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31 Física na Escola, v. 5, n. 2, 2004 Prêmio Nobel de Física 2004 Corria a década de 1960, e, de repente, as notícias a respeito de novas partículas tornou- se tão parte do cotidiano que os jornais estranhavam a falta da descoberta de uma partícula diferente em uma dada semana. Deste então a proposta da existência de quarks já era seriamente considerada pelos cientistas, mas uma questão permeceu por décadas: por quê léptons não sentiam a interação forte? A resposta a essa questão foi esclarecida pela descoberta da liberdade assintótica e rendeu a seus propositores o Prêmio Nobel de Física de 2004. T rês interações da natureza, a forte, a fraca e a eletromag- nética, são descritas por uma teoria chamada de Modelo Padrão (MP), desenvolvido ao longo das últimas quatro décadas. A quarta interação, a gravitacional, é descrita pela Teoria da Relatividade Geral formulada por Albert Einstein em 1915. Uma característica das inte- rações eletromagnéticas e gravita- cionais, que não é compartilhada pelas outras duas, é que são de longo alcance. Isso sig- nifica que elas são “sentidas” a qual- quer distância das fontes: a carga elé- trica na primeira e a massa, a energia e a pressão na se- gunda. Mas, quanto mais longe das fontes, menor o seu efeito. Isso é conseqüência da bem conhecida lei do inverso do quadrado dos respectivos poten- ciais. Os “blocos fundamentais” com os quais se constrói o MP são os quarks e os léptons. Essas partículas foram descobertas, ao longo das últimas décadas, em diversos labo- ratórios do mundo. Os primeiros quarks, u (up), d (down) e s (strange) foram propostos no começo dos anos 60 para classificar os hádrons Vicente Pleitez Instituto de Física Teórica/UNESP observados experimentalmente (o próton e o nêutron são os mais conhecidos, mas há centenas deles). Contudo, no fim dessa década, experimentos no acelerador de Stan- ford, nos Estados Unidos, onde elé- trons de alta energia eram espalha- dos por prótons, indicavam que estes eram constituídos por objetos puntiformes e “quase” livres, ou seja, não interagiam entre si como o fazem as partículas com cargas elétricas ou objetos com massa. Esse comportamento tinha sido previsto por J.D. Bjorken, e R. Feymann cha- mou esses objetos de partons. Os fí- sicos experimen- tais J.I. Friedman, H.W. Kendall e R.E. Taylor ganharam o prêmio Nobel de Física de 1990 por esta descoberta. Nos anos seguintes tornou-se claro que alguns partons eram os quarks, mas que havia outros como, por exemplo, os glúons (as partículas mediadoras da interação forte). Assim, começava a se vislum- brar o fato de que os prótons, nêutrons e todos os outros hádrons são compostos principalmente de quarks e glúons. Por outro lado, os léptons, como o elétron, não têm estrutura e não sentem a interação Quarks foram propostos no começo dos anos 60 para classificar os hádrons observados experimental- mente. Contudo, no fim dessa década, experimentos indicavam que estes eram constituídos por objetos puntiformes e “quase” livres, ou seja, não interagiam entre si como o fazem as partículas com cargas elétricas ou objetos com massa

Vicente Pleitez Instituto de Física Teórica/UNESP · Física na Escola, v. 5, n. 2, 2004 Prêmio Nobel de Física 2004 31 aaaaaaaaaaaaaaaaaaaa aaaaaaaaaaaaaaaaaaaa Corria a década

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31Física na Escola, v. 5, n. 2, 2004 Prêmio Nobel de Física 2004

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Corria a década de 1960, e, de repente, asnotícias a respeito de novas partículas tornou-se tão parte do cotidiano que os jornaisestranhavam a falta da descoberta de umapartícula diferente em uma dada semana. Desteentão a proposta da existência de quarks já eraseriamente considerada pelos cientistas, masuma questão permeceu por décadas: por quêléptons não sentiam a interação forte? Aresposta a essa questão foi esclarecida peladescoberta da liberdade assintótica e rendeu aseus propositores o Prêmio Nobel de Física de2004.

