastante tempo, desde a criao do Teatro Cassino-Clube Bangu, em 1908, na poca em que a Fbrica Bangu promovia a vida cultural do bairro (curiosamente os nicos cinemas do bairro cam na sede da fbrica, onde est o shopping).

    O Teatro Cassino-Clube Bangu cava na antiga Rua Ferrer, hoje Avenida Cnego de Vasconcelos, e funcionou at 1909, quando mudou de nome para Cinema Flores, mas que tambm teve vida curta, resistindo apenas at o ano seguinte.

    Outra sala que surgiu, em 1911, foi o Cinema Bangu, tambm localizado na Rua Ferrer, e que teria vida mais longa, at 1960, ano em que foi aberto o Cinema Hermida, na Rua da Feira, com 1.200 lugares, que durou at 1972, quando mudou de nome para Cinema Bangu, fechando em 1977. Mas talvez o cinema mais lembrado pelos moradores de Bangu seja o Cine Matilde, inaugurado em 1963, na Avenida Ministro Ari Franco, bastante confortvel, que durou at 1990, o mesmo ano do encerramento do Palcio Campo Grande, prenunciando uma dcada difcil para os donos de salas de exibio.

    Outros cinemas menores na regio em torno de Bangu que merecem registro so o Senador Camar (1959 a 1969), no bairro de mesmo nome, que tambm abrigou o Cinema

  • | 26 | Andr Luis Mansur

    So Jorge (1964 a 1969), e o Cinema Presidente Kennedy, na Vila Kennedy (1969 a 1970).

    A Vila Militar tambm teve um cinema na Avenida Duque de Caxias, onde cam os principais quartis, de 1921 a 1937. E, em Realengo, existiu o Cine-Teatro Realengo, com 1.053 lugares (1938 a 1989), na Rua General Sezefredo, antiga Rua Conselheiro Junqueira. O prdio, que ainda est l, foi tombado.

    Bangu tambm teve seu drive-in, aonde muita gente ia mais para namorar no carro do que assistir ao lme: o Bangu Auto-Cine, na Rua Francisco Real, e que funcionou apenas durante 1983. Outro drive-in da regio foi o de Campo Grande, na esquina das ruas Campo Grande e Luclia.

    Santa Cruz, que hoje no possui cinemas, nem no shopping, teve o Cine Palcio Santa Cruz, com 1.040 lugares, que funcionou por 20 anos (1951 a 1971). Mais perto do litoral, outros cinemas marcaram presena, como o Cine Iara, na Praia de Sepetiba (1949 a 1959), o Cine Sepetiba, na Rua Pedro Leito (1949 a 1959), o Cine Vila Mar de Guaratiba, na Rua Barros de Alarco (1951 a 1959) e o Cinema Guaratiba, na Travessa Guaratiba (1951 a 1959), os dois ltimos na Pedra de Guaratiba.

    D para se ter uma ideia de quo prazeroso era sair de uma sala de cinema nesses lugares e terminar o passeio beira-mar, num perodo mais tranquilo, com poucos carros passando, muitos pescadores e a gua ainda cristalina na Baa de Sepetiba.

    No esto enumerados todas as salas que houve na regio, algumas nem tm registros completos, mas uma parte signi cativa foi aqui mencionada para mostrar como um dos mais importantes smbolos de comunicao e entretenimento do sculo XX se fez presente na zona rural carioca numa poca em que no havia vdeo, DVD, telefone celular, internet e a televiso, propriamente dita, apenas engatinhava. O nico

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 27 |

    modo de saber as notcias era atravs do rdio, dos jornais, do cinema e do boca a boca. Mas no podemos esquecer o Padre Miguel de Maria Mochon, o famoso Padre Miguel, que, de forma pioneira, percebeu o imenso alcance do cinema e exibiu lmes para milhares de estudantes, conforme explanado no primeiro volume de O Velho Oeste Carioca.

  • | 28 | Andr Luis Mansur

    O TEATRO RURAL DO ESTUDANTE

    Embora a principal atividade dos habitantes de Campo Grande fosse a agricultura, tambm pensava-se em outros tipos de cultura. Durante o sculo XX, o bairro atraiu vrios grupos artsticos, como o Grmio Literrio Joaquim Nabuco, o Cenculo de Letras, o Centro Freire Alemo, a Associao de Cultura Popular, a Unio Rural de Belas Artes, o Grupo dos Aedos, fundado e dirigido pelo Maestro Rubens de Farias Neves, e o Instituto Campo-Grandense de Cultura (ICC), que existe at hoje. Mas uma das iniciativas mais interessantes do meio artstico foi, sem dvida, o Teatro Rural do Estudante.

    Em plena zona rural do Rio de Janeiro, vrios jovens idealistas resolveram montar um grupo de teatro. Ora, quem j morou em cidade do interior sabe que os artistas so normalmente vtimas de preconceitos. Sempre rola aquele papo: Tem que pegar na enxada, Arte no enche barriga de ningum, etc. Na dcada de 1950 no era diferente, mas, mesmo assim, o Teatro Rural do Estudante seguiu em frente.

    Liderado pelo ento estudante de Direito, Herculano Leal Carneiro, o grupo era composto por nomes como Rogrio Fres e Francisco Nagem, que fariam sucesso na TV Globo (quem no se lembra de Elias Turco, interpretado por Nagem na primeira verso do Stio do Pica-Pau Amarelo dando bronca na boneca Emlia? Elias no turco, libans! Libans!). O stio, alis, era lmado tambm na Zona Oeste, em Barra de Guaratiba, muito antes de a TV Globo construir o Projac.

    Outros nomes importantes que zeram parte do teatro foram Regina Pierini, Dineyar Valente Plaza, Srgio Leal Carneiro, Carlos Branco, entre outros.

    Herculano seguiu os passos do diplomata Paschoal

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 29 |

    Carlos Magno, criador do Teatro do Estudante do Brasil, que fazia apresentaes por todo canto e se apresentou em praas pblicas de Campo Grande no incio da dcada de 1950, estimulando Herculano a criar seu prprio ncleo do Teatro do Estudante, com apoio do diretor do tradicional Colgio Belizrio dos Santos, Hlton Veloso, cujos alunos encamparam a ideia.

    O Teatro Rural do Estudante foi o cialmente fundado em 14 de julho de 1952, com a principal misso de formar uma plateia essencialmente rural, alm de oferecer espao aos artistas da regio. Sua primeira sede, se pudermos chamar assim, foi o poro de uma casa na Rua Tatuoca, no centro de Campo Grande, mas logo o grupo evoluiu para a carroceria de um caminho Ford verde. Mesmo com di culdades, os intrpidos artistas foram em frente, apresentando-se em vrios lugares com muitos esquetes, sempre musicados. Dineyar, por exemplo, formou vrias geraes de pianistas no bairro.

    O grupo ganhou o apoio fundamental de Elza Pinho Osborne, engenheira e chefe do Distrito de Obras na regio, que obteve a doao de lotes de um terreno prximo linha de trem de Campo Grande. Ali o grupo montou um teatro de arena ao ar livre, e passou a se apresentar em local xo. A pedra fundamental foi lanada pelo prprio presidente da Repblica, Juscelino Kubistchek, em 1 de setembro de 1956, na presena do governador do Rio de Janeiro, Negro de Lima.

    O sonho, no entanto, era mais ousado. Elza Osborne conseguiu atrair a ateno do arquiteto A onso Eduardo Reidy, autor do projeto do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o MAM, que fez, sem cobrar, o projeto arquitetnico do Teatro Rural do Estudante, com espao para escola de teatro, teatro laboratrio, alojamento, sala de leitura, cinemateca e uma sala com capacidade para 200 pessoas.

    O projeto, infelizmente, at hoje no saiu do papel, mas o grupo continuou rme e forte, agregando valores (o

  • | 30 | Andr Luis Mansur

    ator Joel Barcelos e o cengrafo Miguel Pastor, entre outros) e se apresentando, no apenas em Campo Grande, mas tambm em outros Estados.

    Os prmios comearam a surgir, como o terceiro lugar no Festival Brasileiro de Teatro Amador e o 1 lugar no Festival Nacional do Teatro do Estudante, em Recife. O grupo chegou a se apresentar no prestigiado Th eatro Municipal do Rio de Janeiro, com a pea Z do Pato, de Elza Osborne, a mesma que fora exibida no Festival de Recife, que deu outros prmios ao grupo, alm do primeiro lugar. Mas veio a ditadura de 1964, que representou para o grupo um perodo de vacas magras, embora seus integrantes continuassem trabalhando e prosperando.

