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1 Verdadeiro Método de Estudar Teresa Payan Martins (CHC UNL) A história da publicação do Verdadeiro Método de Estudar, de Luís António Verney, está envolta numa atmosfera de segredo e clandestinidade, mas hoje, graças aos trabalhos de investigação do Prof. Banha de Andrade, o mistério bibliográfico encontra-se praticamente desvendado, pelo que passamos a apresentar, em síntese, os pontos principais das suas conclusões: 1º – No início do ano de 1746, Luís António Verney, residente em Roma desde 1736, "com receio dos jesuítas romanos, dirigiu-se a Nápoles, em cujo Reino os inacianos sofriam perseguição da autoridade régia e eclesiástica", 1 para diligenciar a publicação do Verdadeiro Método de Estudar, atribuindo a sua autoria a um «Padre Barbadinho da Congregação de Itália». Cumpridas as formalidades legais e obtidas as licenças necessárias (régia e eclesiástica), os impressores Gennaro e Vincenzo Muzio procederam à impressão da obra, em dois volumes [1ª ed.]; 2º – Em data que não se pode fixar com exactidão, mas provavelmente no final do ano de 1746, uma remessa dessa edição foi enviada para Lisboa. De acordo com a lei vigente, um visitador da Inquisição inspeccionou o barco onde tinham sido transportados os livros e apreendeu-os, para se proceder à sua apreciação. Não são conhecidos os pareceres emitidos pelos qualificadores do Santo Ofício, mas às consequências da sua prática censória se alude expressamente num processo da Inquisição de Lisboa, relacionado com este caso de fraude editorial: [...] sendo público e notório nesta Corte que o Santo Ofício mandara recolher a primeira impressão que veio de fora do Reino e denegado a licença para eles correrem, pelos justos motivos que ponderam os Qualificadores nas suas censuras. 2 1 ANDRADE, António Alberto de. Vernei e a Cultura do seu tempo. Coimbra, Acta Vniversitatis Conim- brigensis, 1965, pág. 172. 2 A.N.T.T., Inquisição de Lisboa, processo nº 523. Banha de Andrade transcreveu, em primeira mão, as partes fundamentais deste processo. Ob. cit., p. 600.

Verdadeiro Método de Estudar - fcsh.unl.pt · a que tinha votado a sua obra, Luís António Verney enveredou pelo caminho da clandestinidade editorial. Assim "reimprimiu o livro

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1

Verdadeiro Método de Estudar

Teresa Payan Martins (CHC UNL)

A história da publicação do Verdadeiro Método de Estudar, de Luís

António Verney, está envolta numa atmosfera de segredo e clandestinidade,

mas hoje, graças aos trabalhos de investigação do Prof. Banha de Andrade, o

mistério bibliográfico encontra-se praticamente desvendado, pelo que

passamos a apresentar, em síntese, os pontos principais das suas conclusões:

1º – No início do ano de 1746, Luís António Verney, residente em Roma

desde 1736, "com receio dos jesuítas romanos, dirigiu-se a Nápoles, em cujo

Reino os inacianos sofriam perseguição da autoridade régia e eclesiástica",1

para diligenciar a publicação do Verdadeiro Método de Estudar, atribuindo a

sua autoria a um «Padre Barbadinho da Congregação de Itália». Cumpridas as

formalidades legais e obtidas as licenças necessárias (régia e eclesiástica), os

impressores Gennaro e Vincenzo Muzio procederam à impressão da obra, em

dois volumes [1ª ed.];

2º – Em data que não se pode fixar com exactidão, mas provavelmente

no final do ano de 1746, uma remessa dessa edição foi enviada para Lisboa.

De acordo com a lei vigente, um visitador da Inquisição inspeccionou o barco

onde tinham sido transportados os livros e apreendeu-os, para se proceder à

sua apreciação. Não são conhecidos os pareceres emitidos pelos

qualificadores do Santo Ofício, mas às consequências da sua prática censória

se alude expressamente num processo da Inquisição de Lisboa, relacionado

com este caso de fraude editorial:

[...] sendo público e notório nesta Corte que o Santo Ofício mandara recolher a primeira impressão que veio de fora do Reino e denegado a licença para eles correrem, pelos justos motivos que ponderam os Qualificadores nas suas censuras.2

1 ANDRADE, António Alberto de. Vernei e a Cultura do seu tempo. Coimbra, Acta Vniversitatis Conim-

brigensis, 1965, pág. 172. 2 A.N.T.T., Inquisição de Lisboa, processo nº 523. Banha de Andrade transcreveu, em primeira mão,

as partes fundamentais deste processo. Ob. cit., p. 600.