Três interações da natureza, aforte, a fraca e a eletromag-nética, são descritas por uma

teoria chamada de Modelo Padrão(MP), desenvolvido ao longo dasúltimas quatro décadas. A quartainteração, a gravitacional, é descritapela Teoria da Relatividade Geralformulada por Albert Einstein em1915. Uma característica das inte-rações eletromagnéticas e gravita-cionais, que não é compartilhadapelas outras duas,é que são de longoalcance. Isso sig-nifica que elas são“sentidas” a qual-quer distância dasfontes: a carga elé-trica na primeira ea massa, a energiae a pressão na se-gunda. Mas,quanto mais longedas fontes, menoro seu efeito. Isso éconseqüência dabem conhecida lei do inverso doquadrado dos respectivos poten-ciais.

Os “blocos fundamentais” comos quais se constrói o MP são osquarks e os léptons. Essas partículasforam descobertas, ao longo dasúltimas décadas, em diversos labo-ratórios do mundo. Os primeirosquarks, u (up), d (down) e s (strange)foram propostos no começo dosanos 60 para classificar os hádrons

Vicente PleitezInstituto de Física Teórica/UNESP

observados experimentalmente (opróton e o nêutron são os maisconhecidos, mas há centenas deles).Contudo, no fim dessa década,experimentos no acelerador de Stan-ford, nos Estados Unidos, onde elé-trons de alta energia eram espalha-dos por prótons, indicavam queestes eram constituídos por objetospuntiformes e “quase” livres, ouseja, não interagiam entre si comoo fazem as partículas com cargas

elétricas ou objetoscom massa. Essecomportamentotinha sido previstopor J.D. Bjorken, eR. Feymann cha-mou esses objetosde partons. Os fí-sicos experimen-tais J.I. Friedman,H.W. Kendall e R.E.Taylor ganharam oprêmio Nobel deFísica de 1990 poresta descoberta.

Nos anos seguintes tornou-se claroque alguns partons eram os quarks,mas que havia outros como, porexemplo, os glúons (as partículasmediadoras da interação forte).

Assim, começava a se vislum-brar o fato de que os prótons,nêutrons e todos os outros hádronssão compostos principalmente dequarks e glúons. Por outro lado, osléptons, como o elétron, não têmestrutura e não sentem a interação

Quarks foram propostos nocomeço dos anos 60 para

classificar os hádronsobservados experimental-mente. Contudo, no fim

dessa década, experimentosindicavam que estes eramconstituídos por objetospuntiformes e “quase”

livres, ou seja, nãointeragiam entre si como o

fazem as partículas comcargas elétricas ou objetos

com massa

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forte. Para se chegar a essa conclu-são foi muito importante a desco-berta da liberdade assintótica porDavid J. Gross da Universidade dePrinceton, e seu então estudante dedoutorado Frank Wilczek e, inde-pendentemente, porH. David Politzer daUniversidade deHarvard. Por isso,os três comparti-lharam o prêmioNobel de Física de2004. Esta pro-priedade, aparente-mente contraditó-ria, estabelece que quanto maispróximos os quarks estão uns dosoutros, mais fraca é a força entreeles. Quando estão extremamentepróximos comportam-se como par-tículas livres (daí a expressão liber-dade assintótica).

A baixas energias típicas daFísica Atômica (keV)1 e Nuclear(MeV), a interação eletromagnéticaé descrita de maneira muito precisapela Eletrodinâmica Quântica ouQED pela sigla em inglês. Esta teoriadescreve a interação dos fótons comas partículas eletricamente carre-gadas, como o elétron. A intensida-de desta interação é caracterizadapelo valor da carga elétrica elemen-tar do elétron: -e, ou a do próton+e. A carga elétrica, portanto,determina quão forte é essa intera-ção, e é definida como a constantede acoplamento da QED. Desde osanos 30, sabia-se que quando serealizavam cálculos mais precisos deseções de choque de espalhamentoentre partículas carregadas, obti-nham-se resultados inconsistentes:infinitos! Os problemas principaisapareciam quando a energia eramuito alta, que corresponde, segun-do as leis da Física Quântica, a dis-tâncias pequenas. Uma boa teoriadeveria produzir resultados numé-ricos, de maneira a comparar comos dados experimentais. Esse proble-ma foi resolvido em 1949 quandoum procedimento chamado de