    O local do teatro, no entanto, acabou, de certa forma, abandonado, e s a partir da dcada de 1980 algumas boas iniciativas foram adotadas, como o Cineclube e o projeto Se no Chover, organizados pela lha de Herculano, Lina Paula. Em 1986, quando o teatro era dirigido por Regina Pierini e o marido, Ives Macena, surgiu outro projeto interessante, o Cubra a Arena e Descubra nossa Arte.

    A situao s mudou mesmo a partir de 18 de maio de 1993, com a inaugurao da Lona Cultural de Campo Grande, uma luta de Ives e Regina, e que logo se tornou um dos principais projetos culturais da Prefeitura do Rio, levando shows e outros eventos a bairros da Zona Oeste e do subrbio.

    Ives teve a ideia de cobrir a arena do teatro aps a Eco-92, o evento internacional voltado para o meio-ambiente que se realizou no Rio de Janeiro em 1992, e que utilizou lonas durante palestras e shows no Parque do Flamengo.

    Apesar do sucesso at hoje, a verdade que o projeto de A onso Reidy para a sede do Teatro Rural do Estudante, cujas fundaes chegaram a ser lanadas, continua rme a nal, aquele grupo de artistas talentoso e idealista da antiga

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 31 |

    zona rural do Rio de Janeiro (muitos continuam a morar no bairro, atentos s movimentaes culturais) no deixa de lutar at hoje por um teatro de qualidade, voltado, principalmente, para a formao de pblico num lugar to distante dos centros culturais da cidade.

  • | 32 | Andr Luis Mansur

    TOMBAMENTOS

    Nas grandes cidades dos pases ditos civilizados, os monumentos histricos mais importantes, ou esto inteiros, ou devidamente reformados, mesmo que muitos tenham sido atingidos por bombas durante as muitas guerras ocorridas no Velho Mundo. No apenas uma questo de se preservar a identidade cultural desses povos: acabou se tornando tambm uma atividade que envolve muito lucro com o turismo. A casa de William Shakespeare, por exemplo, na cidade inglesa de Stratford-upon-Avon, est inteira, recebendo visitantes do mundo inteiro, enquanto, no Rio de Janeiro, a bela residncia onde Machado de Assis, nosso maior escritor, viveu grande parte de seu casamento com Carolina, foi impiedosamente demolida.

    verdade que, nos ltimos tempos, houve uma preocupao maior com o patrimnio histrico da cidade, por meio de tombamentos e restauraes, mas ainda h muito a fazer.

    Na Zona Oeste, ento, nem se fala, pois muitos prdios relevantes para se compreender a histria da sua ocupao j tiveram seu momento de bota-abaixo. No sobrou, por exemplo, nenhum barraco de laranja de p para contar a histria, que pudesse abrigar um museu que preservasse a trajetria das laranjas, responsveis pelo maior desenvolvimento agrcola da regio.

    Iniciativas como a do Ncleo de Orientao e Pesquisa Histrica, o Noph, de Santa Cruz, e o Grmio Literrio Jos Mauro de Vasconcelos, em Bangu, com seu grande acervo de fotos, textos, livros e diversos objetos que contam o passado do bairro e da regio, formam uma trincheira de resistncia contra o apetite cada vez mais voraz daqueles que no titubeiam em

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 33 |

    destruir casas, edifcios e monumentos importantes, em prol de mais um condomnio, shopping center ou estacionamento.

    Se isso inevitvel, que faam pelo menos como no caso do Shopping Bangu, que funciona em total harmonia com o prdio tombado da histrica fbrica que iniciou o desenvolvimento do bairro, com direito a diversos painis do acervo do Grmio Literrio.

    J um triste exemplo de descaso a condio de alguns dos marcos de pedra que demarcavam as distncias da antiga Estrada Real de Santa Cruz, pichados, derrubados e sem qualquer placa indicativa. Assim, muita gente que passa por eles jamais vai saber a importncia dessa estrada, fundamental para o desenvolvimento do interior do Rio de Janeiro, e por onde passaram prncipes, grandes artistas europeus e diversas autoridades.

    Eis alguns dos monumentos da Zona Oeste que sobreviveram e que foram tombados:

    GUIA DO PATRIMNIO CULTURAL CARIOCABENS TOMBADOS 2008 Prefeitura da Cidade do Rio de

    Janeiro

    CAMPO GRANDE

    * Antiga usina de bondes Largo do Monteiro. Decreto de 1996.* Bica dgua Praa Elza Pinho Osborne, Rio da Prata. Decreto de 1990. * Coreto Praa Elza Pinho Osborne, Rio da Prata. Decreto de 1996. * Cine-Palcio Campo Grande Rua Augusto Vasconcelos, 139. Decreto de 1990.* Fonte Wallace (Modelo Mural), de Charles Auguste Lebourg Praa Dom Joo Esberad. Decreto de 2000.

  • | 34 | Andr Luis Mansur

    * Igreja de So Pedro Avenida Santa Cruz, 1664 (entre os bairros de Santssimo e Augusto Vasconcelos). Decreto de 1996. * Igreja Nossa Senhora do Desterro (Campo Grande) Praa Dom Joo Esberard, 141. Decreto de 1996. SANTA CRUZ

    * Antiga estao ferroviria do Matadouro de Santa Cruz Situada no km 56.426 do ramal ferrovirio da Central do Brasil. Decreto de 1993. * Fonte - Praa Dom Romualdo. Decreto de 2000. * Hangar do Zeppelin Avenida do Imprio, s/n, Base Area de Santa Cruz. Decreto de 1992.* Matadouro Industrial de Santa Cruz Largo do

    Bodego, s/n. Lei de 1987. * Palacete Princesa Isabel Rua das Palmeiras (?).

    Decreto de 1984. * Ponte dos Jesutas Estrada do Curtume, s/n.

    Tombamento de 1938. SEPETIBA * Coreto Praa Washington Lus. Tombamento de 1985. * Ponta do Ipiranga Decreto de 2000 (o tombamento compreende ainda o morro do Ipiranga, a praia do Recncavo e a praia do Cardo). BANGU * Fbrica Bangu (Conjunto de prdios e construes da Companhia Progresso Industrial do Brasil, onde hoje funciona o Bangu Shopping) Rua Fonseca,

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 35 |

    240. Lei de 2000. * Igreja de So Sebastio e Santa Ceclia Praa da F, s/n. Resoluo de 1990. * Palmeira tipo babau Rua Silva Cardoso, em frente ao n 120. Lei de 1994. * Palmeiras imperiais Avenida Santa Cruz, em frente ao n 120. Lei de 1999. * Tamarineiras Centenrias Rua da Chita. Lei de 1999. SENADOR CAMAR * Casa da Fazenda do Viegas. Tombamento de 1938.

    REALENGO * Antiga Escola de Equitao do Exrcito Campo de Marte. Lei de 2003. * Casa-sede da Fazenda dos Barata Rua do Governo, s/n M. Decreto de 1997 * Cine-Teatro Realengo. Rua Coronel Sezefredo, 152. Decreto de 2002 * Coreto-Campo de Marte Tombamento de 1985. * Fbrica de Cartuchos do Exrcito e os bens de seu entorno que integram o mesmo conjunto arquitetnico e paisagstico. Rua Bernardo de Vasconcelos, 941/ Rua Oliveira Braga / Avenida Santa Cruz. Decreto de 1995.

  • | 36 | Andr Luis Mansur

    CORAGEM NOS CUS DA ZONA OESTE

    A histria da aviao brasileira, em seus primrdios, passa por dois lugares bem tradicionais da Zona Oeste: Realengo e Campo dos Afonsos, este escolhido para a instalao do Aero Clube Brasileiro em 1912, apesar dos protestos de Santos-Dumont, que achava o local inadequado: Convidado pela diretoria deste clube, h anos, para visitar e dar a minha opinio sobre o dito Campo, disse que o achava mais do que ruim: achava-o pssimo. Aconselhei que procurassem uma grande plancie (...) (O que eu Vi, o que ns Veremos, Alberto Santos-Dumont).

    Para o Pai da Aviao, que acompanhou de perto a formao dos primeiros pilotos brasileiros naqueles tempos pioneiros da aviao mundial, o lugar mais apropriado para a instalao do Aero Clube seria o bairro de Santa Cruz, onde havia uma vasta plancie. Mas Santos-Dumont no foi ouvido.

    O veredito foi dado pelo comandante da Misso Militar Francesa no Brasil, Coronel Etinne Magnin, que durante muitos anos auxiliaria o governo brasileiro no desenvolvimento da aviao.

    Entre outros argumentos, Magnin disse que a vegetao espessa da regio de Santa Cruz tornaria invivel a criao da escola, pois seria preciso um oramento muito elevado para preparar o terreno.Assim, o Campo dos Afonsos foi o lugar escolhido, onde a aviao brasileira se desenvolveu mais rapidamente.

