Violência e Pobreza no Cinema Brasileiro

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/8/2019 Violncia e Pobreza no Cinema Brasileiro

    1/16

    VIOLNCIA E POBREZANO CINEMA BRASILEIRO RECENTE

    Reflexes sobre a idia de espetculo1

    Esther Hamburger

    RESUMO

    O artigo analisa obras recentes de fico ou documentrio que

    acentuaram a presena visual de cidados pobres,negros, moradores de favelas e bairros de periferia no cinema e na tele-

    viso brasileiros.Ao trazer esse universo ateno pblica,esses filmes intensificaram e estimularam uma disputa pelo

    controle da visualidade,pela definio de que assuntos e personagens ganharo expresso audiovisual,como e onde, ele-mento estratgico na definio da ordem (ou desordem) contempornea.

    PALAVRAS-CHAVE: periferia; cinema brasileiro; pobreza; violncia.

    SUMMARY

    The article analyses recent works of fiction or non-fiction that

    made more visible the visual presence of the poor, black, dwellers of slums and neighborhoods in the periphery in Brazil-

    ian television and cinema.When they bring the subject to public attention,these movies have intensified and stimulated

    a quarrel for the control of the visuality, for the definition of which subjects and characters will have audiovisual expres-

    sion,how and where,which is an strategic element in the definition of contemporary order (or disorder).

    KEYWORDS:periphery;Brazilian cinema; poverty; violence.

    113

    [1] Verso de trabalho apresentado

    na conferncia Annual Visible Evi-

    dence,na Cinemateca Brasileira,em

    agosto de 2006.Este artigo produto

    de projetos em andamento com finan-

    ciamentos CNPq e Fapesp, realizados

    em ativa interlocuo com Ananda

    Stucker,mestranda,e Guilherme Cer-

    queira Csar,graduando,ambos alu-

    nos da ECA-USP. Agradeo tambmaos membros do grupo Imagem e

    Cincias Sociais do CEM/ CEBRAP.

    NOVOS ESTUDOS 78 JULHO 2007

    Eu sou um mito.Foi a imprensa que fez esse mito.Eu sou o monstro que vocs criaram .

    Mrcio Amaro de Oliveira,o traficante Marcinho VP,aos jornalistas que acompanharam sua priso.

    O crescimento da violncia entre foras estatais e

    paraestatais assusta.Nos anos 1990,uma srie de massacres impetra-dos por foras policiais ou de polcia paralela marcou o processo deredemocratizao.Nos anos 2000,o crime organizado passa a desen-

    volver aes de guerrilha urbana como arrastes,toques de recolher,ataques a nibus e delegacias policiais.

  • 8/8/2019 Violncia e Pobreza no Cinema Brasileiro

    2/16

    [2] Uma coletnea recente,States of

    violence, editada por Fernando Coro-nil e Julie Skurski, traz um panoramada violncia praticada pelo Estado em

    diversos pases.

    Esse tipo de violncia no prerrogativa brasileira.H uma profu-so de estudos sobre os mais diferentes casos de violncia estatal e degrupos organizados na Colmbia, Venezuela, Mxico, para no falardo Oriente Mdio,talvez o maior barril de plvora do novo milnio2.

    H relativamente pouca ateno, no entanto,ao elemento que nosinteressa:o papel que a visualidade especificamente a visualidadetelevisiva e cinematogrfica desempenha nessas dinmicas.Na fron-teira das cincias sociais com os estudos de cinema e televiso,a idia especular sobre os jogos simultaneamente polticos e estticos que vodefinindo os contornos do universo do que merece se tornar visvel.

    Filmes to diversos comoNotcias de uma guerra particular(1999),Palace II(2000), Cidade de Deus (2002), O invasor(2003), nibus 174(2003),Cidade dos homens (2003),entre outros,e recentementeFalco,

    meninos do trfico (2006), documentrio concebido e dirigido por MVBill e Celso Athayde, moradores de Cidade de Deus,so alguns exem-plos de obras de fico ou documentrio que acentuaram a presena

    visual de cidados pobres, negros, moradores de favelas e bairros deperiferia no cinema e na televiso brasileiros.Ao trazer esse universo ateno pblica, esses filmes intensificaram e estimularam o quechamo de disputa pelo controle da visualidade,pela definio de que assuntos e

    personagens ganharo expresso audiovisual,como e onde,elemento estrat-gico na definio da ordem,e/ou da desordem,contempornea.

    Nessa periferia pouco acostumada exposio, a visibilidade esti-mulou uma reao crtica contundente. A epgrafe deste texto citaMarcinho VP,personagem incgnita do filme de Joo Salles,que disseaos jornalistas que cobriam sua priso: eu sou o monstro que vocscriaram.A frase revela sensibilidade crtica para o jogo de espelhosque define personalidades mais ou menos estereotipadas e que GuyDebord, cineasta (ou anticineasta) e filsofo francs cujo livro ficouconhecido com os movimentos de maio de 1968 na Frana, definiu

    comosociedade do espetculo .Este texto levanta questes sobre a adequao do que se convencio-nou denominar sociedade do espetculo para entender aes sociaisperformticas e performances audiovisuais calcadas no real,mecanis-mos intrnsecos produo cultural contempornea.A idia discutirem que medida o conceito ajuda a compreender disputas pelo controlee apropriao dos mecanismos de produo da visualidade em situa-es de interlocuo entre sujeito e objeto,palco e platia.

    Falco,meninos do trfico, documentrio dirigido pelo rapper MV Bill

    e por seu empresrio,Celso Athayde,exibido no Fantstico em 19 demaro de 2006,chocou o pas.Gravado ao longo de anos em diversasperiferias brasileiras,o documentrio foge da expresso limpa,diretae bem-acabada que vem caracterizando a produo flmica sobre oassunto.Falco sugere,como a situao qual ele se refere,um embao.

    114 VIOLNCIA E POBREZA NO CINEMA BRASILEIRO RECENTE Esther Hamburger

  • 8/8/2019 Violncia e Pobreza no Cinema Brasileiro

    3/16

    115NOVOS ESTUDOS 78 JULHO 2007

    [3] O questionamento de Ferrz,

    rapper e escritor paulistano,no artigoAntropo(hip-hop)logia (Folha deS.Paulo, 5 de abril de 2006), emble-mtico dessa linha de argumentao.

