Viagem na irrealidade cotidiana

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    Voltando neste livro ao gênero e assunto que o consagraram antes mesmo do grande sucesso de O nome da rosa, Umberto Eco focaliza uma 

    variadíssima gama de assuntos, que compreende entre outros os orixás do 

    candomblé, as questões filosóficas, a ecologia, a deterioração dos meios de comunicação de massa e o problema da segurança nos dias de 

    hoje. Esses temas são comentados do ponto de vista da semiologia, para a qual tudo é 

    comunicação: Eco procura ver não apenas as coisas em si, mas também o que querem dizer, 

    o que comunicam. E o faz numa linguagem viva, com aguda percepção do detalhe 

    revelador, com fino senso de humor e uma ironia que muitas vezes se transforma em 

    mordacidade.

     De Umberto Eco leia também:

    O nome da rosa

    ISBN 85-209-0436-X

    9  788520   ' 90436?1

    EDITORA

    NOVA

    FRONTEIRA

    SEMPRE

    UM BOM

    LIVRO

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    Umberto

    I Eco I

    VIAGEM NA IRREALIDADECOTIDIANA

     Do mesmo autor de O NOME DA ROSA. A Televisão, a Ecologia, a Religião, a Política, o Esporte, o Cinema, os problemas da atualidade, 

     segundo o maior teórico da Comunicação.

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    Titulo original:VIAGGIO NELLAIRREALITÃ QUOTIDIANA

    © Grupo Editorialc Fabbri-Bompiani, Sonzogno, Etas S.p.A. Milão,Dalla periferia delTimpero, 1977

    II costume di casa, 19737 anni di desiderio, 1983

    Direitos adquiridos para a Hngua portuguesa pelaEDITORA NOVA FRONTEIRA S/A

    Rua Bambina, 25 - Botafogo - CEP 22.2S1 - Tel.: 286-7822Endereço telegráfico: NEOFRONT

    Rio de Janeiro - RJ

    Revisão:

    UMBERTO FIGUEIREDO PINTOTIZZIANA GlORGINI

    CIP-Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    Eco, Umberto. 1932 -

    E22v Viagem na Irrealidade Cotidiana / Umberto Eco; tradução deAurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade — Rio deJaneiro: Nova Fronteira. 1984

    Tradução de: Viaggio Nella Irrealitá Quotidiana

    I. Ensaios italianos 1. Titulo II. Série

    CDD — 85484-0463 CDU — 850-4

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    SUMÁRIO

    I. VIAGEM PELA HIPER-REALIDADE, 7

    As fortalezas da solidão, 9  Os presépios de Satanás, 19  

    . Os castelos encantados, 30  Os mosteiros da salvação, 41  A cidade dos autômatos, 51  Ecologia 1984 e a Coca-Cola tornada carne, 61 

    II. A NOVA IDADE MÉDIA, 73

    Projeto de Apocalipse, 75  Projeto alternativo de Idade Média, 77Crise da Pax  norte-americana, 80  A vietnamização do território, 82  A deterioração ecológica, 86  

    O neonomadismo, 87  

    A Insecuritas, 88  Os vagantes, 89  A Auctoritas, 91  As formas do pensamento, 93  A arte como bricolage, 95  Os mosteiros, 98  

    A  transição permanente, 99 

    III. OS DEUSES DO SUBSOLO, 101

    A  mística de Planète, 103  O sagrado não é uma moda, 110  Os suicidas do templo, 117 

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    A NOVA IDADE MÉDIA

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    Recentemente, e de muitos lados, começaram a falar denossa época como de uma nova Idade Média. O problema ésaber se se trata de uma profecia ou de uma constatação.Em outros termos: já entramos na Nova Idade Média ou,

    como se expressou Roberto Vacca num seu inquietante livro,“haverá uma Idade Média próxima e vindoura?” A tese deVacca refere-se à degradação dos grandes sistemas típicos daera tecnológica; demasiado vastos e complexos para seremcoordenados por uma autoridade central e para serem controlados, mesmo individualmente, por um aparelho empresarial eficiente, estão fadados ao colapso e, por um jogo deinterações recíprocas, a produzir um recuo de toda a civili

    zação industrial. Vejamos de novo rapidamente a hipótesemais apocalíptica que Vacca concebe, numa espécie de “roteiro” futurível aparentemente bastante persuasivo.

    /. Projeto de apocalipse 

    Um dia nos Estados Unidos a coincidência de um engarrafamento rodoviário e de uma paralisação do tráfego ferroviário impedirá o pessoal substitutivo de atingir um grandeaeroporto. Vencidos pelo estresse, os operadores não-substi-tuídos provocam a colisão entre dois quadrirreatores fazendocom que caiam em cima de um fio elétrico de alta tensão, cujacarga, repartida por outros fios já sobrecarregados, provocaum blecaute como aquele que Nova Iorque conheceu háalguns anos. Só que desta vez é mais radical e dura vá

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    rios dias. Como está nevando e as estradas ficam bloqueadas, os automóveis provocam monstruosos congestionamentos; nos escritórios acendem-se fogueiras para esquentar e irrompem incêndios que os bombeiros não conseguem atingir e debelar. A rede telefônica fica bloqueada pelo impacto de cinqüenta milhões de quarteirões que tentam se contatar telefonicamente. Têm início marchas na nevecom mortos ao longo da estrada.

