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XVº SIMPÓSIO DE FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA DA UNIOESTE – ISSN 21762066 XVº SIMPÓSIO DE FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA DA UNIOESTE 25 A 28 DE OUTUBRO DE 2010 – TOLEDO - PR Página 1 LIVRO DE TEXTOS COMPLETOS DO XVº SIMPÓSIO DE FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA DA UNIOESTE Promoção dos Colegiados de Graduação e de Mestrado em Filosofia da Unioeste Sumário FICHA CATALOGRÁFICA..................................................................................................................................................................................................................................... 4 COMITÊ CIENTÍFICO ............................................................................................................................................................................................................................................. 5 COMISSÃO ORGANIZADORA.............................................................................................................................................................................................................................. 6 APRESENTAÇÃO .................................................................................................................................................................................................................................................... 7 A IDÉIA DE LIBERDADE NO LIMITE DA RAZÃO PURA - Patrícia Kemerich de Andrade ............................................................................................................................. 8 A CONCEPÇÃO DEMOCRÁTICA DE EDUCAÇÃO EM JOHN DEWEY - Altair Alberto Fávero................................................................................................................... 14 ANÁLISE DO FILME AS AVENTURAS DO BARÃO DE MUNCHAUSEN SOB O VIÉS DA FILOSOFIA DA LINGUAGEM – Job Lopes e Luciane Schröder .............. 20 DIÁLOGO E EDUCAÇÃO EM GADAMER - Evanildes Lorencena .................................................................................................................................................................... 22 CONCEPÇÃO CÍCLICA DE HISTÓRIA: POLÍBIO E MAQUIAVEL - Maicon José Fortunato ........................................................................................................................ 30 O ESTATUTO DA PERCEPÇÃO EM DESCARTES - Geder Paulo Friedrich Cominetti .................................................................................................................................... 36 OBJETIVO DA AÇÃO EDUCATIVA NO PENSAMENTO DE JOHN DEWEY - Rogério Antônio Hermes .................................................................................................... 44 PODER, LEGITIMIDADE E JUÍZO POLÍTICO EM HANNAH ARENDT - Rodrigo Moreira de Almeida ....................................................................................................... 50 CARL SCHMITT: A CRISE DA DEMOCRACIA PARLAMENTAR E O ANTAGONISMO POLÍTICO (AMIGO/INIMIGO) - Edison Alencar Casagranda ....................... 57 A PROPENSÃO AO MAL COMO OBSTÁCULO AO BOM AGIR MORAL - Ramon Matzenbacher ............................................................................................................... 68 CONSIDERAÇÕES SOBRE A ABORDAGEM PRIVATIVA DA VIDA EM SER E TEMPO - André Luiz Ramalho da Silveira ..................................................................... 74 LEAF/UFSM: UMA PROPOSTA DE CAMINHOS ENTRE O SABER FILOSÓFICO, A ACADÊMIA E O ENSINO MÉDIO - Marli da Silva ............................................. 80 AGÊNCIA E SOCIEDADE: FUNDAMENTOS PARA A EXPERIÊNCIA EM PETER F. STRAWSON - Cristina de Moraes Nunes .............................................................. 82 PAUL RICOEUR: INTERPRETANDO AGOSTINHO E KANT ACERCA DO MAL Adriane da Silva Machado .......................................................................................... 89 A INFLUÊNCIA DA MÍDIA SOBRE A SOCIEDADE DE CONSUMO À LUZ DAS CRÍTICAS DE HANNAH ARENDT - Amélia Cristina Silva Machado Prieto .......... 96 A ANÁLISE DE BAUMAN COMO TEORIA CRÍTICA: A INSATISFAÇÃO COM O STATUS QUO - Paulo Fernando da Silva ................................................................. 113

XV Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea - Livro de Textos Completos

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XVº SIMPÓSIO DE FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA DA UNIOESTE 25 A 28 DE OUTUBRO DE 2010 – TOLEDO - PR Página 1

LIVRO DE TEXTOS COMPLETOS DO

XVº SIMPÓSIO DE FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA DA UNIOESTE

Promoção dos Colegiados de Graduação e de Mestrado em Filosofia da Unioeste

Sumário

FICHA CATALOGRÁFICA ..................................................................................................................................................................................................................................... 4

COMITÊ CIENTÍFICO ............................................................................................................................................................................................................................................. 5

COMISSÃO ORGANIZADORA.............................................................................................................................................................................................................................. 6

APRESENTAÇÃO .................................................................................................................................................................................................................................................... 7

A IDÉIA DE LIBERDADE NO LIMITE DA RAZÃO PURA - Patrícia Kemerich de Andrade ............................................................................................................................. 8

A CONCEPÇÃO DEMOCRÁTICA DE EDUCAÇÃO EM JOHN DEWEY - Altair Alberto Fávero ................................................................................................................... 14

ANÁLISE DO FILME AS AVENTURAS DO BARÃO DE MUNCHAUSEN SOB O VIÉS DA FILOSOFIA DA LINGUAGEM – Job Lopes e Luciane Schröder .............. 20

DIÁLOGO E EDUCAÇÃO EM GADAMER - Evanildes Lorencena .................................................................................................................................................................... 22 CONCEPÇÃO CÍCLICA DE HISTÓRIA: POLÍBIO E MAQUIAVEL - Maicon José Fortunato ........................................................................................................................ 30

O ESTATUTO DA PERCEPÇÃO EM DESCARTES - Geder Paulo Friedrich Cominetti .................................................................................................................................... 36

OBJETIVO DA AÇÃO EDUCATIVA NO PENSAMENTO DE JOHN DEWEY - Rogério Antônio Hermes .................................................................................................... 44 PODER, LEGITIMIDADE E JUÍZO POLÍTICO EM HANNAH ARENDT - Rodrigo Moreira de Almeida ....................................................................................................... 50

CARL SCHMITT: A CRISE DA DEMOCRACIA PARLAMENTAR E O ANTAGONISMO POLÍTICO (AMIGO/INIMIGO) - Edison Alencar Casagranda ....................... 57

A PROPENSÃO AO MAL COMO OBSTÁCULO AO BOM AGIR MORAL - Ramon Matzenbacher ............................................................................................................... 68

CONSIDERAÇÕES SOBRE A ABORDAGEM PRIVATIVA DA VIDA EM SER E TEMPO - André Luiz Ramalho da Silveira ..................................................................... 74

LEAF/UFSM: UMA PROPOSTA DE CAMINHOS ENTRE O SABER FILOSÓFICO, A ACADÊMIA E O ENSINO MÉDIO - Marli da Silva ............................................. 80

AGÊNCIA E SOCIEDADE: FUNDAMENTOS PARA A EXPERIÊNCIA EM PETER F. STRAWSON - Cristina de Moraes Nunes .............................................................. 82 PAUL RICOEUR: INTERPRETANDO AGOSTINHO E KANT ACERCA DO MAL – Adriane da Silva Machado .......................................................................................... 89 A INFLUÊNCIA DA MÍDIA SOBRE A SOCIEDADE DE CONSUMO À LUZ DAS CRÍTICAS DE HANNAH ARENDT - Amélia Cristina Silva Machado Prieto .......... 96

A ANÁLISE DE BAUMAN COMO TEORIA CRÍTICA: A INSATISFAÇÃO COM O STATUS QUO - Paulo Fernando da Silva ................................................................. 113

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O ARGUMENTO NÃO-ONTOLÓGICO DO PROSLOGION 2 - Diego Fragoso Pereira ................................................................................................................................... 123 ASPECTOS DO SUJEITO MORAL: KANT E PUIG - Alexandro do N. Vaz - Maria de Lourdes Secorun Inácio ............................................................................................ 139

A FORMAÇÃO DA AUTOESTIMA AUTOESTIMA E EDUCAÇÃO - Natiele Prochnau ............................................................................................................................... 150

DEMISSÃO OU ASSUNÇÃO DA EXISTÊNCIA: UMA QUESTÃO MORAL EM SIMONE DE BEAUVOIR - Márcia Regina Viana ........................................................ 157 DEMONSTRAÇÕES NO PRIMEIRO LIVRO DOS ANALÍTICOS ANTERIORES DE ARISTÓTELES – Elton Luiz Rasch ........................................................................ 164 A METAFÍSICA IMANENTE DE ARTHUR SCHOPENHAUER - Fernando de Sá Moreira............................................................................................................................ 172

A FILOSOFIA DO CONCRETO EM GABRIEL MARCEL - José André de Azevedo ...................................................................................................................................... 178

FOUCAULT: O QUADRO E O LUGAR DO SUJEITO - Rafael Fernando Hack ............................................................................................................................................... 186 A HISTÓRIA DO KANTISMO NO BRASIL NA VISÃO DE MIGUEL REALE - Paulo Sérgio de Faria ........................................................................................................ 192

FENOMENOLOGIA E SIGNIFICAÇÃO: A PERCEPÇÃO CORPORAL EM MERLEAU-PONTY - Josiana Hadlich de Oliveira ................................................................ 204 FUNDERENTISMO VERSUS FALIBILISMO - Remi Schorn ............................................................................................................................................................................ 212

KARL POPPER: HISTORICISMO E O SIGNIFICADO DA HISTÓRIA - Jaziel Cleiton Rautenberg ................................................................................................................. 218

QUINE E O TERCEIRO DOGMA DO EMPIRISMO - Karen Giovana Videla da Cunha Naidon ..................................................................................................................... 225

O DEBATE ENTRE BETH E PIAGET: CONVERGÊNCIAS EPISTEMOLÓGICAS - Rafael dos Reis Ferreira ............................................................................................. 233

A INTERSUBJETIVIDADE EM SARTRE: O OUTRO - Tiago Soares .............................................................................................................................................................. 242 POLÍTICA E SUBJETIVIDADE EM MONTAIGNE - Gilmar Henrique da Conceição ..................................................................................................................................... 247

LOCKE: O TRABALHO COMO FUNDAMENTO DA PROPRIEDADE - Hélio da Siqueira .......................................................................................................................... 255

NIETZSCHE – REFULGENCIA NOS CAMINHOS DA ANIQUILAÇÃO - Louise Cristina Vieira ................................................................................................................. 257

O MÉTODO INTUITIVO DE BERGSON E OS IMPRESSIONISTAS: UMA APROXIMAÇÃO - Andressa Rodrigues dos Santos ............................................................... 265 VERDADE, INDETERMINISMO E METAFÍSICA EM POPPER – Alexandre Klock Ernzen ......................................................................................................................... 273

SOBRE O CONCEITO ARISTOTÉLICO DE NATUREZA – Jonathan Junges ................................................................................................................................................. 287 CIVILIZAÇÃO E CULTURA EM MARCUSE: UMA CRÍTICA À SUBJETIVIDADE RACIONAL E À CULTURA AFIRMATIVA - Elemar Kleber Favreto ................. 293

DAVID HUME, IMMANUEL KANT E OS FUNDAMENTOS DA MORAL - Bruno Martinez Portela - Ramon Alexandre Matzenbacher ................................................... 301 ESTADO DE NATUREZA E NATUREZA HUMANA EM HOBBES - Gerson Vasconcelos Luz ................................................................................................................... 307

O OLHAR DE NIETZSCHE SOBRE A EDUCAÇÃO: PROJEÇỖES E DIAGNÓSTICOS – Angélica Lúcia Engelsing ................................................................................ 313 ANÁLISE DO ARGUMENTO DE FREGE CONTRA A TEORIA DA VERDADE COMO CORRESPONDÊNCIA - Ana Carneiro Conzatti .............................................. 320

O PRAGMATISMO DE DEWEY E AS CRÍTICAS A SUA FILOSOFIA EDUCACIONAL = Cosmo Rafael Gonzatto.................................................................................. 325 INVESTIGANDO O CONCEITO DE DESENVOLVIMENTO NATURAL: UMA ABORADAGEM NO PENSAMENTO DE ROUSSEAU E DEWEY - Cristiano Eduardo Wendt .................................................................................................................................................................................................................................................................... 332 FILOSOFIA COM CRIANÇAS: UMA PROPOSTA LIPMANIANA ANCORADA NOS CONCEITOS DEWEYANOS - Francieli Nunes da Rosa ..................................... 338

POLÍTICA E EDUCAÇÃO: UMA RELAÇÃO ENTRE O BEM VIVER ARISTOTÉLICO E A RECONSTRUÇÃO DA EXPERIÊNCIA DEWEYANA - Gabriela Nascimento Sousa .................................................................................................................................................................................................................................................. 347 O PARRICIDIO DE PARMÊNIDES NO DIÁLOGO “SOFISTA” DE PLATÃO - Rafael Camilo da Silva ...................................................................................................... 354

A FORMA DA EXPERIÊNCIA NA PRIMEIRA DEDUÇÃO TRANSCENDENTAL DE KANT - Pedro Henrique Vieira ................................................................................. 356 O JOGO DE FORÇAS ENTRE PRINCÍPIO DE REALIDADE E PRINCÍPIO DE PRAZER NA CIVILIZAÇÃO PARA HERBERT MARCUSE - Cleberson Odair Leonhardt ............................................................................................................................................................................................................................................................................... 366

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CIÊNCIA E METAFÍSICA: A TEORIA DO CONHECIMENTO DE BERGSON - Luiz Ricardo Rech ............................................................................................................ 373

AXEL HONNETH E O SENTIDO MODERNO DA IDÉIA DE RECONHECIMENTO - Angelo Vitório Cenci .............................................................................................. 379 A SOLUÇÃO POPPERIANA AO PROBLEMA DE COMPTON: COMO É POSSÍVEL SIGNIFICADOS INFLUIREM SOBRE O MUNDO FÍSICO? - Mateus Romanini ............................................................................................................................................................................................................................................................................... 385 O PAPEL POLÍTICO DA RELIGIÃO PARA A MANUTENÇAO DO ESTADO E DO BEM COLETIVO DOS CIDADÃOS NO PENSAMENTO DE MAQUIAVEL - Adriana Maria da Silva .......................................................................................................................................................................................................................................... 392 UM PARALELO ENTRE A FILOSOFIA OCIDENTAL E A FILOSOFIA ORIENTAL – Leandro Nunes ....................................................................................................... 400

A MORTE DA ESTÉTICA - Lucas Sariom de Sousa .......................................................................................................................................................................................... 408

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FICHA CATALOGRÁFICA Catalogação na Publicação elaborada pela Biblioteca Universitária UNIOESTE/Campus de Toledo Bibliotecária: Marilene de Fátima Donadel - CRB 9/924

Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea (15. : 2010 : Toledo – Pr.)

S612L Livro de textos completos do XV Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea, UNIOESTE - Toledo, realizada no período de 25 a 28 de outubro de 2010 / Organização de Libanio Cardoso, Ester Maria Dreher Heuser, Luiz César Yanzer Portela e Remi Schorn. – Toledo : GFM, 2010.

250 p. ISSN: 2176-2066

1. Filosofia moderna – Congresso 2. Filosofia contempo- rânea – Congresso I. Cardoso, Libanio, Org. II. Heuser, Ester Maria Dreher, Org. III. Portela, Luis César Yanzer, Org. IV. Schorn, Remi, Org. V..T.

CDD 20. ed. 190.06

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COMITÊ CIENTÍFICO Alberto Marcos Onate - UNIOESTE Altair Fávero - UPF Ana Miriam Wuench - UnB Andre Leclerc - UFPB Aylton Barbieri Durão - UFSC Carlo Gabriel Pancera - UNIOESTE Clademir Araldi - UFPel Cláudio Boeira Garcia - UNIJUI Cristiano Perius - UEM Delamar José Volpato Dutra - UFSC Douglas Antonio Bassani - UNIOESTE Eneias Forlin - UNICAMP Ester Maria Dreher Heuser - UNIOESTE Jadir Antunes - UNIOESTE Libanio Cardoso - UNIOESTE Luciano Carlos Utteich - UNIOESTE Luis Cesar Yanzer Portela - UNIOESTE Luiz Henrique de A. Dutra - UFSC Marcelo do Amaral Penna-Fortre - UNIOESTE Marcos Rodrigues da Silva - UEL Olímpio José Pimenta Neto - UFOP Pedro Costa Rego - UFRJ Remi Schorn - UNIOESTE Ricardo Tassinari - UNESP Tarcílio Ciotta - UNIOESTE Wilson Antonio Frezzatti Jr. - UNIOESTE

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COMISSÃO ORGANIZADORA Prof. Dr. Rosalvo Schütz (Coordenador) Prof. Dr. Libanio Cardoso Prof. Dr. Wilson Antonio Frezzatti Junior Prof. Dr. José Luiz Ames Prof. Dr. Carlo Gabriel Pancera Prof. Dr. Luciano Carlos Utteich Prof. Dr. Claudinei Aparecido de Freitas da Silva Prof. Dr. Alberto Marcos Onate Prof. Dr. Remi Schorn Prof. Ms. Luis Cesar Yanzer Portela Prof. Ms. Celia Benvenho Anna Maria Lorenzoni (Estudante)

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APRESENTAÇÃO

O Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da Unioeste é um evento anual do Colegiado de Graduação e do Mestrado em Filosofia. Ocorre, sem interrupções, desde 1996. Esta 15ª edição, que acontece entre 25 e 28 de outubro de 2010, mantém uma divisão de trabalho que se mostrou eficiente e produtiva ao longo dos anos: o planejamento e

execução contam com estudantes, funcionários e professores participando juntos, do começo ao fim do evento; o formato incorpora Conferências, comunicações e mini-cursos, de manhã à noite.

A regularidade da realização, as dimensões do Simpósio e a multiplicidade temática que o caracterizam são conquistas difíceis de manter. Sem a unidade do curso, isto não teria sido possível. Também não, sem a generosa participação dos que vêm de fora. Desculpamo-nos pelos equívocos e dificuldades, inevitáveis em eventos desse gênero e dimensão, e agradecemos, portanto, a participação de todos.

A reunião em torno de temas filosóficos permanece sendo uma oportunidade rara. Reuniões desse tipo permitem – ainda que não o garantam – o verdadeiro encontro com o pensamento, isto é, com o sentido e unidade da investigação. Nada garante que esse tipo de oportunidades seja dado ao homem, se não nos esforçarmos por que aconteçam. Esse é o sentido do Simpósio.

Rosalvo Schütz

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A IDÉIA DE LIBERDADE NO LIMITE DA RAZÃO PURA - Patr ícia Kemerich de Andrade 1

1. Sobre os “limites do conhecimento”

Este trabalho versa sobre a abordagem de Kant com relação às idéias transcendentais, como conceitos situados no limite da razão pura. E

especificamente sobre a idéia transcendental de liberdade. Com esse intuito apresentaremos a distinção de Kant entre “limites” e “barreiras”;

junto a ela a noção da necessidade da razão de ultrapassar esses limites. Após mostraremos onde Kant situa a idéia de liberdade, a saber, fora dos

domínios do nosso conhecimento, para em seguida tratarmos o uso que se pode fazer dela, no caso, um uso regulativo apenas prático.

Na determinação dos limites do conhecimento2 chegamos, através da postura crítica, a conclusão de que: em primeiro lugar não estamos

justificados a esperar conhecer mais de um objeto do que aquilo que pertence a uma experiência possível do mesmo (o que se dá mediante a

aplicação das formas puras da sensibilidade e as do entendimento, “basicamente”); segundo, se admitimos que uma coisa não é parte de uma

experiência possível, então não podemos esperar determiná-la segundo sua constituição; terceiro, temos que admitir uma coisa em si mesma

justamente porque só possuímos conhecimento de objetos da experiência como simples fenômenos (ou seja, conforme as leis próprias da nossa

razão). Conquanto não admitir isso é pretender que nossa intuição seja a única possível, o que por sua vez não poderia estar de acordo com as

determinações expressas pela crítica, pois implicaria que os princípios da possibilidade da experiência fossem condições universais das coisas em

si.

1 Mestranda em filosofia (UFSM) E-mail: [email protected]

2 Prolegômenos (sigla Pr) §§ 57-59

² El idealismo transcendental de Kant: Una interpretación y defensa/Henry E. Allison. p.118

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Allison3 faz referência a essa tese central Kantiana de que o conhecimento humano não pode, logicamente, ser a única classe de

conhecimento possível. E que Kant utiliza a mera possibilidade de um “intelecto intuitivo” (o qual seria capaz de apreender imediatamente seus

objetos sem necessidade de conceitualização e sem ser afetado por eles, que é o tipo de intelecto atribuído a deus). De modo que esse contraste

das maneiras de conceber o intelecto permitiria introduzir a distinção “crítica” entre as condições do conhecimento discursivo, ou humano, e as

condições das coisas em si.

Nesse contexto Kant usa os termos “limite” e “barreira” como analogias para determinar a extensão do saber legítimo. Para tanto, serve-se

da imagem sensível de um limite, o qual pressupõe sempre um espaço existente além desse outro lugar bem definido e que circunda este último.

E as barreiras seriam meras negações que afetam uma grandeza enquanto ela não possui inteireza absoluta; por exemplo, se efetuo a soma de uma

unidade mais uma chego ao resultado de duas unidades, não há o que buscar além desse resultado e seria absurdo objetar sobre essa operação.

Desse modo, coisas em si, nóumenos, idéias transcendentais, na medida em que não têm objetos correspondentes na intuição (segundo os

princípios formais do espaço e do tempo, sob os quais alguma coisa pode ser objeto de nossos sentidos), limitam negativamente o emprego do

entendimento e da razão ao que pode ser objeto da intuição, são o que se pode chamar de conceito-limite. Mas também possuem a qualidade

positiva de caracterizar um espaço problemático além desses limites, um espaço de coisas que até podem ser pensáveis, porém incognoscíveis

para nós. Com isso Kant quer mostrar a função sistematicamente limitativa4 das coisas em si com respeito ao que é fenômeno.

Kant limita em definitivo todo conhecimento possível no domínio da experiência, onde a razão pode operar de maneira satisfatória (pois

dispõe de instrumentário adequado para isso), todavia a razão precisa ir além e vê-se transtornada por uma “ambição” (própria e natural) a qual

sucumbe necessariamente, porque jamais pode satisfazê-la na experiência. Isto porque a razão caracteriza-se por exigir a totalidade absoluta das

condições (fundamento) para todo condicionado; Essa completude contém um status lógico, na medida em que carrega a exigência de obter das

4 Christian Hamm, Sobre a necessidade e o limite da razão.

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premissas um conjunto que elimine a necessidade de pressupor outra premissa. Sendo essa exigência conseqüência do principio que diz “Se é

dado o condicionado, é igualmente dada toda a soma das condições e, por conseguinte, também o absolutamente incondicionado” (A 409/ B

436). Isto mostra o que a razão obrigatoriamente requer, a saber, uma justificação ou explicação para cada afirmação, portanto sua exigência é

lógica; Também conforme Allison5 isto equivale ao que Kant chama de “Princípio de razão suficiente”, o qual pode ser ligeiramente definido,

como o principio de que “toda proposição verdadeira deve ter um fundamento ou razão”.

Assim, mesmo limitada à experiência a razão acha-se no “direito” de vislumbrar o que circunda esse “espaço”, lançando-se em solo

perigoso.

As idéias transcendentais têm por fim alcançar essa completude que a razão não pode encontrar no mundo sensível. Temos por isso que

pensar um ente não físico, um mundo do entendimento, um ente supremo, (puros nóumena), pois só aqui a razão encontra o que busca.

Dessa maneira, a razão é levada a “limites” não através da matemática e ciências da natureza, que propriamente contêm “barreiras”, pois

estas se referem apenas a fenômenos e operam de modo satisfatório nos domínios da experiência. O problema surge quando a razão usa seu

instrumentário, próprio para o nível empírico (onde há possibilidade de conhecimento), no nível das coisas em si (onde não podemos aspirar

conhecimento), o que inevitavelmente leva-a a contradições com ela mesma, além de dar a falsa impressão de que estamos de posse de algum

conhecimento.

Ao limitar o campo do conhecimento possível na esfera da experiência e esse termo entendido aqui de acordo com a complexa

formulação kantiana, mostra-se que nele não se pode vislumbrar uma totalidade, mas que “fora” dele deve haver algo mais, ainda que não

possamos conhecê-lo. E as idéias transcendentais, que não se deixam realizar, servem não só para mostrar os limites da razão pura, mas também

o modo de determiná-los. Então, estes são o fim e a utilidade da disposição natural que gerou a metafísica.

5 Allison, p.77

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2. A “idéia transcendental de liberdade” a partir da razão pura e o uso possível dessa idéia

Na Crítica da Razão Pura, no capítulo da dialética transcendental o termo “liberdade” vem referido a um problema da cosmologia

racional cujo objeto de reflexão é o conceito de mundo. Aqui por mundo entende Kant a “soma de todas as aparências”, ou “a idéia da série

completa das condições” e “liberdade” é a capacidade de iniciar um estado espontaneamente. Portanto um tipo especial de causalidade que não é

derivado nem referido a objetos da intuição, mas extremamente requerido pela razão e isto caracteriza “liberdade” como um conceito puro da

razão ou idéia transcendental. Nesse contexto, inicialmente, tal termo não está sendo pensado no âmbito prático, do agir, e por tratar-se de um

problema da cosmologia é que dizemos que ela, a cosmologia (conforme expressa por Kant) é “berço” da ideia transcendental de liberdade.

Para compreender isso percorreremos a via feita por Kant, desde a natureza da razão e sua necessária busca por completude até a ideia de

liberdade resultando de um problema cosmológico.

As idéias transcendentais são como categorias ampliadas até o incondicionado. Elas referem-se à unidade sintética de todas as condições

em geral. E aqui nos importa a segunda dessas idéias: a ideia de mundo.

O entendimento no seu uso empírico opera em sentido descendente, i.é, da condição para o condicionado, o que está de acordo com as leis

causais da natureza onde para toda causa sempre há outra precedente. Mas a razão, que não se dirige as intuições para submetê-las a regras, como

faz o entendimento com suas categorias, dirige-se apenas a conceitos e juízos. E opera em sentido ascendente, da serie das condições (âmbito da

sensibilidade) ao incondicionado (âmbito do supra-sensível), ou, até os princípios.

Nessa busca de um incondicionado mais remoto possível na serie das condições, a razão jamais fica satisfeita na experiência, pois aí a

série nunca chega ao fim, a um “início absoluto” (não causado) e por não conseguir a almejada completude é que ela “cria” para si mesma tal

ideia (CRP B561). Nesse contexto, a saber, no interior de um problema cosmológico gera-se, pela razão a ideia transcendental de liberdade, como

uma forma de uma espontaneidade absoluta para explicar o incondicionado exigido pela razão. E que mais tarde será a base de todo

desdobramento da moralidade onde tal ideia assumirá o status de liberdade prática.

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A ideia de liberdade, como os demais conceitos puros da razão têm sua origem na natureza da mesma e, portanto trata-se de conceitos

necessários, que não podem simplesmente ser abandonados. Tais conceitos têm uma necessidade teórico-especulativa, indispensável para o uso

completo da razão, incluindo o âmbito prático.

Ainda na primeira crítica, seguindo seus resultados, temos que não podemos conhecer o que seja a ideia de liberdade posto que a razão

não se refere diretamente a objetos da experiência e que não temos intuição de tipo intelectual. Porém, da não existência dela para nós como

fenômeno não resulta sua impossibilidade absoluta. Pois, como diz Kant, os meios empíricos insuficientes para mostrar que ela existe, são

também inadequados para mostrar que ela não existe. Para Kant, trata-se de um conceito problemático, que se caracteriza por não conter

contradição e cuja realidade objetiva não se pode conhecer (B 310). Aqui o conceito de liberdade possui uma mera possibilidade lógica.

Kant chega a dizer que o conceito de liberdade prática funda-se na ideia transcendental de liberdade, tendo esta como modelo para aquela;

ou conforme Allison o que Kant estaria sustentando é que se concebo a liberdade prática, faço referência à idéia transcendental da mesma.

A estratégia de Kant na dialética transcendental (onde se situa a discussão sobre a terceira antinomia da razão pura) objetiva conciliar

liberdade e necessidade natural e com isso gerar bases para o problema da liberdade humana. Pois a princípio só com essa conciliação a liberdade

humana é possível. Ademais, as causas pelas quais alguém age podem proceder da liberdade da razão, campo numênico, e seus efeitos sucederem

segundo leis da natureza, campo fenomênico, anulando contradições e resultando em plena compatibilidade.

Mas qual seria a utilidade dessas idéias, que não se referem a objetos, nem tem uso empírico, o qual é o âmbito da ciência? De fato, uma

ideia da razão não deve ser compreendida como um princípio a priori constitutivo de objetos, para uso empírico, para conhecer. E conforme Kant

descreve essa faculdade ela nunca se dirige imediatamente a objetos da intuição; logo essas ideias são inúteis para a razão teórica. Portanto

devem ter um uso regulativo em vista da conexão completa do nosso uso empírico do entendimento ao qual tais idéias se referem.

Porém com a idéia de liberdade as coisas são diferentes, pois essa ideia é um hiato no curso da natureza (ou de suas regras) e por romper

com ela não pode elevá-la a qualquer sistematicidade.

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Por isso o uso regulativo que se faz dessa ideia é diferente daquele admitido no nível especulativo. Nas palavras de Kant, no Cânone da

razão pura: “se essas idéias, liberdade da vontade, imortalidade da alma, nos são tão insistentemente recomendadas pela razão e se elas não são

necessárias para o saber, só lhe resta que sua importância seja com respeito ao uso prático”. Tal uso tem a ver com as questões sobre o arbítrio

humano (onde a ideia de liberdade resume-se em regular um agir independente de inclinações sensíveis) agir este, que para Kant pode ser

motivado só pela representação da lei e fundado na ideia de liberdade.

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A CONCEPÇÃO DEMOCRÁTICA DE EDUCAÇÃO EM JOHN DEWEY - Altair Alberto Fávero 6

A obra Democracia e educação, publicada pela primeira vez em 1916, em meio a Primeira Guerra Mundial, é considerada pelos

seus estudiosos, a mais importante obra educacional do pensamento de Dewey. Embora não seja um autêntico e genuíno tratado de pedagogia,

aborda questões de psicologia, problemas filosóficos, temas das ciências sociais, além de investigar as múltiplas questões educacionais. O

próprio filósofo da educação expressa no prefácio desta fundamental obra educacional a intenção que o motivara a escrevê-la:

Este livro é um esforço para penetrar e definir as idéias implícitas em uma sociedade democrática e para aplicá-las aos problemas da educação. A exposição inclui a indicação dos fins e métodos construtivos da educação pública, encarados desse ponto de vista, e ainda uma crítica das teorias do conhecimento e da moral, formuladas em condições sociais primitivas e que continuam a atuar nas sociedades nominalmente democráticas, obstando a realização adequada do ideal democrático (1959a, p.2).

Já nas primeiras páginas do capítulo dedicado a apresentar a concepção democrática da educação, Dewey procura explicitar as diferenças

que se produzem no espírito, no material e no método da educação, quando se utilizam diferentes tipos de organização social. “Dizer que a

educação é uma função social que assegura a direção e o desenvolvimento dos imaturos, por meio de sua participação na vida da comunidade que

pertencem”, ressalta Dewey, “equivale, com efeito, a afirmar que a educação variará de acordo com a qualidade da vida que predominar no

grupo” (1959a, p.87).

Compreender a educação como função social na perspectiva deweyana equivale a dizer que uma sociedade que almeja “mudança” e faz

da “transformação” um ideal de vida necessita ter normas e métodos educativos diferentes de sociedades que não aspiram a semelhantes ideais.

Por isso o filósofo da educação critica o conceito abstrato de sociedade, que, em razão da sua ambigüidade, não possibilita um claro

discernimento de sua intencionalidade. Dizer que uma sociedade ou comunidade, por sua própria natureza, é portadora de qualidades intrínsecas,

6 Doutor em Filosofia da Educação pela UFRGS, mestre em Filosofia do Conhecimento pela PUCRS, pesquisador e professor do curso de Filosofia e do mestrado em

Educação da Universidade de Passo Fundo. E-mail: [email protected]

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tais como “comunhão de bons propósitos e bem-estar”, ou “fidelidade aos interesses públicos e reciprocidade de simpatia”, pode esconder

diversas mazelas de más associações. O próprio filósofo da educação exemplifica tais circunstâncias ao dizer que “há entre ladrões sentimentos

de honra e uma quadrilha de salteadores tem um interesse comum a vincular todos os seus componentes” (1959a, p.88). Assim, não é sensato

acreditar que o termo “sociedade” ou “comunidade” carrega “em-si” um propósito nobre. Portanto, há a necessidade de critérios de julgamento,

de uma medida de valor, para analisarmos os diversos modos de vida social. Porém, ao definir tais critérios, Dewey nos alerta no sentido de que

se evitarem dois extremos: i) de um lado, não podemos criar uma sociedade ideal, pois facilmente cairemos numa divagação alienante; ii) por

outro, não podemos simplesmente reproduzir de forma passiva a sociedade existente. “O problema”, ressalta Dewey, “consiste em extrair os

traços desejáveis das formas de vida social existente e emprega-los para criticar os traços indesejáveis e sugerir melhorias” (1959a, p.89).

Dewey define o “interesse comum”, “certa porção de interação” e a “reciprocidade coletiva com outros grupos” como critérios de

julgamento para definir os traços desejáveis e indesejáveis das formas de vida, aplicando-os, primeiramente, a duas formas de associação. “Se

aplicarmos estas considerações a uma quadrilha de malfeitores, por exemplo,” diz Dewey, “verificaremos que os elos que conscientemente lhe

vinculam os membros são pouco numerosos e quase que reduzidos ao só interesse comum do roubo, e que são de natureza a isolar o grupo dos

outros grupos, no tocante ao mútuo dar e receber dos valores da vida” (1959a, p.89). Por isso, este tipo de educação é parcial e falseada. Algo

diferente acontece se tomarmos a vida familiar. Neste grupo não são os interesses restritos que imperam, nem a interação momentânea que se

esgota quando são atingidos limitados propósitos, mas “há muitos interesses conscientemente comunicados e compartilhados – existem vários e

livres pontos de contato com outras modalidades de associações” (DEWEY, 1959a, p.89).

Dewey amplia a aplicação dos critérios apresentados para as diferentes formas de governo. Ao analisar um país governado

despoticamente, Dewey ressalta que há uma espécie de instrumentalização das ações dos súditos, reduzindo-as ao único propósito de evitar a dor

e obter o prazer. É por isso que os déspotas apelam para o medo como forma de dominar seus súditos. Assim, em sociedades despoticamente

governadas “não há grande número de interesses comuns; não há livre reciprocidade do dar e receber entre os membros de um grupo social; o

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estímulo e a reação mostram-se muito unilaterais” (DEWEY, 1959a, p.90). Mas por que é tão importante ampliar o compartilhamento de

interesses comuns, realizar de forma mais abrangente a reciprocidade entre os membros de uma sociedade e efetivar a multilateralidade dos

estímulos e reações? A resposta deweyana é implacável: “a experiência de cada uma das partes perde em significação quando não existe o livre

entrelaçamento das várias atividades da vida” (1959a, p.90). É por isso que na separação entre a classe privilegiada e a classe submetida, os

membros da primeira são educados para serem senhores e os membros da segunda, para serem escravos. Todos perdem com essa forma de

separação e educação, pois, as atividades das classes de condição menos favorecidas tendem a se converter em rotina, ao passo que as das classes

abastadas tendem a se tornar caprichosas, impulsivas e sem objetivos. Os males que afetam a classe superior, por serem menos materiais, são

menos perceptíveis, mas são igualmente reais e geram uma cultura estéril e inútil. Nas palavras do próprio Dewey:

Sua cultura tende a tornar-se estéril, a voltar-se para se alimentar de si mesma; sua arte torna-se uma ostentação espetaculosa e artificial; sua riqueza se

transmuda em luxo; seus conhecimentos superespecializam-se; e seus modos e hábitos se tornam mais artificiais do que humanos (1959a, p.90-91).

As constatações de Dewey são importantes no sentido de demonstrar as consequências desastrosas, tanto para os indivíduos quanto para a

sociedade e suas diversas formas de associação, do fato de o isolamento, o exclusivismo e interesse particular e imediato se colocarem acima da

interação coletiva. “A verdade fundamental é que o isolamento tende a gerar, no interior do grupo, a rigidez e a institucionalização formal da

vida, e os ideais estáticos e egoístas” (DEWEY, 1959a, p.92). O isolamento e o segregacionismo já fizeram parte da história da humanidade. Em

comunidades primitivas, os termos “estrangeiro” e “inimigo” eram considerados sinônimos nelas se identificava sabedoria como observância

rígida dos costumes antigos; por sua vez, em sociedades plurais, altamente evoluídas, tendem a ser mais um empecílio para o crescimento de que

uma forma de preservar tradições e saberes historicamente elaborados. Por isso, para Dewey, somente na democracia seria possível a

concretização eficaz dos critérios de interesse comum (reciprocidade) e a cooperação mais livre entre os grupos sociais.

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O ideal democrático proposto por Dewey não se limita a compreender a democracia como uma simples forma de governo. Escolher pelo

sufrágio popular o próprio governante não é fator suficiente para dizer que tal sociedade ou associação vive de forma democrática. “Uma

democracia”, ressalta de forma contundente o próprio Dewey, “é mais do que uma forma de governo; é, principalmente, uma forma de vida

associada, de experiência conjunta e mutuamente comunicada” (1959a, p.93). Essa forma de vida associada e comunicada conduz a que os

indivíduos sejam incentivados a variar seus atos, tenham uma diversidade maior de estímulos e consigam, assim, ampliar seu campo de interesse,

passando a pautar suas próprias ações pelas ações dos outros e a considerar as ações alheias para orientar e dirigir as suas próprias. No entanto,

adverte Dewey, “a ampliação da área dos interesses compartilhados e a libertação de maior diversidade de capacidades pessoais que caracterizam

a democracia não são, naturalmente, resultado de deliberação e de esforço conscientes” (1959a, p.94).

A efetivação da sociedade democrática foi resultado de um conjunto de fatores conjugados historicamente. O comércio, o

desenvolvimento das indústrias, as migrações, as intercomunicações, os avanços científicos são alguns desses fatores que possibilitaram os

germes da sociedade democrática. Contudo, sua existência não é garantia de sua permanência. Por isso, sua conservação e ampliação exigem

esforço constante de todos os envolvidos, aspecto em que a educação se faz imprescindível. Em sociedades divididas em castas a educação

preocupa-se verticalmente com a formação da classe dirigente, ao passo que uma sociedade democrática, “cheia de canais distribuidores de todas

as mudanças ocorridas em qualquer parte”, ressalta Dewey, “deve tratar de fazer que seus membros sejam educados de modo a possuírem

iniciativa individual e adaptabilidade” (1959a, p.94). É por isso que para Dewey a ciência, a filosofia e a educação devem servir de instrumentos

na reconstrução permanente da democracia, tematização do nosso próximo tópico.

Considerações finais

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Pelo exposto, percebemos que uma das incansáveis lutas que perpassa toda a obra de nosso filósofo da educação foi a de reconstruir

permanentemente a sociedade democrática. Sua profunda fé na democracia transformou-se em credo pedagógico à luz do qual foi capaz de

sistematizar os principais elementos para forjar uma proposta de educação em que a filosofia e a ciência se tornariam instrumentos fundamentais

para a efetivação da sociedade democrática. A filosofia para Dewey deixa de ser uma atividade abstrata, uma especulação estéril, com pretensão

de alcançar a realidade suprema e absoluta, e passa a exercer a função civilizadora, de esclarecer as forças morais que regem a humanidade no

sentido de contribuir para que os homens atinjam suas aspirações, conquistando uma felicidade mais organizada e inteligente. “Dizer que a

filosofia possui uma função civilizadora significa atribuir-lhe responsabilidade diante das intensas e incertas mudanças que atingem a existência

humana” (CUNHA, 1994, p.34). Assim, a filosofia tem a tarefa de auxiliar na busca de novos modos de ação diante dos acontecimentos que

afetam sua forma estabelecida de vida. Esta função civilizadora da filosofia está numa apropriada sintonia com a ideia de sociedade democrática

deweyana, ou seja, uma sociedade que necessita absorver as mudanças que se processam de forma contínua e que continuamente precisa rever

suas formas padronizadas de vida.

A democracia, para Dewey, constitui a possibilidade da superação da tradicional dicotomia entre indivíduo e sociedade, ou seja, a

dimensão individual é, ao mesmo tempo, coletiva, pois a democracia só existe quando a plena satisfação do indivíduo se realiza na cooperação

entre todos os envolvidos.

Referências

CUNHA, Marcus Vinícius da. John Dewey: uma filosofia para educadores em sala de aula. Petrópolis: Vozes, 1994.

DEWEY, John. Democracia e educação: introdução à filosofia da educação. Trad. Godofredo Rangel e Anísio Teixeira. 3 ed. São Paulo:

Companhia Editora Nacional, 1959a.

DEWEY, John. Como pensamos. Trad. Hayée de Camargo Campos. 3 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959b.

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ANÁLISE DO FILME AS AVENTURAS DO BARÃO DE MUNCHAUSE N SOB O VIÉS DA FILOSOFIA DA LINGUAGEM – Job Lopes e Luciane Schröd er7

O presente artigo faz uma análise do filme As aventuras do Barão de Munchausen tendo como pano de fundo a Filosofia da linguagem,

mais precisamente apoiando-se em textos de filósofos, historiadores e principalmente. Essa análise busca apresentar teorias filosóficas que

constroem uma representação do personagem principal do filme e dos acontecimentos a sua volta. Por meio do filme As aventuras do Barão de

Munchausen, analisa-se que o personagem principal faz uma representação da subjetividade, pois ele questiona a lógica, já que a vida não pode

ser comparada a um cálculo matemático, nem sempre há certo e errado. A subjetividade surge se sobrepondo à razão no longa-metragem, isto é,

o personagem do Barão de Munchausen imagina, sonha, mentaliza e coloca seus desejos em prática vivenciando suas aventuras por meio da

fantasia e do surreal, ignorando conceitos e regras impostos pela razão. Para Aristóteles a metáfora consiste em nomear alguma coisa que

pertence à outra coisa, ou seja, coisa que se refere à coisa. Por exemplo, o nome cabeça pertence somente à coisa (parte do corpo humano)

CABEÇA, não podendo relacioná-la com o enunciado que o Rei da Lua profere no filme Vou provar que a cabeça não precisa do corpo, pois ele

utiliza a palavra cabeça relacionando-a com o intelectual (cabeça) versus o mundano (corpo). A linguagem é um movimento na direção do

mentalismo, as palavras representam alguma coisa que tem espaço no interior do homem. A linguagem representaria aquilo que vai ao espírito,

resultado do conflito mundo/homem e o modo como o afeta. Em uma determinada cena do filme, na qual o personagem do Barão tenta morrer

ele diz:... Por quê agora é tudo razão e lógica, ciência e progresso? Analisa-se através da fala do personagem, que sua preocupação com a

reflexão das ideias e com os questionamentos da vida era muito intensa, pois ele não aceitava um mundo que ficava cada vez mais alienado, sem

indagações e sem pensamentos, que apenas seguia leis e normas sem ao menos questioná-las. Partindo de pressupostos de Kant somente a

conexão entre razão e vontade pode ser possível conceber ações morais, ou seja, o Barão aventurava-se pela magia questionando a racionalidade,

7 Job Lopes (Graduando) e Luciane Schröder (Orientadora – UNIOESTE) [email protected]

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na qual a razão excluía, assim esses dois conceitos tornavam-se primordiais para que o personagem concebesse uma ação moral, na qual o fazia

reagir de maneira opositiva travando um embate com o sultão, representante da razão. O personagem do Barão se opõe a Platão e Aristóteles no

modo que é tomado por eles à representação das palavras. Para os filósofos é na racionalidade que se reconhece a condição nuclear de

funcionamento da linguagem. As palavras possuem como propósito fundamental à representação da objetividade enquanto que para o

personagem a subjetividade está imanente. As palavras teriam para Platão o propósito essencial de representar objetivamente essências universais

e autônomas. A divergência que há entre o Barão e o pensamento platônico está no lócus dessas essências: na alma, para o personagem do Barão

seguindo uma concepção aristotélica e no real, para Platão.

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DIÁLOGO E EDUCAÇÃO EM GADAMER - Evanildes Lorencena 8

Resumo

O presente texto ocupa-se em buscar entender questões relativas ao diálogo a partir de Hans-Georg Gadamer, as

implicações dos entraves ao verdadeiro diálogo nas relações interpessoais da modernidade e busca refletir sobre as

dimensões da incapacidade para o diálogo no âmbito da educação contemporânea.

Palavras chave: Linguagem, Diálogo, Educação.

Introdução

Para GADAMER (2002, p. 176), em todo conhecimento de nós mesmos e do mundo sempre já fomos tomados pela

nossa própria l inguagem. É aprendendo a falar que crescemos, conhecemos o mundo, as pessoas e a nós próprios.

Estamos tão habituados à l inguagem e inseridos nela como estamos no mundo. A l inguagem é, pois, o centro do ser

humano, quando considerada no âmbito que só ela consegue preencher: o âmbito da convivência humana, do

entendimento, do consenso crescente, tão indispensável à vida como o ar que respiramos (op. cit. p. 182).

O diálogo, segundo Gadamer, é um atributo natural da condição humana e suas funções são representadas de

formas diferentes entre os homens. Um das questões principais a ser levada em conta é o fato de que a sua vitalidade, o

8 Graduada em Letras - Língua Portuguesa e Mestranda em Educação nas Ciênc ias - Bols ista CAPES- UNIJUI – IJUÍ /RS - iv i_sl@hotmai l .com

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seu amadurecimento, renovação, deterioração e/ou depuramento acontecem no interior de suas relações, isto é, no

próprio diálogo.

As queixas em relação à incapacidade para o diálogo devem, segundo o autor, ser pensadas de forma ambiciosa.

Deve-se, antes de tudo, pensar no que contribui para esta indisposição os recursos tecnológicos de comunicação que

fazem parte da civi l ização moderna.

A incapacidade para o diálogo é representada por uma recusa do indivíduo em se abrir para o outro e encontrar

neste outro uma abertura para que a conversa possa fluir l ivremente. Gadamer (2002, p. 244), oferece um exemplo de

como os recursos tecnológicos empobrecem a comunicação entre as pessoas. Numa conversa telefônica, afirma ele, não

se pode sentir a disposição do outro para o diálogo, fica inviabil izada aí a questão da aproximação mútua, quando cada

um vai aderindo à conversa e na medida em que isso acontece, vai surgindo uma comunhão entre os interlocutores. Outra

forma de entrave ao verdadeiro diálogo apontada por Gadamer é o desaparecimento quase completo da carta manuscrita,

que demandava criação l iterária, sensibil idade de alma e fantasia produtiva, o que não se observa nos moldes atuais de

correspondência, que se caracterizam pela simultaneidade nas perguntas e respostas, como no caso do uso do Messenger

e do Email.

No verdadeiro diálogo, destaca Gadamer, existe o encontro entre dois mundos, duas visões e duas imagens de

mundo. Este encontro entre dois mundos distintos representa uma espécie de expansão de nossa individualidade e um

experimento da possível comunidade a que nos convida a razão (GADAMER, 2002, p.246).

Um diálogo deixa uma marca nos interlocutores.

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O que faz um verdadeiro diálogo não é termos experimentado algo de novo, mas termos encontrado no outro algo

que ainda não havíamos encontrado em nossa própria experiência me mundo. (op cit, p. 247)

O diálogo possui uma força transformadora e só se efetiva realmente quando f ica algo em nós capaz de nos

transformar. Ele possui uma grande proximidade com a amizade, pois é no rir juntos (entendimento tácito) que os

amigos podem se encontrar e construir uma espécie de comunhão, na qual cada um continua sendo o mesmo para o outro

por que ambos encontram o outro e encontram a si mesmos no outro.

Os tipos de Diálogo

Gadamer, em Verdade e Método II (2002, p.248) faz distinção entre alguns tipos de diálogo, cada um com suas

características próprias. O primeiro é o diálogo pedagógico, no qual, segundo Gadamer, podemos visual izar de modo

especial o que está por trás da incapacidade para o diálogo.

Aquele que tem que ensinar acredita dever e poder falar, e acredita que quanto mais consistente e articulada for

sua fala, mais imagina estar se comunicando com seus alunos. No entanto, sabemos que o verdadeiro diálogo não está

numa preleção bem feita, nos moldes das preleções de antigos mestres, que falavam horas a fio para seus discípulos, mas

sim na interação, em situações em que ambos interlocutores possam ser ouvidos em forma de debate.

Há ainda outros três tipos de diálogo, que conservam funções específicas: o diálogo para negociação, o diálogo

terapêutico e o diálogo familiar. Vamos às suas distinções.

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O dialogo para negociação, como o próprio nome diz, predispõe-se ao intercâmbio e diz respeito às relações

comerciais.. O que há de especial no diálogo terapêutico é que a cura psicanalít ica se dá através do diálogo, cuja perda

da capacidade se tornou patológica.

No caso das relações sociais, o normal é a pessoa não ver essa incapacidade em si mesma, mas no outro.

Neste sentido, “ incapacidade de dialogar”, é, em ult ima instância sempre o diagnóstico de alguém que não se

presta ao dialogo e não consegue entrar em dialogo com o outro. A incapacidade do outro é sempre também a própria

incapacidade (GADAMER, 2002, p. 250).

Cabem aqui algumas considerações acerca dos dois t ipos de incapacidade propostos pelo autor. Uma de ordem

subjetiva, que é a incapacidade de ouvir o outro, e outra de ordem objetiva, que diz respeito à falta de uma linguagem

comum entre os interlocutores. Na primeira, o que ocorre é de caráter pessoal e diz respeito à incapacidade do ser

humano de perceber o que está acontecendo com o outro, de não “ouvir” a mudez e o endurecimento do outro, ou de

ouvir erroneamente. Na segunda, a incapacidade é objetiva, em que não há uma linguagem comum entre os

interlocutores. Para Gadamer, só pode fazer ouvidos de mercador ou ouvir erroneamente quem está constantemente

apenas ouvindo a si mesmo, quem possui os ouvidos tão cheios de si mesmo que já não consegue ouvir o outro. Isso,

para ele, é um traço característico do seu humano, seja ele em maior ou menor grau.

Por fim, tratamos do diálogo familiar. As relações entre pais e fi lhos na atualidade são representadas por refeições

em frente à TV, por lazer representado por fi lmes ou jogos eletrônicos e por horas a f io na internet. O que se vê são

situações de monólogo em que cada um se torna anônimo em relação aos seus familiares. Estes exemplos servem para

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mostrar que existem situações sociais e familiares em que desaprendemos a falar; esse falar que é para alguém,

responder a alguém e que chamamos de conversa (ou diálogo).

O diálogo e a educação

Segundo Gadamer (2000, p. 10), só se pode aprender através do diálogo. A partir disso surgem as questões: Quem

é que educa? Quando começa exatamente a educação? O autor postula que já no nascimento existe uma relação de

comunicação não l inguística entre o bebê e sua mãe. O segundo momento crucial no seu desenvolvimento é aquele em

que começa a aprender a falar. Nesta fase há uma enorme satisfação quando a criança consegue repetir uma palavra,

mesmo que não a entenda. Diante disso, Gadamer argumenta que não podemos pensar que nós educamos a nós mesmos, e

sim que a educação se dá na interação com aqueles que convivem conosco.

A part ir da Revolução Industrial, surgem dificuldades do campo da educação que são representados e acelerados

pela necessidade das mães conquistarem seu campo de trabalho, o que significa que não estão mais elas a cargo da

educação de seus fi lhos. Os verdadeiros perigos que esta nova situação representa para a formação das crianças são

imensuráveis.

Um dos problemas decorrentes desta nova realidade é a incapacidade gerada nas crianças de formar e expor juízos

próprios. Basta falar alguns minutos com as crianças modernas para perceber que elas preferem ganhar-nos mais com

seus sorrisos sedutores do que com argumentos. E elas levam este tipo de problema ao Jardim de Infância, aos primeiros

anos escolares e às relações interpessoais decorrentes de todas as fases da vida.

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Gadamer pergunta, a partir disso: O que é uma educação correta? Seria aquela em que a criança aprende os bons

modos de se viver em sociedade, em que ele aprende a respeitar aos outros e não somente a si mesmo? A partir da

educação primeira, a seu ver em grandes confl itos, que seria a de âmbito familiar, Gadamer afirma que os novos espaços

que a criança começa a freqüentar também se configuram em espaços nos quais não se conversa mais com as pessoas e

assinala a importância de se pensar em proporcionar espaços de diálogo, pois aí é que estão as autênticas formas de

comunicação humana. Convivência é, efet ivamente, a palavra chave pela qual a natureza dist ingue o homem dos animais

e que deveria ser priorizada nos modelos educacionais futuros.

Diante disso, o autor acredita que as escolas deveriam primar por modelos de ensino que contemplassem aqui lo

que o aluno deve saber a respeito daquilo que quer saber. O educar, para ele, deve ser, antes de tudo, modos de

potencializar os saberes onde eles se fazem mais necessários, pois o mundo está em constante mudança, e a direção

destas mudanças é a questão principal do educador.

Considerações finais

As considerações de Gadamer até aqui destacadas lançam luzes sobre nossas dificuldades atuais de pensarmos

sobre a educação tanto em seus aspectos gerais quanto mais específicos.

O fato é que muito se tem estudado e refletido sobre formas de melhorar a qualidade do ensino; sobre a

importância das primeiras fases da vida escolar para a formação do ser humano que, quando adulto, desempenhará uma

função profissional na sociedade. Hoje parece mais fáci l evidenciar que se está dando ênfase exagerada à educação para

o trabalho, para o futuro e para a realização pessoal. É exatamente neste ponto que me parece estar a principal falha do

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sistema educacional, isto é, muitas teorias novas surgem a cada dia sobre isso, mas o principal, que seria uma proposta

inovadora e realmente eficaz de transformação da realidade educacional não é debatida em termos práticos e aplicáveis.

Uma questão séria a ser amplamente pensada é a de como não contrapor a aquisição das habil idades com os

conhecimentos necessários para o acolhimento da criança no mundo, para que ela possa se situar e se sentir parte dele.

Alguns poderiam argumentar que esta deveria ser tarefa apenas da família; no entanto, sabemos que a família, ao

menos em termos da tradição, já não está dando conta disso. Se a educação escolar atual assumiu dimensões que não lhe

eram especificas em outros tempos, porque ela não poderia pensar e assumir novas formas e demandas do mundo atual?

Porque não concil iar o ensino das habil idades e demais conhecimentos com os princípios de convivência humana, de

solidariedade, uma vez que ambos são necessários ao longo das vidas dos educadores e dos educandos? Aprender a

viver, no sentido amplo considerado por Gadamer, não é menos decisivo do que preparar as crianças para o mercado de

trabalho.

Ensinar às próximas gerações a tradição histórica no sentido de mostrar exemplos catastróficos de conduta

humana, exemplos humanitários a serem seguidos, regras de convivência social e o exercício do diálogo como

constitutivo das subjetividades me parece muito mais produtivo do que cobrar de alunos de oito, nove ou dez anos regras

matemáticas e gramaticais, por exemplo, que não se explicam sequer por elas mesmas.

Apesar de todos estes entraves ao verdadeiro diálogo, ressalta Gadamer, a capacidade constante de voltar ao

diálogo, isto é, de ouvir o outro, parece ser a verdadeira elevação do homem a sua humanidade (GADAMER, 2002, p.

251).

Referencias

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GADAMER, Hans Georg .Verdade de método II: complemento e índice/ Hans-Georg Gadamer; tradução de Enio

Paulo Giachini; revisão e tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. – Petrópolis, RJ :Vozes; Bragança Paulista, SP:

Editora Universitária São Francisco, 2002.

________La educación es educarse – Traducción de Francesc Pereña Blasi, Barcelona, Paidós. 2000.

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CONCEPÇÃO CÍCLICA DE HISTÓRIA: POLÍBIO E MAQUIAVEL - Maicon José Fortunato

O presente trabalho procura analisar a noção de tempo cíclico em Políbio e qual o sentido que ela possui para Maquiavel. O

propósito está em revelar alguns aspectos importantes da concepção de história no interior do pensamento político do florentino. Para isso,

tomar-se-á como fonte de investigação o livro VI, de maneira específica os capítulos 2 a 11 da obra “Histórias” de Políbio e o capítulo 2 dos

“Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio” de Maquiavel.

Dos inúmeros comentadores que tratam deste assunto, todos parecem comungar com a ideia de que Maquiavel foi leitor de Políbio

e que desse modo teria resgatado a teoria da circularidade histórica e do governo misto presentes neste último9. Todavia, tais comentadores

apontam para a existência de divergências entre esses pensadores. Para tornar clara essa problemática, será realizada uma breve descrição dos

capítulos 2 a 11 do livro VI das “Histórias” e o capítulo 2 do livro I dos “Discursos”, em que essa similitude se encontra mais vívida, para que a

diferença dos mesmos se torne mais clara. Pautado na ideia de que o ordenamento político é a fonte onde nascem todos os planos e realizações

de um Estado, Políbio propõe uma investigação sobre as constituições de modo geral, para depois fazer uma descrição pormenorizada da

constituição romana, enquanto governo misto, relatando suas várias funções públicas.

De suas considerações é possível extrair três teses principais: a primeira, existem seis formas de governo, sendo três boas e três

más, que perfazem um processo a nascimento, ascensão, decadência ou corrupção e desaparecimento, a semelhança dos ritmos biológicos; a

segunda tese fundamenta a sucessão dessas formas de governo, constituindo um ciclo capaz de se repetir no tempo, ou aquilo que ficou

conhecido como anacyclosis, e a terceira, lança mão de uma sétima forma de governo que se constitui na síntese das três formas boas, ou seja, o

governo misto, que seria a resposta para essa mudanças incessantes. A nomenclatura dos tipos de governo é exposta por Políbio nos capítulos 3 e

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4 sendo: Monarquia, Aristocracia e Democracia. Nas formas corrompidas estariam, autocracia, oligarquia e oclocracia. A exposição dessas seis

formas de governo é realizada de forma cronológica, respeitando uma ordem seqüencial, ou seja, o regime justo ou correto declina-se para o

corrompido e assim sucessivamente, até que o ciclo se complete e retorne ao seu ponto de origem. Como demonstra Políbio: “A primeira de

todas essas espécies a aparecer foi a autocracia, cujo surgimento é espontâneo e natural; em seguida nasceu a monarquia, derivada da autocracia

por evolução e pela correção de defeitos (...)10”, e assim, passa-se para a tirania enquanto forma degenerada e esta por sua vez, evolui para a

aristocracia, enfim, esta sequência segue até completar o ciclo com a oclocracia (forma corrompida da democracia). Neste ultimo regime reina o

império da violência e sob tais condições os homens retornam para a animalidade total até que o povo, diz Políbio, encontre “novamente um

senhor e autocrata11”, formando o regime monárquico e restabelecendo o ciclo.

Essa cronologia expõe claramente a teoria dos ciclos históricos em Políbio. E sob esse aspecto há algumas observações importantes a

serem feitas: a de que os ciclos seguem uma lógica que se define a partir de estágios que saem de superiores para inferiores; as formas mais

degeneradas de governo passam-se as melhores ordenadas, e por fim, essa noção vislumbra a possibilidade de se prever os tipos de governos que

se alternam com o tempo. Tal noção é fortemente evidenciada na passagem das “Histórias”, em que o historiador grego descreve a maneira como

os governos se alternam:

“Esse é o ciclo pelo qual passam as constituições, o curso natural de suas transformações, de sua desaparição e de seu retorno ao ponto de partida. Quem

distinguir nitidamente esse ciclo poderá, falando do futuro de qualquer forma de governo, enganar-se em sua estimativa da duração do processo, mas se seu

9 Vale lembrar que não é nosso objetivo apresentar um debate entre comentadores de Maquiavel e Políbio, mas sim, de captar elementos pertinentes para a

compreensão do estatuto da história no pensamento político de Maquiavel. De tal forma que, os comentadores aqui citados partem de posições muito próximas, divergindo em alguns pontos específicos.

