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XII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação - SEPesq
Centro Universitário Ritter dos Reis
XII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação SEPesq – 24 a 28 de outubro de 2016
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As primeiras frases de um conto
Iuli Gerbase Mestrando em Escrita Criativa - Letras PUCRS [email protected]
Resumo: O presente artigo pretende refletir sobre teorias que abordam as frases iniciais dos contos. Serão analisados trechos de manuais que tentam guiar o escritor sobre como começar o seu breve texto ficcional. Também serão utilizados, como base ilustrativa, as primeiras frases da antologia de contos da Oficina de Criação Literária da PUCRS de 2015, ministrada por Luiz Antonio de Assis Brasil.
1. Introdução
A escolha do início de qualquer narrativa é um momento importante
para o escritor. São as primeiras frases que despertarão o interesse do leitor ou
o farão abandonar o livro. Diversos inícios de romances ficaram famosos.
Podemos citar o início de Lolita, de Nabokov, reverenciado por seu ritmo,
sonoridade e conteúdo: “Lolita, luz da minha vida, fogo da minha carne. Minha
alma, meu pecado. Lo-li-ta: a ponta da língua toca em três pontos consecutivos
do palato para encostar, ao três, nos dentes. Lo. Li. Ta.” (NABOKOV, 1959, p.
5) Outro início de romance que é celebrado até hoje é o de Ana Karênina, de
Tolstói, com as duas frases impactantes: “Todas as famílias felizes são
parecidas entre si. As infelizes são infelizes cada uma a sua maneira.”
(TOLSTÓI, 1997, p.9)
Este artigo procura reunir manuais e sugestões vindos de diferentes
autores sobre o início do conto. O intento é analisar as recomendações e
encontrar diferenças e semelhanças entre elas. Para examinar se algumas
destas sugestões foram colocadas em prática por escritores brasileiros
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iniciantes, serão apresentados trechos da antologia “Naufrágios Urbanos”, com
contos que são frutos da Oficina de Criação Literária da PUCRS de 2015,
ministrada por Luiz Antonio de Assis Brasil. O livro possui quarenta contos de
onze autores.
2. Desenvolvimento
Em um conto, o escritor não contará com duzentas páginas para
envolver o leitor com a narrativa criada. Enquanto o romance pode apresentar
múltiplas tramas e um universo com diversos personagem que relacionam-se
entre si, o conto precisa ser mais sucinto e restrito em sua narrativa.
Contos tendem não ser mais longos que quinze mil palavras (aproximadamente sessenta páginas de espaço duplo), e a maioria é menor que isso. (...) Contos com apenas uma ou duas páginas estão na moda. O conto é o equivalente literário de uma música. Não são necessariamente menos complexos emocionalmente que romances, assim como “Amazing Grace” não é menos poderosa que a “Nona Sinfonia de Beethoven”. (STEELE, 2013, p.9)
Dito isso, é possível que o início do conto seja ainda mais importante
que o do romance. Portanto, cada frase de um conto precisa ser expressiva.
Segundo o contista Horácio Quiroga, “Num conto bem feito, as três primeiras
linhas têm quase a mesma importância das três últimas.” (QUIROGA, 1927. p.
1) Embora o conto seja geralmente o texto ficcional em que um escritor realiza
suas primeiras tentativas de criação, há quem considere a escrita do conto
mais complicada que a do romance. Obviamente, escrever tanto um conto
quanto um romance mediocre é fácil, porém criar um texto significante é
sempre desafiador, mesmo que este possua apenas cinco páginas.
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Metamorfose, de Kafka, é chamado por alguns de conto, por outros de
novela. Sua abertura é inesquecível: “Numa manhã, ao despertar de sonhos
inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco
inseto.” (KAFKA, 2001, p.3) Em apenas uma frase, o leitor recebe a informação
de que o personagem principal acordou transformado em um inseto. Este fato,
entregue rapidamente, causa certa confusão na cabeça do leitor. Ele precisará
continuar o conto para entender o que aconteceu com Gregor e descobrir como
será sua vida pós-transformação. Logo, esta primeira frase torna o abandono
do conto quase impossível. Além de perturbadora, é direta e instigante.
O livro Story, de Robert Mckee, talvez o mais conhecido pelos aspirantes
a roteiristas, apresenta-se como um manual para escritores. Apesar de sempre
utilizar filmes como exemplos, Mckee afirma que seus conselhos podem ser
usados também para a escrita de literatura e dramaturgia. Seguindo os passos
de Syd Field, autor de Manual do Roteirista, Mckee divide a narrativa clássica
em uma estrutura de três atos: apresentação, desenvolvimento e conclusão.
