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Vodu: da constituição de um sistema simbólico libertário à perseguição ideológico
cultural
Loudmia Amicia Pierre Louis
Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA)
RESUMO:
Nascido no seio das relações entre negros africanos de etnias diferentes, o vodu permitiu a
recriação de um tempo, fora do controle do colonizador, fora e dentro da igreja católica, a
reconstrução de um espaço de expressão do homem escravo. Graças ao vodu, o sujeito
escravizado pôde construir um sistema simbólico próprio e organizar-se em comunidade
solidária. Tal organização foi determinante, por exemplo, para a constituição das revoltas que
levaram à emancipação do Haiti. O vodu, além de uma religião, é uma fonte viva de música,
dança, literatura oral, da cosmovisão de uma população inteira. Embora esta prática religioso-
cultural esteja, assim, muito ligada à identidade do povo haitiano, à formação do Estado
nacional, foi renegada pelos próprios fundadores e pela elite mestiça que passou a dominar o
poder. Demonizado, considerado uma psiconeuroses, bruxaria, o vodu passará por um período
de perseguição real, a partir da concordata entre o Vaticano e o Estado, em 1860, até a
promulgação da constituição democrática de 1987. O objetivo deste trabalho é trazer algumas
considerações sobre os processos pelos quais o vodu teve lugar e como se constitui em
identidade haitiana, assim como os motivos e as raízes ideológico-culturais dos discursos que
geraram sua renegação e perseguição.
PALAVRAS-CHAVE: Vodu haitiano; expressão identitária; Estado-Nação; perseguição
RESUMEN:
Nacido en el seno de las relaciones entre negros africanos de etnias diferentes, el vudú permitió
la recreación de un tiempo, fuera del control del colonizador, fuera y dentro de la iglesia
católica, la reconstrucción de un espacio de expresión del esclavizado. Gracias al vudú, el
esclavizado pudo construir un sistema simbólico propio y organizarse en comunidad solidaria.
Tal organización fue determinante para la constitución de las revueltas que llevaron a la
emancipación de Haití. El vudú, además de una religión, es una fuente viva de música, danza,
literatura oral, de la cosmovisión de una población entera. Aunque esta práctica religioso-
cultural está tan ligada a la identidad del pueblo haitiano, a la formación del Estado nacional,
fue renegada por los fundadores y la élite mestiza que gobernó. El vudú pasará por un período
de persecución real, a partir del convenio entre el Vaticano y el Estado, en 1860, hasta la
promulgación de la constitución democrática de 1987. El objetivo de este trabajo es traer
algunas consideraciones sobre los procesos por los cuales el vudú tuvo lugar y cómo se
constituye en identidad haitiana, así como los motivos y las raíces ideológico-culturales de los
discursos que generaron su negación y persecución.
PALABRAS CLAVE: Vudú haitiano; expresión identitária; Estado-nación; persecución Deslocamento e Resistência
A partir da segunda metade do século XVIII, as marcas da resistência contra o sistema
escravista se fizeram cada vez mais presentes na ilha de Saint-Domingue. Diante do
recrudescimento do sistema escravagista, o número de nègres marrons, ou cimarrones,
escravos rebeldes, que, para se livrar da servidão ou maus-tratos, fugiam das plantações e
buscavam refúgio na floresta ou nas montanhas, só aumentava. Do mesmo modo, crescia
também a influência de líderes espirituais, como Makandal,1 por exemplo, que, dizendo-se
possuidores de poderes sobrenaturais, afirmavam ter como missão a liberação dos
escravizados. Detentor de possíveis poderes sobrenaturais, conhecedor de várias línguas, do
poder das plantas e das tradições ancestrais africanas, Makandal é considerado como um dos
primeiros líderes a unificar os escravos insurrectos. Estabeleceu uma rede de organizações
secretas entre os escravos das plantações, que lideraram uma revolta que se arrastou desde 1750
até 1758. Entre suas práticas de sublevação, estavam, por exemplo, os envenenamentos. Nos
anos que antecederam a revolução eram, cada vez mais comuns os casos de morte por
envenenamento, a princípio do gado, depois, dos próprios colonos. Acusado pela autoridade
colonial francesa de “sedução, profanação e envenenamento”, Makandal, depois de anos de
resistência, é preso, condenado à morte e queimado em praça pública no dia 20 de janeiro de
1758. Nas histórias construídas ao redor de sua figura mítica, consta, por exemplo, que, antes
de ser queimado vivo, ele jurou que com o fogo apenas mudaria de forma, ficaria sempre na
ilha como pássaro, para encaminhar as revoltas. Este personagem, símbolo de resistência à
escravidão, ocupará, na memória coletiva, o status de um dos mais importantes precursores da
revolução haitiana.