    Antes disso, no entanto, a regio foi palco de algumas arriscadas aventuras areas, demonstrando sua inevitvel vocao.

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 37 |

    FRUSTRAO NO CAMPO DE MARTE

    A primeira experincia militar brasileira com bales cativos ocorreu durante a Guerra do Paraguai (1864-1870), quando um artefato trazido dos Estados Unidos, e conduzido pelos irmos americanos James e Ezra Allen, subiu aos cus em 24 de julho de 1867, na regio do Lago Tuiuti, no Paraguai, antes de uma batalha, e que possibilitou o acesso, nesta e em dezenove outras operaes, a importantes informaes sobre o desenvolvimento e a situao das tropas paraguaias. A utilizao do balo, ideia do Lus Alves de Lima e Silva, ento marqus e futuro Duque de Caxias, foi o primeiro emprego militar da Aeronutica na Amrica do Sul e a semente daquilo que, muito mais tarde, veio a se transformar na Fora Area Brasileira (Histria da Fora Area Brasileira, Nelson Freire Lavanre-Wanderley). Os irmos Allen tiveram experincia com esse tipo de procedimento, poucos anos antes, durante a Guerra de Secesso americana, provando que a conquista do ar, fosse por balo, dirigvel ou avio, fazia parte da mesa de trabalho de qualquer estrategista militar.

    Quase trinta anos depois da introduo do balo na Guerra do Paraguai, esse artefato j estava bem desenvolvido, por meio da construo de dirigveis aperfeioados por Santos-Dumont em Paris, no incio do sculo XX.

    Entre os pioneiros que queriam um lugar ao sol nesses tempos de conquista do ar, estava o deputado potiguar Augusto Severo, que conseguiu aprovar um projeto em 1893 na Cmara Federal, obtendo 100 contos de ris para desenvolver um dirigvel. A proposta foi acolhida com interesse pelo presidente Floriano Peixoto, que enfrentava naquele momento a Revolta da Armada, e tambm via com bons olhos o emprego militar do artefato.

  • | 38 | Andr Luis Mansur

    Severo conseguiu do presidente uma viagem Frana, onde desenvolveu o dirigvel, batizado de Bartolomeu de Gusmo (homenagem a outro pioneiro, e nome do aerdromo de Santa Cruz). O balo tinha 60 metros de comprimento, uma forma esfrica e uma espcie de barquinha de madeira suspensa a 57 metros do solo, ligada por uma suspenso exvel. Severo montou o balo e trouxe-o para o Brasil, guardando-o num hangar construdo pelo Ministrio da Guerra, no Campo de Marte, em Realengo.

    Em 14 de fevereiro de 1894, realizou o primeiro voo com o dirigvel no bairro, mas no conseguiu desenvolver uma ascenso livre, pois a barquinha se dani cou. O balo desceu torto, para a frustrao de Augusto Severo. O inventor abandonou o artefato e construiu outro, o Pax que, oito anos depois, em 12 de maio de 1902, num dia chuvoso, em Paris, explodiria a 400 metros de altura, matando o inventor e seu mecnico. O poeta Olavo Bilac escreveu na imprensa, em 31 de maio de 1902: Para Augusto Severo, o desastre foi uma glori cao.

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 39 |

    MORTE NA SERRA DO BARATA

    Quando inventores como Augusto Severo comearam a aperfeioar o uso dos bales na virada do sculo XIX para o XX, principalmente graas a Santos-Dumont, os militares resolveram retomar o desenvolvimento militar principiado na Guerra do Paraguai. O governo brasileiro comprou, em 1908, quatro bales do Exrcito francs, que foram armazenados num hangar em Realengo, ao lado da Escola de Artilharia e Engenharia, a futura Escola Militar. frente do empreendimento, estava o tenente de cavalaria Juventino Fernando da Fonseca, que se especializou em navegao area na Blgica.

    Em 20 de maio daquele ano, na primeira demonstrao do balo no Campo de Marte, estava tudo programado para uma grande festa, incluindo a presena do Ministro da Guerra, Marechal Hermes da Fonseca. A previso era o balo amarelo-palha, de 250 metros cbicos, confeccionado com seda francesa da cidade de Lyon, subir a 200 metros e, depois de algumas manobras, descer trazendo o piloto so e salvo ao solo. Mas no foi o que aconteceu.

    s 11 horas da manh, diante de uma entusiasmada multido, o balo subiu, porm muito mais do que deveria. O cabo que o prendia se rompeu e o artefato elevou-se rapidamente a mais de 1.000 metros de altura. Arrastado pelo vento, atingiu a Serra do Barata. Quando Juventino tentou reduzir a presso e forar a descida, num drama presenciado por sua esposa e lha na assistncia, a vlvula apresentou um defeito, o balo murchou e caiu em queda-livre, espatifando-se na serra.

    Juventino teve morte instantnea e seu corpo foi velado na Escola de Artilharia e Engenharia antes de ser levado para o Cemitrio do Caju. O Ministro da Guerra determinou luto

  • | 40 | Andr Luis Mansur

    por trs dias, mas a con ana da populao na navegao area levou muito mais tempo para se refazer.

    Outro nome importante desse perodo foi o do tenente de infantaria Ricardo Joo Kirk, considerado o primeiro aviador do Exrcito e defensor ferrenho do avio como arma de guerra. Nomeado primeiro secretrio do Aero Clube brasileiro, Kirk integrou a comisso que escolheu o Campo dos Afonsos para a instalao do campo de pouso e da escola de aviao. Tendo tirado seu brev de piloto na Escola de Aviao de tamps, na Frana, a mando do Ministrio da Guerra, Kirk era constantemente entrevistado pelos jornais sobre o desenvolvimento da aviao no Brasil. Infelizmente, ele mesmo no pde acompanhar esse desenvolvimento, pois, assim como Juventino, morreu num acidente areo em 1915, durante a Guerra do Contestado, regio ento disputada entre o Paran e Santa Catarina.

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 41 |

    O AERO CLUBE BRASILEIROE A ESCOLA DE AVIAO

    Aps ser fundado o Aero Clube Brasileiro no Campo dos Afonsos, em 14 de outubro de 1911, em janeiro do ano seguinte, o jornal A Noite, um dos mais populares da poca, cujos diretores perceberam na aviao uma fonte inesgotvel de pautas, promoveu a Semana da Aviao, para popularizar o novo (a ainda bastante inseguro) meio de transporte. Deem asas ao Brasil era o lema da fundao do Aero Clube. O primeiro hangar para montagem e manuteno de aparelhos Bleriot, importados da Frana e usados no Aero Clube, foi obra do engenheiro italiano Niccla Santo, que, no incio da dcada de 1920, iria orientar, com outros instrutores, o serralheiro Oscar de Vasconcelos, para construir, em sua o cina de Realengo, a primeira aeronave de instruo brasileira, na esquina da Avenida Santa Cruz com a Rua do Imperador.

    O Aero Clube foi o precursor da campanha para dotar o Brasil de uma fora area militar, tambm com o apoio de Santos-Dumont, embora muitos ainda acreditem que o inventor fosse contrrio sua utilizao para ns blicos.

    Em 1903, durante uma revista militar na Frana, o Pai da Aviao a rmou, com toda a convico: Foi a primeira vez que a navegao area gurou em uma demonstrao militar. Naquela poca, predisse que a guerra area seria um dos aspectos mais interessantes das futuras campanhas militares. Minha predio foi ridicularizada por alguns militares; outros, entretanto, houve que, desde logo, alcanaram as futuras e imensas utilidades da navegao area (O que eu Vi, o que ns Veremos, Alberto Santos-Dumont).

    A histria da Escola de Aviao comea com a chegada ao Brasil do aviador italiano Gian Felice Gino, trazendo um

  • | 42 | Andr Luis Mansur

    monoplano Bleriot e fundando, com outros scios, a empresa Gino, Bucelli e Cia., que rmaria uma parceria com o Ministrio da Guerra, em janeiro de 1913, para a construo da escola, no Campo dos Afonsos.

    O principal objetivo seria a formao de pilotos. Segundo o acordo, Gino e seus scios poderiam explorar a escola durante cinco anos e, depois desse perodo, o governo assumiria o comando.

    Para a inaugurao da escola, em 2 de fevereiro de 1914, com nove avies Bleriot e Farman e 35 corajosos militares inscritos, foram construdos oito hangares no Campo. Infelizmente, a experincia no durou sequer cinco meses. A Escola fechou em 18 de junho de 1914, quando a Gino, Bucelli e Cia. rescindiu o contrato com o governo, alegando, entre os motivos principais, atraso no pagamento do governo, o que inviabilizava os custos de manuteno, e o incio da Primeira Guerra Mundial, que aumentou a di culdade de importao de peas.