2

3º – Perante a decisão do Santo Ofício e salvaguardado pelo anonimato

a que tinha votado a sua obra, Luís António Verney enveredou pelo caminho da

clandestinidade editorial. Assim "reimprimiu o livro onde quis, tirando-lhe as

licenças da autoridade eclesiástica e régia de Nápoles, e apôs-lhe o nome do

novo editor: António Balle, em Valença".3 Banha de Andrade pôde ainda

acrescentar: "Cremos ter sido impressa também em Nápoles esta segunda

edição visto haver identidade de papel e aspecto tipográfico entre a inicial de

Nápoles e a que corre com a menção de Valença".4 Esta edição circulou em

Portugal e depressa se esgotou, pois o interesse que a obra naturalmente

suscitava foi reforçado pelo conhecimento de que a primeira edição fora

apreendida;

3 ANDRADE, António Alberto de. Ob. cit., pág. 174. 4 IDEM, Ibidem, pp. 174-175.

3

4º – Mais tarde, cerca de 1751, o padre loio Doutor Manuel de Santa

Marta Teixeira, não obstante a sua condição de qualificador do Santo Ofício,

estampou clandestinamente, numa oficina particular instalada no Convento de

Santo Elói, nova edição do Verdadeiro Método de Estudar [3ª edição], sob as

falsas indicações tipográficas de «Valensa, na oficina de António Balle, 1747».

Foram, assim, publicadas, segundo Banha de Andrade, três edições do

Verdadeiro Método de Estudar, num lapso de cinco anos. Da primeira edição

impressa em Nápoles (referida em 1), conhecem-se apenas dois exemplares

em todo o mundo: o da Biblioteca Nacional de Madrid (incompleto, pois só ali

se encontra o tomo segundo) e o da Biblioteca Nacional de Nápoles, a partir do

qual redigimos as descrições bibliográficas das portadas dos dois tomos que

constituem a obra, reunidos num só volume, encadernado em carneira:

Tomo 1º:

VERDADEIRO / METODO / DE ESTUDAR, / PARA / Ser util à Republica, e à

Igreja: / PROPORCIONADO / Ao e⌠⌠⌠⌠tilo, e nece⌠⌠⌠⌠idade de Portugal. / EXPOSTO / Em

varias cartas, e∫ critas polo R. P. * * * / Barbadinho / da Congrega∫ am de Italia, ao R.

P. * * * / Doutor na Universidade de Coimbra. / TOMO PRIMEIRO. / [Ornamento

xilográfico.] / NAPOLES / ANO MDCCXLVI. / COM TODAS AS LICENSAS

NECESARIAS, & c.

Tomo 2º:

VERDADEIRO / METODO / DE ESTUDAR, / PARA / Ser util à Republica, e à

Igreja: PROPORCIONADO / Ao e⌠⌠⌠⌠tilo, e nece⌠⌠⌠⌠idade de Portugal. / EXPOSTO / Em

varias cartas, e∫ critas polo R. P. * * * Barbadinho / da Congrega∫ am de Italia, ao R. P.

* * * / Doutor na Universidade de Coimbra. / TOMO SEGUNDO. / [Ornamento

xilográfico.] / NAPOLES / ANO MDCCXLVI. / COM TODAS AS LICENSAS

NECESARIAS, & c.

4

Rostos do primeiro e segundo tomos do Verdadeiro Método de Estudar, impresso em Nápoles em 1746.

A segunda edição (mencionada em 3), dada como impressa em Valensa,

em 1746, mas realmente estampada em Nápoles, apresenta nas folhas-de-

rosto do primeiro e do segundo volumes, as características tipográficas

seguintes:

VERDADEIRO / METODO / DE ESTUDAR, / PARA / Ser util à Republica, e à

Igreja: / PROPORCIONADO / Ao e⌠⌠⌠⌠tilo, e nece⌠⌠⌠⌠idade de Portugal. / EXPOSTO / Em varias cartas, e∫ critas pelo R. P. * * * Barbadinho da Congrega∫ am de Italia, ao R. P.

* * * / Doutor na Universidade de Coimbra. / TOMO PRIMEIRO. / [Ornamento xilográfico.] / VALENSA / NA OFICINA DE ANTONIO BALLE. / ANO MDCCXLVI. /

COM TODAS AS LICENSAS NECESARIAS, &c.