10 Políbio. Histórias, VI, 4 11 Ibidem, VI, 9.

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juízo não for afetado pela animosidade ou pelo despeito dificilmente se equivocará quanto ao seu estágio de crescimento e declínio e quanto à forma que

resultará desse processo” 12.

Assim, a teoria cíclica, em Políbio, revela um dado objetivo, que são as alternâncias nos tipos de regimes e a ideia do “eterno retorno dos

mesmos”. Com isso, o historiador grego quer significar o elo entre as seis formas de governo. Desse modo, declarando muito mais do que um

simples movimento dos regimes, a teoria dos ciclos se torna um instrumento precioso para a descrição das diversas etapas que as constituições

políticas necessariamente percorrem.

A teoria dos ciclos revela, por sua vez, a fragilidade dos regimes simples13. Estes apesar de nascerem de uma noção de dever, facilmente

são corrompidos pelo fausto, o luxo e a falta de respeito às leis, de tal forma que, tendem rapidamente para a forma degenerada que lhe são

próprias e inerentes à suas naturezas14. Essa instabilidade dos regimes simples fica evidenciada na passagem em que Políbio descreve a ordem

cíclica dos governos15, nessas transições o autor expressa termos como: vingança, injustiça, violência e desprezo à lei. Por meio das constatações

acerca da constituição simples, enquanto princípio único, precário e instável, o historiador grego lança mão de sua tese principal, apropriando-se

de exemplos históricos, nesse caso, a legislação de Licurgos. Prevendo a inexorabilidade dos regimes simples, Licurgos legislador de Esparta,

teria preferido criar uma constituição que unisse “todas as características boas e peculiares às melhores formas de governo, de tal maneira que

nenhum dos seus componentes pudesse crescer indevidamente e degenerar nos males a eles inerentes” 16. Assim, teria possibilitado o surgimento

do regime misto garantindo a Esparta um governo que permanecesse por longo tempo em estado de equilíbrio17.

12 Políbio. Histórias, L.VI, 9. 13 Por regime simples entendem-se as três formas boas de governo descrito acima. 14 Políbio. Histórias, VI, 10. 15 Ibidem, VI, 4. 16 Ibidem, VI, 10. 17 Ibidem, VI,10.

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O governo misto aparece como uma alternativa polibiana para conter as peripécias e contingências das formas simples de governo.

Consistindo na composição das três formas não corrompidas dos regimes simples, Políbio vai encontrar a razão de sua excelência, no mecanismo

de controle recíproco dos poderes e no princípio de equilíbrio. Todavia, essa alteração que ocorre entre o parágrafo 9 (sobre os ciclos) e o

parágrafo 10 (sobre o governo misto) expõe uma ruptura no pensamento polibiano. De fato, ao abandonar as formas simples de governo para

aceitar o regime misto, Políbio teria se envolvido num paradoxo e se expondo a um problema estrutural, a saber: como conciliar, então, a

estabilidade dos governos mistos com a teoria dos ciclos? Essa problemática que está envolta a teoria polibiana, permite pensar a retomada que

Maquiavel faz de alguns aspectos da concepção cíclica do historiador grego. E sob está ótica, cabe perguntar, se o florentino é um simples adepto

da teoria polibiana e se, desse modo, incorre no mesmo problema daquele ou se ele soube enxergar tais dificuldades preferindo assim, seguir por

um caminho singular.

Vale lembrar que a semelhança entre tais pensadores está no fato de Maquiavel seguir a lógica textual presente em Políbio. No parágrafo

2 do Livro I dos “Discursos”, se ocupando da opinião dos “mais sábios”, neste caso também a de Políbio, o florentino discorre sobre as seis

formas de governo (tomando à perspectiva clássica). Aqui também aparece a instabilidade das formas simples que se justifica pela “semelhança

que têm neste caso a virtude e o vício” 18. Logo em seguida, o texto apresenta uma análise detalhada das transições entre os governos e a

exposição dos ciclos históricos. Esse talvez seja o ponto de maior congruência entre os pensadores, ou ao menos, o que tenha provocado um

maior debate. Nele Maquiavel anuncia a seguinte frase: “Esse é o ciclo segundo o qual todas as republicas se governaram e governam, mas raras

vezes retornam aos mesmos governos, porque quase nenhuma república pode ter tanta vida que consiga passar muitas vezes por tais mutações e

continuar em pé” (grifos nossos) 19.

18 Maquiavel. Discursos, I, 2. 19 Ibidem, I, 2.

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Embora seja possível perceber uma reprodução, quase literal, do texto de Políbio, Maquiavel, por outro lado, diverge do valor científico

que há na teoria da circularidade. Como o florentino comenta as repúblicas “raras vezes retornam aos mesmos governos”. Como bem destacou

Martins20, da forma mais degenerada não há como emergir a melhor ordenada e o termo raras vezes apresenta uma oposição ao “sempre”

presente na formulação da teoria polibiana. Ciente da complexidade que há na constituição de um Estado, o florentino menciona que, “passando

uma república por tais reveses e faltando-lhe sempre discernimento e forças, acaba ela por se tornar súdita de algum estado próximo que seja

mais bem-ordenado” 21. Essa clareza de não crer em uma repetição sem fim da sequência histórica, que parece faltar em Políbio, evidência o

realismo de Maquiavel. De fato, encontrando-se um governo na sua mais degenerada condição, é quase improvável que consiga erigir-se em um

Estado livre, ao contrário, o mais provável é que ao invés do retorno a forma justa, ocorra a transferência de domínio de tal Estado para outro.

Através desse conjunto de elementos, pode-se dizer que, Maquiavel não faz uma mera reprodução da teoria cíclica de Políbio, ao

contrário, o mesmo rompe com a objetividade que parece haver no interior do sistema polibiano, de tal forma que, a teoria da circularidade em

Maquiavel perde sua utilidade explicativa da sucessão histórica e a sua capacidade de antecipar os acontecimentos. Nesse sentido, não há no

capítulo 2 dos “Discursos”, o mesmo paradoxo entre governo misto e história cíclica encontrada no capítulo 9 e 10 das “Histórias” de Políbio. O

fato de não ter em Maquiavel essa problemática, já denota claramente a existência de divergências entre tais pensadores. Como afirmado

anteriormente, não havendo uma circularidade histórica capaz de estabelecer um elo entre as formas de governo, muito menos, capaz prever

quais seriam os regimes futuros, o campo da ação política não estaria limitado a um único movimento e, sendo assim, tudo seria passível de

mudança que poderia ser, tanto contingências como fruto da ação humana.

20 Martins, J. A. Os fundamentos da república e sua corrupção nos discursos de Maquiavel. 2007. Dissertação (Doutorado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia,

Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo. 21 Maquiavel. Discursos, L I, 2.

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É possível, após essa análise, extrair algumas premissas conclusivas. Dentre elas está a relação inicial entre os dois pensadores. Tal

relação se fundamenta na apropriação “parcial” que Maquiavel faz da teoria polibiana. Não há uma negação absoluta da influência do historiador

grego sobre o pensamento político do florentino, por sua vez, também não há uma reprodução literal deste para com aquele. O que de fato existe

é a retomada de problemas como a constituição, permanência e manutenção dos regimes políticos e dentro destas questões se fazem presentes a

noção de temporalidade, a história cíclica e o governo misto.

BIBLIOGRAFIA

AMES, José Luiz. Maquiavel: a lógica da ação política. Cascavel: Edunioeste, 2002.

ANTÔNIO, J. Os fundamentos da república e sua corrupção nos discursos de Maquiavel. 2007. Dissertação (Doutorado em Filosofia) –

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo.

BIGNOTTO, N. Maquiavel republicano. São Paulo, Loyola, 1991.

____________. “O círculo e a linha”, in Tempo e História, org. Adauto Novaes, São Paulo, Cia das Letras, 1992, pp.177-188.

MAQUIAVEL, N. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Tradução MF. São Paulo, Martins Fontes, 2007.

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O ESTATUTO DA PERCEPÇÃO EM DESCARTES - Geder Paulo Friedrich Cominetti ••••

Em Descartes, a alma possui dois modos gerais que se desdobram em diversos modos específicos. Estes dois modos gerais são

classificados como ativo ou/e passivo, correspondendo, respectivamente, a vontades e percepções. Concebidos na atualidade, Descartes afirma

que as vontades alteram a coisa pensante e as percepções a afetam. Esta característica das percepções dá uma idéia mais precisa do que vem a ser

o conhecimento para Descartes. Por este motivo, o texto que segue tem o intuito de colocar reflexões diversas sobre o tema para ao final

compreender melhor em que sentido a percepção afeta a coisa pensante.

A percepção conserva íntima relação com o modo de pensar chamado idéia. Idéia é a “forma de cada um de nossos pensamentos por cuja

percepção imediata temos conhecimento desses mesmos pensamentos (...), mas somente na medida em que enformam o próprio espírito(...)”22. A

idéia é um modo do pensar, ou seja, a idéia é uma maneira, uma função do pensamento, sendo este o atributo principal da alma23. A idéia tem a

função de dar formas à substância pensante. Assim, quando a alma duvida de algo, a idéia dá à alma a forma de dúvida; quando a alma quer, a

idéia atribui à alma a forma de querer; quando a alma sente, a idéia lhe imprime a forma de sentir. O pensamento, atributo principal, tem um

número indeterminado de formas. Quem lhe dá estas formas são as idéias. Dependendo de o quê a alma pensa, a idéia lhe dá uma forma que

representa aquela coisa que lhe afeta.

• Acadêmico em Filosofia pela Unioeste; bolsista PET – Orientador: Edson Medeiros de Andrade. E-mail: [email protected] 22 Descartes, 1991d, p.251. 23 “Não só nos textos expostos segundo a ordem sintética (como a Exposição geométrica), como também nos textos construídos segundo a ordem analítica (como as

Meditações), a noção de Pensamento é a mais elementar do sistema: ela não pressupõe nenhuma outra noção, embora muitas outras a pressuponham. Esta prioridade conceitual da noção de Pensamento exprime também uma prioridade ontológica: o pensamento é o atributo principal (a essência) do sujeito pensante (res cogitans). Os modos da res congitans não podem ser, nem ser concebidos, sem o seu atributo principal, enquanto ao tributo principal independe de cada um dos seus modos” (LANDIM, 1992, p.37-38).

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Digno de nota é a observação de que a idéia é um modo de pensar que acompanha todos os outros modos, isto é, a alma possui idéia de

todos os outros modos de pensar. A idéia é a forma, a reapresentação, a representação de uma coisa à alma. E não se trata de uma forma exterior,

que paira em frente à alma, mas sim uma forma que a própria alma recebe, deste mesmo modo de pensar chamado idéia. A idéia, portanto, não se

limita exclusivamente a ser a forma que a alma recebe, mas, ainda, o modo do pensamento capacitado a gerar um número indeterminado de

formas na substância pensante. A idéia é a reação da substância pensante quando esta se depara diante de uma coisa qualquer. A alma, concebida

como uma coisa que recebe diversas formas diferentes, em diferentes momentos, pode ser caracterizada pela sua capacidade elástica de inúmeras

modulações.

(...) essa força pela qual conhecemos propriamente as coisas é puramente espiritual (...), ela é única (...). Em todos os casos, essa força de conhecimento é ora

passiva, ora ativa; ora é o sinete, ora é a cera que ela imita; todavia, aqui só se deve tomar essas expressões analogicamente, pois não se encontra nas coisas

corporais nada que lhe seja totalmente semelhante. É uma única e mesma força que, aplicando-se com a imaginação ao sentido comum, é chamada de ver,

tocar, etc.; que, aplicando-se à imaginação sozinha na medida em que esta é guarnecida de figuras diversas, é chamada de lembrar-se; que, aplicando-se a ela

para dela formar novas é chamada de imaginar ou conceber; que, enfim, agindo sozinha, é chamada de compreender24.

Qualquer ação ou afecção que a alma atualiza acaba por receber uma forma deste modo de pensar chamado idéia. Esta atualização não

passa de uma aplicação do espírito, àquilo que a que ele atenta. E é se aplicando sobre diversas coisas que a alma toma diversas formas, e neste

sentido ela é indivisível. Mas o que se quer ressaltar aqui é o fato de que, em Descartes, o modo de pensar chamado idéia é que dá formas à

substância pensante, em um primeiro momento, e, em um segundo momento, é a própria forma dada pelo mesmo modo do pensamento. O

entendimento desta questão é lapidado com a leitura da citação supra, onde tratam de formas por analogia, pois Descartes chama figuras quando

24 Descartes, 2007, p.79.

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trata das coisas corpóreas. Isso quer dizer que, as formas recebidas pelo pensar quando se aplica aos corpos não são as formas dos corpos, não há

formas dos corpos, mas tão-somente figura dos mesmos. Forma é termo utilizado para se referir ao imaterial.

A substância pensante acessa as coisas através das idéias, e este acesso é sempre chamado percepção. A aplicação da alma sobre as idéias

é o ato de perceber. Percepção é o dar-se conta de uma forma. Como a forma não é apenas o modo de pensar que gera as formas, mas também a

própria forma, a percepção está intimamente relacionada com a idéia. “A idéia é representação na medida em que é percebida pelo espírito”25.

Esta definição de percepção pode erroneamente entoar o aspecto de uma ação, pois em verdade, trata-se de uma afetação sofrida pela

coisa pensante. Vale ressaltar que a idéia age sobre a coisa pensante, e não o inverso. Quando a alma é movida26 por uma ação, ela mesma

percebe esta ação. Ao sofrer uma alteração qualquer, a alma é afetada por esta mesma alteração. Isso ocorre porque toda e qualquer alteração da

coisa pensante é acompanhada pelo modo de pensar chamado idéia, que atinge de imediato a coisa pensante. Desta maneira, uma vontade sempre

é representada à coisa pensante espontaneamente, e a percepção de uma vontade é inevitável. Não obstante, uma ação da alma não deixa de ser

uma forma que esta assume por suas próprias forças. A idéia é representação de uma coisa, e não uma reprodução fictícia da coisa. Por isso, a

idéia que a coisa pensante tem de uma ação não é diferente desta mesma ação27. Uma ação é denominada de vontade, e esta é precisamente

sempre o invocar uma forma. Ao assumir uma forma com suas próprias forças, a alma acaba por ser afetada por si mesma, intencionalmente. E é

através da intenção que se identifica uma vontade, uma ação, pois ocorre de a coisa pensante receber formas sem intenção, receber dela própria,

como quando recebe dos objetos exteriores, como, por exemplo, a alegria, a cólera, e estas não são vontades, ações, pois não contém intenção;

são comparadas ao sentir, e por isso são chamadas de sentimentos. Portanto, o que diferencia uma ação de uma percepção é a intenção verificada

na primeira e a falta desta verificada na segunda.

25 Forlin, 2005, p.284. 26 “Movimento” é um conceito aplicado exclusivamente aos corpos, e não deve ser entendido aqui de modo literal, mas apenas como expressão de linguagem. 27 “Não poderíamos querer coisa alguma sem saber que a queremos, nem sabe-lo a não ser por uma idéia; mas não afirmo de modo algum que esta idéia seja diferente

da própria ação.” (Cartas, a Mersenne; in DESCARTES, 1991b, p.84)

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O que se poder extrair das reflexões precedentes é que quando a alma recebe idéias vindas dela própria, estas idéias não se diferenciam da

própria coisa. Assim, a idéia de alegria experimentada pela substância pensante é a própria alegria experimentada pela substância pensante. O

sentimento possui a característica de ser tomados de impulso, como se a coisa pensante se inclinasse a uma potencia superior, ou por ela fosse

atingida. Em outras palavras, a alma sofre um sentimento; é atingida por ele. Mas também é atingida pelas suas ações. Quando comete algo

intencionalmente ela também é afetada.

Determinada a distinção entre uma vontade e uma percepção, a saber, respectivamente intencional e não-intencional, cabe falar da

percepção sob um novo aspecto: sua relação com o conhecimento.

(...) somente podemos ser enganados ao compor nós mesmos de certa maneira o que acreditamos. (...) essa composição pode ser feita de três

formas, a saber: por impulso, por conjectura ou por dedução. É por impulso que compõem seus juízos sobre as coisas aqueles cujo espírito inclina a alguma,

sem que disso sejam persuadidos sem nenhuma razão, mas determinados somente, seja por alguma potência superior, seja pela liberdade própria, seja por

uma tendência da imaginação: a primeira influencia nunca engana, a segunda raramente, a terceira quase sempre; mas a primeira não tem seu lugar aqui,

porque não se ergue a partir da arte. A composição é feita por conjectura quando, por exemplo, do fato de que a água, por estar mais distante do centro do

mundo do que a terra, é também de uma essência mais sutil,e ainda do fato de que o ar, por encontrar-se acima da água, é também mais leve, conjecturamos

que acima do ar não há nada senão um éter muito puro e muito mais sutil do que o próprio ar, etc. Nem tudo o que compomos dessa maneira por certo não

nos engana, se julgamos que é somente provável, sem nunca afirmar que isso seja verdadeiro; mas tudo isso não nos deixa mais doutos. Resta, pois, a

dedução, a única pela qual possamos compor as coisas de modo que fiquemos seguros de sua verdade. (...) contanto que nunca vinculemos coisas entre si

sem ver por intuição que a ligação de uma com a outra é inteiramente necessária.28

28 Descartes, 2007, p.89-90.

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A citação indica que a substância pensante compõe suas crenças. A construção das próprias crenças se dá de três maneiras: por impulso,

por conjectura ou por dedução. As três espécies desvirtuam-se da verdade quando deixam de evitar a precipitação e a prevenção, ou seja, quando

formulam juízos antes de se chegar a uma evidência ou quando persistem nos prejuízos carregados desde a infância, elaborados sem a observação

dos ditames da razão. Mas isso ainda traz outro fator a lume: a realização de um juízo é feita pela vontade.

A vontade se caracteriza pelo inverso da percepção, ou seja, sobre a vontade não age nenhuma força exterior, ela é livre,

voluntária. Além do mais, a vontade, representada pela aptidão de escolher, é indeterminada, e, tão extensa, que não há limites a circunscrevê-

la29. Por isso as ações da alma podem ir em qualquer direção e antecipar julgamentos sem considerar as devidas razões. Guiada por si mesma, a

vontade não é forçada por nenhuma força exterior, como já foi dito, e deixa de observar a necessidade das suas proposições. Onde quer se chegar

é que estas composições voluntárias, compostas a bel prazer, acabam por conectar erroneamente as idéias, o que afeta à coisa pensante uma

crença indigna de verdade. Para o conhecimento da verdade, a vontade deve ser deixada de lado, pois aquela se impõe e afeta a coisa pensante

através da necessidade. Necessidade aqui entendida como o oposto de liberdade de escolha. Ora, o que é necessário não pode pender para o outro

lado.

Assim, a busca da verdade pela coisa pensante deve ser um procedimento de entrega à razão, às verdades necessárias, abrindo mão da

faculdade de julgar. A percepção pura, aquela que não é acometida pela ação da coisa pensante, é que se presta a perceber ou ser afetada pela

verdade. Uma percepção pura é ainda chamada por Descartes de intuição. Mas, é possível querer conhecer a verdade sem tomar ação alguma? O

querer saber a verdade não é um querer? Constroem-se conjecturas, impulsos ou deduções sem a vontade? Não é a vontade um deus enganador a

quem a coisa pensante deve ser livrar-solta?

29 Na quarta das Meditações: “Em verdade, nem posso queixar-me também de que não haja recebido de Deus uma vontade ou liberdade de arbítrio suficientemente

ampla e perfeita, pois a experimento em verdade tão intensamente e tão extensa** que não há limites a circunscrevê-la” (DESCARTES, 2004, p.117).

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Como o contrário do aleatório é a necessidade, Descartes aplica uma forma do querer sobre a necessidade, já que esta irá desfazer aquela.

Esta forma do querer é a dúvida. As idéias que independem da vontade para surgirem são todas verdadeiras. Esta é a regra da verdade: “(...) é

verdadeiro tudo o que concebo muito clara e distintamente”30, ou seja, tudo o que não contiver o mínimo motivo de dúvida31. A vontade, como é

indeterminada, pode até impor uma dúvida sobre aquilo que é claro e distinto, no entanto, a razão irá persuadir a coisa pensante de sua

veracidade, e após exaustiva verificação, a substância pensante apenas não aceitará a verdade por força da vontade de não aceitar. É assim com o

cogito, que, submetido à dúvida metódica cartesiana resiste à ela por não haver nenhuma outra razão de duvidar. Seria este o limite da dúvida? A

necessidade? Aquilo que é imposto por Deus como lei do mundo? Mas, a verdade é vontade de Deus, e Ele, mesmo sendo o ser soberano, não

possui vontade maior que a da coisa pensante, pois a igualdade da extensão de ambas é a marca feita pelo criador em sua cria. A dúvida honesta

não perdura diante de uma verdade necessária. Por isso, nas Meditações, é possível antecipar a prova da existência dos corpos, já que a

convivência da coisa pensante para com eles independe da vontade da alma.

Por fim, resta concluir que o conhecimento é adquirido de modo passivo pela alma, e que seu objeto de percepção é uma multiplicidade

de pensamentos. Não ficou claro, com esta pesquisa, se há percepção sem idéia, e foram apontadas fortes razões para se crer no contrário.

Todavia, elucidou a definição da passividade da alma e trouxe uma série de elementos para uma interpretação em respeito ao estatuto da

percepção na obra de Descartes; e isso foi de ótimo tamanho.

REFERÊNCIAS

30 Descartes, 2004, p.71. 31 “(...) a razão já me persuade de que é preciso coibir o assentimento, de modo não menos cuidadoso, tanto às coisas que não são de todo certas e fora de dúvida

quanto às que são manifestamente falsas, bastará que encontre, em cada uma, alguma razão de duvidar para que as rejeite todas.” (DESCARTES, 2004, p. 23)

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COTTINGHAM, John. A filosofia da mente de Descartes. Tradução: Jesus de Paula Assis. São Paulo: Editora Unesp, 1999. 56 p. –

(Coleção Grandes Filósofos)

COTTINGHAM, John. Dicionário Descartes. Tradução: Helena Martins. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995. 171 p.

DESCARTES, René. As paixões da alma. Tradução: J. Guinsburg e Bento Prado Junior. São Paulo: Nova Cultural, 1991. 296 p. –

(Coleção Os Pensadores)

___________, René. Carta-prefácio dos princípios da Filosofia. Tradução: Homero Santiago. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 75 p. –

(Coleção Clássicos Filosofia)

___________, René. Discurso do método. Tradução: J. Guinsburg e Bento Prado Junior. São Paulo: Nova Cultural, 1991. 296 p. –

(Coleção Os Pensadores)

___________, René. Meditações. Tradução: Fausto Castilho. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004. 231 p. – (Coleção Cartesiana)

___________, René. Objeções e respostas. Tradução: J. Guinsburg e Bento Prado Junior. São Paulo: Nova Cultural, 1991. 296 p. –

(Coleção Os Pensadores)

___________, René. Princípios da filosofia (edição bilíngüe – latim/português). Tradução: Raul Landim Filho. Rio de Janeiro: Editora

UFRJ, 2002. 114 p. – (Coleção Philosophia Analytica)

___________, René. Regras para a orientação do espírito. Tradução: Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins

Fontes, 2007. 151 p.

FORLIN, Enéias. A teoria cartesiana da verdade. São Paulo: Editora Unijuí, 2005. 350 p.

FORLIN, Enéias. O papel da dúvida metafísica no processo de constituição do cogito. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2004.

162 p.

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LANDIM FILHO, Raul Ferreira. Evidência e verdade no sistema cartesiano. São Paulo: Edições Loyola, 1992. 131 p. - (Coleção

Filosofia; 23)

MARQUES, Jordino. Descartes e sua concepção de homem. São Paulo: Edições Loyola, 1993. – (Coleção Filosofia; 25)

SORREL, Tom. Descartes. Tradução: Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 2004. 134 p. – (Coleção Mestres do Pensar)

FERRER, João Antônio Guimarães. A teoria da representação da idéia na terceira meditação: a originalidade da metafísica cartesiana.

Tempo da ciência, Volume 14, p. 99-113.

ROCHA, Ethel Meneses. Teoria das idéias no sistema cartesiano: a questão da fundamentação do conhecimento. Analytica. Disponível

em:

<http://www.analytica.inf.br/analytica/diagramados/64.pdf >. Acesso em: 20 mar. 2009.

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OBJETIVO DA AÇÃO EDUCATIVA NO PENSAMENTO DE JOHN DE WEY - Rogério Antônio Hermes 32

A preocupação de John Dewey com a educação é uma constante em sua obra. Nesse sentido procuraremos nesse trabalho trazer o que o

filósofo entende como sendo o ato de educar e qual o objetivo fundamental deste. Para discutirmos o objetivo do ato de educar, inicialmente

traremos a concepção de objetivo do filósofo e a seguir o que ele entende por estabelecer um objetivo educacional.

Cunha (1994, p. 38-39) expõe a concepção de o que é educar para Dewey como:

[...] educar não é mero procedimento pelo qual se instrui as crianças para que reproduzam determinados conhecimentos. Educar é por o indivíduo

em contato com a cultura a que pertence e, mais do que isso, é prepará-lo para discernir situações que exijam reformulações e para agir em consonância com

estas necessidades de transformação. Todo procedimento educativo tem a finalidade primordial de possibilitar a continuidade da vida do agrupamento social.

Assim, no pensamento de Dewey, educar vai muito além da simples transmissão de conhecimentos. Para o filósofo, educar é preparar o

indivíduo para a vida, ou seja, é prepará-lo para viver em sociedade e para colaborar com a continuidade da vida desse agrupamento. E, para que

o processo educativo atinja esse objetivo, “a finalidade da educação não deve se encerrar no interior de qualquer instituição formalmente criada

para instruir, mas deve estar enraizada na necessidade de sobrevivência da coletividade” (CUNHA, 1994, p. 38-39). Nesse sentido, é fundamental

que no processo educativo se tenha a consciência de que a vida em sociedade é educativa, pois é na vivência em comunidade que o indivíduo

pode construir suas próprias experiências.

32 Aluno especial do Mestrado em Educação da Universidade de Passo Fundo e acadêmico de Filosofia (LP) da Universidade de Passo Fundo, integrante do grupo de pesquisa

“Pragmatismo, filosofia e educação: as interfaces entre experiência, reflexão e políticas de ensino”.

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Ao associar o processo educativo com a vida em comunidade, Dewey traz uma concepção de continuidade a esse processo. Sob esse

aspecto é necessário que a educação tenha um objetivo que para o filósofo “[...] é habilitar os indivíduos a continuar sua educação” ou, ainda,

“[...] o objeto ou recompensa da educação é a capacidade para um constante desenvolvimento” (DEWEY, 1959, p. 108).

Antes de discutirmos o que vem a ser um objetivo educacional é importante entendermos como se dá o desenvolvimento do indivíduo no

pensamento de Dewey. Para o filósofo, o desenvolvimento do indivíduo começa quando criança “[...] como um processo no qual o homem se

torna mais racional, mais social e, finalmente, mais moral” (DEWEY, 1964, p. XI-XII). Sendo assim, a educação deve atender a esses três

aspectos do desenvolvimento do indivíduo, mas tendo como fim culminante o desenvolvimento moral. E, sob esse aspecto é fundamental ter

consciência de que o processo de desenvolvimento do indivíduo requer uma solução de continuidade ou, dito de outra forma, é um processo onde

não temos um ponto de término, pois quando esse indivíduo se desenvolve um pouco mais do ponto de vista moral passa a necessitar um maior

desenvolvimento racional e social e isso ocorre sucessivamente.

Temos, assim, o desenvolvimento moral como o objetivo da educação, mas é importante entendermos o que se quer dizer por objetivo.

Quando estabelecemos um objetivo temos que atentar para sua natureza, isto é, o objetivo é o fim a que se pretende atingir. Devemos, assim,

diferenciar resultado de fim. Qualquer ação que se efetive terá resultados, mas que não são necessariamente os fins ou objetivos pretendidos.

Seguindo esse raciocínio, os objetivos ou fins previstos devem dirigir a atividade influenciando os passos que vamos seguir. Sob esse aspecto

Dewey nos coloca que “[...] agir com um objetivo é o mesmo que agir inteligentemente” (DEWEY, 1959, p. 111).

A questão que Dewey (1959, p. 112) coloca é quanto ao “[...] critério necessário para um adequado estabelecimento de objetivos”: (1) “o

objetivo a estabelecer-se deve gerar-se nas condições existentes” (idem, p. 112); (2) “um objetivo deve [...] ser plástico, capaz de alterações para

adequar-se às circunstâncias” (idem, p. 113); (3) “o objetivo deve sempre representar uma expansão, uma libertação de atividades” (idem, p.

114).

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Seguindo esse raciocínio, estabelecer objetivos na educação segue as mesmas exigências de qualquer outra atividade. Assim, para Dewey,

os bons objetivos educacionais têm algumas características: (1) “um objetivo educacional deve alicerçar-se nas atividades e necessidades

intrínsecas (inclusive os instintos inatos e os hábitos adquiridos) do indivíduo que vai ser educado” (idem, p. 116); (2) “um objetivo deve ser

passível de converter-se em um método de cooperação com a atividade daqueles que recebem a instrução” (idem, p. 117), isto é, os fins não

devem ser impostos exteriormente; (3) “os educadores devem pôr-se em guarda contra os fins que se alegam serem gerais e últimos” (idem, p.

118), pois geral pode significar abstrato e levar a uma fuga do contexto, mas “objetivo verdadeiramente geral amplia a perspectiva do espírito”

(idem, p. 118).

Conforme já exposto, na concepção de John Dewey o principal fim de qualquer processo educativo é “[...] possibilitar a continuidade da

vida do agrupamento social” (CUNHA, 1994, p. 39) e, nesse sentido, é fundamental que a educação promova o desenvolvimento racional, social

e moral do indivíduo. Para atingir esse objetivo é essencial que a teoria educacional tenha como fim a formação do caráter dos educandos, pois

“[...] se o ensino recebido num curso regular não influenciar o caráter, será inútil conceber-se o fim moral como o fim unificador e culminante da

educação” (DEWEY, 1959, p. 395-396).

Dewey ao analisar as teorias de moral e sua relação com os objetivos da educação discutirá essas teorias a partir de quatro relações: (1) o

interior e o exterior; (2) o dever e o interesse; (3) inteligência e caráter; (4) o social e o moral.

Em primeiro lugar temos a relação entre o interior e o exterior ou, podemos dizer, entre as “boas intenções” e a conduta do indivíduo. A

esse respeito Dewey (1959, p. 384) coloca que:

Por um lado, faz-se grande cabedal de certas disposições sentimentais; o indivíduo deve ter “boas intenções” e, se isso suceder, se ele

for possuidor de uma legítima consciência emocional, pode forrar-se à responsabilidade de apresentar bons resultados dela na conduta. Mas, por

outro lado, desde que se devam fazer certas coisas tendo-se em vista as conveniências e necessidades de outras pessoas, e da ordem social em

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geral, insiste-se muito na prática de determinados atos, independentemente de ter o indivíduo algum interesse com os mesmos, ou de sua

compreensão daquilo que deve fazer.

Assim, o processo educativo tem que objetivar colocar na consciência do educando as “boas intenções”, mas isso deve ocorrer de forma

legítima para que se transformem em ações. A dificuldade desse processo são as influências externas a que tanto o meio educacional como o

educando estão sujeitos e que, muitas vezes, o farão agir de forma contrária à sua consciência para satisfazer a estes interesses externos.

Em segundo lugar, na relação entre dever e interesse, Dewey (1959, p. 386) traz que “[...] um homem sempre se interessa no que está

fazendo, pois do contrário não o faria”. Mais adiante, na mesma obra, o filósofo coloca que:

É certo existirem conjunturas em que cessa momentaneamente o interesse e a atenção afrouxa, tornando-se necessário reforçá-los. Mas o

que faz uma pessoa perseverar em árduos esforços não é a fidelidade a um dever abstrato e sim o interesse por sua ocupação. Os deveres são os

atos especiais necessários ao desempenho de uma função ou, em linguagem comum, para a pessoa fazer o seu trabalho. E homem

verdadeiramente interessado em seu trabalho é o que se sente capaz de resistir a um desalento temporário, de perseverar em face de obstáculos,

de aceitar os ossos do ofício: para ele torna-se um interesse resistir às dificuldades e distrações e vencê-las (DEWEY, 1959, p. 388).

A nossa inserção na sociedade vem acompanhada de direitos e deveres. Na concepção comum, os direitos são melhores que os deveres,

mas sem estes não podemos viver em sociedade. Nesse sentido, o interesse (ou necessidade) da vida em sociedade nos leva a procurar cumprir

com nossos deveres. Por isso Dewey coloca os deveres como “atos especiais necessários” e que são executados pelo homem por algum interesse,

pois sem este não os faria. Trazendo essa concepção para a educação, o processo educativo tem que, de alguma forma, despertar o interesse do

indivíduo por se educar e, se isto ocorrer, esse indivíduo superará todos os obstáculos para atingir seu objetivo de se educar.

Em terceiro lugar temos a relação entre inteligência e caráter. Entender essa relação e sua influência no processo educativo é fundamental.

Para Dewey (1959, p. 389):

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A educação moral nas escolas é praticamente inoperante quando fixamos o desenvolvimento do caráter como supremo fim, e ao mesmo

tempo tratamos a aquisição de conhecimentos e o desenvolvimento da inteligência, que necessariamente ocupam a maior parte do horário

escolar, como nada tendo que ver com o caráter. Com uma tal base, a educação moral fica inevitavelmente reduzida a certa espécie de lições de

catecismo ou de moral.

Para o processo educativo ter o fim moral como culminante é necessário que o desenvolvimento do caráter do educando seja objetivo em

todos os momentos do processo, isto é, mesmo na transmissão de conhecimentos e no desenvolvimento da inteligência este objetivo tem que

estar presente. Se isso não ocorrer a educação moral passa a ser uma mera inserção de “boas intenções” na mente dos educandos que ficará

dissociada de sua prática na convivência social.

Como quarto aspecto temos a relação entre o social e o moral. Nesse sentido, Dewey (1959, p. 393) coloca que “[...] o maior perigo que

ameaça o trabalho escolar é a ausência de condições que tornem possível a impregnação de espírito social; e este é o máximo escolho de uma

eficiente educação moral”. Para que ocorra a impregnação de espírito social no educando Dewey coloca duas condições: (1) “[...] a vida na escola

deve ser como em uma sociedade, com tudo o que isto subentende”; (2) “Deve haver continuidade entre o aprendizado escolar e o extra-escolar”

(DEWEY, 1959, p. 394).

Nesse sentido, na concepção de Dewey, a escola deve reproduzir a sociedade na forma de miniatura de modo a não ficar separada da vida,

isto é, aquilo que se aprende na escola deve ser o que realmente se encontra e vive na vida real. Dessa forma, haverá continuidade entre o que se

aprende na escola e o que se aprende fora dela e, ainda, dará condições ao indivíduo para um aprendizado contínuo em toda a sua vida e em todas

as situações que vier a enfrentar.

A partir do exposto, percebe-se que a preocupação de Dewey é que a ação educativa prepare o indivíduo para a vida e, para isso, é

fundamental que a educação tenha como objetivo a formação do caráter do educando visando sua convivência em sociedade. A dificuldade que

se apresenta à concepção deweyana é a transformação da escola numa sociedade em miniatura, pois no ambiente escolar existem particularidades

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no seu funcionamento que conflitam com situações e contextos da sociedade real. Mas, é preciso compreender que Dewey não nos traz um

projeto educacional pronto para ser aplicado, a sua intenção é nos alertar “[...] para que pensemos a realidade que nos cerca e para que

busquemos organizar a escola em função disto” (CUNHA, 1994, p. 74).

Referências

CUNHA, Marcus Vinícius da. John Dewey: uma filosofia para educadores em sala de aula. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

DEWEY, John. Democracia e educação: introdução à filosofia da educação. 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.

__________. Teoria da vida moral. São Paulo: IBRASA, 1964.

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PODER, LEGITIMIDADE E JUÍZO POLÍTICO EM HANNAH AREN DT - Rodrigo Moreira de Almeida 33

Nesta comunicação buscar-se-á explicitar a importância que têm o discurso e a opinião para pensar o problema da legitimidade do poder

em H. Arendt. Trata-se de analisar aspectos da crítica da autora acerca da tradição do pensamento politico-filosófico, sobretudo a tradição

vinculada à filosofia de Platão. Arendt chama a atenção para a desconfiança diante da ação e do discurso enquanto elementos essenciais para se

pensar a legitimidade do político, assim como para as diversas tentativas empreendidas pela tradição de encontrar um princípio universal e

transcendente que substituísse a interação humana como instância legitimadora do corpo político. A questão que nos guiará é: que elementos

contribuiriam para Arendt pensar a legitimidade de um poder político com bases imanentes ao campo da interação humana e à pluralidade? Nossa

hipótese será a de que tais elementos podem ser vislumbrados a partir de uma articulação entre as noções de mundo-comum, esfera-pública e

juízo político.

Arendt considera o julgamento e condenação de Sócrates um evento paradigmático para compreendermos a origem e o desdobramento da

nossa tradição do pensamento político. Como aponta em seu ensaio Filosofia e Política, a própria filosofia política emerge de um conflito entre o

filósofo e a polis enquanto modos distintos e contrários de vida. Platão, após a condenação de Sócrates e seu fracasso em persuadir os juízes, teria

tornado-se descrente aos princípios que regiam a pólis, a saber, a persuasão através do embate de opiniões e o autogoverno. Doravante, ao

condenar a esfera dos assuntos humanos, em A República, como a esfera da ilusão e das idiossincrasias, o filósofo contrapõe-se à pólis e passa a

buscar padrões absolutos que garantam uma maior objetividade na regência das questões políticas.

33 Mestrando em filosofia pelo Programa de Pós-Graduação da Unioeste; bolsista CAPES: [email protected]. Orientador Professor Doutor Rosalvo Shültz

(Unioeste); Co-orientador: Professor Doutor Adriano Correia (UFG).

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Assim, Platão passa a fundamentar a legitimidade do poder na idéia transcendente de um Bem universal, atingível unicamente pelo

filósofo, donde infere que somente este poderia governar a cidade. Para Arendt, é significativo o fato de que Platão tenha forjado seu conceito de

verdade em contraposição à doxa. Para compreendermos o quão revolucionário eram seus preceitos, devemos ter em mente que na pólis a

persuasão e a deliberação a partir das opiniões, eram o modo genuinamente político de se mover na esfera pública. Esta, ao contrário da esfera

privada, onde imperava o governo despótico do Senhor, desconhecia qualquer princípio de autoridade ou violência, porquanto ali os homens se

moviam livremente e entre iguais. Este era o significado do termo grego Isonomia. Como ilustra Adeodato

[...] O poder legítimo se origina, para os gregos, na faculdade para a ação política propiciada pela liberdade, em relação ao cidadão não ter senhor, e pela

igualdade em relação a seus pares. Para tanto, necessitam de um espaço público onde os cidadãos debatam suas alternativas de decisão e persuadam uns aos

outros.[...] Em termos estritamente políticos, a polis não conheceu a distinção entre governantes e governados (Adeodato, 1989, p.31).

Como descreve a autora, a palavra doxa significa, literalmente, “aquilo que aparece-me”, por conseguinte, é sempre relativa ao ponto de

vista de cada cidadão. Com efeito, a própria objetividade do mundo só se dá a partir do embate das diferentes perspectivas.

A Doxa não tinha como tópico o provável ou a verossimilhança, mas compreender o mundo como ele se abre para mim. Não era uma

coisa absoluta, válida para todos. O pressuposto era de que o mundo se abre de modo diferente para cada homem de acordo com a posição que

ocupa nele; e que a propriedade do mundo de ser o “mesmo”, o seu caráter comum ou sua objetividade, reside no fato de que o mesmo mundo se

abre para todos sem deixar de ser o mesmo (Arendt, 2002, p.97).

Com isso Arendt procura recuperar a importância da esfera pública, da opinião e da participação plural como instâncias legitimadoras do

poder político. Sobre isso escreve: “[...] A opinião e não a verdade, é uma das bases indispensáveis de todo o poder” (2007b, p.289), pois “[...] a

pretensão, no domínio dos assuntos humanos, a uma verdade absoluta, cuja validade não necessita de apoio por parte da opinião, abala os

fundamentos de qualquer política e de qualquer regime” (p.289-290). Isto porque segundo ela, somente na esfera pública através das deliberações

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o mundo aparece sob as suas diversas perspectivas, “[...] para as quais nenhuma medida ou denominador comum pode jamais ser inventado”.

Dado que “[...] o mundo comum acaba quando é visto somente sob um aspecto e só se lhe permite uma perspectiva” (Arendt, 2007a, p.68).

É nesse contexto que a autora afirma que, ao condenar a doxa, Platão instaura uma “tirania da verdade”, posto que o que buscava era um

Bem absoluto e uma verdade auto-evidente que, assim como as verdades metafísicas e matemáticas, por serem compulsivas em si, prescindem da

deliberação e da pluralidade dos pontos de vista. Dessa forma, a razão passa a ser a autoridade nos assuntos políticos, tornando-se supérflua a

participação dos cidadãos nos assuntos públicos. O resultado é sempre algum tipo de tirania, o cerceamento da liberdade pública e o banimento

dos cidadãos da esfera dos assuntos políticos, porquanto “[...] só o soberano deve cuidar dos negócios públicos” (Arendt, 2007a, p.234). Sobre

isso comenta Aguiar

O conflito que vem à tona é entre “o governo dos poucos” (no caso dos sábios e virtuosos) e o autogoverno pelos cidadãos. [...] A filosofia

transformou-se numa contestação do modo político de legitimação e na exigência de uma fundamentação absoluta para a ação política,

considerando insuficiente a palavra e a participação dos cidadãos, na sua contingência, para sustentar a polis (Aguiar, 2001 p. 27).

Para Arendt, isto só foi possível porque Platão, e grande parte da tradição posterior, conceberam a ação política aos moldes da fabricação

e da técnica, em virtude de uma maior confiabilidade dessa última. Porém, o erro básico de todas as tentativas de fundamentar o poder político

em uma esfera exterior à opinião dos cidadãos, salienta a autora, é o de pensar os dilemas da ação como se fossem problemas de cognição

solucionáveis (Arendt, 2007a, p.58). No entanto, escreve Arendt no prólogo de A Condição Humana (2007a), “ as respostas [no campo da

política] estão sempre sujeitas ao acordo de muitos”, pois não se trata “de problemas para os quais só existe uma solução possível” (p.13).

Conforme Arendt

Essa tentativa de substituir a ação pela fabricação era visível em todos os argumentos contra a “democracia”, os quais, por mais coerentes

e racionais que sejam, sempre se transformaram em argumentos contra os elementos essenciais da política. [...] Todas as calamidades da ação

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resultam da condição humana da pluralidade, que é a condição sine qua non daquele espaço da aparência que é a esfera pública.

Consequentemente, a tentativa de eliminar essa pluralidade equivale sempre à supressão da própria esfera pública (2007, p.232-233).

Contudo, o mais importante aqui, é salientar o quanto este paradigma foi incorporado pela tradição posterior e pelas instituições

ocidentais, desde o Império Romano ao poder absoluto do Papa, quando este passa a detentor exclusivo do poder espiritual e terreno, até o Estado

Moderno e o surgimento da idéia de “razão de Estado”, de domínio da nação soberana e mais tarde no chamado positivismo ou normativismo

jurídico do Estado de Direito. Cabe ressaltar que mesmo com a secularização e a autonomia da esfera temporal, a política continuou sendo

legitimada e justificada, tanto teórica quanto factualmente, do exterior da esfera da ação e do discurso. Com isso a política se transforma em um

meio para um fim mais elevado, a participação plural é tornada supérflua e substituída pela burocracia devido a maior eficiência desta última na

consecução do “Bem comum”. Sobre isso afirma Aguiar,

Com isso fica evidente que o poder político não recebia a sua autoridade da esfera pública, dos cidadãos, mas de instâncias externas:

nação, religião, interesses econômicos etc. A idéia de legitimidade transforma-se, pois, em legitimação, na qual a ação é convertida em

obediência e mando, e a vida política é submetida a princípios externos à esfera pública O resultado é a retirada dos cidadãos do campo das

decisões políticas e do âmbito relacionado ao destino comum, além da concentração dessas mesmas decisões nas mãos de poucos, os “legítimos

representantes” dos interesses universais, considerados os executores do bem comum. (2003, p. 252).

O que Arendt põe em evidência é que a aceitação do conhecimento ou qualquer outra capacidade não política no lugar da opinião, leva

inevitavelmente à dicotomia entre os que obedecem e os que mandam e à equalização entre poder e dominação e entre ação e técnica. No entanto,

para Arendt, o Poder deve ser entendido positivamente, não como domínio ou o monopólio dos instrumentos da violência, mas sim como a

capacidade que a ação e o discurso, com sua dimensão intersubjetiva, têm de estabelecer relações e compromissos mútuos. Tais compromissos e

pactos, afirma a autora: “[...] constituem a única alternativa a uma supremacia baseada no domínio e no governo de uns sobre os outros;

corresponde exatamente à existência de uma liberdade que é dada sob a condição de não-soberania” (2007a, p.257). De acordo com a autora o

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poder emerge entre os homens como potencialidade quando estes se reúnem e agem em concerto nos espaços públicos e se desfaz quando esta

esfera é suprimida, posto que corresponde à condição humana da pluralidade. Desta forma a autora recusa qualquer legitimação ou justificação

do poder que é imposta de fora da esfera do intercurso humano. Essa idéia de legitimidade vai na contramão da legitimidade absoluta, que torna a

participação plural descartável.

É nesse contexto que podemos relacionar a questão da legitimidade do poder com a noção de juízo político em Arendt. Arendt vai buscar

na Crítica do Juízo de Kant, mas especificamente no juízo estético e reflexionante, o paradigma para pensar o juízo político. Isto porque o juízo

estético em Kant não está preso em fundamentos universais e absolutos, e tem como elementos constitutivos a intersubjetividade, a

mundaneidade e a comunicabilidade. O juízo é político para Arendt, precisamente, porque o homem julga sempre aquilo que lhe “aparece”, isto

é, as coisas singulares que “estão entre muitos” e em “público”. Dessa forma é a comunicabilidade e a persuasão que constituem o seu modus

operandi. Além disso, o fundamento da legitimidade do juízo não é transcendente nem absoluto, mas sim o embate e os contatos articulados entre

os cidadãos na esfera pública a partir de acordos frágeis e limitados.

Relacionar o juízo com a legitimidade em Arendt é afirmar que no pensamento arendtiano a ação política não obtém sua validade de uma

prova, mas de uma concordância elaborada intersubjetivamente. Qualquer decisão política a rigor deve levar em consideração os implicados,

posto que a política trata de assuntos que dizem respeito a todos; “[...] sem essa consideração, a decisão pode ter qualquer qualificativo, menos de

política” (Arendt, 2007b, p.290). Nenhuma opinião possui validade de antemão e, por isso, a persuasão, e não a verdade demonstrada é a forma

apropriada de validação e legitimidade política. Nas palavras da autora: “o debate constitui a própria essência da política” (p.299).

Como opera então o juízo político e qual a relevância da opinião para a legitimidade do poder? Segundo a autora, o pensamento político é

sempre representativo. Eu formo uma opinião considerando uma questão dada sob diferentes pontos de vista, e tendo presente ao espírito as

posições daqueles que estão ausentes; quer dizer represento-os. É este o significado do termo Kantiano “pensamento alargado”. Este processo de

representação não adota cegamente os pontos de vista reais daqueles que estão algures e olham o mundo numa perspectiva diferente; não se trata

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de simpatia, como se procurasse ser ou sentir como outra pessoa, nem contabilizar os votos de uma maioria para me juntar a ela, mas de ser e de

pensar na minha própria identidade onde eu não estou realmente. Quanto mais numerosas forem as posições das pessoas que trouxer ao espírito

quando reflito sobre uma questão dada, tanto mais posso imaginar como me sentiria e pensaria se estivesse no seu lugar, mais forte será a minha

capacidade de pensamento representativa e mais válidas serão as minhas conclusões finais, isto é, minha opinião (Arendt, 2007b, p. 299).

Daí a recusa da autora em trabalhar com o conceito tradicional de verdade em política, ou com a idéia de um Bem universal. Isto porque

qualquer um destes elementos estão situados além do acordo e do consentimento, a adesão é obtida por meio do poder coercitivo inerente à lógica

do argumento presente no processo demonstrativo. A conseqüência é a supressão da troca política de opiniões, eliminando a cidadania e a esfera

pública como instâncias legitimadoras do corpo político. Conforme Aguiar

A importância da opinião vai de par, em Arendt, com a deliberação pública como pedra de toque da esfera política e do juízo como seu

suporte. No juízo, Arendt visualiza uma possibilidade de acordo, sem a necessidade da unidade de pensamento: a possibilidade de deliberar e

realizar algo, apesar de manter as divergências (Aguiar, 2003, p.259).

Referências:

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ARENDT, Hannah. ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007a.

____. Filosofia e Política. In: A dignidade da Política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p.91-116.

____. Verdade e Política. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2007b, p.282-325.

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CARL SCHMITT: A CRISE DA DEMOCRACIA PARLAMENTAR E O ANTAGONISMO POLÍTICO (AMIGO/INIMIGO) - Edison Alencar Casagranda 34

Introdução

É corrente a informação de que não há na obra de Carl Schmitt uma teoria da democracia. O que não significa dizer que Schmitt não

tenha apresentado em seus escritos uma posição sobre o regime democrático. Para ele, a democracia nada mais é do que a forma política

correspondente ao princípio da identidade. Na prática, a democracia da identidade corresponde à relação entre governantes e governados. É o que

Schmitt chama de verdadeiro regime democrático, ou seja, livre de distorções liberais, de crises de representação, das irresoluções das questões

parlamentares, enfim, um regime afastado de soluções teóricas e práticas incompatíveis com a dinâmica do antagonismo amigo/inimigo. Nesse

sentido, o presente texto tem a pretensão de analisar não apenas a concepção schmittiana da política com destaque para a distinção amigo/inimigo

como critério do político, mas também as crises atingem a democracia parlamentar.

1 – O antagonismo político: a relação amigo/inimigo

34 . Professor do Curso de Filosofia da Universidade de Passo Fundo (UPF/RS) e aluno do Curso de Doutorado do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade

Federal de Santa Catarina (UFSC).

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Para a democracia liberal, conforme Schmitt, “só existem a igualdade dos iguais e a vontade daqueles que pertencem aos iguais”.

(1996, p.16). Ocorre que a política, diz Schmitt, não se funda na igualdade e na vontade dos iguais, mas no seu antagonismo. Ou seja, a política

constitui-se a partir da dinâmica dos opostos, a partir do antagonismo amigo/inimigo. O que não significa, entretanto, dizer que a política supõe,

necessariamente, que o outro seja em si diferente de mim, mas antes de tudo, que o outro se sinta ameaçado por mim como eu me sinta ameaçado

por ele. Sobre isso, pondera Frank Cunningham: “a política surge quando as pessoas vêem as suas identidades não exatamente como diferentes

daquelas dos outros, mas ameaçadas por eles”; e, numa referência direta a Chantal Mouffe, acrescenta: “desse momento em diante, todo tipo de

relação [...], tornar-se-á o local de um antagonismo político”. (2009, p.226). A verdade, diz Schmitt, é que a democracia liberal - com a finalidade

de expurgar do âmbito político todo e qualquer tipo de antagonismo – terminou por reduzir a política a uma simples disputa parlamentar. Trata-se

de uma restrição liberal, que impede, na política, “a altiva adoção do antagonismo da parte de um povo unido homogeneamente em relação a

outras pessoas, [antagonismo que] se expressa e age decisivamente por liderança política não limitada”. (CUNNINGHAN, 2009, p.226).

Logo no início do segundo capítulo da obra O conceito do político, Carl Schmitt, na intenção de atingir o núcleo das relações

políticas, afirma que a determinação conceitual do político somente será possível mediante a identificação de categorias especificamente

políticas. A idéia é situar o político no contexto de uma distinção peculiar. Ou seja, Schmitt acredita que assim como se pode falar de uma

distinção última na moral (bom/mau), na estética (belo/feio), na teoria do conhecimento (verdade/falsidade) e na economia (rentável/não

rentável), também se poderia falar de uma distinção peculiar na política. Nesse sentido, a questão de Schmitt é, então, saber se existe está tal

distinção última na política para que possa, através dela, identificar ações e motivos especificamente políticos. Ao seguir na leitura do capítulo, o

leitor não demorará a encontrar a resposta a está questão. Com objetividade, Schmitt não apenas afirma a existência desta distinção última em

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política como a identifica no par conceitual amigo/inimigo. O antagonismo amigo/inimigo manifesta-se, nesse contexto, como código básico da

política. Sobre a referida relação afirma literalmente Schmitt:

A diferenciação entre amigo e inimigo tem o sentido de designar o grau de intensidade extrema de uma ligação ou separação, de uma

associação ou dissociação; ela pode, teórica ou praticamente, subsistir, sem a necessidade do emprego simultâneo das distinções morais,

estéticas, econômicas, ou outras. O inimigo político não precisa ser moralmente mau, não precisa ser esteticamente feio; não tem que surgir como

concorrente econômico, podendo talvez até mostrar-se proveitoso fazer negócios com ele. (1992, p.52).

A tendência inicial é identificar o inimigo com o lado negativo do par conceitual utilizado para uma definição peculiar na moral

(mau), na estética (feio), etc. Schmitt, entretanto, chama atenção para isso e pondera, mostrando que o inimigo não é, e nem pode ser, pura

negatividade; ele, conforme já dissemos acima, funciona como um exterior constitutivo, que ao pôr em perigo nossa identidade promove sua

condição de possibilidade. (ARDITI, 2008, p.427). Ao definir a fórmula amigo/inimigo como determinação própria do político, Schmitt busca,

de forma realista, determinar conceitualmente a política considerando-a apenas a partir do que é de fato e não pelo que deveria ser. Pois, “a

política é um espaço de relação, de conflito e disputa entre pessoas e grupos de pessoas, e não entre entidades ideais. Além disso, o político é uma

esfera com uma logicidade e critérios próprios, completamente impermeável a critérios morais exógenos”. (ARRUDA, 2003, p.61).

Carl Schmitt acredita ter encontrado no uso corrente da linguagem a justificativa para derivar de uma referência a um antagonismo

concreto à essência das relações políticas. Acredita, inclusive, que a concretude do antagonismo pode ser identificada, cotidianamente, tanto no

sentido polêmico que envolve a palavra política e todos os conceitos a ela relacionados (Estado, República, Sociedade, Classe, Soberania, Estado

de Direito, Constituição, Ditadura, etc.), quanto na simplificada associação do político com o político-partidário. A verdade é que palavras como

Estado, Nação e Soberania, entre outras, são, diz Schmitt, “incompreensíveis quando não se sabe quem em concreto, deve ser atingido,

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combatido, negado ou refutado com tal palavra”. (1992, p.57). Nesse caso, a política ganha contornos concretos, e diante das ameaças que

rondam a existência e a autonomia, o povo precisa demonstrar capacidade de decisão e de autodeterminação, pois como disse o Professor José

Maria Arruda (2009)35, em comunicação apresentada no IV Simpósio Internacional sobre a Justiça, “a política é a capacidade de um povo decidir

sobre sua própria forma de vida, sobre sua própria existência, capacidade de autodeterminação, de tornar-se de fato soberano, dando forma

concreta à sua liberdade fundamental enquanto entidade política”.

É da noção de política como capacidade de agir em conformidade com o binômio amigo/inimigo que um povo adquire consciência

de unidade e busca, através de um processo existencial de auto-afirmação, formar sua vontade política, constituindo-se como nação36 soberana.

Segundo Schmitt, a idéia de uma decisão política, tomada conscientemente e na perspectiva de conjunto, remete-nos à noção de uma vontade de

poder da qual brota e/ou deveria brotar toda a regulação legal-constitucional de uma nação. Por isso, para ele, uma constituição é valida apenas

enquanto for derivada desta vontade de poder, ou seja, de um poder constituinte. Logo nas primeiras linhas do § 8 da sua clássica obra

Verfassungslehre (Doutrina da Constituição), Carl Schmitt, divergindo do constitucionalismo liberal, afirma que o “poder constituinte é a

vontade política, cuja força ou autoridade é capaz de adotar a concreta decisão de conjunto sobre o modo e a forma da própria existência política,

determinando assim a existência da unidade política como um todo”. (2003, p.94).

35 . ARRUDA, José Maria. A descriminalização do inimigo como forma de reconhecimento no pensamento de Carl Schmitt. In: IV SIMPÓSIO INTERNACIONAL

SOBRE JUSTIÇA EM HOMENAGEM A AXEL HONNETH. Porto Alegre, 2009 (em fase de elaboração). 36 Para Schmitt, nação “designa povo como unidade política, com capacidade de ação, com consciência de sua singularidade e vontade de existência política.

Enquanto que o povo, que não existe como nação, é uma associação de homens unidos de alguma maneira, por coincidência étnica ou cultural, porém não necessariamente política”. (2003, p.96).

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O poder constituinte, conforme a leitura de Schmitt, se manifesta como vontade de poder, cuja formação de uma unidade política constitui

o seu principal objetivo. Trata-se de uma definição de poder que preserva, por se caracterizar como unitário e indivisível37, um forte vínculo com

a noção de soberania. O poder constituinte, mostra-se, para Schmitt, como uma decisão única que expressa uma vontade de poder e que busca

acima de tudo estabelecer e/ou restabelecer uma unidade política hegemônica. Nesse sentido, para Francisco de Guimaraens, “o poder

constituinte como único ato de expressão da força, da afirmação absoluta de uma nova origem, de uma nova unidade é imagem que não se

aproxima da idéia de processo ininterrupto de liberação, movimento constante de produção ontológica”. (2004, p.119). A verdade é que Schmitt

parece defender a idéia de que o poder constituinte existe como vontade política, mas que se acaba com a formação de uma unidade política.

(NEGRI, 2002, p.438).

3 – Parlamentarismo e democracia: oposição de princípios

No § 17 da Doutrina da Constituição, Schmitt mostra que a democracia nada mais é do que uma forma política que corresponde

ao princípio da identidade. Dito de outro modo, democracia é a forma política que supõe a identidade de um povo frente à exigência concreta da

existência e da necessidade de formar uma unidade política. Democracia, entretanto, pode significar também outras coisas. Se considerarmos que

o povo, como dissemos acima, é portador do poder constituinte e que por isso pode dar-se a si mesmo uma constituição, então diz Schmitt,

democracia poderá não corresponder necessariamente a um princípio de identidade, mas apenas a “um método para o exercício de certas

atividades estatais”. (2003, p.221).

37. Na visão de Schmitt, “o poder constituinte é unitário e indivisível. Não é mais um poder, coordenado por outros distintos poderes (legislativo, executivo e

judiciário). É a base que envolve todos os outros poderes e divisões de poderes”. (2003, p.95).

