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xismo uma ciência? - Pesquisa Fapesp...século 20, Bertold Brecht, muito res-peitado e que muito admiro, que dizia o seguinte: "Avitória da razão só pode seravitória daspessoas

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  • • o senhor ainda hoje considera o mar-xismo uma ciência?- Não uma ciência, mas um horizon-te filosófico, que é, possivelmente, omais rigoroso, o mais rico de nossotempo.

    • Em 1990 o senhor publicou o livro In-telectuais Brasileiros e Marxismo, eafirmou não se poder escrever sobre ahistória do pensamento brasileiro do sé-culo 20 sem mencionar o marxismo.- A observação continua válida. Pos-sivelmente escrevo textos que penso es-tarem envelhecidos, mas não é verdade.O marxismo marca a história para obem e para o mal. Afinal, também apre-senta certas limitações, típicas do pen-samento de uma sociologia da culturabrasileira e encontraríamos essas limi-tações no pensamento da direita e da es-querda, também.

    • Quais são essaslimitações do marxismo?- Aqui, o marxismo assumiu uma for-ma muito doutrinária. Cedemos à tenta-ção de fazer do pensamento uma doutri-na, e essa é uma forma de expressão depensamento que aprisiona, gera cobran-ças. Logo aparecem os patrulheiros dadoutrina e isso cria uma dificuldade deabertura para o novo. Tanto o pensa-mento de esquerda quanto o de direita eaté mesmo o liberal e o centrista se dei-xam revestir de uma forma doutrinária.

    • Há quatro anos, o senhor participoudos cem anos do Manifesto Comunista,em Paris. As idéias do socialismo foramincorporadas pelo capitalismo? O senhorainda é um socialista?

    " - Com certeza, ainda sou um socia-lista e as idéias do socialismo são utili-zadas pelo capitalismo, mas sempre,inevitavelmente, de uma maneira de-formada. O capitalismo é incompatí-vel com o socialismo. O capitalismo ten-ta aproveitar elementos do socialismode uma maneira mais ou menos opor-tunista, às vezes com habilidade, outrassem. Continuo a acreditar que é a subs-tituição de um sistema por outro siste-ma. Como isso vai ser, eu não sei. Nãosou o campeão do pensamento político,não tenho a pretensão de ditar e indi-car caminhos, há porém uma direçãon •••qual a busca é possível. Uma direçãoque corresponde a uma demanda tra-dicional de se conjugar democracia àliberdade e justiça social, coisa que o li-

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  • beralismo não consegue fazer. Temosconsciência de que podemos fazer isso,só que ainda não sabemos como.

    • Por que o senhor acha que a ciência po-lítica não existe?- Tenho a impressão de que aquiloque se produziu em termos de ciênciapolítica talvez não seja tão científico as-sim. Mesmo quando é respeitável e cor-responde a uma realidade nossa, de nos-so esforço de conhecer a realidade dapolítica, esse saber não é um saber quepossamos considerar pacificamentecientífico. Mas, de qualquer maneira,tento participar da política e defenderdeterminados valores, não só no planoteórico como também no prático. Lem-bro-me de um autor e teatrólogo doséculo 20, Bertold Brecht, muito res-peitado e que muito admiro, que diziao seguinte: "Avitória da razão só podeser a vitória das pessoas razoáveis, a ra-zão não existe por si mesma, ela existena conduta, na ação das pessoas. Então,se as pessoas razoáveis não vencem, arazão não prevalece.A vitória das idéiasé a vitória dos portadores materiais dasidéias. Pessoas razoáveis têm de fazerpolítica para que a razão prevaleça,porque não há outro meio de prevale-cer, a não ser por meio da política fei-ta pelas pessoas razoáveis".

    • Na literatura brasileira, um dos seusautores prediletos é Carlos DrummonddeAndrade. Existiu uma relação de ami-zade entre vocês ou só mesmo a admira-ção pelo poeta de Itabira?- O sentimento de amizade é fortedemais. A partir de um determinadomomento escrevi para Drummond e'ele me respondeu, então trocamosumas poucas cartas, só umas quatroou cinco. Foi muito generoso nos bi-lhetinhos que me mandou quandoescrevi um artigo sobre quando elecompletou 80 anos e eu disse: "Gentevamos deixar o poeta em paz e tentarnão fazer badalação em torno dele".Pois Drummond era avesso a isso. Eleagradeceu muito e comentou: ''Agoravocê virou um amigo". No entanto,acho que era força de expressão, evi-dentemente não era amigo dele, nãotínhamos intimidade. Sua importân-cia como poeta tende a crescer e suaobra será reconhecida como uma obramaior com o passar do tempo. É cla-ro que Drummond tem poemas mais

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    expressivos e outros menos, mas deforma geral tem uma obra muito rica,e em seu auge escreveu poemas abso-lutamente geniais.