5

VERDADEIRO / METODO / DE ESTUDAR, / PARA / Ser util à Republica, e à Igreja: PROPORCIONADO/ Ao e⌠⌠⌠⌠tilo, e nece⌠⌠⌠⌠idade de Portugal. / EXPOSTO / Em

varias cartas, e∫ critas polo R.P. * * * Barbadinho / da Congrega∫ am de Italia, ao R. P. * * * / Doutor na Universidade de Coimbra. / TOMO SEGUNDO. / [Ornamento

xilográfico.] / VALENSA / NA OFICINA DE ANTONIO BALLE. / ANO MDCCXLVI. /

COM TODAS AS LICENSAS NECESARIAS, &c.

Portadas do primeiro e segundo volumes do Verdadeiro Método de Estudar, dados como impressos em

«Valensa, na Oficina de António Balle», mas realmente impressos em Nápoles em 1746.

A terceira edição, saída dos prelos do convento de Santo Elói, sob a falsa

indicação tipográfica de «Valensa, na Oficina de António Balle, 1747»,

apresenta respectivamente na portada do primeiro e do segundo tomo os

seguintes dizeres:

6

VERDADEIRO / METODO / DE ESTUDAR, / PARA / Ser util á Republica, e á Igreja: / PROPORCIONADO / Ao e⌠⌠⌠⌠tilo, e nece⌠⌠⌠⌠idade de Portugal / EXPOSTO / Em

varias Cartas, e∫ critas pelo R. P. * * * Bar- / badinho da Congrega∫ am de Italia, ao R. / P. * * * Doutor na Universidade / de Coimbra. / TOMO PRIMEIRO / [Ornamento

tipográfico em fundo-de-lâmpada.] / VALENSA / NA OFICINA DE ANTONIO BALLE. /

ANO MDCCXLVII. / COM TODAS AS LICENSAS NECESARIAS, & c.

VERDADEIRO / METODO / DE ESTUDAR, / PARA / Ser util á Republica, e á

Igreja: / PROPORCIONADO / Ao e⌠⌠⌠⌠tilo, e nece⌠⌠⌠⌠idade de Portugal / EXPOSTO / Em varias Cartas, e∫ critas pelo R. P. * * * Bar- / badinho da Congrega∫ am de Italia, ao R. /

P. * * * Doutor na Universidade / de Coimbra. / TOMO SEGUNDO / [Ornamento

tipográfico em fundo-de-lâmpada.] / VALENSA / NA OFICINA DE ANTONIO BALLE./ ANO MDCCXLVII. / COM TODAS AS LICENSAS NECESARIAS, & c.

Folhas-de-rosto da edição-pirata do Verdadeiro Método de Estudar, impressa em Lisboa na oficina particular do

Doutor Manuel de Santa Marta Teixeira, à volta de 1751.

7

Pela análise comparativa das características materiais das espécies que

Banha de Andrade referencia como pertencentes à primeira e segunda edições

do Verdadeiro Método de Estudar, somos levada a concluir tratar-se de uma só

edição. As diferenças assinaláveis entre o exemplar que ostenta no pé-de-

imprensa a indicação de ter sido estampado em Nápoles (chamar-lhe-emos 1ª

edição A) e as espécies supostamente impressas em Valensa, por Antonio

Balle, no ano de 1746 (designá-las-emos por 1ª edição B), registam-se

unicamente no primeiro caderno inumerado de cada um dos tomos, o qual

contém a respectiva folha-de-rosto. De forma mais explícita, podemos afirmar

que, no primeiro tomo, há uma identidade total entre as duas supostas edições

desde o início do texto da «Carta Primeira» (pág. 1, caderno A) até à página

final (pág. 322, cad. S.), característica que se verifica também no tomo

segundo, desde o princípio da «Carta Nona» (pág. 1, caderno A) até à última

página (pág. 300, cad. P). As espécies, supostamente pertencentes a duas

edições diferentes, são, portanto, formadas por cadernos provenientes de uma

mesma edição, tendo-se unicamente efectuado, por motivos óbvios, uma nova

impressão dos dois cadernos que continham as folhas-de-rosto, e procedido à

sua substituição.

Estes merecem particular atenção. Se no tomo segundo, o primeiro

caderno inumerado, constituído por quatro páginas (duas páginas para a folha-

de-rosto, sendo o verso em branco; e duas para o índice), é praticamente

idêntico nas designadas 1ª edição A e 1ª edição B, tendo-se alterado

unicamente a composição da portada para substituir, no pé-de-imprensa, o

local de edição de «Napoles» por «Valensa», o mesmo não se pode afirmar do

tomo primeiro, pois há diferenças significativas que importa salientar.