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Paralelamente à crise da democracia, Schmitt localiza a crise do sistema parlamentar. Faz questão, entretanto, de destacar que, apesar da

origem simultânea e do fortalecimento mútuo, as crises da democracia e do parlamento moderno são concreta e conceitualmente distintas. Sobre

isso, afirma Schmitt:

Como democracia, a moderna democracia de massas procura concretizar uma identidade de governantes e governados e, portanto,

enfrenta o parlamento como instituição obsoleta e inconcebível. Quando se leva a sério a identidade democrática, nenhuma outra organização

constitucional consegue se impor diante da exclusiva, determinante e irrefutável vontade do povo, expressa de uma forma qualquer. Diante dela,

uma instituição que se baseia principalmente na discussão entre membros independentes não tem direito a nenhuma existência autônoma, e

menos ainda quando a crença na discussão não tem fontes democráticas, mas sim liberais. (1996, p.16).

Carl Schmitt acredita que o sistema parlamentar atual passa por dificuldades de organização e funcionamento e, que tais

dificuldades têm origem na moderna democracia de massas. De acordo com Schmitt, conforme acabamos de transcrever, a democracia, enquanto

democracia de massas, procura tornar possível a identidade de governantes e governados, tratando o parlamento como uma instituição obsoleta e

inconcebível. Entretanto, o que há de obsoleto ou, como prefere Schmitt, de embolorado, na definição ou na forma de conceber o atual sistema

parlamentar? Não há mais como sustentar a idéia de que o sistema parlamentar se caracteriza, essencialmente, como government by discussion.

Afinal,

a crença no sistema parlamentar, num government by discussion, pertence ao mundo intelectual do liberalismo. Não pertence à

democracia. O liberalismo e a democracia devem ser separados, para que se reconheça a imagem heterogeneamente montada que constituiu a

moderna democracia de massas. (SCHMITT, 1996, p.10).

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Todavia, diz Schmitt, se ainda quisermos continuar acreditando no sistema precisamos de novos argumentos. Argumentos que permitam

pensar - com todo o respeito, diz ele, a Neumann, Preuss e Weber – numa concepção de parlamento que não se reduza à formação de uma elite

política.

O domínio do cenário político pela massa popular, organizada em partidos, modificou, diz Schmitt, a forma constitucional vigente.

Frente às convulsas vicissitudes da república dos conselhos, o parlamento, por exemplo, deixa de ser o lugar da decisão política. No texto

Situação intelectual do sistema parlamentar atual de 1923, Carl Schmitt mostra como isso ocorre, evidenciando que as democracias de massa

transformaram, por exemplo, os objetivos do sistema parlamentar - a “discussão” e a “publicidade” – em meras peças de ornamento. O

parlamentarismo teria, nessas circunstâncias, diz Flickinger,

perdido seu fundamento e sua credibilidade no momento em que a livre discussão pública entre cidadãos independentes arruinou-se pelo compromisso tático

dos partidos, fazendo desaparecer, assim, o ser público no processo de decisão política, dando lugar às negociações em comissões fechadas, etc. (2003,

p.62).

Para Schmitt, discussão e publicidade precisam ser efetivamente consideradas como base para o sistema parlamentar. No prefácio à

segunda edição (1926) de Situação intelectual do sistema parlamentar atual, Schmitt, em resposta a Richard Thoma, diz não acreditar que a

discussão e a publicidade tenham se tornado, para o contexto parlamentar, em crenças obsoletas. Na verdade, ele diz atemorizar-se com essa

possibilidade. Afinal, afirma Schmitt, se a crença na discussão e na publicidade mostra-se obsoleta, qual seria, então, “o novo tipo de argumento

e de convicção que poderia dar ao parlamento suas novas bases intelectuais? [...] não vejo como o sistema parlamentar atual poderia encontrar

suas novas bases se os princípios de discussão e publicidade realmente deixassem de existir”. (1996, p.4). Está claro para Schmitt, nesse sentido,

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que o esgotamento na confiança dos “fundamentos espirituais”, impediu o parlamento de responder aos problemas políticos advindos da grande

massa, ou melhor, de uma democracia de massas, onde a organização partidária teria sido transformada em máquina eleitoral e o parlamento em

palco de barganhas e de interesses raramente confessáveis. Nesse caso, o parlamento - como dissemos anteriormente - “não aparecia mais como

o lugar da decisão política, mas, no máximo, o lugar onde eram ratificadas decisões tomadas alhures”. (SCALONE, 2005, p.423).

A partir disso talvez seja mais fácil compreender a polêmica schmittiana contra o liberalismo. O parlamentarismo moderno, pervertido

pela transformação da discussão e da publicidade em peças de ornamento, rompeu, por essa razão, vínculos com os princípios constitutivos da

tradição liberal. Dito de outra forma, ao transformar a discussão pública e argumentativa em simples formalidade, o parlamentarismo moderno,

com a evolução da democracia de massas, cortou laços, não apenas com a dimensão necessariamente pública da decisão, mas também com a

disputa racional que, segundo idéias liberais da tradição, deveria permear as opiniões políticas. Por essa razão, diz Schmitt,

a situação do sistema parlamentar tornou-se hoje extremamente crítica, porque a evolução da moderna democracia de massas transformou a discussão

pública, argumentativa, numa simples formalidade vazia. Algumas normas do direito parlamentar atual, sobretudo as determinações quanto à autonomia dos

deputados e à abertura das sessões, surgem, ao invés disso, como uma ornamentação inútil, supérflua e até patética, como se alguém pintasse chamas

vermelhas nos aquecedores de um moderno sistema de aquecimento central para transmitir a ilusão de um fogo ardente. (1996, p.8).

Ora, qual seria, então, a especificidade do sistema parlamentar? Ao permitir a redução do parlamentarismo a um mero formalismo

vazio, conforme descreve Schmitt na citação acima, não se estaria abrindo precedentes para que fosse confundido com qualquer outro tipo de

decisão formalmente legitimada? De acordo com Schmitt, a demonstração de que o sistema parlamentar possui especificidades - ou que não pode

ser simplesmente confundido com outros tipos de decisões formalmente legitimadas – passa, necessariamente, pela possibilidade de diferenciá-lo

da democracia. Afinal, pondera Schmitt, se o parlamento não quiser ser liquidado não poderá permitir que o transformem “num simples meio

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prático-técnico, [caso contrário] [...] ficará demonstrado via facti em qualquer processo – não necessariamente numa ditadura abertamente

exposta – que existem outros caminhos”. (1996, p. 10). As questões do parlamentarismo devem, por essa razão, ser radicalmente diferenciadas

das questões da democracia. Trata-se, na verdade, de uma oposição de princípios. Se, por um lado, “a democracia basear-se-ia na idéia da

necessária homogeneidade do povo, [por outro] o parlamentarismo de massas pressuporia a contradição existente dos interesses particulares entre

as camadas da sociedade”. (FLICKINGER, 2003, p.62).

O parlamento era inicialmente composto por uma comissão de pessoas que tinham, antes de qualquer coisa, a tarefa de representar a

vontade do povo. Por essa razão, diz Schmitt, a idéia do sistema parlamentar não pode ser considerada específica da democracia. Ou seja, a idéia

do parlamentarismo contraria o princípio democrático, já que a decisão não é do povo, mas de uma comissão de pessoas de confiança. Na visão

de Schmitt (1996, p.17), o fato do povo só poder manifestar sua vontade através do voto no mais completo isolamento e em total segredo, como

ocorre no sistema liberal, não significa, nem de longe, ação democrática. Povo é um conceito de direito público e, portanto, só existe na esfera

pública. Para o jurista de Berlim, a opinião unânime de milhões de indivíduos particulares, sem sair da privacidade, não constitui a vontade do

povo e nem opinião pública. Para ele, esse é o problema fundamental que o mundo liberal enfrenta, a saber, o da ausência de uma vontade geral,

pois a democracia tem de ser muito mais que um “simples sistema de registro de votos secretos”.

Por fim, conclui Schmitt dizendo que as grandes decisões políticas e econômicas, responsáveis pela determinação dos destinos das

pessoas, não são mais o resultado de um balanceamento de opiniões. O discurso e o contradiscurso não fazem mais parte da rotina parlamentar.

Assim, a crença de que todo o progresso concretiza-se pelas instituições representativas, pela liberdade, pelas discussões públicas e pela razão

está muito distante da realidade político-partidária e da vida parlamentarista. A formação de comissões de partidos ou coalizões partidárias cada

vez mais restritas fazem Schmitt pensar que o parlamento perdeu sua condição de órgão público. Para ele (1996, p.47), elimina-se assim “o

plenum do parlamento, isto é, sua condição de algo público, seu objetivo original, transformando-o necessariamente numa simples fachada. Pode

ser que, na prática, não haja outro caminho. Mas devemos então, pelo menos, ter uma consciência da condição histórica para ver que o sistema

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parlamentar perde, com isso, a sua base intelectual, e todo o sistema de liberdade de expressão, de reunião, e de imprensa, as sessões públicas, as

imunidades e privilégios parlamentares perdem o seu ratio (a sua razão)”.

Referências

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ARRUDA, José Maria. Carl Schmitt: política, Estado e direito. In: OLIVEIRA, M.; AGUIAR, O. A. SAHD, L.F.N.A.S. Filosofia política

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_________. Teoria de la constitución. Madrid: Alianza Editorial, 2003.

_________. O Conceito do político. Petrópolis: Vozes, 1992

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A PROPENSÃO AO MAL COMO OBSTÁCULO AO BOM AGIR MORAL - Ramon Matzenbacher

Para Kant um fundamento último das ações morais consiste em fixar bases metafísicas à moral. Propor a vida moral de acordo com tais

exigências implica não apenas a simples decisão de negar as inclinações empíricas e tudo aquilo que provém da sensibilidade. É a razão que cabe

assentar, de modo seguro e definitivo, o princípio supremo da moralidade. Segundo Kant

uma metafísica dos costumes é pois rigorosamente necessária, não só por motivo de necessidade da especulação, a fim de indagar a origem a priori em nossa

razão, mas também porque a própria moralidade está sujeita a toda a espécie de perversões, enquanto carecer deste fio condutor e desta norma suprema de

sua exata apreciação. Com efeito, para que uma ação seja moralmente boa, não basta que seja conforme com a lei moral; é preciso, além disso, que seja

praticada por causa da mesma lei moral (FMC, IV, 342).

Uma ação praticada tendo-se em vista tão somente a lei moral é uma ação praticada por dever. O valor moral de uma ação praticada por

puro dever não reside no fim que deve ser alcançado, mas na máxima que a determina. O valor moral, portanto, depende “unicamente do

princípio do querer, segundo o qual a ação foi produzida, sem tomar em conta nenhum dos objetos da faculdade apetitiva” (FMC, IV, 342).

Segue-se disso que o princípio da obrigação não deve ser buscado na natureza do homem e nem mesmo na situação como este se encontra no

mundo, mas somente a priori nos conceitos da razão pura. Toda e qualquer prescrição que esteja assentada em princípios da experiência, mesmo

que estivesse de acordo com a condição de validade universal, pode ser denominada regra prática, mas nunca lei moral. Este princípio do querer é

o fundamento subjetivo que leva o sujeito a agir. Ele deve ser sempre um ato da liberdade, pois do contrário o homem não poderia ser

considerado moralmente bom ou mau.

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A partir das condições que fundamentam a teoria moral kantiana podemos vincular a esta um problema, a saber, como o homem, mesmo

sendo consciente da lei moral, adota para si, em sua máxima um caminho diferente daquele que é proposto pela lei moral? Segundo Kant, há um

primeiro fundamento, que é inacessível para nós, da adoção de máximas boas ou da aceitação de máximas más. Para ele,

o fundamento do mal não pode residir em nenhum objeto que determine o arbítrio mediante uma inclinação, em nenhum impulso natural, mas unicamente

numa regra que o próprio arbítrio para si institui para o uso de sua liberdade, isto é, numa máxima (Rel, p. 27).

Devemos sempre ter em conta que para Kant, a moralidade está sempre associada de modo íntimo com o uso do livre-arbítrio. Este só

pode ser julgado bom ou mau de acordo com a avaliação de suas máximas. Disso se segue que o mal moral tem a sua origem na aceitação de

máximas deflexivas em relação à lei moral. Nesse caso, a deflexão trata-se do abandono da lei moral enquanto móbil suficiente para reger a ação

em favor de outros móbiles que não advém da razão.Kant se vale da noção de propensão para demonstrar porque o homem, mesmo tendo

consciência da lei, acaba não tomando esta como móbil suficiente.

Por propensão Kant entende, em um primeiro momento, “o fundamento subjetivo da possibilidade de uma inclinação (desejo habitual,

concuspiscentia) na medida em que é contingente para a humanidade em geral” (Rel p.34). Por ser considerada um fundamento subjetivo, se

segue que esta deve ser admitida no arbítrio e que não pode ser detectada através da experiência. A possibilidade de uma inclinação diz respeito

aos sentimentos de prazer e desprazer. O fato de essa propensão ser contingente não é contraditório com a presença da mesma na humanidade em

geral. Ela deve ser considerada deste modo, pois do contrário, acarretaria uma explicação da espécie humana pelo mal. Conforme o que nos diz

Kant, ela deve, mesmo sendo contingente, estar em todos os homens, pois uma vez que se trata aqui da moralidade, não é possível admitir que

um certo indivíduo tenha a propensão para o mal e outro não. Já em um segundo momento, Kant entende que propensão “é, em rigor, apenas a

predisposição para a ânsia de uma fruição; quando o sujeito faz a experiência desta última, a propensão suscita a inclinação para ela” (Rel p. 34

n. 9).

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Nesses termos a propensão é a aptidão para a busca de um prazer, e, ao se terminar esta busca, a propensão dá origem à inclinação para o

prazer que é buscado. Esta última por sua vez, sempre pressupõe o conhecimento do objeto do apetite. A propensão pode ser concebida também

como adquirida, quando é boa e contraída quando é má. Por adquirida entende-se que a possuímos mediante o cultivo de algo bom e por

contraída compreende-se que esta foi apanhada através do contato com algo mau. A partir dessa definição, Kant nos mostra que a propensão pode

ser boa e está ligada a algo que se conquista, e ao mesmo tempo, por ser adquirida ou contraída, ela não é fruto de uma determinação natural.

Em a Religião nos limites Kant aponta que há três graus de propensão, a saber, “a debilidade do coração humano na observância das

máximas adotadas em geral ou a fragilidade da natureza humana”. Em segundo lugar “a inclinação para misturar móbiles imorais com morais,

i.e. a impureza” e por fim, “a inclinação para o perfilhamento de máximas más, i.e. a malignidade da natureza humana ou do coração humano”

(Rel, VI, p.35).

Ao tratar da debilidade do coração humano no tocante à observação das máximas, Kant pretende dizer que a lei moral é adotada na

máxima enquanto móbil suficiente, entretanto, no momento da observância da máxima, ocorre um descompasso e o sujeito acaba se valendo de

móbiles exteriores à lei moral. Segue na argumentação kantiana que, o homem, devido a sua disposição originária para o bem possui consciência

do caráter absoluto e incondicional da lei da moralidade. Entretanto, devido a uma fragilidade da sua natureza o homem tem dificuldades em

reconhecer tal caráter como móbil suficiente para a ação. A fragilidade residiria então, não na máxima propriamente dita, mas sim na sua

efetivação na ação.

Este é um ponto um pouco confuso na argumentação kantiana. Uma vez que este se vale da ação para justificar a corrupção pelo mal.

Sendo que esta se dá no nível do arbítrio, a fragilidade acaba não sendo plenamente justificada. Então, se o homem reconhece genuinamente o

caráter absoluto e incondicional da lei moral em sua máxima, a sua realização na ação se torna mais provável. Com isso pode-se dizer que quanto

ao grau da fragilidade não há uma admissão total da lei moral como móbil suficiente. Pode se dizer que o problema se manifesta na consolidação

da máxima a não na sua efetivação na ação.

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O segundo grau da propensão se situa na impureza do coração humano, isto é, a lei moral não foi acolhida enquanto móbil suficiente e há

a necessidade de outros móbiles além da própria lei para determinar aquilo que o dever exige. Neste ponto, vê-se que ao ser ter consciência da lei

moral enquanto móbil suficiente e, ainda assim se admitir outros móbiles junto a este, ocorre então uma mistura de móbiles morais com imorais.

A máxima é decerto boa segundo o objeto (o seguimento intentado da lei) e, porventura, também assaz forte para a execução, mas não puramente moral, i.e.,

não acolheu em si, como deveria ser, a mera lei como móbil suficiente (Rel, pp.35-36).

O terceiro grau da propensão diz respeito à malignidade da natureza humana ou do coração humano (Rel, VI, p.35)”. Segundo Kant, trata-

se de um estado de corrupção do coração humano onde o arbítrio adota máximas que dão preferências a outros móbiles em detrimento da lei

moral. Tal propensão também pode ser chamada de perversidade do coração humano uma vez que ocorre uma inversão dos valores dos móbiles

que determinam o arbítrio.

O que temos que ter em consideração é que a propensão para o mal, na medida em que está presente no arbítrio através da adoção da

máxima suprema, acaba por se constituir uma disposição de ânimo inerente à natureza humana. É preciso salientar que esta máxima suprema, ou

seja, fundamento do agir, orienta todas as máximas e está, dessa forma, presente nelas. Ainda tratando desta questão, Kant trata a propensão

como sendo inata. Com isso ele quer dizer que ela é considerada

inata, porque não pode ser extirpada (para tal a máxima suprema deveria ser a do bem, a qual, porém, nessa própria propensão, é acolhida como má); mas,

sobretudo pela razão seguinte: em relação a porque em nós o mal corrompeu precisamente a máxima suprema, embora tal seja um ato próprio nosso,

tampouco podemos indicar uma causa como acerca de uma propriedade fundamental inerente à nossa natureza (Rel, pp. 37-38).

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Como já foi dito acima, para Kant,uma vez que a propensão age sobre a máxima suprema, ela acaba por corromper todas as demais

máximas que se originam a partir dela. É justamente por isso que Kant diz que a propensão não pode ser extirpada, pois para isso o fundamento

do agir deveria ser bom e não mau. Para extirpar a propensão deveria ser possível uma nova adoção de uma máxima suprema, sendo que esta

então deveria ser boa.

Somente desta forma é que a propensão poderia ser extirpada da natureza humana. Tendo-se em conta o que foi dito até aqui,

podemos ver que Kant reconhece que embora essa adoção seja um ato do nosso arbítrio, não é possível indicar uma causa presente em nossa

natureza a partir da qual o mal se origina. Por isso, segundo ele, tratou-se de procurar

as fontes do mal moral unicamente naquilo que, segundo leis da natureza da liberdade, afeta o fundamento supremo da adoção ou seguimento das nossas

máximas; não no que afeta a sensibilidade (como receptividade) (Rel, p.38).

A moralidade, enquanto é concebida como um uso do arbítrio nos dá a conhecer um ato livre. Com isso o bem ou o mal moral não pode

estar em nós por natureza na medida em que é tomado como um fundamento de determinação do arbítrio que seja exterior à razão que se auto-

legisla. Tampouco podemos encontrar o bem ou o mal em nossa natureza sensível, pois este tem origem na liberdade, da qual dispomos para, em

termos de moralidade, controlar a nossa natureza sensível.

Mas se não podemos extirpar a propensão para o mal, o que nos resta fazer? De acordo com Kant, é possível um progresso moral da

humanidade. Em um primeiro momento, ele trata a questão da seguinte forma: é possível um progresso moral porque deve ser assim. "Pois se a

lei moral ordena que devemos agora ser homens melhores, segue-se de modo ineludível que devemos também poder sê-lo" (Rel, p.56). Kant

pressupõe que é possível ao homem ter uma boa conduta moral, pois na ideia de dever já está implícita a noção de que se pode fazer.

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No que concerne ao progresso moral da humanidade, Kant trata a questão do mal na natureza humana como um obstáculo que pode ser

superado uma vez que o dever nos ordena a fazer isso. Dessa forma, ele afirma que independente do estágio em que o mal se encontra na

natureza humana, o homem tem o dever de lutar por sua reabilitação. Esta luta do homem por sua progressão moral não resultará na extirpação

do mal, mas sim em um domínio sobre este.

A partir da leitura de a Religião nos Limites de Kant, pode-se concluir que na natureza humana há uma propensão para o mal, que mesmo

sendo inata, depende de uma aceitação (livre) do homem para que venha a ser vigente. Tal propensão para o mal está situada ao lado de uma

disposição para o bem. E mesmo não sendo possível exterminar a propensão da natureza humana, é possível, por meio de um resgate da

disposição originária, anulá-la. Esse resgate da disposição originária para o bem também é um ato livre do homem perante a moralidade, sendo

dessa forma o domínio do mal dependente das suas próprias forças. Portanto, do mesmo modo como o homem incorreu no mal livremente

através do uso do seu arbítrio, este deve retornar ao bem se valendo dos mesmo meios. Portanto, podemos dizer que para Kant, a liberdade pode

ser vista ao mesmo tempo heroína e vilã da liberdade.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A ABORDAGEM PRIVATIVA DA VIDA E M SER E TEMPO - André Luiz Ramalho da Silveira 38

Introdução

Martin Heidegger propõe em Ser e Tempo, em sua abordagem hermenêutico-fenomenológica, um tratamento do conceito de vida

pelo qual o acesso a esse modo de ser é somente possível através de uma interpretação privativa. O objetivo do presente texto é reconstruir essa

noção de interpretação privativa da vida elaborada por Heidegger, através de sua perspectiva hermenêutico-fenomenológica. Para tal, será tomada

como base a obra Ser e tempo (1927); como base complementar será usada as obras Introdução à Filosofia (1928/29), Princípios Metafísicos

Iniciais da Lógica (1928) e Os Conceitos Fundamentais da Metafísica: Mundo, Finitude, Solidão (1929/30).

Em um primeiro momento, trata-se então de fazer uma consideração sobre como o modo de ser do homem, o ser-aí, compreende o

mundo, reconstruindo de modo geral a estrutura prévia da compreensão e como isso perfaz a situação hermenêutica elaborada por Heidegger. A

partir disso, em um segundo momento, se poderá reconstruir o que o filósofo propõe como sendo uma via privativa de interpretação, de acordo

com a analítica existencial apresentada em Ser e Tempo. Para melhor elucidação da presente consideração, serão usadas como apoio textual as

poucas passagens em que a noção de vida aparece em Ser e Tempo.

1. Breve Consideração sobre a abertura do ser-no-mundo

38 Pós-Graduando do Curso de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) sob orientação do Prof. Dr. Róbson Ramos dos Reis; este trabalho recebeu

o apoio da CAPES [[email protected]].

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Para superar diversos problemas filosóficos acerca da questão ‘o que é o homem?’, como a relação sujeito-objeto, Heidegger

caracteriza o ser humano elaborando um constructo teórico, chamando-o de ser-aí, cuja constituição ontológica é essencialmente a compreensão

de ser. Heidegger caracteriza o modo de ser do homem como existência. A elaboração desse elemento teórico permite Heidegger caracterizar o

homem não como portador de propriedades e determinado por categorias, mas sim como possibilidade existencial. A expressão ‘aí’, de ser-aí,

significa que ser-aí é crucialmente ser-no-mundo, havendo nele uma abertura à compreensão de mundo e de si mesmo. Como assere Heidegger:

“o ser-aí é aquele ente que consiste em ser algo assim como um ‘aí’. O ‘aí’: um círculo de manifestação em direção ao qual pela primeira vez o

ente por si subsistente também pode se tornar manifesto, isto é, descoberto” (HEIDEGGER, 1928/29, p. 144).

O ser-aí é caracterizado como transcendência a ser, como um ente cuja determinação ontológica é compreensão de ser. Na

analítica existencial em Ser e Tempo, Heidegger mostra que essa compreensão revela que o ser-aí se projeta em possibilidades nas quais ele se

compreende e está disposto (cf. HEIDEGGER, 1927, p. 198). Compreensão não é elaboração temática nem de si mesmo e nem do mundo, mas é

uma estrutura prévia na qual repousa qualquer possibilidade de apropriação e articulação conceitual acerca de algo. Essa estrutura prévia é

tripartida, sendo caracterizada por uma posição prévia, visão prévia e concepção prévia. O mundo se torna manifesto nessa estrutura, revelando

os distintos sentidos de ser a partir da compreensão constitutiva do ser-aí.

O que a interpretação faz é elaborar em formas e expor essa conformidade significativa. Além disso, a interpretação possui o que

Heidegger chama de estrutura-como. Na qual, em Ser e Tempo, é a estrutura de comportamento cotidiana do homem com os entes. Toda

articulação do que é acessível, através da dimensão hermenêutica da compreensão, é feita pela estrutura-como; algo como algo. No entanto, essa

interpretação também se dá de modo pré-predicativo. O discurso apofântico não perfaz a abertura do ser-aí, mas constitui a possibilidade de

expressar o modo de ser do ente já aberto pela estrutura prévia já aberta. Quando essa estrutura prévia é adequada, essa situação hermenêutica

possibilita uma interpretação originária sobre que se propõe interpretar.

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2. A via privativa da interpretação da vida

Em Ser e Tempo, Heidegger não elabora uma ontologia da vida, mas mostra que um acesso à vida, em termos ontológicos, só é possível

através de uma interpretação privativa. O ser-aí compreende modos de ser, de modo que os entes apresentam-se como fenômenos, algo como

algo. Em Ser e Tempo, Heidegger apresenta diversos modos de ser que o ser-aí compreende, como a manualidade (Zuhandenheit), os entes

subsistentes (Vorhandenheit), existência e vida. Existência abarca especificamente o homem e vida é o modo de ser do animal. A ontologia da

manualidade é a elaboração que Heidegger faz sobre a mundanidade do mundo, através da qual o ser-aí é definido sob o modo fundamental da

ocupação. E os entes subsistentes seriam os entes já designados por propriedades temáticas, de alguma forma.

Toda a manifestação fenomenal aparece ao ser-aí como algo já interpretado. A natureza aparece ao ser-aí primeiramente em sua

ocupação. Mesmo quando ele faz o acesso temático da natureza, como algo presente e constituído de tais e tais propriedades, ele o faz tendo por

base o desvelamento da Zuhandenheit. A vida seria algo manifesto ao ser-aí de maneira já interpretada pela sua compreensão.

Dessa forma, o que se tem em vista é a privação da tendência de nivelamento ontológico, ou seja, a privação de uma possível transgressão

categorial dos diferentes sentidos de ser na interpretação feita pelo ser-aí. Se vida é somente acessível ao ser-aí, deve-se ter um acesso adequado a

esse modo de ser. O acesso do ser-aí aos entes só é possível com base na abertura de mundo. Como foi anteriormente apresentado, o homem

como poder ser é fundamentalmente compreensão. Ele tende a compreender tudo, de início, com base na cotidianidade mediana e em suas

ocupações.

No contexto de sua hermenêutica da natureza, Heidegger afirma que a vida como modo de ser teria seu acesso de forma privativa,

a fim de que não se interprete a mesma com o equívoco de considerá-la como propriedade do ser-aí. Também que não se interprete a vida como

modo de ser subsistente ou mesmo como algo a que ele se ocupa. Essa privação deve ser entendida no sentido de uma abstração da interpretação

inicial a que tende o ser-aí; não uma negação, mas uma privação referente ao sistema conceitual dada pela estrutura prévia de compreensão.

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Assim, interpretação privativa serve mais para evitar que sejam admitidos ‘conceitos’ relacionados às ciências biológicas, sem que passem por

um exame prévio.

Sobre o contexto da relação com a biologia e as ciências positivas, Heidegger afirma, na primeira passagem em que essa noção

aparece em Ser e Tempo:

“Na ordem de uma possível apreensão e interpretação, a biologia como ‘ciência da vida’ se funda, embora não exclusivamente, na

ontologia do ser-aí. A vida é um modo peculiar de ser, mas essencialmente acessível somente no ser-aí. A ontologia da vida se leva a cabo pela

via de uma interpretação privativa; ela determina o que deve ser para que possa haver algo assim como apenas-ainda-viver (Nur-noch-leben). A

vida não é uma pura subsistência (pures Vorhandensein) nem tampouco ser-aí. O ser-aí, por sua vez, não poderá ser determinado

ontologicamente como vida (indeterminada do ponto de vista ontológico) e ademais outra coisa.” (HEIDEGGER, 1927, p. 86).

O ser-aí é essencialmente compreensão de ser. Quando se diz interpretação privativa da vida não se quer dizer que, para se desvelar o

conceito de vida, se tenha que privar o ser-aí da vida e, a partir disso, calcular vida menos ser-aí, ou mesmo natureza menos ser-aí. A

interpretação privativa da vida é uma privação referente a uma possível má interpretação acerca da mesma. Sendo a vida um modo de ser que,

primordialmente, só se torna acessível no ser-aí, é justamente por se tornar acessível somente no ser-aí que está exposta a ser mal compreendida.

A biologia se vale da constituição ontológica do mundo circundante, mas sendo ela uma ciência positiva não pode encontrar e determinar

essa estrutura. Nesse contexto de interpretação ontológica da vida, na seguinte passagem, poucas páginas após a passagem anterior, Heidegger

afirma:

Em si mesma, essa estrutura só poderá ser explicitada como um a priori do objeto temático da biologia, depois de ter sido compreendida como estrutura do

ser-aí. Apenas orientando-se pela estrutura ontológica assim concebida é que se poderá definir a priori, através de uma privação, a constituição ontológica da

‘vida’ (HEIDEGGER, 1927, p. 96).

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A biologia se vale da constituição ontológica do mundo circundante, ou seja, do ser-no-mundo enquanto ocupação. Valendo-se a

Biologia da constituição do mundo circundante do ser-no-mundo, ela toma por base a forma de uma lógica produtiva, tratando de modo a priori

de um campo de uma investigação filosófica. Todavia, de acordo com Heidegger, por ser ela uma ciência positiva, não pode encontrar e

determinar essa estrutura. Após essa estrutura do mundo circundante ter sido compreendida como modo de ser do ser-aí, poderá ser explicitado

como um a priori do objeto temático da biologia. Para se definir a priori a constituição do objeto temático da biologia, ou seja, a vida, é

necessário orientar-se pela estrutura assim concebida. A fim de não haver uma equivocada interpretação ao definir-se a priori a constituição

ontológica da vida, é preciso interpretar através de uma privação. Tal como concebe Heidegger, a interpretação da vida deve ser privada no

sentido de que se garanta um acesso adequado a esse modo de ser, ou seja, que garanta um acesso não reducionista ao modo de ser da vida,

evitando-se os conceitos das ciências positivas sem um devido tratamento, privando assim a ocorrência de um nivelamento de interpretações.

Heidegger ainda volta a esse tema em mais duas passagens. Nesta passagem, fica evidenciado que a vida é um modo de ser distinto do

modo de ser do ser-aí, mas ainda assim somente acessível ao homem, o qual é aberto à compreensão de ser: “A constituição ontológica

fundamental do viver é, no entanto, um problema em si mesmo, e só pode ser desenvolvido através de uma privação redutora a partir da

ontologia do ser aí.” (HEIDEGGER, 1927, p. 259). E, por último, quando faz a análise existencial da morte: “No sentido mais amplo, a morte é

um fenômeno da vida. Deve-se entender a vida como um modo de ser ao qual pertence um ser-no-mundo. Do ponto de vista ontológico, esse

modo de ser pode-se fixar ao ser-aí apenas de forma privativa” (HEIDEGGER, 1927b, p. 28).

Heidegger não trata o modo de ser da vida como se fosse um âmbito de entes simplesmente dados, nem mesmo como se o âmbito da vida

fosse um grau inferior em relação ao homem. Nesse sentido, ele também se distancia da abordagem integrativa de Max Scheler, que considera o

homem em seu contexto ontológico como algo que fosse além da animalidade, mais pleno (cf. WINKLER, 2007, p. 527). Em suma, o que

Heidegger faz é mostrar como distinto o modo de ser da vida, partindo de uma interpretação que permita um acesso mais originário a esse modo

de ser.

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Bibliografia:

HEIDEGGER, Martin. Introdução À Filosofia. Trad.: Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,

2008.

HEIDEGGER, Martin. Os Conceitos Fundamentais da Metafísica: Mundo, Finitude e Solidão. Trad.: Marco Antônio Casanova. Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 2006.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Partes I e II. Trad.: Marcia Sá Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: Vozes, 2005.

HEIDEGGER, Martin. The Metaphysical Foundations of Logic. Translated by Michael Heim, Bloomington, Indiana University Press,

1984.

STEIN, Ernildo. 2000: Diferença e Metafísica: ensaios sobre a desconstrução. Porto Alegre, EDIPUCRS.

WINKLER, Rafael. Heidegger and the Question of Man’s Poverty in World. International Journal of Philosophical Studies, Volume 15,

Issue 4 December 2007, pages 521–539, 2007.

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LEAF/UFSM: UMA PROPOSTA DE CAMINHOS ENTRE O SABER F ILOSÓFICO, A ACADÊMIA E O ENSINO MÉDIO - Marli da Silva 39

A decisão recente do Conselho Nacional de Educação de aprovar a volta do ensino de Filosofia para o Ensino Médio no Brasil poderá

possibilitar, em breve tempo, um estudo mais humanista e crítico que, de certo modo, contrasta com a razão instrumental que permeia a

sociedade contemporânea, na qual as chamadas “regras do mercado econômico” tem tido cada vez mais ênfase, inclusive no âmbito educacional.

Teremos, então, uma real retomada dos estudos de Filosofia em nossas escolas. O que nos obriga, nas universidades, a rever os currículos dos

cursos de Licenciatura em Filosofia para melhor capacitação dos futuros professores. Pensando, sobre o recente retorno da Filosofia como

disciplina obrigatória do currículo do Ensino Médio, muito tem sido escrito por pesquisadores da área, professores e futuros professores, no

sentido de alertar para que essa volta efetivamente signifique algo novo e com valor para a escola, professores, alunos e sociedade. Há, em

muitos casos, uma idealização de que a disciplina Filosofia possa solucionar os problemas que ocorrem na escola, ajudando o aluno a construir

um pensamento crítico sobre si e sobre suas vivências e possa, então, atuar como um cidadão na sociedade. Neste sentido, a formação de

professores tem sido, no interior das instituições de ensino superior, um grande desafio, pois não basta que seja oferecida uma excelente

formação no âmbito do saber específico, dos autores e obras clássicas. É importante, também, que o futuro professor se depare com situações e

problemas próprios da ação docente. O texto que pretendemos apresentar trará algumas considerações sobre a experiência do LEAF do Curso de

Filosofia da UFSM. Este laboratório foi criado no ano de 2007 com o intuito de proporcionar o desenvolvimento da pesquisa e da produção de

material didático para as aulas de Filosofia no Ensino Médio, assim como constituir-se como um espaço de estudo e reflexão sobre ensino e

39 Graduanda de Filosofia/UFSM, bolsista PIBIC/CNPq, pesquisadora do LEAF (Laboratório de Ensino e Aprendizagem Filosófica) - e-mail: [email protected] - Co-autora: Lisiane Sabala Blans - Mestranda da Filosofia/UFSM - e-mail: [email protected]

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aprendizagem filosófica para os futuros professores de Filosofia da UFSM. Descreveremos as ações com os professores de Filosofia das escolas

de Ensino Médio de Santa Maria/RS, as formas de realização de pesquisa e produção de material didático dos alunos estagiários e demais alunos

e professores do curso. Consideramos importante, buscar formas de produzir encontros com o pensamento filosófico e não apenas com a História

da Filosofia. A bibliografia utilizada para o texto foi: BRASIL. Lei 9394/96: Lei de diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: MEC,

1996; BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO- CONSELHO NACIONAL DA EDUCAÇÃO. Resolução CNE/CP 2, de 19 de fevereiro de 2002

(instituiu a duração e a carga horária dos cursos de licenciatura, de graduação plena, de formação de professores da Educação Básica em n´vel

superior); FAVARETO, Celso. Filosofia, ensino e cultura. In: KOHAN, Walter (org.) Filosofia: caminhos para seu ensino. RJ: DP&A, 2004, p.

43-53; LYOTARD, Jean- François. Mensagem a propósito do curso filosófico. In: O pós-moderno explicado às crianças. 2ª ed. Lisboa: Dom

Quixote, 1993; NÁVIA, Ricardo. Ensino Médio de filosofia nas presentes condições culturais e sociais de nossos países. In: KOHAN, Walter

(org.). Filosofia: caminhos para seu ensino. RJ: DP&A, 2004; PARÂMETROS Curriculares Nacionais- Ensino Médio- Ciências Humanas e suas

tecnologias. Brasília, Ministério da Educação, Secretaria da Educação Básica, 2000.

Palavras – chave: Laboratório, Curso de Licenciatura, Material Didático, Estagiários, Filosofia.

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AGÊNCIA E SOCIEDADE: FUNDAMENTOS PARA A EXPERIÊNCIA EM PETER F. STRAWSON - Cristina de Moraes Nunes 40

Introdução:

O objetivo deste trabalho é apresentar o empirismo de Peter Strawson, que se distancia do empirismo clássico em suas duas posições: o

internalismo e o externalismo. O empirismo de Strawson pretende mostrar que há uma relação entre ontologia, epistemologia e lógica. A sua

teoria supõe que uma ação resulta da ligação indissociável entre crença, atitude e desejo. Não concordando com o empirismo clássico que,

segundo ele, insiste no dualismo entre o sujeito que julga e a realidade sobre a qual se faz os juízos.

Strawson pensa que a relação entre juízo, conceito e experiência é mais íntima do que a maneira como o empirismo se refere. Questiona-

se sobre a noção de experiência do mundo objetivo e percebe que os empiristas clássicos consideram a experiência enquanto percepção sensível,

mas isso seria partir de um ponto de vista limitado do sujeito que percebe. Segundo ele, Kant foi o único que mais se aproximou do verdadeiro

empirismo, com o seu idealismo transcendental, pois se aproximava do que é a experiência em si mesma.

Strawson critica a teoria dos internalistas e dos externalistas do empirismo clássico, porque pensa que ambos consideram a

percepção como sendo o fundamento dos juízos verdadeiros e de todo o conhecimento, mas ele acredita que ambos deixaram de lado o mais

fundamental que é a experiência.

Empirismo clássico: interior e exterior:

40 Acadêmica do Mestrado em Filosofia-UFSM. E- mail: [email protected]

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A análise que Strawson faz da tese do empirismo clássico mostra que o tanto o internalismo quanto o externalismo baseiam-se na

percepção sensível do sujeito, ela é uma experiência a partir de um ponto de vista. Desse modo, “deve existir uma relação de dependência

bastante regular da experiência da percepção sensível com o modo como as coisas objetivamente são”41. Essa percepção sensível apenas permite

descrever a o que o sujeito vê, mas isso é defender um ponto de vista subjetivista.

Strawson pretende mostrar que a nossa percepção teria que ser perfeita para que pudéssemos afirmar que os juízos verdadeiros são

decorrentes de nossa percepção sensível, porque ela é apenas um ponto de vista de um sujeito que pode se enganar, e também porque temos uma

percepção muito limitada. Strawson afirma que “assim, as coisas podem ser concebidas, pensadas, em termos abstratos, como são realmente; mas

não podem se tornar objetos de percepção como são realmente. Com efeito, percebemos coisas, não como são realmente, mas apenas como elas

aparecem a seres com a nossa constituição fisiológica”42. Strawson salienta que essa posição não é contraditória com aquela que afirma que

normalmente percebemos as coisas como realmente são, porque está sendo usada com sentidos diferentes ou com diferentes critérios. No

primeiro sentido, o padrão de correção é a teoria física, já no segundo sentido o padrão de correção é a própria observação. Portanto temos dois

usos de “real” ou “realidade” e ambos têm a sua própria validade.

Segundo Strawson o empirismo clássico defende que “a estrutura geral das nossas idéias deriva de uma pequena região da própria

estrutura. Essa parte fundamental da estrutura é concebida como básica e não derivada; como dada. Consiste numa sequência temporalmente

ordenada de estados mentais subjetivos, incluindo sobretudo experiências sensórias, na mente do sujeito; e de acordo com a referida separação

extremamente brusca entre experiência sensível e juízo, os estados mentais são concebidos de modo bastante estreito como impressões ou

imagens de qualidades sensórias simples, isoladas ou em combinação.”43

4141 Análise e Metafísica, 2002, pg. 85. 42 Ibid, pg. 92. 43 Ibid, pg.98.

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Strawson caracteriza o empirismo clássico em três variedades, a primeira variedade é considerada uma “espécie de teoria, elaborada com

base na sequência de estados subjetivos; e exige justificação racional de modo semelhante às teorias científicas acerca do mundo ou da

realidade”44. Embora não cite nomes ele está se referindo a teoria de Chisholm e Locke. A segunda variedade pretende encontrar uma explicação

natural para as crenças, caracteriza Hume como sendo o defensor dessa variedade, assim como Quine. A terceira variedade do empirismo

clássico é a elaborada pelo atomismo lógico “de acordo com a qual todas as noções que constituem a estrutura geral do pensamento, deixando de

lado os elementos admitidos como básicos, constituem o que se costumava denominar ‘construções lógicas’ a partir desses elementos básicos”45.

Segundo Strawson essa teoria defende que a única coisa que existe são esses elementos básicos, os próprios estados subjetivos, tudo pode ser

reduzido a esses elementos básicos.

Strawson chama a atenção para o fato de que muitos filósofos adotaram uma ou mais dessas variedades de empirismo, mas o conjunto

dessas variedades é o que caracteriza o empirismo clássico, eles defendem o ponto de vista de que essas alternativas são exaustivas e suficientes.

Strawson elabora três objeções a essas variedades do empirismo, a saber:

Primeira: na minha opinião, não há razão para justificar a estrutura geral das idéias usando como base a parte da sequência temporal

ordenada de estados subjetivos. Pelo contrário, é a própria estrutura geral das idéias, do nosso pensamento, que é o elemento básico, o alicerce da

nossa economia intelectual. Qualquer justificação racional de uma teoria sobre a realidade pressupõe e se apóia nessa estrutura geral. Segunda:

uma explicação natural, como a de Hume buscou oferecer apoiado na limitada base empirista, do desenvolvimento no individuo em crescimento

do domínio dessa estrutura de noções é viável, e talvez possa ser fornecida em termos psicofisiológicos; mas os próprios termos da explicação

44 Ibid, pg. 98. 45 Ibid, pg. 99.

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pertencem ou pressupõem essa estrutura. Terceira: é difícil hoje encontrar um filósofo que ainda confie na teoria da construção lógica, ou no

programada redução definicional.46

Então Strawson pensa que não é preciso justificar a estrutura das idéias porque mesmo essa justificação já pressupõe essa estrutura, por

isso, uma redução não é possível porque os objetos são indispensáveis para descrever a experiência, esses objetos espaço-temporais são os que

permitem descrever suas características físicas.

Strawson afirma que o empirismo clássico de Locke, Berkeley e Hume mantêm o subjetivismo de Descartes, porque “tentaram construir,

justificar ou explicar a nossa imagem geral do mundo apoiados na estreitíssima base construída pela sucessão de estados mentais subjetivistas,

incluindo, sobretudo, as impressões dos sentidos”47.

Strawson analisa a tese dos internalistas e dos externalistas, caracteriza o internalista como aquele que “lida com a vida subjetiva interior

dos pensamentos, das sensações e da experiência interior em geral como uma série de entidades privadas não problemáticas- e considera

problemático o mundo físico”48. Enquanto que os externalistas se diferem com relação às entidades problemáticas, pois o mundo físico é a

solução e não o problema. Strawson considera o externalismo mais atraente pelo fato de tratar do que é público e observável, enquanto que não

podemos verificar a vida mental das pessoas. Ele considera que o problema de ambos foi deixar de lado a experiência e fundar o conhecimento

na percepção sensível que depende do sujeito. Pois “a plena descrição do mundo físico como percebido fornece incidentalmente e ao mesmo

tempo uma completa e rica descrição da experiência subjetiva do percepiente”49. Passaremos agora a ver a teoria empírica que Strawson defende.

46 Ibid, pg. 100. 47 Ibid, pg. 101. 48 Ibid, pg. 101. 49 Ibid, pg. 103.

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Agência e sociedade: fundamentos para a experiência:

Strawson afirma que o impacto do externalismo não afetou somente a filosofia da mente, mas também a filosofia da linguagem, a

teoria do significado e a filosofia da lógica. Para se afastar do “mentalismo desenfreado ou do fisicalismo desenfreado” Strawson afirma que é

necessário recorrer ao conceito de ação. Apresenta o que ele considera os dois traços básicos de uma concepção coerente de experiência, que são:

agência e sociedade. Esses traços fundam a experiência e caracterizam os agentes como seres capazes de agir e de socializar-se com os demais

agentes. Isso caracteriza o sujeito cognoscente, que é um ser ativo e social. Strawson afirma que “não se pode construir uma imagem- crença do

mundo independentemente do nosso papel como seres ativos”50.

Strawson caracteriza os seres cognitivos como agentes enquanto seres que tem atitudes favoráveis ou desfavoráveis com relação a

coisas que acreditamos que existem de fato no presente e vão continuar existindo no futuro. São essas atitudes que tornam importantes as nossas

crenças.

Strawson salienta que há alguns aspectos do conceito de ação que devem ser esclarecidos como a relação entre as possibilidades

da ação e a natureza das coisas, ele afirma que uma depende da outra, pois aprendemos a usar os conceitos através da prática de uso e não da

teoria de seu emprego correto. Desse modo, há uma conexão intima entre os conceitos de objetos e o conceito de ação, mas a ação também é

essencialmente derivada da combinação entre desejo e crença.

Strawson afirma que “nos homens, ou de fato em qualquer ser racional, os três elementos de crença, apreciação (ou desejo) e ação

intencional podem ser distinguidos um do outro; contudo, nenhum desses três elementos pode ser devidamente compreendido, ou mesmo

50 Ibid, pg. 105.

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identificado, senão em relação aos outros”51. Isso reforça a sua tese de que os conceitos estão conectados e para compreendê-los é necessário

entender os outros conceitos que estão interligados entre si.

Stawson considera a experiência como o fundamento de nossas crenças verdadeiras, sendo que, toda essa experiência se dá em um

contexto social, interpessoal e comunicativo. A justificação das crenças se dá por um acordo intersubjetivo, sendo esse o seu padrão de correção.

Então “se o sujeito é um homem no mundo, parece necessário que o seu mundo seja essencialmente um mundo social”52. Sendo que, enquanto

seres sociais aprendemos uns com os outros através da observação da conduta dos outros seres sociais.

Strawson afirma que na tradição é normal tratar das questões epistemológicas abstraindo o sujeito de seu papel de ser social, e ele

acredita que esse foi o principal erro, pois não podemos pensar um sujeito cognitivo que não esteja inserido em uma sociedade, pois somos seres

essencialmente comunicativos e sociais.

Conclusão:

Strawson questiona a concepção clássica de crença, que estabelece as percepções sensíveis como justificação daquilo que é verdadeiro,

ele mostra que mesmo uma descrição daquilo que se vê, do mundo objetivo, será sempre uma descrição que parte do ponto de vista de um sujeito

é esse é muito limitado, pois não temos acesso ao que é real de acordo com as nossas imagens mentais do mundo.

Strawson considera a experiência como o fundamento de nosso conhecimento, essa experiência está relacionada com o fato dos agentes

cognitivos estarem vivendo em uma sociedade, enquanto seres sociais e comunicativos. Reforça a sua tese de que os conceitos estão em conexão

entre si e afirma que o conceito de crença está interligado com o conceito desejo e ação. Os nossos desejos nos movem a agir e transformam as

nossas crenças.

51 Ibid, pg. 108. 52 Ibid, pg. 109.

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A concepção empirista de Strawson está intimamente relacionada com as suas questões éticas e políticas, já que toda a experiência

objetiva se dá em um contexto social, interpessoal e comunicativo. Os fundamentos básicos da experiência não são o interno e o externo, mas sim

o que ele chama de agência e sociedade.

Bibliografia

STRAWSON, P. F. Análise e Metafísica. São Paulo: Discurso Editorial, 2002.

___. Indivíduos: Ensayo de metafísica descritiva. Madrid: Taurus Humanidades, 1989.

HAHN, L.E.(Ed.) The Philosophy of P.F. Strawson. USA: Open Court, 1998.

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PAUL RICOEUR: INTERPRETANDO AGOSTINHO E KANT ACERCA DO MAL – Adriane da Silva Machado ϕϕϕϕ

Intróito:

O presente trabalho é parte da pesquisa desenvolvida no Programa Interinstitucional de Pós-Graduação em Filosofia - Mestrado, na Linha

de Pesquisa “Ética e Política” da Universidade Federal de Santa Maria e Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.

Portanto, tem-se como escopo avaliar algumas noções do pensamento ricoeuriano acerca da filosofia agostiniana do mal de origem e da filosofia

kantiana do mal radical, pretendendo-se evidenciar que, mesmo com a herança agostiniana e kantiana recebida por Paul Ricoeur, algumas

diferenças e abordagens substanciais são notáveis. Ricoeur retoma tanto o gnosticismo como o próprio Agostinho (e ainda o mito da queda ou

adâmico) para tratar do conflito de tradições na interpretação da problemática do mal como mal de origem, ou seja, o mal já aí.

O objetivo principal é realçar o aspecto da aproximação entre Agostinho e Kant e a complementação de um pelo outro, a partir de

Ricoeur, pela via ética. Porém, pontuamos, também, o aspecto da moral no esquema de Ricoeur.

Mal de origem

O mal de origem é um mal mais primitivo e trágico que os outros tipos de mal, por isso, não podemos atribuir a ele a causa do mal no

mundo, pois isso seria tautologia. Seria o mesmo que dizer que o mal é a causa do mal. Porém, é preciso ter claro que não é só pelo mal de

ϕ Graduada em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas - UFPel (2005), Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria e Universidade

Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul -UFSM/UNIJUÍ - MINTER (2009) - [email protected].

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origem que o ser humano coloca o mal no mundo: no presente, o ser humano já vem ao mundo marcado pelo mal. Esta, por sua vez, parece ser a

verdade profunda da doutrina do peccatum originale.

Sob esta ótica, Ricoeur detém-se mais na análise do mito adâmico, uma vez que os demais mitos mostram que o mal surge ao homem

como algo imposto pelos deuses, como se o homem fosse vítima das vontades ou intrigas dos deuses. Mas, o mito adâmico ou da queda, por sua

vez, coloca o começo do mal como fundamentalmente antropológico. Ressalta que o mal entrou no mundo depois de uma criação que estava

concluída e boa. Satisfazendo assim, a dupla confissão do crente, a um só tempo, confessa a perfeição de Deus e, de outro lado, a maldade

original do homem.

Porém, é necessário ainda salientar que atrás das construções gnósticas e antignósticas se encontram os símbolos e mitos, sendo que são

eles que nos revelam essa multiplicidade de interpretações e, concomitantemente, nos permitem ver as contradições nelas implícitas.

2. O Mal radical

A concepção de mal radical aparece com Kant no contexto da discussão de sua obra A religião dentro dos limites da simples razão e

busca dar conta da complexa relação entre o respeito pela lei moral e o amor-próprio na definição do móbil para a ação. Kant, grande crítico de

Agostinho e Leibniz, sustenta que, no campo racional, não há uma resposta possível para a origem do mal, e nem para a tendência humana de

agir mal. A posição kantiana está assim resumida por Ricoeur: “não há, nos limites da pura razão, resposta possível para a origem do mal, nem

para a tendência, no homem, de agir mal” (RICOEUR, 1988, p. 10).

Mas Ricoeur remarca que “a problemática do mal radical, sobre a qual se abre a Religião nos limites da simples razão, rompe francamente

com a do pecado original, em detrimento de algumas semelhanças” (RICOEUR, 1988, p. 38). O mal possui origem numa máxima suprema que

serve de fundamento subjetivo último a todas as máximas más do nosso livre-arbítrio, sendo radical quanto à sua origem.

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Embora Kant, em todo o seu rigorismo, não possa admitir que exista um meio-termo moral entre o bem e o mal, ele terá que admitir em

troca a concepção de vários graus ou estágios de realização da propensão universal ao mal. Assim, o primeiro grau ou estágio do mal radical seria

a fragilidade da natureza humana, implicada no fato de que mesmo acolhido o bem na máxima do arbítrio, como motivo incontornável,

subjetivamente, na ação a máxima se mostra mais fraca que a inclinação.

Outro nível do mal radical é o da impureza do coração. Consiste isso na tendência a misturar motivos morais com motivos não morais,

como se a lei por si só não fosse motivo suficiente, resultando que mesmo “as ações conformes ao dever não são executadas puramente por

dever” (Kant, 1974, p. 374). E, por fim, temos a corrupção ou perversidade do coração humano, assentada no fato de que são acatadas no arbítrio

máximas más, que expõem a lei moral subordinada a motivos não morais, provenientes das inclinações ou desejos (Cf. CORREIA, 2005, p. 91).

3. Ricoeur interpretando Agostinho e Kant acerca do mal

O que se busca aqui é avaliar algumas noções do pensamento ricoeuriano acerca da filosofia agostiniana do mal de origem e da filosofia

kantiana do mal radical, uma vez que se pretende evidenciar que, mesmo com a herança agostiniana e kantiana recebida por Paul Ricoeur,

algumas diferenças e abordagens substanciais são notáveis.

Ricoeur retoma tanto o gnosticismo como o próprio Agostinho (e ainda o mito da queda ou adâmico) para tratar do conflito de tradições

na interpretação da problemática do mal como mal de origem, ou seja, o mal já aí. Todos os relatos até aqui já expostos (gnose maniqueísta,

gnose antignóstica) mostram a face do mal de origem – isto é: um mal natural, substancial, serpente, Reino das Trevas –, como mal constituído e

anterior ao homem.

Contudo, Agostinho e o próprio mito adâmico apontam na direção de uma interpretação do mal que radica na própria vontade humana, e

que por isso, é antropológico. Mas a forma mais completa do problema, nos será dada por Kant, através do seu relato sobre o mal radical.

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Desta forma, na interpretação de Ricoeur, o mal, além do aspecto religioso, toma uma dimensão ética, em dois sentidos: primeiro em

relação à questão da liberdade e num segundo sentido em relação à questão da obrigação. Sendo que a visão ética do mal é retomada na

liberdade, uma vez que ele é fruto ou invenção da liberdade, assim, “o mal tem a significação de mal porque ele é obra de uma liberdade; eu sou

autor do mal” (RICOEUR, 1990, p. 421). Contudo, se a liberdade qualifica o mal como “fazer”, ele acaba por ser o revelador da liberdade. Então,

“o mal é uma ocasião privilegiada de tomar consciência da liberdade” (RICOEUR, 1990, p. 422).

Portanto, essa visão ética do mal nos reconduz ao nível dos símbolos primários, nos quais é possível ver declarado o mal já aí. Assim, é

em meio ao mal no qual nascemos que encontramos também, em nós mesmos, o próprio despertar da nossa consciência. E é neste sentido que se

manifestam Agostinho, – passando do mal atual ao mal original –, e Kant, – ao passar da máxima má ao móbil da vontade, ou seja, ao livre-

arbítrio –, fundamento de todas as máximas más.

Conclusão:

Para Ricoeur, o que há de mais admirável no conceito de pecado original é a sua riqueza analógica, ou seja, a sua capacidade de remeter

intencionalmente para aquilo que há de mais radical na confissão dos pecados, isto é, que o mal precede a minha tomada de consciência. Sendo

assim, o mal nada mais é que minha impotência prévia, ele é para a minha liberdade o mesmo que meu nascimento é para minha consciência, isto

é, sempre já aí. Então, para Ricoeur, a intenção do pseudoconceito de pecado original, nada mais é que a tentativa de integrar o próprio esquema

da herança no da contingência. Conclui Ricoeur nestes termos:

[...] O inescrutável, segundo nós, consiste precisamente no fato de que o mal que sempre começa pela liberdade esteja sempre já aí para a

liberdade, que seja ato e aparência exterior (habitus), surgimento e antecedência. É por isso que Kant faz expressamente deste enigma do mal

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para a filosofia a transposição da figura mítica da serpente; a serpente, penso, representa o “sempre já aí” do mal, desse mal que, todavia, é o

começo, ato, determinação da liberdade por ela própria (RICOEUR, 1990, p. 303).

Assim, para Ricoeur, Kant acaba por concluir Agostinho. Primeiramente, por arruinar definitivamente o invólucro gnóstico do conceito de

pecado original; logo após, ao tentar uma dedução transcendental do fundamento das máximas más; e, finalmente, por voltar a mergulhar no não-

saber a pesquisa de um fundamento do fundamento (Cf. RICOEUR, 1990, p. 303).

Portanto, para concluir este trabalho, se pode dizer que através dos mitos e dos símbolos em conjunto com a contribuição filosófica dos

pensadores que se preocuparam com a questão do mal, se avançou muito nas explicações acerca da origem, das conseqüências e da ampla

dimensão do mal, porém, muito pouco se sabe acerca do lado “injustificável” e trágico do mal. Para Ricoeur, no entanto, não basta uma

elaboração intelectual no plano especulativo, é necessário um comprometimento com a questão: “que fazer contra o mal?”. Pois ele entende o

mal como um problema a ser abordado nos planos do pensamento, do sentimento e da ação.

Referências

De Ricoeur

Le volontaire et l’involontaire. Paris: AUBIER, Éditions Montaigne, 1950.

De L’interpretation: Essai sur lê Freud. Paris: Seul, 1965.

Finitud Y Culpabilidad: el Hombre Labil y La Simbólica del Mal. Madrid: Taurus Ediciones, 1982.

O Conflito das Interpretações. Trad.: M. F. Sá Correia. Porto-Portugal: Editora Rés, 1990.

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O Mal. Um Desafio à Filosofia e à Teologia. Trad. Maria da Piedade Eça de Almeida. Campinas - São Paulo: Papirus, 1988.

De comentadores

CANDORIN, Severino. O mal, interpretação de Paul Ricoeur. Rio de Janeiro: Sotese, 2001.

COSTA, Celso Paulo. O mal conceito de mal em Paul Ricoeur. (Dissertação apresentada no curso de pós-graduação em Filosofia na

UFSM) Santa Maria: UFSM, 2008.

FRANCO, Sérgio de Gouvêa: Hermenêutica e psicanálise na obra de Paul Ricoeur. São Paulo: Loyola, 1995.

MONGIN, Olivier: Paul Ricoeur: as fronteiras da filosofia. Trad.: Armando Pereira da Silva. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

Artigos e periódicos

RICOEUR, Paul. Le scandale du mal. Esprit, 1988b.

ROSSATTO, Noeli Dutra. As faces do mal: sobre um texto de Norberto Bobbio. In.: Noberto Bobbio: direito, ética e política. Ijuí - Rio

Grande do Sul: Ed. UNIJUÍ, 2005.

Obras complementares

AGOSTINHO, Santo. O Livre-arbítrio. 2ª ed. Trad.: Antônio Soares Pinheiro. Braga: Faculdade de Filosofia, 1990b.

________. Confissões. Trad.: J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 2004.

ALISSON, Henry. Reflection on the banality of (radical) evil. In: Id. Idealism and freedom: essays on Kant’s theoretical and practical

philosophy. Cambridge University Press, 1966, p. 169-82.

COSTA, Marcos Roberto Nunes. Maniqueísmo: historia, filosofia e religião. Petrópolis: Vozes, 2003.

KANT, Immanuel. A Religião nos Limites da Simples Razão. Trad.: Artur Morão. Lisboa – Portugal: Edições 70, LSa., 1974.

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_________. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad.: Paulo Quintela. Lisboa – Portugal: Edições 70, 1997.