    [4] Ver por exemplo os artigos de

    Alba Zaluar,Maria Rita Kehl e Denis

    Rosenfield, alm das entrevistas de

    Joo Moreira Salles e Eduardo Couti-

    nho, no suplemento Mais! (Folha deS.Paulo,26 de maro de 2006).A rele-vncia do cinema e dos cineastas para

    a discusso da violncia urbana se

    expressa ainda na consulta a esses e

    outros diretores nas reportagens

    sobre os ataques do PCC em maio de

    2006.

    A repercusso do filme contemplou a discusso sobre a legitimi-dade da veiculao na Rede Globo daquelas imagens,colhidas por rap-pers, produtores de canes de protesto contra a mdia,moradores daCidade de Deus, expoentes da Central nica das Favelas (Cufa)3. O

    debate girou em torno da novidade das informaes trazidas pelofilme.A oportunidade da veiculao de um filme exclusivamente sobrea violncia e a ausncia de solues para o problema foram tambmtemas de discusso4.Pouco se falou sobre o filme em si,ou sobre suainterlocuo com outros trabalhos que na TV ou no cinema romperama relativa invisibilidade que encobriu a pobreza e a violncia nos anos1970 e 1980,anos de consolidao da indstria de TV e do mercado deconsumo no Brasil. Pouco se falou das interlocues deFalco comoutras realizaes televisivas e cinematogrficas que a partir dos anos

    1990 desencadearam uma sucesso de proposies que reelaboram olugar das periferias e favelas no universo virtual do que visvel, lcusprivilegiado da sociedade contempornea.

    Falco escuro, cheio de sombras e silhuetas. Planos fechados defragmentos do corpo ajudam a criar um clima claustrofbico. Mosdisparam foguetes para alertar sobre a presena da polcia,preparam adroga ou manipulam armas.Pernas e ps se deslocam na noite,hora de

    viglia,horrio de falco.Fisionomias deformadas em primeiro plano,dissolvidas eletronicamente, produzem um efeito pictrico soturnocomo uma tela de Francis Bacon.

    O borro que domina os rostos contrasta com a nitidez remanes-cente em rgos dos sentidos como olhos e bocas.Lbios finos e afiadosem faces dissolvidas pronunciam prognsticos monstruosos:s voudescansar quando morrer,diz um garoto prematuramente exausto;seeu morrer nasce outro igual a mim,acrescenta outro menino,ciente dainsignificncia de sua individualidade,mas,ao mesmo tempo,da foraperversamente assustadora de sua pessoa, travestida de uma suposta

    permanncia inevitvel dessa infncia aberrante.Hbrido de televiso e cinema,Falco pode ser interpretado comomais um elo em uma sucesso de produes visuais que focalizaram asperiferias de diferentes formas e a partir de diferentes pontos de vista.Sabemos que no Brasil h pouco espao para documentrios gneroprincipalmente televisivo em outros pases.Canais a cabo e canais pbli-cos abrem espao bastante limitado para a difuso de documentrios.

    Gravado ao longo de anos, em vdeo digital com estrutura semi-profissional e qualidade tcnica correspondente,o documentrio que

    hoje conhecemos tem cerca de uma hora de durao. Divulgado nateleviso,o filme foi distribudo em DVD em estrutura informal,comos crditos doFantstico.A verso vendida em eventos dos quais osdiretores participam incorpora as vinheta de abertura e concluso doprincipal programa de televiso dominical do pas. como se o filme

  • 8/8/2019 Violncia e Pobreza no Cinema Brasileiro

    4/16

    [5] As verses divulgadas pela TV e

    em DVD so ligeiramente diferentes.

    Em ocasies os diretores anunciaram

    um longa-metragem, projeto que at

    o presente momento no se realizou.

    fosse o registro de uma ao que inclui a pesquisa registrada em vdeo,com os meninos nas periferias do Brasil,mas tambm a veiculao dotrabalho durante quase uma hora sem interrupes em horrio nobrena TV aberta transmisso indita pela durao,ausncia de interva-

    los e pelo fato de que o material resulta de gravao independente,edi-tada para a TV e aprovada pelos realizadores5.

    O filme comea com uma imagem fora do padro que prevalece nocorrer do trabalho. Um plano de Bill dentro de um carro em movi-mento em direo a uma estrada. Vemos a placa verde e branca daestrada sinalizando que estamos em Braslia. O realizador explica oprojeto:mostrar os meninos das periferias brasileiras a partir da pers-pectiva deles,como vtimas de uma realidade social cruel.

    A imagem ntida, iluminada pela luz do dia e de corpo inteiro de

    Bill,contrasta com o embao que envolve os irmos falces,protago-nistas de vidas sombrias, encapsuladas em aventuras na maioria das

    vezes fatais. O artista se apresenta como irmo, solidrio com osmeninos,mas ao mesmo tempo sujeito de uma trajetria diferente dadeles.Sua iniciativa de filmar e expor o universo dos meninos constriuma relao de alteridade no interior mesmo do universo dos meninosnegros moradores das periferias pobres.

    MV Bill e Celso Athayde fizeram tambm dois livros associados pesquisa que resultou no filme.Em Cabea de porco, de 2003,dividema autoria com Luiz Eduardo Soares.Falco,meninos do trfico, de 2006, assinado somente pelos dois.Os relatos em linguagem escrita acres-centam sumo aos depoimentos do filme.Como um caderno de campo,aqui os rappers investidos da funo de entrevistadores descrevemlugares, identificam cidades,deixam rolar seu prprio espanto diantedas personagens que conheceram na empreitada.

    Os autores expressam sua relao ao mesmo tempo de estranha-mento e reconhecimento do universo das periferias visitadas. No

    filme, esse estranhamento se manifesta no contraste entre a figurantida, explcita, lcita e vitoriosa de Bill e o embao que envolve osmeninos do trfico.No livro,sobretudo no primeiro,os autores reve-lam outros aspectos do universo pesquisado,trabalhando a ambigi-dade de sua posio de negros moradores de Cidade de Deus,que no

    vivem do movimento e constroem relaes de alteridade com esseuniverso ainda mais explcitas.

    A linguagem escrita permite detalhe na descrio de figuras e luga-res sem ameaar a segurana das pessoas mencionadas.H uma varie-

    dade de drogas.H uma variedade de personagens envolvidas com oprocessamento e venda dessas drogas que vai muito alm dos meni-nos retratados no filme. Famlias que trabalham juntas no negcio.Quando muitos membros da famlia esto presos,sobra uma me ouuma av a cuidar da clientela que faz fila na madrugada. Alm de envol-

    116 VIOLNCIA E POBREZA NO CINEMA BRASILEIRO RECENTE Esther Hamburger

  • 8/8/2019 Violncia e Pobreza no Cinema Brasileiro

    5/16

    [6] Merla no Planalto Central e

    Merla no Planalto, outra viso, pri-

    meiro e segundo captulos de Cabeade porco, o primeiro assinado por MV

    Bill e o segundo por Celso Athayde,expressam bem o esprito mltiplo

    que anima o livro.