    Privados de abastecimentos de qualquer gênero, osandarilhos procuram se apoderar de abrigos e mercadorias,entram em ação as dezenas de milhões de armas de fogovendidas nos Estados Unidos, as forças armadas assumem

    todo o poder, mas são vítimas, elas também, da paralisiageral. Supermercados são saqueados, nas casas acabam asreservas de velas, sobe o número de mortos pelo frio, pelafome e por inanição nos hospitais. Quando, com toda a dificuldade, a normalidade for restabelecida após algumas semanas, milhões de cadáveres espalhados pela cidade e pelocampo começarão a propagar epidemias, repropondo flagelos

    de dimensões semelhantes às da peste negra que no séculoXIV destruiu dois terços da população européia. Surgirão psicoses “de contágio” e será imposto um novo macarthismo bem mais cruento que o anterior. A vida política, entrandoem crise, se subdividirá numa série de subsistemas autônomose independentes do poder central, com milícias mercenáriase administração autônoma da justiça. Enquanto a crise foraumentando, os que conseguirão superá-la mais facilmente

    serão os habitantes das áreas subdesenvolvidas, já preparados para viver em condições elementares de vida e de competição, e ocorrerão grandes migrações com fusões e contaminações raciais, importações e difusões de novas ideologias.Uma vez declinada a força das leis, destruídos os cadastros,a propriedade se apoiará apenas no direito de usucapião; e,

     por outro lado, a rápida decadência terá reduzido as cidadesa um monte de ruínas alternadas com casas habitáveis, e ha

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     bitadas por quem delas se apodera, enquanto pequenas autoridades locais poderão manter um certo poder, constituindorecintos e pequenas fortificações. A essa altura já se estaráem plena estrutura feudal, as alianças entre poderes locais

    serão firmadas sobre o compromisso e não sobre a lei, as relações individuais estarão fundadas na agressão, na aliança

     por amizade ou comunhão de interesses, renascerão costumes elementares de hospitalidade para o andarilho. Diantede tal perspectiva, diz-nos Vacca, não resta senão pensar em

     planificar o equivalente das comunidades monásticas que,numa tamanha decadência, desde logo sejam treinadas para

    manter vivas e para transmitir os conhecimentos técnicos ecientíficos úteis para o advento de uma nova renascença.Como organizar esses conhecimentos, como impedir que secorrompam no processo de transmissão, ou que certas comunidades os utilizem para fins de poder privado, esses eoutros problemas constituem os capítulos finais (e em grande

     parte discutíveis) do A Idade Média próxima e vindoura. 

    Mas a questão (como se dizia no início) é outra. Trata-se,antes de mais nada, de decidir se o roteiro de Vacca é apocalíptico ou a enfatização de algo que já existe. E, em segundolugar, de libertar a noção de Idade Média da aura negativacom que a cingiu uma certa publicística cultural de inspiraçãorenascentista. Tentemos então compreender o que se entende

     por Idade Média.

    2. Projeto alternativo de Idade Média 

    Por enquanto percebemos que o nome define dois momentos históricos bastante distintos, um que vai da quedado Império Romano do Ocidente até o Milênio, e é uma

    época de crise, decadência, massacres violentos de povose choque de culturas; o outro vai do Milênio àquilo que naescola nos definem como Humanismo, e não por acaso muitos historiadores estrangeiros já o consideram uma época de

     

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    que finge aquilo que depois será obrigada a executar deverdade.

    O que é necessário para se fazer uma boa Idade Média?Antes de mais nada uma grande Paz que se desfolha, umgrande poder estatal internacional que unificara o mundocomo língua, costumes, ideologias, religiões, arte e tecnologiae que a certa altura, por sua própria complexidade ingovernável, se desmorona. Desmorona-se porque nas fronteirasinvestem os “bárbaros”, que não são necessariamente incultos, mas trazem novos costumes e novas visões de mundo.Esses bárbaros podem penetrar com violência, porque pretendem se apropriar de uma riqueza que lhes fora negada;ou podem insinuar-se no corpo social e cultural da Pax   dominante, pondo em circulação novas crenças e novas perspectivas de vida. No início de sua queda o Império Romanonão estava minado pela ética cristã; já se deixara minar sozinho, acolhendo sincreticamente a cultura alexandrina e os

    cultos orientais de Mitra ou de Astarte, brincando com amagia, as novas éticas sexuais, várias esperanças e imagensde salvação. Acolheu novos componentes raciais, eliminou

     por força das circunstâncias rígidas divisões de classe, reduziua diferença entre cidadãos e não-cidadãos, entre patrícios e plebeus, conservou a divisão das riquezas mas misturou asdiferenças entre papéis sociais, nem podia proceder de modo

    diverso. Assistiu a fenômenos de aculturamentos rápidos, pôs no governo homens de raças que duzentos anos antesteriam sido julgadas inferiores, desdogmatizou muitas teolo-gias. No mesmo período o governo pode adorar deuses clássicos, os soldados Mitra e os escravos Jesus. Por instinto

     persegue-se a fé que, de longe, parece mais letal ao sistema,mas em regra uma grande tolerância repressiva permite acei

    tar tudo.O colapso da Grande Pax   (militar, civil, social e cultu

    ral ao mesmo tempo) inicia um período de crise econômicae de carência de poderes, mas é apenas uma justificável reação anticlerical a que permitiu ver as Idades das Trevas

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    como tão “obscuras”; com efeito também a alta Idade Média(e talvez mais que a Idade Média após o Milênio) foi umaépoca de incrível vitalidade intelectual, de diálogos apaixo-nantes entre civilizações bárbaras, herança romana e tem peros cristão-orientais, de viagens e encontros, com os monges irlandeses que atravessavam a Europa difundindo idéias,fazendo conferências, inventando maluquices de todo ti

     po. . . Em poucas palavras: foi ali que amadureceu o homemocidental moderno, e é nesse sentido que o modelo de umaIdade Média pode nos servir para compreender o que estáacontecendo nos nossos dias: à queda de uma grande Pax  se sucedem crises e períodos de insegurança, chocam-se ci

    vilizações diferentes e se esboça lentamente a imagem deum homem novo. Ela se tornará clara apenas mais tarde,mas os elementos fundamentais já ali estão em ebuliçãonum dramático caldeirão. Boécio, que divulga Pitágoras erelê Aristóteles, não está repetindo de memória a lição do passado, mas inventa um novo modo de fazer cultura e, fingindo ser o último dos romanos, efetivamente constitui o primeiro gabinete de estudos das cortes bárbaras.