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O INIMIGO DE DELEUZE: O SUBLIME E A GÊNESE DO PENSA R NO PENSAMENTO - Ester Maria Dreher Heuser 53

Professores de filosofia costumam repetir que, desde o nascimento da filosofia, o amigo é a testemunha a favor de sua origem grega:

enquanto as outras civilizações tinham sábios, os gregos apresentaram em seu lugar os amigos, que substituíram aqueles detentores da sabedoria.

Mas, diferente dos sábios, os amigos procuram a sabedoria porque não a possuem; estranhamente são amigos de algo distante, potencialmente

almejado, tal como um amante platônico que deseja ardentemente alcançar aquilo que ama, mas que, raramente – ou nunca – alcança. Nas tentativas

recentes de saída da filosofia dos muros da universidade, o pressuposto de que a amizade é imprescindível para filosofar é vivificado. Além da

necessidade de se ser amigo/amante do saber, uma outra surge nos cafés, escolas, grupos de estudos, debates e reflexões filosóficas: é preciso que

exista cumplicidade, simpatia, solidariedade entre os participantes para que um encontro fraterno aconteça e uma conversação democrática entre

amigos se estabeleça, a qual terá êxito sob a condição de que a rivalidade esteja destituída. Confraria da reflexão, do consenso e da opinião na qual

seus comensais só pedem uns dos outros um pouco de boa vontade e afirmam aos quatro ventos que todo mundo naturalmente pensa e que só falta a

criação de espaços para que o pensamento seja partilhado, tornado comum. Comensais da morte do pensamento!

Ora, eis que surge uma estranha voz, vinda de um excêntrico professor de filosofia que nos impele a duvidar das ideias feitas e lugares-

comuns desta sociedade de amigos pró-filosofia extramuros universitários. Voz sedutora que soa em tom de enigma e contraria nossas maiores

convicções: “o que é primeiro no pensamento é o arrombamento, a violência, é o inimigo, e nada supõe a Filosofia; tudo parte de uma misossofia”

(DELEUZE, 1988, p. 230). Enigma que pode permanecer incompreensível mesmo por aqueles que foram seduzidos por esta voz e que têm feito

53 Graduada em Filosofia (UNIJUÍ) - Doutora em Educação (UFRGS) - Professora da UNIOESTE - Filosofia/Toledo - [email protected]

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ressoar, de diversas formas, as figuras da violência espalhadas na obra do professor Gilles Deleuze, se passarem ao largo de um de seus encontros em

especial. Refiro-me ao encontro de Deleuze com um inimigo declarado: Kant, talvez o seu inimigo mais íntimo. Este encontro é, em minha

perspectiva, a atualização da ideia de um pensamento que parte de uma misossofia, de uma violência causada pelo inimigo o qual desafia o

pensamento a sair de sua natural letargia.

Ainda que Deleuze tenha combatido o sistema do juízo criado por Kant e que o considere um filósofo sem muita graça (conforme

declarado no Abecedário)54, há um conjunto de problemas escondidos sob o tribunal da razão que é para ele impressionante. Aqui interessa a atenção

que Deleuze dá à “batalha das faculdades” presente na última criação kantiana, a Crítica da faculdade do juízo. Obra escrita nos últimos anos de vida

quando ele revê sua filosofia porque fora violentado por forças externas à sua arquitetônica. Forças advindas de seus discípulos, os quais se

recusaram a simplesmente dizer sim ao mestre e abalaram a limitada e formatada estrutura de sua filosofia, obrigando-o a ultrapassar os limites por

ele mesmo fixados, lançando, assim, ao porvir, o dardo da desarmonia das faculdades que atravessou o tempo e fora agarrado por Deleuze, o primeiro

dos filósofos franceses contemporâneos a se ocupar da última obra de Kant55. Diferentemente de seus contemporâneos, contudo, que converteram a

54 “Não temos a mesma concepção de filosofia. Mas por que, mesmo assim, Kant me fascina? Por dois motivos. Kant é tão cheio de sinuosidades. Um dos motivos é o

fato de ele ter instaurado e levado a extremos o que nunca fora levado em Filosofia até então, que é a instituição de tribunais, talvez sob a influência da Revolução Francesa (...) Até que, no final de sua vida, ele foi um dos raros a ter escrito já muito velho um livro onde reviu tudo. A crítica da faculdade do juízo. Ele chega à idéia de que é preciso que as faculdades se relacionem desordenadamente, que se oponham e se reconciliem, mas que haja uma batalha das faculdades e não mais as medidas que justifiquem um tribunal. Ele lançou sua teoria sobre o sublime em que as faculdades entram em discordância, em acordos discordantes. Aí, eu gosto muito disso, destes acordos discordantes, deste labirinto em linha reta, sua inversão da relação. Toda a filosofia moderna veio daí, de que não era mais o tempo que provinha do movimento e, sim, o contrário. É uma criação de conceitos fantásticos. E toda a concepção do sublime com os acordos discordantes das faculdades me tocam profundamente. É claro que ele é um grande filósofo. Um grande filósofo. Ele tem um embasamento que me entusiasma, mas o que está construído em cima disso não me toca em nada. Não estou julgando. É apenas um sistema de juízo que gostaria de ver acabado.” (DELEUZE, Abecedário.)

55 As considerações acerca da Analítica do sublime feitas por Deleuze datam de 1963, tanto o livro A filosofia crítica de Kant, quanto o artigo A ideia de gênese na estética de Kant foram publicados neste ano. Só em 1978 Derrida publicou o livro A verdade em pintura no qual faz uma leitura rigorosa da teoria do sublime; os demais franceses que compõe o chamado grupo “nietzschianismo francês” descobriram a importância da estética de Kant e, em particular, da teoria kantiana do sublime a partir da década de 80 (Conforme Nuno Nabais, 1997, Metafísica do trágico: estudos sobre Nietzsche).

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experiência estética do sublime em linha de demarcação de territórios da arte contemporânea, Deleuze encontrou na teoria kantiana do sublime o

lugar de explicação da gênese do pensar no pensamento. A partir das ideias do inimigo Kant, Deleuze criou a teoria diferencial das faculdades. A

qual passo a me ater.

O enigma já referido de que o que é primeiro no pensamento é o arrombamento, a violência, é o inimigo, e que nada supõe o amor aos

saberes, mas aversão a eles é uma das tantas formas utilizadas por Deleuze para responder ao problema que atravessa sua obra. Problema que pode

ser apresentado de maneira tradicional, na forma de “O que é pensar?”, ou expresso em outras maneiras que, talvez, Deleuze prefira: “Como se chega

a pensar?” ou “Quando, em que caso se alcança a criação no pensamento?”. O pensamento e o pensar são problemas porque para Deleuze o pensar

enquanto criação, diverso da mera recognição, não é algo inato nem adquirido, não depende de um voluntário exercício para desenvolvê-lo; em vez

disso, trata-se de algo a ser engendrado no pensamento, nessa faculdade que, por si mesma, habita apenas o mundo das formas feitas, fixadas em

sujeitos e objetos constituídos, mundo este que está pronto para ser reconhecido e identificado. Deleuze compreende que a produção do pensar no

pensamento precisa ser provocada, caso se queira sair do mero exercício de reconhecimento e ultrapassar os esquemas sensório-motores dos quais a

consciência de qualquer um se encarrega de produzir para suportar o insuportável, para se esquivar do desagradável demais, para se resignar diante

do aterrorizante, enfim, caso se queira quebrar o modo comum pelo qual estamos habituados a encarar o mundo. Mundo em forma de clichê que faz

ver, ouvir, sentir, pensar sempre menos. Deleuze foi sensível às forças externas que arrombam o pensamento e o põem diante do impensável, do

extraordinário, do que vale a pena ser pensado; deixou-se tocar por elas e multiplicou em sua obra as manifestações da violência sobre o pensamento.

Uma ideia tardia de Kant parece ser a principal inspiração para tanto: a teoria do sublime, em que as faculdades entram em desarmonia, em acordos

discordantes entre si. Esse tema kantiano do conflito entre as faculdades, que se dá na experiência estética do sublime, é a tese que atravessa os livros

de Deleuze, segundo a qual o pensamento só pensa quando é forçado por um ato de violência56.

56 Ver o livro Pensar em Deleuze: violência e empirismo no ensino de filosofia no qual desenvolvo as variações da violência nas obras de Deleuze anteriores ao livro

Diferença e repetição.

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Deleuze parte da tradição kantiana de uma teoria das faculdades, compreende que pensar é sempre a relação entre faculdades, mas uma

relação atribulada entre elas. Apesar de, em Diferença e repetição (1988, p. 236-237), reconhecer o descrédito que a doutrina das faculdades sofreu,

Deleuze compreende que ela é peça “inteiramente necessária no sistema da Filosofia” e determina “a natureza de suas exigências”, quais sejam: cada

faculdade deve alcançar sua forma superior e entrar em um exercício transcendente, apreender o que é exclusivo dela própria a partir de um

desregramento extremo. Cada faculdade deve tocar o ponto em que, mediante uma força externa, atinja o seu limite e ultrapasse a esfera da mera

recognição, deixe de se ocupar com fatos, banalidades cotidianas, valores estabelecidos, para criar, inventar, produzir novas maneiras de viver e de

pensar.

Frente a esta exigência, uma questão se impõe: qual é a forma superior de cada faculdade, como atingir esse desregramento extremo,

condição de efetividade para o pensamento pensar, para chegar a criar? Por ora respondo: é uma questão de produção. Para apreender de que

produção se trata é preciso voltar-se à teoria kantiana das faculdades, ou melhor, à singular leitura que Deleuze faz dela. Para isso é preciso fazer

algumas digressões.

Assim como Kant, Deleuze afirma a necessidade de conservar todo o tratamento filosófico no domínio transcendental, pois é nele que a

gênese do ato de pensar está situada. Tal domínio, enquanto princípio plástico, é o que condiciona o empírico, a vida psicológica e os fatos, o que

lhes dá sentido. O transcendental é tomado por Deleuze como um “prodigioso domínio” descoberto por Kant (Cf. Idem, p. 224). Filosofia como

atividade transcendental, portanto, deve ser o esclarecimento das condições da experiência; por isso, Deleuze faz de seu programa empírico

transcendental uma busca da gênese das condições de efetividade das experiências.

É importante lembrar que Kant inventa uma nova noção de transcendental para refutar a concepção medieval de transcendental que era

usada como sinônimo de transcendente, em suas palavras: “chamo transcendental a todo o conhecimento que em geral se ocupa menos dos objetos,

que do nosso modo de os conhecer, na medida em que este deve ser possível a priori” (KANT, 1985, Introdução, p. 53). Assim, a partir de Kant,

transcendental passa a designar a condição de possibilidade para que a coisa – o fenômeno – seja conhecida. Em outras palavras, transcendental não

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refere a objetos situados fora do mundo, não é o que está além de toda a experiência, mas o que a antecede, o que torna possível o conhecimento.

Deleuze caracterizará o transcendental kantiano como “o princípio de uma submissão necessária dos dados da experiência às representações a priori”

(DELEUZE, 1994, p. 21). As quais estão contidas no sujeito, que é, por sua vez, na filosofia de Kant, o fundamento último de toda experiência.

Primeiro motivo para não fazer de Deleuze um kantiano, uma vez que o filósofo francês quer pensar o transcendental como condição anterior a toda

forma empírica, da qual o próprio sujeito e os objetos são partes.

Deleuze compreende, entretanto, que o destino atribuído, por Kant, ao conceito de transcendental está marcado pelo modelo da recognição

que sempre retorna a um sujeito formado, fixado como princípio universal ao qual Kant nunca renunciará. Daí a razão para Deleuze afirmar que o

transcendental kantiano só poderia ter dado estados civis ao pensamento. Apesar desses limites identificados por Deleuze no programa transcendental

de Kant, no entanto, ele não descarta sua relevância Para a formulação da filosofia da diferença, o que interessa a Deleuze é o deslocamento, operado

por Kant, quando ele transforma a questão transcendental de uma teoria das possibilidades do conhecimento em uma teoria das faculdades – peça

indispensável em qualquer sistema filosófico57 (Cf. DELEUZE, 1988, p. 236).

Portanto Deleuze está basicamente ligado a Kant sobretudo quanto à doutrina kantiana das faculdades, mas, enquanto usa a técnica de

colagem para produzir sua filosofia, ele não adere à doutrina incondicionalmente. O ponto de partida do filósofo francês é exatamente o ponto de

chegada do alemão.

Foi a derradeira aventura criativa de Kant que entusiasmou Deleuze a realizar o que se pode chamar de uma reversão do kantismo, a fim

de afirmar a potência do exercício discordante das faculdades, o seu verdadeiro funcionamento, posto que ele é a condição que permite engendrar o

pensar, a criação no pensamento, bem como erigir a sua inédita doutrina das faculdades. Essa reversão do kantismo foi produzida a partir da

57 O conhecimento é possível porque o sujeito do conhecimento é determinado por um grupo de faculdades. A necessidade de uma teoria das faculdades encontra ecos na

filosofia de Bergson, que foi de importância incontestável para a produção filosófica de Deleuze. Bergson afirma que as faculdades têm significação vital, “memória, imaginação,

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abordagem do exercício da faculdade da imaginação na Crítica da faculdade do juízo, quando ela assume uma função produtiva e original e se exerce

livremente, posto que não está submetida a nenhum conceito, uma vez que se encontra liberada da tutela do entendimento e da razão, o que não

acontecia nas duas Críticas anteriores. Deleuze observa que a faculdade da imaginação, na terceira Crítica, especialmente entre os parágrafos 23 e

29, sinaliza para um livre exercício das faculdades, de tal modo que cada uma deve se tornar capaz de jogar por sua própria conta.

O sinal é percebido no segundo livro, Analítica do sublime, quando Kant relaciona a imaginação ao sentimento do sublime. É aqui que,

verdadeiramente, pode-se compreender a reversão do kantismo, operada por Deleuze. O conceito de sublime é apresentado, na Crítica da faculdade

do juízo, em relação com o belo. Ambos agradam por si mesmos e pressupõem um juízo de reflexão.58 O belo, entretanto, diz respeito à forma do

objeto, que é caracterizada pela limitação, ao passo que o sublime pode também ser encontrado em um objeto sem forma, o qual implica a

representação do ilimitado. Enquanto o belo comporta um sentimento de promoção da vida, o sublime é um prazer negativo produzido pelo

sentimento de uma momentânea inibição das forças vitais, chegando a produzir um sentimento de desprazer. Em lugar de uma alegria positiva, o

sublime produz um contínuo maravilhamento e estima, admiração ou respeito.

Kant considera o sublime apenas em relação a objetos da natureza bruta que, sem raciocínio, produzem no espírito uma comoção, uma

violência à faculdade da imaginação. Ele ressalta que o sublime não está em nenhuma forma sensível e sim no homem, pois tem seu fundamento na

natureza humana e diz respeito apenas a ideias da razão, não podendo ser representado. O sublime não está nos objetos da natureza (1993, p. 91-92);

estes apenas podem ser aptos a uma sublimidade possível de ser encontrada, avivada e evocada no ânimo, na gemüt, que é inteiramente vida (o

concepção e percepção, generalização, por fim, não estão aí ‘por nada, pelo prazer’ (...) Acreditamos, pelo contrário, que é porque são úteis, porque são necessárias à vida que elas são o que são: às exigências fundamentais da vida cabe referir-se para explicar sua presença e, se for o caso, para justificá-la” (2006, p. 57).

58 As reflexões estéticas, que se interessam pela forma sem preocupação com a determinação da matéria, nem de um fim, estão restritas ao exercício reflexivo da faculdade de julgar – o qual compara representações empíricas em vista de um universal não dado. No juízo reflexivo, nada é dado do ponto de vista das faculdades ativas, apenas uma matéria bruta se apresenta sem ser representada. Este juízo, diz Deleuze, “exprimirá um acordo livre e indeterminado entre todas as faculdades” (1994, p. 66).

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movimento do ânimo é característica própria do sentimento do sublime, pois a faculdade do ânimo59- que pode ser tomada aqui como sinônimo da

faculdade do pensar, querer e sentir – excede todo padrão de medida). Apenas o caos, as mais selvagens e desregradas desordem e devastação

suscitam as ideias do sublime quando somente poder e grandeza podem ser vistos (KANT, 1993, § 23 e 24).

Grandeza e poder são as formas das duas espécies de sublime: a matemática e a dinâmica. A espécie matemática de sublime (Idem, § 25)

é extensiva, dada pelo absolutamente grande, pelo grande acima de qualquer comparação, cujo padrão de medida não pode ser outro senão ele mesmo

e compreendido pela imaginação, única faculdade capaz de avançar por si mesma até o infinito. Exemplos do sublime matemático são o espetáculo

do mar em plena calmaria, assim como a abóbada celeste estrelada, que inspiram um sentimento de respeito (Cf. DELEUZE, 1978, p. 51). A espécie

dinâmica (KANT, 1993, § 28) é dada pelo infinitamente potente da natureza, o qual nos causa medo e impotência física e que nos últimos tempos os

sobreviventes da Terra tem experimentado. Como exemplo da espécie dinâmica de sublime, Kant refere fenômenos da natureza que “tornam nossa

capacidade de resistência de uma pequenez insignificante em comparação com o seu poder” (p. 107). Tratam-se de espetáculos naturais atraentes

quanto mais terríveis forem, desde que, no entanto, seus observadores encontrem-se em segurança. É inevitável remeter ao sentimento de terror

expresso pelas pessoas que ficaram frente a frente com o tsunami, ou aos relatos abismados feitos pelos sobreviventes dos terromotos e colossais

desmoronamentos ocorridos nos últimos tempos.

Denominamos esses fenômenos sublimes porque nos fazem descobrir que ao elevarem a fortaleza da alma acima de seu nível médio,

permitem descobrir em nós uma faculdade de resitência a qual possibilita que nos julguemos independentes e superiores à natureza; faculdade sobre a

qual está fundada a autoconservação da espécie, dado que leva em si as Ideias da razão, de totalidade absoluta, capazes de superar o que, à primeira

59 Em nota de rodapé, os tradutores da edição brasileira da Crítica da faculdade do juízo (KANT, 1993, p. 48) dão ênfase à variação do termo alemão Gemüt, utilizado por

Kant de um certo modo abusivo, sem a preocupação de torná-lo claro. O conceito Gemüt ganhará força neste estudo quando abordar a leitura de Deleuze relativa ao princípio que dá vida às faculdades. Em algumas situações os tradutores utilizam a palavra “ânimo” para traduzir Gemüt, uma vez que Kant utiliza, como seus sinônimos, os equivalentes latinos animus e mens, “para designar o todo das faculdades de sentir, apetecer e pensar” e nunca apenas como unidade do sentimento ou então como faculdade cognitiva. Trata-se pois, neste escrito, de tomar como sinônimo de faculdade do ânimo a “faculdade do pensar, querer e sentir”.

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vista, parecia ultrapassar o próprio homem (p. 108). Pode-se dizer que a relação entre o sublime e a imaginação, na última Crítica kantiana, é modelar

para Deleuze. Expressa uma harmonia paradoxal entre razão e imaginação; nas palavras do filósofo, ambas só entram em acordo “no seio de uma

tensão, de uma contradição, de uma dilaceração dolorosa. Há acordo, mas acordo discordante, harmonia na dor” (DELEUZE, 2006, p. 86).

Tal acordo se engendra do seguinte modo: o sentimento do sublime exerce uma afronta sobre a faculdade de imaginação; esta é retirada da

forma do senso comum e, por si, avança até o infinito, em um jogo livre, sem qualquer impeditivo, excedendo todo padrão de medida da

sensibilidade (Cf. KANT, 1993, § 26). A imaginação não consegue mais distinguir as partes, menos ainda apreendê-las e reproduzi-las na medida em

que chegam as seguintes; e, enfim, não consegue qualificar o objeto, torna-se impossível dizer: é isto.

Toda a forma de reconhecimento foi quebrada. Todo o ritmo, toda a ordem do senso comum foi rompido. O infinito circunscreveu todo o

espaço, só há o caos (Cf. DELEUZE, 1978, p. 51 - 52). O sublime coage a imaginação a enfrentar o seu máximo, o inimaginável na natureza, e ela

não pode mais refletir a forma de um objeto, como é possível para a imaginação quando ela está diante do belo. O excessivo60 torna-se “um abismo,

no qual a própria imaginação teme perder-se” (KANT, 1993, § 27) e, por isso, transmite sua coerção à faculdade da razão, que é forçada a pensar o

suprassensível como fundamento da natureza e da própria faculdade de pensar (Idem, § 27; DELEUZE, 1988, p. 237).

Mas, é somente em aparência, ou por projeção, que a imaginação é constrangida pelo sublime ao se reportar à natureza sensível, pois este

efeito exercido pelo sublime nada mais é que um reflexo das Ideias da razão, a nossa faculdade de pensar, que nela se lê sob o efeito de uma sub-

repção, ou seja, de uma falácia de confundir o que é sensível com o que pertence ao pensamento (CJ, p. 103). Dirá Deleuze que “somente a razão nos

obriga a reunir em um todo o infinito do mundo sensível; nada mais força a imaginação a enfrentar seu limite” (DELEUZE, 2006, p. 86).

60 Kant ilustra este excessivo diante do qual a imaginação fica estupefata como “o pavor, o horror e o estremecimento sagrado que apanha o observador à vista de

cordilheiras que se elevam aos céus, de gargantas profundas e águas que irrompem nelas, de solidões cobertas por sombras profundas que convidam à meditação melancólica” (KANT, 1993, Observação geral sobre a exposição dos juízos reflexivos estéticos, p. 115-116).

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Desse desacordo nasce um acordo: a razão força a imaginação a atingir o seu máximo, coloca a imaginação em presença do limite do seu

poder no sensível;61 e a imaginação, por sua vez, desperta a razão como faculdade que pensa um substrato suprassensível para a infinidade do mundo

sensível. Tendo como objeto seus próprios limites – o inimaginável para a imaginação e o impensável para o pensamento na forma do senso comum

–, as faculdades elevam-se a um exercício transcendente, ultrapassando suas limitações pela violência que uma provoca à outra. E agora:

o acordo da imaginação e da razão encontra-se efetivamente engendrado no desacordo. O prazer é engendrado na dor. Mais ainda, tudo se passa como se as duas faculdades se fecundassem reciprocamente e reencontrassem o princípio de sua gênese, uma na vizinhança de seu limite, a outra, para além do sensível, ambas em um ‘ponto de concentração’ que define o mais profundo da alma como unidade suprassensível de todas as faculdades (DELEUZE, 2006, p. 86).

Diante da gênese transcendental das faculdades, Deleuze determina a diferença radical de cada faculdade,62 em torno daquilo que só ela é

capaz de exercer sobre a alma. Tudo começa pelo encontro com a intensidade de um signo que faz nascer a sensibilidade no sentido, denominado, por

Deleuze (1988, p. 231-240), como o sentiendum ou o ser do sensível, aquilo que é, ao mesmo tempo, insensível no nível do senso comum e só pode

ser sentido, aquilo que força a sensibilidade a sentir. Esta, por sua vez, forçada pelo encontro a sentir o sentiendum, violenta outras faculdades que, no

exercício transcendente, só elas podem exercer: a memória, diante do ser do passado, da forma pura do tempo – limite próprio da memória – é

forçada a se recordar do memorandum, daquilo que só pode ser lembrado; a imaginação é forçada a imaginar o imaginandum, o limite, o impossível

de imaginar; o pensamento, que, para Deleuze, vem sempre depois de todas as outras faculdades existentes, é forçado a apreender aquilo que só pode

61 A lição da “Analítica do sublime”, salienta Deleuze, é que “mesmo a imaginação tem uma destinação suprassensível”, o que o entendimento ocultava quando o interesse

da razão era especulativo (2006, p. 86) e complementa mais adiante que este é o destino de nossas faculdades em geral, a unidade de todas elas, o que Kant chama de Alma. É o suprassensível, o princípio que anima qualquer uma das faculdades, pois é por meio dele que cada uma engendra o seu livre exercício em um livre acordo com as outras (Ibidem).

62 Deleuze faz referência a algumas faculdades, as mais conhecidas (a sensibilidade, a memória, o pensamento, a imaginação, a linguagem), no entanto deixa em aberto a possibilidade da existência de outras, de novas faculdades que podem se erguer, se libertar do recalque a que estão submetidas pela forma do senso comum (988, p. 237). Talvez esta possibilidade que fica em aberto tenha sua sustentação no próprio Kant, quando, ao final de uma longa nota de rodapé, afirma que “só ficamos conhecendo as nossas faculdades pelo fato de as experimentarmos” (1993, § III).

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ser pensado, o cogitandum, a essência, o pensamento puro, o ser do inteligível como última potência do pensamento, aquilo que também é

impensável no exercício da faculdade calcado sobre o empírico de formas fixas.

O que era insensível, imemorial, inimaginável e impensável no nível empírico do uso das faculdades, pode ser sentido, lembrado,

imaginado e pensado na discórdia entre as faculdades, no seu exercício transcendente e paradoxal. Da sensibilidade ao pensamento o que se passa é a

violência própria de cada faculdade. Uma transmite à outra sua diferença intrínseca própria elevada ao máximo de potência. Da enésima potência de

cada faculdade o pensamento transcendental é produzido. Do limite da sensibilidade ao limite do pensamento o que é comunicado é divergência,

discórdia, inimizade, coação, ação de forças, violência.

Pela explicação do sublime, elaborada por meio do livre e espontâneo acordo entre a razão e a imaginação, Deleuze afirma que, na terceira

Crítica, Kant encontra a constituição da gênese transcendental das faculdades, o fundo suposto das outras duas Críticas. Esta tese permite a Deleuze

estabelecer as condições da gênese do próprio pensamento. Nessa gênese, ele encontra o lugar de explosão das faculdades, enquanto concordia

facultatum, e, portanto, o lugar do seu engendramento na forma transcendental. Este novo, livre e espontâneo acordo, no entanto, só ocorre em

condições especiais: na dor, na oposição, no constrangimento, no desacordo, na violência, na força: “a dor torna possível um prazer” (DELEUZE,

1994, p. 58). É em regiões-limites de cada faculdade, quando cada uma se desenvolve e atinge sua máxima potência, quando cada uma vai até o fim

do que pode, diante do informe e do disforme, que o acordo discordante entre as faculdades acontece, que cada uma descobre a sua própria paixão, a

sua linguagem individual, a sua radical diferença e efetivamente alcança as condições de criação.

Referências:

BERGSON, Henri. O pensamento e o movente: ensaios e conferências; tradução de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

DELEUZE, Gilles. Cuatro lecciones sobre Kant. Dictadas entre Marzo y Abril de 1978. Edición electrónica de www.philosophia.cl Escuela de Filosofía, Universidad ARCIS.

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______. Diferença e repetição; tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

______. A filosofia crítica de Kant; tradução de Germiniano Franco. Lisboa: Edições 70, 1994.

______. O abecedário de Gilles Deleuze. Vídeo. Editado no Brasil pelo Ministério de Educação, “TV Escola”, 2001.

______. A idéia de gênese da estética de Kant [1963]; tradução de Cíntia Vieira da Silva. In. A ilha deserta: e outros textos, edição preparada por David Lapoujade; organização da edição brasileira e revisão técnica Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 79-87.

HEUSER, Ester Maria Dreher. Pensar em Deleuze: violência e empirismo no ensino de filosofia. Ijuí:Unijuí, 2010.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura; tradução de Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

______. Crítica da razão pura; tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985.

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A INFLUÊNCIA DA MÍDIA SOBRE A SOCIEDADE DE CONSUMO À LUZ DAS CRÍTICAS DE HANNAH ARENDT - Amélia Cristina Silva Machado Priet o63

I – Introdução aos conceitos arendtianos

Hannah Arendt é uma autora fundamental para se pensar o tema da Sociedade de Consumo. No livro “A Condição Humana”, ela designa

por vita activa três atividades humanas fundamentais, o labor, o work e a ação. O que ela pretende mostrar é que só podemos nos humanizar, nos

constituir como seres humanos, enquanto seres de ação, da política, à medida que temos diálogo (ARENDT, 2005).

O labor é a atividade relacionada às necessidades vitais, corresponde ao processo biológico do corpo humano, é uma atividade repetitiva,

sem fim, onde o homem é um animal laborans. No labor, o homem fabrica objetos de consumo imediato, o indivíduo vive sozinho, num mundo

privado, onde não existe a esfera pública.

O work está ligado ao conceito de durabilidade, o homem fabrica objetos de uso duráveis para além de sua permanência na terra, é através

do work que o homem garante sua permanência e estabilidade no mundo. Diferentemente do animal laborans, o homo faber tem sua atividade

com começo e fim programados, que é a produção do artefato.

Tanto o labor, como o work não são capazes de englobar a pluralidade humana, esta só se satisfaz, só é bem representada na ação. A ação

é o espaço do diálogo, e da liberdade política. Diferentemente da monotonia do labor e da rotina do work, a ação é imprevisível, ela tem a

capacidade de criar algo novo e é a única que pode se estender ao longo do tempo, pois a ação de uma pessoa repercurte sobre as outras.

63 UFU - Faculdade de Artes, Filosofia e Ciências Sociais – PPG Filosofia

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Nesse sentido, em um primeiro momento da Modernidade, temos a predominância da atividade do work, própria do homo faber, cuja

prioridade é a fabricação. Contudo, ao longo dos tempos, o enfoque na ideia de processo produtivo passa a priorizar muito mais os meios do que

a finalidade do objeto fabricado. Com isso, perdeu-se um elemento fundamental da estrutura do próprio conceito de fabricação: o princípio da

utilidade (ARENDT, 2005, p. 317). A fabricação de objetos de uso passa a não ser mais determinada pela utilidade desse objeto, mas pela

possibilidade de produzir cada vez mais. Segundo Arendt, “os ideais do homo faber, fabricante do mundo, que são a permanência, a

estabilidade e a durabilidade, foram sacrificados em benefício da abundância, que é o ideal do animal laborans” (ARENDT, 2005, p. 138).

Com a formação da sociedade de consumidores, ocorre essa inversão na ordem hierárquica de valores, onde o labor passa a ser a atividade

de maior destaque, o que resulta na dissolução da esfera pública. As esferas pública e privada são dois conceitos que só funcionam juntos, um

depende do outro.

Na Modernidade, pode-se observar com a intensa exposição da vida pessoal, que, no momento em que a vida pessoal passou a interferir

na atividade pública, os valores privados se transformaram em valores públicos (ARENDT, 1999), de modo que se perdeu a referência do que é

público ou privado, como se tivesse havido a dissolução da esfera pública, resultando na sociedade de consumo.

II – Críticas à Sociedade de Consumo

Arendt faz várias críticas à Sociedade de Consumo, ela nos mostra como é inviável a organização da vida em uma sociedade que tem o

labor à frente de todas as atividades. Esta sociedade governa de acordo com seus interesses, que são interesses privados colocados à frente dos

interesses coletivos, além de serem alienados e despolitizados. Esta prática coloca em perigo o mundo em que vivemos. Por isso ela afirma,

“O fato é que uma sociedade de consumo não pode absolutamente saber como cuidar de um mundo e das coisas que pertencem de modo

exclusivo ao espaço das aparências mundanas, visto que sua atitude central ante todos os objetos, a atitude do consumo, condena à ruína tudo em

que toca.”(ARENDT, 2003, p.264)

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A partir da nova configuração ocorrida na Modernidade, que é a predominância do labor, todas as atividades humanas passam a ser

concebidas como realização de necessidades. Destarte, reconhecemos uma sociedade de consumidores que não se contenta em utilizar

determinados objetos até seu fim, mas sente necessidade infinita de consumir, como um ato de realização dos desejos e necessidades. De acordo

com Hannah Arendt, todo o tempo disponível do animal laborans será gasto em consumir, correndo perigo de que em algum momento, nada no

mundo vai estar a salvo do seu consumo (ARENDT, 2005, p.146).

O consumo, enquanto realização das necessidades, consagra o individualismo das sociedades contemporâneas, já que privilegia a fruição

total dos bens na mais absoluta solidão, tal qual é a condição do corpo humano ao realizar suas necessidades vitais, distante das formas de

comunhão e compartilhamento coletivo.

Para o animal laborans não existe felicidade duradoura fora do ciclo do labor, o homem se mistura ao processo de fabricação, não

sabendo refletir nem mesmo sobre a dependência ao qual está sujeito. Mas diferentemente dos escravos, o homem não reconhece sua sujeição à

necessidade. À medida que o homem ignora essa sua posição, não é possível tornar-se livre do ciclo repetitivo do labor (ARENDT, 2005, p. 133).

A Sociedade Contemporânea associa felicidade e prazer ao consumo, sendo necessário que as coisas sejam produzidas em abundância,

para que possam satisfazer as “necessidades”. Arendt alerta para o perigo que, com o deslubramento da abundância a sociedade de consumo não

reconheça a sua própria futilidade (ARENDT, 2005, p. 148).

A Sociedade de Consumo provoca um desenraizamento, as pessoas não sentem que são parte da comunidade, do mundo, como

consequência também não acreditam que suas ações podem afetá-lo.

“(...) o triunfo do mundo moderno sobre a necessidade se deve à emancipação do labor, isto é, ao fato de que o animal laborans pôde

ocupar a esfera pública; e, no entanto, enquanto o animal laborans continuar de posse dela, não poderá existir uma esfera verdadeiramente

pública, mas apenas atividades privadas exibidas em público”. (ARENDT, 2005, p.146).

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Não tendo o mundo público, o que as pessoas expõem é a sua intimidade, o que significa uma despolitização da esfera pública. O

reconhecimento, que na antiguidade, na pólis, vinha do mundo público por merecimento, no mundo contemporâneo, passa a advir do dinheiro.

Para Hannah Arendt,

“a admiração pública e a recompensa monetária têm a mesma natureza e podem substituir uma à outra. A admiração pública é tambem

algo a ser usado e consumido; e o status, como diríamos hoje, satisfaz uma necessidade como o alimento satisfaz outra: a admiração pública é

consumida pela vaidade individual da mesma forma como o alimento é consumido pela fome. (...) A admiração pública, consumida diariamente

em doses cada vez maiores, é ao contrário, tão fútil que a recompensa monetária, uma das coisas mais fúteis que existem, pode tornar-se mais

objetiva e real.”(ARENDT, 2005, p.66).

Há mais de 50 anos, Arendt, já alertava sobre o perigo que é para o mundo a sociedade ser governada pelo labor, pois não há um

comprometimento para com as próximas gerações. Muitas de suas críticas não só continuam presentes na nossa sociedade, mas estão ainda mais

nítidas, como os problemas advindos da exposição da vida privada em público, o que destrói a esfera pública; como a futilidade da busca por

status; como o reconhecimento público através do poder aquisitivo de bens materiais; como a solidão e o sentimento de desenraizamento, de não

fazer parte desta sociedade, deste mundo.

III – Reflexões sobre as críticas à Sociedade de Consumo e aos meios de comunicação

Ao observarmos a nossa sociedade vemos como as críticas de Hannah Arendt são atuais, e entedemos quão importante é refletir sobre a

nossa cultura.

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Com o fenômeno conhecido como sociedade de consumo, vê-se uma corrida em busca não mais de qualidade, mas de quantidade. Com o

excesso de ofertas sobrepondo-se a procura, os meios de comunicação em massa adotam estratégias de marketing, para induzir as pessoas a

consumir, a adquirir produtos que não são prioridade em suas vidas, estimulam “falsas necessidades”.

A televisão tem um papel fundamental em todo este processo, é o principal meio de comunicação em massa, podendo direcionar, induzir

as pessoas comuns a consumirem, a falarem e serem como os artistas da TV. Na medida em que essa mídia pode determinar regras de conduta

para a sociedade, através de programas, novelas e exibição do comportamento de personalidades públicas, a televisão passa a ser considerada um

meio de dominação e manipulação, que bombardeia a massa com excesso de propagandas, a exposição dos artistas e seus produtos, como

símbolos para influenciar o consumo.

Os veículos de comunicação e programas que expõe a vida das “celebridades”, tem tido um crescimento avassalador nos últimos tempos.

Há uma variedade enorme de revistas, programas televisivos, de rádio e sites que falam das intimidades dessas personalidades públicas.

Outros programas de televisão – recordistas de audiência em todo o mundo – os reality shows têm o objetivo de expor a vida privada para

o público, ou seja, de expor o que deveria ser privado, o que deveria ficar escondido, inclusive de pessoas comuns que se tornam “celebridades”.

Isto mostra a banalidade deste tipo de reconhecimento público, pois elas se tornam admiradas não por mérito algum, mas por ficarem expondo ao

público suas intimidades. Arendt já nos alertava para a futilidade deste tipo de admiração pública, e que assim como o dinheiro, é também um

pólo de reconhecimento vazio, não nos acresecenta nada.

A aceitação da grande massa é tamanha em termos de audiência que nos períodos em que são exibidos os reality shows, eles pautam os

demais veículos de comunicação (jornais, revistas, rádios e até emissoras de TV concorrentes), tornam-se assunto principal de rodas sociais,

chegamos a ver reportagens de fãs que tatuam o rosto ou o nome destas “celebridades” em seu corpo.

Essa “necessidade” da sociedade contemporânea de se expor é geral, tanto que temos pela internet diversos sites de redes sociais

destinados a esse fim, como os Blogs, o Twitter, o Orkut e o Facebook. As pessoas postam fotos, vídeos, histórias íntimas, trocam mensagens

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abertas para que quem tiver interesse possa ler. Quando essa avalanche de informações privadas, totalmente desnecessárias para o mundo comum

vem a público, o que ocorre é o que disse Hannah Arendt, a destruição da esfera pública.

Na ausência de uma esfera pública, de uma política preocupada com o mundo comum, o que percebemos é uma falta de compromisso da

sociedade de consumo com as próximas gerações. A sociedade atual consome todos os recursos naturais em nome da abundância da fabricação.

Essa prática da sociedade de consumo dificultará até a sua própria existência.

É forte no animal laborans a perda de raízes, de valores, suas relações sociais desaparecem, os indivíduos vivem separados. Por isso, os

indivíduos passam a se relacionar de modo impessoal e fragmentário. Há também uma dificuldade na comunicação por parte de seus membros,

pois é uma minoria que expressa sua opinião, enquanto a grande maioria, assiste e aceita tudo que lhes chega através dos meios de comunicação.

Através desses exemplos da nossa sociedade à luz das críticas de Hannah Arendt sobre a sociedade de consumo, é possível compreender

sua preocupação com a predominância da esfera privada sobre a esfera pública e com a ascenção do labor. Ela tem razão quando diz, que a

sociedade de consumo não tem capacidade para cuidar do mundo comum, porque destrói tudo o que toca.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENDT, Hannah. O que é política? Org. Ursula Ludz. Trad. Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

_______. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa de Almeida. São Paulo: Perspectiva, 2003.

_______. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

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A ANÁLISE DE BAUMAN COMO TEORIA CRÍTICA: A INSATISF AÇÃO COM O STATUS QUO - Paulo Fernando da Silva 64

Resumo: Bauman, assim como Adorno e Horkheimer, analisa o processo de Esclarecimento da Modernidade e constata que ao invés dos

homens serem levados à autonomia (emancipação), pouco a pouco foram conduzidos à heteronomia (dominação) e sujeição à lógica do Capital.

Nesse sentido, a obra de Bauman constitui-se como herdeira da primeira geração da Escola de Frankfurt. Constata Bauman que a agenda política

e o processo legislativo dos Estados Modernos conduziram seus membros à heteronomia da moral regida, então, das leis do Estado Moderno.

Todavia, hoje, há uma verdadeira separação entre Política e Poder e parte significativa da agenda reguladora passou, então, para a mão do

Capital, atendendo de fato os interesses do mercado, continuando a dominação herdada do momento Moderno. Porém, agora, a agenda cosntitui-

se em uma regulamentação voltada ao consumo.

Crítica de Bauman à moralidade moderna:

Bauman identifica no desenvolvimento da filosofia moderna um laço que uniu as normas morais com a manutenção da crença

universalista. Para nosso pensador esta ligação se deu, sobretudo, a partir da elaboração de filósofos: “O laço estreito entre a obediência a normas

morais e a manutenção da crença na Universalidade, foi com toda probabilidade sobretudo idéia de filósofo e preocupação de filósofo” (1997, p.

48). Tal laço foi postulado, conforme afirma Bauman, a partir da busca de coerência e congruência imputado aos homens e mulheres comuns.

64 [email protected] -Mestrando em Filosofia - Unesp – Marília - SP

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Para Bauman, coerência e congruência são “a marca profissional dos filósofos” (1997, p. 48). A primeira visava estabelecer uma relação

harmônica com o projeto moderno de Esclarecimento para progresso do homem e do mundo, enquanto a segunda visava aliar o comportamento

das pessoas a este mesmo fim. Desta forma, coerência e congruência estavam na proposta central de superação das ambivalências,

principalmente aquelas dos seres humanos, agora cidadão do Estado, que deviam se libertar das tutelas que os mantinha cativos e que, desde

então, poderiam fazer uso da sua própria razão, independentemente de outrem. A proposta de obediência às normas morais aliada à crença na

universalidade, na leitura de Bauman, impulsionou a efetivação do Estado como autoridade moral. Esta nova autoridade vinha substituir,

sobretudo, a tutela das pessoas da religião e de costumes ligados às comunidades.

Todavia, como salienta Bauman, a proposta universalista do Estado enquanto autoridade moral visou, na verdade, imputar nos cidadãos

suas ambições locais sob bandeiras universalistas. Ao mesmo tempo em que filósofos trabalhavam seriamente para a implantação de uma

unidade de costumes coerente e congruente à proposta moderna, acontecia, inerentemente, a ampliação de um poder local que se pretendia

universal. Tal movimento legitimou nos mais variados Estados, durante este período, um determinado poder (o hegemônico dentre os que

haviam) que direcionou a conduta dos seus cidadãos. Neste contexto, qualquer iniciativa individual que não se baseasse nos princípios da

racionalidade e no itinerário para o progresso era visto com desconfiança. “A verdade é uma (...) a escolha do indivíduo não bastava, devia ser

assegurada por uma autoridade, coerentemente a esta. Ir por outro caminho é um erro, ‘ignorância e imaturidade’” (BAUMAN, 1997, p. 48).

Nesse período via-se a livre decisão do indivíduo como aliada ao impulso, aos sentimentos e aos instintos. Qualquer comportamento originado

dessas fontes devia ser combatido, re-educado. Os pensadores modernos sempre viram com desconfiança uma moralidade provida dos instintos e

toda sua investida se constituiu em uma grande empresa para forjar a natureza humana aos moldes da elite ilustrada. “A multidão”, escreveu

D’Alembert no século das Luzes, “era ignorante e estupidificada... incapaz de ação forte e generosa” (apud BAUMAN, 1997, p. 34). O

comportamento das massas era imprevisível, incalculável e estava assentado sobre a crueza, crueldade e paixões selvagens. Assim, os filósofos

foram os encarregados de “revelar” aos homens e mulheres comuns sua “verdadeira natureza”. Tal natureza já nasce sob a bandeira universalista

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da “natureza humana”, comum a todos os homens. Porém, esta natureza é irrealizável por conta própria, precisa da ajuda dos portadores da

razão, os guias que levariam as pessoas à “iluminação”: “Primeiro, este potencial deve ser revelado (...) em segundo, devem ser ajudadas no

seguimento desses padrões por um ambiente cuidadosamente planejado (...) Ambas as tarefas requerem evidentemente habilidades profissionais,

primeiro dos mestres, depois dos legisladores” (BAUMAN, 1997, p. 35). Os primeiros, seriamente, apresentaram a proposta universalista de

realização das potencialidades humanas por meio da razão, dos princípios morais e tantos outros argumentos visando a já mencionada coerência

e congruência ao projeto do Esclarecimento. Por outro lado, sedentos de poder, estavam os legisladores, responsáveis por criar um ambiente

seguro e propício à manifestação da verdadeira natureza dos homens e mulheres tutelados pelo Estado e, evidentemente, a aliança desse mesmo

Estado ao desenvolvimento capitalista nescente. Desta forma, estava dado o laço que uniu de forma exitosa universalidade e normas morais (esta,

filha predileta e dedicada dos detentores do poder do Estado). Os criadores do ambiente favorável à realização da natureza humana, ou seja, os

legisladores, acabaram por obter sua ação fundamentada filosoficamente. Sua prática, ampliação e legitimação do poder adentraram, por meio de

sua autoridade moral, a vida íntima dos cidadãos e passaram a reger o campo estritamente interior de cada indivíduo, fato este que assegurou

grande tranqüilidade para a manutenção do poder.

Para Bauman, “a alteridade foi temporalizada de maneira característica da idéia de progresso: o tempo significaria hierarquia – ‘mais

tarde’ identificava-se com o ‘melhor’, e ‘mau’ com o ‘fora de moda’ ou ainda não desenvolvido adequadamente” (1997, p. 48). “A confiança nas

capacidades milagrosas e curativas do tempo – e especialmente sua parte ainda não realizada, parte que se podia fantasiar livremente, e lhe

atribuir poderes mágicos sem medo do teste empírico – veio finalmente a ser o traço saliente da Mentalidade Moderna”65 (BAUMAN, 1997, p.

65 “Diderot chamou o homem moderno de postéromane – em amor com a posteridade; e, como Alain Finkielkraut o expressou recentemente, o homem moderno

contava com a competência do futuro de corrigir as injustiças do presente. Visualizava a humanidade em seu conjunto como movimento de qualidade que desafiariam os homens tomados separadamente. Contava com o tempo que chegaria a confiança que tinha na eternidade... O homem moderno marcha rumo a psoteridade. Como expressa Claude Simon, “em última consideração, da mesma forma como se disse uma vez ‘Deus saberá o que lhe é próprio’, creio que podemos afirmar sem muito erro que, mais cedo ou mais tarde, a História (ou a espécie humana) saberá o que lhe é próprio. Bauman, 1997, p. 53.

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53). Essa alteridade, principalmente a ética (pois, agora estabelecida por códigos legais), aliada à visão teleológica da modernidade, acabou por

auxiliar na manutenção de um Estado (consequentemente de um poder), que pôde a todo o momento prorrogar suas obrigações com a desculpa

implícita de melhoria com o passar do tempo:

o sonho da universalidade como destino último da espécie humana e a determinação de realizá-lo, tomou refúgio no conceito processual de universalização. Aí ele estava seguro – enquanto se podia crer razoavelmente que o processo de universalização acontece, que se pode visualizar com credibilidade a ‘marcha do tempo’ como incoercível e que ela levará ao progressivo desgaste, e eventualmente à extinção, das atuais diferenças. (BAUMAN, 1997, p. 53)

A crença em uma moralidade que pode a cada dia elevar-se em seus propósitos e ações tornou a autoridade do Estado ainda mais

justificada e, até, desejável, pois garantiria a segurança e o direito de propriedade, além de outros valores outrora negados e que, com o advento

do Estado Moderno, passam a integrar a agenda política das nações. Porém, como se observou, a proposta moderna de autonomia do indivíduo

viu-se concretamente realizada na heteronomia do poder legislador do Estado. Conforme afirma Bauman, “o ‘homem universal’, reduzido só aos

ossos da ‘natureza humana’, devia ser (...) um “eu não-sobrecarregado” (1997, p. 49). Devia elevar-se das “raízes e lealdades comunais; de

erguer-ser, por assim dizer, a plano mais elevado e ter daí visão dilatada, imparcial e crítica das exigências e pressões comunais” (1997, p. 49).

Este “eu não-sobrecarregado” presumia certa autonomia em relação a sua comunidade local, aos costumes muitas vezes ditados por líderes

religiosos ou comunitários, uma verdadeira emancipação dos costumes locais visando a prática das aspirações universalistas inerentes à “natureza

humana” e possíveis, agora, graças às condições ambientais proporcionadas pelo Estado e por sua garantia “inconteste” oriunda da legislação.

Por outro lado, o indivíduo viu-se obrigado a cumprir uma moralidade determinada pelo Estado através de sua legislação. O que seria

emancipação e autonomia das práticas locais configurou-se determinantemente na heteronomia legalista da nação-estado: a moralidade passa a

ser determinada nos códigos e esta, paulatinamente, torna-se a única “obrigação moral” dos indivíduos.

Todavia, a proposta universalista extrapolou os limites do Estado. Afirma Bauman que “o postulado de universalidade sempre foi

demanda sem endereço; ou, um pouco mais concretamente, espada com o gume voltado para grupo seleto (1997, p. 49). Sempre estavam na mira

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do canhão da universalidade os costumes paroquianos, práticas comunais. Assim, até o próprio Estado viu-se vítima de seu postulado, pois “o

postulado da universalidade não só alui as prerrogativas morais das comunidades agora transformadas em unidades administrativas da nação-

estado homogênea, mas também torna inteiramente insustentável a pretensão do Estado de ser a única autoridade moral” (BAUMAN, 1997, p.

49). Na análise de Bauman, “a exigência de só reconhecer como morais as normas que passam pelo teste de certos princípios universais,

extratemporais e extraterritoriais, significava primeiro e sobretudo a rejeição das pretensões ligadas a tempo e território, de fazer julgamentos

morais com autoridade” (1997, p. 50). A universalidade dos princípios morais postulados pelo Estado acabou por se tornar uma negação de sua

própria autoridade. Costumes locais, temporais e territoriais dentro dos limites do Estado tornaram-se obstáculos ao desenvolvimento da

universalidade. A determinação de uma comunidade política é dissonante com a prática do postulado universalista, “opõe-se não só ao específico

contrapoder, presentemente no banco dos réus pela acusação de obstruir o movimento rumo à universalidade, mas também o próprio princípio

aristotélico da política como fonte última e guardiã da humanidade” (1997, p. 50). Nesse sentido, a universalidade é a negação da polis e, quiçá,

de toda uma política de Estado, é uma verdadeira faca de dois gumes: o que antes auxiliou na criação e unificação do Estado tornou-se sua

própria negação, baseada em argumentos do tipo supranacional, isto é, da necessidade de desprendimento de comportamentos ligados a espaço e

costumes. O Estado enquanto agência promotora do universalismo se encontra agora “destituída de soberania verdadeiramente universal, o

horizonte da universalidade ‘atualmente existente’ (ou, realisticamente buscada) tende a parar na fronteira do Estado” (1997, p. 52).

Isso tudo se deve, principalmente, ao processo de colonização de países durante os primeiros séculos da era moderna: cada Estado

colonizador apresentava-se como o “melhor”, o “mais avançado” e, por conseqüência, devia “propor” e implantar suas práticas e costumes. A

universalidade da moralidade atrelada ao Estado viu-se confrontada com “outras universalidades de outros Estados”: cada “universalidade” foi

constituída internamente, pois estava ligada diretamente ao processo de legislação, agora, fora dos limites territoriais e legais de cada Estado

soberano, restou à universalidade a justificativa processual: “à vigência de se salvar a integridade da própria visão moral da derrota, quem deve

vir uma vez que se descobriu que a visão não passa de uma no meio de muitas, atendeu-se melhor, pode se argumentar, com a idéia de progresso

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que dominou o pensamento moderno na maior parte da história” (BAUMAN, 1997, p. 48). Esse progresso devia ser levado aos povos

colonizados:

esta visão ajusta-se bem tanto à necessidade de legitimar a conquista e a subordinação de diversos países e culturas, como a de apresentar o crescimento e a difusão do conhecimento como o principal mecanismo não só de mudança, mas também de mudança para melhor – de melhoria66 (BAUMAN, 1997, p. 49)

Em meio a uma pluralidade de Estados soberanos, países que internamente aplicam princípios morais de forma universal, para que uma

“verdadeira universalidade” prevaleça torna-se agora questão de força. Conforme diz Bauman, hoje “só pode ser consistentemente universalista

um poder que se incline a identificar a espécie humana como sujeita a seu domínio atual ou em perspectiva” (1997, p. 52). Ora, como não há

agência universal com autoridade e legitimidade o bastante para se proclamar ou auto-proclamar, justificada e legitimamente, como agência

universal de princípios morais, resta, como afirma Bauman, a tentativa de prevalência de um Estado sobre os demais por meio da força. Neste

caso, não seria uma relação de moralidade, mas sim de submissão e violência.

Hodiernamente, podemos afirmar que em definitivo não há mais uma agência institucional (como foi o Estado nos primeiros séculos da

modernidade) que construa universalmente uma agenda política e moral prescrita para os indivíduos e/ou suas nações-estado. O vazio a que

muitos pensadores atuais se referem diz respeito a este recuo do Estado em relação a essa prática de tutela moral dos indivíduos.

O Capital como agente regulamentador

66 Nas palavras de V.G. Kernan, “as nações colonizadoras esforçavam-se ao máximo para se agarrar à convicção de que estavam espalhando no mundo não só a

ordem, mas também civilização”. Johannes Fabian apelidou esse hábito muito difuso de “cronopolítica”: projetar a diferenciação contemporânea sobre a seta do tempo, de forma que se possam descrever alternativas culturais como “alocrônicas” – pertencentes a tempo e sobrevivendo até o presente com falsos pretextos, sendo meras relíquias destinadas à extinção” V.G. Kiernan, The Lords of human kind, Cresset Library, Londres, 1988, p. 311 e Johannes Fabian, Time and the order: How antropology makes its objetcs, Columbia University Press, Nova York, 1983 apud Bauman, op. Cit. 1997. Hegel, por exemplo, chegou a afirma que os povos da Oceania estão situados fora do limites da história – da razão. A razão, por esta via, é a aplicação da universalidade dos conceitos éticos (e políticos), fundamentados por cada nação-estado visando eliminar toda diferença e iniciativas individuais assegurando manutenção da ordem.

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Conforme afirma Bauman, “a função de estabelecer código e agenda está sendo decididamente transferida das instituições políticas (isto

é, eleitas e em princípios controladas) para outras forças” (2000, p. 80). Tais forças são as exercidas pelos detentores do poder econômico e

visam o desregulamentar, que: “significa diminuir o papel regulador do Estado, não necessariamente o declínio da regulamentação, quanto mais

o seu fim” (2000, p. 80). Assim, esse processo recua a autolimitação do Estado e gera “uma maior exposição dos optantes tanto ao impacto

coercivo (agendador) como doutrinador (codificador) de forças essencialmente não políticas, primordialmente aquelas associadas aos mercados

financeiros e de consumo” (2000, p. 80).

Tal agenda regulamentada por um Estado eficiente é algo necessário para garantir aos menos favorecidos (“aos pobres pós-modernos”

para usar um termo de Bauman), suas necessidades básicas de cidadãos do Estado. “A agenda é estabelecida como antes, só que um novo agente

operacional não político expulsou seus antecessor político ou pelo menos agora cada vez mais desempenha o papel principal, em vez de

secundário” (BAUMAN, 2000, p. 81). O agente econômico assume de vez o papel de regulamentador. O que antes era garantido ao Capital

como liberdade de mercado e até lobby para facilitar seu crescimento, hoje é tomado como propriedade e direito, uma verdadeira cessão das

conquistas legadas de inúmeros momentos da Modernidade e que, agora, são tidas como empecilhos às pretensões dos grandes conglomerados do

Capital: “como agendadoras principais, as pressões de mercado vão substituindo a legislação política (...) e no campo das opções de consumo,

todo mundo deve – comportar-se de acordo com ... o padrão previamente determinado e indexado e escolher a categoria de produto de massa

adaptado ao seu tipo” (BAUMAN, 2000, p. 81).

Tal reviravolta no comportamento das pessoas, e por conseqüência em sua mores, ocasionado pela omissão dos agentes políticos,

transformou o “individuo de cidadão político em consumidor de mercado” (BAUMAN, 2000, p. 84).

A análise de Bauman como Teoria Crítica

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Marx, na famosa XI tese de sua obra Teses contra Feuerbach, diz o seguinte: “os filósofos tem apenas interpretado o mundo de maneira

diferente; a questão, porém, é transformá-lo”. Podemos claramente perceber que o objeto de interpretação e de transformação, segundo a

afirmação de Marx, é o homem e o mundo. Nessa afirmação Marx não rejeita a interpretação, muito pelo contrário, re-afirma sua necessidade;

todavia, uma interpretação que não se apresente como transformadora do status quo é vã. Não diferentemente de Marx, nesse sentido, a Teoria

Crítica se apresenta como Teoria que visa, de fato, a mudança social. A análise e crítica aos procedimentos modernos, principalmente aqueles

que geraram dominação, é o objeto central de interpretação e propostas de mudanças da Escola de Frankfurt.

A Teoria Crítica se constitui em uma reflexão sobre a sociedade burguesa, tendo sua base na afirmação da razão e da emancipação do

homem dos grilhões do mito moderno. O ponto central de sua reflexão está na crítica à teoria tradicional que nasceu da modernidade e que

resultou na instrumentalização da razão submetida à técnica e ao processo de dominação da natureza do homem. Todo esforço de Adorno e

Horkheirmer constitui, de fato, um resgate da emancipação propugnada pelo iluminismo. Podemos identificar três momentos na proposta dos

pensadores frankfurtianos: 1) emancipação por meio da revolução proletária; 2) Certa descrença na possibilidade na revolução; 3) Crítica ao

mundo administrado.

A Crítica de Adorno e Horkheimer sobre a dominação exercida pelo Esclarecimento, pelo projeto da Alfkrung, não é simplesmente uma

dominação por meio da alienação, é deveras um enfeitiçamento das próprias relações humanas. Influenciados pela análise de Marx sobre o

fetichismo da mercadoria, Adorno e Horkheimer afirmam que

O aparelho econômico, antes mesmo do planejamento total, já provê espontaneamente as mercadorias dos valores que decidem sobre o

comportamento dos homens. A partir do momento em que as mercadorias, como o fim do livre intercâmbio, perderam todas suas qualidades

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econômicas salvo seu caráter de fetiche, este se espalhou como uma paralisia sobre a vida da sociedade em todos os seus aspectos (ADORNO &

HORKHEIMER, 1985, p. 40)

De forma semelhante aos pensadores de Frankfurt, Bauman, como visto, parte de uma análise apurada do processo de dominação

propugnado pela sociedade burguesa e, aponta, uma análise sofisticada da atual realidade do mundo globalizado. A dominação exercida pelo

projeto do Esclarecimento moderno sobre a vida e o comportamento das pessoas resultou, com toda prova, num processo ainda mais amplo de

dominação, tendo como agente regulador o próprio Capital.

Considerações Finais

A Escola de Frankfurt parte de uma análise e crítica aos procedimentos modernos, principalmente aqueles que geraram dominação. Este é

o seu objeto central de interpretação e propostas de mudanças. Bauman, não diferentemente, parte de uma análise refinada do processo de

dominação que derivou da universalização e fundamentação do projeto de Esclarecimento moderno. Assim, no que tange à crítica do processo de

dominação da sociedade burguesa, Zygmunt Bauman é um herdeiro desse modo de interpretação da realidade social que identifica o processo de

dominação e aponta a filosofia como meio de mudança social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ADORNO, T; HOKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

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BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

_________. Ética pós-moderna. São Paulo: Paulus, 1999.

_________. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

_________. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

MARX, K. Teses sobre Feuerbach, 1845. Acesso em 08/10/2010, disponível em: <

http://www.vermelho.org.br/biblioteca.php?pagina=feuerbach.htm>.

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O ARGUMENTO NÃO-ONTOLÓGICO DO PROSLOGION 2 - Diego Fragoso Pereira 67

RESUMO

O artigo expõe as interpretações de Jean-Luc Marion e de G. E. M. Anscombe sobre o argumento do Proslogion 2 de Anselmo de

Cantuária. Para Marion, o argumento anselmiano não é ontológico pois não infere a existência de Deus a partir de um conceito da essência

divina, nem faz qualquer pressuposição da metafísica, já que não se baseia na idéia de ser, mas na de bem. Já para Anscombe, o argumento não é

ontológico pois nenhuma de suas premissas considera a existência uma perfeição. Para ela, o argumento é dito ontológico pela tradição filosófica

devido a uma má tradução de uma de suas premissas, na qual a existência é entendida como uma perfeição. Para Anscombe, o que causa a má

tradução é uma vírgula colocada incorretamente pelas edições modernas do argumento anselmiano, que não havia nos escritos originais de

Anselmo.