Na 1ª edição A, o primeiro caderno, que precede o texto propriamente dito

do Verdadeiro Método de Estudar, é integrado por oito páginas inumeradas:

duas páginas para o rosto (sendo o verso em branco), duas para o índice e

quatro para as licenças (duas páginas para a licença real e duas para a

eclesiástica). Na 1ª edição B, o primeiro caderno tem doze páginas: duas

páginas para a folha-de-rosto (verso em branco), seguidas de oito páginas com

a carta que o suposto impressor Antonio Balle dirige AOS REVERENDISIMOS /

PADRES MESTRES, / DA VENERAVEL RELIGIAM DA COMPANHIA / DE

JEZUS. / No Reino, e Dominio de Portugal, e duas páginas de índice. As oito

páginas que abrangem a carta do fictício Antonio Balle foram colocadas no

8

meio da folha tipográfica onde se imprimiu a portada e o índice. De um e outro,

apresentamos, em anexo, a sua reprodução. Importa notar que, ao contrário do

que, por lapso, é afirmado pelo Prof. Banha de Andrade,5 o exemplar que

apresenta expressamente como local de edição «Napoles» não contém a

Carta-dedicatória do suposto impressor Antonio Balle aos Padres da

Companhia de Jesus do Reino de Portugal. Logicamente, esta só figura, em

substituição do texto das licenças, nos exemplares dados como impressos em

Valensa, por Antonio Balle, em 1746, e contém uma pseudo-explicação das

circunstâncias em que ocorreu a sua publicação, como estratégia para encobrir

o carácter fraudulento da sua impressão:

Saem à luz, Reverendíssimos Padres, as cartas eruditas, de um autor moderno: as quais até agora correram manuscritas, por algumas mãos: mas chegando às minhas, e conhecendo eu, que podiam utilizar a muitos, resolvi imprimi-las.6

5 ANDRADE, António Alberto de. Ob. cit., pp. 459-460. A Prof. Maria Lucília Gonçalves Pires, na

introdução à edição do Verdadeiro Método de Estudar, publicada em 1991 pela Presença, ao apresentar no ponto 2.1. as «Circunstâncias da sua publicação», apoiada nas investigações de Banha de Andrade, refere também a existência, na edição de Nápoles [1ª ed. A], da carta do impressor Antonio Balle aos Padres Jesuítas do Reino de Portugal. Não deixa, no entanto, de levantar a seguinte questão: "Apesar das importantes e clarificadoras pesquisas levadas a cabo por A. Alberto de Andrade, que permitiram chegar a estas rectificações de informações inexactas, subsistem ainda problemas aos quais não nos é dada resposta. Um deles é o seguinte: como explicar que a primeira edição, impressa em Nápoles pelos irmãos Muzio, inclua um texto – a já referida dedicatória aos padres jesuítas – de Antonio Balle, impressor de Valência, explicando as deficiências de material tipográfico que o impedem de imprimir a obra exactamente com os sinais gráficos utilizados pelo autor?" Cf. VERNEY, Luís António. Verdadeiro Método de Estudar (Cartas sobre Retórica e Poética). Intr. e notas de Maria Lucília Gonçalves Pires. Lisboa, Presença, 1991, pp. 14-20.

6 [VERNEY, Luís Antonio.] Verdadeiro Método de Estudar .... Valensa, Antonio Balle, 1746, t. I, a2.

9

ANEXO I - REPRODUÇÃO DO PRIMEIRO CADERNO DA DESIGNA DA 1ª EDIÇÃO A.

10

11

ANEXO II - REPRODUÇÃO DO PRIMEIRO CADERNO DA DESIGN ADA 1ª EDIÇÃO B.

12

13

14

No entanto, toda esta aparente normalidade se desmorona quando nos

apercebemos de que o verdadeiro impressor valenciano Antonio Balle, com

oficina tipográfica "junto à la paroquia de San Martin", se dedicou à actividade

impressória de 1721 a 1740, e de que nas obras saídas dos seus prelos nunca

consta como local de edição «Valensa» mas sim «Valencia» ou «En Valen-

cia».7

Contudo, esta Carta-dedicatória é particularmente significativa pelo tom de

fina ironia que o percorre, e que mereceu ao Prof. Coimbra Martins o seguinte

comentário:

O Verdadeiro Método, vasto e violento tratado contra a pedagogia dos Jesuítas, abre por um elogio da Companhia que só no seu excesso e pela violenta contradição com o próprio texto do livro trai o verdadeiro espírito que o anima. Não deixa de lembrar aqueles protestos de amor à virtude que, nos seus prefácios, fazem sempre os romancistas libertinos, inclusivamente o marquês de Sade.