Em continuidade ao espírito revoltoso de Makandal, surge, entre as lideranças dos
sublevados, Boukman Dutty Zamba. Nascido na Jamaica, Boukman era um sacerdote do vodu
e, como Makandal, será conhecido como um dos principais líderes da revolução. Apenas na
1 Algumas fontes o descrevem como um “ougan”, um sacerdote vodu. Não há concordância entre os
historiadores sobre seu lugar de nascimento.
noite de 14 de agosto de 1791, foram organizadas mais de dez reuniões entre os escravizados
para definir os rumos da libertação. Dentre elas, a que mais ficou presente na memória coletiva,
graças a sua oficialização pela história, é a do Bois Caïman. Liderada por Boukman, esta
cerimônia de vodu definiu um pacto2 entre os escravizados, o juramento de luta pela liberdade,
de morrer em liberdade a seguir em escravidão. Transcrevemos abaixo o registro da
conclamação de Boukman:
O deus que criou a terra, que criou o sol que nos dá luz.
O deus que segura os oceanos, que rugiu o trovão.
O deus que tem ouvidos para ouvir: você que está escondido nas nuvens,
que nos mostra onde estamos, você vê que o branco nos fez sofrer.
O deus do homem branco pede-lhe para cometer crimes.
Mas o Deus dentro de nós quer que façamos o bem.
Nosso Deus, que é tão bom, tão certo, nos ordena vingar nossos erros.
É ele quem dirigirá nossas armas e nos trará a vitória.
Ele é o único que nos ajudará.
Todos devemos rejeitar a imagem do deus do homem branco que é tão
implacável.
Ouça a voz da liberdade que canta em todos os nossos corações
Nas noites de 22 e 23 do mesmo mês, os escravizados deram início à grande Revolução
que dourou 11 anos. Depois de todos esses anos de incansável luta, a escravidão foi abolida e
a independência foi então proclamada em 1804 por Jean Jacques Dessalines. Essa organização
entre escravizados, que engendrou as sublevações, só pôde acontecer a partir da construção de
uma comunidade formada e mantida por meio da religião vodu e do idioma kreyòl, entidades
estas formadas a partir da confluência de distintas culturas em Saint-Domingue a partir das
primeiras décadas da colonização. De etnia diferente, escravos bambara, mandingas, aradas,
fulas, Daomê, igbos, Uolofes, entre outros, foram separados de seu seio familiar e linguístico
no momento da venda para impedir o contato, o entendimento entre eles, e para suscitar o
sentimento de estranhamento, de despossessão. Logo essas práticas de segregação se
institucionalizaram. O code noir, uma coleção de cerca de sessenta artigos escritos pelo
Ministro Colbert, foi publicado e modificado várias vezes desde 1685. O código que reúne as
disposições que regulam a vida dos escravos negros nas colônias francesas, aparece como a
2 A história oficial diz que, nessa noite no Bois Caïman, os escravizados se reuniram e sacrificaram um porco e
tomaram seu sangue, na tentativa de demonizar essa reunião. Como prova a oração dita por Boukman, o único
pedido dirigido à divindade era, de justiça. O único pacto feito era, como aconselhado pelo sacerdote, dos
escravizados, ouvirem a voz da liberdade que gritava dentro de cada um.
primeira tentativa oficial do império Francês — sem contar obviamente todas as inciativas de
evangelizar o Novo Mundo pelos Espanhóis, primeiros a colonizar a ilha — de despossessão
dos negros africanos escravizados. Entre outras questões, o code noir instaurava, por exemplo,
que todo negro traficado fosse batizado e instruído na fé católica, no máximo 8 dias da chegada
deles, sob pena de multas arbitrárias aos donos. A fim de preservar a “religião única” dos
colonizadores, a prática de outras religiões foi assim expressamente proibida, do mesmo modo
que toda assembleia de escravos. Diante dessa imposição, a pessoa identificada como negro e
generalizado como africano passou por um longo processo de violência, tortura e
confinamento, de perda de seu corpo, e subsequente despersonalização. Esse processo iria ser
combatido pela força da religião vodu.