Palavras-chave: Argumento anselmiano; Interpretação; Jean-Luc Marion; G. E. M. Anscombe; Proslogion 2.

Introdução

O argumento para provar a existência de Deus do Proslogion 268 de Anselmo de Cantuária é tido por muitos como um argumento

ontológico. Todavia, há quem não o interprete desta forma. Este artigo constitui uma exposição de duas das interpretações do argumento

67 Mestrando em Filosofia (UFPR).

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anselmiano que não o consideram ontológico. Argumento ontológico é uma nomenclatura estabelecida por Immanuel Kant a uma prova que se

propõe demonstrar a priori a existência de Deus, isto é, a partir de simples conceitos69. É na nomenclatura kantiana que os comentadores aqui

mencionados se baseiam para desenvolver suas interpretações acerca do argumento de Anselmo.

Para tentar alcançar o objetivo proposto, o texto dividir-se-á em quatro partes: 1) exposição da interpretação tradicional do argumento

anselmiano, mostrando, em linhas gerais, a razão de o argumento ser chamado ontológico; 2) abordagem da interpretação de Jean-Luc Marion

acerca do argumento do Proslogion 2; 3) a interpretação de G. E. M. Anscombe; 4) tentativa de aproximação entre as interpretações de Marion e

de Anscombe. É possível abordar ambas interpretações como se se referissem a um mesmo aspecto do argumento de Anselmo?

I

O argumento anselmiano está exposto abaixo de maneira esquemática. Dadas algumas premissas, Anselmo infere a existência efetiva de

Deus, in intellectu et in re70, se servindo de uma redução ao absurdo71, ou seja, provando que uma tese é verdadeira porque sua negação é

absurda, contraditória. Segue o argumento:

Deus é “aquele do qual não se pode pensar nada maior”.

68 Por “Proslogion 2” entenda-se: Proslogion, capítulo 2. O cardinal subsequente ao nome da obra refere-se ao capítulo da mesma. É nomenclatura corrente em

diversos comentadores de Anselmo. 69 Crítica da Razão Pura A591/B619. 70 Proslogion 2: “No pensamento e na realidade”. Esta é a finalidade do argumento anselmiano: provar que Deus está não apenas no pensamento, mas também na

realidade. Deus é algo efetivo. Daí o nome do capítulo 2: Quod sit vere Deus – Que Deus existe (é) verdadeiramente. 71 A tese de que o argumento de Anselmo se serve de uma redução ao absurdo é defendida por alguns comentadores: DAVIES, 2004, p. 168; MATTHEWS, 2005, p.

87; PLANTINGA, 1966, p. 537; PLANTINGA, 2002, p. 87.

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“Aquele do qual não se pode pensar nada maior” existe ao menos no pensamento.

Se “aquele do qual não se pode pensar nada maior” existir somente no pensamento, pode-se pensar que existe também na realidade, o que

é maior.

“Aquele do qual não se pode pensar nada maior” existe somente no pensamento e não na realidade (posição do tolo).

“Aquele do qual não se pode pensar nada maior” é aquele do qual se pode pensar algo maior, o que é contraditório (redução ao absurdo).

Assim, “aquele do qual não se pode pensar nada maior” existe no pensamento e na realidade.

Uma das principais críticas feitas ao argumento é a passagem indevida do pensar ao ser. O fato de se ter no pensamento “aquele do qual

não se pode pensar nada maior” não implica que exista também na realidade. Isto já foi observado nos tempos de Anselmo por Gaunilon, monge

de Marmoutiers e contemporâneo de Anselmo. E se esta passagem do pensamento à realidade for possível, então todo tipo de entidades pensadas

como as mais perfeitas dentre os de uma mesma espécie deverão existir também na realidade.72 De maneira semelhante, Tomás de Aquino, na

Suma Teológica, apresenta três limitações do raciocínio do argumento: 1) nem todos os que ouvem a palavra Deus a entendem como “aquele do

qual não se pode pensar nada maior”; 2) mesmo admitindo que se entenda o que se afirma com a palavra Deus, nem por isso ocorre que Deus

exista na realidade, mas apenas no pensamento; 3) para deduzir a existência efetiva de Deus a partir deste argumento, é necessário já supor que

há na realidade “aquele do qual não se pode pensar nada maior”.73

72 Possivelmente a objeção mais conhecida de Gaunilon é a da Ilha Perdida (insula perdita), a melhor dentre todas as ilhas que há na terra. O conceito de “Ilha

Perdida, a melhor de todas as ilhas” está no pensamento, pois se compreende o que ali está descrito. Por outro lado, se esta ilha não existir na realidade, não será a melhor de todas as ilhas, já que qualquer ilha existente na realidade é maior que a melhor de todas as ilhas. Ora, como este raciocínio não procede, o argumento de Anselmo, segundo Gaunilon, também não procede, visto que comete o mesmo erro que o exemplo da Ilha Perdida. (Pro Insipiente 6) 73 Suma de Teología I, 2, 1, ad 2.

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Certo é que o nome “argumento ontológico” não foi usado nos tempos de Anselmo, nem de Tomás ou mesmo de Descartes. É uma

nomenclatura empregada no século XVIII por Kant, e que perpassou os séculos posteriores, de modo que quando se fala argumento ontológico o

que vem à mente é o argumento cartesiano ou o anselmiano.

Kant afirma haver “somente três espécies possíveis de provas da existência de Deus a partir da razão especulativa”74 e dentre elas está a

prova ontológica75. Várias das objeções feitas ao argumento de Anselmo estão baseadas no que Kant afirma na Crítica da Razão Pura. Todavia,

em nenhum momento Kant cita Anselmo ou mesmo o argumento do Proslogion 2. É possível que Kant nunca tenha lido Anselmo76. Kant, na

Crítica da Razão Pura, apresenta objeções ao argumento de René Descartes77, exposto na Meditação V. Por semelhança, estenderam-se ao

argumento de Anselmo as objeções kantianas feitas ao argumento de Descartes.

Uma objeção kantiana ao argumento ontológico (cartesiano) é o tratamento da existência como uma perfeição. Segundo Kant, “Ser

[existência] não é, evidentemente, um predicado real, isto é, um conceito de algo que possa acrescentar-se ao conceito de uma coisa”78, isto é,

não é uma nota característica (Merkmale)79 que possa ser adicionada ao conteúdo do conceito de um objeto. Ora, analisando o argumento

anselmiano a partir da objeção kantiana acima, pode-se afirmar que há no argumento de Anselmo uma passagem indevida do domínio dos

conceitos para o domínio do real. Esta passagem é provocada pela consideração da existência como um predicado real, isto é, como mais uma das

74 Crítica da Razão Pura A590/B618. 75 Crítica da Razão Pura A591/B619. 76 DAVIES, 2004, p. 177, nota 2; ainda que Marion tenha afirmado: “Não é, de maneira nenhuma, paradoxal que Kant foi o primeiro a perder o foco e a criticar

Anselmo como se ele [Anselmo] não tivesse sido tão crítico – no sentido kantiano – como Kant próprio supôs ser” (MARION, 1992, p. 209). Uma forma possível de se entender as palavras de Marion é considerar que não foi Kant quem criticou Anselmo, mas a tradição filosófica posterior a Kant que interpretou o argumento anselmiano a partir das objeções kantianas ao argumento cartesiano.

77 Crítica da Razão Pura A602/B630. 78 Crítica da Razão Pura A598/B626. 79 Beweisgrund I, 1, § 1, nota 5.

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várias propriedades de Deus. Isto se dá pela afirmação de que existir no pensamento e na realidade é maior que existir apenas no pensamento.

Donde se leva a concluir que Deus existe na realidade, a partir da análise do conceito Deus.

II

Jean-Luc Marion, em um artigo de 1992, defende que o argumento do Proslogion 2 não é ontológico. Para tanto, Marion define o que é

argumento ontológico a partir de Kant, visto ter sido este quem empregou pela primeira vez tal nomenclatura80. Um argumento é ontológico

quando infere “a existência de uma causa suprema a partir de simples conceitos”81 ou ainda, a “existência de um Ser supremo a partir de

conceitos”82.

Após a definição, Marion apresenta as condições necessárias a serem satisfeitas por um argumento para que seja considerado ontológico:

1) “alcançar a existência através de um conceito da essência de Deus”83 e 2) “interpretar esta essência como Ser enquanto tal, universal e sem

restrição”84. Em seguida, Marion compara o argumento do Proslogion 2 com as condições acima para confirmar a tese de que não se trata de um

argumento ontológico.

80 O primeiro argumento ontológico é um argumento kantiano exposto no Beweisgrund I, 4, 2; III, § 2. Kant contrapõe o argumento ontológico formulado e exposto

por ele na Primeira Parte do Beweisgrund ao argumento cartesiano. Ambos os argumentos são considerados a priori. Mas, enquanto o argumento cartesiano (da Meditação V) parte do conceito do meramente possível como fundamento, tendo a existência de Deus como a sua conseqüência (Beweisgrund III, § 1), o argumento ontológico kantiano parte do conceito do meramente possível como consequência, sendo a existência de Deus o seu fundamento (Beweisgrund III, § 1). Na Crítica da Razão Pura, o nome argumento ontológico passa a designar o argumento cartesiano (Crítica da Razão Pura A602/B630). Enquanto que no Beweisgrund há somente uma prova válida para a demonstração da existência de Deus, a prova ontológica kantiana, na Crítica nenhuma demonstração mais é possível.

81 Crítica da Razão Pura A591/B619. Tanto esta citação como a seguinte podem também ser encontradas em MARION, op. cit., p. 203, nota 6. 82 Crítica da Razão Pura A602/B630. 83 MARION, op. cit., p. 207. 84 Id. ibid., p. 207.

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Acerca da primeira condição, há vários motivos para afirmar que o argumento anselmiano não alcança a existência por meio de um

conceito da essência divina.

A primeira razão, para Marion, é o chamado ponto inicial do argumento do Proslogion 2: “é explicitamente uma questão de fé, não de

obviedade conceitual”85. Isto parece dizer que a preocupação de Anselmo com o Proslogion é de racionalizar o que já é dado pela fé. Ora, esta

tese parece ser confirmada por Anselmo noutra obra, esta escrita há pelo menos vinte anos depois que o Proslogion, o Cur Deus Homo (Por Que

um Deus-Homem?):

Eles, aqueles que me solicitam as bases racionais de um problema particular da nossa fé, afirmam que estas considerações racionais os

alegram; e consideram-nas satisfatórias. Eles fazem tais pedidos não para se aproximarem da fé por meio da razão, mas para se regozijarem na

compreensão e na contemplação das doutrinas em que acreditam, tanto como para estarem sempre prontos, tão bem quanto possam, em dar uma

resposta satisfatória a todo que lhes pedir a razão da esperança que está em nós.86

O interesse de Anselmo parece ser o de compreender, a partir de razões necessárias87, o que a fé lhe dá. Neste sentido, Marion apresenta

os dois motos presentes nos textos anselmianos: 1) Fides quaerens intellectum (A fé em busca de compreensão) e 2) Credo ut intelligam (Creio

para entender). O primeiro foi o nome inicial do Proslogion antes de aparecer na obra o nome do autor.88 Além de nome, tal expressão sinaliza a

preocupação de Anselmo, compreender a fé. Outra passagem do Cur Deus Homo parece explicar esta expressão:

85 Id. ibid., p. 207.

86 Cur Deus Homo I, 1. 87 “necessariis rationibus” (Cur Deus Homo, II, 17). 88 Proslogion, proêmio. Segundo Anselmo, o texto estava sem o nome do autor até que Hugo, legado apostólico e arcebispo de Lyon, obrigou Anselmo a não deixar o

texto de forma anônima. Para abreviar o nome, então, intitulou-o Proslogion.

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Exatamente como a ordem correta exige que acreditemos nas questões profundas da fé Cristã antes de nos atrevermos discuti-los

racionalmente, assim parece-me ser um exemplo de negligência se, tendo sido confirmados na fé, não intentemos compreender o que

acreditamos.89

Como o instrumento disponível para a compreensão da fé era constituída por uma parte da lógica aristotélica90, Anselmo se serve disso

para tornar ao menos aceitável, ou não-contraditória91, a fé cristã.

89 Cur Deus Homo I, 1. 90 Corroboram a tese de que Anselmo teve acesso a ao menos algumas obras da lógica aristotélica as seguintes passagens de comentadores: “He [Anselmo] surely

knew of and read a little Aristotle (probably the Categories and De Interpretatione.” (ADAMS, 2004, p. 51). Ainda: “Anselm follows Aristotle’s lead in the De Interpretatione, recognizing three basic categories of language” (KING, 2004, p. 88). No mesmo texto: “Anselm follows Aristotle in taking the distinctive feature of verbs to be that they have tense” (Id. ibid., p. 97). Mais adiante: “On this score he is again following Aristotle, who tells us that someone who hears a verb in isolation is in a state of suspension, waiting to hear more (De Interpretatione 3)” (Id. ibid., p. 100). Outrossim, há referências a Aristóteles em duas obras de Anselmo, a saber: no De Grammatico e no Cur Deus Homo. No De Grammatico, Anselmo cita Aristóteles em seis capítulos (9, 10, 16, 17, 18, 19). Nos capítulos 16 e 17, há referência às Categorias: “When it is said that expert-in-grammar is a quality, this is correctly said only in the sense which accords with Aristotle's treatise On the Categories” (De Grammatico 16). “The classification which he makes at the beginning of his treatise On the Categories amply bears out what I am saying” (De Grammatico 17). No Cur Deus Homo, Anselmo cita Aristóteles quando diferencia necessidade precedente (necessitas praecedens) de necessidade subseqüente (necessitas sequens). Neste capítulo, Anselmo trata da maneira que deve ser entendida a afirmação de que era necessário que Jesus morresse por sua própria vontade (Cur Deus Homo II, 17).

91 Cur Deus Homo I, I. Numa epístola dirigida a Fulques, bispo de Beauvais, Anselmo fazendo referência ao nominalista Roscelino de Compiègne e à heresia triteísta, retoma o papel da razão como instrumento de defesa e compreensão da fé cristã: “Conviene defender nuestra fe con los argumentos de la razón contra los impíos, no contra los que pretenden regocijarse y tener el honor de llevar el nombre de cristianos. A éstos hay derecho a exigir que observen sin dejarse conmover el compromiso adquirido en el bautismo; en cuanto a los otros, hay que demonstrarles por la razón la poca razón que tienen para depreciarnos. El cristiano deve servirse de la fe para adelantar en la inteligencia de la verdad [credo ut intelligam], no dela inteligencia para llegar a la fe [intellego ut credam]; tampoco le está permitido renunciar a la fe con pretexto de que no puede comprender la verdad. Pero cuando llega a comprender, se alegra; se no puede, que respete entonces lo que no alcanza” (Carta 73: A Fulques, bispo de Beauvais).

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O segundo é citado no Proslogion 1 e no De Incarnatione Verbi I. A expressão é extraída do pensamento agostiniano. Agostinho, por sua

vez, apreende esta frase de uma passagem das Sagradas Escrituras, do texto de Isaías 7,9. Porém, para esta mesma passagem, tem-se duas

traduções distintas: a dos Setenta (Septuaginta) e a Vulgata, a tradução de São Jerônimo. Na Septuaginta, encontra-se: “Nisi credideritis, non

intelligetis” (Se não crerdes, não compreendereis). Diferentemente, na Vulgata tem-se: “Nisi credideritis, non permanebitis” (Se não crerdes, não

permanecereis). A tradução do texto bíblico que corresponde ao citado nos textos de Anselmo é o da Septuaginta. Mas há quem considere a

passagem de Isaías na versão dos Setenta uma “má tradução”92. Por outro lado, Agostinho se serve também da versão da Vulgata. E mais. Ao

lidar com a versão da Septuaginta, a atitude agostiniana não é apenas o “credo ut intelligam”, mas está “mais completa e melhor expressada na

sua fórmula: ‘Intellige ut credas, crede ut intelligas’ [Compreende para crer, creia para compreender] (Serm. 43, 7, 9: PL 38, 258)”93.

Outra razão para negar que o argumento anselmiano parta de um conceito da essência divina é o ponto final do mesmo: “o ponto final que

o argumento alcança também escapa de um conceito, pois sua meta última é alcançar Deus que habita na ‘luz inacessível’”94. Marion reforça esta

tese a partir de textos citados por Anselmo no Proslogion, tais como os capítulos 1 e 1695. Como a pressuposição do argumento é a fé e a

inacessibilidade de Deus, não há porque pretender atribuir ao argumento qualquer conceito de Deus, já que “este argumento nunca implica um

conceito, seja qual for, pois se baseia precisamente na impossibilidade de qualquer conceito de Deus, qualquer que seja. A origem do argumento

não é a confiança num conceito, mas num não-conceito”96.

92 FRAILE, 1966, p. 374, nota 14. 93 Id. ibid., p. 374, nota 14. 94 MARION, op. cit., p. 208

95 Textualmente: “Certamente tu moras na luz inacessível” (Proslogion 1). Mais adiante: “Verdadeiramente, Senhor, esta é a luz inacessível em que habitas” (Proslogion 16). 96 MARION, op. cit., p. 208.

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A idéia do não-conceito é uma das chaves para se compreender Marion. Ao longo de várias páginas ele expõe o que entende por um não-

conceito e quais as implicações disso para o argumento anselmiano. O enunciado que Anselmo apresenta como uma das premissas é o que afirma

Deus enquanto “aquele do qual não se pode pensar nada maior”97. Isto é um não-conceito, pois Deus não pode ser alcançado por um conceito.

No que tange à segunda condição necessária, a saber, de se interpretar a essência como Ser enquanto tal, universal e sem restrição, Marion

também dá uma resposta negativa. Para tanto, Marion parte novamente do enunciado acerca de Deus: aliquid quo nihil maius cogitari potest. O

princípio que Anselmo utiliza é a idéia do máximo ou, segundo Marion, “lógica do máximo”98. Embora Deus seja o máximo pensável, o

pensamento não consegue concebê-lo totalmente num conceito. Analisando os demais capítulos do Proslogion, há uma caracterização do que

Anselmo entende por máximo. No Proslogion 14, Anselmo se refere a Deus como “aquele do qual nada melhor pode ser pensado”99. Marion vê

nessas evidências textuais a maneira com deve ser entendido o maius anselmiano: “ser maior significa ser melhor”100. Por isso, a lógica do

máximo é complementada pela idéia do melhor, do bem, e passa a ser a lógica do máximo do melhor ou do bem: “o bem aparece como uma

marca dominante de qualquer definição radical de Deus, pois excede a essência pelo mesmo movimento com que se livra de um conceito”101.

Deus, pensado como o bem, é pensando como um sumo bem. Assim, Marion acredita que o argumento do Proslogion 2 não se baseia em

qualquer pressuposição metafísica do ser, já que Anselmo não se serve da idéia de ser, mas da idéia de melhor, de bem. Por isso, o argumento

anselmiano não satisfaz também à segunda condição. Donde a expressão de Marion: “o argumento não-ontológico de Anselmo”102.

97 “Id quo nihil maius cogitari potest” (Proslogion 2). 98 MARION, op. cit., p. 211. 99 Proslogion 14. Citado também por MARION, op. cit., p. 213. 100 Id. ibid., p. 214. 101 Id. ibid., p. 214. 102 Id. ibid., p. 209.

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III

G. E. M. Anscombe103 considera a interpretação tradicional do argumento anselmiano “uma má interpretação”104. A razão apresentada por

ela diz respeito a um problema de tradução. Para mostrar o equívoco existente, Anscombe apresenta uma definição de argumento ontológico.

Depois, a compara com a interpretação/tradução tradicional do argumento de Anselmo. Por fim, a compara com a nova tradução do argumento

que, a partir dali, não poderia mais ser considerado ontológico.

Define Anscombe: “a um argumento para a existência de alguma coisa se deve chamar ‘ontológico’ somente se depende da existência

como perfeição”105. Esta definição se assemelha ao que Descartes realiza na Meditação V: Deus é o ser soberanamente perfeito. A existência é

uma perfeição. Portanto, Deus existe.106

Conforme Anscombe, o que torna ontológico o argumento anselmiano é o que está citado na premissa (3) acima: Se “aquele do qual não

se pode pensar nada maior” existir somente no pensamento, pode-se pensar que existe também na realidade, o que é maior. Segundo esta

premissa, existir no pensamento e na realidade é maior (algo mais perfeito) que existir somente no pensamento. O que é pensado haver no

pensamento e na realidade seria maior que “aquele do qual não se pode pensar nada maior” (que estaria apenas no pensamento). Contudo,

abordar desta maneira a existência de Deus é considerá-la uma perfeição.

103 A primeira versão do artigo de Anscombe surgiu em língua espanhola, em 1982, sob o título “Por qué la prueba de Anselmo en el Proslogion no es un argumento

ontológico”. Em 1985, o artigo foi publicado em língua inglesa: “Why Anselm’s Proof in the Proslogion Is Not na Ontological Argument”. A idéia ainda é repetida num outro texto: “Descartes and Anselm” (in: PERZANOWSKI, Jerzy (ed.). Essays on Philosophy and Logic. Cracow: Jagellonian University Press, 1987, p. 15-18).

104 ANSCOMBE, 1982, p. 15. 105 Id. ibid., p. 9. 106 Meditação V, 7. 9.

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Para mostrar a má interpretação do argumento, Anscombe defende que a tradução da dita premissa está errada. A premissa no texto latino

diz: Si enim vel in solo intellectu est, potest cogitari esse et in re, quod maius est: Se existir apenas no pensamento, pode-se pensar que existe

também na realidade, o que é maior. Para Anscombe, há um excesso de vírgulas na sentença. De modo específico, a segunda vírgula: “observei

muitos manuscritos desta passagem e não vi nenhum de tais pequenos pontos [puntitos] neste lugar”107. A referência aos pequenos pontos se

justifica, pois não havia vírgula nos manuscritos medievais. O máximo que havia era pequenos pontos para ajudar aquele que lia o texto em alta

voz, ou então serviam para abreviar nomes. Por isso, “essas vírgulas são pura opinião editorial”108.

Por outro lado, sem a segunda vírgula, há uma sentença diferente. Si enim vel in solo intellectu est, potest cogitari esse et in re quod maius

est traduz-se agora: Se existir apenas no pensamento, pode-se pensar que o que é maior existe também na realidade. Sem a vírgula, a existência

não é mais tratada como uma perfeição. Anselmo, segundo esta versão, não diz que existir no pensamento e na realidade é perfeição maior que

existir apenas no pensamento. O que ele parece dizer é que é possível pensar algo maior que aquilo que existe apenas no pensamento.

O detalhe da versão anscombiana é o pequeno trecho “quod maius est”: o que é maior. Na leitura tradicional, este trecho é o que faz a

existência ser uma perfeição. Na nova interpretação, “o que é maior” passa a ser o sujeito da sentença “pode-se pensar que está também na

realidade”109. E se de fato Deus existir, a existência será aquilo que fará com que o conceito Deus não seja vazio.

“O poderoso argumento”110 de Anselmo, a partir da interpretação de Anscombe, passa a ser, resumidamente:

107 ANSCOMBE, op. cit., p. 15. Ou então, para reafirmar sua tese, diz Anscombe em outro texto: “Commas in editing Anselm are merely editorial judgement, there

being no commas in the medieval MSS” (ANSCOMBE, 1993, p. 500). 108 Id. ibid., p. 15. 109 Id. ibid., p. 502. 110 Id. ibid., p. 17.

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Supondo que aquele do qual nada maior pode ser concebido exista somente no pensamento, algo maior pode ser concebido, já que se

pode pensar que algo maior existe também na realidade. O suposto é, por conseguinte, contraditório. Ou não há tal coisa no intelecto, ou existe

também na realidade. Porém existe na mente do insensato. Logo...111

Desta forma, para Anscombe112, o que faz com que o argumento anselmiano seja ontológico é uma vírgula acrescentada pelas edições

modernas após Leibniz113, assemelhando o argumento de Anselmo ao argumento de Descartes.

IV

É possível que as interpretações de Marion e de Anscombe se refiram a um mesmo aspecto do argumento do Proslogion 2, isto é,

poderiam as duas interpretações ser reduzidas a uma? A primeira resposta é negativa. As duas interpretações não se referem ao mesmo aspecto

do argumento. Por aspecto entenda-se elemento, e por elemento entenda-se premissa. As interpretações se baseiam em premissas distintas uma da

outra. Enquanto Anscombe se baseia numa premissa que está mais ao meio do argumento, Marion se baseia na primeira. Ambos se reportam,

direta ou indiretamente, a Kant: Anscombe na objeção à tese cartesiana de existência, Marion nas duas condições necessárias para um argumento

ser considerado ontológico.

111 Id. ibid., p. 16-17.

112 Segundo C. J. F. Williams, a tese de Anscombe é apoiada por Brian Davies (WILLIAMS, 1993, p. 496, nota 1): “The claim is endorsed by Brian Davies OP, in ‘Quod Vere Sit Deus: Why Anselm Thought that God Truly Exists’, New Blackfriars, 72 (1991), pp. 212-21”.

113 ANSCOMBE, op. cit., p. 14.

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Anscombe apresenta sua interpretação a partir da premissa: Si enim vel in solo intellectu est potest cogitari esse et in re quod maius est114.

A partir desta expressão, ela apresenta a relação com a doutrina cartesiana da existência enquanto perfeição, mostrando que a existência na nova

interpretação do argumento é aquilo que fará com que o conceito (de Deus) não seja um conceito vazio.

Marion, por sua vez, apresenta sua interpretação a partir da seguinte premissa: Credimus te esse aliquid quo nihil maius cogitari potest115.

Junto com a premissa, Marion cita também Kant por meio das condições necessárias para um argumento ser considerado ontológico. Em Marion

não há a preocupação de a existência ser uma perfeição, um predicado real ou algo parecido. A preocupação dele é separar o argumento de

Anselmo de qualquer idéia de essência e de metafísica, de um modo geral. Esta não é a preocupação de Anscombe. A análise que ela faz é

inicialmente de tradução, depois de conteúdo.

Pelas razões dadas acima, parece não haver meio de aproximar as duas interpretações. Apesar de terem algo em comum: Kant, o que cada

uma afirma parece não ter relação ou implicação uma com a outra.

Por outro lado, parece que as duas interpretações são equivalentes. Anscombe quer mostrar que o argumento anselmiano não considera a

existência como uma perfeição e, por isso, um predicado real116. Marion, por sua vez, que o argumento não parte de um conceito da essência.

Ora, mostrar que o argumento não parte de um conceito da essência é mostrar também, indiretamente, que a existência não é um predicado real e,

conseqüentemente, uma perfeição. De que maneira? O argumento quer demonstrar a existência de um ser tal. Para começar, é dada uma

definição acerca deste ser. Se esta definição for acerca da essência, e a existência for deduzida a partir daí, tem-se um argumento ontológico. Por

outro lado, se a definição não for acerca da essência (e é o que Marion defende), a existência não é tirada da essência, ou melhor, de nenhum

114 Proslogion 2; ANSCOMBE, op. cit., p. 15. 115 Proslogion 2; MARION, op. cit., p. 208. 116 Normam Malcolm é quem explicita a relação entre a doutrina da existência enquanto perfeição e a existência enquanto predicado real. Analisando o argumento

anselmiano, afirma Malcolm: “A prova ontológica do Proslogion 2 é falaciosa porque se baseia na falsa doutrina de que a existência é uma perfeição (e portanto que a ‘existência’ é um ‘predicado real’)” (MALCOLM, 1960, p. 44).

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conceito da essência. Se isso realmente ocorrer, a existência não será tratada como um predicado real, isto é, como algo que pode ser

acrescentado ao conteúdo do conceito de algo a partir da pura análise de um conceito. E, por fim, a existência não será uma perfeição (tese de

Anscombe), pois não será tratada como uma propriedade que pode ser inferida analiticamente do conceito de uma essência.

Neste sentido, pode-se dizer que ambas interpretações são redutíveis a uma somente. No fundo, querem dizer uma só coisa: o argumento

do Proslogion 2 não é susceptível das objeções kantianas justamente porque não comete o que Kant alega contra o argumento da Meditação V. E,

em última análise, o argumento anselmiano, segundo estas (novas) interpretações, não é um argumento ontológico, segundo a nomenclatura dada

por Kant na Crítica da Razão Pura117. Daí a afirmação de Marion no início do seu artigo: “Concordo com a afirmação de A. Koyré, para quem o

argumento de Anselmo já não parece mais ‘uma prova ontológica no sentido exato do termo’”118.

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117 Crítica da Razão Pura A602/B630. 118 MARION, op. cit., p. 201.

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ASPECTOS DO SUJEITO MORAL: KANT E PUIG - Alexandro do N. Vaz 119 - Maria de Lourdes Secorun Inácio 120

“Quanto menos possa um ser humano ser constrangido

por meios naturais e quanto mais possa ser constrangido

moralmente (através da mera representação do dever), mais livre ele é”

Kant

Introdução

Ética é um saber que busca orientar a ação humana. Busca orientar o sujeito na vida prática quando esse se depara com problemas de

ordem ético/moral.

A questão central da ética é a de responder à pergunta: o que nos obriga a sermos bons? Ou seja, é a ética que nos permite buscar critérios

para definirmos o que é ser bom correto ou moralmente certo e que nos fornece explicações para nosso senso de dever moral. A essa questão

podem ser dadas respostas diferentes, ancoradas em diversas posições filosóficas ou ideológicas; e é quando a respondemos que encontramos

valores morais.

Dentro da história da filosofia e da reflexão sobre a ética podemos citar as posições de inúmeros autores com as mais variadas opiniões e

posições, dentre eles podemos destacar Aristóteles, Kant, Hegel, Mill, Nietzsche, Habermas, Puig, entre outros.

119 Aluno do PPG em Educação da Universidade de Passo Fundo. Bolsista CAPES. Orientando do Prof. Dr. Claudio A.Dalbosco. E-mail:[email protected] 120 Aluna do PPG em Educação da Universidade de Passo Fundo. E-mail:[email protected]

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Dentro desse universo de posições éticas esse artigo vai fazer referência a posição kantiana e a posição de Puig quanto as suas concepções

de ética/moral e como se dá o processo do agir moral também em que medida pode ser feita uma leitura de Kant através da posição ética de

Puig.

Posição kantiana

Kant representa um pilar de sustentação da ética moderna. Como é de se esperar sua teoria ética é alvo de inúmeros ataques e críticas121.

Na obra "Crítica da Razão Pura", publicada inicialmente em 1781, é considerada a obra mais influente, mais lida e de relevância fundamental na

tradição filosófica. Neste livro, Kant busca estabelecer os limites dos conhecimentos possíveis para o homem.

Na "Crítica da Razão Prática" Kant dá continuidade à sua investigação crítica retomando o tema da ética e da moral trabalhado

anteriormente na “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”. Nas duas obras Kant analisa os fundamentos e condições da ética e da moral, e

estabelece que fundamento último da ética/moral é a razão, ou seja, a lei que da razão que da a si mesmo o fundamento (ZINGANO, 1989), isso é

expresso no famoso Imperativo Categórico, "age de tal modo que a máxima da tua ação possa valer como lei universal".

O Imperativo Categórico - a lei moral - não tem relação com sentimentos, inclinações. Para Kant um IMPERATIVO é uma regra prática

que torna uma ação necessária. O Imperativo compele o sujeito a conformar-se a essa regra de forma incondicional e sem um fim objetivo.

Um IMPERATIVO categórico é a proposição de uma obrigação a certas ações, é uma lei moralmente prática. Segundo Kant “[...] um

imperativo categórico é uma lei que ou comanda ou proíbe, dependendo de se representa na qualidade de um dever o realizar ou não realizar uma

ação”(KANT, 1994, p.66). Uma ação permitida é aquela que não contraria a obrigação e dever é uma ação a qual alguém esta obrigado.

121 Schopenhauer, grande admirador de Kant faz duras críticas a ética kantiana. Schopenhauer considera a obra “Metafísica dos Costumes” indigna de ter sido escrita por Kant. Ver (SCHOPENHAUER, 2005, p.639-657)

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Na obra Metafísica dos Costumes Kant vai desenvolver dois deveres inerentes a condição do sujeito. As duas modalidades de dever estão

condicionadas por razões distintas; as duas formas de dever são: internos e externos.

Dever ético é um constrangimento interno que o sujeito sanciona a si mesmo, essa coação pode ser de duas maneiras, interna ou externa.

Quando esse constrangimento é interno ao sujeito – de si para si – é ético (auto-constrangimento) quando esse constrangimento é a externo é a

coerção da lei que se impõe ao indivíduo. É a lei civil.

Há duas formas de determinar o querer: uma pelo desejo outra pelo dever. Agir por dever é agir em conformidade com a lei, não mostra

falta de liberdade, mas sim o exercício dela em detrimento ao mecanismo das leis da natureza. Os impulsos da natureza são muito grandes e

sedutores e o cumprimento do dever e a resistência da razão são difíceis. É de todo difícil avaliar racionalmente, mas, de qualquer modo se deve

avaliar racionalmente o momento e não o futuro. Tem-se que considerar o dever de fazer incondicionalmente o que a lei (dever) ordena.

O cumprimento do dever requer do sujeito muita disciplina, tem que haver um querer. O que se tem é que se é forçosamente coerente

quando se age por dever.

Esse querer denomina-se vontade. A vontade humana não tem nenhum fundamento que a determine, ela apenas pode determinar a

escolha, determinar aquilo que desejamos, aquilo que escolhemos, as nossas aspirações. A escolha segundo Kant : “Dá-se o nome da livre arbítrio

à escolha que pode ser determinada pela razão pura; a que pode ser determinada somente pela inclinação(impulso sensível, estímulo) seria o

arbítrio animal (arbitrium brutum)”(KANT, 1994, p.63).

A vontade é dirigida pela necessidade, a vontade não dirigida não pode ser classificada como livre arbítrio e nem está sujeita a qualquer

constrangimento, somente quando há escolha é que o sujeito é livre.

Diferentemente das ciências naturais onde se admite princípios com bases e evidências apenas na experiência, com as leis morais é

preciso que existam bases a priori para que elas sejam necessárias “Com efeito, conceitos e juízos sobre nós mesmos e nossas ações e omissões

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não tem significado moral algum, se o conteúdo deles ser aprendido meramente a partir da experiência.”(KANT, 1994, p.59) . Os nossos

impulsos naturais para a bebida, o sexo, etc., não tem princípios na razão, tem seu fundamento e princípio apenas na experiência.

o que se tem é que se é forçosamente coerente quando se age por dever

Com a moral ocorre de maneira adversa, deve-se agir pelo dever mesmo que não tenhamos experiências empíricas para servir de

exemplo. É através dos imperativos que certas ações são permitidas, proibidas, necessárias ou desnecessárias moralmente. São obrigatórias.

Através disso Kant introduz o conceito de dever. Segundo Kant: “Obrigação é necessidade de uma ação livre sob um imperativo categórico da

razão”(KANT, 1994, p.65). Tudo que é contra o dever é chamado de transgressão.

Na ética o dever é em si mesmo um fim. O fim que é em si mesmo um dever, pertence a doutrina do Direito. A ética pelo contrário: Dever

pelo dever, “[...] uma vez que o auto-constrangimento de acordo com as leis (morais) pertence exclusivamente ao conceito da ética.”(KANT,

1994, p.225)

Para finalizar, agir em conformidade com o dever é um ato legal, de acordo com a lei civíl, é uma moralidade de ação. Agir pelo dever é

um princípio que da razão que o sujeito prescreve de forma absoluta como ele deve agir.

Posição de Puig

A consciência moral autônoma tem como principal característica o diálogo – dialógica – esse ponto a distância das posições éticas

absolutistas e relativistas, tendo a primeira um critério rígido de horizonte de orientação moral do sujeito, no outro extremo – relativista – tem por

princípio considerar a opinião momentânea e estritamente egoísta do sujeito em ralação a uma situação dada. Nenhuma das posições rapidamente

caracterizadas tem como princípio, núcleo ou parâmetro o diálogo, muito pelo contrário, ambas apontam o individualismo como referência

principal. Puig, por outro lado, sustenta que uma postura ética dialógica tem maior relevância para a solução de dilemas morais, pois ela garante

uma abertura maior de horizonte para a colocação de soluções e obriga todos os envolvidos uma tomada de posição.

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Segundo as duas posições colocadas anteriormente – relativistas e absolutistas – o conceito de autonomia moral e diálogo seriam

excludentes, isto é, anular-se-iam mutuamente. A posição que Puig adota não anula os dois conceitos, muito pelo contrário, atuam conjuntamente.

São conceitos constitutivos da consciência moral. Esses dois conceitos tem o papel de fortificar a personalidade moral, procurando uma

construção crítica dos “princípios, normas, valores e modos de ser”(PUIG, 1998,p.103).

Essa posição dialógica não conjuga um modo absoluto de agir, não prescreve o agir em todas as situações, ela busca a adoção de critérios

de uma análise crítica em determinada situação de conflito moral.

Conflitos morais são “situações limite”, situações não programadas nem previstas e que nenhum rigorismo ético/moral pode prever. A

exemplo, o pedido de uma mãe para abortar um feto, a eutanásia solicitada pela família ou pelo próprio paciente, nessas situações há um fato, um

conflito e consequentemente uma posição a ser avaliada – julgada – e questionada sobre a sua solução ou possíveis soluções. As posições éticas

aqui colocadas brevemente levam em conta um “esquematismo” que visam solucionar e prescrever a solução ética/moral de todos os problemas.

Enfim: “Trata-se, assim, de procedimentos funcionais de caráter universal que visam valores” (PUIG, 1998, p.103). Em Puig esse processo tem o

nome de “Procedimentos da consciência moral”, que de forma preliminar pode-se dizer que tem um funcionamento em três níveis: Juízo moral,

compreensão e auto-regulação.

O primeiro instrumento da consciência moral é o juízo moral. Esse juízo moral não diz respeito a virtude, a caridade, a benevolência,

conduta, etc. Esse juízo não aparece na vida cotidiana, ou situações prosaicas, mas aparece somente quando acontece uma situação difícil que

pede uma resolução de conflito complexa, tanto pessoal ou social. Enfim, situações onde os valores vigentes social ou pessoalmente entram em

conflito, situação que obriga uma tomada de postura e consciência que pressupõe uma indagação pessoal sobre o que é certo ou errado. Ele diz

como a coisa deveria SER e não como ela é:

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“Os juízos morais pretendem, pois, esclarecer e, caso seja possível, conciliar as controvérsias práticas. Para conseguir isso devem ser apresentadas razões que permitam justificar aquilo que é correto e aquilo que não o é. Mediante uma reflexão baseada em razões deve-se alcançar uma decisão imparcial.”(PUIG, 1998, p.104)

Dar razão a postura tomada é o ponto de partida da fundamentação de um critério objetivo de certo ou errado. É a adoção de uma opinião;

esse primeiro critério serve de orientação aos juízos morais. Esse princípio adotado para orientação do juízo tem um caráter primário sem muita

elaboração conceitual, mas demonstra um discernimento entre certo e errado122.

Em última análise, buscam fórmulas ou métodos de adoção que dêem subsídios para o agir adequado. O juízo está, em todos os casos,

vinculado diretamente ao critério e adoção dele (imperativo em Kant, moral católica, budistas, ateus, etc.). É o ponto de fundamentação última do

agir.

Já estabelecido o juízo, passamos a segunda etapa do procedimento da consciência moral, a dialogicidade. Segundo Puig esse conceito já

vem sendo desenvolvido por inúmeros autores, sendo o autor mais representativo Habermas. O filósofo Habermas ao invés de fundar sua ética

em um princípio racional de fundamentação última centrada no sujeito que pensa e age só – ele desloca o centro de referência ética para o

diálogo, sai do sujeito e entra o grupo de discussão, sai a postura única de agir e entra as inúmeras posições para adoção de uma unidade

ético/moral.

A postura solitária no trato com situações éticas é abandonada e adota-se uma postura dialógica. No quesito dos critérios há no conflito

uma infinidade de posturas e critérios de certo ou errado, somente pode-se dizer que uma postura é correta ou não se ela foi construída

cooperativamente – no diálogo – e mostrou-se eficaz para todos como critério na produção de juízos justos.

Retomamos o discorrido. O juízo moral é o princípio universal de reflexão, em um nível mais primário, a dialogicidade é o critério básico

– condição – para o princípio e adoção de um critério de validade. Dito de outra forma, só é possível o juízo se há a possibilidade do diálogo com

122 Segundo Puig “Estes critérios de juízo ou lógica de produção de juízo é o que Kant e as correntes neokantianas tetam formular e justificar.”(PUIG, 1998, p.103).

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as demais posições conflitantes. Passamos agora ao segundo movimento da consciência moral, a compreensão. O papel da compreensão é

reconhecer a particularidade de uma situação dada – concreta - e com todas as motivações e sentimentos envolvidos na resolução de um

problema ético.

A compreensão é análise de uma situação ou experiência, já que no âmbito da vida prática situações excepcionais de juízos morais, como

o conceito já demonstra, são excepcionais. A compreensão mostra a dependência da reflexão de situações contextuais – específicas -. É uma

concretização da universalidade a um dado juízo. Ela ajuda a razão moral (universal) e realizar aquilo que a situação exige. Ela traz o conceito –

ou expressão – saber de situação.

Puig da grande importância para compreensão – saber de situação – divergindo aqui muito das posições absolutistas e relativistas, fugindo

de um caráter apenas intelectualista, mas dando compreensão a uma dimensão mais constitutiva do sujeito. A compreensão de uma situação de

conflito – saber que ali existe um conflito – é um instrumento indispensável para reflexão moral.

Esse processo de compreensão – também o juízo – começa com um questionamento relacionado há um ponto de conflito, começa com

uma pergunta que coloca em cheque “a posição moral anterior”. É um fato que questiona a realidade. Essa atividade interrogativa é própria da

condição humana. Pode-se dizer que: “...a percepção de aspectos até então desconhecidos da realidade habitual, a leitura de uma obra ou o

impacto de uma imagem podem ser os suficiente para iniciar o processo”(PUIG, 1998, p.109).

Ela – compreensão – é um instrumento para a reflexão moral. É sempre necessário levarem consideração inúmeros fatores, históricos,

sociais, culturais, religiosos. A compreensão desses fatores ajuda na reflexão sobre os problemas éticos, exigindo uma capacidade de

particularizar e contextualizar a situação.

A tarefa está iniciada quando é colocada a pergunta inicial, não constitui um processo linear mas sim circular indo do universal para o

particular e novamente para o universal, dando assim uma nova significação para a realidade.

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A resposta ao problema só se resolve mediante uma análise dos diferentes pontos que configuram o problema político, religioso, cultural,

social. É um processo contínuo de renovação da realidade. A cada nova análise novos pontos são descobertos e reconfigurados.

Compreender a realidade significa (a partir de razões) abrir-se as opiniões alheias e supor que todos estejam abertos as suas “[...] isto é,

dar a conhecer suas opiniões e submeter-se mutuamente a crítica”(PUIG, 1998, p.111). O juízo moral e a compreensão crítica da realidade podem

e devem orientar a reflexão moral.

Pelo juízo moral avaliamos se uma situação ou comportamento é correto ou não, a compreensão traz, ou ajuda a compreender a

singularidade de determinada situação. O terceiro movimento diz respeito a capacidade de fazer aquilo que a situação exige. Essa capacidade é a

auto-regulação que ajuda o sujeito a regular a sua conduta, ele é o resultado da coerência entre juízo e ação, e contribui diretamente para a

formação do sujeito. A autorregulação constitui o ponto mais prático da moral.

Aqui é a coerência no agir, ou como Kant afirma, o caráter. Em tomar uma determinada resolução e seguir nela. Segundo Puig o papel da

educação moral está aqui, em fortificar a relação entre juízo e ação, cognitivo/reflexão em prática, transpassar essas dicotomias “[...] só pode ser

conseguido com instrumentos que vinculem as capacidades de julgamento e compreensão com as capacidades de ação e construção de formas de

vida concretas”(PUIG, 1998, p.113)

É a capacidade de gerir a sua própria conduta, de orientar-se por critérios morais, independente das pressões sociais, familiares e culturais.

A auto-regulação tem uma dupla estrutura de funcionamento, uma interna e outra externa. Por estrutura externa pode-se compreender aquilo que

os demais sujeitos podem perceber empiricamente na ação de um determinado sujeito. A coerência entre juízo e ação, se aquilo que é tomado

como certo é colocado em prática; segundo é a aquisição de hábitos morais, ou seja, de juízo, compreensão, diálogo, etc. Terceiro e último é a

formação do próprio sujeito. Formação do seu caráter.

Já a estrutura interna, são os procedimentos ou as condições que estão no interior do sujeito, que não é possível exteriorização. Essa

estrutura interna é tripartida. A primeira parte é a consciência do EU que se auto determina, é a certeza interna se si mesmo, que possibilita o

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diálogo interno do sujeito. Ela é “[...]um exercício de dialógico para consigo mesmo; neste sentido podemos dizer que a autorregulação é, em

último nível, de natureza dialógica”(PUIG, 1998,p.115).

O segundo elemento é o conhecimento de si e a crítica da realidade. É a capacidade de perceber o contexto de uma determinada situação.

É o conhecimento que o sujeito tem de si e da realidade, isso permite uma melhor compreensão e solução que a situação supõe. É o que guia à

auto-regulação e proporciona uma auto-avaliação. O primeiro são atitudes e comportamentos já assimilados; o segundo a observação e

comparação com os objetivos desejáveis.

O terceiro e último ponto é a avaliação dos resultados e o esforço empenhado na ação. É o processo que o sujeito faz consigo mesmo e

com os demais envolvidos, comparando com os possíveis outros resultados: “Isto é, aqui a avaliação é um convite ao reinício do processo de

trabalho consigo mesmo para chegar a um melhor nível de coerência ou a um modo de ser mais próximo ao que cada um deseja de si mesmo.”

(PUIG, 1998, p.117)

Percorremos então dessa foram os procedimentos da consciência moral. No início dessa seção dissemos que Puig não adota um

“esquematismo” para o desenvolvimento da consciência moral, embora pareça que a exposição colocou dessa forma. Ele adverte que esse

procedimento não se dá de maneira esquemática – juízo, compreensão, auto-regulação – mas que todo esse movimento é circular e todas as partes

se interpenetram. Diferenciando e distanciando em definitivo das posições absolutistas e relativistas.

Conclusão

Rouanet em um artigo sobre a ética Iluminista analisa a partir de três características principais: “[...] o cognitivismo, o individualismo, e o

universalismo.” (ROUANET, 1992, p.149)

Partindo da caracterização categórica de Rouanet podemos ver claramente a posição e como há discrepância entre a posição dos dois

autores tratados aqui. Puig não conjuga apenas de uma característica, o individualismo, os demais pontos constituem os pilares da ética desde

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então. O universalismo constitui o princípio básico da ética, é a pretensão de validade a ação realizada. O cognitivismo é a condição do sujeito

auto determina-se, de perceber a si mesmo como agente no mundo.

Puig percorre o caminho de Habermas substituindo o “eu ajo” pelo nós debatemos. Dessa forma podemos rapidamente caracterizar os

procedimentos morais de Puig como universalista, pois pré-supõe que qualquer sujeito em uma determinada situação irá agir, ou procurar agir de

determinada forma; dialógico, em todos os passos há uma necessidade de diálogo com todos os envolvidos em uma determinada situação, o

diálogo é a condição para resolução de um dilema moral. O sentimento, ou seja, capacidade de nos colocar no lugar do outro. Os sentimentos

geralmente são os que iniciam o processo de conflito moral. A auto-regulação que possibilita praticar a ação.

Vale lembrar que esse processo não acontece de forma linear e sim simultâneo, esse processo contribui para formação, exercita a

capacidade de lidar com problemas complexos. Enfim, faz do sujeito um ser autônomo.

Dessa forma Puig opõe-se radicalmente ao individualismo iluminista. Kant como um expoente de destaque do Iluminismo coloca muito

bem em seu texto “O que é Iluminismo”123 os pressupostos e as condições do sujeito, é aquele que auto determina-se, que legisla racionalmente

sobre os seus atos. O sujeito se determina, se constrói, se legisla.

Acredito que a posição radical de Kant pode ser remediada ou relida sem perder a referência a sua filosofia, por um viés mais sensitivo,

uma leitura moral pela via estética124. Embora na Crítica do Juízo Kant trate da questão do juízo sobre o belo e sobre a natureza ele deixa

transparecer literalmente a relação entre a sensibilidade para percepção da beleza e do sublime com a moralidade.

Por uma questão de espaço vou me eximir de entrar em detalhes sobre os tipos de juízo de gosto, os tipos de arte e outras definições que

estão presente na Crítica do Juízo, vou usar de uma simplificação didática e me remeter diretamente ao interesse que a beleza desperta no sujeito.

123 (KANT, 2009, p.9-18) 124 Autores pós kantianos trabalharam nesta perspectiva. Ver (Schiller 1963, p,99)

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Kant faz uma distinção clara de dois interesses que a arte pode despertar no sujeito; o interesse empírico e o interesse intelectual. O

interesse empírico é aquele interesse efetivo no objeto, desejo de posse. O interesse intelectual por outro lado é aquele que traz em si uma certa

reflexão, é um interesses reflexivo que na sua particularidade traz a idéia de uma unidade estrutural entre homem e natureza, “Esta prerrogativa

da beleza da natureza face à beleza da arte, de contudo despertar sozinha um interesse imediato, concorda com a apurada e sólida maneira de

pensar de todos os homens que cultivam o seu sentimento moral.” (KANT, 1995, p. 146).

A sensibilidade para a beleza – artística ou natural – é um aspecto que pode ser tomado como ponto de partida para uma aproximação

mais efetiva de Kant e Puig, já que pela via dialógica o autor alemão não oferece subsídios teóricos para essa releitura. A via estética é utilizada

por inúmeros autores pós-kantiano como possibilidade de ascender a novos sentimentos, de perceber o outro, da possibilidade de colocar-se no

lugar do outro. Acredito que talvez esse seja uma via a seguir para uma leitura contemporânea e atualizada de Kant.

Bibliografia

KANT,Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos.Lisboa: Edições 70, 2009.

KANT,Immanuel. Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 1994.

NOVAES,Adauto(Coord.)Ética.São Paulo:Companhia das Letras,1992.

PUIG,Josep Maria.A construção da personalidade moral.São Paulo: Ática, 1998.

SCHILLER, Friedrich.Cartas sobre a educação estética da humanidade.São Paulo: Herder,1963.

ZINGANO,Marco Antonio.Razão e história em Kant.São Paulo: Brasiliense, 1989.

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A FORMAÇÃO DA AUTOESTIMA AUTOESTIMA E EDUCAÇÃO - Na tiele Prochnau 125

A autoestima é uma palavra usada com freqüência nos meios de comunicação e na sociedade de forma geral, sendo banalizada pelo senso

comum. Mas a que se refere? A autoestima é definida como “a avaliação pessoal que um indivíduo faz de si mesmo, o senso de seu próprio valor

ou competência” (STRATTON & HAYES, 2002, p.24).

Para a análise comportamental, este termo refere-se a “estados corporais associados com eventos ambientais sociais ou físicos que os

desencadeiam”, ou seja, seus comportamentos são reforçados por outros ao longo de sua história (GUILHARDI, 2002, p.65, 78). Ou ainda, o

principal indicador de saúde mental segundo o National Advisory Mental Health Council (1996 apud REPPOLD, 2001).

A abordagem científica deste tema pode ser relacionada a cinco razões: a primeira é que a autoestima é um construto associado à

personalidade e por isso é mais complexo do que aparenta ser, a segunda razão é que “está implicada na vida cotidiana, já que se relaciona à

saúde mental ou bem-estar psicológico”, a terceira razão diz respeito a fenômenos mentais e sentimentos de inadequação e ansiedade, a quarta

razão refere-se à autoestima como conceito indispensável às ciências sociais, e a última razão é a sua relevância social na atualidade (GOBITTA

& GUZZO, 2002).

Quando se busca a autoestima elevada, através da avaliação de si mesmo e de seus comportamentos de maneira adequada, deve-se ter em

mente que muitas vezes é necessário voltar ao passado, já que a concepção de “ser” tem uma história, não sendo formada em um instante

125 Psicóloga CRP-08/15532 e pedagoga com pós-graduação em Gestão Empresarial com Estratégias de Recursos Humanos. Docente em cursos técnicos da Escola

Estadual Dario Vellozo.

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(BRANDEN, 1999). Na verdade, desde a condição fetal, cada pessoa está sujeita a receber tanto mensagens positivas e afetivas, quanto

mensagens negativas que interferem no futuro desenvolvimento da criança (VOLI, 1998).

Durante a gravidez e por algum tempo após o nascimento, a criança é um ser que depende dos outros para a satisfação de suas

necessidades básicas. A reação que os pais ou demais responsáveis demonstrarão a esta criança implicará em mensagens que serão recebidas pela

criança e interiorizadas, deste modo, quando as mensagens forem negativas, a criança terá os alicerces de sua segurança e autoconceito abalados

(VOLI, 1998).

Embora as crianças não possam articular um conceito de valor próprio até aproximadamente a idade de oito anos, elas demonstram em

seus comportamentos que possuem o mesmo. Entretanto, em crianças jovens, a auto-estima – o julgamento que fazemos acerca de nosso próprio

valor – não se baseia numa avaliação realista de habilidades ou traços de personalidade. Na verdade, as crianças entre quatro e sete anos

geralmente superestimam suas habilidades. Em primeiro lugar, elas ainda não têm habilidades cognitivas e sociais para se compararem

adequadamente com os outros. Além disso, embora as crianças jovens possam fazer julgamentos sobre sua competência em diversas atividades,

elas ainda não são capazes de estimar sua importância e elas tendem a aceitar os juízos dos adultos, os quais com freqüência lhe dão um retorno

positivo e acrítico”.(PAPALIA, 2000, p. 218)

Estudos realizados indicam que a utilização da vergonha e da culpa por educadores – sejam eles pais ou professores – é o principal motivo

da “desmotivação e renúncia à própria autenticidade e auto-estima de crianças”, podendo acarretar interrupção ou atraso parcial ou total do

amadurecimento da mesma. Isto se reflete em cada criança de formas diferentes, dependendo de cada caso (VOLI, 1998, p.15,52).

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As chamadas “atitudes emocionais negativas” englobam além da vergonha e da culpa, outros comportamentos como falta de atenção e de

contatos afetivos abertos e incondicionais. Deste modo, muitas crianças, já chegam à escola apresentando baixa autoestima a qual tende a ser

reforçada nesta instituição devido a sua estrutura (VOLI, 1998).

Em 1984 realizou-se pesquisa nos Estados Unidos que comprovou que a tendência a repetir comportamentos infantis na fase adulta ocorre

em pessoas cuja autoestima não foi valorizada na infância e que, portanto, tiveram sua maturidade retardada pela necessidade de sobrevivência

ou defesa contra situações do meio (VOLI, 1998). A autoestima tende à estabilidade ao longo do ciclo vital, porém, no início da adolescência os

indivíduos continuam sendo susceptíveis à maior inconstância dos sentimentos sobre si mesmos, sendo que a correspondência entre autoestima,

rendimento escolar e aprovação social são comuns a todos os grupos étnicos e culturais (REPPOLD, 2001).

De acordo com Voli (1998), existem cinco componentes básicos da autoestima que contribuem para a formação da personalidade do

indivíduo. A segurança é o primeiro componente e é considerado o pressuposto básico da autoestima, parte da premissa de que uma pessoa

segura de si sente-se segura para agir e assim alcançar resultados.

O autoconceito é o segundo componente e refere-se à forma como a pessoa vê a si mesma e começa a delinear-se desde o nascimento, é

influenciada pela forma como a criança é percebida e tratada pelas pessoas que estão à sua volta, além dos “fatores vivenciais, psíquicos e

ambientais de cada um”. O terceiro componente é denominado de sentimento de pertença ou integração e implica em sentir-se à vontade e

satisfeito com as pessoas, integrado ao grupo social. A finalidade ou motivação que impulsiona ações é o quarto componente e o último é a

competência que significa que a pessoa deve reconhecer o que já aprendeu e progrediu, tendo consciência de seu próprio valor e importância e

permitindo-se sentir motivado e responsável para buscar o que deseja no futuro (VOLI, 1998, p.77-97).

Um ponto a ressaltar é que reforçando-se qualquer um destes componentes automaticamente se reforça os outros, já que cada um deles é

interdependente dos demais. Voli (1998) afirma também que ao invés de insistir nos pontos fracos, a medida mais eficaz é identificar e reforçar

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os componentes mais fortes. Também o reforço da “globalidade positiva do indivíduo” valoriza a auto-estima e contribui para que esta pessoa

torne-se mais receptiva em relação às mensagens positivas circulantes.

Diferença entre Autoestima Baixa e Elevada

Cada pessoa traz consigo um sentimento acerca de si mesmo que afeta todos os aspectos de sua vida, tanto as suas ações, capacidades e

inclusive na flexibilidade com que são encaradas as adversidades a que se está exposto. Esta visão mais íntima não é influenciada pelo

tratamento, conceito e admiração que a família e amigos dispensam ao indivíduo, ou seus bens materiais e condições sócio-econômicas, cirurgias

estéticas, casamento ou outros, uma vez que todos estes itens fazem com que haja um bem-estar temporário acerca de si mesmo e em situações

particulares, porém este bem-estar não é a autoestima. Da mesma forma, a projeção de segurança que venha a iludir a sociedade pode não

condizer com o sentimento interno do indivíduo (BRANDEN, 1999).

Ter uma autoestima elevada implica em ter uma imagem constante das suas capacidades e da sua distinção como pessoa, elas “têm maior

probabilidade para assumir papéis ativos em grupos sociais e efetivamente expressam as suas visões” (COOPERSMITH, 1967 apud GOBITTA

& GUZZO, 2002). Pessoas com autoestima elevada são capazes de assumir responsabilidades para alcançar o que desejam e não esperam que os

outros façam isto por elas (BRANDEN, 1999). São capazes de assumir seus comportamentos, bem como as conseqüências dos mesmos sem

culpa, verificando as soluções que podem ser adotadas (VOLI, 1998).

Essas pessoas apresentam maior qualidade nas relações sociais, caracterizada pela benevolência, respeito, dignidade e confiabilidade em

maior grau, são mais sinceras e abertas quanto aos seus pensamentos e sentimentos. Não tem medo de assumir o que são realmente, nem

valorizam a opinião dos outros em detrimento de sua autoestima e procuram relações saudáveis, contrastando com pessoas de autoestima baixa e

despertando, por vezes, a inveja ou hostilidade alheia (BRANDEN, 1999).

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O indivíduo com baixa autoestima apresenta tendência a renunciar a muitas oportunidades que aparecem em sua vida e tem medo de ser

aceito e apreciado pelo que realmente é, fechando-se da possibilidade de colaborar com o grupo social. Por medo de ser objeto de críticas e

julgamentos o mecanismo de defesa do indivíduo controla a atuação e as emoções, impedindo que essa pessoa peça ajuda, considerando este ato

como um rebaixamento. (VOLI, 1998).