    3. Crise da   Pax norte-americana 

    Que estejamos vivendo uma crise da Pax   norte-americana já é agora lugar-comum de uma historiografia do presente. Seria pueril tornar rígidos numa imagem precisa os“novos bárbaros”, também pelo peso negativo e despistadorque o termo “bárbaro” sempre tem aos nossos ouvidos:difícil dizer se são os chineses ou os povos do TerceiroMundo, ou a geração da contestação; ou os imigrados meridionais que em Turim estão criando um novo Piemonteque nunca existira; e se forçam as fronteiras (onde estão)ou já trabalham no interior do corpo social. Por outro lado,quem eram os bárbaros na época da decadência imperial, os

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    hunos, os godos ou os povos asiáticos e africanos que envolviam o centro do Império em seus comércios e religiões?A única coisa que de preciso estava desaparecendo era oRomano, assim como hoje desaparece o Homem Liberal,empresário de língua anglo-saxônica, que tinha tido em Ro-  binson Crusoé   o seu poema primitivo e em Max Weber oseu Virgílio.

     Nos vilarejos dos subúrbios, o executivo médio de cabelos à escovinha personifica ainda o romano de antiga cepa,mas seu filho já se veste com cabelos de indiano, ponchode mexicano, toca citara asiática, lê textos budistas ou libelosleninistas e consegue quase sempre (como acontecia no baixoImpério) conciliar Hesse, o zodíaco, a alquimia, o pensamento de Mao, a maconha e as técnicas de guerrilha urbana;

     basta ler Do It   de Jerry Rubin ou pensar nos programas daAlternate University, que há dois anos, em Nova Iorque,organizava cursos sobre Marx, a economia cubana e a astrologia. Por outro lado, também esse sobrevivente romano,nos momentos de tédio, pratica a troca de casais e põe emcrise o modelo da família puritana.

    Inserido numa grande Corporation   (grande sistema emdegradação), o romano de cabelos à escovinha já está, defato, vivendo a descentralização absoluta e a crise do poder(ou dos poderes) central reduzido a uma ficção (como já

    era o Império) e a um sistema de princípios cada vez maisabstratos. Veja-se o impressionante ensaio de Furio Colom bo (“Poder, grupos e conflito na sociedade neofeudal” ) ',do qual emerge a contemporaneidade de uma situação tipicamente neomedieval. Todos sabemos, sem necessidade defazer sociologia, o quanto em nossa época as decisões dogoverno são quase sempre formais em relação a decisões

    aparentemente periféricas de grandes centros econômicos;'Cf. A. A. V. V.,  Documenti su il nuovo medioevo,  Bompiani, 1973, em que aparece também o presente ensaio.

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    os quais não por acaso começam a constituir o seu Sifar particular, talvez usando as forças daquele público, e suas universidades, chegando a resultados de eficiência particular,em relação ao Desmoronamento do Distribuidor Central deTreinamento. Em que proporção, afinal, a política do Pentá

    gono ou do FBI  possa proceder de modo absolutamente inde pendente daquela da Casa Branca é notícia de todos os dias.

    “O avanço do poder tecnológico esvaziou as instituições e abandonou o centro da estrutura social”, observaColombo, e o poder “se organiza abertamente fora da áreacentral e média do corpo social, rumo a uma zona livre dosdeveres e responsabilidades gerais, revelando aberta e re

     pentinamente o caráter acessório das instituições” .

    Os apelos não são mais em termos de hierarquia oufunção codificada, mas de prestígio e pressão efetiva; Colombo cita o caso da rebelião nas prisões de Nova Iorqueem outubro de 1970, em que a autoridade institucional, o prefeito Lindsay, pôde agir apenas mediante convites aoequilíbrio, mas a transação acontecia antes entre prisioneirose serventes, e depois entre jornalistas e autoridades carcerárias, com a mediação efetiva da televisão.

    4. A vietnamizaçao do território 

     No jogo desses interesses privados que são autogeridose chegam a manter compromissos e equilíbrios recíprocos,servidos por polícias particulares e mercenárias, com suas próprias centrais torreadas de recepção e defesa, assiste-se

    àquilo que Colombo chama de uma progressiva vietnamiza-ção dos territórios, freqüentados por novas companhias mercenárias (quem são os minutemen  e os black panters ?). Experimente aterrissar em Nova Iorque com um avião da t w a :entrará num mundo absolutamente privado, uma catedralautogerida que não tem nada a ver com o terminal da Pan-

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    american. O poder central, que sofre a pressão da t w a demodo particularmente intenso, fornece à companhia um serviço de vistos e alfândega mais rápido que às outras. Voan

    do pela t w a , entra-se nos Estados Unidos em cinco minutosmarcados no relógio, por outras companhias você gastaránisso uma hora. Tudo depende do feudatário voador a quemestará ligado e os missi dominici   (que também são investidos do poder de condenação e absolvição ideológica) tirarãode alguns excomunhões que para outros serão muito maisdogmaticamente irrevogáveis.

     Não é preciso ir aos Estados Unidos para notar que semodificou o aspecto exterior da sala central de um banco deMilão ou de Turim, e para conferir, tentando entrar no palácio da r a i na Avenida Mazzini em Roma, qual complexo decontroles, geridos por polícias internas, é necessário atravessar antes de poder pôr os pés num castelo mais fortificado

    que os outros. O exemplo da fortificação e pré-militarizaçãodas fábricas, também aqui, está em nível de experiência cotidiana. A essa altura o policial em serviço é útil e inútil,reforça a presença simbólica do poder, que por vezes podese tornar um braço secular efetivo; mas quase sempre bastamas forças mercenárias internas. Quando, então, a fortificaçãoherética (pense-se na Estatal de Milão, com seu território

    livre guarnecido de privilégios “de fato”) se torna embaraçosa, então o poder central intervém para restabelecer aautoridade da Imagem do Estado; mas na Faculdade deArquitetura em Milão, transformada em cidadela, o podercentral interveio somente quando senhores feudais de variada extração, indústrias, jornais, d c urbana, decidiram quea cidadela inimiga estava sendo expugnada. Somente então

    o poder central percebeu ou fingiu acreditar que a situaçãoera ilegal há anos, e acusou o conselho da faculdade. Até quea pressão de feudatários mais ricos não se tornasse insustentável, aquele pequeno feudo de templários extravagantes,ou aquele mosteiro de monges dissolutos, foi abandonado à

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    seguindo o mito da natureza, retiram-se para fora da cidade,no bairro-jardim com supermercados autônomos, dando vidaa outros tipos de microssociedade.