    [7] Bazin, Andre. Ontologia da

    imagem fotogrfica. In: O Cinema.So Paulo:Brasiliense,1991.

    [8] Bernardet,Jean Claude. Cineas-tas e imagens do povo. So Paulo:Com-panhia das Letras,2003.

    ver meninos e homens,os relatos revelam a participao de senhoras esenhores nos negcios6.

    Nos livros emergem figuras ausentes do filme,exclusivamente vol-tado aos meninos. Aqui se revela tambm um pouco da metodologia.

    Os depoimentos foram coletados durante turns de Bill. A cada via-gem para cantar,um contato local leva a equipe a diferentes locaes,onde os apresenta a personagens em potencial. Em cada um desseslugares, o prestgio artstico de Bill facilitou a entrada. O estranha-mento que a experincia inspira nos dois entrevistadores convive comuma identificao.Em vrias ocasies, embora estranhos ao meio queesto descobrindo e descrevendo para o leitor,os realizadores se viramna mira da polcia.As descries se aproximam do relato de aventura.

    A polcia invariavelmente trata a todos, negros, jovens e pobres, na

    mesma chave.Talvez a maior crtica expressa por moradores da perife-ria,tratados pela polcia como uma s massa de bandidos em poten-cial,seja a da falsa homogeneizao do universo da periferia.Os reali-zadores culturais reagem em busca da expresso de suas diferenas.

    Em contraste com o material escrito,o material filmado selecionadopara comporFalco restringe. Ele recorta especificamente os meninos,

    vigilantes profissionais dos pontos de droga. O efeito vaselina,recurso eletrnico usado na televiso para borrar fisionomias e prote-ger a identidade de pessoas entrevistadas, foi usado exausto emFal-co para garantir o anonimato dos meninos que fazem a vigilncianoturna nas regies de trfico.Tambm no esprito de no comprome-ter os personagens entrevistados no filme,h poucas referncias espa-ciais que possibilitem a identificao de bairros e cidades.O resultado um filme sem rostos ou lugares definidos.Em certo sentido a anttesedo cinema enquanto promessa de expresso de um realismo ontol-gico,como quis Bazin,Falcose apresenta como um borro7.

    Os meninos personagens do filme expressam vises escabrosas

    do mundo,sem perspectiva de futuro,em um presente altamente ins-tvel. Esses meninos aparecem desprovidos de individualidade,pequenos cones de um estado hobbesiano que ameaa se instaurar.Sabemos pelas informaes que cercaram a exibio do filme,princi-palmente por declaraes de Bill no prprioFantstico, que dos dezes-sete meninos entrevistados,dezesseis j estavam mortos quando otrabalho foi ao ar. Mas o filme no permite distinguir cada um.Comoa escolha do singularFalco no ttulo sugere, e embora realizado porpessoas que compartilham a condio de moradores de bairro de peri-

    feria,o filme fala sobre um tipo.Aqueles meninos compartilham umofcio e uma viso de mundo sem futuro.O filme trata esse universo comum de maneira no muito diferente

    do que Jean Claude Bernardet definiu como documentrio sociol-gico8.Mas aqui no h narrador em offa pronunciar discurso explica-

    117NOVOS ESTUDOS 78 JULHO 2007

  • 8/8/2019 Violncia e Pobreza no Cinema Brasileiro

    6/16

    [9] Para comparaes entre o cinema

    novo e o cinema da retomada,ver os

    artigos de Ismail Xavier,Ferno Ramos

    e Ivana Bentes no volume The new Bra-zilian cinema, editado por Lcia Nagib(Londres: Tauris, 2003). Para a pre-

    sena da favela na histria do cinema

    brasileiro e mundial, ver RubensMachado em Os espaos de excluso

    e de violncia no cinema e na TV brasi-

    leira,conferncia proferida no evento

    As Linguagens da Violncia, pri-

    meira edio do Ciclo Cultura e Socie-

    dade, organizado pelo Consulado

    Geral da Frana, SESC e Prefeitura

    Municipal de So Paulo, no Teatro

    SESC Pompia,So Paulo,14/9/2001.

    [10] Sobre esses filmes de Nelson

    Pereira, ver Calil, Carlos Augusto.

    Introduo histria do cinema brasi-leiro mdulo I.So Paulo:InstitutoMoreira Salles, 2002; Fabris, Maria-

    rosaria.Nelson Pereira dos Santos: umolhar neo-realista. So Paulo:Edusp,1994; Bentes, Ivana. In: Nagib, Lucia

    (org.),op.cit.,pp.121-138.

    tivo e genrico sobre um outro com o qual no se confunde. Ao con-trrio,o filme pretende revelar o ponto de vista de dentro,com o qualos diretores-entrevistadores at certo ponto se identificam.

    O filme demonstra que o universo apresentado por uma srie de

    filmes recentes,produzidos e dirigidos por pessoas de fora da condi-o de classe e de raa que os realizadores compartilham com os meni-nos, no apenas existe, como est reconhecidamente espalhado paraalm das fronteiras da periferia carioca.Falcopode ser lido como a res-posta de moradores da Cidade de Deus ao filme de fico que captou eexpressou a saga dos meninos do trfico para o mundo. como se ofilme de moradores do conjunto habitacional expressasse um todo periferias urbanas do Brasil com o qual a parte Cidade de Deus se sentiu confundida.

    Vale aqui uma incurso na histria de possveis interlocuesentre diferentes tratamentos visuais da pobreza e da violncia nocinema e na televiso no Brasil. Ao contrrio da televiso, que compoucas embora talvez crescentes excees tem se concentradoem difundir verses glamorosas da vida que a sociedade de consumopermite, o cinema brasileiro, desde o incio de sua histria, abordasituaes de pobreza.

    Diferentes tratamentos estticos de temas como pobreza e violn-cia em situao urbana,especialmente em favelas,marcam transiesrelevantes entre perodos da histria do cinema brasileiro.Um roman-tismo simptico est presente nos filmes que inauguram o cinemamoderno; o cinema novo enfatiza a violncia, principalmente nocampo,mas tambm em meio urbano,em chave alegrica,como formade questionar ideologias hegemnicas,desenvolvimentistas e de con-

    vivncia pacfica. Mais recentemente, o cinema da retomada associaviolncia e pobreza em chave documental 9.