A falta de compromisso com a própria vida faz com que estas pessoas optem por repassar a culpa para outros ou sentir-se vítimas (VOLI,

1998). Do mesmo modo, Branden (1999) sustenta que ao assumir responsabilidades sobre assuntos que não estão ao controle do indivíduo, ele

não satisfaz suas expectativas, sendo necessário que cada qual seja responsável por seus atos e não sobre as quais não tem controle, como por

exemplo, o comportamento alheio.

A manutenção da autoestima exige a observância de alguns pontos, tais como a avaliação correta dos próprios comportamentos com base

em padrões e julgamentos pessoais e não através do que os outros acreditam e repassam como sendo verdades absolutas; a adoção de atitudes

ativas diante da vida; e o apoio à autoestima alheia como fortificadora da própria autoestima. Neste último ponto observa-se que o

relacionamento com o outro deve ser baseado na visão do valor que o indivíduo atribui àquela pessoa, já que é possível falar dos pontos positivos

e negativos de forma realista, sem intimidá-la, mas sim estimulando-a para o crescimento pessoal (BRANDEN, 1999).

Branden (1999) resume o que é necessário para que a autoestima seja elevada em duas palavras: Viver Conscientemente, que significa ser

responsável pela própria percepção da ação em que se está envolvido e enfocar a experiência individual com atitudes que tornem irrelevantes os

conceitos de aprovação ou desaprovação, ou seja, exercer a autoconfiança e o auto-respeito. Quanto maior a auto-estima de uma pessoa, melhor

preparada para lidar com as adversidades da vida ela estará (COOPERSMITH, 1967 apud GOBITTA & GUZZO, 2002).

CONCLUSÃO

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A autoestima mais do que um conceito é um constructo que se forma ainda durante a infância e que pode ser influenciado pelas

atitudes daqueles que convivem com a pessoa em situações cotidianas e através de posturas nem sempre conscientes. Este constructo ao ser

construído em suas vivências determina uma visão de si mesmo e também uma postura com o mundo em que este indivíduo está inserido

norteando suas relações com os demais e suas ações em sociedade.

Cabe não apenas aos pais ou professores, enquanto indivíduos isolados promover condições para o desenvolvimento de uma autoestima

sadia, mas também a todos os educadores enquanto agentes sociais em interação com a criança, entendida aqui como indivíduo em formação e

construção de personalidade e seu conceito acerca de si mesmo.

BIBLIOGRAFIA

BRANDEN, N. Auto-Estima: como aprender a gostar de si mesmo. 34.ed.; São Paulo: Saraiva, 1999.

GUILHARDI, H. J. Auto-Estima, Autoconfiança e Responsabilidade. In: BRANDÃO, M. Z. S.; CONTE, F. C. S.; MEZZAROBA, S. M.

B. Comportamento Humano: tudo (ou quase tudo) que você precisa saber para viver melhor. 1.ed.; Santo André: ESETec, 2002.

GOBITTA, M.; GUZZO, R. S. L. Estudo Inicial do Inventário de Auto-Estima (SEI) – Forma A. Psicologia Reflexão e Crítica, Porto

Alegre, v. 15, n.1, 2002.

PAPALIA, D. C.; OLDS, S. W. Desenvolvimento Humano. 7.ed.; Porto Alegre: Loyola, 1998.

REPPOLD, C. T. Estilo Parental Percebido e Adaptação Psicológica de Adolescentes Adotados. 2001. Dissertação (Mestrado em

Psicologia do Desenvolvimento) – Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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VOLI, F. A Auto-Estima do Professor: manual de reflexão e ação pedagógica. São Paulo, Loyola, 1998.

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DEMISSÃO OU ASSUNÇÃO DA EXISTÊNCIA: UMA QUESTÃO MOR AL EM SIMONE DE BEAUVOIR - Márcia Regina Viana 126

RESUMO

O trabalho objetiva a compreensão dos conceitos de assunção e demissão existencial na condição original do sexo feminino. Foi

escolhida esta condição original como principal objeto de investigação por um interesse particular na questão da diferenciação sexual e pela

própria história da filósofa em apresentar tal problemática como objeto central de reflexão em sua obra. Buscou-se compreender a liberdade

pensada por Simone de Beauvoir em seus movimentos ontológicos, os quais fundamentam os conceitos principais analisados, que são a demissão

e a assunção da existência.

Palavras-chave: liberdade, existência, demissão existencial, assunção existencial, intersubjetividade.

Introdução

126 Pós-doutoranda PNPD/CAPES - UNIVERSIDADE DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO - [email protected]

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O presente estudo debruçou-se sobre a questão da diferença de realização existencial observada entre os sexos, cuja problemática está

infiltrada no comportamento social de modo bastante peculiar, fato que faz com que nem sempre seja possível visualizar sua real abrangência.

Às vezes se percebe alguma reserva em trazer à baila esta questão por parecer temática ultrapassada, cuja superação já tenha sido resolvida (!).

A diferença sexual foi objeto de reflexão de Simone de Beauvoir em Le Deuxiéme sexe (1949), obra que representa um importante marco,

tanto no reconhecimento do âmbito desta diferença, quanto na discussão e investigação de sua incidência. Nesta obra, De Beauvoir mostra que o

conceito de Eterno Feminino não apresenta bojo próprio por não encontrar fundamentação em si mesmo. Trata-se de conceito fabricado pela

noção de hierarquia entre os sexos que acabou por se perpetuar ao longo da história da humanidade.

A história do segundo sexo

Le Deuxiéme sexe denuncia a situação de objeto vivenciada pela mulher. Mas sua complexidade vai além da análise da situação feminina.

A partir do minucioso estudo que a filósofa empenha acerca desta situação em especial, é possível vislumbrar um tratado ontológico sobre o

sujeito, seja homem ou mulher, e daí concluir que a situação denunciada de objeto, obviamente não se observa apenas na mulher. O fato de um

indivíduo se constituir sujeito ou objeto em uma relação intersubjetiva é também uma questão de escolha individual.

Segundo o existencialismo beauvoireano, tanto o homem quanto a mulher são existentes que buscam sua realização a partir da condição

original de liberdade e que por isso – por serem originalmente livres - podem escolher entre assumir ou demitir-se de sua liberdade existencial.

Não é a diferença sexual o elemento que define a realização desta liberdade ao longo da trajetória de cada um. Porém, é fato notório que o

homem construiu sua supremacia em cima da noção elaborada de superioridade masculina, uma vez que desde os primórdios do pensamento

filosófico, Aristóteles já afirmava que “a fêmea é fêmea em virtude de certa carência de qualidades”. Com afirmações desta monta, proferidas

por representantes da tradição da filosofia ocidental, não foi difícil perpetuar a noção de inferioridade da mulher.

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De acordo com o estudo da obra de De Beauvoir, a incompletude da realização feminina decorre de duas razões principais.

Primeiramente, notamos a construção ao longo dos tempos, do conceito de supremacia masculina. Em segundo lugar e como resultado deste

conceito de homem superior, surge em paralelo a idéia de uma alteridade feminina absoluta, cuja constituição é alimentada também pela

permissividade da mulher em conservar-se o Outro na relação entre os sexos, já que para ser o Um, o existente há que despender o trabalho

ontológico necessário para constituir-se sujeito soberano. Tal trabalho requer do existente empenho para transcender o fato dado e constituir-se

sempre novo, levando este indivíduo a superar a inércia da realidade dada. Portanto, o empenho em transcender o dado do mundo ou não, é uma

escolha individual que se fundamenta, segundo o existencialismo beauvoireano, na própria condição humana de liberdade.

Liberdade existencial

A qualquer ser humano é dada a escolha de assumir sua liberdade original de sujeito soberano ou demitir-se de sua responsabilidade

existencial e assim, acomodar-se em ser objeto de resolução de outras liberdades. A não exclusividade feminina em protagonizar uma situação

de alteridade, isto é, aquela em que o indivíduo não é sujeito de sua situação, é mostrada por Simone de Beauvoir em diversos momentos de sua

obra, principalmente nos momentos em que a filósofa analisa a situação feminina. Ainda que nestes momentos Beauvoir exiba o objetivo de

evidenciar a situação da mulher, acaba por demonstrar que a atitude de demitir-se da liberdade ou responsabilidade existencial de constituir-se

sujeito é uma escolha que pode ser exercida por qualquer existente, homem ou mulher. Beauvoir enfatiza que o fato de subjugar o outro à eterna

situação de alteridade caracteriza também uma atitude de demissão existencial, já que, segundo seu pensamento, é a liberdade do outro que

permite o movimento do sujeito de confirmação de sua própria liberdade.

O trabalho do ser

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O trabalho ontológico do indivíduo em constituir-se subjetividade autêntica é a escolha que cada indivíduo tem de realizar entre escolher

fazer-se livre - assumir seu caráter existencial de sujeito soberano, ou então demitir-se dessa característica de liberdade e submeter-se à

passividade da alteridade. Tal trabalho ontológico é assim chamado por representar o empenho do existente em desvelar-se subjetividade livre

em meio à existência comum. Na condição de existente o sujeito desvela o dado do mundo e nesse desvelamento, revela sua possibilidade

ontológica, uma vez que esta possibilidade repousa em ambos os movimentos: o movimento de desvelar-se e a possibilidade de desvelamento

oferecida pelo mundo dado.

Como se vê, a demissão ou assunção existencial não são características exclusivas da relação entre os sexos. Nesse estudo evidencia-se

que a origem de tal problemática reside na condição original de liberdade que todo existente traz ao surgir no mundo dado e que isto o

impulsiona a escolher entre assumir ou demitir-se de existir livremente. Nesse particular, é conveniente lembrar que a opressão é pensada por

Beauvoir como sendo uma das expressões de demissão existencial. Em sua filosofia, são observados dois pilares fundamentais de sustentação:

um positivo, que é a assunção da liberdade e um negativo, que é a demissão desta condição de ser livre. A trajetória humana constitui-se como

resultado da dialética íntima entre estas duas escolhas que o ser pode realizar: constituir-se um sujeito livre ou demitir-se dessa liberdade. O ser é

quando é livre para ser; porém, quando escolhe não ser, demite-se da existência, mas continua sendo alguma coisa.

O ser humano se completa na sua relação com o mundo no momento em que o desvela, portanto pensá-lo inserido numa situação

existencial é tentar pensá-lo em uma amplitude mais próxima de sua realidade; é pensá-lo em sua ambígua situação de subjetividade soberana e

solitária em meio ao mundo dado. Em sua condição de liberdade em que surge no mundo, na qual o ser margeia sua constituição nos limites das

possibilidades oferecidas por ele (o mundo), sua escolha sempre se fundará no ambíguo traço existente entre o dado e o constituído por si, entre a

possibilidade de demitir-se ou assumir sua condição de sujeito livre. A ambiguidade pensada por Beauvoir assenta justamente nessa situação

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existencial que todo sujeito experimenta, que é a de estar entre todos os existentes que constituem sua realidade e ao mesmo tempo ser um

existente solitário.

Simone de Beauvoir não reconheceu a hierarquia entre os sexos como sendo natural, que se trate de um elemento que acompanhe e

determine a trajetória feminina por fazer parte de sua condição humana. O único fator constituinte da condição humana é a liberdade de existir,

cuja característica principal é a possibilidade de constituir-se a partir do dado do mundo. Assim, não é legítimo pensar que a mulher é

naturalmente inferior ou menos importante do que o homem. Ser mulher é uma condição humana, e essa condição originalmente não surge a

partir de uma hierarquia de valores. Logo, supor que ser mulher é não ser homem, e por isso, de algum modo é ser menos humano, é construir

uma crença ilegítima e inautêntica.

Conclusão

Estudar a filosofia de Simone de Beauvoir implicou necessariamente em tomar seus romances como material indispensável para o

conhecimento de seu pensamento. Sua obra apresenta-se em grande parte na forma de romances, denominados por ela novelas metafísicas.

Beauvoir reproduzia situações da existência em suas estórias, elevando sua narrativa à ordem de obra filosófica, em virtude da autenticidade que

as situações existenciais traziam em si e da preocupação em narrar diálogos onde predominava a problematização da existência. Esta

característica ao mesmo tempo em que facilitou sua leitura, por outro lado incitou a dúvida sobre a validade de se utilizar romances como fonte

bibliográfica para pesquisa em filosofia. Mas durante esse estudo, observou-se que os elementos de uma narrativa constituem um ponto de

partida muito importante para o entendimento de conceitos filosóficos. O fato de ser uma narrativa ficcional não diminuiu em nada seu mérito,

ao contrário, facilitou o entendimento dos conceitos por meio de situações criadas para esse fim. A seriedade e profundidade necessárias à

elaboração de conceitos filosóficos, não ficaram em nada comprometidas. Segundo a própria Beauvoir, tanto a ficção como o pensamento

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filosófico, não são a realidade em si. É no seio do mundo que o sujeito pensa o mundo, e para que isso aconteça, é preciso recriar esta realidade

para que a discussão sobre a existência se dê em cena própria.

A novela ou romance metafísico mostra-se como a existência contada, narrada ficticiamente, mas de modo realístico. Assistimos as

personagens abordarem suas angústias, darem sentido às suas vidas, engajarem-se em projetos, manterem relações intersubjetivas. E todos esses

elementos são utilizados como o cenário de discussão da filosofia existencial.

A liberdade ontológica, segundo Beauvoir, é dependente de dois movimentos intencionais que são, em primeiro lugar, a alegria original

do ser que o lança no movimento de desvelamento de si e do dado do mundo e, em segundo lugar, a negação do ser em se identificar com o dado.

É entre esses dois momentos intencionais que reside a escolha ontológica do indivíduo em constituir-se livre para criar ou apenas repetir o

dado. A escolha de constituir-se livre implica um amplo envolvimento com a existência, incluindo principalmente o reconhecimento da

liberdade do outro. Ser um sujeito livre implica em reconhecer no outro um outro sujeito livre. É esta reciprocidade ontológica que Beauvoir

acredita ser a melhor forma de relação entre os sujeitos, onde o Um reconhece no Outro a categoria de sujeito soberano também. Durante a

relação suas situações de soberania de sujeito e a passividade de ser objeto se intercalam, permitindo a Um e a Outro, constituírem seus

momentos de intencionalidade, onde a liberdade de escolha em transcender o dado do mundo é a base de seu movimento ontológico.

Bibliografia

DE BEAUVOIR, Simone. L’Invitée. Paris: Gallimard, 1943.

_____. Littérature et métaphysique, in Les Temps Modernes, n.7, avril, Paris, pp.1153-1163,1946.

_____. Pour une morale de l’ambigüité. Paris: Gallimard, 1947.

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_____. Le Deuxième Sexe, vol 1 Les faits et les mythes. Paris: Gallimard, 1949.

_____. Le Deuxième Sexe, vol 2 L’Expérience vécue. Paris: Gallimard, 1949.

_____. Les Mandarins. Paris: Gallimard, 1954.

_____. Mémoires d’une jeune fille rangée. Paris: Gallimard, 1958.

_____. Tout compte fait. Paris: Gallimard, 1972.

_____. Quand prime le spirituel. Paris: Gallimard, 1980.

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DEMONSTRAÇÕES NO PRIMEIRO LIVRO DOS ANALÍTICOS ANTE RIORES DE ARISTÓTELES – Elton Luiz Rasch 127

O objetivo principal do presente artigo é mostrar parte da estrutura de prova por detrás da teoria geral de argumentos dedutivamente

válidos, encontrada nos Analíticos Anteriores.

Não há um consenso sobre a ordem cronológica da composição do Organon. Striker, por exemplo, sugere que “the idea of combining the

general treatise on deductive argument [analíticos anteriores] with the books on scientific demonstrations [analíticos posteriores] was an

afterthought, albeit a plausible one”128. Já para Smith, “… the doctrines of the Prior were developed after those in the Posterior had taken at least

initial shape”129.

No centro da teoria de Aristóteles, nos Analíticos Anteriores, está a noção de sullogismos, a qual chamarei apenas de dedução. O termo

“silogismo” é evitado, pois o modo com que Aristóteles o define – “uma locução em que, dadas certas proposições, algo distinto delas resulta

necessariamente, pela simples presença das proposições dadas”130 – faz com que se aplique a uma gama muito ampla de argumentos, não apenas

ao silogismo como é entendido contemporaneamente131, embora Aristóteles trate também desse tipo de argumento nos capítulos 4-22.

127 Bolsista de iniciação científica do CNPq, sob orientação do professor Dr. Frank Thomas Sautter. UFSM. 128 Striker, pg. XI 129 Smith, pg. XIII 130 Aristóteles, pg. 11. 131 Hoje em dia, conhecemos o silogismo mais como um argumento composto por duas premissas e uma conclusão, cada qual sendo uma proposição categórica,

totalizando três termos, onde um termo aparece duas vezes nas premissas (termo médio) e não aparece na conclusão.

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Aristóteles dá ao mundo uma grande inovação: a introdução de letras para termos – embora já se utilizasse isso na geometria da época.

Com isso, consegue mostrar que a validade de sua teoria depende da relação entre seus termos, e não do conteúdo do argumento, ou mesmo de

entidades extralingüísticas. Em outras palavras: depende da forma do argumento.

Segundo sua própria teoria de proposições132, todas as sentenças declarativas relacionam um sujeito a um predicado. De acordo com

Geach133, a diferença entre o sujeito e o predicado consiste em: (1) o predicado é negável, e (2) o predicado possui complexidade sintática.

Aristóteles passa a usar relações entre termos que combinam predicação e quantidade, e acaba por estabelecer os quatro tipos de

proposições que reconhecemos ainda hoje na silogística: a Universal Afirmativa (A) – por ex., “Todo homem é mortal” - , a Universal Negativa

(E) – por ex., “Nenhum mal é prazeroso” - , a Particular Afirmativa (I) – por ex., “Algum homem é mortal” - , e a Particular Negativa (O) – por

ex., “Algum mal não é prazeroso”.

O sistema através do qual Aristóteles estuda deduções, se compõe exclusivamente desses tipos de proposições, e é possível notar que cada

argumento é composto por duas premissas e uma conclusão, sendo que nas proposições das premissas sempre há um termo em comum. Ele o

chama de termo médio (meson), enquanto que os outros termos são chamados da dedução são chamados extremos (akron).

Esse termo em comum fornece a Aristóteles três maneiras de combinar premissas em deduções, e o resultado dessa organização

ele chama de figuras (schêmata). Quando o termo médio é sujeito em uma premissa e predicado em outra, ele enquadra o argumento na primeira

figura. Quando é predicado nas premissas, é um argumento da segunda figura, e quando o médio é sujeito nas premissas, ele o encaixa na terceira

figura. Há ainda uma quarta figura134 onde o termo médio aparece como predicado na primeira premissa e sujeito na segunda.

132 Essa teoria pode ser encontrada com mais detalhes em Sobre a Interpretação. 133 Geach, pg 45, 46. 134 Esta figura foi introduzida por Teofrasto, sucessor de Aristóteles na escola do peripatéticos

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Aristóteles faz um exame de argumentos que contêm essas configurações e nos diz em quais casos podemos e em quais não podemos tirar

conclusões. Nos casos em que podemos, ele nos diz como podemos alcançar conclusões a partir de premissas dedutivamente, e nos casos em que

não podemos, ele nos fornece exemplos de termos concretos que servem como contra-exemplos e provam a impossibilidade de extrair conclusões

necessárias.

No capítulo 4, Aristóteles anuncia o primeiro modo válido da primeira figura (BARBARA): “Se A se predica de todo B, e B de todo C

necessariamente que A se diz de todo C”135. Naturalmente há uma pequena deformidade no modo como estamos acostumados a ouvir estas

proposições nos dias de hoje136. E logo a seguir, anuncia o segundo modo válido (CELARENT): “se A não se diz de nenhum B, e se B se diz de

todo C, resulta que A não se diz de nenhum C”137. Na primeira figura, temos os únicos exemplos do que Aristóteles entendia como uma dedução

perfeita: “Quando três termos estão em relação de forma a que o menor está contido totalmente no termo médio, e o termo médio contido, ou não

contido totalmente no termo maior, então há necessariamente um silogismo perfeito”138,139. Na verdade, temos em BARBARA e CELARENT as

duas únicas deduções desta figura em que há conclusão do tipo universal, em um caso uma universal afirmativa em outro uma universal negativa.

Acrescido a isso o fato do termo menor estar contido no médio, e o médio no termo maior, a conclusão parece realmente receber grande

evidência. Aristóteles se justificava assim: “Chamo silogismo perfeito ao silogismo que não requer mais do que o que está compreendido nele,

para que a necessidade da conclusão seja evidente”140.

135 Aristóteles, pg. 17. 136 Podemos ler isto como “Se todo B é A, e todo C é B, necessariamente todo C é A”. 137 Idem. 138 Idem. 139 Por termo menor, Aristóteles compreendia o termo sujeito da conclusão, e por termo maior o termo predicado da conclusão. 140 Op. cit., pg. 11.

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Nas demonstrações que servem para rejeitar a possibilidade de dedução, Aristóteles lança mão de um par de triplas de termos, para serem

combinados em premissas, na forma da dedução. A partir disso é possível extrair uma conclusão do tipo universal afirmativa que, como as

premissas, é verdadeira. Com a outra tripla Aristóteles também obtém premissas verdadeiras, contudo a conclusão é do tipo universal negativa.

Segundo as leis de relações entre proposições, quando uma proposição do tipo universal afirmativa é verdadeira, a proposição que lhe

corresponde na forma de universal negativa e particular negativa é falsa141. As mesmas regras aplicam-se para a tripla que resulta na proposição

universal negativa: quando ela é verdadeira, as correspondentes, universal afirmativa e particular afirmativa, são falsas. Juntando todos os tipos

de proposições anulados, ele elimina a necessidade da dedução em tal forma.

Aristóteles fornece exemplos de triplas já na primeira figura, no capítulo quatro, para provar que não é possível realizar uma dedução

quando há uma premissa universal afirmativa seguida por uma premissa universal negativa: “Como termos de predicação universal tomemos, por

exemplo, animal, homem, cavalo; e de predicação não-universal animal, homem, pedra” 142. Obtemos então o resultado da primeira tripla:

Premissa 1 (tipo A): todo homem é animal

Premissa 2 (tipo E): nenhum cavalo é homem

Conclusão (tipo A): todo cavalo é animal

Evidentemente tanto as premissas quanto a conclusão são verdadeiras. Sendo “todo cavalo é animal” verdadeiro, nem “nenhum cavalo é

animal” e nem “algum cavalo não é animal” pode ser verdadeiro, estando essas conclusões descartadas para este modo da primeira figura.

Como resultado da segunda tripla, obtemos:

141 Aristóteles utiliza o quadrado de oposições apenas implicitamente. 142 Aristóteles, pg. 18.

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Premissa 1 (tipo A): todo homem é animal

Premissa 2 (tipo E): nenhuma pedra é homem

Conclusão (tipo E): nenhuma pedra é animal

Também nesse caso premissas e conclusão são verdadeiras. Assim sendo, se “nenhuma pedra é animal” é verdadeira, é falso que “alguma

pedra é animal” e também que “toda pedra é animal”. Estes dois tipos de proposições, acrescidos dos outros dois tipos mencionados no parágrafo

anterior, resultam na não-necessidade de haver uma dedução nessa figura com premissas do tipo A e E, nessa ordem. Esse mecanismo é utilizado

em todas as figuras – embora o método sofra algumas pequenas alterações em alguns modos –, e constitui um refinado método para acelerar a

prova de deduções que não podem ser alcançadas de modo necessário. É possível descartar várias combinações de tipos de proposições com

pares de triplas ao invés de testar as combinações uma de cada vez, o que garante uma economia de tempo e trabalho.

Por outro lado, as provas dos modos válidos de outras figuras se dão de dois modos. Aristóteles se utiliza em grande medida das

conversões, a fim de reduzir a dedução em questão um dos modos da primeira figura (conhecidos na mnemotécnica por BARBARA,

CELARENT, DARII ou FERIO), e, nos casos em que é necessário, da redução ao absurdo. Kneale143 aponta para isto: “Na sua origem a doutrina

da redução está relacionada com a ideia de que só os silogismos da primeira figura são perfeitos em si próprios, isto é, evidentemente conclusivos

sem argumentos suplementares”.

Para exemplificar o método de redução a figuras através de conversões, reduziremos CAMESTRERS da segunda figura, para a primeira

figura, especificamente para o modo CELARENT, que possui um elevado grau de evidência segundo Aristóteles.

Partindo de CAMESTRES temos:

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Premissa 1 (tipo A): Todo P é M

Premissa 2 (tipo E): Nenhum S é M

Conclusão (tipo E): Nenhum S é P

Aristóteles utiliza a segunda premissa e aplica conversão simples. Nessa conversão, simplesmente ocorre a troca de posição na

proposição, entre os termos sujeito e predicado. Assim, a premissa 2 passa de “Nenhum S é M” para “Nenhum M é S”. Aristóteles justifica a

validade dessa conversão já no capítulo 2: “Assim, na predicamentação pura universal os termos da premissa negativa são necessariamente

convertíveis, por exemplo, se nenhum prazer é um bem, nenhum bem é um prazer”144.

Até o momento nossa dedução está organizada assim:

Premissa 1 (tipo A): Todo P é M

Premissa 2 (tipo E): Nenhum M é S

Conclusão (tipo E): Nenhum S é P

Podemos agora re-arranjar a ordem das premissas, em um processo que conhecemos hoje em dia como transposição de premissas,

e obtemos:

143 Kneale, pg. 78. 144 Aristóteles, pg. 12.

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Premissa 2 (tipo E): Nenhum M é S

Premissa 1 (tipo A): Todo P é M

Conclusão (tipo E): Nenhum S é P

Agora basta que apliquemos outra vez uma conversão na conclusão para obtermos exatamente o modo CELARENT que é

evidente por si mesmo segundo Aristóteles:

Premissa 1 (tipo E): Nenhum M é S

Premissa 2 (tipo A): Todo P é M

Conclusão (tipo E): Nenhum P é S

Porém, a conversão simples não dá conta de todos os casos. Aristóteles conta ainda com outra conversão: a conversão por

acidente, que consiste em partir de uma premissa universal afirmativa para sua correspondente particular afirmativa, e em seguida mudar-lhe a

posição dos termos. Por exemplo, de “Todo S é P”, podemos através da conversão por acidente chegar em “Algum P é S”. Esta conversão

também é explicada já no capítulo 2: “Em contrapartida, na premissa afirmativa, a conversão, sendo embora necessária, não o é universalmente,

mas só particularmente, por exemplo, se todo prazer é um bem, algum bem é um prazer”145.

Estas duas conversões juntamente com a operação de transposição de premissas fornecem a Aristóteles a possibilidade de provar

quase todos as deduções válidas, excetuando-se apenas alguns poucos casos. Para estes, há também um modo de prova por exposição (Ekthesis),

145 Aristóteles, pg. 12

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utilizado no modo BOCARDO, da terceira figura. Smith146 sugere que esse procedimento é utilizado por Aristóteles para evitar a utilização de

métodos que envolvam redução ao absurdo. Embora todas as provas das deduções sejam possíveis através de redução ao absurdo, Aristóteles não

era um grande entusiasta desse método, e evitava-o ao máximo. Da Silva147 salienta que a crítica Aristotélica às demonstrações por absurdo, que

ele considerava não causais, isto é, não explicativas – sabe-se que algo é verdadeiro sem saber por que é verdadeiro teve grande impacto não

apenas na construção de seu método formal de prova, mas também em toda a sua filosofia. Contudo, tanto as provas por exposição quanto a

redução ao absurdo que Aristóteles utiliza serão assunto para um artigo posterior.

BIBLIOGRAFIA

ARISTÓTELES. Organon. Tradução do grego e notas de Pinharanda GOMES. Lisboa: Guimarães Editores, 1987.

DA SILVA, Jairo José. Filosofias da Matemática. São Paulo: UNESP, 2007.

GEACH, Peter Thomas. Logic Matters. Berkeley e Los Angeles: University Of California Press, 1972.

KNEALE, William; KNEALE, Martha. O Desenvolvimento da Lógica. Tradução da 1ª Edição; Oxford: The Clarendon Press,1962.

MORTARI. Cezar A., Introdução à Lógica. .ed. São Paulo: Unesp, 2001.

SMITH, Robin. Aristotle Prior Analytics. Indianapolis: Hackett, 1989.

STRIKER, Gisela. Aristotle Prior Analytics Book I. New York: Oxford University Press, 2009.

146 Smith, pg. XXIV. 147 Da Silva, pg 52.

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A METAFÍSICA IMANENTE DE ARTHUR SCHOPENHAUER - Fern ando de Sá Moreira 148

O filósofo alemão Arthur Schopenhauer desenvolveu seu pensamento na primeira metade do século XIX, um período marcado pela crise

dos sistemas metafísicos. Filósofos como Hume, Kant e outros desenvolveram ideias explicitamente contrárias aos intentos e possibilidade de

toda a metafísica. O projeto filosófico de Schopenhauer, no entanto, é marcado pela tentativa de fundar um sistema metafísico válido, sem

configurar-se como um retorno a um dogmatismo pré-crítico, mas sobretudo como uma tentativa de “pensar a filosofia de Kant até o fim”

(SCHOPENHAUER, 2003, p. 120-121). Uma característica marcante da filosofia schopenhaueriana é a tentativa de estabelecer uma metafísica

imanente, com a qual possa dar um passo além do “ceticismo” kantiano, redefinindo o próprio conceito de metafísica.

Mesmo quando jovem, Schopenhauer buscava o desenvolvimento de um pensamento próprio e discordava com a determinação da

impossibilidade da metafísica imposta por Kant. Embora a tese de doutorado do filósofo, Sobre a raiz quádrupla do princípio de razão suficiente,

desenvolva uma teoria do conhecimento próxima aos moldes kantianos, nos manuscritos contemporâneos à redação e publicação da tese (1813) é

possível encontrar os primeiros traços do sistema metafísico que seria desenvolvido por Schopenhauer: “Entre minhas mãos, ou melhor dizendo,

dentro de meu espírito, vai tomando corpo uma obra, uma filosofia onde a ética e a metafísica serão uma só coisa [...]” (SCHOPENHAUER,

1999, p. 33). Posteriormente, em 1819, a inseparabilidade entre os ramos do pensamento schopenhaueriano é reafirmada no prefácio à primeira

edição de sua principal obra: “O que deve ser comunicado por ele [a obra O mundo como vontade e representação] é um pensamento único”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 19). O autor compreende sua filosofia como um sistema orgânico de pensamentos, no qual nenhuma parte da

doutrina pode ser separada das demais. No mesmo sentido, em 1851, Schopenhauer sublinha a importância da metafísica para seu sistema ao

148 Mestrando em Filosofia pela Unioeste - [email protected]

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afirmar no §21 do opúsculo “Sobre a filosofia e seu método”, publicado em Parerga e Paralipomena, que os campos de atuação próprios da

filosofia são a teoria do conhecimento e a metafísica, que por sua vez divide-se em “metafísica da natureza”, “metafísica do belo” e “metafísica

dos costumes”. A quadripartição dos temas próprios da filosofia coincidem, não por acaso, com as temáticas dos quatro livros de O mundo como

vontade e representação.

Mas afinal, o que é metafísica para Schopenhauer? Uma passagem particularmente esclarecedora sobre o projeto e concepção de

metafísica de Schopenhauer é o §14 do opúsculo “Fragmentos para a história da filosofia”, intitulado “Algumas considerações sobre minha

própria filosofia”, também publicado em Parerga e Paralipomena:

Quase nenhum sistema filosófico é tão simples e composto de tão poucos elementos como o meu, podendo, por isso, ser facilmente visto

e apreendido com um olhar. Isso repousa em última análise na plena unidade e consonância de seus pensamentos fundamentais e é um indício

favorável de sua verdade, já que esta está ligada à simplicidade […] Poder-se-ia chamar meu sistema de dogmatismo imanente, pois, embora seus

princípios doutrinais sejam de fato dogmáticos, não ultrapassam todavia o mundo dado na experiência, mas apenas esclarecem o que ele é, já que

o decompõe em suas partes componentes. A saber, o antigo dogmatismo derrubado por Kant [...] é transcendente, uma vez que ultrapassa o

mundo para explicá-lo por meio de algo outro: torna-o consequência de uma razão, a partir da qual o deduz. Minha filosofia, em contrapartida,

começa com a afirmação de que só existem razões e consequências no mundo e desde que este esteja pressuposto. (SCHOPENHAUER, 2003, p.

118)

Haveriam, segundo essa concepção, duas formas de metafísica (transcendente e imanente) e, como consequência, duas formas de

dogmatismo. A metafísica transcendente é considerada pejorativamente como uma forma de dogmatismo, pois construiria um sistema de

pensamentos que pretensamente explicaria o mundo a partir de elementos extrínsecos ao mundo. Dogmatismo neste sentido significa a tentativa

acrítica e inválida de fundamentar o mundo para além dos limites da experiência e conhecimento possíveis. Pejorativamente dogmáticos seriam

também os sistemas que, embora não pretendam-se metafísicos, fundam-se em aplicações inválidas do princípio de razão suficiente, como o

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materialismo lockiano e o idealismo fichtiano (cf. SCHOPENHAUER, 2005, p. 55-62, 69-18). A segunda forma de metafísica é a metafísica

imanente, que, por sua vez, estabelece um dogmatismo imanente. Segundo o pensador, essa segunda forma de dogmatismo é crítica, pois

justificaria seus juízos, respeitando os limites da experiência possível.

O problema central da teoria schopenhaueriana passa a ser o seguinte: como é possível que uma experiência seja metafísica?

Kant, no §1 de Prolegômenos a toda a metafísica futura, determinou que a experiência não pode constituir fonte para a metafísica (cf.

KANT, 1988, p. 23-24). Em razão desta proibição, a metafísica não poderia pretender-se como um conhecimento crítico, já que todo o domínio

dos saberes puros e a priori (além da experiência) só são considerados válidos como formas e condições de possibilidade da própria experiência,

válidos apenas para a experiência, jamais em qualquer domínio que se pretenda além da experiência. Desta forma, o projeto de uma metafísica

imanente seria para Kant um contrassenso.

Schopenhauer, todavia, aponta como erro de Kant o fato de ter coincidido os domínios da experiência e da física. Segundo a doutrina

schopenhaueriana, a metafísica pode fundar-se na experiência desde que esta não seja uma experiência física. O domínio daquilo que pode ser

denominado de física é, para Schopenhauer, exclusivamente as representações submetidas ao princípio de razão.

Toda ciência, como saber guiado pelo princípio de razão, atua na física por meio de dois procedimentos básicos: a morfologia e a

etiologia. A morfologia é o procedimento de análise da forma dos fenômenos, enquanto a etiologia é o procedimento de pesquisa pelas causas dos

fenômenos. Não obstante, nenhum dos dois modos de operar da ciência pode fornecer a essência íntima dos objetos que manipula, apenas pode

fornecer as formas de condições de aparecimento do fenômeno. Em última análise, toda a ciência não pode mais que catalogar “forças naturais”

como forma de explicação das representações. Toda força natural fornecida pela ciência, segundo o pensador, não é mais que a delimitação de

uma qualitas occulta, um resíduo desconhecido de um fenômeno quantificado e formalmente determinado; a essência mesma da representação

permaneceria sempre como um X desconhecido. Tampouco uma filosofia transcendental, uma teoria das condições gerais de toda representação,

pode determinar a essência dos objetos da representação, pois apenas pode determinar a forma geral de toda a experiência possível.

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O ponto ao qual nos conduz Schopenhauer em Sobre a raiz quádrupla do princípio de razão suficiente e no primeiro livro de O mundo

como vontade e representação é, portanto, semelhante ao projeto kantiano. Não obstante, Schopenhauer aponta um novo caminho para a

metafísica a partir do momento em que indica a possibilidade de experiências alheias ao princípio de razão. Tais experiências podem ser obtidas

em três momentos centrais: (1) na experiência do corpo próprio e sua identidade com a vontade empírica, chave de interpretação da metafísica da

natureza; (2) na contemplação estética, intuição fundamental da metafísica do belo; e (3) na vivência da compaixão, fundamento da metafísica

dos costumes. Em todos os três casos, o conhecimento que se obtém do mundo não está submetido ao princípio de razão e, portanto, é

propriamente metafísico. Nenhum dos três casos pode ser objeto próprio da ciência, pois estão além do domínio da física e de toda possibilidade

de aplicação da etiologia e morfologia, mas, embora não possam ser explanáveis cientificamente, são plenamente compreensíveis

metafisicamente.

Em todo o caso, a afirmação explicita da possibilidade da metafísica não é uma afirmação da possibilidade do conhecimento da coisa em

si. Para Schopenhauer, a condição indispensável para o conhecimento da coisa em si seria a completa destituição e oposição à toda a forma da

representação (cf. SCHOPENHAUER, 2005, p. 171). A coisa em si é, para o filósofo alemão, completamente alheia à representação, desde o

princípio de razão até a relação geral entre sujeito e objeto. O conhecimento estético, por exemplo, é alheio ao princípio de razão, mas não é

alheio à forma mais geral de toda a representação, a relação sujeito-objeto. Os objetos da contemplação estética (as Ideias), neste sentido,

constituiriam a mediação entre a coisa em si e os objetos da representação intuitiva, mas não poderiam ser considerados como a própria coisa em

si.

Para o filósofo alemão, a relação entre corpo e vontade pode fornecer uma aproximação ainda mais útil com a coisa em si. Na medida em

que se percebe que o corpo próprio, um objeto material, é a vontade empírica, objeto do sentido interno, vista por outro ponto de vista, tornada

visível por meio do principium individuationis, pode-se usar legitimamente esse conhecimento como chave de interpretação de todo o mundo

material, pode-se interpretar a própria coisa em si como “vontade”. Trata-se de um conhecimento experimental que ultrapassa o princípio de

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razão e identifica sujeito e objeto, além de fornecer a essência íntima de um objeto material específico. A metafísica imanente de Schopenhauer,

portanto, identifica na vontade o fenômeno mais perfeito da coisa em si, pelo qual pode-se interpretar todos os demais fenômenos (cf.

SCHOPENHAUER, 2005, p. 169). Schopenhauer não pretende, todavia, que a vontade seja tomada em última instância como a própria coisa em

si, a essência absoluta do mundo. A coisa em si permanece, em última instância, desconhecida (cf. SCHOPENHAUER, 1950, p. 209-210 e p.

214).

A vantagem que Schopenhauer pretende obter com o seu sistema metafísica em relação às doutrinas anteriores não é o conhecimento

efetivo e total do mundo, mas justamente dar um passo além da doutrina kantiana, colocando-se entre a “onisciência” dos sistemas dogmáticos

pré-críticos e o “desespero” cético da filosofia kantiana (cf. SCHOPENHAUER, 2005, p. 538-539). A vontade, neste sentido, forneceria a ligação

entre todo o sistema schopenhaueriano, entre a física e a metafísica, entre ciência e filosofia, constituindo-o como um organismo. Sem a

representação não é possível pensar a vontade e sem a vontade não se tem mais do que um conhecimento superficial da representação. Os

diversos ramos da metafísica (belo, natureza e costumes) seriam, em última análise, apenas diferentes pontos de vista de um mesmo objeto, a

vontade e suas objetivações, ou seja, de um único e mesmo mundo, que por sua vez se descortina em duas realidades distintas e complementares

(física e metafísica).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KANT, Immanuel. Prolegómenos a toda a metafísica futura. Tradução de A. Mourão. Lisboa: Edições 70, 1988.

SCHOPENHAUER, Arthur. Escritos inéditos de juventud: Sentencias y aforismos II. Seleção, prólogo e versão casteliana de R. R.

Aramayo. Valencia: Pre-textos, 1999.

. Fragmentos para a história da filosofia. Tradução, apresentação e notas de M. L. Cacciola. São Paulo: Iluminuras, 2003.

. O mundo como vontade e representação. Tradução de J. Barboza. São Paulo: Unesp, 2005.

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. Obras. Tradução de E. Ovejero y Maury. Buenos Aires: El Ateneo, 1950.

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A FILOSOFIA DO CONCRETO EM GABRIEL MARCEL - José An dré de Azevedo 149

INTRODUÇÃO

Ao longo da tradição filosófica, o conceito de experiência foi relegado a segundo plano pela corrente racionalista-idealista e exagerado

como fonte de compreensão da realidade pelos pensadores empiristas. Diante de tais posicionamentos, Gabriel Marcel (1889-1973) traz à luz um

posicionamento sem precedentes: a função da filosofia é devolver à experiência humana o seu peso ontológico, isto é, conceber a realidade a

partir da categoria de participação no ser mediante a encarnação, dado central metafísico (cf. MARCEL, 2003, pp. 13-14).

Nessa perspectiva, Marcel se torna o precursor de uma Filosofia Concreta, ou seja, um nível de pensamento que, em oposição a uma

Filosofia Oficial, passa a questionar o âmbito da experiência humana em sua concretude mais radical. O pensamento de Marcel se inscreve

mediante uma interrogação ontológica a partir do dado encarnacional. Esse dado, como vimos, enquanto âmbito central metafísico, se transfigura

como uma abordagem em torno do mistério, tema marceliano decisivo que voltaremos logo adiante. Marcel nos convida a uma postura filosófica

interessantíssima: desde o questionamento central da existência (Quem sou eu?) chega-se à sua idéia original e pétrea: sou existência encarnada

(Encarnação). Essa existência encarnada participa do mistério do ser (Ontologia) e encontra maneiras de vivenciar o ser (Participação). Na

vivência ontológica encarnada do ser – por meio da participação, que se revela em posturas de recolhimento, fidelidade, amor, fé, compromisso,

engajamento e esperança – percebemos o outro não como coisa, objeto ou um ente em terceira pessoa (ele), mas como um outro em segunda

149 Aluno do Mestrado em Filosofia na UNIOESTE - [email protected]

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pessoa (tu); na percepção de que o outro é a possibilidade de auto-revelação, chega-se, necessariamente, à questão do Totalmente Outro, do

transcendente (Existência e Transcendência).

Assim, acreditamos encontrar no pensador francês mais do que ideias sobre a existência a partir da encarnação e/ou experiência; nele

percebe-se um convite para uma postura radical diante do ser, uma filosofia de busca, onde nada está pronto ou acabado, mas tudo está por se

fazer.

DESENVOLVIMENTO

Lendo as obras de Gabriel Marcel, ficamos impressionados com sua clareza em afirmar a função e a tarefa da Filosofia: restituir à

experiência humana seu peso ontológico. Assim escreve ele em seu Diário Metafísico, no dia 08 de novembro de 1932:

Uma reflexão profunda sobre a (...) noção de problema nos leva a perguntar-nos se não há algo contraditório no fato de apresentar o

problema do ser. A filosofia como metacrítica orientada até uma metaproblemática. Necessidade de restituir à experiência humana seu peso

ontológico. (MARCEL, 2003, p. 96).

Leitor criticamente atento da tradição metafísica, Marcel projeta um novo labor philosophicus, cujo intento é, como vimos, restituir à

experiência sua consistência ontológica ou, se preferirmos, pensar a concretude da experiência no que de mais original possui: a existência não

pode ser objetivada/objetualizada.

Partindo da ideia fundamental de Marcel de que a existência – e, por conseguinte, a experiência – não pode ser objetivada, isto é, não

pode ser pensada em termos de problema, mas de mistério, como é possível – neste caso – seguir falando de Filosofia? Não cairíamos, sem nos

apercebermos, numa espécie de mística? Haveria inteligibilidade e apreensão além do conhecimento objetivo? Seríamos capazes de discursar

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sobre algo que não se possa apreender? E é justamente aqui que se encontra uma contribuição original de Marcel: a tradição filosófica, de certa

maneira, não foi capaz de realizar este salto para o metaproblemático, para o mistério, permanecendo restrita apenas a uma abordagem do

problemático; deve, então, o filósofo almejar uma filosofia autêntica, a qual ele chamou de Filosofia Concreta. Marcel discorre a proposta de

uma Filosofia Concreta em várias obras, mas o principal texto de referência intitula-se Esboço de uma Filosofia Concreta, ensaio incluído na

obra Du refus à l’invocation.

Diferentemente das demais ciências, a Filosofia se caracteriza por se problematizar ela mesma como ciência; quer dizer: enquanto que

não exista um problema social que seja a Sociologia em si, há um problema filosófico que seja a Filosofia. Assim, buscar aclarar a natureza da

Filosofia é, por conseguinte, compreender o que significa existir. Nesta perspectiva, Marcel começa seu Esboço de uma Filosofia Concreta nos

advertindo: “Os pensamentos que vou desenvolver aqui não são somente difíceis, senão, estritamente falando, quase inexpressíveis” (MARCEL,

1964, p. 81)

Marcel, ante a pergunta O que é filosofar concretamente? (cf. MARCEL, 1964, p. 85), nos adverte, de imediato, que filosofar a partir do

concreto não se trata de uma nova forma de empirismo. Fazer filosofia do concreto é pensar a existência hic et nunc. Ora, como se dá isso?

Marcel explicitará esse novo gênero de pensamento em vias negativas, isto é, mostrará que a Filosofia Concreta não é, em hipótese

alguma, a Filosofia Oficial (cf. MARCEL, 1964, p. 81), aquela que considera a ideia de uma forma hipostasiada, como um ser que evolui mesmo

sem a atuação humana. Sob esse aspecto, já nos encontramos bem longe, aqui, de todo idealismo e, de algum modo, de certa história da Filosofia

(aclare-se aqui que o filósofo parisiense não é contra a história da filosofia; o filósofo deve conhecê-la, mas não ficar preso a ela, pois a história

da filosofia pressupõe a filosofia e não o contrário). A Filosofia do Concreto é aquela, então, que se realiza nas antípodas da Filosofia Oficial, ou

seja, não se arvora em repetir problemas formulados e busca um elemento que, infelizmente, a tradição filosófica relegou ao segundo plano: o

assombro.

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Filosofar concretamente não é senão sermos presas do real, quer dizer, reconhecer a riqueza sempre inovadora da existência, o espanto de

que ser é estarmos sendo – como diria Fernando Pessoa –, é vivenciarmos duros golpes do real, que nos enfrenta e não nos deixa indiferentes. A

Filosofia Oficial é o espírito habitual, isto é, se faz surda à apreensão do real, enquanto que a Filosofia Concreta é o espírito metafísico, sempre

atencioso aos golpes da realidade. Como afirma o filósofo: “De minha parte, estou inclinado a negar a qualidade propriamente filosófica de

qualquer trabalho que não se deixa tocar pelo que eu chamo a mordedura do real” (MARCEL, 1964, p. 101). Sob esse pano de fundo, a autêntica

filosofia é aquela que se deixa aprisionar pelo real, aquela que mostra as marcas dos dentes que tem deixado a realidade; se assim não for, não se

trata de verdadeira filosofia, mas de retórica, um simples jogo de linguagem que nada diz.

Marcel é um autor coerente em suas análises sobre o contraponto entre Filosofia Oficial e Filosofia Concreta. Como teria afirmado, ao

longo da tradição muitos pensadores se deixaram morder pelo real, mas caíram num grande erro: desvitalizaram o assombro e fossilizaram a

concretude do real mediante a construção de sistemas, vindo a absolutizar o aparato dialético do filosofar. Sistematizar – para o pensador francês

– é encapsular o universo e a realidade em fórmulas dispostas em ordem lógica (cf. MARCEL, 1964, p. 95). Noutras palavras, é outorgar ao

filósofo uma patente, tornando-o certo inventor de ideias que regeriam o mundo. Ora, dizia, o que podemos vislumbrar é que “cada vez mais

claramente a filosofia me tem aparecido como uma busca” (MARCEL, 1964, p. 98). Na condição de um pensamento autêntico enquanto busca

constante, a Filosofia Concreta é uma filosofia do pensamento pensante e não do pensamento pensado (cf. MARCEL, 1964, p. 24).

Desse ponto de vista, digo que não pode haver, em minha opinião, filosofia concreta sem uma tensão continuamente renovada e criadora

entre o eu e as profundezas do ser no qual e pelo qual nós somos ou, mesmo sem pensar, da maneira mais rigorosa possível, ser ela exercida

sobre a experiência mais intensamente vivida. (MARCEL, 1964, p. 102)

Assim, a Filosofia Concreta é o reconhecimento da transcendência do ser, transcendência que é, por sua vez, fonte de toda vida; é ela a

participação no ser, o esforço por captar a experiência. Ora, pois, qual o estatuto ontológico da noção marceliana de experiência, aqui em curso?

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Já assinalamos que o pensamento pensante de Marcel possui uma clara intenção: restituir à experiência humana seu peso ontológico. Aos

olhos de Marcel, a experiência não se restringe a uma redução aos fenômenos sensistas, à pura empiria. Se assim o fosse, o pensador francês se

tornaria apenas um empirista e, segundo o mesmo, o empirismo gerou uma série de malefícios à compreensão da humanidade (cf. MARCEL,

1964, p. 92). Se imaginarmos que a noção de experiência em Marcel se reduz à experiência empírica, jamais poderemos ascender ao seu

pensamento. O empirismo reduziu a experiência mesma ao plano do “puramente empírico”. A reflexão, por outro lado, somente se contraporá à

experiência caso venha se reduzir pura e simplesmente aos dados empíricos, se recair numa espécie de sensualismo ingênuo. De certa maneira,

quando Marcel alude o retorno à experiência, não está se insinuando, aqui, nenhuma contraposição entre a experiência e a reflexão (como a

Filosofia Oficial costuma realizar), mas, ao contrário: a experiência é mais experiência quanto mais reflexiva for. Como o filósofo mesmo

explica:

Se eu representar a experiência como um registro passivo de impressões, não conseguirei entender como a reflexão pode ser adicionada.

Por outro lado, se considerarmos que, na sua complexidade, haja recursos até mesmo dialéticos, perceberemos que não conseguiremos parar de

pensar e tornar-se que temos o direito de dizer o que é mais reflexivo naquilo que é mais uma experiência. (MARCEL, 1951, p. 97)

Desta maneira, torna-se evidente que concluamos que a Filosofia é, para a experiência, o esforço de reconhecer-se, é certa maneira de

apreensão (cf. MARCEL, 1964, p. 27). O ser humano vive no e pelo ser e o pensamento não é, senão, um modo de viver. Diante, então, deste

pensamento que não se fecha, Marcel propõe-nos o binômio mistério/problema.

A única forma de que a metafísica e a filosofia sejam possíveis é reconhecendo a absoluta impossibilidade do saber objetivo para ascender

ao ser. A metafísica autêntica – aquela que restitui o peso ontológico à experiência humana – deve responder à aspiração do ser que nos

impulsiona a reconhecê-lo, adentrando num âmbito primário, enigmático, misterioso, inacessível ao pensamento objetivista. Os mais desavisados

poderiam aqui advertir: “Então devemos abandonar esta realidade e adentrarmos em algo ideal. E como fica a questão da experiência?”. Ora, a

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verdadeira metafísica, a Filosofia Concreta, somente é possível se o humano, longe de desapegar-se do mundo e habitar neste “mundo ideal”,

compreender a experiência como uma participação imediata. Tal participação se efetua a partir do que Marcel designou como reflexão segunda.

Para o filósofo parisiense, o pensamento, que nos possibilita uma aproximação ao ser, se “estrutura” em duas vertentes: reflexão primeira

e reflexão segunda (cf. RICOEUR, 1996, p. 48). As pesquisas de Marcel partem de uma crítica à reflexão primeira pelo fato de que nela se

percebe uma elaboração fragmentária e precária da realidade, ou seja, uma análise parcial e objetivante da existência, vendo-a como coisa. A

reflexão segunda – constitutiva do momento propriamente filosófico –, porém, é recuperadora, é aquela que se pretende a retificar a reflexão

primeira, no nível dos conceitos e das palavras. Ela trabalha nos centros de irredutibilidade, os quais permitem as relações fundadoras da

existência. É ela quem capta as experiências originárias – por meio da reflexão primeira – e se torna um pensamento exploratório (neo-

socratismo), mergulhando no mistério.

Ora, tudo isso somente se torna possível de se enunciar porque somos seres encarnados, possuímos um corpo, ou melhor, somos um

corpo. Assim, a existência é o ponto de partida e o ponto de referência da filosofia de Gabriel Marcel. Em oposição ao pensamento racionalista-

idealista, objetivante e abstrato, somos existência, real e concreta, inserida no mundo. A existência, então, é, necessariamente, uma existência

encarnada. Sendo um ser encarnado, nossa condição de ser existente nos é revelada de modo imediato e inconfundível como encarnação, isto é,

enquanto consciência mais gratuita de mim no meu corpo. Tomemos, então, as palavras do próprio Marcel:

A encarnação – dado central da Metafísica. A encarnação, situação de um ser que aparece a si ligado a um corpo. Um dado não

transparente a si mesmo: oposição ao cogito. Deste corpo não posso dizer que é meu corpo, nem que não é, nem que é para mim (objeto). A

oposição entre sujeito e objeto é transcendida. Mas, ao contrário, se parto desta oposição tratada como fundamental, não haverá mais truque

lógico para reunir esta experiência; inevitavelmente terá passado ou foi recusada, o que é a mesma coisa. Não se deve objetar que esta

experiência apresenta um caráter contingente; na verdade toda a investigação metafísica requer um ponto de partida deste gênero. Só pode partir

de uma situação que reflete sobre si mesma seu poder compreender-se. Examinar se a encarnação é um fato; não me parece que o seja. É um

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dado a partir do qual um fato é possível (o que não é verdade a partir do cogito). É uma situação fundamental que, a rigor, não pode ser

dominada, rotulada e analisada. É precisamente esta impossibilidade que eu afirmo quando declaro, confusamente, que sou meu corpo, ou seja,

que não posso conceber como um termo distinto do meu corpo, que se mostra numa relação determinável. Como já disse, no momento em que o

corpo é tratado como objeto da ciência, eu me exilo no infinito (MARCEL, 2003, pp. 13-14).

A encarnação – dado central metafísico – é, pois, a mediação entre o eu e o mundo e os outros. As coisas no mundo não são, em primeiro

lugar, objetos do espírito, mas como que o prolongamento do próprio corpo. A presença orgânico-psíquica do corpo é o centro de referência de

toda órbita existencial ou, numa analogia, o campo magnético em que gravitam todas as coisas. Isso implica que não somos autônomos, não

estamos encerrados num eterno solipsismo, mas, sim, somos permeáveis às demais coisas. Viver é estar aberto a uma realidade com a qual

entramos em uma espécie de comunhão. Nesses termos, a encarnação é a participação no mistério.

O ser encarnado é a condição de acesso ao real e referência central da reflexão segunda. A concepção de corpo como ser encarnado nos

faz sair do idealismo e “cair” no mundo da presença, da ecceidade e da existência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, cremos que mais do que “ideias” para estabelecermos uma Filosofia Concreta, o profícuo diálogo com Gabriel Marcel

nos propicia um profundo processo de metanoia filosófica: a necessidade urgente de resgatarmos a concretude da experiência, buscando restituir

ao humano seu peso ontológico.

REFERÊNCIAS

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XVº SIMPÓSIO DE FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA DA UNIOESTE – ISSN 21762066

XVº SIMPÓSIO DE FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA DA UNIOESTE 25 A 28 DE OUTUBRO DE 2010 – TOLEDO - PR Página 185

GRASSI, M. El hombre como ser encarnado y la “filosofia concreta” de Gabriel Marcel. Universidad Católica Argentina. Dissertação

(Tesis de Licenciatura). 2008. 217 p.

MARCEL, G. Du refus à l’invocation. Paris: Gallimard, 1964.

MARCEL, G. Journal Métaphysique. Paris: Gallimard, 1927.

MARCEL, G. Le mystère de l’être I. Paris: Aubier, 1951.

MARCEL, G. Ser y tener. Madrid: Caparrós, 2003.

RICOEUR, P. Leituras: A região dos filósofos. São Paulo: Loyola, 1996.

Page 186: XV Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea - Livro de Textos Completos

XVº SIMPÓSIO DE FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA DA UNIOESTE – ISSN 21762066

XVº SIMPÓSIO DE FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA DA UNIOESTE 25 A 28 DE OUTUBRO DE 2010 – TOLEDO - PR Página 186

FOUCAULT: O QUADRO E O LUGAR DO SUJEITO - Rafael Fe rnando Hack 150

Ao tratar da obra “Las Meninas” de Velásquez, em “As palavras e as coisas”, Foucault compõe uma “alegoria” sobre o modo pelo qual a

representação se manifesta no período clássico. A disposição e a caracterização das personagens, bem como o cenário que é retratado pelo pintor

espanhol, são analisados pelo pensador francês sob o prisma da epistémê clássica. Entretanto, a “era da representação” apresenta-nos outro

quadro, cuja obra de Velásquez seria análoga, e, cuja expressão e singularidade foram determinantes para a constituição do saber no período em

questão.

Pretendemos deste modo, observar qual o lugar do sujeito no interior do quadro das empiricidades no classicismo, buscando situá-lo e

caracterizá-lo diante da “era da representação”, tomando como referência a obra “As palavras e as coisas” de Michel Foucault. Para tanto,

inicialmente caracterizaremos a epistémê clássico para somente então situarmos nossa questão.

Na renascença o saber residia nas relações de comparação onde as semelhanças eram evidenciadas. Saber era, portanto, aproximar e

verificar as similitudes que poderiam ser estabelecidas. São quatro as figuras do saber preponderantes neste período: convenientia, aemulatio,

analogia e simpatia.

No classicismo, diferentemente, a comparação se dá, exclusivamente, segundo duas formas: ordem e medida. As grandezas contínuas ou

descontínuas podem ser medidas somente por unidades resultantes da divisão do todo. As unidades podem ser “[...] de convenção, ou

‘empréstimo’ (para as grandezas contínuas) e outras (para as multiplicidades ou grandezas descontínuas) são as unidades da aritmética.”

(FOUCAULT, 2007, p. 72).

150 Doutorando – UFSCar - [email protected]

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A comparação de grandezas ou de multiplicidades implica na utilização, em cada um dos casos, de unidades que sejam comuns e

condizentes com a análise. Portanto, a comparação efetuada pela medida dirige-se a relações aritméticas da igualdade e da diferença. Deste

modo, “a medida permite analisar o semelhante segundo a forma calculável da identidade e da diferença.” (FOUCAULT, 2007, p. 73).

A ordem, ao contrário da medida, não se refere a unidades. A ordenação se efetua segundo uma hierarquia de complexidade. Partindo-se

das naturezas mais simples, os termos subsequentes estão dispostos segundo um grau de diferenciação crescente que denotam sua complexidade.

Deste modo, estabelecem-se séries através da diferenciação dos elementos, onde o primeiro termo deixa-se intuir por si mesmo.

Juntamente com o projeto de uma mensuração e de uma ordenação, o saber no período barroco, vê-se submetido a um novo regime de

signos. As quatro similitudes, na renascença, determinavam como as coisas se assemelhavam. Contudo, não nos diziam onde a semelhança está,

nem como a vemos e nem como reconhecê-la. No renascimento havia um sistema de marcas que incidia sobre as coisas definindo a relações de

similitudes. Estas marcas consistiam em uma semelhança paralela àquela cuja relação estava sendo verificada. Assim, Foucault (2007, p. 40) nos

afirma:

[...] O signo da simpatia [reside] na analogia, o da analogia na emulação, o da emulação na conveniência, que por sua vez, para ser

reconhecida, requer a marca da simpatia... A assinalação e o que ela designa são exatamente da mesma natureza; apenas a lei da distribuição a

que obedecem é diferente; a repartição é a mesma.

O sistema geral dos signos no classicismo, por sua vez, passa a obedecer três regras fundamentais: a certeza da ligação (um signo pode ser

certo ou provável); o tipo da ligação (o signo pode ou não estar vinculado àquilo que designa); e, a origem da ligação (o signo pode ser natural ou

de convenção).