Vodu: solidariedade entre os marrons; perseguição
Embora não se saiba ao certo as datas do surgimento do vodu na ilha de Saint-
Domingue, pode-se afirmar que antes dos últimos anos do século XVII, tal religião não existia,
pelo menos nos registros por parte dos colonizadores. Os negros africanos eram vistos como
sem religião, e suas danças e cantos, que constituem em essência o vodu, eram considerados
até então apenas como práticas de recreação. Tais práticas não eram entendidas pelos colonos
e, portanto, não eram motivos de grande preocupação. Ao que parece, no início de seu longo
exílio na América, vigorava entre os negros africanos, diversas crenças em várias divindades
diferentes, ou seja, entre eles não existia uma prática em comum. Essa questão implicava
também em sua separação e na dificuldade de encontrar, entre seus iguais, um ponto de
identificação comum. Há relatos de que eram comuns, por exemplo, as constantes denúncias
uns pelos outros. Moreau de Saint Méry, nas últimas décadas do século XVIII é o primeiro a
fazer uma descrição dessas práticas, definindo-as como um culto ofiolátrico.
Como nos mostra Lucien Pierre Peytraud (1897), na sua obra sobre a escravidão nas
Antilhas francesas, nos últimos anos do século XII então, os negros escravizados passam a ser
vistos de maneira reforçada, como supersticiosos, sedutores, profanadores e envenenadores.
As assembleias passam a ser temidas pelos colonos, pois, a partir delas, os africanos
começavam a formar uma comunidade de identificação, por meio da qual se articulavam
também as suas sublevações. Logo, seus encontros coletivos passaram a ser vistos como
agrupamentos de conspiração contra o sistema, independentemente do número de reunidos.
Certos de que eram detentores da única fé possível, os colonos cristãos passam a ver em tais
práticas africanas exemplos de magia e bruxaria, logo, a necessidade de classificá-las como
obras demoníacas. Dada tais preocupações, passam a ser estabelecidas ainda mais normas para
impedir tais agrupamentos. Essa história de opressão sobre uma prática religiosa ira
infelizmente atravessar toda a história do Haiti, inclusive a contemporânea.
Longe de ser um simples sincretismo, o vodu teve de se refugiar atrás da aparência dos
ritos católicos para começar a existir, era sua estratégia de sobrevivência (DANROC. Gilles,
1991). Estratégia tal, que, entre outros povos latino-americanos, também vai ser chamada de
simulação dos vencidos. O vodu revigorou os escravizados, lhes incidiu força e resiliência ao
corpo e ao espírito. Apesar das leis e decretos que legalizavam as caças e as torturas contra os
marrons, estes não deixavam de fugir. Os que fugiam, a sua vez, faziam parte, do “homem
enérgico e determinado que não pode suportar a servidão; seu mestre deve considerá-lo perdido
para sempre” (PEYTRAUD, Lucien 1897, p. 344, tradução nossa). Essas pessoas tinham agora
também em comum as crenças em forças sobrenaturais, possuíam sacerdotes, um sistema de
reconhecimento mútuo e uma solidariedade constituída, baseada em uma mesma esperança, a
partir de uma mesma cosmovisão, constituída no vodu e em seu sistema simbólico.
Sendo assim, o vodu passará a estar intimamente ligado não apenas à identidade do
povo haitiano, mas também à própria formação de um conceito de nação. No entanto,
continuará a ser renegado, agora pelos fundadores e pela elite apropriadora do poder. A prática
que uma vez uniu pessoas consideradas não humanas, selvagens, contra um sistema
escravagista, colonialista não foi reconhecida mesmo após a independência do país e continuou
sofrendo das mesmas intolerâncias da época escravagista. Um exemplo de como se
reincorpora, no espírito dos donos do poder na comunidade independente, a cosmovisão dos
escravizadores europeus. Nos anos de 1815, a França fez vir missionários para a continuação
da evangelização e nos inícios dos séculos XX, dois terços dos padres católicos eram Franceses.