No primeiro ato, devemos apresentar o que Mckee chama de “incidente
incitante”: um acontecimento que gera uma transformação na vida do
personagem. É ele quem apresenta o conflito que será abordado ao longo da
narrativa. Em “Metamorfose”, como visto anteriormente, o incidente incitante é
apresentado na primeira frase. “Traga o Incidente Incitante da trama central o
mais breve possível, mas apenas quando ele estiver maduro. Um incidente
incitante deve ‘segurar’ o público”. (MCKEE, 2006, p.194)
Para a análise do início dos contos da antologia “Náufragos Urbanos”,
foram consideradas apenas as duas primeiras frases de cada um. Eis os que já
trazem o incidente incitante nelas. O conto “Luana Blue”, de Fátima Parodia,
mostra um personagem que acaba de virar um anjo: “Gostou mesmo foi das
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asas de penas azuis que acoplaram em suas costas. Pesavam, mas virar um
anjo tem seu preço”. No conto “Maria”, de Fernanda Mellvee, fica evidente que
algo importante acabou de acontecer, apesar de não ficar explícito logo no
começo: “Maria juntou a bolsa em meio a cacos de vidro e roupas que se
misturavam pelo chão. Ele havia passado dos limites, e nada mais seria como
antes.” Na última frase do conto, que possui menos de uma página ao todo,
descobrimos que ela acabou de matar seu marido durante uma briga.
Fernanda Mellvee novamente inicia o conto com o incidente incitante em
“Dever Cumprido”: “Como isso foi acontecer? – Celeste perguntava,
conhecendo a resposta e orando para que a eficácia de quase cem por cento
do teste fosse apenas uma promessa.” O leitor pode supor, com este início,
que a personagem fez um teste de gravidez que teve resultado positivo. Isso é
confirmado ao longo do conto, que termina com a personagem a caminho de
uma clínica de aborto.
Em oposição aos conto que começam com uma transformação na vida
do personagem, há os que começam com a exposição da rotina deles. Deste
modo, é apresentado um background do personagem. As ações que eles
repetem com frequência podem trazer traços de suas personalidades ou
atividades às quais são obrigados a se submeter. O conto “Dois Nacos”, de
Andréia Pires, apresenta uma personagem que tem tido o mesmo sonho por
diversas noites: “Nas últimas noites que estive no deserto: sozinha no vento,
comendo areia com colher de sopa, olhos piscos para um sol laranja, e uma
pergunta queimando a garganta: esse sonho outra vez, para quê? Acordo
seca.” A autora também começa com uma exposição de rotina no conto “Ovos
do Ofício: “Fim do turno de trabalho, Renato volta para casa aliviado por
atravessar mais um dia de sorte na corporação”. Maurício Amaro é outro
escritor da oficina que utiliza a técnica em dois contos. Em “Latrodectus
Mactans”: “José Ignácio gosta de sair com prostitutas. Foram três só na
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semana passada”. Em “Feliz Aniversário”: “Todos os dias Paulo acorda no
mesmo horário. Serve uma xícara de café, lê um ou dois poemas de
Drummond e senta-se na varanda para assistir ao nascer do sol”. O Conto
“Hiato entre acidentes”, de André Luiza Costa, também apresenta uma
personagem que vê o sol nascer com frequência: “Nina acompanha o sol
nascer mais uma vez. Silêncio extremo na manhã de domingo.” O conto Valsa-
Vento, de Marcela Danté, revela uma menina que costuma ficar entediada em
hotéis enquanto sua mãe trabalha: “Ela viajava com a mãe porque não podia
ficar sozinha em casa. Então, a mãe saía para mais uma daquelas reuniões
intermináveis e ela ficava lá, no quarto do hotel, sem piscina, academia ou
salão de jogos”.
Apesar de ser importante dar ao leitor uma boa noção da personalidade
e do background do personagem, os contos que começam apresentando sua
rotinas não apresentam a mesma sedução que os iniciados pelo incidente
incitante. Se Metamorfose, de Kafka, começasse com as frases: “Gregor
Samsa foi dormir após mais um dia de trabalho monótono. Colocou seu pijama
e deitou na cama onde dormia há dez anos”, com certeza não causaria o
mesmo impacto.
Diversos contos da antologia apresentam um conflito não através de um
incidente incitante, mas com o uso de palavras que remetem a situações ou
sentimentos negativos. Selecionando apenas uma palavra do início (duas
primeiras frases) de cada conto, podemos levantar: perdido, pesavam,
confinada, cacos, despencasse, orando, impossível, silêncio, morto, sozinha,
incapaz, porcamente, penumbra, intermináveis, mau, calada, assustada,
bagunça, impessoalidade, solitário, pânico. Podemos dizer, ao analisar os
contos, que a maioria apresenta um tom dramático, com personagens em
situações desagradáveis ou tristes. Segundo Anton Tchékhov, isso seria um
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sinal de que os escritores desta oficina são, de fato, felizes. Em uma carta em
resposta a Lídia Avílova, uma leitora sua, ele lhe escreve:
“A senhora se queixa de que meus protagonistas são tenebrosos. Ai de mim, a culpa não é minha! (...) É sabido que as pessoas sombrias, os melancólicos escrevem sempre coisas alegras, ao passo que as pessoas cheias de alegria de viver suscitam tristeza com seus escritos” (TCHÉKHOV, 2007, p. 35)
Há contos da antologia que preocupam-se em, já nas duas primeiras
frases, em situar o leitor no ambiente em que a história se passa. O espaço
físico pode ser um fator essencial tanto para a seleção do conflito como para a
construção do personagem. O caráter do personagem não precisa estar
diretamente ligado ao espaço onde ele vive. Um fazendeiro não precisa ser
rude e gostar de churrasco. O dever do escritor é, justamente, tentar fugir dos
estereótipos existentes. Entretanto, o ambiente onde a narrativa se passa
restringe as ações dos personagens. Ele deve lidar com o conflito dentro das
possibilidades que estão disponíveis a ele. Temos citados como ambientes nas
duas primeiras frases: cidade de São Paulo, um castelo de papelão, à porta do
abrigo, em meio à pampa ondulada, nove metros quadrados de branco e uma
lâmpada porcamente centralizada, na varanda, sala de jantar, quarto de hotel,
bar, à mesa, quarto, areia, casa, vitrines, ônibus.