7 Cf. MARTI GRAJALES, Francisco. Ensayo de una bibliografia valenciana del siglo XVIII. Descripción

de las obras impresas en Valencia en dicha época, con un apéndice de documentos inéditos referentes a autores y tipógrafos. Valencia, Diputació, 1987, 2 vols.

Existe no A.N.T.T. um documento, datado de 7 de Outubro de 1796, em que um mercador de livros, denominado Antonio Balle, solicita autorização para imprimir um determinado livro, o que foi deferido. Ignoramos a relação de parentesco que possa existir entre o impressor valenciano e este livreiro e não encontrámos outra qualquer informação sobre tal mercador de livros. O texto do documento é o seguinte: «Diz Antonio Balle, mercador de livros, que ele pretende emprimir o papel incluso intitulado Rediculas Simplicidades de Bertoldinho para o que pede a V. Majestade lhe conceda a licença precisa». Ao cimo da página encontra-se o despacho, do seguinte teor: «Aprovado o papel de que trata esta petição para poder ser impresso pelo que toca a este Tribunal. Lisboa, 7 de Outubro de 1796.» A.N.T.T., Conselho Geral do Sto. Ofício, Maço 45, doc. 2.

15

E acrescenta:

Mas tão bem simula que muitos afectos à Companhia puderam interpretá-la à letra [...]. Foi talvez graças a ela que Luís António Verney, Aufklärer, estrangeirado e todavia eclesiástico, pôde fazer que os seus Métodos corressem em Portugal, apesar dos rigores da nossa tripla censura e após apreensão de uma primeira esquadra desses «demónios» apostados em corromper a terra onde nascera, tão diferente da de seus avós.8

A proveniência comum e identidade [quase] total entre os exemplares

considerados por Banha de Andrade como pertencentes a duas edições

diferentes pode ser confirmada pelo estudo comparativo das filigranas que

marcam o papel, pois são rigorosamente iguais. No primeiro tomo, tanto na 1ª

edição A como na 1ª edição B, a folha onde se imprimiu o rosto ostenta como

marca-de-água um riquíssimo escudo que se completa na folha que contém o

índice. Na 1ª edição A, as quatro páginas onde se apresentam as licenças não

têm marca-de-água, situação que também se verifica, na 1ª edição B, nas oito

páginas ocupadas pela Carta do suposto impressor Antonio Balle aos Padres

da Companhia de Jesus, do Reino de Portugal. Desde o começo da «Carta

Primeira» (pág. 1) até à última página, o papel utilizado na 1ª edição A e na 1ª

edição B é absolutamente igual: a marca-de-água, que representa uma pomba

num círculo, encontra-se, nos primeiros cadernos, no centro da folha externa,

passando depois a aparecer no centro da folha interna.

No segundo tomo, há folhas com diversas marcas-de-água, mas devemos

sublinhar que existe entre a 1ª edição A e a 1ª edição B uma coincidência total

entre as filigranas que marcam as diferentes folhas. Reaparece, em algumas

folhas, a marca-de-água que representa a pomba num círculo, mas predomina,

como filigrana, um grande escudo, de desenho claramente distinto do marcado

na folha-de-rosto do tomo primeiro.

O estudo comparativo dos caracteres tipográficos e dos elementos

iconográficos reproduzidos nas consideradas 1ª edição A e 1ª edição B

sedimenta a nossa convicção de estarmos perante uma única edição, pois a

sua identidade é perfeita, assim como é rigorosamente igual a composição do

texto.

8 MARTINS, António Coimbra. «VERNEY, Luís António», (s.v.). In SERRÃO, Joel, dir. Dicionário da

História de Portugal. Lisboa, Iniciativas Editoriais, 4 vols., 1963-1967; vol. 4, p. 279.

16

Esta afirmação pode ser comprovada, a título meramente ilustrativo, por

dois exemplos:

1º – A página onde se inicia o texto da «Carta Sexta» (tomo I, p. 153) é

embelezada por um friso compósito e pela reprodução de uma capitular

ornamentada (letra N), exactamente iguais na considerada 1ª edição A e 1ª

edição B. Os caracteres tipográficos utilizados são rigorosamente os mesmos, e

não podemos deixar de notar o pormenor de o ponto final, colocado após a

expressão «Carta Sexta», ter, nas duas fictícias edições, forma triangular.