    Sacco também retoma o tema da vietnamização dos territórios, teatros de tensões permanentes, por causa da ruptura do consenso: entre as respostas do poder, a tendência adescentralizar as grandes universidades (uma espécie de“desfolhamento” estudantil) para evitar perigosas concentrações de massa. Nesse quadro de guerra civil permanente, dominado por um choque de minorias opostas e sem cen

    tro, as cidades estarão preparadas cada vez mais para setornarem aquilo que já podemos encontrar em algumas localidades latino-americanas, habituadas à guerrilha “onde a fragmentação do corpo social é bem simbolizada pelo fato de o

     porteiro dos prédios de apartamentos estar habitualmentearmado de metralhadora. Nessas mesmas cidades os edifícios

     públicos parecem de algum modo fortalezas, como os palácios

     presidenciais, e são circundados por uma espécie de barragemem terra que os protege dos ataques das bazucas”. Naturalmente o nosso paralelo medieval deve ser arti

    culado de modo a não temer as imagens simetricamente opostas. Porque enquanto a outra Idade Média via como intimamente ligados decréscimo de população, abandono dascidades e carestia dos campos, dificuldade de comunicação,

    deterioração das estradas e das postas romanas, crise docontrole central, hoje parece acontecer (referente e subjacente à crise dos poderes centrais) o fenômeno oposto: oexcesso de população que interage com o excesso de comunicação e transportes, tornando as cidades inabitáveis não

     por destruição e abandono, mas por paroxismo de atividade,a hera que corrói as grandes construções que desabam é

    substituída agora pela poluição atmosférica e pelo acúmulode lixo que deturpa e torna irrespiráveis as grandes construções que se renovam; a cidade fica cheia de imigrantes,mas esvaziada de seus velhos habitantes que a usam paratrabalhar, correndo depois aos subúrbios (cada vez mais for-

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    tifiçados após a chacina de Bel Air). Manhattan prepara-se para ser habitada apenas por negros, Turim por meridionais,enquanto nas colinas e nas planícies circundantes brotamcastelos aristocráticos, ligados a etiquetas de boa vizinhança,

    confiança mútua e grandes ocasiões cerimoniais de encontro.

    5. A deterioração ecológica 

    Por outro lado a cidade grande, que atualmente não éinvadida por bárbaros beligerantes e devastada por incêndios,sofre de escassez de água, crise de energia elétrica disponível,

     paralisia do tráfego. Ao tentar afetar nas bases a convivênciatecnológica, Vacca lembra a existência de grupos under-   ground   que conclamam à exploração de todas as redes elétricas, usando simultaneamente a maior quantidade possívelde eletrodomésticos, e a refrescar a casa deixando a geladeiraaberta. Vacca observa, como cientista, que, deixando a geladeira aberta, a temperatura não diminui, mas aumenta; porém os filósofos pagãos tinham objeções bem mais graves

     para opor às teorias sexuais ou econômicas dos primeiroscristãos, e todavia o problema não era tanto ver se as teoriaseram eficientes quanto, ao contrário, o de reprimir, alémde um certo limite, o abstencionismo e a recusa de colaboração. Os professores do Castelnuovo são incriminados porque não registrar as ausências à assembléia eqüivale a nãofazer sacrifícios aos deuses. O poder receia o relaxamentodos cerimoniais e a falta de respeito formal às institui

    ções, onde vê o desejo de sabotagem da ordem tradicionale de inserção de novos costumes.

    A alta Idade Média caracteriza-se também por uma forte decadência tecnológica e pelo empobrecimento dos cam

     pos. Escasseia o ferro e um camponês que deixa cair no poçoa única podadeira que tem deve esperar a intervenção milagrosa de um santo que a faça reaparecer (como testemunhamas lendas), do contrário não tem como viver. O pavoroso

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    decréscimo de população aumenta apenas depois do Milênio justamente graças à introdução do plantio do feijão, lentilhae fava, de alto poder nutritivo, sem o que a Europa teriamorrido de fraqueza orgânica (a relação entre feijões e re

    nascimento cultural é decisiva). O paralelo, hoje, se inverte para ser restabelecido: um enorme desenvolvimento tecnológico provoca bloqueios e desarranjos e a expansão de umaindústria alimentícia converte-se na produção de alimentosvenenosos e cancerígenos.

    Por outro lado, a sociedade de consumo no mais altonível não produz objetos perfeitos, mas engenhocas facil

    mente deterioráveis (se quiser uma boa faca, compre-a naÁfrica; nos Estados Unidos, depois do primeiro uso, ela sequebra) e a civilização tecnológica está se tornando uma sociedade de objetos usados e inúteis; enquanto nos camposassistimos a desmatamentos, abandono dos cultivos, poluição hídrica, atmosférica e vegetal, desaparecimento de espécies animais e assim por diante, de modo que, se não osfeijões, pelo menos uma injeção de elementos genuínos se

    torna cada vez mais urgente.