    A emergncia do cinema moderno no Brasil est umbilicalmente

    associada favela carioca. No filme de Nelson Pereira dos SantosRio40 graus, de 1955, a favela aparece como uma espcie de reduto: lmoram a solidariedade e a poesia.Os meninos vendem amendoimnos principais pontos tursticos do Rio. O movimento de cada umdeles, do alto do morro para um dos pontos de referncia turstica dacidade,e de volta para casa,conduz a bela narrativa fragmentada dofilme.EmRio Zona Norte, segundo filme do diretor, a situao geogr-fica menos bem definida.Esprito da Luz,interpretado por GrandeOtelo, sambista iluminado, poeta sofrido e ingnuo, mora em um

    misto de morro e subrbio.A personagem vtima de dupla violncia:a violncia dos bandidos que lhe rouba o filho, e a violncia simblicada indstria do rdio, que no o reconhece. Em ambos os casos, ocinema respira a vida da cidade,saudando em chave romntica10 a cul-tura popular musical,negra e enraizada.

    118 VIOLNCIA E POBREZA NO CINEMA BRASILEIRO RECENTE Esther Hamburger

  • 8/8/2019 Violncia e Pobreza no Cinema Brasileiro

    7/16

    Os dois filmes de Nelson Pereira incluem o morro na geografia dacidade e apresentam com ternura o universo das classes populares,esse outro que o cineasta admira. J Cinco vezes favela, longa produ-zido pelo CPC da UNE com cineastas que faziam parte do ncleo do

    cinema novo, composto de cinco filmes de curta-metragem que secolocam como instrumento de interveno, a um s tempo artstica epoltica, na situao de desigualdade que estrutura a sociedade brasi-leira e encontra na favela expresso urbana visualmente contundente.Em especial no caso do Rio de Janeiro, em cuja geografia de cidademaravilhosa a desigualdade social se inscreve de maneira dramticaem eixo vertical.

    O curta dirigido por Joaquim Pedro de Andrade,Couro de gato,exem-plifica o trabalho com esse eixo vertical.A favela onde mora o compra-

    dor de gatos est situada no alto do morro. para l que convergem ascrianas com os animais capturados,pela trilha estreita e ngreme,pelaqual policiais, motoristas e madames no se atrevem a subir.

    O eixo vertical como paradigma da relao de classe que estruturaa cidade primorosamente explorado no episdio de Leon Hirszman,

    Pedreira de S.Diogo. Concebido como exerccio eisensteiniano,o curtavai alm da boa dose de esquematismo poltico que o inspirou. A geo-metria de enquadramentos belos e precisos relaciona eixos verticais ehorizontais. A solidariedade entre operrios de uma pedreira e mora-dores da favela implantada no alto do morro ameaado pelas explo-ses provocadas pela ao empresarial simbolicamente construdapela ao de lideranas que enfrentam o desafio de escalar o buracoescavado para fazer contato com os moradores em risco.No eixo hori-zontal, Leon Hirszman relaciona os corpos dos operrios da pedreiracom a textura da rocha que ajudam a escavacar e extrair.Duas tomadaspanormicas sugerem uma bela relao mimtica entre os corpos dosoperrios pressionados de encontro pedra enquanto aguardam a

    exploso de cargas de dinamite.No cinema de Nelson Pereira, como no cinema novo de JoaquimPedro, Leon Hirszman, Cac Diegues e outros que se dedicaram napoca a destrinchar o tema,h uma clara separao entre a voz de quemfala,o diretor, e a de sobre quem ele fala.Em Nelson Pereira,essa rela-o de alteridade convive com a admirao. Em Cinco vezes favela, acumplicidade com o universo retratado se expressa em uma intenoexplcita de mobilizao.Esse registro engajado questionado em fil-mes do cinema marginal, que radicalizam o ponto de vista autoral do

    cineasta,seja ele prximo ao universo retratado,como em trabalhos deCandeias,ou no,como em Rogrio Sganzerla.Nos anos 1970 e 1980, anos de censura forte, milagre econ-

    mico, consolidao da indstria de televiso e crescimento do mer-cado de consumo,imagens glamorosas do pas do futuro,branco e

    119NOVOS ESTUDOS 78 JULHO 2007

  • 8/8/2019 Violncia e Pobreza no Cinema Brasileiro

    8/16

    [11] Sobre oAqui, Agora,ver entrevistafeita por Arnaldo Jabor com os direto-

    res do programa (Folha de S.Paulo, 22de junho de 1991).Ver tambm Bentes,

    Ivana.Aqui, Agora , o cinema do sub-mundo ou o tele-show da realidade.

    In:Imagens,no- 2,ago.1994,pp. 44-49.

    afluente,dominaram a programao do novo meio.No cinema dessapoca,a favela ficou restrita a filmes experimentais,vdeos associadosa movimentos populares,filmes associados ao cinema marginal comoO Bandido da Luz Vermelha, documentrios como Wilsinho da Galilia,

    trabalho censurado de Joo Batista de Andrade para o Globo Reprter,ou a filmes independentes ligados a movimentos sociais,comoSanta

    Marta,duas semanas no morro,de Eduardo Coutinho.Filmes comoLcio Flvio ePixote, de Hector Babenco,abordaram o

    universo corrupto e discriminatrio das instituies policiais e cri-minais brasileiras.Nesses filmes,a pobreza aparece associada clien-tela dessas instituies. A mdia, que emergia na poca como ele-mento recm-enraizado na sociedade brasileira, aparece comocmplice de verses oficiais que acobertam a ao corrupta e discri-

    minatria de instituies disciplinadoras como reformatrios,cadeias,delegacias,polcias.

    No incio dos anos 1990, essa invisibilidade relativa se alterou.Telejornais vespertinos trouxeram o universo da favela e das periferiasurbanas para a televiso,na chave da violncia e do sensacionalismo.Recentemente, a exposio de representaes da pobreza, em geralassociada violncia, aumentou e se sofisticou no cinema, processoque estimula a disputa em torno do controle do que merece e do queno merece se tornar visvel e de acordo com que convenes.