A Constituição de 1801, diz em seu artigo 6, que a religião católica, apostólica
e romana é a única professada publicamente; a de 1805, diz nos seus artigos
50, 51, 52 que a lei não admite uma religião dominante, que a liberdade de
culto é tolerada, que o Estado não prevê a manutenção de nenhuma religião;
A de 1806 diz, no seu artigo 35, que a religião católica, apostólica e romana,
sendo a de todos os haitianos, é a religião do Estado; A de 1807 diz que a
religião católica; apostólico e romano é o único reconhecido pelo governo,
que o exercício de outros é tolerado, mas não publicamente, a de 1816, em
seu artigo 18, diz que a religião católica, apostólica e romana é a de todos os
haitianos, é a única do Estado. (JOSEPH JANVIER, Louis.1886, p.301,
tradução nossa).
Todas as constituições até 1987, com algumas exceções — quando, por exemplo,
reconhecem a liberdade de religião — estabelecem o catolicismo como a religião oficial
haitiana e, portanto, tratada de maneira especial pelo Estado. O vodu, por sua vez, não vigora
em nenhum documento de reconhecimento oficial por parte deste Estado. Esse não
reconhecimento se constitucionaliza nos primeiros anos de independência a partir dos anos 30,
e, a partir daí, começa sua proibição e perseguição por parte do Estado.
O Código Penal de 1836 no artigo 246 fez qualquer prática de vodu suspeita
de feitiçaria. Este mesmo artigo é constantemente repetido em várias
circulares de governos durante o século XIX; em 1935, o artigo 405 do
mesmo Código tornou-se mais violento ao falar sobre oferendas de "supostas
divindades" e "práticas supersticiosas" passíveis de prisão e multas.
(HURBON, Laënnec. 2005, p.12, tradução nossa).
Três décadas mais tarde, tal perseguição adquirirá outra dimensão, quando o Estado
firma a concordata com o Vaticano em 1860, entregando a educação e a cultura do país à
responsabilidade da igreja católica. O desprezo ao Francês, ao branco inimigo e seu sistema,
presente nos discursos e decretos de Jean Jacques Dessalines, é substituído, não muito tempo
após seu assassinato, pelo desejo incontestável da jovem nação de se assemelhar à França, de
se tornar “civilizada”, uma nação com seu lugar no mundo. Desta contrarreforma colonial,
legalizaram-se perseguições contra tudo que lembrava a África, o que representava a massa.
A igreja católica, durante o período escravagista, e depois, a partir da concordata, não
mudou sua percepção da pessoa negra. As suas práticas continuaram a inferiorizá-la. O usou
do kreyòl, nos diz Gilles Danroc, era proibido aos missionários durante a colônia. Língua de
toda uma população, ele (o kreyòl) foi visto e apresentado como uma deformação do francês,
mal pronunciado por africanos sem cultura. O vodu, a sua vez, continuou a ser demonizado. O
Estado, ao oficializar o catolicismo como única religião oficial, institucionalizava ao mesmo
tempo, “a demonização do vodu” juntamente à inferiorização do kreyòl.
[...] uma decisão do Conselho Superior de 23 de novembro de 1686 adverte
contra "... Os negros mágicos e os chamados médicos que se inventam de
curar muitos pacientes por magias, palavras e até de adivinhar as coisas que
se lhes peçam". Quatro categorias de feiticeiros são descritas neste
julgamento: aqueles que têm "comunicação com o diabo ...", aqueles que
"usam feitiços, drogas pela cooperação do diabo, que atua secretamente como
resultado de um pacto"; então os malabaristas "que fazem acreditam aos mais
simples que eles estão curados ..."; finalmente, aqueles que "usam remédios
naturais ..." (Peytraud 1897: 187-188). Para o padre Labat (1724), outro
testemunho missionário no final do século XVII, é preferível adiar, tanto
quanto possível, o batismo dos escravos, "até ter certeza de que abandonaram
completamente suas práticas com o diabo "(ibid.: 325). Ao desenvolver
dentro das práticas das igrejas que se desviam das normas do cristianismo, os
escravos merecem ser assimilados aos feiticeiros (HURBON, Laënnec. 2005,
p. 8, tradução nossa).