    6. O neonomadismo 

    O fato de que hoje se vá à lua, sejam transmitidas com petições esportivas via satélite e se inventem novas substân

    cias coincide muito bem com a outra face, quase sempreignorada, da Idade Média a cavalo entre os dois milênios,que é definida como a época de uma primeira importantíssima revolução industrial; no decorrer de três séculos sãoinventados os estribos e arreios que aumentam o rendimentodo cavalo, o timão posterior articulado que permite aos navios navegar à bolina contra o vento, o moinho de vento.

     Não parece, mas são poucas as oportunidades que um homem tem em sua vida de ver Pavia, e muitas as de ir pararem Santiago de Compostela ou em Jerusalém. A Europa

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    medieval era sulcada de estradas de peregrinação (enumeradas em seus bons guias turísticos que citavam as igrejas abadais como hoje são citados os motéis e os Hilton) comonossos céus são sulcados por linhas aéreas que tornam mais

    fácil ir de Roma a Nova Iorque que de Spoleto a Roma.Alguém poderia objetar que a sociedade seminômademedieval era uma sociedade de viagem insegura; partir significava fazer testamento (pense-se na partida do velho AnneVercos em UAnnonce faite à Marie   de Claudel), e viajarsignificava encontrar salteadores, bandos de andarilhos, feiras. Mas a idéia da viagem moderna como uma obra-primade conforto e segurança já naufragou faz tempo, e tomar um

     jato atravessando os vários controles eletrônicos e as investigações contra o desvio de rota restabelece de modo semelhante o antigo sentimento de insegurança aventureira destinado

     presumivelmente a aumentar.

    7. A  Insecurítas

    “Insegurança” é uma palavra-chave: é preciso inseriressa sensação no quadro das aflições milenaristas ou “quiliás-ticas” : o mundo está no fim, uma catástrofe final acabarácom o milênio. Os famosos horrores do ano Mil são umalenda, como já foi demonstrado, mas que durante todo oséculo X serpenteava o medo do fim, isso também já foi demonstrado (exceto que no término do milênio a psicose játinha passado). No que se refere aos nossos dias, os temas

    recorrentes da catástrofe atômica e da catástrofe ecológica(além do presente estudo) bastam para indicar vigorosas correntes apocalípticas. Como corretivo utópico havia naquelaépoca a idéia da “renovado imperii” e há hoje a idéia bastante modulável de “revolução”, ambas com sólidas pers

     pectivas reais, salvo defasagens finais em relação ao projeto(não será o Império a se renovar, mas haverá o renascimentodas comunas e as monarquias nacionais a disciplinar a inse

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    gurança). Mas a insegurança não é apenas “histórica”, é psicológica, incorpora-se na relação homem-paisagem, ho-mem-sociedade. Perambulava-se pelos bosques à noite vendo-os apinhados de presenças maléficas, não era conveniente

    aventurar-se tão facilmente fora do povoado, andava-se armado; condição a que chega o habitante de Nova Iorque, quenão mais põe os pés depois das cinco da tarde no CentralPark, ou presta atenção para não pegar um metrô que o deixe, por engano, no Harlem, nem toma o metrô sozinhodepois da meia-noite, e mesmo antes, se é uma mulher.Entretanto, ao mesmo tempo que em toda a parte as forças policiais começam a reprimir os saques mediante massacresindiscriminados de bons e maus, instaura-se a prática doroubo revolucionário e do seqüestro de embaixador, assimcomo um cardeal com seu séquito podia ser capturado por umRobin Hood qualquer e ser trocado por um par de alegrescompanheiros da floresta, destinados à forca ou à roda.Último retoque no quadro da insegurança coletiva, o fatode que como naquela época, e diferentemente dos usos ins

    taurados pelos Estados modernos liberais, a guerra não émais declarada (a não ser no fim do conflito, vide índia ePaquistão) e nunca se sabe se se está em estado de beligerância ou não. De resto, que se vá a Livorno, a Verona oua Malta para perceber que tropas do Império aquartelam-senos vários territórios nacionais como presídio contínuo, etrata-se de exércitos plurilíngües com comandantes continua

    mente tentados a usar essa força para guerrear (ou fazer política) por conta própria.

    Os vagantes 

     Nesses amplos territórios dominados pela insecuritas, vagam bandos de marginalizados, místicos ou aventureiros.Afora que na crise geral das universidades e no plano de

     bolsas de estudo descoordenadas, os estudantes vão se re

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    constituindo como vagantes, e recorrem sempre e somentea mestres não-permanentes, rejeitando os próprios “precep-tores naturais”, temos de um lado bandos de hippies   —verdadeiras ordens mendicantes — que vivem da caridade

     pública em busca de uma felicidade mística (droga ou Graçadivina faz pouca diferença, mesmo porque várias religiõesnão-cristãs despontam entre as dobras da felicidade química).As populações locais não os aceitam e perseguem-nos, equando for expulso de todas as casas da juventude escrevao irmão das flores que aqui reina perfeita alegria. Comona Idade Média quase sempre o limite entre o místico e oladrão é mínimo e Manson outra coisa não é senão ummonge que se excedeu, como seus ancestrais, nos ritos satânicos (por outro lado também quando o homem de poderfaz sombra ao governo legítimo acaba envolvido, como fezFilipe, o Belo, com os Templários, no escândalo dos bailados verdes). Excitação mística e rito diabólico estão muito

     próximos, e Gilles de Rais, queimado vivo por ter devoradomuitas criancinhas, era companheiro de armas de Joanad’Arc, guerrilheira carismática como Che. Outras formas

    afins àquelas das ordens mendicantes são, ao contrário, reivindicadas, em outra chave, por grupos politizados, e o mo-ralismo da União dos marxistas-leninistas tem raízes monásticas, com seu apelo à pobreza, à austeridade dos costumese “ao serviço do povo”.