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No classicismo só existirá signo na medida em que “[...] se acha conhecida a possibilidade de uma relação de substituição entre dois

elementos já conhecidos [...]” (FOUCAULT, 2007, p. 81). Portanto, o signo passa a se constituir, exclusivamente, por uma ação do

conhecimento e, é no interior do conhecimento que ele instituirá sua certeza ou probabilidade.

O signo é no período clássico uma figura de dois termos que “[...] encerra duas ideias, uma da coisa que representa; e outra da coisa

representada; e sua natureza consiste em excitar a primeira pela segunda.” (FOUCAULT, 2007, p. 88).

O signo como figura binária é a combinação entre um significante e um significado. O significante é a ideia que representa o significado.

Embora distinto do significado ele encerra em si a ideia deste. É isto que torna, por exemplo, um símbolo gráfico qualquer, detentor da sua ideia

de símbolo representativo com sua forma própria, diferente daquilo que representa e capaz de representar algo diferente de si.

A reestruturação dos signos juntamente com o desenvolvimento de uma saber pautado sobre a ordenação e a mensuração foram

determinantes para a reorganização do saber na “era da representação”.

O que se pode observar durante o período clássico é a predominância da máthêsis, (a ciência universal da ordem e da medida), como

campo de referência à constituição do saber. Ela pauta-se sob dois aspectos fundamentais: as relações entre os seres passam a ser pensadas

através da forma da ordem e da medida; e, todas as coisas, mesmo as não mensuráveis, podem ser ordenadas.

A episteme clássica encontra-se intimamente atrelada a um conhecimento da ordem. As naturezas simples são ordenadas pela máthêsis

que utiliza a álgebra como método. Já, as naturezas complexas, que se apresentam como representações gerais que nos são dadas pela

experiência, recorrem a um sistema de signos que constituem uma taxinomia. Todavia, máthêsis e taxinomia possuem uma relação de implicação

recíproca.

A taxinomia traz consigo certo continuum das coisas que, através de uma potência da imaginação, permite fazer com que na ordem das

classificações haja uma presença contínua de elementos entre representações descontínuas. Assim sendo, segundo Foucault (2007, p. 101):

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Nas duas extremidades da episteme clássica, tem-se portanto, uma máthêsis como ciência da ordem calculável e uma gênese como análise

da constituição das ordens a partir de sequencias empíricas. De um lado, utilizam-se os símbolos das operações possíveis das identidades e

diferenças; de outro, analisam-se as marcas progressivamente depositadas pela semelhanças das coisas e as recorrências da imaginação.

Entre a máthêsis e a gênese encontram-se os signos, fiéis depositários de todas as representações possíveis. Presentes em todos os âmbitos

do conhecimento; e, além disso, figuras indispensáveis para que haja conhecimento.

O cálculo e a gênese possibilitam o afloramento de outro saber: o quadro. Nele tudo aquilo que é disposto pela representação aparece

como signo. As representações passam a ser colocadas em um conjunto, em espaços distintos com características assinaláveis. Deste modo,

instaura-se a vizinhança, a proximidade, o afastamento e o parentesco daquilo que se deseja analisar. Delineia-se, assim, o quadro das diferenças

e identidades. (FOUCAULT, 2007, p. 101).

É no espaço do quadro que encontramos a história natural, a teoria do valor e da moeda; e, a gramática geral. Três ciências dos signos que

se dirigem, segundo Foucault (2007, p. 101) respectivamente:

[...] aos caracteres que articulam a continuidade da natureza e sua imbricação [...] aos signos que autorizam a troca e permitem estabelecer

equivalências entre as necessidades [...] [e] aos signos pelos quais os homens reagrupam a singularidade de suas percepções e recortam o

movimento contínuo de seus pensamentos.

Máthêsis, taxinomia e gênese são noções interdependentes e complementares que se apresentam em toda a sua expressividade no quadro e

passam a constituir toda uma série de novos saberes. A linguagem, as riquezas e a natureza, tornam-se então objetos de estudo sobre os quais

incide toda a reorganização do saber ocidental.

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Entretanto, a “era da representação”, com seu quadro de empiricidades, traz consigo uma lacuna. Possivelmente imperceptível para os

seus contemporâneos, todavia, perfeitamente visível para nós: a ausência de sujeito. A epistémê clássica ao tratar da análise das riquezas, da

história natural e da gramática geral não nos diz onde se localiza o homem e, muito menos, o que é o sujeito.

Foucault em “A verdade e as formas jurídicas” (1996, p. 10), ao falar de modo geral sobre seus escritos, nos diz que seu objetivo era

observar “[...] um sujeito que se constitui no interior mesmo da história, e que é a cada instante fundado e refundado pela história.” Portanto, cada

período histórico teria que, através de suas conjunturas, expressar a presença de um determinado sujeito. O que efetivamente não ocorre quando

nos remetemos a “era da representação” em “As Palavras e as coisas”.

Segundo Foucault o sujeito é, sobretudo, resultante de um processo histórico contínuo, baseado em relações de poder-saber. “As palavras

e as coisas” não discute a relação entre poder e saber, nem mesmo este é um de seus objetivos. Entretanto, ao caracterizar e discutir a epistémê

clássica, Foucault, disponibiliza-nos uma indicação do que vem a ser o sujeito. E, neste sentido, é Heidegger quem nos possibilita, ainda que

obliquamente, situar o sujeito na “era da representação”. De acordo com o pensador alemão:

Em geral, pode-se definir a ciência como o todo de um conjunto de fundamentação de sentenças verdadeiras. Essa definição não é

completa e nem alcança o sentido da ciência. Como atitude do homem, as ciências possuem o modo de ser desse ente (homem). [...] A pesquisa

científica não é o único modo de ser possível desse ente e nem sequer o mais próximo. (HEIDEGGER, s/d, p. 38).

O sujeito no período clássico é aquele que organiza as representações. Ele situa-se fora do quadro. Ao analisar “Las Meninas” de

Velásquez, no início de “As palavras e as coisas”, Foucault já nos dá indícios do lugar do sujeito na epistémê clássica:

[...] O braço que segura o pincel está dobrado para a esquerda, na direção da palheta; permanece imóvel, por um instante, entre telas e cores. [...] O pintor

[...] é perfeitamente visível em toda a sua estatura; de todo modo, ele não está encoberto pela alta tela que, talvez, irá absorvê-lo logo em seguida, quando,

dando um passo em sua direção, se entregará novamente ao seu trabalho [...] (FOUCAULT, 2007, pp. 3-4).

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O sujeito é irrepresentável na medida em que organiza as representações. Se Velásquez aparece no quadro é justamente por não estar de

fato, naquele instante, pintando. Mas sim, por estar no intervalo, entre duas pinceladas, ou mesmo não ter começado efetivamente sua obra.

Assim é “[...] como se o pintor não pudesse ser ao mesmo tempo visto no quadro em que está representado e ver aquele em que se aplica a

representar alguma coisa.” (FOUCAULT, 2007, p. 4).

Portanto, o sujeito não possui no período clássico um lugar no quadro, mas sim, fora dele, produzindo-o.

Referências

DREYFUS E RABINOW. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Trad: Vera Porto

Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995a.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad: Slama Tannus Muchail. São Paulo: Martins

Fontes, 2007.

______. A verdade e as formas jurídicas. Trad: Roberto Machado e Eduardo Morais. Rio de Janeiro: Nau Ed. 1996.

______. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad: Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2004.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tomo I. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. 2 ed. Petrópolis: Vozes, s/d.

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A HISTÓRIA DO KANTISMO NO BRASIL NA VISÃO DE MIGUEL REALE - Paulo Sérgio de Faria 151

RESUMO

Ainda se faz necessária a discussão sobre o “nosso modo de filosofar” e, nesse processo, o modo como tratamos as filosofias que se

fizeram presentes em nosso meio. Pois muitos são os autores, que se preocuparam com essa questão tais como: Silvio Romero,Geraldo Pinheiro

Machado, Antônio Paim, João Cruz Costa, Luiz Washington Vita, Roberto Gomes, Miguel Reale. Dos quais, a abordagem, se tornou objeto de

estudo de historiadores da Filosofia no Brasil, ou da Filosofia do Brasil. Miguel Reale se insere junto com esses autores quando se trata de

apresentar as filosofias que se fizeram presentes em nosso meio e seus interlocutores. E nesse contexto insere-se a História do Kantismo no

Brasil, objeto de nosso estudo, abordada por Miguel Reale. Algumas questões se levantam a partir da análise do modo como Reale descreve a

chegada das ideias do pensador de Königsberg em terras brasileiras tais como: Quais as razões que levaram a aceitação das ideias kantianas em

nosso meio? Essas ideias eram construídas a partir de fontes primárias ou secundárias? Quais as conseqüências dessa construção?

Questionamentos que Miguel Reale responde, a seu modo, deixando a demais estudiosos a análise de suas respostas bem como a construção de

novas teorias sobre a presença das ideias de Immanuel Kant no Brasil.

Palavras-chave: Immanuel Kant, Miguel Reale, Filosofia no Brasil

A HISTÓRIA DO KANTISMO NO BRASIL NA VISÃO DE MIGUEL REALE

151 Mestre em Filosofia – PUCPR – FACET - [email protected] - Co-autora: Ana Clarice Steinmetz de Faria - Mestre em Psicanálise – UTP - Mestranda em Filosofia – PUCPR - [email protected]

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O último Congresso Internacional sobre Immanuel Kant, realizado em São Paulo no ano de 2005, demonstra que, mesmo depois de mais

de dois séculos de existência, Immanuel Kant e a filosofia kantiana são apreciados e objeto de estudo de muitos intelectuais, espalhados pelo

mundo. No contexto deste estudo, resgatam-se algumas reflexões sobre o pensamento do filósofo alemão em território brasileiro, uma vez que o

objetivo principal é fazer uma releitura do kantismo no Brasil, no século XIX. E, de modo especial, nesse evento trazer a tona o pensar de Miguel

Reale a respeito da aceitação do pensamento kantiano em terras brasileiras. A pós um breve histórico biográfico sobre o autor entraremos direto

ao assunto que nos propomos, ou seja, compreender, segundo Miguel Reale, o porque da aceitação da filosofia Kantiana no Brasil.

1- DADOS BIOGRÁFICOS DE MIGUEL REALE (1910-2006)

Segundo o site http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u712.jhtm a biografia de Miguel Reale é assim apresentada:

Filho do médico italiano Braz Reale e de Felicidade Chiarardia Reale, Miguel Reale ocupava a cadeira de número 14 da Academia

Brasileira de Letras desde o dia 16 de janeiro de 1975. Politicamente definia-se como liberal social. Foi supervisor da comissão elaboradora do

Código Civil brasileiro de 2002, cujo projeto foi posteriormente sancionado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, tornando-se a Lei n.

10.406/02, base do nosso novo Código Civil. Formou-se em Direito pela Universidade de São Paulo em 1934, ano em que publicou seu primeiro

livro, "O Estado Moderno". Nessa ocasião, foi um dos dirigentes da Ação Integralista Brasileira. Com sua tese "Fundamentos do Direito" (1940)

lançou as bases de sua "Teoria Tridimensional do Direito", que se tornaria mundialmente conhecida. Em 1941 tornou-se catedrático de Filosofia

do Direito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. No ano seguinte foi nomeado membro do "Conselho Administrativo do

Estado", cargo que exerceu até 1944.Em 1947 foi Secretário da Justiça do Estado de São Paulo, quando criou a primeira "Assessoria Técnico-

Legislativa" do País, para racionalização dos serviços legislativos. Em 1949 assumiu a Reitoria da Universidade de São Paulo, instaurando os

primeiros Institutos Oficiais de Ensino Superior no Interior do Estado. No mesmo ano fundou o Instituto Brasileiro de Filosofia. Em 1951

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chefiou a Delegação Brasileira junto à Organização Internacional do Trabalho (OIT) em Genebra. Em 1953 publicou seu curso de Filosofia do

Direito. No ano seguinte, fundou a Sociedade Interamericana de Filosofia, da qual foi duas vezes Presidente.Paralelamente a ouras atividades,

manteve sempre seu escritório de advocacia. Em 1962, após intensa atividade no Partido Social Progressista, do qual foi vice-Presidente, foi

novamente secretário da Justiça de São Paulo em 1964.Em 1969 foi nomeado pelo Presidente Arthur da Costa e Silva para a "Comissão de Alto

Nível", incumbida de rever a Constituição de 1967.De 1969 a 1973, novamente Reitor da Universidade de São Paulo, implantou a reforma

universitária com a substituição das cátedras pelos Departamentos e deu definitiva organização aos campi da capital e do interior do Estado.A

bibliografia de Miguel Reale compreende obras de filosofia, filosofia jurídica, teoria geral do direito, teoria geral do Estado, além de monografias

e estudos em quase todos os ramos do direito público e privado, e até poesia. Entre outras, podem-se destacar "Filosofia do Direito" (1953);

"Pluralismo e Liberdade" (1963); "Teoria Tridimensional do Direito" (1968); "Experiência e Cultura" (1977); "A Filosofia na Obra de Machado

de Assis" (1982); "De Tancredo a Collor" (1992); "Face Oculta de Euclides de Cunha" (1993) e "Paradigmas da Cultura Contemporânea" (1996).

É muito extensa a lista de títulos honoríficos bem como de medalhas e condecorações que recebeu, tanto em nível nacional quanto

internacional.Miguel Reale era pai de três filhos, incluindo o também jurista Miguel Reale Jr., ex-ministro de Justiça do governo Fernando

Henrique Cardoso (http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u712.jhtm).

Podemos definir, portanto, três áreas específicas, nas quais Miguel Reale se sentia a vontade: a Filosofia, a Política, e o Direito. De modo

que não é de se estranhar tê-lo como um dos estudiosos da filosofia no Brasil e de seus correspondentes autores.

2- MIGUEL REALE E O KANTISMO NO BRASIL

Quanto aos questionamentos iniciais, referentes às razões que trouxeram o pensamento kantiano para o Brasil, Reale rascunha uma

resposta:

Qual a repercussão do pensamento de Kant no Brasil? Talvez se possa atribuir essa repercussão ao que Kant representava na época, como

defensor da liberdade e por sua presumida “atitude liberal”. Não quero aqui evidentemente discutir o problema, até hoje em aberto, para saber até

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que ponto é válida essa atitude na filosofia kantiana, mas me parece que a imagem liberal de Kant contribuiu, sem dúvida alguma, para a

repercussão do seu pensamento em nossa terra. Tal simpatia não ficou adstrita a Martim Francisco, porquanto quem mais se entusiasmou pelas

idéias de Kant foi Diogo Antonio Feijó, que possivelmente terá ouvido as conferências e aulas de Martim Francisco (REALE, 1974, p. 5).

Miguel Reale não tem escrúpulos ao ligar o início do pensamento alemão ao episódio da Independência do Brasil, embora reconheça

também que muito estudo sobre essa ótica tenha que ser feito. O contexto histórico é novamente vinculado às transformações do pensamento.

Em uma conferência dada, depois publicada na Revista Brasileira de Filosofia, fascículo 93 de 1974, Miguel Reale justifica sua

apresentação sobre a Filosofia Alemã no Brasil do seguinte modo:

Por que estou falando aqui da filosofia alemã no Brasil? Por que me refiro à filosofia francesa ou inglesa como algo de distinto no plano

das idéias? É que, por mais que seja universal a filosofia, o homem jamais se liberta de si mesmo e de seu meio. O alemão tem seu estilo de

filosofar, certas tendências e preferências, certas opções, que marcam a orientação do pensamento germânico, o qual não se confunde com as

diretrizes e opções do pensamento francês. Uma das funções da filosofia consiste em conciliar a universalidade das idéias com aquilo que há de

mais específico em nosso ser próprio e em nosso ser social (REALE, 1974, p.18).

Nisso, acredita-se está a chave de leitura para a compreensão do pensamento de Miguel Reale a respeito das influências kantianas na

formação da cultura brasileira. Ele acredita que exista um jeito próprio de filosofar que se dá na aceitação da doutrina estrangeira e, ao mesmo

tempo, na adequação desta à realidade que se evidencia, da qual passa a fazer parte, ou seja, na mesma linha dos historiadores da filosofia

brasileira de linha crítica, abordados no segundo capítulo da dissertação.

Na mesma conferência, Miguel Reale apresenta fases do kantismo, isto é, fases pelas quais se passa sob a influência do pensador alemão.

A primeira fase compreende a participação de Martim Francisco, conferencista, o padre Diogo Antonio Feijó que certamente teria ouvido as

conferências de Martim Francisco, o padre Mimi e Antonio Ildefonso Ferreira, em São Paulo desde a época da Independência brasileira. A

segunda fase compreende o contato com as obras de Krause, um dos seguidores de Immanuel Kant que maior influência teve no plano cultural

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espanhol e sul-americano, por intermédio de Galvão Bueno e João Teodoro. A terceira fase compreende a Escola do Recife, tendo como

expoente inicial Tobias Barreto, que traz personagens marcantes em suas obras, como Noiré, Rudolf von Jhering e, finalmente, Hermann Post. A

quarta e última fase da influência do pensamento alemão que não mais se refere a Immanuel Kant, no Brasil, é representada pela adesão das

idéias de outros pensadores, tais como Husserl, Max Scheler, Nicolai Hartmann, Heidegger, Jaspers, Dilthey, Windelband, Rickert e Cassirer

(REALE, 1974, p. 4-15).

No que se refere ao Brasil, há muitas surpresas. Foi estudando um pequeno compêndio de filosofia, de uma das figuras mais ilustres da

história pátria, o Pe Diogo Antônio Feijó, que me dei conta da importância do pensamento alemão nos inícios da formação da cultura brasileira.

Pode dizer-se que a presença do pensamento alemão no Brasil começa com a independência do Brasil, sendo a Capital de São Paulo o primeiro

centro, embora incipiente, de cultura alemã, muito embora talvez não houvesse conhecimento propriamente da língua.

... É claro que a época não era propícia a uma compreensão profunda dos valores revolucionários e fundantes do transcendentalismo

kantiano. Kant é recebido mais como filósofo da Ilustração, aberto aos problemas do liberalismo, e sobretudo, por sua posição intermédia, visto o

criticismo como uma terceira posição entre a atitude dogmática, de um lado, e a atitude cética, do outro. O que interessa sobretudo a Feijó é essa

posição de meio-termo, de tal maneira que lhe propiciasse conciliar, até certo ponto, a tradição escolástica com os novos valores que emergiam

sob o influxo da Revolução Francesa (REALE, 1974, p. 4 e 6).

Existe, segundo Reale, uma intencionalidade por parte do padre Diego Antonio Feijó, ao inserir em seus escritos, resquícios de filosofia

kantiana. O que leva a essa escolha por parte do padre ainda permanece uma incógnita.

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Miguel Reale tem o seu modo de situar-se diante das idéias em nosso país. Para isso deve-se levar em conta, de um lado, a influência do

meio social e, de outro, a influência das doutrinas filosóficas. Não se trata de defender a originalidade de um pensamento filosófico brasileiro,

mas de perder um pouco da inibição em prol de uma autonomia.

Miguel Reale cita Sílvio Romero, que não se equivoca, quando apresenta a Filosofia no Brasil como uma sucessão de influências

estrangeiras, de modo especial das européias (portuguesas, francesas e germânicas), bem como não se pode esquecer como determinadas idéias

encontraram adesão por parte de intelectuais brasileiros. Para que uma idéia seja aceita, deve haver clima favorável à aceitação, o que trouxe

como conseqüência uma descontinuidade na apresentação das idéias filosóficas. Sílvio Romero conclui que inspirar-se em fontes estrangeiras é

dar alças ao fronte acima do amesquinhamento generalizado, impulsionado por uma nova luz (REALE,1994, p. 74).

Miguel Reale acredita na existência de certos momentos, ainda obscuros, e esquecidos, do pensamento filosófico brasileiro, conseqüência

de um modo de proceder que se preocupa com a crítica externa das obras, quando somente a crítica interna se coloca diante da

circunstancialidade do pensador criticado (REALE,1994, p. 75).

2.1 O Pensamento Nacional na época da Independência – Ideologia e Kantismo em São Paulo.

Não foi em clima favorável à Escolástica que se formaram as inteligências mais representativas da nossa pátria, no momento decisivo de

nossa independência política.

Pode-se dizer que nas décadas de 1820 a 1850, “grosso modo”, ou prevalecem preocupações de ordem prática e realista (José Bonifácio,

Visconde de Cayru e Bernardo Pereira de Vasconcelos) ou então se projetam certas tendências de cunho mais metafísico e ideológico..{...}

Os mentores da vida nacional na primeira metade da década passada oscilam entre um espiritualismo vago e uma ideologia política de

contornos pouco precisos..{...}

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Um sopro de renovação e de excessiva confiança no poder construtivo das idéias abstratas anima a pequena elite pensante do país,

suscitando movimentos deveras sintomáticos do que poderíamos considerar mais um fecundo “estado de perplexidade” do que um “estado de

disponibilidade” (REALE, 1959, p. 17-18).

Segundo Miguel Reale, a atenção deve voltar-se para o movimento das idéias, para o contraste entre as tendências filosóficas em voga na

época, que não podem ser reduzidas ao compêndio de Mont’Alverne. O erro de muitos historiadores está em considerar a obra do grande orador

sacro como a suma de todo o pensamento de uma época, quando, na verdade, não passa de uma das tendências. A doutrina de Immanuel Kant e

os ensinamentos de Cabanis e de Tracy repercutiram na pequena elite brasileira na época de D. João VI e de Pedro I (REALE, 1994, p. 81).

Com maestria Miguel Reale intensifica o valor e a importância que tem o contexto cultural em que se desenvolvem as idéias. Se em

algumas linhas atrás o autor se refere à necessidade de entrar na interpretação da obra, a seguir volta à questão do contexto cultural.

A Escolástica, seja no plano das idéias, seja das diretrizes políticas, já estava em decadência quando a família real aportou em terras

brasileiras. E a expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal, no reinado de D. José I, contribuiu para permitir mais forte afluxo do pensamento

francês, notadamente do Sensismo de Condillac e do Enciclopedismo em geral, na terra lusíada (REALE, 1994, p. 82).

Foi, porém, nas recém-criadas Faculdades de Direito de São Paulo e de Olinda que os estudos filosóficos encontraram o seu habitat mais

próximo, não só em razão dos ensinamentos de Direito Natural, como pela circunstância de existirem institutos específicos de filosofia. Os

seminários cediam lugar às escolas de Jurisprudência... O certo é que a tendência para o comentário dos textos e das fontes, notadamente de

Aristóteles e de Santo Tomas de Aquino que prevalecera na tradição conimbricense com forte feição dogmática – vai aos poucos se

transformando em uma espécie de arrazoado, de explanação dialética de teorias, nas quais as técnicas do advogado imperceptivelmente se

insinuam, até atingir momento culminante da polêmica, tão viva nas páginas, por exemplo, de Sílvio Romero ou de Tobias Barreto (REALE,

1959, p. 20).

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Para Reale, alguns escritores de filosofia perseveram em determinada tendência filosófica; e seus escritos resumem-se em uma coletânea

de citações concatenadas, em que o autor fica subentendido ou oculto e seu ponto de vista abonado. Verifica-se essa técnica, por exemplo, no

Compêndio de direito natural, de Avelar Brotero. A obra mostra a repercussão, no Brasil, das teorias dos ideólogos franceses (REALE, 1994, p.

83).

Se na obra de Mont’Alverne consistem os motivos do sensismo de Condillac com os propósitos superadores do ecletismo de Cousin..., é

preciso não esquecer outro episódio deveras curioso: a preocupação pela filosofia de Immmanuel Kant nas primeiras décadas do século passado

(REALE, 1959, p. 23).

Na tentativa de conciliar certos ensinamentos da filosofia crítica de Immanuel Kant com as verdades tradicionais, baseadas na Escolástica,

o padre Diogo Antônio Feijó rabisca algumas linhas que servirão de base para ministrar suas aulas. Apesar de confuso e ter até o nome de

Immanuel Kant mal grafado, os então chamados Cadernos de filosofia, redigidos quando ainda em Itu, antes da Independência, merecem atenção

especial (REALE, 1994, p.85).

O simples fato de Feijó procurar distinguir entre atitude crítica, cética e dogmática, reproduzindo de autores franceses alguns

ensinamentos de Kant, só não têm significação maior para os que costumam ver com olhos toldados por paixão de grupo ou de escola. Se

lembrarmos que, em 1824, apesar da obra desenvolvida por Victor Cousin para tornar conhecido em França o sistema de Kant, [...] é, sem

dúvida, surpreendente saber-se das referências feitas a Kant pelo Padre Feijó em simples Cadernos de Filosofia elementar, assim como não é

menos estranho que em 1803 Martim Francisco houvesse dado em São Paulo aulas “de Filosofia eclética com vestígios de kantismo”, como

assevera Aluísio de Almeida (REALE, 1994, p.86).

Afirma Miguel Reale que, embora pouco se saiba sobre a atividade filosófica em São Paulo nas vésperas da Independência, João Arruda

(que escreve sobre Filosofia do Direito, conforme nota de rodapé) meu predecessor na cátedra de Filosofia do Direito, escreve que “a escola de

Kant representou, mesmo em são Paulo, um papel importantíssimo. Declara o citado mestre, houve uma aula destinada à vulgarização da

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doutrina de Kant, e era regida por uma das mais legítimas glórias brasileiras” (p. 86). Amaral Gurgel, outro professor da Faculdade de Direito,

como lembra Almeida Nogueira e Spencer Vampré em suas conhecidas Memórias históricas sobre as Arcadas, também fazia freqüentes

referências a Immanuel Kant, conhecido graças a raros expositores franceses. Passamos, em suma, por Immanuel Kant, a partir do pensamento

francês, mas não pela experiência salutar do Criticismo (REALE, 1994, p.86-87).

Isso significa dizer que a crítica, que Immanuel Kant faz às correntes de pensamento de seu tempo, a saber: o Racionalismo de René

Descartes e o Empirismo inglês, não foi de fato compreendida. Victor Cousin, Noiré, Charles Villers não foram interlocutores à altura para

propiciar uma correta interpretação do pensamento kantiano aos intelectuais brasileiros. Apesar disso:

De qualquer forma, porém, trata-se de episódio que é mister invocar em uma visão panorâmica das idéias filosóficas no Brasil, inclusive

porque se não pode deixar de reconhecer a perspicácia política de nossos primeiros liberais ao perceberem, embora sem contato direto com as

fontes do pensamento kantiano, como nele se compendiavam alguns dos motivos cardiais da concepção individualista do universo e da vida. A

idéia de liberdade como “direito inato”; a vida social no estado de Direito como uma limitação recíproca de liberdades; o respeito à pessoa

humana, e, por fim, o emprego da coação organizada para a garantia das liberdades individuais (REALE, 1994, p.87).

Após essa ampla exposição de Miguel Reale, fica-se sabendo a influência do pensamento de Immanuel Kant na formação cultural

brasileira, que tanto o contexto histórico quanto as idéias presentes e aquelas em ebulição propiciaram a presença do pensamento alemão no meio

intelectual brasileiro. Não é simplesmente uma aceitação passiva, mas uma aceitação em que o sujeito que acolhe oferece a sua contribuição ao

adaptá-la à nova realidade: das idéias universais parte-se à busca de repostas para contextos particulares e individuais.

Não é de estranhar que o padre Diogo Antonio Feijó tenha querido adaptar alguns conceitos da velha Escolástica Tradicional às novas

apreciações kantianas. O que ele procurava era uma adaptação das idéias do pensador alemão ao contexto em que vivia, embebido de duas

situações: uma política e outra religiosa.

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Tobias Barreto também encontrou em Immanuel Kant o suporte para seu modo de interpretação da realidade, ao ponto de escrever

algumas páginas intituladas de Estudos alemães, transformando-se, segundo Miguel Reale, na mais consciente tomada de posição da cultura

germanística no Brasil. Percebe-se ainda que o pensamento de Immanuel Kant é apreciado por nossos intelectuais com “sabor político”, seguido

de um “sabor jurídico” e depois “cultural”; esses, compreendidos dentro de questões maiores, como a idéia de Liberdade como direito inato.

3- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para melhor compreensão do que até agora foi explanado, quanto aos historiadores e ao kantismo no Brasil do séc. XIX, pode-se dividir

as notícias sobre os referidos escritos a partir de alguns questionamentos: quando e quem os trouxe? Qual a qualidade e a credibilidade que

devemos dar a tais escritos? que temas kantianos foram abordados e para que serviam? para depois apresentar suas limitações e, dentre elas, a

referida na introdução da dissertação, ou seja, a compreensão dos Cadernos de filosofia como produto de um padre apenas político e não

religioso.

Dos autores citados pelos historiadores, responsáveis pela presença do pensamento kantiano em terras brasileiras, destacam-se Charles

Villers por meio de seu livro Philosophie de Kant ou Principes fondamentaux de la philosophie transcendental e datado de 1801, trazido na

biblioteca do Imperador de Portugal D. João;152 Francisco Bento Targini também divulgou idéias de Immanuel Kant, apesar de sua curta estadia

no Brasil; Martim Francisco, entre 1804-1810, ministrou um curso sobre Immanuel Kant e também publicou um livro que desapareceu; nos anos

de 1820 e 1830 um clérigo de nome Pe Mimi dava aula no curso preparatório da Faculdade de Direito de São Paulo, sobre a teoria kantiana do

espaço e do tempo como formas a priori da sensibilidade; Pe Lopes Gama no pasqui O carapuceiro, 1837, cita Immanuel Kant diversas vezes;

Padre Regente Diogo Antonio Feijó (1784-1843) em seus Cadernos de filosofia, publicado por Eugênio de Andrada Egas em 1912; João

Theodoro Xavier na obra Teoria transcendental do direito (1876) e, Tobias Barreto, em textos como: Deve a metafísica ser considerada

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morta?,de (1875), “Recordação de Kant” (1887). Percebe-se que muitos intelectuais estão envolvidos. Mas qual a qualidade de tais escritos e até

que ponto eles trazem de fato a ideologia kantiana na sua originalidade?

Quanto à credibilidade e à qualidade dos textos, os autores destacam que a interpretação do pensamento de Immanuel Kant deixava a

desejar. Isso devido ao próprio idioma alemão, que tem lá suas peculiaridades, ademais da tentativa de adequação à realidade brasileira, terra

“promissora” para outras ideologias, tais como o Ecletismo e o Positivismo de Comte que, ao serem apresentadas, também sofreram

modificações. Os textos kantianos, ao serem apresentados por autores franceses, já traziam suas limitações. Associamos essas às limitações dos

que aqui buscavam adaptá-los, de modo que não é de se estranhar a compreensão equivocada de alguns termos como a priori, por Tobias

Barreto.

REFERÊNCIAS

Biografia de Miguel Reale. Disponível em:

http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u712.jhtm, pesquisado em 04/10/2010 às 14H52’

REALE, Miguel. A doutrina de Kant no Brasil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1949.

______ Filosofia em São Paulo. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura. Comissão de Literatura. Col. Ensaio, 1959.

______ Filosofia alemã no Brasil. Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, v. 24, fasc. 93, p. 3-18, jan/mar 1974.

______ No segundo Centenário da Crítica da Razão Pura, de Kant. In Revista Brasileira de Filosofia, v. XXXI, fasc. 123, julho/set, p.

177-183, 1981.

______ Filosofia e realidade brasileira. v.1, Rio de Janeiro: 1976.

______ Estudos de filosofia brasileira. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-brasileira, 1994.

152 Lembro que Daniel Omar Perez em seu livro Kant no Brasil, à página 7, apresenta o livro de Villers como protador das idéias kantianas no Brasil, precedido de um “talvez”.

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FENOMENOLOGIA E SIGNIFICAÇÃO: A PERCEPÇÃO CORPORAL EM MERLEAU-PONTY - Josiana Hadlich de Oliveira 153

Para a explicitação da importância da percepção, que tem como sujeito o corpo habitante do mundo, na filosofia de Merleau-Ponty, é

necessário que seja exposta a herança husserliana que nos ajuda a entender o fio condutor do pensamento merleau-pontyano.

Husserl faz a passagem de uma consciência imersa em seu objeto para uma consciência que visualiza seus diferentes modos intencionais

de relação ao objeto. Entretanto, na Fenomenologia da Percepção (1945), Merleau-Ponty faz uma re-leitura da fenomenologia husserliana,

criticando o idealismo transcendental e transpondo, na fenomenologia, a essência idealista para a existência factual.

Entende-se que a percepção, para Merleau-Ponty, é o campo de revelação do mundo, e que a experiência do corpo configura um

conhecimento sensível sobre o mundo percebido, através dos afetos, das relações expressivas, entre outras possibilidades de experiência da

existência. Mas que consequências esta interpretação da percepção trará para o conhecimento? Epistemologicamente, qual a importância do

pensamento de que o corpo, como sujeito percipiente e pensante, é possuidor do sensível que está carregado de significação?

Fenomenologia e Percepção

Toda a consideração fenomenológica que se ocupa da dimensão dos objetos e de seus correlatos intencionais, será uma descrição eidética.

Tira-se do fenômeno sua “existência objetiva” conservando para a consciência sua essência, que é possível de ser captada pela consciência

153 Graduanda em Filosofia – UFSM.

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através do que Husserl chama “intuição de essência”154. A intuição de essências é uma apreensão categórica e intuitiva do sentido entre ato e

dado do conhecimento que não “contém a mínima afirmação sobre fatos”155.

Nas Meditações Cartesianas, Husserl expõe a noção de percepção de atos de consciência no fluxo de vivências. Ao dizer que são

vivências as percepções, Husserl parece se referir aos elementos de consciência que compõem os atos, mas que eles mesmos não são atos. Tais

elementos, que são vivências, e formam também o fluxo de consciência, se distinguem por não serem intencionais e são chamados sensações.

Mas o que são sensações? É aquilo que é percebido como um elemento objetivo. Em uma vivência perceptiva exterior de uma propriedade de um

objeto (uma cor de um objeto), há elementos vivenciados que são: o ato mesmo de consciência, isto é, o perceber; a sensação de cor; e toda a

aparição perceptiva do objeto colorido. Os diferentes modos de aparecimento dos objetos à consciência dizem respeito aos diferentes atos que

realizamos (perceber, imaginar, rememorar, desejar, etc.).

Quanto ao que diz respeito à percepção, ela capta o sentido imanente (o noema) como se capta a “objetividade” do objeto, através da

unidade das diferentes aparências. Como a percepção é dada por perfis, o objeto será a síntese da totalidade desses perfis. No reenvio

(considerado inesgotável) de um perfil a outros perfis, surge a possibilidade da apreensão total do objeto. Será precisamente este sistema de

reenvios intencionais que será denominada intencionalidade noemática, o modelo de intencionalidade elogiado por Merleau-Ponty.

É importante ter que o motivo da recusa de Merleau-Ponty pela intencionalidade noética deve-se ao seu caráter de intencionar a partir de

um sujeito que se pensa um sujeito epistemológico. O filósofo entende o mundo como habitado pelo sentido e considera central a relação do

homem com o mundo natural e social, visto em sua existência, a partir da sua instalação no mundo.

A herança husserliana dos “modos de intencionalidade” da consciência com o mundo parece ajudar Merleau-Ponty nesse caminho. A

ênfase se dá naquele modo de intencionalidade que trata da consciência perceptiva e seu contato direto com o mundo. Para Merleau-Ponty é um

154 HUSSERL, E. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, §24. 155 Idibem, §4.

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fato que, na percepção, há contato com a facticidade: a percepção nos dá o acesso mais concreto possível do mundo não omitindo o seu sentido.

Se o objetivo de Merleau-Ponty é buscar uma experiência direta com o mundo, ele não poderia seguir o projeto husserliano de uma análise

eidética, pois “seria contraditório afirmar ao mesmo tempo que o mundo é constituído por mim e que, dessa operação constitutiva, só posso

apreender o esboço e as estruturas essenciais; [...] é preciso que eu veja surgir o mundo existente, e não apenas o mundo em idéia [...].156

Não querendo limitar a explicitação da experiência a uma análise eidética, Merleau-Ponty re-definiu a fenomenologia como uma filosofia

“que repõe as essências na existência, não pensa que se possa compreender o homem e o mundo [...] senão a partir da sua ‘facticidade’”157.

A experiência da percepção corporal em Merleau-Ponty

Para Merleau-Ponty já não basta falar em consciência intencional, isto porque a consciência como a proposta por Husserl pode sempre se

tornar “desertora” do mundo. Metodicamente, Merleau-Ponty procura mostrar que a relação do homem com o mundo se dá sempre, inicialmente,

pela percepção, por uma relação direta corpo-mundo. Não toco um objeto-ideia, toco com meu corpo o mundo.

A consciência aberta ao mundo, intencionalmente, é consciência perceptiva. A própria percepção é sempre consciência perceptiva de

alguma coisa e nela não há separação sujeito-objeto (como fazem as ciências naturais e as ciências sociais positivistas), mas há uma relação

vivida entre o sujeito que percebe e o mundo percebido. Dessa forma, a consciência perceptiva possibilita o nosso acesso ao mundo e emerge

significações originais, existenciais. E para compreensão das significações existenciais é preciso considerar a intencionalidade do corpo, em suas

relações com o meio.

156 MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção, p. 502 (grifo meu). 157 Ibidem, Prefácio, p. 1.

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Entretanto, o sujeito de percepção só pode perceber o mundo sob uma “inadequação”. Aqui surge um tema husserliano: quando dizemos

perceber os objetos, os percebemos de forma inadequada, numa aparência fechada, finita, isto é dizer que, assim como em Ideias I, vemos “perfis

de coisas” ou que temos “percepção de perfis”158. Isso para Husserl significa que cada orientação corresponde a uma maneira da coisa ser vista de

modo “inadequado”: “toda percepção e todo modo de percepção são suscetíveis de serem alargados; o processo é então sem fim”159. Moura

comenta que a fenomenologia

[...] sempre descrevera a nossa percepção de um objeto espacial como perpetuamente inadequada. E essa inadequação era uma necessidade de essência a

partir do momento em que o fenomenólogo situava nossa percepção no entrecruzamento entre o ‘perfil dado’ e um ‘horizonte’ de perfis visados [...]

infinitos.160

Esta inadequação é importante ao pensamento de Merleau-Ponty por estabelecer a relação entre a estrutura da percepção e a organização

corporal. Sendo assim, a percepção seria a chave para esse entendimento e a construção da realidade e o corpo, compreendido à luz do fenômeno

da percepção, é concebido como doador de sentido e portador de significações para as vivências intencionais. Nessa experiência perceptiva o

corpo é sujeito e objeto ao mesmo tempo. Tal dualidade terá solução através de uma unidade de abstração: o corpo como o que pensa e sente e o

que se torna objeto de pensamentos.

A percepção como atitude corporal

158 Cf. §42. 159 HUSSERL, E. Ideias..., §149. 160 MOURA, C. A. R. Racionalidade e Crise, p. 198 (grifo do autor).

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Para compreender a percepção, a noção de sensação é fundamental. A sensação não é nem um estado nem a consciência de um estado,

como definiram o empirismo e o intelectualismo. As sensações são compreendidas em movimento: “A cor, antes de ser vista, anuncia-se então

pela experiência de certa atitude de corpo que só convém a ela e com determinada precisão”161.

A percepção estando relacionada à atitude corpórea apoia-se num ponto fundamental: o movimento. Para Merleau-Ponty, a percepção do

corpo é confusa na imobilidade, pois lhe falta a intencionalidade do movimento e, consequentemente, nosso “comércio” perceptivo com o

mundo. Parece que as sensações, associadas a movimentos e a cada objeto, nos convidam à realização de gestos, não de uma maneira

representativa, mas interpretativa das situações existenciais. Esse conceito de percepção só é possível porque há a ruptura com a noção clássica

de corpo-objeto162 e com a noção dos sentidos como meramente passivos. Se quer dizer que as reações de um organismo só são entendidas

enquanto “atos que se endereçam a um certo meio”163.

Em O Visível e o Invisível (1964 – obra inacabada, onde o interesse do autor é uma ontologia pré-reflexiva), encontramos a concepção de

percepção compreendida como ação do corpo:

Antes da ciência do corpo [...] a experiência de minha carne como ganga de minha percepção ensinou-me que a percepção não nasce em

qualquer outro lugar, mas emerge no recesso de um corpo.164

161 MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção, p. 284. 162 Objeto como partes extra partes; corpo como fragmento da matéria. 163 MERLEAU-PONTY, M. A estrutura do Comportamento, p. 187. 164 MERLEAU-PONTY, M. O Visível e o Invisível, p. 21.

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Com a noção de corpo próprio, em que a consciência é concebida como enraizada no mundo e sua intencionalidade voltada para a ação,

que Merleau-Ponty visa explicitar a gênese do conhecimento e compreender a apreensão do sensível pelos fenômenos corporais através da

experiência perceptiva e da abordagem fenomenológica da percepção identificada com os movimentos do corpo.

O corpo e o conhecimento sensível

O sujeito percebe intencionalmente o mundo para depois elaborar um conhecimento sobre ele. No movimento dos corpos e através de

“lentes” sensíveis, podemos fazer a leitura do conhecimento, onde surgem significações (sentidos) que, em última instância, são significações

vividas e não são da ordem do “eu penso”.

O sensível é a unidade que relaciona corpo e mundo. Acertadamente, Claudinei Aparecido de Freitas da Silva, comentou que

A questão consiste em compreender [...] esse horizonte de totalidade pelo qual aquele que sente (o senciente) e o sensível não estão mais

numa relação de pura exterioridade.165

Por meio do logos sensível, entende-se a experiência perceptiva como campo de possibilidades para o conhecimento, com uma

roupagem de formas, cores, sons. Portanto, não é mais uma consciência que julga o mundo e a experiência a partir de representações, é o “corpo

humano quem [...] percebe a natureza, cujo habitante é, também, ele”166.

165 SILVA, C. A. F. A Natureza Primordial: Merleau-Ponty e o logos do Mundo Estético, p. 68. 166 MERLEAU-PONTY, M. Résumés de Cours, p. 176.

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Para Merleau-Ponty o sensível não é destituído de inteligibilidade, pois ele faz aparecer diante do nosso olhar um gesto que não é mero

“dado visual”, mas um objeto que já traz uma significação imamente. A experiência sensível possui uma significação através do corpo, obtendo a

espacialidade, a forma, a textura do nosso mundo circundante. No ensaio O Filósofo e sua Sombra (1958), Merleau-Ponty parece insistir no fato

de que a redução eidética husserliana não permite um acesso a uma consciência pura, mas traz à luz o contato originário com o mundo, a saber, a

percepção, onde o corpo como intencionalidade é o sujeito e o objeto da experiência sensível.

É na descrição fenomenológica que descobrimos a vida originária da consciência, juntamente com suas raízes pré-reflexivas na vida

corpórea e na percepção. A descoberta do corpo humano (como corpo-sujeito de percepção e de reflexão) nos joga na luz da encarnação da

consciência ou da subjetividade em um corpo, revelando o homem como “ser no mundo”. Na concretude do sentido da sensibilidade e da

corporeidade, Merleau-Ponty nos chama para um entrelaçamento com as cores, formas, sons, imagens do mundo, por meio de um procedimento

entranhável no sensível. Tais elementos parecem compor uma epistemologia que deduz uma racionalidade em que os sentidos aparecem pela

afirmação das percepções.

Referências Bibliográficas

HUSERL, E. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2006.

__________. Meditações Cartesianas. São Paulo: Madras, 2001.

MERLEAU-PONTY, M. A Estrutura do Comportamento. Belo Horizonte: Interlivros, 1975. (Texto original publicado em 1942)

__________. Fenomenologia da Percepção. Trad. C. Moura. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. (Texto original publicado em 1945)

__________. O Filósofo e sua Sombra. In: Textos Escolhidos (Os Pensadores), 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Texto original

publicado em 1958)

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__________. O Visível e o Invisível. Col. Debates. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1984. (Texto original publicado em 1964)

__________. Résumés de Cours. Collège de France 1952-1960. Paris: Gallimard, 1968.

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FUNDERENTISMO VERSUS FALIBILISMO - Remi Schorn 167

Susan Haack, em seu Evidence and inquiry pretende contribuir para a reconstrução da epistemologia apresentando sua proposta

funderentista. O papel da experiência na justificação é contrastado com a postura teórica de Karl Popper. Este definiu o conhecimento científico

como alvo e, assim, o distinguiu da Matemática, da Lógica e dos sistemas metafísicos. A proposta de Haack tem um recorte que inclui o

conhecimento empírico em geral e, por isso, difere da demarcação popperiana. Segundo ela as incoerências de Popper somente são superadas

com o estudo das condições genéticas da epistemologia, com uma meta epistemologia.

Segundo Haack a epistemologia sem sujeito conhecedor de Popper é indefensável porque o problema da base empírica é insolúvel sem

um dedutivismo estrito e um antipsicologismo indefensável. Haack pretende modificar a tese popperiana e compensar o fracasso de tentativas

que permaneceram nos limites da filosofia popperiana.

Popper defendeu que os testes de enunciados científicos devem ocorrer de forma indireta, quando, de hipóteses com alto grau de

universalidade são deduzidos enunciados aptos a serem testados em lugar daqueles, estes permitem mais facilmente acordos entre os

investigadores. Entretanto, Popper afirmou que enunciados sobre experiências pessoais, sentenças protocolares, não são deste tipo, eles não

permitem testes, ele somente reconheceu o processo indireto de teste.

John Watkins objetou afirmando que não há justificativa para o fato de os investigadores chegarem a enunciados muito fáceis de testar e

não testá-los finalmente para garantir maior propriedade à tese científica. Para ele essa interpretação concebe as experiências perceptivas como

tendo papel puramente causal, não fornecendo nenhuma razão para aceitação dos enunciados básicos e, por isso, situa-se fora da epistemologia,

pois, o que se alcança não passa de uma cadeia crescente de derivações sem recurso a testes. A segunda interpretação proposta por Watkins, pela

167 Dr. Filosofia e Professor da Unioeste – [email protected]

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qual as experiências perceptivas são tanto causa como razão para aceitação de enunciados básicos, pretende remover a dificuldade a que chegou a

primeira interpretação, pois os testes podem ser interrompidos em função da aceitação baseada em razões de um enunciado facilmente testável.

Tal interpretação encontra sua filiação mais clara em Replies to my critics de Popper quando escreve em resposta a Ayer, para quem as

experiências observacionais fornecem tanto motivos como fundamentos para aceitar interpretações teóricas. Ayer advogava o que Watkins

chamou de posição quase indutivista, ao que Popper não oferece oposição. Em sua resposta a Ayer, Popper defendeu que experiências fornecem

razões inconclusivas para aceitar ou rejeitar um enunciado observacional. Elas são razões pela segurança das nossas observações e são

inconclusivas pela nossa falibilidade. Nessa resposta, Watkins percebe uma suposição indutivista, pois a afirmação de que as nossas observações

são seguras significa que elas fornecem informações importantes sobre o mundo externo. Daí a conclusão de que Popper não forneceu solução ao

problema da aceitação racional dos enunciados sem introduzir suposições indutivas.

De acordo com Popper, uma proposição de base é aceitável se, e somente se, ela é intersubjetivamente acordada quanto à sua verdade,

quando – estando sujeita à revisão – a aceitação não é dogmática. A demarcação de Popper ocorre apenas com preocupação epistemológica. Em

sua nona tese ao Simpósio de Tübingen, ele deixa claro que um assunto científico é constituído por um conglomerado de problemas e tentativas

de solução, demarcado somente de uma forma artificial em tradições científicas. Sua preocupação filosófica é compreender o que é legítimo

racionalmente e o que não o é legítimo em Ciência e em Filosofia. Haack, contudo, parece negligenciar o objeto da demarcação popperiana, ela

afirma que o falsificacionismo ao sustentar que teorias não podem ser verificadas, confirmadas ou justificadas, e sim falsificadas ou refutadas,

estabeleceu um sentido distintivo, preocupado somente com o conteúdo objetivo das teorias e suas relações lógicas. Segundo essa visão, os

cientistas não creem em suas teorias, a crença é matéria subjetiva.

Haack toma Popper por cético sigiloso que, ao não aceitar crenças verdadeiras, nega também o conhecimento. Segundo ela, o

conhecimento objetivo em Popper não é nunca justificado, não deve ser objeto de crença e pode não ser verdadeiro. Ele não teria se interessado

pelo conceito de justificação por pensar que não há crença justificada e por sustentar que ciência é um empreendimento crítico racional, no qual,

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sempre as teorias estão sujeitas à contestação. A crítica negativa demonstra, segundo Haack, não que a teoria científica verdadeira é verdadeira,

mas que a falsa é falsa.

Haack diverge, pontualmente da afirmação de Popper de que

a decisão para aceitar uma proposição básica (...) é causalmente conectada com nossa experiência (...) Mas nós não tentamos justificar proposições básicas

com as experiências. Experiências podem motivar uma decisão, e por isso uma aceitação ou rejeição de uma proposição, mas uma proposição básica não

pode ser justificada por ela – não mais do que por batermos na mesa (POPPER, 2002b, p. 88).

Para Haack se as proposições básicas possuem conteúdo observacional e a decisão científica de aceitá-las pode ser causada pela

experiência, elas podem ser justificadas por experiências. Ela identifica dois argumentos no texto de Popper que sustentam a tese de que “a

experiência não pode justificar a aceitação de proposições básicas”:

O primeiro sustenta que proposições básicas são impregnadas de teorias e que, portanto, o conteúdo da proposição não se esgota na

observação, pois sempre há termos universais em relações circunstanciais e hipotéticas. Exemplo: “Aqui está um copo de água”. A justificação

de tal proposição implica inferências ampliativas com caráter observável para seu futuro, portanto, incorre em indução. Haack condena o

argumento antiindutivista de Popper e afirma que sempre há evidências não dedutivamente conclusivas.

O segundo argumento de Popper afirma que relação causal ocorre entre uma experiência e a aceitação ou rejeição de uma proposição

básica e não entre a experiência e a proposição básica. Assim, para Haack, não faz sentido afirmar que há uma relação de incompatibilidade

lógica entre a experiência de ver um cisne negro e a proposição “Todos os cisnes são brancos”. Se “a justificação não é uma noção causal ou

psicológica, mas lógica” (id., p. 99), as proposições básicas não podem ser justificadas pela experiência. Haack nomeia esta defesa de

“argumento antipsicologista”.

Haack defende que uma proposição do tipo “O homem está com o cachimbo na boca” é aceita no universo científico como sustentada

por todos aqueles que vêem o cachimbo na boca do homem. Em uma análise epistemologicamente relevante as experiências perceptuais

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científicas não podem ser consideradas completamente irrelevantes. Se uma teoria científica é considerada refutada ou falsificada ao se

demonstrar incompatível com uma proposição básica aceita, seria o caso de considerar que a aceitação de uma proposição básica no universo

científico apoiada em experiências científicas, refuta a epistemologia incompatível. Para Haack “Não existe razão para supor que proposições

básicas aceitas são verdadeiras, nem, conseqüentemente, que uma teoria ‘refutada’... é falsa. A ciência não é, afinal de contas, nivelada

negativamente sob o controle da experiência” (HAACK, 2003, p. 99).

Se a decisão de aceitar ou rejeitar uma sentença básica não é arbitrária ou imotivada, então, experiências podem constituir razões. A

incongruência estaria no fato de Popper fazer uso do termo “motivação” mencionando “causalidade pontual” e contrastar, assim, com

“justificação” e não com “sustentado com razões”. Segundo Haack,

“as premissas do argumento antipsicologista são: [1] que pode ser somente causal, não-lógica, a relação entre uma experiência subjetiva e a aceitação ou

rejeição de uma sentença básica e [2] que somente a relação lógica é relevante para a racionalidade da aceitação/rejeição de proposições. A primeira é

verdadeira; a segunda é falsa; [enquanto] as premissas do argumento anti-indutivista são: [1] que proposições básicas são carregadas de teoria e [2] que não

existe relação de sustentação não-dedutiva, ampliativa. A primeira é verdadeira; a segunda é falsa” (2003, p. 101).

Essa configuração, contudo, somente aparece porque Haack distinguiu o que Popper tinha tratado como indistinto. Ela supõe que a causa

para Popper não ter distinguido os argumentos contra o psicologismo e contra o indutivismo estaria no fato de tal procedimento fragilizá-los.

Devemos lembrar, no entanto, que Popper afirmou a irrelevância da observação para a justificação; ele não afirmou que a convenção não observa

a logicidade do procedimento de aceitação ou rejeição de uma sentença. Haack, contudo, parece considerar toda justificação como sendo lógica e

toda lógica justificacionista, o que perturba a análise. Mesmo assim, os argumentos que apresenta devem ser avaliados. Ocorre que as segundas

premissas, tanto do primeiro como do segundo argumentos, não condizem com a proposta popperiana. Corretamente Haack identifica-as como

falsas, mas elas não representam uma síntese adequada da teoria de Popper. Ele trata psicologismo e indutivismo como dois lados da mesma

moeda (verificacionista), o que redundou no seguinte raciocínio: “a suposição antipsicologista considera que somente relações lógicas são

epistemologicamente relevantes, a suposição antiindutivista considera que somente relações dedutivas são lógicas; juntamente, portanto, isso

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implica que somente relações logicamente dedutivas são epistemologicamente relevantes” (HAACK, 2003, p. 109). Corretamente Haack lembra

que o antipsicologismo e o anti-indutivismo são a condição de sustentabilidade de todo o discurso epistemológico do falibilismo de Popper.

Ao considerarmos válido o argumento de Haack, cujas premissas do antipsicologismo e anti-indutivismo permitem inferir legitimamente

que “somente relações logicamente dedutivas são epistemologicamente relevantes”, nos colocamos na obrigação de aceitar sua conclusão; pelo

menos, se aceitarmos que suas premissas são verdadeiras. Temos um silogismo categórico que afirma: 1a premissa: Toda relevância

epistemológica é lógica; 2a premissa: Toda lógica é dedutiva; Conclusão: Toda relevância epistemológica é dedutiva.

Ocorre que a primeira premissa do argumento de Haack é falsa, ela foi extraída da inadequada formulação do primeiro argumento.

Popper não trabalha com absolutos. Ele não concordaria com a formulação “Toda relevância epistemológica é lógica”. Há diferença entre ser

antipsicologista e ser logicista. Popper foi, certamente, antipsicologista, mas, permaneceu distante do logicismo. Com seu falibilismo a lógica

perde a função explicativa para tornar-se sistematizadora da crítica, exercendo função cética na filosofia que, pode ser melhor compreendida não

como buscando aproximação à verdade, mas afastamento do erro identificado.

As proposições científicas não podem ser aceitas somente quando válidas. A validade ou invalidade é resultado do julgamento lógico,

logo, tautológico, e as proposições científicas pretendem estabelecer certa configuração do mundo; assim, podem ser julgadas quanto à verdade.

Se toda proposição científica devesse ser válida, a ciência seria subsumida à lógica. Popper e Watkins sabiam disso e, por isso, não foram lógicos

extremados.

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KARL POPPER: HISTORICISMO E O SIGNIFICADO DA HISTÓR IA - Jaziel Cleiton Rautenberg 168

INTRODUÇÃO

Este trabalho trata de uma possível aplicação do falibilismo popperiano à história e às interpretações históricas. A partir do objetivo

proposto, o presente trabalho se iniciará com uma breve explanação a respeito do falibilismo e o progresso da ciência, apontando para

semelhanças e diferenças entre Ciência e História. Apresenta algumas críticas às concepções historicistas, com ênfase em sua busca infundada

pelo significado da história, que leva a um determinismo perverso. Expõe a importância de interpretações racionais sobre os fatos da história e

sustenta que esta não possui qualquer significado em si, como pretendem os historicistas. Conforme Popper, afirmar que a história possui um

significado em si é atentar contra toda concepção de humanitarismo.

HISTORICISMO E O SIGNIFICADO DA HISTÓRIA

Nas ciências, todas as descrições de fatos são altamente seletivas, dependentes de teorias, frente à infinita variedade de possíveis aspectos

de nosso mundo. A descrição científica depende em larga medida do ponto de vista do cientista, de seus interesses, que funcionam como uma

regra relacionada à teoria ou hipótese que deseja testar, e também estará ligada aos fatos descritos. Contudo, ao formular seu ponto de vista,

168 Acadêmico de Filosofia da UNIOESTE – Toledo – PR. Bolsista do projeto “Refletindo a partir de imagens: Filosofia e Cinema” do Programa Universidade Sem Fronteiras – SETI – UNIOESTE – Toledo – PR. E-mail: [email protected]. Orientador: Remi Schorn. Doutorado PUCRS e professor Adjunto Unioeste.

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obrigatoriamente, o observador deve fazê-lo na forma de uma hipótese operacional, cujo objetivo é auxiliar para selecionar e ordenar os fatos. No

entanto, esse caráter seletivo da descrição de um ponto de vista em sentido operacional pode, de certo modo, apresentar-se relativo, mas apenas

quanto ao fato de que a descrição oferecida torna-se diferente conforme se muda o ponto de vista. Isso pode afetar a crença na verdade da

descrição, porém, não afeta a verdade ou falsidade da descrição, esta não é relativa.

Popper defende a teoria da verdade objetiva de Tarski, cuja teoria afirma a necessidade de uma metalinguagem com a qual se torna

possível falar sobre as afirmativas e os fatos as quais elas se referem, de forma que permite a transcrição dos fenômenos por meio de proposições

testáveis, para assim verificar a correspondência com os fatos. A teoria da verdade objetiva permite afirmar a veracidade de uma teoria mesmo

que ninguém acredite nela, da mesma forma, permite afirmar que uma teoria é falsa ainda que haja motivos para aceitá-la.

Quanto à descrição histórica a presença de um ponto de vista é evidente. Na história, não menos que na ciência, não há como evitar um

ponto de vista e, a tentativa de evitá-lo leva a um autoengano e à falta de cuidado crítico, com aplicação de um ponto de vista inconsciente.

Contudo, isso não significa que é permitido falsificar qualquer coisa que seja, ou considerar levianamente questões de verdade, em benefício de

determinado interesse.

A História, porém, difere das ciências naturais, como a Física, por exemplo, pois nesta última, o ponto de vista é geralmente apresentado

na forma de uma teoria, que pode ser corroborada por meio da busca de novos fatos. As teorias ajudam a unificar as ciências, assim como

explicar e prever os acontecimentos. Quanto à explicação causal dessas teorias, é necessário lembrar que não se pode falar de causa e efeito de

modo absoluto, mas apenas em relação a alguma lei universal. Outro aspecto a ser lembrado é que a capacidade que uma teoria tem de predizer

certo acontecimento é apenas mais uma qualidade de seu uso para explicar tal evento.

Nas ciências teóricas, ou generalizadoras – física, biologia, sociologia, etc. – o interesse maior está em corroborar ou falsificar as leis ou

hipóteses universais, saber quais são verdadeiras e, reconhecendo ser impossível ter certeza de sua verdade, busca-se eliminar as falsas. Aqueles

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que se interessam pelas leis se voltam para as ciências generalizadoras, pois suas teorias ou leis universais introduzem unidade às ciências, bem

como um ponto de vista e, criam para cada ciência seus problemas, centros de interesse e de pesquisa, de construção lógica e de apresentação.

Diferente das ciências generalizadoras, as ciências históricas se interessam por acontecimentos específicos e sua respectiva explicação. Na

história não há teorias unificadoras, as leis universais utilizadas nas ciências generalizadoras são tomadas como dadas, não despertam qualquer

interesse e não têm capacidade alguma de introduzir ordem no objeto de estudo. Desse modo, não há como conceber a existência de leis

históricas.