    O con ito, alis, seria o batismo de fogo da aviao com ns militares, dando fama a nomes como o alemo Manfred Von Richto en, o Baro Vermelho, um dos maiores pilotos de guerra, respeitado por seus adversrios, e vitorioso com sua esquadrilha em mais de oitenta combates areos.

    Muitos anos mais tarde, o Baro Vermelho seria absorvido pela cultura pop, dando nome a um personagem do desenho animado A Corrida Maluca, que pilotava um avio de rodinhas, e ao grupo de rock brasileiro liderado por Cazuza.

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 43 |

    O ARIBU DO CAPITO VILELA

    Em 1917, o capito do Exrcito Marcos Evangelista da Costa Vilela Jnior construiu um avio exclusivamente com material nacional, o Aribu, nome de uma ave tpica brasileira. O projeto era antigo. Vilela comeou a construo em 1911, na Fbrica de Cartuchos e Artefatos de Guerra do Exrcito, em Realengo, mas, na poca, no recebeu o apoio do Ministrio da Guerra. Sem recursos prprios, o persistente inventor conseguiu, mesmo assim, construir o monoplano. Era todo feito de madeira, incluindo a hlice, feita no galpo de sua casa, em Realengo, com apenas um motor de 50 HP importado da Frana.

    Vilela e seu piloto de provas, o tenente Raul Vieira de Mello, zeram vrios voos pelos cus da Zona Oeste e o curioso que, enquanto o linho e a seda eram os materiais mais indicados para a tela do avio, Vilela insistiu em usar algodo, que obteve da Fbrica de Tecidos de Sapopemba, onde hoje ca o bairro de Deodoro. Fez tanto sucesso que a tela ganhou a Medalha de Ouro na Exposio de Buenos Aires, em 1918. Nesse mesmo ano construiu o segundo avio, o Alagoas, bem mais desenvolvido que o Aribu e que, desta vez, contou com o apoio to ansiado do Ministrio da Guerra.

    Vilela sofreu um grave acidente em 1924 ao regressar de So Paulo, durante a segunda revolta tenentista, mas ainda continuaria voando alguns anos depois, at entrar na reserva, em 1933, como general de brigada.

  • | 44 | Andr Luis Mansur

    MAIS PROTEO AOS AVIADORES

    Com o m da Escola de Aviao, os equipamentos e instalaes foram transferidos para o Exrcito, que os cedeu ao Aero Clube Brasileiro at 1918. A guerra j havia acabado e o Exrcito retomou as instalaes para realizar obras visando o desenvolvimento da Escola de Aviao Militar, que viria a ser inaugurada em 10 de junho de 1919, com apoio da Frana tanto que os primeiros avies da escola foram usados pelos franceses durante a guerra, como o Bregut 14-A2, de observao e bombardeio, e o Spad 7, de caa. Um pouco antes da criao da escola, um de seus maiores incentivadores, o tenente Mrio Barbosa, sofreu um acidente areo em 12 de maio daquele ano, que o deixou paraltico. Barbosa, que morreu em 1928, fez o primeiro apelo para que fosse providenciada uma lei que amparasse as famlias dos militares acidentados ou mortos em acidentes de aviao (Histria da Fora Area Brasileira, Nelson Freire Lavanre-Wanderley). Seu esforo deu certo, j que a primeira legislao nesse sentido foi aprovada e entrou em vigor em 1920, no mesmo ano da primeira turma de pilotos formados na escola.

    A Escola de Aviao Militar possua hangares, pista de pouso, aeronaves de instruo, salas de aula, alojamento e rancho. Apesar disso, a escola ainda tinha muitos problemas de infra-estrutura, tanto que a maioria dos alunos cava alojada em casas de Marechal Hermes, o bairro adjacente, que havia sido criado poucos anos antes da escola. O Campo s foi ampliado em 1921, quando a Polcia Militar cedeu um milho de metros quadrados do terreno circundante.

    O quartel cou pronto em 1922, no mesmo ano em que os portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral realizaram a primeira travessia area do Atlntico Sul, entre

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 45 |

    Portugal e Brasil, descendo sos e salvos no Rio de Janeiro. Quatro anos depois, foram inaugurados um amplo

    aerdromo, hangares, o cinas e diversos quartis. Nessa dcada, o avio assumiu o destino traado pelos estrategistas militares, tornando-se, de fato, mais uma arma de guerra, tanto que o governo criou a Arma de Aviao do Exrcito, em 1927, o mesmo ano em que o aviador americano Charles Lindbergh se tornou mundialmente famoso ao realizar o primeiro voo solo sem escala, num monomotor, entre Nova York e Paris, em 33 horas e meia.

    O Campo dos Afonsos continuou a se desenvolver com a presena da Misso Militar Francesa, frente da direo tcnica da Escola entre 1919 e 1931. Aos poucos, os voos de treinamento passaram a atingir maiores distncias, mas, ainda assim, com grande nmero de acidentes.

    Aps o incio da Segunda Guerra Mundial, em 1939, o avio assumiu um papel preponderante na estratgia militar, tendo como maior exemplo as batalhas areas entre ingleses e alemes em 1940, e o lanamento das bombas atmicas sobre Hiroshima e Nagasaki, no Japo, em agosto de 1945, do bombardeiro americano Enola Gay, que selou o m do con ito.

  • | 46 | Andr Luis Mansur

    A AERONUTICA E A TRANSFERNCIADO CAMPO

    No Brasil, o governo criou o Ministrio da Aeronutica em 1941, unindo a aviao naval e a do Exrcito, e ainda usando o Campo dos Afonsos como base principal. A importncia desse perodo pode ser medida pelo desenvolvimento da Aeronutica nas dcadas seguintes, como a criao da famosa Esquadrilha da Fumaa, em 1952, pelos instrutores da Escola de Aeronutica, sediada no Campo dos Afonsos. Eles instalaram os geradores de fumaa que se tornaram a marca registrada da Esquadrilha, que riscaram os cus da Zona Oeste nessa primeira demonstrao. Mas a mudana j estava selada.

    Em 18 de novembro de 1942, o governo decidiu transferir a Escola de Aviao para a cidade paulista de Pirassununga, sob o pretexto de que o Campo dos Afonsos, fundamental para o desenvolvimento da aviao brasileira em seus primrdios, havia se tornado inadequado para o pesado trfego areo comercial e militar da poca, exigindo uma rea mais ampla, com campos auxiliares e melhores condies para a criao de uma Academia do Ar. Apesar disso, a mudana para Pirassununga s ocorreu em 1971.

    Hoje, o Campo dos Afonsos ainda rene diversas unidades da Aeronutica e mantm a funo original de treinamento e formao de aviadores, graas, principalmente, Universidade da Fora Area, criada em 1983, e a preservao e divulgao de sua rica histria com o Museu Aeroespacial, cujo projeto, bem antigo, de 1943, s comeou a se concretizar 30 anos depois, com a construo de edifcios e hangares em uma rea de 15 mil metros quadrados, e a coleta e restaurao de avies, motores, armas e vrias peas de valor histrico.

    Inaugurado em 18 de outubro de 1976, o museu rene, entre outras coisas, rplicas dos avies de Santos-Dumont,

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 47 |

    sendo bastante visitado, principalmente por estudantes da regio. Permanece como o smbolo daquele perodo em que a regio era uma das pioneiras do desenvolvimento da aviao no mundo.

  • | 48 | Andr Luis Mansur

    DAS PELADAS NA FBRICAAO ESTDIO PROLETRIO

    O jornalista Carlos Molinari nasceu em 1979, exatos 75 anos depois da fundao do Bangu Atlethic Clube, em 17 de abril de 1904. Sua paixo pelo clube de futebol do bairro, onde nasceu e morou at os 22 anos de idade, comeou aos quatro, em 1984, quando teve de fazer natao por recomendao mdica, nesse clube. Na poca, o Bangu possua uma equipe extremamente competitiva, que disputava o ttulo carioca de igual para igual com os chamados grandes times e, no ano seguinte, seria vice-campeo brasileiro ao perder por pnalti para o Coritiba num Maracan lotado e repleto de bandeirinhas do simptico clube da Zona Oeste. Este que vos escreve esteve l, devidamente instalado na velha geral do maior estdio do mundo, e viu o ponta-esquerda Ado perder o pnalti decisivo de trs do gol. Aquele, de fato, foi meu maracanazo como os uruguaios chamam a vitria sobre o Brasil na nal da Copa de 50, no Maracan. Diante de um estdio lotado, lembrei at do hino do Bangu, que diz: A torcida reunida parece at a do Fla-Flu.