A Europa sempre se colocou como centro civilizatório, relegando outras comunidades
nacionais à marginalidade. A sua cultura devia ser considerada a exemplar, sendo assim
seguida por todos. Ela se achava/acha no direito, a partir dessa sua superioridade cultural,
moral, de dominar, ou melhor, na sua pretensão de ajudar os demais a alcançar tal nível de
evolução. Imbuída dessa percepção, a elite intelectual e política das cidades haitianas servia de
suporte à igreja. Ela (a elite) se via como representante da França entre os campesinos
africanos, e, “inferiores”. Essa inferiorização do vodu, bem como do idioma kreyòl, foi
intensificando os efeitos do racismo internacional e da política de segregação por cor de pele,
a divisão hierárquica, por exemplo entre negros e mestiços presentes no país. O discurso da
superioridade europeia se fez acompanhar de atos. Se acreditava que o vodu acabaria por
desaparecer do país, à medida que fossem instituídas a cultura eurocêntrica, a educação nos
moldes da antiga colônia, a fé cristã. No entanto, a educação nunca foi uma prioridade dos
governos à excepção de Henri I entre outros3.
Influenciados pelo evolucionismo de Darwin os anos 60 do século XIX foi a
época na qual se desenvolveu a ideia de cultura como sendo uniforme,
segundo a qual, a sociedade humana passa por evoluções e o nível mais alto
dessa evolução é a civilização. Em outras palavras o ser humano civilizado
da Europa já foi primitivo, selvagem e bárbaro, portanto, há esperança para o
bárbaro que com o tempo e uma árdua educação vá chegar no mesmo patamar
do homem civilizado. […] pensamento ou método […] conhecido como o
método comparativo o evolucionismo. (PIERRE-LOUIS, Loudmia. 2016,
p.3, Trabalho não publicado).
3 Para mais informações Cf. Dr C. PRESSOIR. 1933, / Duraciné VAVAL.1931
A preocupação dos chefes do Estado haitiano em civilizar o país, torná-lo aceito internacionalmente nos decênios que se seguiram
a independência, contrastou fortemente com o descaso à população e suas culturas ancestrais. No desespero de fazer
reconhecer sua independência, para poder (re)estabelecer o comércio exterior,4 aceitou, por
exemplo, pagar uma indenização aos antigos colonos que perderam tudo ou grande parte de
seus bens com as guerras “injustas” da revolução. Divida que foi paga depois de 72 anos (1825-
1897). Do mesmo modo, instituiu a concordata com o Vaticano, dentro da mesma lógica de
acomodação ao mundo cristão ocidental. Entre a população, tal dívida foi e é paga,
principalmente com o incentivo à alienação nacional.
O vodu como cosmovisão e a representatividade feminina
Como apontado por Jean Price-Mars (1928), além de uma religião, o vodu é uma fonte
viva de música, de dança, de literatura oral, da cosmovisão de uma população inteira. Quando
dizemos isso, nos referimos a como o vodu, muito mais que uma religião, está presente no
cotidiano do Haitiano. No vodu, religião, por exemplo, existe o que se chama dupla alma, uma
delas, é o “Bon anj” (“bom anjo”), que dirige a vida afetiva e intelectual da pessoa. No
momento do transe esse “bom anjo” deixa o corpo da pessoa que, sentindo um vazio e uma
perda de consciência, passa a dar lugar à divindade. No dia a dia do povo haitiano, é comum,
por exemplo, a expressão “ou san bon anj” (“você está sem seu bom anjo”) que significa, que
parece uma pessoa tonta, perdida, sem rumo. A mulher no Haiti é chamada de “poto mitan”,
indicando que ela é o pilar da sociedade. Esse termo “poto mitan” (poste central) também
provem do vodu. É um poste geralmente de madeira, que está no centro do peristil (templo
religioso dos voduístas), ao entorno do qual se celebram as cerimônias, e designa o eixo vertical
que estabelece a comunhão ou comunicação com as divindades. É nesse sentido o pilar das
cerimônias voduístas.