Nenhuma divergência pode ser, também, mencionada quanto à composição do

texto.

Página inicial da «Carta Sexta», na designada 1ª

Edição A.

Página inicial da «Carta Sexta», na designada 1ª

Edição B.

17

2º – O final do texto da «Carta Decimaquinta» (tomo II, p. 252) é

assinalado pela reprodução de uma xilogravura, exactamente igual nas duas

supostas edições. Os caracteres tipográficos utilizados são comprovadamente

os mesmos, e em relação à composição do texto não existe uma única

diferença que se possa assinalar.

Página finais da «Carta Decimaquinta». Nenhuma diferença se pode assinalar nestas páginas, supostamente

pertencentes a duas edições distintas.

Seguindo esta linha de pensamento, não podemos deixar de considerar

como segunda edição do Verdadeiro Método de Estudar a contrafacção

estampada, cerca de 1751, na oficina tipográfica do Padre Doutor Manuel de

18

Santa Marta Teixeira, a partir de um exemplar dado como impresso em

Valensa, por Antonio Balle [1ª edição B]. Manteve-se a mesma fausse-adresse,

mas alterou-se a data de impressão de 1746 para 1747. Na edição-pirata, de

que se fizeram cerca de oitocentos exemplares, segundo as declarações

prestadas pelo próprio Padre Manuel de Santa Marta Teixeira perante o tribunal

da Inquisição,9 no tomo primeiro, o caderno de abertura tem, tal como o

exemplar pirateado, doze páginas, sendo oito preenchidas com a carta-

dedicatória do pseudo-impressor António Balle aos Padres da Companhia de

Jesus do Reino de Portugal.

O impressor-falsificador não manifestou a menor preocupação em fazer

uma imitação perfeita da edição original, e é evidente a diferença de qualidade

gráfica entre as duas edições: as gravuras reproduzidas na portada da edição

original foram substituídas por ornatos tipográficos em fundo-de-lâmpada; os

ornamentos xilográficos que marcam o final do texto das diferentes Cartas

foram retirados ou substituídos também por ornatos tipográficos em fundo-de-

lâmpada; as capitulares ornamentadas, que assinalam o início do texto das

diversas Cartas na edição-princeps, passaram a simples letras maiúsculas. E

nem sequer se respeitou a mesma divisão de texto por página, sendo

consideravelmente diferente o número de páginas na edição original (tomo

primeiro – XII + 322 + V; tomo segundo – IV + 300 + II) e na contrafacção (tomo

primeiro – XII - 264; tomo segundo – IV + 243 + 1), assim como são distintas as

dimensões dos próprios livros (edição original – 109 mm x 163 mm;

contrafacção – 125 mm x 180 mm).

No decurso do processo inquisitorial que lhe foi movido, o Padre Doutor

Manuel de Santa Marta Teixeira, questionado directamente sobre as razões

que o levaram a imprimir clandestinamente o Verdadeiro Método de Estudar,

justificou, desta forma, o seu procedimento:

E que também mandara dar ao prelo sem as ditas licenças os tomos do Novo Método de Estudar, que lhe parece seria o número de oitocentos, a qual impressão mandou fazer por ver a grande estimação que tinham nesta Corte, e que os Estrangeiros vendiam alguns por alto preço e se querer, por este modo, utilizar do lucro e produto deles, sem que tivesse outro algum fim mais do que o que acaba de dizer.10

9 A.N.T.T., Inquisição de Lisboa, processo 2638. 10 A.N.T.T., Inquisição de Lisboa, processo nº 2638.

19

Não nos custa aceitar esta explicação, e afastamos a hipótese de o padre

loio se ter envolvido na reimpressão do Verdadeiro Método de Estudar por

perfilhar as ideias de Verney, pois o seu compositor, Manuel Soares Vivas,

declarou perante os Inquisidores, em Abril de 1753, que imprimira também

clandestinamente alguns folhetos a contestar o Verdadeiro Método, por ordem

do dono da oficina:

[...] que assistindo ele confitente [Manuel Soares Vivas] na Imprensa do Doutor Manuel de Santa Marta Teixeira [...], na qual tinha o ofício de compositor, se imprimiram na mesma imprensa sem licenças do Santo-Ofício as obras seguintes: Novo Método de Estudar, a que anda junto um papel com o título de Retrato de Mortecor e Resposta a este, e já todos tinham sido primeira vez impressos não sabe onde.11