renormalização foi proposto. Segun-do este esquema, re-definindoapropriadamente alguns parâme-tros, como a carga e a massa do elé-tron, é possível obter resultadosfinitos que coincidem com grande

precisão com osresultados experi-mentais. O preçoa pagar é que acarga e a massa“renormalizadas”são agora parâ-metros livres, quedevem ser deter-minados experi-

mentalmente. A altas energias, oupequenas distâncias, a massa do elé-tron pode ser desprezada. Isso pa-receria indicar que nessa situação ateoria não teria nenhuma escala demassa ou energia. Contudo, oformalismo da renormalização im-plica a necessidade de introduziruma escala de energia arbitrária,isto é, o seu valor não importa doponto de vista físico. Isso quer dizerque o cálculo não deve depender daescolha que se faça para essa escalade energia. Matematicamente, essainvariância sob a escolha dessaescala de energia é descrita pelachamada equação do grupo de renor-malização intro-duzida em 1953por A. Petermann eE. Stückelberg etambém, em 1954,pelos físicos Mur-ray Gell-Mann eFrancis Low.

Que conse-qüências têm tudoisso? Bom, acontece que apareceuma dependência do valor da cargaelétrica com a distância ou, o que éo mesmo, com a energia. Lembre-mos que no sistema de unidadesinternacional (SI), a carga do elétrontem o valor |e| ≈ 1.602 x 10-19 C.No entanto, já no fim dos anos 40,alguns físicos, tinham mostradoque efeitos de natureza quântica erelativística provocam o cresci-

mento do valor desta carga quandose aumentava a energia, ou equi-valentemente, a distância, de ondemedimos a carga, era encurtada. Porexemplo, definindo a chamada cons-tante de estrutura fina, α, (em uni-dades apropriadas com h/2π = c =1) como

, (1)

obtém-se um valor experimentalaproximado de 1/137 que é consis-tente com o valor da carga elétrica,e, mencionado acima. Contudo, essevalor corresponde a distâncias gran-des (baixas energias) típicas damaioria dos fenômenos físicos ma-croscópicos, como os encontradosnos aparelhos eletrodomésticos, dis-positivos opto-eletrônicos etc. Noentanto, para distâncias tão pe-quenas como aquelas atingidas nacolisão de elétrons e pósitrons (aantipartícula do elétron), o valor deα encontra-se próximo de 1/128,diferente do valor acima. Basi-camente, isso quer dizer que se me-dimos a carga do elétron longe dele(o que faz a maioria dos físicos eengenheiros) a carga tem um valor,que é aquele citado nos livros. Masse medimos a carga do elétron “bem

perto dele” me-dimos um valormaior.

No inicio dosanos 70, alguns fí-sicos conheciamuma classe de teo-rias em que erapossível definiruma carga equiva-

lente àquela da teoria QED, que aocontrário da carga elétrica, diminui-ria com a distância. Foram, no en-tanto, os ganhadores do Nobel desteano que criaram uma teoria destetipo, a Cromodinâmica Quântica(QCD na sigla em inglês), que des-creve a interação entre quarks eglúons, responsável por manterestas partículas confinadas no in-terior dos hádrons. Esta teoria

Se medimos a carga doelétron longe dele (o quefaz a maioria dos físicos eengenheiros) a carga tem

um valor, que é aquelecitado nos livros. Mas se

medimos a carga do elétron“bem perto dele” medimos

um valor maior

Quanto mais próximos osquarks estão uns dos outros,

mais fraca é a força entreeles. Quando estão extre-

mamente próximos compor-tam-se como partículaslivres (daí a expressãoliberdade assintótica)

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pressupõe que os quarks e glúonspossuam uma carga de cor (naausência de outra nomenclatura).Daí o nome de in-teração colorida.