    Em 1991,oAqui,Agora,do SBT,legitimou paisagens urbanas popu-lares como cenrio de reportagens gravadas in loco, por reprteres ecinegrafistas em movimento. Imagens trmulas e a respirao ofe-gante dos profissionais que sobem o morro em busca de notcia con-tribuam para reforar a sensao de matrias quentes,transmitidasno calor da hora.Em contraste com o oficialismo da cobertura conven-cional,oAqui,Agora enfatiza assuntos ligados a pequenos conflitos ecrimes localizados.A mudana esttica e de assunto11.Como se sabe,

    o telejornal do SBT acabou ainda nos anos 1990, mas fez escola naManchete,com repercusso nas atuais Record e Rede TV.Cabe notartambm as modificaes que o jornalismo da maior emissora sofreunesse perodo em que as pautas se diversificaram, assim como as pes-soas entrevistadas.As definies do que notcia se ampliaram paraalm das notcias governamentais. Surgiu a possibilidade, aindapouco desenvolvida,de um jornalismo no-oficial.

    No incio dos anos 2000,essas experincias se estenderam fic-o televisiva em seriados da Rede Record como Turma do gueto ou Vidas

    opostas,bem-sucedida novela atualmente em cartaz,ou na Rede Globo,com o pioneiro Palace II, Cidade dos homens ou Antonia, na linha demicrossries em co-produo, ou ainda em Central da periferia,pro-grama de auditrio volante que logrou se transformar em janela para aampla e diversificada produo cultural que circula na periferia.

    120 VIOLNCIA E POBREZA NO CINEMA BRASILEIRO RECENTE Esther Hamburger

  • 8/8/2019 Violncia e Pobreza no Cinema Brasileiro

    9/16

    [12]Para uma anlise detida de

    nibus 174, ver Hamburger, Esther."Polticas da representao: fico e

    documentrio em nibus 174". In:Labaki,Amir e Mouro, Maria Dora

    (orgs.) O cinema do real. So Paulo:Cosac Naify,2005,pp.196-215.

    No incio desse perodo mais recente,Notcias de uma guerra particu-lar(1999), documentrio de Joo Moreira Salles feito para a TV a cabo,incorporando imagens feitas por um telejornal da Rede Manchete,ofe-receu um primeiro olhar reflexivo sobre um universo ainda pouco vis-

    vel fora de telejornais populares.Notcias contrasta, com sensibilidadeperturbadora, trs perspectivas sobre a violncia que tomou conta docotidiano no morro:a dos policiais,a dos traficantes e a dos moradores.

    Apenas quatro anos depois, nibus 174 emerge em um contexto deplena guerra pelo controle da representao.Exemplo de apropriaoperversa da mdia cinematogrfica e televisiva , o filme revela aperformance de Sandro do Nascimento para as cmeras. Ao mesmotempo em que se abre para depoimentos que constroem a trajetria da

    vtima exemplar, o filme revela o processo de construo do protago-

    nista.Diante das cmeras, Sandro incorpora o esteretipo do meninopobre,negro e malvado que suas vtimas refns,assim como os paren-tes e conhecidos que contriburam com seus depoimentos para ofilme, so unnimes em afirmar que ele no era12. Sintomaticamente

    vai tirando a mscara at escancarar a cara na janela do nibus e se diri-gir ao Brasil atravs das cmeras.

    O invasor,Cidade de Deus,Cidade dos homens,Carandiru,O prisioneiro dagrade de ferro so alguns exemplos,entre outros, de uma srie de traba-lhos que dialogam entre si na busca por expressar o drama da violnciacontempornea.Espectadores na periferia discutem em que medida,aoromper o silncio e a invisibilidade a que os pobres foram em largamedida relegados,esses filmes contribuem para fixar a imagem do fave-lado como marginal. Ao invs de inclu-lo plenamente, reforariam,uma vez mais, sua identidade de excludo. Questionam a relativahomogeneidade da periferia tratada no cinema.Questionam a autori-dade de diretores no oriundos da periferia para tratar do assunto.

    Falco se coloca como elo nessa espcie de cadeia de interlocues

    diretas e indiretas, desiguais e distorcidas. O filme expressa umdebate que desde pelo menos meados dos anos 1990 passa de umestado latente,sensvel nas periferias,para ganhar forma em manifes-taes diversas.Do rap denncia margem da mdia ao filme denn-cia exibido na mdia.

    Esse debate em torno da adequao da representao miditica daperiferia se encontrava em estado latente quando Cidade de Deus, naesteira deNotcias de uma guerra particularePalace II, deu forma contun-dente a uma perspectiva que associava violncia e pobreza, raa e

    gnero,como que deslocando para o espao pblico e expressando demaneira ampliada um mito caro sociedade brasileira.A profuso de filmes sobre a periferia nos anos 2000 encontrou

    uma periferia menos amorfa e reduzida violncia do trfico do que sesupunha.Palace II, curta para a Rede Globo de televiso, dirigido por

    121NOVOS ESTUDOS 78 JULHO 2007

  • 8/8/2019 Violncia e Pobreza no Cinema Brasileiro

    10/16

    [13] Sobre Cidade de Deus, particu-

    larmente sobre o uso da voz overno

    filme, mas tambm sobre essa forade convencimento quase que ima-

    nente que os corpos desses atores

    desconhecidos sugere, ver Xavier,

    Ismail. "Corroso social, pragma-

    tismo e ressentimento".Novos Estu-dos Cebrap, no- 75,jul.2006.

    Fernando Meirelles durante a fase de preparao de atores para Cidadede Deus,apresentou o universo da periferia pela lente do cinema na TVaberta. MV Bill participou desse esforo. Seu rap Como sobreviver na

    favela ajuda a narrar a histria.

    Palace IItoma emprestado o nome pelo qual ficou conhecido ocrime de colarinho-branco para nomear o pequeno golpe fracassadoque Acerola e Laranjinha tentam aplicar em uma dona de casa de umafavela carioca. No sabemos qual favela. Pegos em flagrante pelomarido da dona, um lder do movimento, os meninos se vem emmaus lenis. Obrigados a levantar recursos para pagar o prejuzo,passam a noite a massacrar gatos.Pela manh,a venda da carne que vai

    virar churrasco garante o resgate da vida. Planos curtos gravados emlocao,com a agilidade e o tremor real que a cmera na mo sugere,

    do o tom.Mas a seqncia da tortura e morte dos gatos destoa do resto do

    filme. Aqui no h locao visvel. Os dois meninos exercitam suafora fsica contra um fundo preto abstrato. Efeitos eletrnicos comodesfoque e alterao de velocidade impedem ao mesmo tempo emque sugerem visualizao explcita de uma violncia carnal. Sabe-mos que uma luta corporal sangrenta acontece. Respiramos aliviadosquando nos damos conta,j de volta ao registro realista, de que as vti-mas so animais,cuja carne render o dinheiro necessrio alforria dadupla de pequenos heris sem carter.