A polémica que se acendeu após a publicação do Verdadeiro Método de

Estudar entre apoiantes e impugnadores do Barbadinho, e que durou anos,

ficou marcada por uma batalha de folhetos impressos clandestinamente. O

Prof. Banha de Andrade, em Vernei e a Cultura do seu Tempo,12 estudou

pormenorizadamente a questão, repôs a verdade, identificou, na maior parte

dos casos, os verdadeiros impressores, pelo que se nos afigura desnecessário

alongar este trabalho repetindo as suas palavras. Limitamo-nos, assim, a

reproduzir o quadro-síntese dos folhetos da polémica elaborado por aquele

investigador, onde se apresenta, para além do título da obra, o nome do editor

que figura no seu rosto ou cólofon e o nome do verdadeiro impressor.13

11 A.N.T.T., Inquisição de Lisboa, processo nº 523. 12 Em trabalhos anteriores, Banha de Andrade dedicou, também, particular atenção aos folhetos da

polémica verneiana, nomeadamente em «Bibliografia da Polémica Verneiana». Brotéria, Lisboa, vol. XLIX, (Agosto-Set. 1949), pp. 210-232 e em «Edições Clandestinas do Verdadeiro Método de Estudar e Folhetos da Polémica». Filosofia. Lisboa, Ano VIII, nº 30 (2º trim. de 1961), pp. 132-141.

13 Cf. ANDRADE, António Alberto de. Ob. cit., pp. 456-457. No quadro, devido certamente a gralhas tipográficas, encontram-se algumas imprecisões, que assinalamos com algarismos e nos permitimos rectificar: 1. Gennaro e Vincenzo Muzio; 2. Miguel Rodrigues; 3. Miguel Rodrigues, Lisboa. Na página seguinte: 4. Francisco da Silva; 5. Generoso Salomão; 6. Miguel Rodrigues; 7. Generoso Salomão; 8. Miguel Menescal da Costa; 9. Miguel Menescal da Costa.

20

Editor (rosto ou cólofon) Verdadeiro editor Verdadeiro Método de Estudar 1ª ed.

Nápoles, 1746

Genaro e Vicenzo1 Muzio, Nápoles, 1746

Verdadeiro Método de Estudar 2ª ed.

António Balle, Valensa, 1746

Genaro e Vicenzo1 Muzio, Nápoles, 1746

Verdadeiro Método de Estudar 3ª ed.

António Balle, Valensa, 1746

Convento dos Loios, Lisboa, 1751 (?)

Reflexões Apologéticas 1ª ed.

Franc. Luís Ameno, Lx., 1748

Franc. Luís Ameno, Lisboa

Reflexões Apologéticas 2ª ed.

Franc. Luís Ameno, Lx., 1748

O mesmo?

Reflexões Apologéticas 3ª ed.

Franc. Luís Ameno, Lx., 1748

O mesmo?

Reflexões Apologéticas 4ª ed.

António Balle, Valença, 1748

Convento dos Loios?

Resposta às Reflexões 2ª ed.

António Balle, Valença, 1748

Generoso Salomão, Roma

Retrato de Morte-cor

Imprenta de António Bucca-ferro, Sevilha, 1749

Lisboa, ?

Retrato de Morte-cor 2ª ed.

Imprenta de António Bucca-ferro, Sevilha, 1749

Convento dos Loios

Carta de um Filólogo de Espanha

Madrid, 1749

Generoso Salomão, Roma

Parecer do Dr. Apolónio

Of. Garcia Onorato, Salaman-ca, 1750

Generoso Salomão, Roma

Parecer do Dr. Apolónio 2ª ed.

(Sem qualquer indicação)

Convento dos Loios?

Conversação Familiar

António Balle, 1750

Lisboa, (?), 1751

Ilustração crítica

Manuel Rodrigues,2 Lx., 1751

António Balle, Valença3

Carta de um amigo (de Pereira Figueiredo)

...............................................

Paris, 1750 a 1752

Contestação (José Caetano)

Francisco da Silva, Lisboa, 1751

Carlos da Silva,4 Lisboa

Iluminação Apologética

...............................................