    Molinari escreveu um excelente livro sobre o Bangu A. C., Ns que somos Banguenses, no apenas pelas histrias curiosas que apresenta, como pela qualidade do texto, informativo, mas sem esquecer o lado folclrico, fundamental no futebol, como bem demonstraram tantos cronistas do esporte breto, entre eles, Nelson Rodrigues e sua ptria de chuteiras.

    Um bom exemplo a forma como comea o texto, sem mencionar craques ou grandes partidas do clube, mas, sim, sua av, D. Ophlia, nascida em 1903, um ano antes da fundao do Bangu, e torcedora fantica do alvirrubro da Zona

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 49 |

    Oeste. Com o radinho de pilha colado ao ouvido, como todo torcedor tradicional, D. Ophlia se isolava dos familiares e ia para a varanda ouvir as transmisses, deixando muitas vezes no ar uma frase que o autor gravou para sempre na memria e que reproduz no livro: Droga, perdeu de novo.

    At mesmo em 12 de maro de 1990, um dia antes de sua av passar a ouvir seus joguinhos ao lado de Deus, ela no deixou de assistir ao Bangu e Vasco, pela extinta e saudosa TV Manchete, jogo vlido pelo Campeonato Carioca. Ao nal da partida, soltou a frase resignada de sempre, pela ltima vez: Droga, perdeu de novo.

    A partir da, o autor comea a contar a histria do clube do qual foi diretor do Patrimnio Histrico. Logo de cara, enumera craques que passaram por l e vestiram a camisa da Seleo Brasileira, como Fausto, Domingos, Zizinho, Zzimo, Ademir da Guia, Paulo Borges, Aladim, Moiss, Arturzinho, Cludio Ado, Marinho, Mauro Galvo, e muitos outros, jogadores que ajudaram o Bangu a conquistar dois ttulos cariocas, em 1933 e 1966, este ltimo acompanhado de uma tremenda pancadaria aps a vitria sobre o Flamengo por 3 x 0, em jogo que no terminou, e com o Maracan registrando um pblico de 143.978 pagantes.

    Pancadaria que teve o primeiro ato, ou round, no round, no rounddistante ano de 1926, quando o Bangu perdeu por 4 x 3 para o Flamengo, no campo da Rua Ferrer, e o genioso Ladislau foi expulso aps agredir o goleiro Amado, do escrete rubro-negro, provocando um grande rebulio aps a partida. Na estao ferroviria, um grupo de torcedores apedrejou o trem especial que levava os atletas e os scios do Flamengo (Ns que somos Banguenses, Carlos Molinari).

    No primeiro volume de O Velho Oeste Carioca falo da suposio de que o futebol brasileiro teria nascido em Bangu, em 1893, ano da inaugurao da Fbrica Bangu. Consta que Th omas Donohoe, funcionrio da fbrica, chegou

  • | 50 | Andr Luis Mansur

    a ir at o centro do Rio de Janeiro procurando uma loja que vendesse uma bola de football. Mas no encontrou. Ou melhor, football. Mas no encontrou. Ou melhor, footballencontrou, sim, outro ingls, que o ensinou a fazer uma bola com barbante e meia, porm no era a mesma coisa.

    Molinari se aprofunda no per l de Donohue, Danau para os ntimos, que no era ingls e, sim, escocs. Com quase dois metros de altura, j havia jogado futebol pelo Southampton Football Club, da Inglaterra, e chegou a Bangu certo de que iria participar de umas peladinhas, seno com os brasileiros, pelo menos com os colegas britnicos, j envolvidos por aquele que seria o esporte mais apaixonante do planeta.

    Mas eis que ao sair da glida Inglaterra e chegar ao trrido Bangu, o choque maior de Donohue no foi o trmico e, sim, constatar que o futebol ainda era um ilustre desconhecido, no apenas para os banguenses, mas para todos os brasileiros. Para aplacar o tdio, o escocs participou de algumas sociedades musicais que comearam a se formar em torno da fbrica. O desejo de bater uma bolinha, no entanto, continuava mais forte do que nunca.

    Em 1893, pediu ao amigo Henry Bennet, que ia Inglaterra a trabalho pela fbrica para comprar equipamentos, que lhe trouxesse uma bola. Bennet cumpriu a promessa, comprou-a, mas, para tristeza de Donohue, esqueceu-a num hotel ingls. S no ano seguinte, quando o prprio Donohue foi Inglaterra, conseguiu trazer a bola de couro, com uma bomba e alguns pares de chuteiras. Tudo devidamente camu ado entre mquinas e equipamentos adquiridos para a fbrica e transportados de navio.

    Infelizmente, segundo Molinari, nenhuma das partidas disputadas por Donohue e seus companheiros no campinho ao lado da fbrica foi registrada. Bastava um pequeno relatrio de um jogo, uma smula, uma singela fotogra a, e bem possvel que Bangu, bairro em formao e distante do centro do Rio, tivesse tido a primazia de ser o bero do futebol brasileiro e

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 51 |

    no So Paulo, que recebeu as primeiras bolas, tambm em 1894, das mos de Charles Miller, com jogos devidamente registrados para a Histria. Th omas Donohue morou em Bangu at falecer em 2 de abril de 1925.

    As peladinhas em volta da fbrica geraram a necessidade de criao de um clube de futebol nos moldes dos que existiam no Reino Unido. Depois da primeira tentativa em 1897, negada pela direo da fbrica, o Bangu Athletic Club foi fundado na data mencionada. Donohue, claro, participou da fundao.

    H duas verses, apresentadas pelo autor, para as cores vermelho e branca do time. Uma delas uma homenagem a So Jorge, padroeiro da Inglaterra, e a outra tambm a homenagem, desta vez ao Southampton, clube no qual outros funcionrios da fbrica jogaram, alm de Donohue, cujo braso composto por trs rosas: duas vermelhas e uma branca.

    O belo desenho do escudo foi feito por Jos Villas Boas, chefe da o cina de gravura da fbrica. A primeira partida foi uma derrota de 5 x 0 para o Rio Cricket & Athletic Association, de Niteri, mas logo em seguida, no dia 31, o Bangu obteve a primeira vitria, no campo da fbrica, derrotando o Andara por 6 x 0. O primeiro gol foi marcado por Frederick Jacques, depois de Andrew Proctes empurrar o goleiro do Andara para dentro do gol, prova que o futebol j nascia polmico por natureza.

    A partir da, Molinari descreve a trajetria do Bangu A. C. no sculo XX, ano a ano, trazendo os resultados e muitas curiosidades, como convm queles que escrevem sobre futebol, mas sem deixar de ver o clube como parte fundamental do desenvolvimento do bairro que surgiu com a fbrica.

    O Bangu participou do primeiro campeonato carioca em 1906, e ganhou o primeiro ttulo pro ssional de futebol na cidade em 1933, quando havia duas ligas no Rio de Janeiro (a outra foi vencida pelo Botafogo, na campanha pelo tetra-campeonato).

  • | 52 | Andr Luis Mansur

    Molinari contesta a verso de que o Vasco da Gama foi o primeiro a incluir jogadores negros em seus excretes. Esta a rmao nada tem de verdadeira. O Bangu, praticamente desde a sua fundao, aceitava sem problemas jogadores negros e tambm a classe operria em seus quadros (Ns que somos Banguenses, Carlos Molinari). Ele cita como exemplos os atletas negros Francisco Carregal (1905), Manoel Maia (1906), Luiz Antnio da Guia (1912) e Claudionor Corra (1920), que depois iria para o Vasco.

    Seja de quem for a primazia, tanto o Vasco quanto o Bangu ajudaram a reduzir o preconceito dentro de um esporte dominado pela elite econmica, branca e metida a europeia, caboclo querendo ser ingls, como diria Cazuza muito tempo depois.

    O Bangu inaugurou o simptico Estdio Proletrio Guilherme da Silveira Filho em 15 de novembro de 1947 e, trs anos depois, foi o primeiro time a conquistar um ttulo no recm-inaugurado Maracan, o Torneio Incio.

    Dez anos depois, ganhou o Torneio Internacional de Nova York. A j mencionada vitria sobre o Flamengo por 3 x 0, na nal do carioca de 1966, que terminou em pancadaria, ganhou um canto da torcida banguense aps a partida: Um, dois, trs, se no foge cai de seis! No ano seguinte, o time foi vice-campeo, ao perder para o Botafogo na nal por 2 x 1.

    Na dcada de 1970, Molinari cita algumas excurses internacionais e torneios de pouca relevncia disputados pelo Bangu, para entrar, ento, na dcada em que o clube montou um grande time, graas, principalmente, ao grande benemrito Castor de Andrade, um homem ligado s coisas mais populares desse amado Brasil: futebol, samba e jogo do bicho (Ns que somos Banguenses, Carlos Molinari).