    Se os paralelos parecem desordenados, pense-se na enorme diferença, sob a aparente cobertura religiosa, que se interpunha entre monges contemplativos e indolentes, que no

    recesso do mosteiro viviam fazendo das suas, franciscanosativos e populistas, dominicanos doutrinários e intransigentes, todos juntos porém se marginalizando por vontade pró

     pria e de modos diferentes do contexto social corrente,desprezado como decadente, diabólico, fonte de neuroses,de “alienação”. Essas sociedades de renovadores, divididasentre uma furiosa atividade prática a serviço dos desamparados e uma violenta discussão teológica, são dilaceradas por 

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    recíprocas acusações de heresia e pelo ricochete contínuo deexcomunhões. Cada grupo fabrica os próprios dissidentes eos próprios heresiarcas, os ataques que se dirigiam uns aosoutros dominicanos e franciscanos não são diferentes daque

    les que se dirigem trotskistas e stalinistas — nem esse éo indício, ceticamente sublinhado, de uma desordem semobjetivo, mas, ao contrário, é o indício de uma sociedade emque novas forças buscam novas imagens de vida coletiva edescobrem não poder impô-las a não ser através da luta contra os “sistemas” estabelecidos, praticando uma conscientee rigorosa intolerância teórica e prática.

    9. A  Auctoritas

    Há um aspecto da civilização medieval que uma ópticaleiga, iluminista e liberal nos levou, por excesso de obrigatória polêmica, a deformar e a julgar mal, é a prática derecurso à

    auctoritas.  O estudioso medieval finge sempre não

    ter inventado nada e cita continuamente uma autoridade precedente. Serão os padres da Igreja oriental, será Agostinho,serão Aristóteles ou as Sagradas Escrituras ou estudiosos deapenas um século antes, mas nunca nada de novo deve sersustentado a não ser fazendo com que apareça como que já dito por outrem que nos precedeu. Se pensarmos bem,é justamente o contrário daquilo que se fará de Descartesaté o nosso século, em que o filósofo ou o cientista que valem alguma coisa são exatamente aqueles que trouxeramalgo de novo (e o mesmo, do Romantismo e quem sabe atédo Maneirismo em diante, vale para o artista). O medievalnão, faz exatamente o contrário. Desse modo o discursocultural medieval parece, de fora, um enorme monólogo semvariações, porque todos se preocupam em usar a mesma lin

    guagem, as mesmas citações, os mesmos argumentos, o mesmo léxico, e parece ao ouvinte que está de fora que se estádizendo sempre a mesma coisa, exatamente como acontece

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    a quem chega a uma assembléia estudantil, lê a imprensados grupinhos extraparlamentares ou os escritos da revolução cultural.

    De fato, o estudioso de assuntos medievais sabe reconhecer diferenças fundamentais assim como o político, hoje,

    nada com desenvoltura individuando diferenças e desvios acada intervenção e sabendo classificar imediatamente seuinterlocutor neste ou naquele engajamento. É que o medievalsabe muito bem que da auctoritas  pode-se fazer o que bem seentende: “A auctoritas   tem um nariz de cera que pode serdeformado como se quiser”, diz Alain de Lille no séculoXII. Mas já antes Bernard de Chartres dissera: “Nós somoscomo que anões em cima dos ombros de gigantes”; os gi

    gantes são as autoridades indiscutíveis, muito mais lúcidase enxergando mais longe que nós, mas nós, pequenos quesomos, quando nos sustentamos em cima deles enxergamosmais longe. Havia, então, de um lado a consciência de estarinovando e continuando, mas a inovação devia ser apoiadanum corpus   cultural que garantisse de uma parte algumas

     persuasões indiscutíveis e de outra uma linguagem comum.O que não constituía apenas (embora quase sempre acabas

    se se tornando) dogmatismo, mas era o modo como o medieval reagia à desordem e à dissipação cultural da baixa ro-manidade, ao cadinho de idéias, religiões, promessas elinguagens do mundo helenístico, em que cada um se encontrava só com seu tesouro de sabedoria. A primeira coisa afazer era reconstruir uma temática, uma retórica e umléxico comum, nos quais se reconhecer, do contrário nãose podia mais comunicar e (o que interessava) não se podia

    lançar uma ponte entre o intelectual e o povo — coisa queo medieval, paternalmente e por conta própria, fazia, aocontrário do intelectual grego e romano.

    Ora, o comportamento dos grupos políticos juvenishoje é exatamente do mesmo tipo, representa a reação à dissipação da originalidade romântico-idealista, e ao pluralismodas perspectivas liberais, vistas como capas ideológicas que

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    ocultam, sob a pátina da diferença de opiniões e de métodos,a maciça unidade do domínio econômico. A pesquisa dostextos sagrados (sejam eles Marx ou Mao, Guevara ou RosaLuxemburg) tem antes de mais nada a seguinte função: res

    tabelecer uma base de discurso comum, um corpo de autoridades reconhecíveis sobre as quais instaurar o jogo das diferenças e das propostas em conflito. Tudo isso com umahumildade completamente medieval e exatamente oposta aoespírito moderno, burguês e renascentista; não tem mais im

     portância a personalidade de quem propõe, e a proposta nãodeve passar como descoberta individual, mas como fruto de

    uma decisão coletiva, sempre e rigorosamente anônima. Desse modo uma reunião em assembléia se desenvolve comouma quaestio disputata:   a qual dava ao forasteiro a impressão de um jogo monótono e bizantino, enquanto nela eramdebatidos não só os grandes problemas do destino do homem, mas as questões concernentes à propriedade, à distribuição da riqueza, às relações com o Príncipe, ou à natu

    reza dos corpos terrestres em movimento e dos corpos celestes imóveis.