    Palace IIcuriosamente retoma,propositadamente ou no,o foconos animais singelamente tratados em Couro de gato. O curta de Joa-quim Pedro descreve cada animal e busca apreender a relao entre elee o dono.Gatos de plos e cores diferentes circulam em lugares dife-rentes e entre pessoas de classe social e ocupao diferente.Os gatosmais escuros das caladas de Copacabana contrastam com o gatobranco de plo fofo,xod da madame em cuja manso reina.EmPalace

    II,os meninos no tm respiro para admirar,se envolver ou dividir ali-mento com os bichos cuja carne vai redimi-los. A urgncia desse coti-diano tenso se expressa no rap que ilustra o filme.Se quer a carne dogato, h pouca brecha para o tamborim e o samba.

    Talvez porque o cinema esteja livre do constrangimento da audin-cia domstica e aberta que a televiso alcana, Cidade de Deus norecorre a estilizaes como essa que envolve a matana dos gatos nocurta. Fiel ao livro em que se baseia, Cidade de Deus identifica e conta ahistria de um conjunto habitacional especfico.A definio de tempo

    e espao ajuda a construir a verossimilhana do filme,que se apresentacomo a histria de um lugar ao longo do tempo, de sua fundao nosanos 1960 aos dias de hoje. A verossimilhana do filme reforadapela ausncia de atores conhecidos e pela presena fsica de corposcom cor,ginga e linguajar daperifa13.

    122 VIOLNCIA E POBREZA NO CINEMA BRASILEIRO RECENTE Esther Hamburger

  • 8/8/2019 Violncia e Pobreza no Cinema Brasileiro

    11/16

    [14] Ver Hamburger,Esther, op. cit; e

    tambem Polticas da representao."

    Contracampo 8, pp. 49-60, 2003; eConstruindo representaes veros-

    smeis."Revista IDE 42,2006.

    A frase de Marcinho VP, citada na epgrafe deste texto, sugere umrazovel grau de elaborao sobre a interlocuo com a mdia: eu souo monstro que vocs criaram. Diversas obras e diretores elaboramessa interlocuo de maneiras mais ou menos dramticas.

    Apesar de ter participado do incio do projeto,conforme se verificaemPalace II,MV Bill manifestou descontentamento com o resultadoem artigos em que questiona o filme. SeuMeninos do trfico pode serlido como resposta ao hiper-realismo de Cidade de Deus.O aspecto bor-ro deFalco em certo sentido dissolve a definio proposta em Cidadede Deus para sugerir que aquele universo existe em qualquer periferiabrasileira.E a prpria autoria do documentrio sugere que aquele uni-

    verso convive e concorre com outro menos letal.De certo modo, as falas dos meninos do filme de MV Bill e Celso

    Athayde se assemelham a algumas falas dos meninos deNotcias de umaguerra particular h por exemplo no filme de Joo Moreira Sallesaquele que afirma ainda no ter tido infelizmente a oportunidade dematar um policial.As condutas e vises de mundo que os dois filmescaptam e expressam se aproximam tambm do universo de ZPequeno, protagonista vilo do filme de Meirelles. Ao pesquisar eregistrar o universo dos meninos que trabalham no trfico, Bill e

    Athayde reforam a existncia,j revelada nesses outros filmes,da dif-cil convivncia de moradores engajados no movimento com morado-res que evitam se envolver.

    A diversidade esttica que esses trabalhos carregam expressa dife-rentes interaes entre realizadores, o universo tratado no filme eespectadores.Notcias de uma guerra particulardesloca informaessobre a violncia cotidiana que o trfico trouxe s favelas cariocas parao pblico de festivais,entre os quais os prprios cineastas,formadoresde opinio e espectadores da televiso a cabo.Cidade de Deus mimetizao relato de Paulo Lins bem como a ginga e a linguagem dos meninos

    atores em formao.A apropriao desses rostos e corpos fundamentaa verossimilhana do filme, que d forma magistral construomtica do algoz negro e pobre.Sandro do Nascimento seqestrou pri-meiro a mdia televisiva e depois a cinematogrfica em nibus 174.Fil-mes construdos com alguma cumplicidade com o universo do pres-dio,mas em diferentes registros de gnero,fico e documentrio,ecom aparatos de produo muito diferentes como Carandiru ePrisio-neiro da grade de ferro, paradoxalmente acabam por tratar os presos demaneira parecida. Um tratamento destoante porque assumidamente

    externo captado em ngulo agudo,de cima,como o ttuloDa janelado meu quarto,explicita,exala com poesia a resistncia do embate fsicoem um enfrentamento corpo-a-corpo14.

    Falco,meninos do trfico pode ser interpretado como o mais recentettulo nessa linhagem,filme quese prope a revelar esse universo repe-

    123NOVOS ESTUDOS 78 JULHO 2007

  • 8/8/2019 Violncia e Pobreza no Cinema Brasileiro

    12/16

    tidamente denunciado a partir da viso de quem mora na favela e con-vive com os meninos do trfico. Aqui moradores da Cidade de Deuscomparecem como realizadores da empreitada documentria sobreoutras periferias brasileiras.Falco sugere com contundncia que t

    tudo dominado.Uns com maior, outros com menor intensidade, os filmes dessa

    srie produziram expresses asfixiantes da vida em bairros pobres dasurbes brasileiras contemporneas.O partido realista dos filmes fiel gravidade da situao,mas em certo sentido contribui para perpetu-la como espetculo. Nesse contexto, o borro sujo e improvisado de

    Falco talvez permita vislumbrar um irrealismo mais produtivo.A diversificao ainda que relativa dos veculos,aliada facilidade

    de acesso a equipamentos que a tecnologia digital permite,aumenta a

    expectativa de participao entre habitantes de favelas e bairros peri-fricos. Nos ltimos anos, projetos de oficinas de audiovisual vmestimulando a formao de ncleos de produo,difuso e ensino naperiferia. Participantes desses ncleos manipulam um repertrio decomplexidade crescente,na tentativa de demonstrar que dominam oconhecimento que imaginam necessrio para ser plenamente inclu-dos na sociedade. Filmes comoDefina-se, de Daniel Hilrio da CidadeTiradentes, ou O ltimo da fila de der Augusto, da Cohab Taipas,ambos produzidos em oficinas Kinoforum, sugerem que interlocu-es entre cineastas aprendizes de condio social e formao dife-rente podem ser produtivos.