    O Bangu montaria um time com grandes jogadores, como Arturzinho, Cludio Ado e Marinho, mas, infelizmente, no conquistou nenhum ttulo de expresso, prejudicado,

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 53 |

    principalmente, por clamorosos erros de arbitragem, como o do j citado Campeonato Brasileiro de 1985, quando Marinho teve o gol de vitria anulado por um impedimento inexistente, a poucos minutos do nal da partida, e o Campeonato Carioca daquele mesmo ano, quando Cludio Ado cou cara a cara com o goleiro Paulo Vitor, no ltimo minuto do jogo, pronto para marcar o gol de empate em 2 x 2 e conferir o ttulo ao Bangu.

    O atacante, no entanto, sofreu pnalti por trs do zagueiro tricolor Vica e o juiz Jos Roberto Wright deixou o lance seguir. Participante da equipe de atletismo do tricolor na dcada de 1960 e futuro supervisor do clube, Wright no ousou marcar o pnalti que tiraria o tricampeonato do seu time de corao (Ns que somos Banguenses, Carlos Molinari).

    Restaria apenas um ttulo da Taa Rio, o segundo turno do Campeonato Carioca, em 1987, com uma vitria sobre o Botafogo por 3 x 1. De l para c, o Bangu no conquistou mais nenhum ttulo de expresso, nem montou um grande time, mas o clube, aps amargar um perodo na segunda diviso do futebol do Rio, vem se mantendo na diviso principal e at conseguindo algumas colocaes razoveis.

    Para Molinari e todos os outros que podem dizer ns que somos banguenses, ca a esperana de que o alvirrubro da Zona Oeste consiga resgatar algo de seu passado de glrias, sempre ligado rica histria do bairro, que surgiu com a Fbrica Bangu, presente nos tempos pioneiros do futebol no pas.

  • | 54 | Andr Luis Mansur

    O GALO DA ZONA OESTE

    Outro clube de futebol importante da regio o Campo Grande Atltico Clube. Fundado em 13 de junho de 1940, o Galo da Zona Oeste, como conhecido, obteve as primeiras conquistas na dcada de 1950, quando foi campeo carioca do j extinto Departamento Autnomo em 1953 e 1959, este com o ttulo de supercampeo. Trs anos depois, o clube, que ostenta o uniforme preto e branco com listras verticais, ingressou na elite do futebol estadual, quando era presidente Joo Ellis Filho, gura importante para o crescimento do clube.

    J na sua estreia entre os grandes, venceu o Botafogo de tantos craques, como Garrincha, Didi e Nilton Santos, por 1 x 0, no Maracan, em 1 de julho, com gol de Nelsinho. O goleiro do Campo Grande era o lendrio Barbosa, que encerrava uma carreira gloriosa, infelizmente marcada pela derrota por 2 x 1 para o Uruguai na nal da Copa de 50, disputada no Brasil. Foi a partir da dcada de 1960 que surgiu o clssico rural, como era chamado o embate entre Campo Grande e Bangu, jogos cheios de rivalidade que muitas vezes provocavam mais interesse dos torcedores do que os confrontos contra os grandes clubes. O curioso que um dos craques do Campo Grande no perodo, Dcio Esteves, tinha vindo do Bangu. Dcio, alis, jogou basquete num clube tradicional de Campo Grande, o Clube dos Aliados Campestre, aonde surgiu Zeni Azevedo, o Algodo, campeo mundial pela Seleo Brasileira, entre tantos outros ttulos, e considerado um dos cinco melhores jogadores do basquetebol brasileiro de todos os tempos.

    Outro nome importante do futebol brasileiro a vestir o uniforme do Campo Grande naquela dcada, mas ainda em

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 55 |

    incio de carreira, foi Dario, o Dad Maravilha, que marcou 26 gols entre 1966 e 1968 pelo Campusca, e participou da conquista do Trofu Jos Trcoli.

    Dario seria vendido para o Atltico Mineiro, aonde se consagrou, no apenas pelo futebol, mas tambm por suas frases folclricas: Somente trs coisas param no ar, beija- or, helicptero e Dad; No me venham com a problemtica, porque tenho a soluciontica, entre outras.

    No nal da dcada de 1970, a mobilizao da sociedade local empreendida pelo presidente do clube, Oldio Rodrigues da Silveira, deu ao Campo Grande seu moderno estdio, o talo del Cima, na Rua Arthur Rios. A inaugurao aconteceu em 29 de outubro de 1978, num jogo contra o Flamengo, que no quis nem saber de festa e goleou o an trio por 5 x 2 diante de 15.000 torcedores. O primeiro gol do novo estdio foi de Zico. Quem no gostou muito da arquibancada no estdio foram os garotos que antes viam os jogos de graa, em cima das rvores que cercavam o campo.

    O Campo Grande obteve sua maior conquista quatro depois, ao vencer a Taa de Prata de 1982 (o equivalente segunda diviso do Campeonato Brasileiro), derrotando na nal o CSA, de Alagoas, por 3 x 0, em 20 de abril, diante de 16.892 torcedores recorde do estdio at hoje.

    O destaque do time foi o atacante Luizinho das Arbias, artilheiro da competio com dez gols. O tcnico Jair Pereira comandou o clube na maior parte do ano, sendo substitudo nos ltimos jogos por um velho conhecido, agora na funo de tcnico: Dcio Esteves. Na preparao fsica, estava Antnio Carlos Melo, criado no bairro e que passou por grandes clubes do Brasil e do exterior, e tambm trabalhou na Seleo Brasileira, sempre ao lado do tcnico Vanderlei Luxemburgo, que treinou o Campusca em 1983, ainda no incio da carreira de treinador.

    Outro jogador de destaque nesse perodo foi o cabea-de-rea Demtrio, jogando no Campo Grande desde o infantil

  • | 56 | Andr Luis Mansur

    e campeo sul-americano e mundial pela seleo brasileira sub-20, ao lado de Bebeto, Geovani e Dunga. Depois, ele iria para o Botafogo.

    Depois de uma dcada de altos e baixos, o clube comeou a dcada de 1990 sob a direo do empresrio Antnio Santos. Foram contratados jogadores famosos, como o artilheiro Roberto Dinamite e Eli, alm do tcnico Eduardo Antunes Coimbra, o Edu, irmo de Zico, e que jogou no Campo Grande na dcada de 1970. O incio daquela dcada foi o ltimo perodo em que o Campusca conseguiu alguma projeo no futebol carioca, terminando a competio de 1991 em quinto lugar, sempre com bons pblicos no talo del Cima.

    O momento de renovao e entusiasmo no obteve continuidade nos anos seguintes: o clube caiu para a segunda diviso em 1995 e, com exceo do futebol feminino (campeo carioca em 2004 e 2008), o Campo Grande nos ltimos anos tem se alternado entre a segunda e a terceira divises, mesmo contando, s vezes, com nomes de peso do passado, como o atacante Valdir Bigode, revelado pelo Campo Grande em 1989 e estreando como tcnico recentemente, auxiliado por Pingo, outro nome importante da histria do clube, destaque do ttulo de 1982.

    Valdir, alis, cou famoso no Rio por causa de seu fusquinha que usava para ir de casa no bairro de Santssimo, para treinar no Campo Grande e depois no Vasco.

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 57 |

    SEU CHIQUINHO,DATILGRAFO E ESCRITOR

    Francisco Alves Siqueira, o Chiquinho de Guaratiba, ingressou no funcionalismo pblico a partir das obras no Polgono de Tiro da Marambaia, de cujas memrias saiu o livro A Barra de Guaratiba e a Segunda Guerra Mundial. Era datilgrafo, pro sso das mais prestigiadas at a dcada de 1990, quando o computador comeou a transformar as mquinas de escrever em dinossauros. Por ter acompanhado in loco todo aquele exaustivo trabalho, Chiquinho enriqueceu as informaes histricas com o que recolheu no dia a dia dos trabalhadores, nas brincadeiras e nas conversas daqueles que esperavam a guerra e enfrentavam a natureza bela, porm bastante inspita, da restinga, com o mangue, a tabatinga, o frio, o calor e os ventos. Na construo do Polgono, quando terminava o expediente e o caminho retornava ao acampamento, os apressados pulavam dele, ainda em movimento, para entrarem rpidos na la do jantar. Man Pamparra caiu e foi atropelado. Botaram de volta no carro e levaram ao hospital com ele gritando: Guarda o meu lugar! (A Barra de Guaratiba e II Guerra Mundial(A Barra de Guaratiba e II Guerra Mundial( , Francisco Alves A Barra de Guaratiba e II Guerra Mundial, Francisco Alves A Barra de Guaratiba e II Guerra MundialSiqueira)

    Alm de outros livros sobre a histria da regio, seu Chiquinho de Guaratiba tambm escreve poesia, organiza caminhadas e escala os morros da regio com a energia de um adolescente.