    10. As formas do pensamento 

    Mudando rapidamente (no que diz respeito a hoje) de

    cenário, mas sem nos deslocarmos um centímetro no quediz respeito ao paralelo medieval, eis-nos numa aula universitária onde Chomsky recorta gramaticalmente nossos enunciados em elementos atômicos que se ramificam em dois, ouJakobson reduz a espaços binários as emissões fonológicas,ou Lévi-Strauss estrutura em jogos antinômicos a vida pa-rental e a textura dos mitos, ou Roland Barthes lê Balzac,

    Sade e Inácio de Loyola como o medieval lia Virgílio, noencalço de ilusões opostas e simétricas. Nada está mais próximo do jogo intelectual medieval que a lógica estruturalis-ta, como nada está mais próximo dela, no fim das contas,

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    que o formalismo da lógica e da ciência física e matemáticacontemporânea. Que no próprio território antigo possam serencontrados paralelos com o debate dialético dos políticosou com a descrição matematicizante da ciência não devesurpreender ninguém, justamente porque estamos comparan

    do uma realidade atual a um modelo condensado: mas trata-se, em ambos os casos, de dois modos de enfrentar arealidade que não encontram paralelos satisfatórios na culturamoderna burguesa e que dependem ambos de um projeto dereconstituição, diante de um mundo cuja imagem oficial foi perdida ou rejeitada.

    O político argumenta com sutileza, apoiado pela autoridade, para fundamentar em bases teóricas uma práxis de

    formação; o cientista tenta restituir uma forma, através declassificações e distinções, a um universo cultural explodido(como o greco-romano) por excesso de originalidade e pelaconfluência conflitante de contribuições demasiado díspares,Oriente e Ocidente, magia, religião e direito, poesia, medicina ou física. Trata-se de mostrar que existem abscissas do

     pensamento que permitem recuperar modernos e primitivossob a égide de uma mesma lógica. Os excessos formalistas

    e a tentação anti-histórica do estruturalismo são os mesmosdas discussões escolásticas, assim como a tensão pragmáticae modificadora dos revolucionários, que então eram chamados reformadores ou hereges tout court,  deve (como devia)apoiar-se em cima de furiosas diatribes teóricas e cada nuan-ça teórica implicava uma práxis diferente. Até as discussõesentre São Bernardo, partidário de uma arte sem imagens,depurada e rigorosa, e Suger, partidário da catedral suntuosa

    e pululante de comunicações figurativas, têm correspondência, em variados níveis e chaves, com a oposição entre cons-trutivismo soviético e realismo socialista, entre abstratos eneobarrocos, entre teóricos puristas da comunicação conceituai e partidários mcluhanianos da aldeia global da comunicação visual.

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    Quando se passa porém aos paralelos culturais e artísticos, o panorama se torna muito mais complexo. De umlado temos uma correspondência bastante perfeita entre duasépocas que de diferentes modos, com semelhantes utopiaseducativas e com semelhante mascaramento ideológico deum projeto paternalista de direção das consciências, tentam preencher a diferença entre cultura culta e cultura popular, passando através da comunicação visual. Ambas são épocascuja elite selecionada raciocina sobre textos escritos commentalidade alfabética, mas depois traduz em imagens os

    dados essenciais do saber e as estruturas portadoras daideologia dominante. Civilização da visão, a Idade Média,onde a catedral é o grande livro de pedra, e de fato é omanifesto publicitário, o vídeo televisual, o místico almanaque que deve contar e explicar tudo, os povos da terra,as artes e as profissões, os dias do ano, as estações da se-meadura e da colheita, os mistérios da fé, as anedotas da

    história sagrada e profana e a vida dos santos (grandes modelos de comportamento, como hoje os astros e os cantores,elite sem poder político, como explicaria Francesco Alberoni,mas com imenso poder carismático).

    Junto a essa maciça empresa de cultura popular desenvolve-se o trabalho de composição e colagem que a cultura culta exerce sobre os detritos da cultura passada. Pegue-

    se uma caixa mágica de Cornell ou Armand, uma colagemde Ernst, uma máquina inútil de Munari ou de Tinguely, ese estará numa paisagem que não tem nada a ver com Rafaelou Canova, mas que tem muitíssimo a ver com o gosto estético medieval. Na poesia são centões e adivinhas, os kenning  irlandeses, os acrósticos, as tramas verbais de citações múlti

     plas que lembram Pound e Sanguineti; os jogos etimológicos

    desvairados de Virgilio de Bigorre e Isidoro de Sevilha, quelembram tanto Joyce (Joyce sabia disso), os exercícios decomposição temporais dos tratados de poética, que parecem

    11. A arte como   bricolage

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    um programa para Godard, e sobretudo o gosto da coleçãoe do inventário. Que então se concretizava nos tesourosdos príncipes ou das catedrais, onde eram recolhidos indistintamente uma lasca da cruz de Jesus, um ovo achado dentro de outro ovo, um chifre de unicórnio, o anel de noivadode São José, o crânio de São João aos doze anos de idade(.sic ) .3

    E dominava uma total indistinção entre objeto estéticoe objeto mecânico (um autômato em forma de galo, artisticamente cinzelado, é presenteado por Harun al-Rachid a Carlos Magno, jóia cinêtica se é que existiram), e não havia diferença entre objeto de “criação” e objeto de curiosidade,

    com uma indistinção entre artesanal e artístico, entre “múlti plo” e exemplar único e sobretudo entre trouvaille   curiosa(o lustre liberty   como o dente de baleia) e obra de arte. Otodo dominado pelo senso da cor berrante e da luz como elemento físico de prazer, e não importa que lá houvesse vasosde ouro incrustados de topázios postos para refletir os raiosde sol refratados por um vitral de igreja, e aqui haja a orgiaem multimídias de um Electric Circus qualquer, com pro

     jeções polaroid cambiantes e lembrando a natureza da água.