Outros contos indicam o ambiente sem citá-lo diretamente, como é o
exemplo do início de “Também existem pessoas em Montevidéu”, de André
Luiz Costa: “A iluminação gélida é desprovida de existência. Os produtos têm a
impessoalidade generalizada daqueles que esperam, organizados e
disponíveis, para serem escolhidos e repostos logo em seguida.” Com estas
duas frases, o leitor rapidamente supõe que o personagem encontra-se em um
supermercado. A indicação (implícita ou explícita) de um cenário é um modo
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prático de criar uma imagem para o leitor. Os leitores sabem que
supermercados são semelhantes entre si. No caso deste conto, não há
necessidade de descrever os corredores com muitos detalhes. Sobre
descrições muito detalhadas, Tchékov afirma:
“Procedimentos corriqueiros nas descrições em geral: ‘Uma estante junto à parede abundava em livros variegados’. Por que não dizer simplesmente ‘uma estante de livros’? (...) Você desvia a atenção e cansa o leitor, obrigando-o a parar para imaginar a estante variegada”. (TCHÉKOV, 2007, p. 63)
Tchékov é um escritor conhecido por sua habilidade em narrativas
curtas. Esta sugestão do autor de restringir o tamanho das descrições convém
à escrita de contos, que devem apresentar brevidade e unidade.
Edgar Allan Poe, também consagrado por seus contos, defende que a
primeira frase já deve conduzir a narrativa em busca do efeito que o escritor
deseja obter:
Um artista literário habilidoso constrói um conto. Se é sábio, não amolda os pensamentos para acomodar os incidentes, mas, depois de conceber com cuidado deliberado a elaboração de um certo efeito único e singular, cria os incidentes, combinando os eventos de modo que possam melhor ajudá-lo a estabelecer o efeito anteriormente concebido. Se a primeira frase não se direcionou para esse efeito, ele fracassa já no primeiro passo. Em toda a composição não deve haver sequer uma palavra escrita cuja tendência, direta ou indireta, não leve àquele único plano preestabelecido (POE, 2004, p. 338).
3. Considerações Finais
A qualidade das primeiras frases de um conto são essenciais à
narrativa. Elas podem, entre inúmeras possibilidades, criar suspense,
apresentar o conflito, situar o leitor no tempo e espaço, abrir com um diálogo,
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estabelecer o clima, desenvolver o personagem e trazer informações que são
anteriores à história apresentada.
Os quarenta contos da antologia “Naufrágios Urbanos” exploram estas
diversas possibilidades. Há quem diga que as oficinas literárias apresentam o
perigo de criar escritores semelhantes, com textos padronizados e impessoais.
Se isso fosse verdade, ninguém deveria ter aulas para aprimorar uma forma de
arte. A análise dos contos da antologia prova que os alunos são estimulados a
escolher seu caminho narrativo, da primeira à última frase.
Referências
EDUARDO, Gabriel et al. Naufrágios Urbanos. Porto Alegre: Terceiro Selo.
2015.
FIELD, Syd. Manual do roteiro. Rio de Janeiro: Editora Objetiva. 1995.
KAFKA, Franz. Metamorfose. São Paulo: Coleção L&PM Pocket, 2001.
MCKEE, Robert. Story. Curitiba: PR. Arte & Letra Editora. 2006.
POE, E. A. Ficção completa, poesia e ensaios. Rio de Janeiro: Aguilar,
2004.
NABOKOV, Vladimir. Lolita. Rio de Janeiro: Editora Civilizaçåo Brasileira.
1959.
QUIROGA, Horacio. Decálogo do Perfeito Contista. Buenos Aires: Revista
Babel. 1927.
TCHÉKOV, Anton. Sem trama e sem final. 99 conselhos de escrita. São
Paulo: Martins. 2007.
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TOLSTÓI, Liev. Ana Karênina .São Paulo: Nova Cultural. 1997.
STEELE, Alexander et al. Gotham Writer’s Workshop: Writing Fiction. New
York: Bloombsbury. 2003.