    Falco talvez a expresso mais acabada e conhecida at agora deuma efervescncia cultural indita que acena com alguma mudananas relaes entre quem faz e quem consome msica, moda, dana ecinema.Paradoxalmente,ao menos em parte,essa efervescncia cultu-ral contribui para a difuso de construes visuais que associam vio-lncia e desigualdade,reproduzindo esteretipos de novo,o mons-

    tro a que se refere Marcinho VP que em certo sentido podemreforar o discurso espetacular sobre o medo e inadvertidamente con-tribuir para aumentar a violncia.

    A constatao de que filmes e programas televisivos podem adqui-rir significados diferentes, que significados no so univocamentedefinidos na produo,est claro ligada ao debate ps-estruturalistasobre a multiplicidade invarivel do sentido.O projeto de pesquisa nointerior do qual venho refletindo sobre a problemtica aqui tratadapromove interaes inusitadas entre filmes, realizadores, crticos e

    espectadores, tomando o texto como expresso do que chamamos dedisputa pelo controle da produo da representao.Discuto,a partirdesse amplo material, diferentes maneiras heterodoxas de interagircom meios de comunicao impressos e eletrnicos em um movi-mento intenso de disputa pelo controle das representaes.No limite,

    124 VIOLNCIA E POBREZA NO CINEMA BRASILEIRO RECENTE Esther Hamburger

  • 8/8/2019 Violncia e Pobreza no Cinema Brasileiro

    13/16

    [15]Debord, Guy. A sociedade doespetculo. Rio de Janeiro: Contra-

    ponto,2002.

    problematizar arranjos formais concretos em termos que enfatizemseu carter de expresso de articulaes entre certos sujeitos que pro-curam,em alguma medida,controlar os mecanismos de construo desua imagem, significa repensar as bases da idia de sociedade do

    espetculo tal como props Guy Debord15 e que vem servindo de refe-rncia aos mais diversos trabalhos que a partir de perspectivas tericasdistintas procuram situar o imaginrio no contexto de fenmenoscontemporneos.

    O termo espetculo isoladamente ou como adjetivo que qualifica associedades contemporneas aparece freqentemente como elementodescritivo,que na falta de explicaes orgnicas fundamentadas aludeao excesso de luzes e imagens, profuso de informaes que saturaespaos pblicos dominados por grandes corporaes de mdia,que

    para alm de poderes estatais ou civis estimulam o consumo e definemas regras do que ou no notcia;do que merece e do que no mereceganhar visibilidade.

    O livro de Guy Debord foi originalmente publicado em novembrode 1967.O texto expressa os termos e as formas de uma postura crticasintonizada com palavras de ordem libertrias, as formas fragmenta-das,espontneas,que os movimentos sociais ento emergentes anun-ciavam.Situa a opresso contempornea no plano da cultura,onde hespao para incorporar manifestaes libertrias pela constituio desubjetividades como propostas pelos movimentos feministas, gays,tnicos,ecolgicos.

    O trabalho expressa de maneira sensvel diversas expectativas eposicionamentos que estavam na ordem do dia na dcada de 1960,emplena guerra fria ps-stalinista e que ainda no se resolveram.O autorexpressa claramente sua crtica ao chamado socialismo real, emespecial nos termos da crtica burocracia sovitica.Tal como os movi-mentos que sacudiram a Europa e as Amricas nos anos 1960,o livro

    procura definir uma posio que escape das limitadas opes dicot-micas instauradas pela guerra fria.O espetculo emerge no pensamento de Debord como noo que

    condensa a opresso nas sociedades contemporneas. A noo deespetculo vem carregada de um tom de denncia pelo que aparececomo domnio das imagens (que poderia talvez encontrar paralelo noestatuto maldito que a imagem tem em culturas orientais),o que ren-deu ao autor um certo desprezo no campo da cinefilia.

    O espetculovai se definindo ao longo do texto quase como um pesa-

    delo.O espetculo expressa a degradao do mundo real em mera ima-gem (p. 18). As definies crticas se avolumam e adquirem um tommeio fantasmagrico:imagens tornam-se seres reais e motivaes deum comportamento hipntico (p.18). O espetculo a reconstruomaterial da realidade religiosa (p.20). O espetculo o sonho mau da

    125NOVOS ESTUDOS 78 JULHO 2007

  • 8/8/2019 Violncia e Pobreza no Cinema Brasileiro

    14/16

    sociedade moderna aprisionada,que s expressa afinal o desejo de dor-mir (p. 21). O espetculo bane qualquer outra fala (p.23).O poderest na raiz do espetculo. O espetculo est associado ao Estadomoderno,entendido como rgo de dominao de classe (p.24). (Essa

    fantasmagoria do poder parece semelhante maneira pela qual Fou-cault, em outra chave, registra o poder entidade centralizada mascujas manifestaes so difusas,quase onipresentes.)

    A noo de espetculo tal como descrita por Debord se estabeleceuquase como um dado, mas descritivo.Vivemos na sociedade do espe-tculo, no h como contestar. O conceito vem tona especialmenteem momentos em que temos de dar conta de fenmenos miditicosque hoje, talvez mais do que nos anos 1960 e 1970, se tornam oassunto na arena pblica.De maneira mais genrica,a noo busca dar

    conta da dimenso cotidiana que a presena do jogo miditico impepara as relaes sociais e polticas.

    A noo de sociedade do espetculo eficiente. O rtulo funcionato bem talvez porque compartilhe um pouco do apelo sensacional quecritica. O termo tem apelo tambm ante crescente insatisfao com acrise generalizada das instituies polticas e sociais nas mais diversaspartes do globo.Depois do desmonte dos regimes socialistas,impasseseleitorais e movimentos blicos ilegtimos colocam as democracias oci-dentais na berlinda e com elas a mdia.Instituies essenciais liber-dade de expresso, transparncia poltica e administrativa,os rgosde imprensa escrita e audiovisual,assim como os veculos de entreteni-mento,vm sendo questionados de maneira crescente.

    No Brasil da era Lula, especula-se sobre a responsabilidade damdia nos escndalos de corrupo que abalam a legitimidade das ins-tituies democrticas. Aqui, como alhures, a crtica aos critrios emaneiras de operar a mdia faz parte da agenda e dos modos de atua-o de movimentos sociais fragmentados,cuja estratgia de ao inva-

    riavelmente supe uma dimenso performtica. A edio recente deuma caixa contendo os trabalhos flmicos de Debord repe o pensa-mento do autor que tanto refletiu sobre o estatuto da imagem nassociedades contemporneas em um momento em que a percepo docarter de construo cultural das imagens se generaliza.