    • Um pouco parecido com o senhor, quenão gosta de polêmica, de badalação?- Machado de Assis dizia: "Sofro detédio à controvérsia': Gosto do diálogo,da diferença, mas quando essa se ma-nifesta muito agressivamente, falta pa-ciência. B muito chato dizer para umapessoa: "Você é um idiota". Não gostode dizer que os outros são idiotas, afi-nal posso estar enganado, pode ser quehaja inteligência naquele mundo demeu oponente agressivo, seria entãocometer uma injustiça. E, no entanto,quando estou irritado, posso cometerinjustiças mais facilmente.

    • O Alberto, sapateiro e anarquista, e aBartoloméia, que compõe frases de auto-res famosos com uma crítica voraz, sãovizinhos e personagens de suas crônicas.Como é para um pensador marxista es-crever sobre um anarquista?- Eu simpatizo muito com o anarquis-mo, embora não me convença de suajusteza política. O anarquismo tem umacerta grandeza de alma, mas uma certaineficáciapolítica notória. Então, eu quiscriar um personagem com o qual pu-desseme identificar, independentemen-te das divergências políticas. O Albertoé um personagem que tem uma inte-gridade rebelde que me fascina muito,ele é um pouco um alter ego que crieipara mim, liberado das preocupaçõespolíticas, da política mais imediata. Al-berto é um radical, mas pode até ser ra-dical, exatamente por não ser muito efi-ciente, e essa radicalidade faz falta hojeem dia. Na sociedade contemporânea,medimos tudo, inclusive as paixões.Acho isso um absurdo: a paixão, nessecaso, é incomensurável, não pode sermedida, se puder não é paixão. Aí entãoinventaram as paixões medidas e o Al-berto é uma reação contra isso. Quan-to à Bartoloméia, pensei nela comouma surrealista, que expressa um ladomeu com uma enorme simpatia pelosurrealismo como um movimento his-tórico artístico cultural.

    • O senhor diz ter um imenso prazer emlecionar para a graduação e os alunosdisputam um cantinho nas salas lotadasda PUC para ouvi-Io. O mais comum é

    que intelectuais de seu porte optem so-mente pela pós-graduação.- Eu adoro dar aula. Quando dou umaboa aula e vejo os olhos dos alunos bri-lharem, sinto um prazer imenso. Aque-la é a hora em que libero a vaidade, e agratificaçãoé enorme. Ao mesmo tempo,tenho consciência de que a graduaçãoprecisa de "nós'; pois é o momento emque podemos exerceruma influência es-pecial sobre as convicções dos alunos.Por outro lado, também precisamos dagraduação. Sinto que preciso da gra-duação, os alunos da graduação me aju-dam até mesmo quando não falam, comsuas expressões, reações, fisionomias.Percebo quando uma idéia tem maisforça junto a eles e quando não mexecom eles. Aí, posso repensar e tentaraprofundar e desdobrar minha idéiaem outra argumentação, para ser maisconvincente. Acho que a graduação éum pouco do Brasil real e a pós-gra-duação, um Brasil artificial, precioso,mas limitado, envolve muito poucagente. Então, eu gosto muito da idéia dagraduação: ela abre um campo de com-preensão e de horizontes do professor.

    • Alguns pensadores têm afirmado quevivemos uma crise civilizatória. Qual aanálise que o senhor faz desse momentoda humanidade?- Eu te confesso que às vezesme sintomeio perplexo. Não tenho estofo, nemgabarito, nem base para encaminharuma resposta muito positiva e conclu-siva.Estamos vivendo muitos fatos no-vos, ainda não foram digeridos ou sedi-mentados. O mundo mudou demais naárea da comunicação, por exemplo. Oscelulares, o computador, enfim, essa re-alidade invadiu o nosso cotidiano e evi-dentemente tem efeitos e conseqüên-cias políticas que ainda não fomoscapazes de pensar, nós da esquerda, nóssocialistas. Isso exige de nós um desa-fio, exige que pensemos sobre o novo,mas o novo não surge puro, nítido, eleaparece impuro e confuso. Isso dá umtrabalho danado e eu acho que temosde enfrentar. A resposta a essa perguntanão virá de nenhum teórico, de nenhu-ma cabeça pensante, privilegiada, lúci-da. Virá sim da experiência das massas.

    • A globalização tem se apresentado comoum fenômeno cada vez mais excludente nomundo contemporâneo. Qual a reflexãoqueo senhor faz a respeito de tal fenômeno?

  • - Eu acho que, de alguma forma re-presenta a velha teoria do imperialis-mo, que em vários aspectos está ampla-mente superada, mas que às vezes meparece uma espécie de antecipação des-sa desgraça que veio depois. O imperia-lismo não serve como explicação, mas éa manifestação da percepção de umproblema que está se criando e que seagravou do século 20 para cá: o proble-ma de uma mundialização muito de-formada e controlada por alguns, emprejuízo de muitos.