Essa adaptação da sociedade do termo voduísta para se referir à mulher não está
separada da realidade voduísta em si. No vodu, não existe diferença hierárquica entre mulher
e homem. Os dois são igualmente representados. Dentro das representatividades da mulher
haitiana estão, entre outros, os lwa (divindades do vodu), Èzili Freda e Èzili Dantò. O amor
4 Para mais informações Cf. NÉRESTANT, Micial M. 1994. O estudo mostra como a França exorta
o bloqueio comercial e o isolamento do Haiti aos Estados Unidos, Espanha, Inglaterra, para que este
não corrompesse as demais colônias.
romântico e a possibilidade de se fazer querer são exaltados e divinizados na personagem de
Èzili Freda, deusa do amor, que representa a mulher romântica e admirada, e o equilíbrio
financeiro. Produto de uma experiência feminina subjugada sexualmente e torturada pelo fato
de ser mulher e mestiça durante a colônia, ela está numa busca incessante de amor sem, por
conseguinte, ser submissa, pois, ela tem e simboliza o controle dos relacionamentos. Èzili
Dantò, a sua vez, negra, representa as mães solteiras e independentes, já que a mesma é. Ela à
diferença de Freda, não procura um companheiro romântico, pois se dedica ao cuidado da sua
filha. Revolucionária da guerra de independência, é uma mulher militar patriótica, que
caracteriza a força e independência feminina, a sabedoria popular haitiana. A ela é atribuída a
proteção contra abuso sexual e doméstico das mulheres hétero e bissexuais.
Através dos lwa, o passado colonial, escravagista é lembrado. As Èzili mostram como
a questão racial e de classe estão interligadas, pois, Freda é mestiça e com certo controle
financeiro, Dantò é negra, mãe solteira, que lembra a massa pobre. Bem que um lwa
independente do gênero pode ser incorporado tanto por homem e mulher, as Èzili têm um papel
fundamental em como as mulheres haitianas se veem e, sobretudo, representam a necessidade
ou preocupação de serem guerreiras e amadas.
Uma nova investida pós-colonial: a intervenção estadunidense e a implantação do
protestantismo
Como espaço substitutivo de dominação colonial, os Estados Unidos, sempre de olho
no país, em 1913 tentaram intervir na política interna da República Haitiana. Em 1914, foi
apresentado um projeto relativo ao controle das alfândegas e uma ajuda militar ao país. As
incessantes revoltas dos cacos e dos piquets, grupos revolucionários de camponeses haitianos
do Norte e do Sul que surgiram na segunda metade do século XIX contra das injustiças sociais
no país, iam dar ao governo estadunidense, argumentos para vir ao socorro da república negra
invadindo seu território. De 1915 a 1934, tempo do processo de dominação do Haiti pelos
Estados unidos, o vodu passou novamente a figurar como objeto de estereótipos, difundidos
estes nos Estados Unidos e na Europa pela imprensa e, sobretudo, no cinema, como um culto
de canibais em que imperam sacrifícios e bruxaria. O filme White Zombi, lançado em 1932,
por exemplo, primeira produção de terror dos EUA baseado na “superstição” negra, do vodu,
deu espaço para outras produções que atraíram cada vez mais público, como I walked with a
zombie de 1943, e The Serpent and the Rainbow de 1988, entre outros.
Muitos desses filmes e artigos de jornais foram produzidos a partir dos estudos
antropológicos de cientistas no Haiti, com a ideia de mostrar o “exótico” dessa nação negra. Já
que a conversão pela força não conseguia erradicar a crença da população nas divindades da
Guine, foi criado um centro antropológico, não para valorizar a cultura através do estudo, mas
através do estudo, — entendendo nos mínimos detalhes as ligações do campesino com o vodu
— combatê-lo melhor. Assim, o mesmo presidente que oficializou sua fundação, Élie Lescot,
um ano antes, empreendeu nova caça, iniciada a partir de 1939, aos praticantes desse “culto
diabólico” por meio de uma “Campanha anti-supersticiosa”, ou “Campanha dos rejeitados”.
Durante a campanha, especialmente os habitantes das áreas rurais, tiveram, mediante um
juramento público nas igrejas, declarar que renunciavam ao vodu, porque este não passaria de
idolatria e obra de Satanás. Vários templos, imagens e objetos foram queimados, árvores
também foram cortados, pois eram a moradia das divindades vodu.5 Como já demostrado no
decorrer do trabalho, essa repressão não era simplesmente contra do vodu em si, mas contra o
considerado primitivo e a barbárie que ele representava no país dentro do conjunto dos aspectos
culturais próprios da população.
A negação cultural a esse modo de vida, promulgada no decreto-lei de 1935, estabelece
que “todas as danças e outras práticas que ousem manter nas populações o espírito de
fetichismo e superstição serão considerados como feitiços e, consequentemente, punidos”. Do
mesmo modo, o decreto proibia “as cerimônias, os ritos, as danças e as reuniões em que os
sacrifícios de gado ou aves fossem oferecidos como uma oferta às supostas divindades.”