    Nada mal para quem j passou dos 85 anos e ainda desfruta de um bom vinho ao cair do belo pr de sol de sua querida Barra de Guaratiba.

  • | 58 | Andr Luis Mansur

    O POLGONO DE TIRO DA MARAMBAIA

    No primeiro volume de O Velho Oeste Carioca mencionei a invaso dos piratas franceses (que, na verdade, eram corsrios a servio do rei de Frana) em Barra de Guaratiba, em 1710, em uma frustrada tentativa de se conquistar a cidade do Rio de Janeiro. Os franceses atravessaram as montanhas do litoral sem serem perturbados, s encontrando resistncia no centro da cidade, quando foram derrotados. Mesmo que algumas baterias e fortalezas tenham sido instaladas depois, todo o litoral oeste da cidade nunca foi adequadamente protegido contra eventuais invases.

    Mas quase dois sculos e meio depois, sobreveio um novo ataque, s que desta vez os corsrios falavam a lngua de Goethe e no a de Balzac, vindo em submarinos, algo impensvel no longnquo sculo XVIII.

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 59 |

    TIROS NO PARASO

    Quem chega ao m da Estrada da Barra de Guaratiba ca certo de estar numa regio cuja nica vocao ser um balnerio uma pequena Bzios em plena cidade do Rio de Janeiro. De um lado, o morro e, atrs, cinco praias desertas, protegidas pela legislao ambiental. Em frente, o praio da Barra de Guaratiba e, um pouco direita, o paraso ecolgico da Restinga da Marambaia, no incio de quarenta quilmetros de extenso de praias branqussimas.

    Esta mesma certeza teve o presidente da Repblica Washington Luiz, quando chegou ao nal da estrada para veri car o trmino de sua construo, em 1928, pois pensou logo em uma possvel ponte ligando o continente restinga e transformando a regio num resort.

    Na poltica, no entanto, nem sempre as ideias correspondem aos fatos, e Washington Luiz foi deposto em 1930 pela Junta Provisria, e Getlio Vargas assumiu o poder pelos 15 anos seguintes.

    O projeto do balnerio cou s na cabea, at porque, com a ecloso da Segunda Guerra Mundial em 1939, a antiga preocupao com a defesa daquela faixa litornea voltou tona com toda a fora.

    O Polgono de Tiro da Marambaia tornou-se necessrio, da mesma forma que se construiu no litoral de Natal (RN) a base norte-americana, a chamada Plataforma da Vitria.

    A declarao de guerra do Brasil ao Eixo (Alemanha, Itlia e Japo), em 1942, e o consequente torpedeamento de navios mercantes brasileiros provava que era preciso dar uma maior ateno ao nosso litoral.

    Na Barra de Guaratiba, a primeira preocupao defensiva foi a instalao de um destacamento antiareo no Morro do Telgrafo, que tambm serviu de ponto de

  • | 60 | Andr Luis Mansur

    observao privilegiado de todo o litoral do alto de seus 355 metros. Hoje, a pedra faz parte do roteiro turstico da regio, pois a viso do topo de 360 graus v-se at a Ilha Grande.

    O maior obstculo para a instalao de uma unidade militar na Restinga era o canal que a separa do continente. Por isso, antes de tudo, seria preciso construir a to sonhada ponte idealizada por Washington Luiz.

    Talvez as nicas vantagens da guerra sejam o desenvolvimento tecnolgico (em diversas reas) e as melhorias de infra-estrutura em locais ainda atrasados em termos de servios bsicos. No caso da Barra de Guaratiba, uma comunidade que tirava o sustento sobretudo da pesca e no tinha qualquer envolvimento com poltica, toda aquela movimentao de gente e equipamentos modernos provocou mudanas permanentes na regio.

    As obras de construo da ponte foram iniciadas numa pedreira aberta a um quilmetro de distncia da entrada do canal, num local conhecido como Campo de So Joo e, para transportar os trabalhadores, foram construdas balsas imensas, com capacidade para 50 pessoas, alm do material necessrio.

    Uma foto do jornal O Globo, no entanto, de 10 de dezembro de 1943, mostra a balsa lotada com bem mais que uma centena de trabalhadores.

    Foram tomadas muitas outras providncias, como a instalao de um cabo areo, a elevao de barreiras para a construo do aterro, galpes, casas, um pequeno barco, etc.

    Para os moradores da Barra, a guerra acabou trazendo muitos empregos, o que na poca era praticamente impossvel em uma regio to desprovida de obras pblicas.

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 61 |

    MILAGRE E IDEALISMO

    O trabalho, no entanto, era duro. Desde o perodo de opulncia econmica dos Breves, como ressaltei no primeiro volume de O Velho Oeste Carioca, que a Marambaia no recebia muita ateno, permanecendo como lugar inspito e habitado por poucas pessoas, muitas descendentes de escravos que trabalhavam nas fazendas dos Breves.

    Ao longo da extensa praia da restinga, era preciso construir uma estrada e, para isso, como formassem uma tropa de infantaria, os trabalhadores seguiam frente abrindo picadas em meio vegetao.

    Um trator aplainava o areal e uma escavadeira extraa tabatinga da restinga. O primeiro acampamento tinha um barraco conhecido como Rocha Faria, onde eram atendidos os operrios que contraam febre palustre referncia ao Hospital Rocha Faria, em Campo Grande, o principal da regio.

    Alm das praias, a restinga formada por manguezais, di cultando ainda mais o acesso dos trabalhadores, que sofriam com o vento, atirando areia nos olhos o tempo todo. Para reduzir o problema, as banquetas ao lado da estrada foram cobertas com grama para evitar acmulo de areia. Assim que construram o segundo acampamento, a restinga possua uma estrutura razovel, com centenas de homens alojados, alm de refeitrios, cozinha, carpintaria, barbearias e escritrio.

    Quando o Brasil rmou de vez a aliana com os Estados Unidos (em troca da construo da Companhia Siderrgica Nacional, em Volta Redonda) e declarou guerra Alemanha, em agosto de 1942, a estrada da restinga j atingia a garganta, um trecho estreito que separava o oceano da Baa de Sepetiba com dunas de areia.

    O trabalho era rduo. O calor, que obrigava os trabalhadores a usar chapu de aba larga como os sombreros

  • | 62 | Andr Luis Mansur

    mexicanos, e a pouca gua tirada dos poos eram os maiores problemas. No inverno, era o contrrio: o vento frio naquela regio de mar aberto totalmente exposta castigava os trabalhadores.

    A responsvel pela construo da ponte da Marambaia recebeu o ttulo o cial de Comisso Construtora e Instaladora do Polgono de Tiro da Marambaia. O objetivo era que a ponte servisse para o transporte dos equipamentos militares, como tanques, canhes e caminhes.

    Muitas vezes, os trabalhadores cavam mais de uma semana acampados na restinga. Era preciso cortar madeira a toda hora para colocar sobre o pntano para evitar que os veculos atolassem. Os caminhes tambm eram enchidos com terra e tabatinga (material difcil de ser extrado) para a construo da estrada, cujos postes recebiam energia eltrica da Light. No nal de 1943, os tapumes permitiram a passagem da ponte em construo e muitos estrangeiros embriagados se afogaram no canal.

    O Polgono de Tiro foi inaugurado em agosto de 1944 e a ponte um ano depois, com a presena do presidente Getlio Vargas, um pouco mais de um ano antes de renunciar. Todo o trabalho foi iniciado e planejado por causa da guerra, que acabara em maio, mas a rea passou a ter um destacamento militar permanente.

    No estilo entusiasmado da poca e sob a tutela do Estado que controlava rigidamente a imprensa, o jornal O Globo publicou Sem igual na Amrica do Sul, descrevendo a construo do polgono como um milagre resultante da soma de tcnica, da cincia e da vontade humana servida e estimulada por um belo e vivo idealismo.

    Seu Chiquinho estava l e adora contar esta histria, principalmente quando passeia por onde tudo aconteceu.

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 63 |

    CRUMARIM E GRUMARI

    Outro livro escrito por Francisco Alves Siqueira no mesmo estilo de O Polgono de Tiro da Marambaia traz o instigante ttulo de Os Mistrios do Grumari, que conta um pouco da histria de uma das praias mais frequentadas e bem preservadas da Zona Oeste. Segundo ele, o nome grumari originou-se do tupi crumarim, um arbusto muito comum na regio. A praia do Grumari ca entre a Prainha, o Recreio dos Bandeirantes e as citadas praias escondidas da Barra de Guaratiba (Perigoso, do Meio, Funda, do Inferno e de Bzios). H duas ilhas prximas, das Palmas e das Peas, cujas con guraes apresentam aspectos curiosos. A Ilha das Peas, vista de lado, parece um rosto pr-histrico, e a das Palmas, de cima, lembra uma arraia gigante com um lhote.