Manuel da Silva, 1751-52

Diálogo Jocosério

António Balle, Valença, 1751

Lisboa

Grosseria da Iluminação

António Balle, Valença, 1752

Lisboa

Balança Intelectual

Manuel da Silva, Lisboa, 1752

Manuel da Silva, Lisboa

Carta Apologética Pedro Ferreira, Lisboa, 1752 Pedro Ferreira, Lisboa Advertências críticas

António Simões, Coimbra, 1752

António Simões, Coimbra

Advertências ao Impressor

...............................................

Salomão Generoso,5 Roma

Discurso Apologético

Coimbra, 1752

Coimbra, 1752

21

Mercúrio Filosófico

Martinho Veith, Augusta, 1752

Manuel da Silva, Lisboa

Palinódia Manifesta

António Buccaferro, Sevilha, 1752

Lisboa (?)

Novo Método da Gramática

Miguel Rodrigues, Lisboa, 1752 e 53

Manuel Rodrigues,6 Lisboa

Novo Método ou Arte das Necessidades

Imprenta de Rodarte Catana. Sevilha, 1752

Coimbra

Furfur Logicae Verneianae

Haeredes de Martinez, Pam-pelone, 1752

Manuel da Silva, Lisboa,

Última Resposta

Sevilha

Salomão Generoso,7 Roma 1752

Cartas em que se dá notícia

Manuel Menescal da Costa,8 Lisboa, 1753

Manuel Menescal da Costa9

Defensa do Novo Método da Gram. Latina

Miguel Rodrigues, Lisboa, 1754

Miguel Rodrigues, Lisboa.

Mercúrio Gramatical

Martinho Veith, Augusta, 1753

Manuel da Silva, Lisboa, 1753

Progresso da Academia

...............................................

Lisboa (?)

Anti-prólogo crítico

Miguel Manescal da Costa, 1753

Miguel Manescal da Costa

Juízo Gramatical

Lisboa, 1754

Lisboa (?)

Segunda audiência gramatical

Lisboa, 1755

Lisboa (?)

Carta Exortatória

...............................................

Amesterdão, 1754 (ou 53)

Carta Apologética

Francisco Luís Ameno, Lisboa, 1754

Francisco Luís Ameno, Lisboa.

Defensa do Novo Método de Gramática Latina

Miguel Rodrigues, Lisboa, 1754

Miguel Rodrigues, Lisboa

Carta de hum Velho

Lisboa, 1755

Lisboa (?)

Resposta Compulsória

(1755)

Lisboa (?)

Discursos Gramaticais

Lisboa, 1756

Lisboa (?)

Alvarista defendido

Lisboa, 1757

Lisboa (?)

Podemos, no entanto, acrescentar um dado novo às descobertas de

Banha de Andrade. O impressor lisboeta José da Silva da Natividade declarou

perante o tribunal da Inquisição, em 12 de Julho de 1753, que fora o

responsável pela impressão clandestina do Diálogo Jocosério ... e Grosseria da

Iluminação..., obras dadas como impressas em Valensa, por Antonio Balle, em

1751 e 1752 respectivamente. As suas declarações são do seguinte teor:

22

[...] e declara que ainda depois de se ter vindo apresentar segunda vez nesta Mesa continuou a delinquir no mesmo crime de dar ao prelo, na sua oficina, vários escritos sem preceder licença alguma do Santo Ofício e se lembra especificamente que depois das duas apresentações e de assinar na mesa do Santo Ofício um termo para não imprimir papel algum sem licenças com efeito imprimiu os seguintes: Diálogo Jocosério, obra em prosa que ocupou na impressão dez ou onze folhas e tratava da defesa de vários papéis e entende foi composto pelo Doutor fulano da Nóbrega, médico, familiar do Santo Ofício, morador à rua de São Vicente de Fora, o qual lhe mandou imprimir e com ele confitente ajustou a dita impressão por pouco maior preço do costumado e ao mesmo entregou ele confitente perto de quatrocentas cópias, não deixando em seu poder mais de quatro ou cinco de propina. Mais outro papel composto pelo mesmo Doutor Nóbrega a favor dos Padres do Espírito Santo, de cujo título não está lembrado, composto por quatro ou cinco folhas e dele entregou impressas ao dito seu autor perto de um cento de cópias.14

Confirma-se, assim, de fonte segura, que o autor de Diálogo Jocosério e

de Grosseria da Iluminação é o Doutor António Isidoro da Nóbrega, e fica-se a

saber que o verdadeiro Antonio Balle destas espécies é o impressor lisbonense

José da Silva da Natividade.

14 A.N.T.T., Inquisição de Lisboa, processo nº 2630.