Podemos de-finir neste casoum parâmetro gs

onde o índice in-dica o tipo de for-ça considerada, nocaso strong (for-te), similar à cargaelétrica, e uma constante adimen-sional αs, correspondente à a daQED definida na Eq. (1), como

. (2)

Se a uma energia baixa, porexemplo, alguns MeV, αs tem umvalor grande, e nesse caso nãopodemos usar o mesmo método daQED, ou seja, cálculos pertur-bativos, mas numa energia maior,da ordem de GeV, típica de grandesaceleradores, o valor de αs é bemmenor. Na Fig. 1, apresentamosvalores experimentais de αs, definidana Eq. (2), em função da energia quecoincidem com a previsão da QCD.Essa é a essência da liberdade assin-tótica: a interação forte é realmenteforte - a baixas energias, tornando-se menos intensa, ou mais “fraca”a altas energias. A característicachave da QCD quea diferencia da QEDé que os glúonsinteragem entre si.Isso não aconteceno caso da inte-ração eletro-magnética porqueos fótons, os me-diadores da inte-ração, são neutrose, portanto não “vêem” uns aos ou-tros. É justamente a interação en-tre os glúons que propicia umcomportamento da QCD em opo-sição à QED para grandes energias.

Foi a descoberta da liberdade as-sintótica que tornou possível a con-

Figura 2. Comportamento esperado dasconstantes de acoplamento das três inte-rações em função da energia (Fonte: http://www.aventuradasparticulas.ift.unesp.br/frames.html).

Sugestões para leituraM.A. Moreira, Partículas e Interações, este

número.F. Ostermann e C. Cavalcanti, FnE v. 2, n. 1,

maio (2001)M.J.G. Veltman, Facts and Mysteries in El-

ementary Particle Physics (World Scien-tific, Singapore, 2003).

A página no Museu eletrônico Nobel http://nobelprize.org/index.html contémdetalhes de todos os prêmios Nobel.Vale a pena a consulta regularmente.

firmação experimental da QCDcomo a teoria que descreve asinterações entre quarks e glúons e

que é responsávelpela ligação destesnos hádrons. A bai-xas energias, ondeessas interações sãofortes, o estudo dosprocessos envolvi-dos ainda é pesqui-sa de fronteira daFísica Nuclear e das

partículas elementares. Uma pro-priedade complementar à liberdadeassintótica é o confinamento dosquarks e glúons. Eles nunca foramobservados isoladamente e supõe-se que, como a baixas energias ainteração colorida é muito intensa,o que levaria ao confinamento dequarks e glúons. Até o presente, nãoexiste prova rigorosa do confina-mento.

Finalmente, devemos mencionarque foi a descoberta da liberdade as-sintótica que levou a se propor asTeorias de Grande Unificação, nasquais as três interações, forte, fracae eletromagnética seriam descritaspor uma mesma teoria com apenasuma constante de acoplamento. NaFig. 2, pode-se apreciar a evoluçãoda constante de acoplamento. Eladiminui no caso da interação forte(liberdade assintótica) enquanto que

aumenta para ainteração fraca eeletromagnética.Esse comporta-mento permitiriaestimar a energiaonde as três cons-tantes seriamiguais. Até o mo-mento não se co-nhece qual seria

essa teoria “unificada” mas existemvárias candidatas. Confirmar qualdelas é a correta é uma tarefa paraos físicos nas próximas décadas.

Nota1eV (elétron-Volt) é a importante

Figura 1. Comportamento da constantede acoplamento αs em função da energia.Os pontos correspondem aos resultadosexperimentais e as linhas aos valoresprevistos pela QCD (Fonte: http://pdg.lbl.gov/2004/reviews/qcdrpp.pdf).

A descoberta da liberdadeassintótica que levou a se

propor as Teorias de GrandeUnificação, nas quais as três

interações, forte, fraca eeletromagnética seriam

descritas por uma mesmateoria com apenas uma

constante de acoplamento

Foi a descoberta daliberdade assintótica quetornou possível a confir-mação experimental daQCD como a teoria que

descreve as interações entrequarks e glúons e que éresponsável pela ligação

destes nos hádrons

unidade de energia da Física Atô-mica. Corresponde à energia adqui-rida por um elétron ao atravessaruma diferença de potencial de 1 Volt(1 eV = 1,6 x 10-19 J. 1 keV = 1000eV, 1 MeV = 106 eV.