(LALIME, Thomas, 2014, tradução nossa). Nesse processo, o tambor, instrumento principal
das cerimônias voduístas, foi também perseguido como “objeto a serviço do demônio”.
Com a ocupação estadunidense, à influência da igreja católica veio se juntar o
protestantismo, mais exatamente sua vertente pentecostal. Fritz Fontus, em seus estudos,
constata um crescimento exponencial do protestantismo pentecostal no país entre 1970 e 2000.
Em 1996, os praticantes do protestantismo eram 39% da população, contra 49,6% de católicos.
Segundo F. Fontus, este crescimento se deve sobretudo pelo uso da língua kreyòl dentro das
igrejas protestantes, seguida da tradução da bíblia em kreyòl, e da presença constante da igreja
5 Mais informações, Cf. HURBON, Laënnec. 1993.
protestante na vida cotidiana da massa, através de programas agrícolas, escolas, promoção
social, cuidados de saúde, etc. Enquanto o catolicismo tinha como objetivo tirar o país das
barbaridades, erradicando os aspectos que representavam esse atraso cultural, o protestantismo
se instituía agora com o discurso materialista, atribuindo ao vodu as responsabilidades do atraso
econômico e dos governos ditatórias. Sua missão era então tirar o país da pobreza através da
evangelização de “Deus” em contraposição ao demônio adorado pelos voduístas que só
queriam a perdição da nação.
Como espaço de resistência a tal imposição, nas décadas de 1920 e de 1930,
movimentos intelectuais, frutos do nacionalismo surgido, reforçado e desejado contra a
ocupação militar estadunidense, começaram a surgir. Entre eles o movimento da negritude e o
movimento indigenista.6 Por meio desses movimentos, se deu um novo reconhecimento do
vodu e do kreyòl como constituição do ser haitiano pelas elites intelectuais. Intelectuais como
Jean Price-Mars, no seu estudo Etnográfico Ainsi parla L’oncle (1928) é o primeiro a defender
o vodu como religião e estimular a sua aceitação no seio da sociedade. Nos mesmos anos vemos
outras produções como de Suzanne Sylvain em ―Le Créole haïtien: morphologie et syntaxe
de 1936, que demostram o crioulo como língua. Defendem sobretudo a importância desses
traços africanos na identidade nacional. O homem negro é valorizado assim como suas
produções culturais. No final dos anos 50, o vodu passa a ser usado politicamente. François
Duvalier, ditador de 1957 à 1971 — seguido por seu filho até 1986 — membro do movimento
indigenista, definia o vodu como alma do povo. No entanto, apesar de não oficializar nenhuma
religião, não reconhece o vodu como tal, antes disso, passou a usar a religião como outra forma
de manter a população dominada, pois o ditador que se dizia adepto, fazia acreditar que possuía
poderes do vodu para governar, reforçando a imagem negativa que se tinha do vodu na
sociedade, relacionando-o ao mal. (HURBON, Laënnec 1979, 1988). Em sua ditadura dita
nacionalista, Duvalier antes haitianizou o clero católico, fazendo nomear os primeiros bispados
Haitianos e, obtém assim, seu apoio durante a ditadura.
Pressionado pelos movimentos sociais dos ougan (sacerdote do vodu), dos artistas,
das mulheres e de todas as camadas da sociedade o sistema democrático foi restituído através
da constituição de 1987. A nova constituição democrática não faz referência a nenhuma
6 O movimento indigenista nasceu sob a ocupação americana e lutou pela independência do Haiti,
reafirmando a africanidade da cultura haitiana, particularmente através do vodu.
religião como oficial da nação, mas, em seu artigo 297 revoga todas as Leis, os Decretos-Leis
e Decretos que restringiam os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, entre outros o
decreto-lei de 1935 sobre as crenças supersticiosas. Somente por decreto em 2003 o vodu foi
reconhecido como religião, elevado ao mesmo patamar de qualquer outra religião, podendo
celebrar casamento, batismos, enterros, etc. Está subordinado ao Estado como todas as demais
religiões.