    O texto de Debord complexo. O autor busca definir dialetica-mente uma noo com implicaes tericas e prticas, nos planosmaterial e simblico,econmico e cultural.Sua preocupao em noreproduzir dicotomias que a teoria marxista superou imprime ao

    texto uma bem-vinda dose de ambigidade,que leituras contempor-neas mais apressadas acabam por desprezar.

    A realidade objetiva est dos dois lados.Assim estabelecida,cada noos se fundamenta em sua passagem para o oposto:a realidade surge no espe-

    126 VIOLNCIA E POBREZA NO CINEMA BRASILEIRO RECENTE Esther Hamburger

  • 8/8/2019 Violncia e Pobreza no Cinema Brasileiro

    15/16

    tculo,e o espetculo real. Essa alienao recproca a essncia e a base dasociedade existente (p.15).

    A questo que se coloca aqui a possibilidade de que a noo de

    espetculo em Debord supe uma separao estanque entre especta-dor e espetculo e um controle centralizado que dificulta pensarexpresses contemporneas articuladas para intervir na prpria lgicado espetculo.

    No espetculo uma parte do mundo se representa diante do mundo quelhe superior.O espetculo nada mais que a linguagem comum dessa sepa-rao.O que liga os espectadores apenas uma ligao irreversvel com o pr-

    prio centro que os mantm isolados.O espetculo rene o separado,mas o

    rene como separado (p.29).

    Essa separao que a teoria da sociedade do espetculo preconizoutalvez necessite ser revista para dar conta da complexidade das dispu-tas pelo controle da representao que esto em jogo nas arenas pbli-cas contemporneas.

    Ora,a ao social contempornea intrinsecamente performtica.Os exemplos so inmeros e vo de grandiosas aes de guerrilhamiditica,das quais o atentado de 11 de setembro talvez seja o exem-plo mais pungente,a manifestaes de menor escala e repercusso cir-cunscrita, s aes do crime organizado brasileiro e s inmerasexpresses flmicas de irrupes violentas entre movimentos arma-dos de desobedincia civil sem causa programtica,alm da defesa defluxos transnacionais ilegais de armas e drogas, e foras policiais eparapoliciais corruptas,desacreditadas e fora de controle.

    Fisionomias, pessoas, paisagens especficas ganham notorie-dade de acordo com critrios diferentes que definem o que merece e

    o que no merece ganhar forma no domnio da expresso visual.Ocinema e a televiso,com suas semelhanas e diferenas,repercutemaes e criaes em larga medida inspiradas com o sentido de reper-cutir. A expresso audiovisual tornou-se dimenso estratgica nassociedades contemporneas.

    Certos eventos,assuntos,cenrios,movimentos e pessoas gozamde visibilidade pblica em certos veculos e de acordo com certas con-

    venes que regem a construo de filmes e programas televisivos.Outros eventos, espaos e agentes permanecem invisveis na cena

    pblica.Assim,o jogo entre o visvel e o invisvel vai definindo e rede-finindo os contornos de uma ordem social que insiste em se estrutu-rar em torno da desigualdade. Os diversos veculos de mdia,impressa,eletrnica e digital,ocupam posio privilegiada na defini-o desses contornos.

    127NOVOS ESTUDOS 78 JULHO 2007

  • 8/8/2019 Violncia e Pobreza no Cinema Brasileiro

    16/16

    [16]Ver Taussig, M.Shamanism, colo-nialism and the wild man. Chicago:

    University of Chicago Press,1987. Oautor concebe a violncia como uma

    espcie de linguagem que forja sen-

    tido no encontro colonial.

    Seja no registro da fico ou do documentrio, encontramos nosfilmes mencionados diferentes formas de apropriao dos mecanis-mos de produo da visualidade.De diversas maneiras o outro a res-peito do qual cada filme fala impregna a textura final do trabalho.Em

    busca da superao da posio de objeto e na tentativa de exerceralgum controle sobre a constituio de subjetividades, aspirantes aprotagonista participam da disputa pelo controle do que ser visvel,como e onde.Em outras palavras, reconhecem a poltica e indagamsobre a potica das formas visuais.

    Propostas tcnicas ousadas e inovadoras no mbito da ordem jur-dica,como a descriminalizao do consumo de drogas ou a legalizaodo trfico,so essenciais.Trabalhar e retrabalhar expresses cinema-togrficas e televisivas desse caos pode ajudar a forjar essas e outras

    formas de enfrentamento.Diante do desgaste do Estado e da poltica partidria, a cultura se

    afirma como espao privilegiado de profissionalizao e expanso dacidadania. Exemplos concretos apontam para a notoriedade con-quistada por moradores de favela engajados na disputa pelo quemerece se tornar visvel.O hip-hop,o futebol feminino,rdios comu-nitrias e bibliotecas exemplificam diferentes maneiras pelas quaisfavelados e moradores de bairros pobres ganham visibilidade.A cha-mada literatura marginal vem se afirmando como produo autc-tone, indita em lngua escrita, que compartilha com o hip-hopnacional e estrangeiro a crtica radical excluso, especialmente talcomo expressa na mdia institucional.

    O caso das expresses cinematogrficas e televisivas da violnciatalvez seja paradigmtico para se especular sobre essas mltiplas rela-es.A violncia ou as diversas formas de violncia podem ser pensadascomo experincias sociais liminares,espaos que resistem a ordena-mentos e explicaes,espaos privilegiados para a criao de sentido16.

    A dimenso performtica entendida como elemento intrnseco vida social nos obriga a redefinir noes usuais que interpretam ocinema e a televiso como dimenses relativamente desprovidas deexpresso prpria,ou,no outro extremo,como dispositivos autnomoscriadores de fantasmagorias virtuais sem existncia relevante, o que dno mesmo.Imaginar formas estticas que desarticulem esteretipos eesvaziem aes violentas permanece um desafio interessante.

    Esther Hamburger professora do Departamento de Cinema,Rdio e TV da ECA-USP e autora

    de O Brasil antenado,a sociedade da novela.Rio de Janeiro:Zahar,2005.

    Recebido para publicao

    em 6 de julho de 2007.

    NOVOS ESTUDOS

    CEBRAP

    78,julho 2007

    pp. 113-128