    3Objetos contidos no tesouro de Carlos IV da Boêmia:  o crânio de Sto. Adalberto, a espada de Sto. Estêvão, um espinho da coroa de Jesus, lascas da Cruz, toalha da Última Ceia, um dente de Sta. Margarida, uma lasca de osso de S. Vital, uma costela de Sta. Sofia, o queixo de Sto. Eubano,  costela de baleia, presa de elefante, cajado de Moisés, roupas da Virgem. Objetos do tesouro do duque de Berry:  um elefante empalhado, um basi- lisco, maná encontrado no deserto, chifre de unicórnio, cocos, aliança de 

    casamento de S. José.  Descrição de uma amostra de  pop art e  nouveau réalisme: boneca estripada com cabeças de outras bonecas à mostra, um par de óculos com olhos pintados por cima, cruz incrustada de garrafas de Coca-Cola e uma luzinha no meio, retrato de Marilyn Monroe multiplicado, ampliação de quadrinhos de Dick Tracy, cadeira elétrica, mesa de pingue-pongue com bolas de gesso, pedaços de automóveis comprimidos, capacete de motociclista pintado a óleo, pilha elétrica de bronze sobre pedestal, caixa com tampinhas de garrafas, mesa vertical com prato, faca, maço de Gitanes e chuveiro pendente sobre paisagem a óleo.

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    Dizia Huizinga que para compreender o gosto estéticomedieval é necessário pensar no tipo de reação que experimenta diante do objeto curioso e precioso um burguês estarrecido. Huizinga pensava em termos de sensibilidade estética pós-romântica; hoje veremos que esse tipo de reação éo mesmo que sente um jovem em relação a um  pôster   querepresenta um dinossauro ou uma motocicleta, ou a uma caixamágica transistorizada em que rodam feixes luminosos, ameio caminho entre o modelinho tecnológico e a promessade ficção científica, com componentes de ourivesaria bár bara.

    Arte não sistemática mas cumulativa e compositiva a

    nossa como a medieval, hoje como então coexiste o experimento elitista refinado com a grande empresa de divulgação

     popular (a relação miniatura-catedral é a mesma que há entreo Museum of Modern Art e Hollywood), com intercâmbiose empréstimos recíprocos e contínuos: e o aparente bizanti-nismo, o gosto tresloucado pela coleção, o elenco, o assern-  blage,  o amontoamento de coisas diferentes é devido à ne

    cessidade de decompor e reavaliar os detritos de um mundo precedente, talvez harmônico, mas já agora obsoleto, paraser vivido, diria Sanguineti, como uma Palus Putredinis, quefora ultrapassada e esquecida. Enquanto Fellini e Antonioniexperimentam seus Infernos e Pasolini seus Decamerões (eo Orlando de Ronconi não é absolutamente uma festa renascentista, mas um mistério medieval na praça e para aarraia-miúda), alguém tenta desesperadamente salvar a cultura antiga, achando-se investido de um mandato intelectual,e se acumulam as enciclopédias, os digestos, as mostras eletrônicas da informação com que Vacca contava para transmitir aos pósteros um tesouro de saber que está arriscado ase dissolver na catástrofe.

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    12. Os mosteiros 

     Nada é mais semelhante a um mosteiro (perdido nocampo, cercado e rodeado por hordas bárbaras e estranhas,habitado por monges que não têm nada a ver com o mundo

    e desenvolvem suas pesquisas particulares) que um campusuniversitário norte-americano. Às vezes o Príncipe chama umdesses monges e faz dele seu conselheiro, mandando-o emembaixada a Catai; e esse passa do claustro ao século comindiferença, tornando-se homem de poder e tentando governar o mundo com a mesma asséptica perfeição com que coleciona seus textos gregos. Chame-se Gerbert d’Aurillacou MacNamara, Bernard de Clairvaux ou Kissinger, pode

    ser homem de paz ou de guerra (como Eisenhower, que vence algumas batalhas e em seguida se retira para um mosteiro,tornando-se diretor de college,  só para depois voltar aoserviço do Império quando a multidão o chama como heróicarismático).

    Mas é de duvidar se pertencerá a esses centros monásticos a tarefa de registrar, conservar e transmitir o fundoda cultura passada, talvez mediante complicados aparelhos

    eletrônicos (como sugere Vacca) que a restituam aos poucos,estimulando sua reconstrução sem nunca revelar a fundo todos os segredos. A outra Idade Média produziu no fim umRenascimento que se divertia em fazer arqueologia, masde fato a Idade Média não fez obra de conservação sistemática, mas sim de destruição casual e conservação desordenada:

     perdeu manuscritos essenciais e salvou outros completamente irrisórios, raspou poemas maravilhosos para escrever em

    cima adivinhas ou preces, falsificou os textos sagrados inter- polando passagens e assim procedendo escrevia os “ seus livros”. A Idade Média inventa a sociedade comunal sem tertido notícias precisas sobre a  pólis  grega, chega à China acreditando encontrar homens de um pé só ou com a boca na barriga, chega quem sabe à América antes de Colombo usan

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    do a astronomia de Ptolomeu e a geografia de Eratóste-nes. . .

    13. A transição permanente 

    Dessa nossa nova Idade Média já se disse que será umaépoca de “transição permanente” na qual serão adotados novos métodos de adaptação: o problema não será tanto o deconservar cientificamente o passado quanto o de elaborar hi

     póteses sobre o aproveitamento da desordem, entrando nalógica da conflitualidade. Nascerá, como já está nascendo,uma cultura da readaptação contínua, nutrida de utopia. Foiassim que o homem medieval inventou a universidade, coma mesma desinibição com que os clérigos vagantes de hoje aestão destruindo; e talvez transformando. A Idade Médiaconservou a seu modo a herança do passado não para hibernação, mas para contínua retraduçao e reutilização, foi umaimensa operação de bricolage   em equilíbrio instável entrenostalgia, esperança e desespero.

    Sob sua aparência imobilista e dogmática foi, paradoxalmente, um momento de “revolução cultural”. O processotodo foi naturalmente caracterizado por pestes e massacres,intolerância e morte. Ninguém diz que a nova Idade Médiarepresenta uma perspectiva de todo alegre. Como diziam os

    chineses para maldizer alguém: “Que você possa viver numaépoca interessante.”

    1972