    A regio do Grumari comeou a ser explorada comercialmente em meados do sculo XVIII, primeiro por posseiros e depois por senhores de engenho, que fundaram a Fazenda do Grumari. Entre esses primeiros donos da terra, estava Joo Caldeira de Alvarenga, cujo sobrenome iria atravessar os sculos na regio como smbolo de importncia poltica, social, econmica e cultural.

    O lho de Joo, Francisco Caldeira de Alvarenga, cuja fazenda chegou a produzir 40 mil ps de caf, tornou-se o maior fazendeiro da regio e um dos mais destacados da Zona Oeste, tendo chegado a ser juiz de paz e deixado aos descendentes a fazenda do Grumari Grande.

    Francisco dominou a poltica da regio com o irmo Manoel Caldeira de Alvarenga, inaugurando uma tradio de peso no meio parlamentar, que ainda produziria nomes como Raul Capelo Barrozo e Alcir Pimenta, professor de portugus de muita gente ilustre da sociedade de Guaratiba e Campo Grande.

  • | 64 | Andr Luis Mansur

    As varas de madeira do grumari eram usadas pelos indgenas para a confeco de echas. Muitos escravos foram castigados com essas varetas pelos seus senhores. Apesar de ser litoral, a pesca no Grumari no foi to intensa quanto em Guaratiba e Sepetiba, pois o mar mais agitado no permitia a navegao de pequenas embarcaes, sendo mais comum a pesca tradicional com linha e canio.

    Na pedra chamada Costo do Grumari, muitos pescadores caram e se afogaram. Alis, as guas da praia do Grumari, embora uma das mais visitadas pelos moradores da Zona Oeste, no so convidativas para mergulhos mais afastados.

    Alm das lavouras tradicionais, como de cana de acar, mandioca e, mais tarde, caf e banana-prata, outra fonte de renda bastante comum era a caa de animais, como capivaras que, acossadas pelos ces, costumavam se refugiar nas lagoas Feia e do Canto. A paca e o gamb tambm foram animais muito caados.

    Por ser de difcil acesso at hoje, apesar da estrada que apresenta uma bela paisagem, a produo das fazendas do Grumari seguia por tropa e no lombo dos escravos atravs da serra, at chegar a um lugar conhecido como Custdia, na Barra de Guaratiba, onde era embarcada, e onde existiu o Engenho do Porto, local de desembarque tambm de escravos, seleo e at castigos desumanos, atravs de um poro que tinha comunicao com o mar (deduz-se desse modo, porque os primitivos daquela regio, enquanto o casaro existiu, recomendavam aos seus descendentes o mximo cuidado ao penetrar no cmodo onde havia o alapo falso) (Os Mistrios do Grumari, Francisco Alves Siqueira).

    Grumari rea de proteo ambiental desde 1986, tombada pelo Ministrio do Meio Ambiente e pelo Instituto Estadual do Patrimnio Cultural (Inepac).

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 65 |

    OS IMPERADORES EM SANTA CRUZ

    Se o prncipe regente D. Joo se apaixonou por Santa Cruz, transformando a antiga sede da fazenda dos jesutas em Palcio Real, seus descendentes tambm seguiram o antigo Caminho dos Jesutas para se afastar dos problemas da Corte e viver mais vontade. O lho, o futuro D. Pedro I do Brasil, e IV de Portugal, por exemplo, talvez tenha sido mais assduo ao palcio do que o pai. Na infncia passada no velho oeste carioca, Pedro, revelando a vocao de lder militar, organizava exrcitos de brincadeira, com regimentos de escravos, meninos como ele, munidos com armas de madeira e folhas-de- andres. Exrcito pronto, organizava acirradas batalhas pelos campos de Santa Cruz contra o irmo D. Miguel, antecipando a guerra que travariam em Portugal, entre 1832 e 1834, e que faria de D. Pedro um heri naquele pas, aps abdicar o trono do Brasil em 1831.

    Mais tarde, j homem feito e imperador do Brasil, D. Pedro ia muito a Santa Cruz seguido de is escudeiros, como Francisco Gomes da Silva, o Chalaa, seu secretrio particular e, segundo as ms lnguas, secretrio para os negcios ocultos do Brasil e de Portugal (D. Pedro I, Isabel Lustosa), talvez um D. Pedro I, Isabel Lustosa), talvez um D. Pedro Iprenncio dos malfadados atos secretos do Senado de hoje, recentemente investigados.

    Na longa viagem pela Estrada Real, provavelmente o prncipe vislumbrava as possibilidades que se abriam, de romper com Portugal e se tornar responsvel pelos destinos da imensa nao que o acolhera.

    Exmio cavaleiro, muitas vezes Pedro partia montado em um dos muitos cavalos que mantinha bem tratados na fazenda, dispensando as luxuosas carruagens. Cavalgava rpido, tanto que, em algumas vezes, ia e voltava no mesmo

  • | 66 | Andr Luis Mansur

    dia a Santa Cruz, como na ocasio em que foi fazenda apenas para dar uma chicotada no marido de sua amante Domitila de Castro e Canto Melo, a Marquesa de Santos uma situao to absurda que beira o tragicmico.

    Mesmo perdendo a marquesa para D. Pedro I, o marido, o alferes Felcio Pinto Coelho de Mendona, no apenas se submeteu ordem, como se humilhou, pedindo um cargo ao Imperador, que o nomeou, em 1824, administrador da feitoria de Peri-Peri, parte da Fazenda de Santa Cruz, e que cava em numa rea coberta hoje pela estrada Rio-So Paulo, na altura de Itagua, abrigando diversas lavouras e um famoso engenho produtor de aguardente.

    O motivo da desavena entre o administrador e o Imperador foi uma carta injuriosa sobre a marquesa, enviada por Felcio ao irmo de Domitila, que a mostrou ao Imperador. Mal acabara de ler, D. Pedro montou seu cavalo e atravessou a Estrada Real em plena madrugada, sob uma forte tormenta. Ao chegar sede da feitoria, entrou gritando, chamando pelo administrador, para o espanto dos escravos que nunca imaginariam a chegada do Imperador do Brasil quela hora e daquele modo.

    Quando se deparou com Felcio, D. Pedro, sem dizer palavra, desferiu rpida e forte rebencada na face do perplexo desafeto e, considerado cumprido seu dever, imediatamente regressou Quinta da Boa Vista, aonde chegou ao amanhecer (Santa Cruz, Jesutica, Real, Imperial Vol. III, Benedicto Freitas).

    Felcio no apenas aguentou calado a humilhao, como ainda continuou por um bom tempo como administrador da feitoria, mas, desta vez, bem comportado, pois D. Pedro o ameaara com uma surra se no parasse de ofender a marquesa, esposa de Felcio e amante de Pedro.

    Parece piada, mas foi o que aconteceu.

  • O Velho Oeste Carioca Vol.II | 67 |

    COMO PINTO NO LIXO

    Ao chegar a Santa Cruz, pode-se dizer que D. Pedro cava como pinto no lixo, ou seja, sentia-se inteiramente vontade: Aqui chegados, consideravam-se no Paraso: passeios sem- m: a Sepetiba, Itagua, Pedra de Guaratiba, no mar, nos rios, nos decantados canais com iates e veleiros neles deslizando, caadas e rodeios e, noite, msica na Imperial Capela e nos sales do Palcio, onde tambm se realizavam animadas partidas de bisca, jogo preferido do monarca (Santa Cruz, Jesutica, Real, Imperial Vol. III, Benedicto Freitas). Jesutica, Real, Imperial Vol. III, Benedicto Freitas). Jesutica, Real, Imperial Vol. III

    Em Santa Cruz, D. Pedro, mesmo j imperador, despia-se das so sticadas e imponentes vestimentas da nobreza, e usava trajes de homem do campo: cala e camisa de algodo, bota quase sempre enlameada e chapu de palha, como autntico caipira. Ocorreu muitas vezes de receber ministros de importantes Cortes europeias calando chinelos no Palcio, sem a menor cerimnia. Conta o Marqus de Gabriac embaixador da Frana no Brasil entre 1820 e 1829 que, visitando D. Pedro, em Santa Cruz , em 22 de outubro de 1827, encontrara-o em seu salo de despachos jogando bisca com um camarista e o cirurgio do Pao (D. Pedro I, D. Pedro I, D. Pedro IIsabel Lustosa).

    Para aproveitar bem a vidinha na roa, repleta de ar puro, gua limpa, fartos cozidos (seu prato preferido na fazenda) e muito verde, D. Pedro gostava de acordar bem cedo, quando o g