Conclusão
O conceito de identidade nas ciências sociais é muito vasto, é bastante difícil falar de
identidade dentro de uma realidade de maneira concisa e objetiva. No entanto,
É possível definir identidade como o processo pelo qual uma pessoa se
reconhece e constrói laços de afinidade, […]. Assim a noção de identidade
pode referir-se às formas como indivíduos ou grupos/coletividades se
reconhecem […] constituindo, ao mesmo tempo, um elemento distintivo e
unificador. (FERREIRA, Marieta de Moraes; FRANCO, Renato. 2013. p.
108)
Nesse trabalho, não apresentamos a identidade do haitiano, mas, aspectos dessa
identidade. Os principais aspectos dessa forma de identificação se baseiam no kreyòl e no vodu.
O haitiano, mesmo praticante do catolicismo ou do protestantismo, ou de qualquer
denominação, no seu dia a dia, vive o vodu.
O desenraizamento de mais de 500 mil africanos negros escravizados, na ilha de Saint-
Domingue, por três séculos, levou a reorganização do mundo por esses escravizados. Nisso o
vodu foi de incontestável importância. Por meio dessa redefinição, ressignificação, e a
construção de uma comunidade solidária por meio da religião e da língua, foi possível a Bataille
de Vertière em 1803 e a proclamação da independência em 1804.
Mesmo após o reconhecimento do vodu e sua legalização por parte do Estado, as igrejas
católicas e protestantes, principalmente as pentecostais, continuam a apresentar o vodu nas suas
pregações, abertamente como o “culto ao demônio”. Pois, mais de dois séculos de perseguição,
de propagação negativa, não podem ser esquecidos e apagados simplesmente com reconhecer
no vodu uma religião como qualquer outra, sem políticas públicas para a valorização da
principal marca de identidade do povo. Sem contar com o fato de o Estado Haitiano, mesmo
não reconhecendo nenhuma religião como oficial, mesmo dizendo que todas as religiões são
tratadas de iguais formas pelo Poder Oficial, é religioso, e católico. O que se pode observar
com as celebrações de te deum em todas as investiduras presidenciais, e os demais eventos
governamentais. O Catolicismo assim, continua sendo a religião prestigiada do Estado.
Os porquês desta renegação, variam de acordo com como os intelectuais tratam do tema.
Para alguns, os chefes do Estado não teriam como trazer o desenvolvimento econômico que o
país necessitava, sem a adoção do francês como língua, visto também que o kreyòl não possuía
escrita. No caso do vodu, era mais uma preocupação com a imagem do país no exterior que
levou a sua perseguição. No entanto, o fato é de como os discursos do evolucionismo, os
conceitos de civilização e barbárie, as hierarquizações de superior e inferior, baseado numa
perspectiva eurocêntrica, branca, católica e tudo o que a Europa tem como moral, configuram
as principais causas dessa alienação do Estado, da sua elite.
A pregunta então é: como pessoas que experimentaram o desprezo e a opressão do
homem branco colonizador, após finalmente se livrarem de seu domínio, passam a tomar seu
lugar, tendo os mesmos discursos e atos? Frantz Fanon (1952, 1961) e Aimé Césaire (1950)
respondem, explicando os resultados do colonialismo e da colonialidade introduzidos na
mentalidade dos oprimidos, que passam então a usar as “máscaras brancas”. Como vimos no
decorrer do trabalho, o colonizador não se contentou em arrancar da mente do colonizado todos
os seus conteúdos e significados, oprimi-lo, matá-lo, também deformou, desfigurou, moldou
um outro sistema de valores entre os oprimidos. O propósito “universal” do colonialismo era
convencer também o colonizado de que o estava removendo da obscuridade. Uma das
consequências foi que o sujeito, oprimido pela empresa fundamentalista, intolerante, autoritária
e racista do colonialismo, por falta de um centro cultural próprio a ele, depois da partida do
colonizador, queria o substituir, ocupar seu lugar, ser um colonizador. No caso do Haiti, tudo
o que foi refutado pelo francês dominador durante a escravidão, continuou de ser refutado após
a abolição, desta vez pelos próprios haitianos, na maioria das vezes mestiços, que controlavam
o poder. No então, a contrapelo dessas investidas, através de todo o tempo de opressão, o vodu,
assim como o kreyòl, sempre consistiram em uma forma extremamente poderosa de resistência.
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