    • O senhor é de uma família tradicio-nalmente reconhecida como de históricoscomunistas. Seu irmão, o escritor e jor-nalista Rodolfo Konder, optou hojepor ca-minhos diferentes. O afeto superou as di-ferenças na relação?- Eu nunca briguei com meu irmão.Aceito a opção dele como opção dele,que não é a minha. Sempre mantive-mos um diálogo muito fraterno, muitocarinhoso. É importante respeitar as di-ferenças. Acho que uma relação pes-soal, íntima e que se constrói ao longode muitos anos é preciosa. As alianças edesalianças, acordos e desacordos dapolítica são muito instáveis. Hoje esta-mos de acordo com uma pessoa, e logodepois divergimos. Uma das caracterís-ticas ruins da mentalidade doutrináriaé transformá-ia em receituário para avida e aplicar a doutrina até nas rela-ções afetivas,que são sempre mais ricasdo que qualquer doutrina jamais pode-rá reconhecer.

    • O senhor é um socialista ateu?- Eu acho que sim. O papel da religião,precisaser repensado, a tradição marxis-ta está envelhecida e precisa ser revista.A religiãoe a consciênciareligiosaé maisrica do que Marx podia conhecer. Elenão presenciou certas formas de cons-ciênciareligiosaque não eram típicas deseu tempo. Essa minha revisão e reava-liação positiva do papel da consciênciareligiosa não significa o abandono daminha descrença básica de ateu. Recen-temente, tive um encontro com protes-tantes luteranos e foi uma conversa tãoboa que no fim eles me perguntaram:vocêacredita em Deus? Sentindo o quehaviapor trás dessa preocupação deles,comquem havia tido concordâncias po-líticasimportantes, respondi: não acre-dito em Deus, mas tenho boas relaçõescom ele.

    • O senhor, assim como o antropólogoDarcy Ribeiro (1922-1997), tem interlo-cutores marxistas e católicos, como Leo-nardo Boff e Frei Betto. Existe algum as-sédio de conversão?- Com Leonardo Boff estive poucasvezes, mas com Frei Betto tenho maiscontato e até já viajamos juntos paraCuba. Ele é uma pessoa extremamenteagradável, incrivelmente simpática.Gostei muito de tê-lo conhecido. Fica-mos amigos, criou-se um vínculo deafeto. Ele diz umas coisas muito engra-çadas, como, por exemplo, que gostariade receber a notícia que entrei para umconvento e me converti. Ele é muito in-teligente. Leonardo, Betto e outros sãopessoas que me obrigaram a rever mi-nha concepção do que era a consciên-cia religiosa. É preciso pensar nisso, naexistência de pessoas como essas.Signi-fica que alguma coisa não é exatamen-te aquilo que o velho Marx pensava.

    • Ofilósofo Márcio TavaresdoA~aral, daUFR], depois de maior parte da vida co-mo ateu, se converteu e hoje é católico. Osenhor já pensou sobre essapossibilidade?- A gente nunca deve dizer que dessaágua não beberei. Mas, pelo que co-nheço sobre mim, seria algo artificial,muito pouco convincente para mimmesmo. Tenho respeito, mas não me ve-jo como um místico, um religioso. Nãoé a minha inclinação natural, não é tí-pico de meu feitio.

    • O senhor acredita que as dificuldadesvividas pelo Brasil, como a pobreza e oanalfabetismo, conseguirão ser resolvidasneste começo de século?- Só tenho essa esperança. Seria im-possível para mim continuar uma vidanormal se não acreditasse em um paísmelhor, se achasse que isso que está aíveiopara ficar,que é definitivo.Acho quea gente tem de brigar muito, mas essa é

    uma briga que tem futuro. Uma luta di-fícilno presente, mas, ao que tudo indi-ca, uma luta que vai criar condiçõespara um movimento de transformação,que seguramente superará essa desgra-ceiraexistenteno país.A sociedadebrasi-1eiraé profundamente injusta, marcadapor desigualdades insuportáveis e achoque já está em movimento - não é umsonho. Um movimento complexo, quenão se restringe a um partido só e quepode ser percebido em vários partidospolíticos. Um movimento que pretendereunir senso de realidade, compreensãodos limites e, ao mesmo tempo, disposi-ção para se fazer a mudança. Acho queessa mudança não vai ser feita de acor-do com o figurino antigo, mas já estásendo encaminhada. Espero que avancee isso depende de firmeza, convicção emuito senso de realidade. Acho que jáexiste gente fazendo isso.Quando é quepensei que um operário poderia ter apossibilidade de se tornar presidente doBrasil?Não sei como vai ser esseproces-so, mas é uma situação que já represen-ta uma mudança considerável na histó-ria brasileira.

    • O senhor diz temer muito a vaidade,mas ela faz parte da condição humana.Como o senhor lida com esse sentimento?- Eu sou um vaidosoprevenido,de olhoem mim mesmo. Gosto de mim, masnão confio totalmente em mim. Mante-nho uma certa desconfiança em relaçãoàs minhas idéias positivas e favoráveisao que faço.Em geral,percebo que quan-do escrevo um texto o vejo de maneiramais crítica com o passar do tempo. Emum primeiro momento, tendo sempre aachar que o que escrevi está melhor doque realmente está. Com o passar dosanos, vou redimencionando o texto evejo que não está tão bom quanto pen-sei.Essessentimentos exigem uma certasedimentação que só a vida traz. •

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