Na história, os fatos a disposição são, na maioria das vezes, muito limitados e não podem ser repetidos conforme a vontade do

pesquisador, isso faz com que a maioria das teorias históricas, ou pseudoteorias, difiram enormemente das teorias científicas.

Além disso, esses fatos geralmente são reunidos de acordo com um ponto de vista determinado, de modo que se adaptem a uma teoria

preconcebida, apresentando, com isso, um caráter circular. Como não há fatos novos a disposição, não se pode por a prova tal teoria. Por esse

motivo o autor denomina estas teorias históricas, ou pseudoteorias, de interpretações gerais, em contraposição às teorias científicas. Uma

interpretação geral não pode ser testada, dificilmente alcançará caráter científico, mesmo que esteja de acordo com todos os fatos disponíveis,

pois, deve-se lembrar do caráter circular que possui e que um único conjunto de fatos pode levar a mais de uma interpretação, por vezes

incompatíveis.

Geralmente os historiadores não vêem qualquer outra teoria que se adapte melhor aos fatos que a sua própria. Contra esta posição,

tomemos por exemplo o campo da Física, pois neste, mesmo com seu armazenamento de fatos maior e mais digno de confiança, novos

experimentos são fundamentais. Há vezes em que os antigos experimentos se encontram de acordo com duas ou mais teorias competidoras –

considere-se a experiência dos eclipses, crucial para decidir entre as teorias de gravitação de Newton e Einstein. Reconhecendo isso,

abandonaremos essa crença ingênua de que qualquer conjunto de registros históricos possa ser, alguma vez, interpretado de uma só forma.

Esta afirmação, porém, não significa que todas as interpretações históricas têm igual mérito, pois:

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“Em primeiro lugar, há sempre interpretações que não estão realmente de acordo com os registros aceitos; em segundo lugar, há algumas

que precisam de número mais ou menos plausível de hipóteses auxiliares se querem evitar o desmentido dos registros; e há algumas, ainda, que

são incapazes de correlacionar diversos fatos que outra interpretação pode correlacionar, e, até aí, ‘explicar’.” (Popper, 1974, p. 274-275)

Consequentemente pode haver considerável progresso também no campo das interpretações históricas. Uma vez que, neste campo, podem

ser percebidas todas as espécies de etapas intermediárias, entre os pontos de vista mais ou menos universais e as específicas ou isoladas hipóteses

históricas, que, na explicação dos acontecimentos históricos, diferentemente das teorias das ciências generalizadoras, representam antes o papel

de hipotéticas condições iniciais do que de leis universais.

Popper afirma que pode haver inúmeras interpretações da história e serem complementares às anteriores, que cada geração tem o direito

de fazer a releitura dessa história de acordo com os problemas, interesses e pontos de vista de seu tempo. Como exemplo disso, podemos citar o

holocausto ocorrido na Alemanha. Hoje presenciamos uma postura muito diferente daquela época, com a construção de um monumento

histórico, situado em local privilegiado na cidade de Berlim, em homenagem aos judeus mortos, como forma de reconhecimento pelo erro

cometido no passado. Não há história do passado tal como efetivamente ocorreu, apenas releituras históricas e nenhuma delas é definitiva.

Segundo o autor, essas releituras históricas, feitas de forma racional, têm uma necessidade a cumprir, advinda dos problemas práticos e das

decisões pertinentes a cada geração, referente aos caminhos a seguir para solução destes. Esta necessidade, para Popper, se não é realizada

racionalmente, leva às interpretações historicistas.

O historicismo nasce do medo, recua frente à compreensão de que pertence a nós toda a responsabilidade até mesmo pelos padrões que

escolhemos; por conta desse modo, o historicista substitui as indagações racionais por indagações irracionais que buscam na história o segredo, a

essência do destino humano.

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“(...) o historicista não reconhece que é ele quem escolhe e ordena os fatos da história, mais crê que a “própria história”, ou a “história da

humanidade”, determina, por suas leis inerentes, a nós mesmos, nossos problemas, nosso futuro e mesmo nosso ponto de vista.” (Popper, 1974,

p. 277).

Não reconhece que a interpretação da história deve atender a necessidade nascida dos problemas práticos de cada época e das decisões

para solucioná-los. O historicista almeja encontrar o caminho pelo qual a humanidade está condenada a marchar, busca as leis que determinam

esse caminho e atribuem significação da história – como se existisse um trem da história que todos tivessem que tomar para acompanhar a

história e seu progresso. Mas, “tem a história alguma significação?” A resposta de Popper a essa pergunta é negativa, a história não tem

significado algum. Para Popper, o passado, a história do passado, é determinada, pois já ocorreu e só o que se pode fazer quanto a isso é

interpretar estes fatos em relação aos problemas pertinentes do presente, com vistas ao futuro, que, para o autor, é indeterminado.

A história como a maioria das pessoas a concebem não existe, não existe “história da humanidade”, ou “história do mundo”, como se

estuda na escola. O que existe é uma infinidade de histórias que constituem inúmeras espécies de aspectos da vida. Pode-se escrever sobre a

história da arte, da linguagem, das doenças, de acordo com determinado interesse.

O que aprendemos como história da humanidade é, na verdade, a história do poder político. Porém, sustentar isso é uma ofensa a qualquer

concepção de humanidade, pois, “a história do poder político nada mais é do que a história do crime internacional e do assassínio em massa

(incluindo, é verdade, algumas das tentativas para suprimi-lo).” (Popper, 1974, p. 279). Não pode haver uma história concreta da humanidade,

não há homem algum mais importante que outro, sendo assim, se houvesse tal história, teria de ser a história de todos os homens, de suas

esperanças, lutas e sofrimentos. Esta deve ser a postura de todo racionalista ou humanitarista, segundo Popper. Mas por que foi escolhida a

história do poder e não alguma outra, como da religião ou arte? Pode-se dizer que o poder nos afeta a todos e a arte ou religião só a alguns

poucos; outro motivo que pode ser apontado é que os homens são inclinados a adorar o poder, que segundo Popper, é a pior espécie de idolatria

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do homem, pois remete aos tempos da servidão humana; uma terceira razão a ser apontada é que aqueles que possuíam o poder queriam ser

adorados e muitos historiadores escreveram sob a supervisão de imperadores, generais e ditadores.

Afirmar que a história não tem significação, não quer dizer que se deve olhar atônito para a história do poder político. O que deve ser feito

é interpretá-la racionalmente, com vistas aos problemas políticos e soluções referentes a cada época. Para Popper, deve-se interpretar a história

do poder político do ponto de vista da luta pela sociedade aberta, por um regime da razão, pela justiça, igualdade e liberdade. Popper afirma que,

embora a história não tenha um fim em si, como buscam conceber os historicistas, os homens podem dar seus fins próprios à história e, atribuir-

lhe uma significação.

“Nós é que introduzimos propósito e significação na natureza e na história. Os homens não são iguais; mas podemos decidir lutar por

direitos iguais. As instituições humanas, tais como o estado, não são racionais, mas podemos decidir lutar para torná-las mais racionais.” (Popper,

1974, p. 287).

Os fatos como tais, não tem significação alguma, apenas poderão consegui-la em nossas decisões. Este dualismo entre fatos e decisões é

que determina, em certa medida, nossa atitude em relação a ideias tais como o progresso. Cultivando-se a ideia de que a história progride ou que

a humanidade está condenada a progredir, cometer-se-á os mesmos erros daqueles que afirmam que a história possui algum significado nela

mesma. A história não pode progredir, pois progredir é mover-se para um fim e tal movimento cabe apenas aos indivíduos fazê-lo.

Conforme Popper, isso pode ser feito por meio da defesa e fortalecimento das instituições democráticas de que a liberdade e o progresso

dependem. Quanto mais consciente se torna cada ser humano de que o progresso não é da história e sim dos homens na construção da história,

em seus atos, quanto maior a clareza de cada um de seus fins e quanto maior o realismo de sua escolha, melhor se realizará tal tarefa, maior a

liberdade e maior o ritmo do progresso efetivamente humano. O homem retira integralmente de si os motivos de sua elevação moral e retira

também as condições objetivas para efetivar tal elevação.

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CONCLUSÃO

A partir dos argumentos apresentados, pode-se concluir que a história como a maioria das pessoas a concebe não existe e que ela não

possui qualquer significado em si. São os homens, em sua atividade racional, que atribuem significação à história. Além disso, tendo em vista

que um único conjunto de fatos pode possibilitar interpretações diversas, tanto no campo da ciência quanto no campo da interpretação histórica e

que muitas vezes as interpretações, ou releituras históricas, podem, muito bem, ser comprovadas, pode-se, assim, compará-las com as teorias

científicas, o que permite a aplicação do falibilismo popperiano também a este campo de estudo. Finalmente, enfatiza-se o necessário cuidado

crítico para com tais releituras, pois, é necessário ter em mente que constitui argumento duvidoso uma interpretação que possa ser aplicada

facilmente e que explique tudo quanto sabemos, visto que apenas quando se volta para exemplos contrários é que pode ser verificada a adequada

existência de uma teoria.

REFERÊNCIAS

POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos. v2. Trad. Milton Amado. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1974.

________A miséria do historicismo. Trad. Octany S. da Mota & Leonidas Hegenberg. São Paulo: Edusp, 1980.

________. Conjecturas e refutações. Trad. Sérgio Bath. 2.ed. Brasília: Edunb, 1982.

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QUINE E O TERCEIRO DOGMA DO EMPIRISMO - Karen Giova na Videla da Cunha Naidon 169

Introdução

O objetivo deste trabalho é proceder a uma breve reconstrução da discussão entre os filósofos W. Quine e D. Davidson acerca do que

restou conhecido como “o terceiro dogma do empirismo”. Este consistiria num dualismo entre esquema conceitual e conteúdo empírico e seria

sustentado, dentre outros autores, pelo próprio Quine. Davidson, porém, dirige críticas a esse dualismo, alegando que o mesmo constituiria um

dogma remanescente do empirismo e que, em última instância, acabaria por conduzir ao ceticismo. Diante dessas críticas, Quine oferece resposta,

tentando melhor caracterizar o dualismo que sustenta.

Para tanto, dividir-se-á o trabalho em três partes principais. Na primeira delas, será apresentada a maneira como Davidson caracteriza o

dualismo esquema-conteúdo de um modo geral e o modo como ele estaria configurado na filosofia de Quine. Na segunda parte, então, serão

expostas as criticas de Davidson a referido dualismo. Na terceira e última parte, por fim, será apresentada a resposta de Quine frente a essas

críticas.

1. Terceiro dogma do empirismo e a filosofia de Quine

169 Mestranda em Filosofia (bolsista CNPq) - Universidade Federal de Santa Maria-RS - [email protected]

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1.1. O que diz Davidson sobre o terceiro dogma do empirismo?

Davidson aborda a questão do terceiro dogma do empirismo sobretudo em seu artigo “On the Very Idea of a Conceptual Scheme”, no

qual ele é descrito como um dualismo entre esquema conceitual, por um lado, e conteúdo empírico, por outro. Segundo o autor, tal dualismo seria

sustentado por diversos filósofos, dentre os quais Quine.

Para aqueles que sustentam o terceiro dogma, a linguagem na qual o esquema conceitual é expresso estaria em uma certa relação com o

conteúdo empírico, relação esta que varia conforme o autor. Haveria, então, para Davidson, duas metáforas pelas quais os dualistas poderiam ser

divididos: em uma delas, o esquema organiza o conteúdo empírico; na outra, ele se adapta a esse conteúdo. (2001, p. 191) Outro ponto

importante que o autor esclarece é a variação quanto ao que constituiria o conteúdo empírico para os diferentes autores que sustentam o

dualismo. Conforme Davidson, haveria também dois grupos entre os dualistas no que toca a este particular: um deles que entende por conteúdo

algo como uma realidade (podendo ser usados também termos como “natureza” e “universo”); o outro grupo costuma falar em experiência (ou

então a cena presente, irritações da superfície, estímulos sensoriais dados dos sentidos ou simplesmente dados). (DAVIDSON, 2001, p. 192)

Como Davidson coloca, a razão pela qual muitos autores sustentariam esse tipo de dualismo seria para viabilizar alguma espécie de

relativismo conceitual. Para esta doutrina, não havia um único esquema conceitual partilhado, no qual mudanças de opinião ocorrem (pela

mudança no elenco das sentenças que são tomadas como verdadeiras), mas sim esquemas distintos.

O ponto crucial aqui destacado por Davidson reside no fato de que, para tentar dar sentido à idéia de contraste ou mudança conceitual,

muitos autores acabam por recorrer a uma base neutra, externa ao esquema conceitual, por referência à qual se pudesse concluir que dois

esquemas conceituais são, de fato, distintos. Dita base neutra seria fornecida, justamente, pelo conteúdo empírico, razão pela qual muitos

relativistas sustentam também um dualismo esquema-conteúdo.

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Davidson rejeita e critica a doutrina do relativismo conceitual e, com isso, o próprio dualismo que é utilizado por muitos para sustentá-la.

Para o autor, referido dualismo seria insustentável e constituiria um dogma remanescente do empirismo tradicional. (DAVIDSON, 2001, p.189)

1.2. Terceiro dogma do empirismo em Quine

A despeito de sua famosa crítica aos dois dogmas do empirismo, Quine continuou a sustentar uma postura empirista. Com efeito, ele

sustenta as duas seguintes teses empiristas:

(1) “se há evidência para a ciência é evidencia sensorial” (QUINE, 1969, p. 75)

(2) “toda inculcação de significados repousa em última instância sobre evidência sensorial” (QUINE, 1969, p. 75)

Sendo assim, parece ser correto afirmar que ele sustenta uma concepção empirista com respeito à evidência e ao significado, uma vez que

a evidência sensorial exerce um papel crucial em ambos os casos.

Aquilo que Quine entende por evidência sensorial, contudo, difere do modo como conceberam outros empiristas que o antecederam.

Evidência sensorial não seria, para ele, uma experiência de um sujeito cognoscente entendida como algo mental, algo que já envolveria sua

consciência. Em vez disso, Quine prefere introduzir em seu lugar a noção de estimulação dos receptores sensoriais, a qual consistiria num evento

físico que ocorre na superfície sensorial do corpo do indivíduo. Seriam essas estimulações, portanto, que seriam cruciais para o significado e para

a evidência.

Uma preocupação central de Quine consiste em fornecer uma explicação de como os seres humanos, enquanto sujeitos cognoscentes,

adquirem sua teoria sobre o mundo. Nesse ponto, há que se ter presente que a estimulação dos receptores sensoriais do indivíduo seria a base para

tal aquisição. A partir delas é que ele elabora conceitualizações sobre o que constitui o mundo, as quais, por sua vez, são formuladas na

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linguagem. O esquema conceitual daí resultante, que está consubstanciado em um conjunto de sentenças ligadas umas com as outras formando

uma espécie de rede, pode ser considerado como a teoria que esse indivíduo possui sobre o mundo.

Dentre as sentenças que compõem tal teoria, umas estão mais diretamente ligadas às estimulações, enquanto outras, menos. Não obstante,

pode-se dizer que o significado e a evidência para a verdade de tais sentenças depende, direta ou indiretamente, das estimulações dos receptores

sensoriais do falante.

Diante do até aqui exposto, então, pode-se perceber haver, na filosofia de Quine, um dualismo esquema-conteúdo como descrito por

Davidson: o esquema conceitual estaria consubstanciado num conjunto de sentenças pertencentes a uma teoria e o conteúdo empírico consistiria

nas estimulações dos receptores sensoriais do indivíduo.

2. Críticas de Davidson ao terceiro dogma do empirismo

Há duas críticas principais de Davidson ao dualismo esquema-conteúdo: (1) a impossibilidade de dar sentido à própria noção e (2) o fato

de ele conduzir ao ceticismo.

Para Davidson, é impossível dar um sentido para a noção de dualismo esquema-conteúdo em função de dois fatores principais.

Um desses fatores é que não se consegue “atribuir um sentido claro à noção de organização de um objeto simples”, mas tão somente se

pode aplicar a noção a pluralidades. (DAVIDSON, 2001, p.192) Isso ofereceria problemas, segundo Davidson, tanto se a coisa organizada for a

realidade (mundo, universo, natureza), quanto se for a experiência (irritações da superfície, sensações, etc.). Em ambos os casos, haveria que se

pensar na coisa organizada como algo composto de partes.

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Além disso, o autor aponta outra dificuldade no que atine a noção de experiência: se a linguagem na qual o esquema é expresso organiza a

experiência, então, como poderiam ser excluídas do âmbito do que é organizado aquelas coisas sobre as quais as sentenças dessa linguagem

falam, tais como facas, garfos, etc.? (DAVIDSON, 2001, p. 192)

O segundo fator pelo qual Davidson pensa que a noção de dualismo esquema-conteúdo não pode ter um sentido claro reside na

impossibilidade de recorrer também à noção de adaptação. Essa noção seria utilizada do seguinte modo: as sentenças de uma teoria (ou a teoria

inteira) são verdadeiras quando se adaptam, ajustam à experiência. Assim, mesmo que uma sentença fale sobre mesas, cadeiras, etc., ela será

verdadeira se se adaptar a experiência. O que ocorre, segundo Davidson, é que:

A noção de ajuste à totalidade da experiência (...) não acrescenta nada ao conceito simples de ser verdadeiro. (...) Nada, contudo,

nenhuma coisa, torna sentenças e teorias verdadeiras: nem experiência, nem irritações da superfície, nem o mundo podem tornar uma sentença

verdadeira. (2001, p. 194)

Davidson rejeita essa abordagem, ao que parece, pelo fato de que ela contém uma concepção que ele considera errônea acerca do conceito

de verdade.

A segunda e principal crítica de Davidson contra o dualismo esquema-conteúdo de Quine consiste na alegação de que o mesmo

conduziria ao ceticismo. Para aquele autor, atribuir às estimulações sensoriais um papel crucial para a evidência e para o significado acabaria por

criar um nível epistêmico intermediário entre o esquema conceitual consubstanciado em nossa teoria sobre o mundo e o próprio mundo. É nesse

sentido que Davidson afirma:

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(...) há um nível epistêmico intermediário entre o mundo que (nós assumimos que) causa nossas sensações e nossa conceitualização do

mundo. O problema que eu vejo em tal epistemologia é que ela não escapa do ceticismo dos sentidos, porque nós podemos sempre perguntar se o

mundo é do modo como imaginamos que ele é ou se estamos tendo as impressões que nós teríamos se o mundo fosse desse modo (1994, p. 187)

Em seu artigo “Meaning, Truth and Evidence”, Davidson propõe o seguinte experimento de pensamento que reforça sua crítica:

(...) imaginemos alguém que, quando um porco passa, tem precisamente os modelos de estimulação que eu tenho quando há um coelho

em vista. Suponhamos que a sentença de uma palavra que o porco o inspira a assentir seja “Gavagai”. (DAVIDSON, 1990, p. 74)

Nessa situação, se se quiser traduzir a sentença “Gavagai” desse indivíduo para a nossa linguagem, ter-se-á de traduzi-la por “Olha, um

coelho”, já que ele está tendo as estimulações de coelho e as estimulações é que determinam o significado para Quine. Contudo, ao assim

proceder, se estaria atribuindo uma crença falsa ao sujeito, a saber, a crença de que ele está diante de um coelho, enquanto ele está, em verdade,

diante de um porco.

Diante dessa hipótese, postular que as estimulações são cruciais para o significado e para a evidência acabaria por conduzir ao ceticismo,

na medida em que restaria aberta a possibilidade de serem falsas, em sua maioria, as crenças de sujeitos como o do experimento mental acima,

possibilidade esta que pode ser estendida, por sua vez, a nossas próprias crenças.

De acordo com Davidson, faz-se necessária “uma teoria do significado e uma epistemologia que de algum modo una os conteúdos de fala

e pensamento às situações e objetos sobre os quais assumimos que aqueles conteúdos são” (DAVIDSON, 1994, p. 190) Diante disso, há que se

abandonar o terceiro dogma do empirismo.

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3. Resposta de Quine

Em seu artigo “On the Very Idea of a Third Dogma”, Quine oferece uma replica à acusação de Davidson de que sustentaria o terceiro

dogma do empirismo. Nessa ocasião, Quine tenta esclarecer precisamente a natureza do dualismo que sustenta.

Para tanto, ele distingue entre duas formas de interpretar o dualismo esquema-conteúdo: uma delas na qual se tenta dar um suporte para a

verdade e outra delas em que o suporte se restringe à evidência. Quine alega rejeitar o dualismo se a ele for conferida a primeira interpretação;

contudo, a partir da segunda interpretação, Quine aceita o dualismo e afirma não se trata de um dogma. Nas palavras de Quine, “se o empirismo é

construído como uma teoria da verdade, então o que Davidson imputa a ele como um terceiro dogma é corretamente imputado e corretamente

renunciado.” (1981, p. 39) Por outro lado, se o empirismo é construído “como uma teoria da evidência, porém, [ele] permanece conosco, salvo os

dois dogmas” (QUINE, 1981, p. 39) Para ele, então, “o papel próprio da experiência ou irritação da superfície é como base não para a verdade

mas para a crença justificada” (1981, p. 39)

Considerações finais

Diante do exposto, pôde-se perceber que a maneira como Davidson interpreta o dualismo quineano não se coaduna perfeitamente com a

maneira como o próprio Quine o entende. Não obstante, ainda assim resta o problema de explicar como a epistemologia de Quine poderia escapar

do ceticismo ao qual parece conduzir, problema este que persiste mesmo entendendo-se o dualismo na interpretação mais restrita que propõe.

Bibliografia

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DAVIDSON, D. On the Very Idea of a Conceptual Scheme. In: Inquiries into Truth and Interpretation. 2ª Ed. New York: Oxford

University Press, 2001. (artigo publicado pela primeira vez em 1974)

________. On Quine’s Philosophy. In: Theoria, 60, 1994, pp. 184-192.

________. Meaning, Truth and Evidence. In: R. B. Barrett e R. Gibson (Eds.) Prespectives on Quine. Cambridge: Blackwell, 1990, pp.

68-79.

GIBSON, R. The Philosophy of W. V. Quine: An Expository Essay. Tampa: University of South Florida Press, 1982.

QUINE, W. V. O. Two Dogmas of Empiricism. In: From a Logical Point of View. Cambridge: Harvard University Press, 1953.

________. Word and Object. Cambridge: M. I. T. Press, 1960.

________. Ontological Relativity and Other Essays. New York: Columbia University Press, 1969.

________. Progress on Two Fronts. In: The Journal of Philosophy, v. XCIII, p. 159–163, 1996.

________. On the Very Idea of a Third Dogma. In: Theories and Things. Cambridge: Harvard University Press, 1981, pp. 38-42.

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O DEBATE ENTRE BETH E PIAGET: CONVERGÊNCIAS EPISTEM OLÓGICAS - Rafael dos Reis Ferreira 170

Introdução

Em 1949, Jean Piaget publicou o Tratado de Lógica que surgiu, segundo ele, da necessidade de

“[...] compreender como se constituem as estruturas elementares de classes, de relações, de números, de proposições, etc., formalizadas

com toda independência e autonomia pelo lógico e de procurar quais são suas relações com as ‘operações’ do pensamento ‘natural’, muito mais

pobre e não formalizado” (PIAGET, 1976, p. XV).

O Tratado não foi muito bem recebido por uma parte dos especialistas, principalmente entre os lógicos formalistas, resultando em uma

segunda edição sob o título Ensaio de Lógica Operatória, reeditado com o auxílio do lógico Jean-Blaise Grize, com um título mais adequado aos

objetivos de Jean Piaget na obra.

Dentre as críticas ao Tratado, consta a do lógico E. W. Beth, professor da Universidade de Amsterdam. As críticas de Beth estão

relacionadas, principalmente, a pouca formalização das estruturas do pensamento “natural” apresentada no Tratado e, também, à coordenação

estabelecida entre a Lógica pura e o pensamento “natural”. Tal coordenação entre as estruturas lógicas e as estruturas de um sujeito remonta ao

170 Mestrando em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação da UNESP/Marília [email protected] (co-autor: Ricardo Pereira Tassinari)

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clássico problema do psicologismo em Lógica, sendo que ainda hoje Jean Piaget é mal compreendido e é visto, por alguns, como um

psicologista.

É nosso objetivo aqui resgatar as passagens centrais deste debate, explicitando a crítica de Beth e a posição de Piaget frente a ela, e

mostrar que este encontro produziu mais convergências que divergências, em especial convergências epistemológicas. Para isso, centramos nossa

investigação nas passagens escritas por Piaget na Introdução do Ensaio, nos relatos do autor em Sabedoria e Ilusões da Filosofia, em algumas

passagens de A Psicologia de Inteligência, e, também, o volume XIV dos Estudos de Epistemologia Genética, intitulado Epistemologia

Matemática e Psicologia, escrito por Beth e Piaget após o encontro de ambos no Centro, na busca de um consenso.

O Contexto do Debate

As críticas de Evert W. Beth foram publicadas na revista Methodos. Pelo que consta nas referências dadas por Piaget (1976, p. XVI),

(1983, p. 217), (1961, p. 143), Beth teria criticado a pouca formalização das estruturas do pensamento natural e, também, uma certa coordenação

entre a Lógica pura e o pensamento “natural”, ambas apresentadas no Tratado.

Em Sabedoria e Ilusões da Filosofia, obra publicada dezesseis anos depois da publicação da primeira edição do Ensaio, conta-nos Piaget

(1983, p. 91) que tentou, na época, rebater as críticas de Beth. Diz-nos o autor que escreveu algumas páginas, com as quais intencionava publicar

no espaço geralmente concedido pela revista, mas que elas foram recusadas por P. Bochenski (Beth teria escrito o seu artigo a pedido de

Bochenski).

No entanto, foram concedidas algumas linhas e, nesse pequeno espaço, Piaget se dirigiu a Beth, expressando, como Piaget mesmo nos diz

em Sabedoria e Ilusões da Filosofia, que

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[...] compreendia muito bem que um puro lógico reagisse com vigor contra um ensaio de formalização de certas estruturas escolhidas,

porque pertencentes ao pensamento natural, mas que há aí um problema e que o único meio de entendermo-nos seria publicar juntos um trabalho

sobre tais assuntos, onde nem apenas o lógico nem apenas o psicólogo pode bastar para executar a tarefa. (PIAGET, 1983, p. 91).

Com este mesmo “tom” de aproximação, conta-nos Piaget que escreveu pessoalmente para Beth, mas agora fora dos espaços públicos da

revista, propondo-lhe que ambos deixassem o orgulho intelectual de lado para escreverem um trabalho juntos, em prol do conhecimento. Piaget

convidou, então, o lógico Beth para discutir suas idéias em um simpósio. Conta-nos ele (1983, p. 91) que Beth “[...] confessou-se surpreso e

sensibilizado com essa reação e não recusou a colaboração proposta, mas pedindo para pensar. Eu estava pois um tanto inquieto com o que ele

pensaria e diria no Simpósio”. O encontro era o Simpósio Internacional de Epistemologia Genética, organizado anualmente por Piaget no Centro

de Epistemologia Genética, sediado na Faculdade de Ciências de Genebra.

O Simpósio, diz-nos Piaget (1983, p. 91), contou com a participação de muitos especialistas, entre os quais havia um grupo de lógicos,

matemáticos e psicólogos, todos interessados em epistemologia. Beth compareceu e lá foram discutidas as idéias e as concepções de cada um.

Suas discussões resultaram em uma obra intitulada Epistemologia Matemática e Psicologia, Volume XIV dos Estudos de Epistemologia

Genética, cuja primeira edição data de 1961.

As críticas de Beth

Os Estudos de Epistemologia Genética é dividido em duas grandes partes. Na primeira delas, Beth expõe sua concepção sobre a relação

entre lógica e pensamento matemático, amparada na história da filosofia. Na segunda parte, Piaget apresenta sua visão, porém mais voltada às

objeções colocadas por Beth até então, desde a repercussão do Tratado. A conclusão da obra foi um trabalho assinado por ambos. Segundo Beth

e Piaget,

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O primeiro dos dois autores redigiu de início sua própria parte (I) e a comunicou ao segundo que então escreveu a sua (II) para submeter

em seguida ao primeiro. Este enfim propõe um projeto de conclusões gerais comuns que o segundo autor completou, e que todos os dois

colocaram-se de acordo levando em consideração as observações úteis de nosso primeiro leitor J. B. Grize, ao qual nós agradecemos. (BETH;

PIAGET, 1961, p. 1, tradução nossa). 171

As teses que Beth procurou defender na Primeira Parte de Epistemologia Matemática e Psicologia são, escreve ele,

[...] fundadas, não sobre uma tomada de posição a respeito da psicologia ou sobre um logicismo ou as fronteiras de um formalismo

limitado, mas sobre um cuidado profundo e sincero de fazer justiça à lógica formal e à psicologia do pensamento, e sobre estudos aprofundados

no interior de ambos os domínios. (BETH; PIAGET 1961, p. 4, tradução nossa).172

Um dos cuidados exigidos por Beth, em Epistemologia Matemática e Psicologia, compreendia a necessidade de se reconhecer a

autonomia da Lógica e da Matemática para investigar as deduções formais sem desprezar a importância da Psicologia para o estudo do

pensamento. Para ele, a Lógica e a Matemática deveriam ser autônomas em relação à Psicologia quando se trata de investigar as noções de

validade e fundamento. A investigação de cada um dos domínios, preservando suas autonomias de análises, evitaria um provável psicologismo

em Lógica, confusão que deveria ser evitada.

171 “Le premier des deux auteurs a redige d’abord as propre partie (I) et l’a communiquée au second, qui a alors écrit la sienne (II) pour la soumettre ensuite au

premier. Celui-ci a enfin proposé um projet de conclusions générales communes que le second auteur a complété, e que tous deux ont en définitive mis au point em tenant compte des utiles remarques de notre premier lecteur, J. B. Grize, que nous nous plasions à remercier tous deux”.

172 “[...] les thèses que je me propose défendre sont fondées, non pas sur un parti-pris à l’égard de la psychologie ou sur logicisme ou un formalisme bornés, mais sur un souci profond et sincère de rendre justice et à la logique formelle et à la psychologie de la pensée, et sur des études approfondies dans les deux domaines”.

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Na Segunda Parte da mesma obra, Piaget diz que partilha da mesma opinião de Beth sobre a independência da Lógica e da Matemática

para realizar suas próprias análises, sem recurso a uma ciência empírica como a Psicologia. Sobre isso, nos diz o autor:

Nós partiremos aqui exatamente das mesmas opiniões e cremos estar de acordo com E. W. Beth em cada uma de suas afirmações, quanto

a esta independência radical do trabalho do lógico e do matemático nas suas análises de validade e de fundamento. (BETH; PIAGET, 1961, p.

143, tradução nossa).173

No entanto, segundo o autor (1961, p. 147), há uma correspondência entre Lógica e Psicologia que precisa ser explicitada;

correspondência que Beth parece não ter compreendido inicialmente. A seguir procuraremos esclarecer, em linhas gerais, as posições de Piaget

frente às críticas de Beth com base nas posições defendidas por Piaget em Epistemologia Matemática e Psicologia, no Ensaio e em A Psicologia

da Inteligência.

A resposta de Piaget frente às críticas de Beth

Para entendermos as razões que sustentam a tese de Piaget de que há independência dos métodos com correspondência entre os domínios

supracitados, vejamos como o autor coloca o problema do psicologismo em Lógica. Em Epistemologia Matemática e Psicologia ele nos diz que

O psicologismo é a tendência que conduz a misturar as questões de validade com questões de fato, de outra forma, [é] a tendência de

substituir os métodos puramente dedutivos da lógica por métodos nos quais intervêm os dados psicológicos. No seu capítulo II, Beth mostrou o

fracasso destas tentativas do ponto de vista lógico. (BETH; PIAGET, 1961, p. 151, tradução nossa).174

173 “Nous partirons ici exactement des mêmes opinions et croyons être d’accorde avec E. W. Beth en chacune de ses affirmations, quant à cette independence radicale du travail du logicen et du mathématicien dans leurs analyses de validité et de fondement”.

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Piaget (1961, p. 143-144) entende, nesse sentido, que a Lógica e a Psicologia tem planos de análises distintos. Diz-nos Piaget que o

problema lógico consiste, em parte, em buscar quais são as condições de validade de uma dedução formal e o problema psicológico, em parte,

consiste em determinar como funciona o pensamento matemático.

Isso significa que se a Psicologia não pode intervir na decisão sobre uma validade de uma demonstração lógica, a Lógica não pode

intervir na autonomia da Psicologia no que concerne às investigações dos fenômenos causais. Sobre essa reciprocidade, escreve Piaget (1961, p.

143-144) em Epistemologia Matemática e Psicologia:

[...] a independência da atividade lógico-matemática em relação à psicologia é então inteiramente recíproca. Em compreensão, o domínio

psicológico está bem delimitado porque parte exclusivamente do mecanismo real dos processos mentais, e isto é suficiente [também] para

impedir toda a aplicação da psicologia a um problema de validade formal. (BETH; PIAGET, 1961, p. 145, tradução nossa).175

Embora haja independência dos métodos, isso não quer dizer, segundo Piaget (1958, p. 57), que os esquemas lógicos não possam auxiliar

nas análises psicológicas. “Não há dúvida que os esquemas lógicos tenham auxiliado, freqüentemente, pelas sutilezas que apresentam, a análise

dos psicólogos”. Os estudos da Lógica podem auxiliar o psicólogo na esquematização das informações coletadas empiricamente, quando o

174 “Le psychologisme est la tendance conduisant à trancher des questions de validité par des considérations de fait, autrement dit la tendance à substituer aux

méthodes purement déductives de la logique des méthodes faisant intervenir le donné psychologique. Dans son chapitre II, Beth a montré l’échec de telles tentative du point de vue logique”.

175 “l’indépendance de l’activité lógico-mathématique à l’égard de la psychologie est alors entièrement réciproque. Em compréhension, le domaine psychologique est bien delimite puisqu’il porte exclusivement sur le mécanisme réel des processus mentaux, et cela suffit à interdire toute application de la psycologie à un problème de validité formelle”.

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psicólogo elabora, por exemplo, hipóteses e predição dos fenômenos que podem ser comprovados ou invalidados no contexto da teoria por ele

aventada.

Em Psicologia da Inteligência, o autor (1958, p. 55) nos diz que se a Lógica realiza uma análise formal e a Psicologia uma análise real, a

correspondência que há entre elas é a mesma que há “entre um esquema e a realidade que ele representa”, isto é, entre a forma e o conteúdo de

uma estrutura lógica.

Piaget (1976, p. 14) observa que entre a teoria formal da Lógica e a análise real da Psicologia ou da Sociologia, ocorre a mesma relação

que há entre a geometria axiomática e a geometria dos objetos físicos: independência completa dos métodos e correspondência possível entre os

problemas. Nesse sentido, podemos entender que a correspondência da Lógica com a Psicologia e a Sociologia é análoga ao que há entre um

esquema e a realidade que ele representa, entre o formal e o real, entre a aritmética dos matemáticos e os números “naturais” construídos antes de

qualquer teoria, ou entre a axiomática e a realidade dos fenômenos empíricos. Analogia que torna possível compreender

[...] então as verdadeiras relações entre a lógica, de um lado, e a psicologia ou a sociologia das operações intelectuais, de outro: a lógica é

a axiomática das estruturas operatórias, da qual a psicologia e a sociologia do pensamento estudam o funcionamento real. (PIAGET, 1976, p.

14, grifo do autor).

Na Psicologia da Inteligência, diz-nos Piaget (1958, p. 52) que uma axiomática é uma ciência exclusivamente hipotético-dedutiva, isto é,

ela libera as estruturas operatórias de suas amarras intuitivas, da qual ela se originou, para reconstruir livremente um esquema teórico por meio de

proposições indemonstráveis, os axiomas. Estes, combinados entre si, geram todas as possibilidades segundo as relações de necessidades no

interior da dedução.

Considerações finais

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Assim, voltando à discussão entre Beth e Piaget, podemos notar que Piaget não discorda de Beth quanto à autonomia da Lógica em

relação à Psicologia, pois, como vimos, Piaget defende que temos dois métodos distintos para cada um dos domínios supracitados e que cada um

destes domínios tem autonomia o suficiente para investigar o recorte que eles fazem do pensamento operatório, seja o recorte formal ou real.

Beth chega a concordar com Piaget que há uma certa complementaridade entre os domínios supracitados e que ela é necessária para uma

pesquisa epistemológica. Ambos escrevem nas Conclusões Comuns, em Epistemologia Matemática e Psicologia, que

Em suma, cada uma das respectivas atividades do lógico e do psicólogo se refere a outra, não porque elas são interdependentes, mas

porque, cada uma permanecendo totalmente autônomas, são complementares. É então que esta autonomia e esta complementaridade reunidas que

faz não somente possível, mas necessária para a pesquisa de uma síntese epistemológica. (BETH; PIAGET, 1961, p. 332) (tradução nossa).176

Desse modo, o problema epistemológico que Piaget (1961, p. 166) se coloca consiste “[...] precisamente o de explicar como os diversos

tipos de conhecimento são possíveis (e possíveis no duplo sentido de sua validade normativa e de seu funcionamento real)”.177 Notemos, pois,

que a questão epistemológica que o autor coloca no Ensaio e que deu origem a ele é: em que medida as estruturas lógicas formalizadas com toda

autonomia pelo lógico derivam das estruturas operatórias construídas por um sujeito epistêmico e que o ajudam a ordenar a realidade?

Assim, em vista do que dissemos, se entendermos por psicologismo a tentativa de resolver um problema lógico ou matemático se

utilizando de resultados emprestados da psicologia, implicando, com isso, uma confusão de métodos e problemas, podemos entender que Piaget

não é um psicologista.

176 “Au total, chacune des deux activités respectives du logicien et du psychologue renvoie à l’autre, non pás parece qu’elles seraient interdépendantes, mais parce

que, chacune de meurant entièrement autonome, elles sont complémentaires. Ce sont alors cette autonomie et cette complémentarité reunites qui rendent non seulement possible, mais enconre nécessaire la recherche d’une synthèse épistémologique”.

177 “[...] précisément d’expliquer comment les divers types de connaissance sont possibles (et possibles au Double sens de leur validité normative et de leur fonctionnement dans le réel)”.

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O Ensaio, assim, não é apenas uma análise formal das estruturas lógicas ao modo de um tratado de lógica e, também, não é uma obra de

pura psicologia, mas um estudo de epistemologia, em especial, de Epistemologia Genética. Nele se procura compreender como se constituem as

estruturas necessárias aos aumentos de nossos conhecimentos, isto é, como que as estruturas lógicas, estudadas com toda autonomia pelo lógico,

se constituem em um sujeito epistêmico e como elas se coordenam resultando em estruturas passíveis de formalização.

Referências

BETH, E. W; PIAGET, J. Épistemologie mathématique et psychologie: essai sur les relations entre la logique formelle et la pensée réelle.

Paris: Presses Universitaires de France, 1961.

PIAGET, J. Ensaio de lógica operatória. Porto Alegre: Globo, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1976. Tradução de:

Essai de Logique Opératoire - 2e éd. établie par Jean-Blaise Grize. Paris: Dunod, 1976.

_________. Psicologia da inteligência. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1958.

_________. Sabedoria e ilusões da filosofia. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

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A INTERSUBJETIVIDADE EM SARTRE: O OUTRO - Tiago Soa res

O tema a ser apresentado nesse trabalho tratará da constituição do sujeito na perspectiva de Jean Paul Sartre, a partir da argumentação

desenvolvida na terceira parte da obra “O Ser e o Nada: ensaio de uma ontologia fenomenológica” sobre o encontro com o outro. Até o presente

ponto da obra, a primeira e a segunda parte, o autor trata de discutir e apresentar a idéia do sujeito enquanto ser-para-si que está vinculado

diretamente ao humano. O humano é o ente que emerge do seio do ser para deixar no ser de sua origem um hiato, uma fenda, que tenta, durante a

existência humana, ser cindida. Esta tarefa pela qual a espécie humana passa a desenvolver e a projetar-se é a questão central de sua existência, é

o problema da liberdade ontológica que Sartre irá abordar em um dos capítulos de “O Ser e o Nada”. A liberdade surge a partir da vacuidade ou

da cisão do modo de existir ou aparecer do ser para-si em relação ao ser. É um distanciamento do ser que permite a liberdade do para-si em não

ser o que é e ser o que não é. A realidade humana não possui positividade, ela não é fechada. Ao não ser positividade, abre uma possibilidade em

seu ser, ou seja, a realidade nadificadora, o Nada. Este Nada indica um movimento constitutivo, pois ao estar separado de si surge a necessidade

de um movimento de busca de completude, de preencher aquilo que falta, ou seja, de realizar aquilo que não é plenamente realizado. Esta

possibilidade absoluta na realidade do para-si é causa de uma incompletude geradora de movimento, de busca para completar-se; é a este

processo que Sartre denomina de liberdade originária. Essa busca é apresentada na idéia de projeto, ou seja, aquilo que ainda não é, e, entretanto,

é possível que seja e seja qualquer coisa.

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A descrição que Sartre assume se deu pela via da negação daquilo que o sujeito é. Em outras palavras, para a descrição de uma subjetividade em

que o filósofo parisiense acaba afirmando uma nadificação estrutural na constituição do sujeito. Na terceira parte da obra em questão, uma nova

característica constituinte do sujeito emerge, a saber: o outro.

Observamos que na descrição fenomenológica do sujeito há uma conservação do Para-si e todas as suas estruturas e se tem ainda uma estrutura

ontológica radicalmente diversa que aparece, a saber: o modo como o eu aparece ao outro. Essa nova estrutura é do sujeito, este é responsável por

ela, mas é constituída pelo outro.

É o outro que revela uma nova característica do para – si ou sujeito, a de ser – para – outro. Esta perspectiva de ser – para – outro dá ao sujeito

um aspecto objetivante, ou de ser em si. Este aspecto que é desconhecido pelo sujeito ou para – si e só lhe é dado pela presença e olhar do outro é

vivenciado pelo sujeito por meio da vergonha. Vergonha de se reconhecer na característica objetivante que o outro lhe impôs, e de não dar conta

de perceber o outro dentro do campo de suas possibilidades ou exercício de liberdade. ( REYES, 2007, p. 25).

A vergonha é uma consciência não posicional de si, é intencional, é apreensão de algo, é um lançar-se ou um transcender-se da consciência em

direção à vergonha. É por meio da vergonha que se descobre em uma relação com o outro e também do sujeito envergonhado com ele mesmo.

Essa intencionalidade da vergonha que se fez acontecimento mediante a presença e o olhar do outro é uma nova característica do sujeito e que

pressupõe a existência de um outro, pois toda vergonha “é vergonha diante de alguém” (SARTRE, 2009, p. 289).

Diante da reflexão fenomenológica sobre a vergonha não é possível pensar o que o outro vê a respeito do sujeito. O sujeito só consegue pensar a

respeito daquilo que ele sabe de si e daquilo que ele mostra ao outro. Nas palavras de Sartre “no campo da minha reflexão só posso encontrar a

consciência que é minha. O outro é o mediador indispensável entre mim e mim mesmo: sinto vergonha de mim tal como apareço ao outro

(SARTRE, 2009, p. 290)”.

É através da vergonha que se dá o reconhecimento do sujeito ao outro. Reconhecimento de que o sujeito é aquilo que o outro vê. A imagem que o

outro constrói a respeito do sujeito não uma imagem deformada ou distorcida e sim como o sujeito é, como ele aparece ao outro. O sujeito diante

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do olhar do outro não é um puro Para-si, dotado de liberdade e projeto, o sujeito não aparece ao outro da mesma forma como se concebe. De

modo que o outro não apenas revelou ao sujeito o que ele é, mas também o constituiu em um novo tipo de ser com novas qualificações. Esse

novo ser que aparece para o outro não reside e não se origina no outro, o sujeito é responsável por ele. Ao outro, o sujeito é também um ser–em–

si, ou como já afirmamos acima, tem uma perspectiva objetivante. (SARTRE, 2009)

O outro não pode ser considerado só uma coisa ou um em-si, que compõe o mundo do sujeito, ele, o outro, tanto quanto o eu são partícipes de

uma certeza ontológica. O outro é aquele que é visto pelo eu e que ao mesmo tempo o vê, tal relação, a princípio, parece ser de sujeito – objeto,

ou seja, o outro está para o sujeito em uma perspectiva aditiva tal qual todos os outros objetos que o sujeito capta e que estão em relação com este

outro – objeto. Todavia este outro transcende a esfera do ser – objeto porque ao ser visto pelo eu, o outro também o vê. (SARTRE, 2009, p. 326-

337).

É na perspectiva do olhar do outro, por meio do sentimento da vergonha, que o sujeito se depara com uma característica distinta de seu

ser, que não é mais só ser para-si, mas também para – outro. É neste sentido que o outro também constitui o sujeito, portanto, “a nossa realidade

humana exige ser simultaneamente Para-si e Para - outro” (SARTRE, 2009, p. 361). O outro não é um objeto, mas um sujeito diferente do eu, um

outro eu que não é o eu do sujeito, que de fato existe e não é uma mera hipótese ou estrutura conjetural do para-si. Nas palavras de Sartre:

Ora, não é somente conjetural, mas provável que esta voz que ouço seja a de um homem e não o canto de um fonógrafo, é infinitamente provável

que o transeunte que vejo seja a de um homem e não de um robô aperfeiçoado. Significa que minha apreensão do outro como objeto, sem sair dos

limites da probabilidade e por causa desta probabilidade mesma, remete por essência a uma captação fundamental do outro, na qual este já não irá

revelar-se a mim como objeto, e sim como “presença em pessoa”. (SARTRE, 2009, 327)

O outro, em sua aparição, desintegra as relações sujeito – objeto que o eu constrói e cria uma característica alienante do sujeito sobre ele

mesmo, à de não ter consciência daquilo que de si aparece ao outro. O outro é “a fuga permanente das coisas rumo a um termo que capto ao

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mesmo tempo como objeto a certa distância de mim e que me escapa na medida em que estende à sua volta suas próprias distâncias” (SARTRE,

2009, p. 329).

A desintegração e as distâncias próprias estabelecidas pelo outro que o para-si desconhece pertencem exclusivamente ao outro. O para-si

não pode captar qualquer relação que seja estabelecida a partir do outro. Este desconhecimento dá à realidade humana ou ao para-si um

predicativo novo, a saber: o de ser – para - outro; característica que o eu sabe possuir, contudo está para além de seu entendimento, ou seja, é algo

que lhe constitui, mas que é fornecido pelo outro e não cognoscível pelo seu eu.

A existência do outro se dá ao sujeito no ato de olhar e ser olhado, uma atitude interrelacional em que ambos tencionam se objetificar;

entretanto cabe ao sujeito a postura de que ser olhado exige um reconhecimento indubitável da presença de um outro sujeito, é “tomar

consciência de ser visto (SARTRE, 2009, p.333)”. Sartre explicita essa situação do seguinte modo:

O que imediatamente capto ao ouvir o ranger dos galhos atrás de mim não é a presença de alguém, mas o fato de que sou vulnerável, tenho um

corpo que pode ser ferido, ocupo um lugar e de modo algum posso escapar ao espaço onde estou sem defesa, em suma, o fato de que sou visto.

Assim, o olhar é antes de tudo, um intermediário que remete a mim mesmo. (SARTRE, 2009, p. 333-334)

Portanto, é o outro que torna possível que o sujeito ou homem se apreenda e se conheça enquanto sujeito nos modos de ser para-si e para-

outro; é por meio desses dois pólos que a realidade humana se torna compreensível. Mesmo que essa compreensão não se dê integralmente ou

que em sua constituição compreensiva tenha um caráter de alienação que é dado pelo encontro com o outro.

Nas palavras do próprio Sartre:

Eu sou, para-além de todo conhecimento que posso ter, esse eu que o outro conhece. E esse eu que sou, eu o sou em um mundo que o outro me

alienou, porque o olhar do outro abraça meu ser e, correlativamente, as paredes, a porta, a fechadura; todas essas coisas-utensílios, no meio das

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quais estou, viram para outro uma face que me escapa por princípio. Assim, sou meu ego para o outro no meio de um mundo que me escoa em

direção ao outro. (SARTRE, 2009, 336)

É neste encontro do eu com o outro que o ser-para-outro perde sua liberdade, ou melhor, percebe a sua liberdade como o reverso da

liberdade alheia, ou seja, são dois pólos constituintes que coexistem para, assim, se constituírem. Portanto, tanto o eu quanto o outro são

necessários para que haja compreensão mútua a fim de que aconteça o desenvolver do projeto ou da liberdade, bem como de sua alienação que

também constitui o sujeito.

Referencias:

SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

REYES, Raimundo de Maria Mena. A superação do solipsismo em Sartre. UFSM: Santa Maria, 2007.

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POLÍTICA E SUBJETIVIDADE EM MONTAIGNE - Gilmar Henr ique da Conceição

RESUMO

Investigamos aqui a questão de que Montaigne não somente confere aos Ensaios a dimensão subjetiva e provisória, como também se

contrapõe às noções abstratas e genéricas e aponta a experiência de si como o único saber capaz de orientar, de alguma maneira, nossas ações,

sempre singulares e circunstanciadas, referidas sempre a situações particulares. Ao eleger o eu como o exemplo por excelência, o ensaísta

enfatiza o ser humano real e concreto, que deve afirmar sua distância com relação às instituições políticas e religiosas.

Introdução

Investigamos aqui a questão de que Montaigne não somente confere aos Ensaios a dimensão subjetiva e provisória, como também se

contrapõe às noções abstratas e genéricas e aponta a experiência de si como o único saber capaz de orientar, de alguma maneira, nossas ações,

sempre singulares e circunstanciadas, referidas sempre a situações particulares. Ao eleger o eu como o exemplo por excelência, o ensaísta

enfatiza o ser humano real e concreto, que deve afirmar sua distância com relação às instituições políticas e religiosas. Não podemos identificar

com segurança nossas afecções e disposições, e não podemos determinar nossos movimentos internos, portanto, devido à complexidade e

indeterminação de nossas afecções somente podemos ver uma parte do todo, ou um traço entre tantos traços possíveis. Neste sentido, as noções

gerais e padrões não podem determinar nossas condutas com certeza e segurança, uma vez que toda tentativa de forçar nossas ações a

corresponderem às abstrações alcançará, no limite, algum traço de semelhança entre a noção geral e o particular, jamais uma plena

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correspondência entre ambos. Mas, nunca se poderá ultrapassar os limites da mera semelhança. A consideração da particularidade das situações e

da singularidade dos casos conduz Montaigne a afastar os paradigmas externos para recolher-se em si mesmo, buscando na experiência de si, na

inspeção meticulosa das condições e matérias singulares de sua ação, algum tipo de orientação para sua conduta política.

Subjetividade é entendida como o espaço de encontro do eu com o mundo social, resultando tanto em marcas singulares na formação do

eu quanto na construção de crenças e valores compartilhados na dimensão cultural que vão constituir a experiência histórica e coletiva das

sociedades, dos grupos e populações. Montaigne privilegia a pluralidade de vozes que reverberam em sua mente, de forma que os efeitos da

polifonia acompanham os Ensaios, e não renega nada. O ensaísta articula observações feitas a seu respeito às observações feitas em torno de si

porque desta experiência de si podemos extrair o reconhecimento de nossa fragilidade.

Isso tem implicações políticas porque a comunicação com o outro se dá por “espelhamento”, a que se referem os comentadores: enxergar-

se em outro e espelhar o outro em si, numa operação sempre aproximativa e incerta. O espelhamento leva à descoberta de alguma afinidade e

semelhança e a relação social se realizará de modo mais feliz e bem sucedido quanto maiores forem os vínculos de convivência e amizade entre

os interlocutores. O bom seria que, em sociedade, houvesse assentimento e acolhimento da “advertência” política, assim como se dá na relação

de amizade. Ou seja, Montaigne quer que a inspeção e investigação que respalda o juízo relativo desloquem-se da experiência de si para a

experiência do coletivo e da opinião pública:

Surpreendentemente, no entanto, [...] o ensaísta parece estender este ofício da advertência, tão próprio – e mesmo, de algum modo,

exclusivo – da amizade, justamente para o terreno que lhe parece o mais hostil, aquele das relações (por excelência assimétricas) entre o senhor e

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súdito”. [...] São os humores, paixões e disposições da opinião pública as afecções sobre as quais, ou mesmo com as quais, atua o homem público

[...] Trata-se de espelhar o sujeito político, público, nas afecções públicas178.

O movimento e a instabilidade não procedem unicamente do exterior de cada pessoa e isso leva Montaigne a romper com o princípio de

identidade, de ser sempre igual a si mesmo e a abrir-se para uma experiência em que é possível a diferença e a constatação de uma distância entre

o eu em relação a si mesmo e em relação a outros, onde é possível o desacordo e as contradições: “Todas as contradições em mim se deparam, no

fundo como na forma” 179. Com os Ensaios, Montaigne lega problemas filosóficos fundamentais que contribuíram de alguma forma, para que o

tema da subjetividade tenha ganhado a dimensão que ganhou entre os modernos: “Nosso dever primeiro consiste em guiarmos a nós mesmos;

para isso estamos no mundo” 180. Essa ligação com o próprio ser é profundo, porém não é possível no isolamento, abre-se para a sociedade. Com

ele temos a retomada do ceticismo antigo na forma de uma “filosofia da interioridade”. O ceticismo, todavia, não constitui uma fase

intermediária, mas uma situação permanente com um lugar bem determinado na visão política de Montaigne. Daí que ele está sempre se pondo à

prova e aprendendo e isso expressa nas tentativas de retratar o próprio ser: “essay de ma peinture” 181 e de tentativas de formar juízos: “essais de

jugemente” 182 e também registro de uma experiência que não ignora a política: “registre des essais de ma vie” 183.

Por intermédio dessa autodescrição o ensaísta eleva-se acima do eu do respectivo instante e visualiza todo o seu ser nos conflitos sociais.

Seus escritos tornam-se o meio da totalização e objetivação das auto-experiências e, dessa maneira, o meio da identidade própria. Entre

Montaigne e seus escritos ocorre um processo recíproco de constituição e de consubstanciação com o autor: “Eu fiz o meu livro não menos do

178 SCORALICK André. Experiência e Moralidade no último dos Ensaios de Montaigne. São Paulo: USP, 2008. Diss. pps.66-67).

179 Ensaios, II, 1. 180 Ensaios III, 10. 181 Ensaios III, 9. 182 Ensaios I, 50.

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que o meu livro me fez” 184. Porém, é um livro que ressalta o seu novo tipo de autodescrição que não visa mostrar-se para os leitores com algum

atributo ou aspecto especial ou incomum numa identidade a ser desempenhada, por isso escreve: “eu sou o primeiro a mostrar-me como ser

humano comum, como Michel de Montaigne”. Ou seja, ele não se apresenta numa identidade a ser desempenhada, mas na sua identidade pessoal.

O ensaísta parte do particular para o geral e do individual para o social.

Neste sentido quando Montaigne observa que cada ser humano carrega em si “toda a imagem da humanidade” 185 não deve ser

compreendido como se o individual se dissolvesse no social. Em Montaigne, a idéia de humanidade se coloca acima da idéia de “pátria” e declara

a amizade mais alta ainda que dedica ao gênero humano: "considero todos os homens meus compatriotas e tanto abraço a um polonês como a um

francês, pospondo os laços nacionais aos universais e comuns"186. Na realidade, em Montaigne o singular não contrasta tanto com o geral da

natureza humana, o pessoal não diverge tanto do social; a matriz contrastante é, antes, aquela da socialização do ser humano: “Nada tenho de

meu além de mim mesmo; e até esta posse é em parte bem alheio emprestado’187. Escreve Fetz (1999) que “com isso, Montaigne torna-se o

precursor da moderna teoria da identidade; descobre um si-mesmo individual, que se sabe simultaneamente como um si-mesmo socializado” 188.

O pensamento cético não transgride a autolimitação subjetiva que impõe à validade de seu discurso, uma vez que, pelo avesso do avesso,

há o risco do dogmatismo dissimulado se esconder numa filosofia que se considere liberada de uma postura dogmática. Discutindo a afetação nas

formas de escrever, por exemplo, Montaigne reconhece que: “A force de vouloir eviter l’art et l’affectation, j’y retombe d’une autre part”189. No

183 Ensaios III, 2. 184 Ensaios II, 18. 185 Ensaios, III, 2. 186 Ensaios III, 9. 187 Ensaios III, 9.

188FETZ, Reto Luzius. Michel de Montaigne – Filosofia como busca por auto-identidade. Filósofos da Renascença. Unisinos, 1999, p. 218) 189 Ensaios, II, 17.

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limite do paradoxo, Montaigne, que coloca em primeiro plano a subjetividade, parece almejar algum grau de generalidade com o relato de sua

experiência pessoal. Montaigne insiste em julgar a partir da interioridade:

É um erro julgar unicamente pela ações exteriores, a verdadeira filosofia ensina a julgar a partir do interior, a compreender a motivação

do agir com a autonomia do julgamento. Entretanto, a escrita e publicação dos Ensaios continuam a ser a melhor evidência de compromisso

político, na medida em que convidam a reflexão moral e filosófica 190.

A partir de sua experiência pessoal, Montaigne sustenta que os partidos dos filósofos não encontram a verdade, pois nosso juízo natural

não apreende claramente o que apreende. Reconhecer, todavia, a diversidade de juízos sobre a realidade nos torna mais tolerantes, sem que

abramos mão de nosso próprio juízo como o mais plausível e pertinente sobre a realidade. Ora, Montaigne compreende que buscar universalidade

para o seu diagnóstico não se contrapõe à subjetividade da experiência pessoal, portanto, está convencido da validade de seu discurso, ainda que

não se proponha como critério para um juízo universal, pois quer que cada um escolha por si mesmo. Assim, esse subjetivismo formulado como

postura filosófica, implica em que tal relato da experiência individual e própria parece almejar, inevitavelmente, de alguma forma, algum grau de

generalidade:

Tal narrativa tem a curiosa peculiaridade de ser, a um só tempo, a descrição válida da experiência intelectual individual do filósofo, como

parte constitutiva desse filosofar à qual ele é imanente e não pode, de direito, transcender (na medida em que esse filósofo não pretende asseverar

nenhuma verdade e, nessa medida, nada além do que lhe aparece segundo o seu páthos individual), mas também o engajamento em uma filosofia

190PANICHI, Nicola. Au-delà de la vertu “innocente: Montaigne et les théoriciens de la raison d’État. Actes Du Colloque International tenu à University of Chicago (Paris) lês 29 et 30 avril 2006

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cuja constituição precede tal experiência e ilumina (sem o que não se pode falar de uma tradição filosófica cética que, nalguma medida, se

perpetua além de uma experiência filosófica individual e isolada).191

A suspensão do juízo não significa a impossibilidade de uma investigação racional, nem imobilismo político, nem muito menos conduta

anti-social. Há um eixo crítico-epistemológico que perpassa quase todos os ensaios. O ensaísta recupera a observação empírica para constituir um

conhecimento relativo sobre as condutas, introduzindo a noção de experiência de si como elemento basilar de sua reflexão. Esta observação e

inspeção de si revelam-se como fontes primordiais de sua filosofia prática que visa apreender os casos na sua singularidade, na sua

irredutibilidade a qualquer forma genérica de identidade.

Na realização da boa atividade política é indispensável habituar as pessoas a agir corretamente e que as instituições e o governante dêem o

exemplo. Não basta ao homem conhecer o bem por meio da deliberação para que aja bem; é necessário, além disso, que ele deseje agir de modo

correto. Nesta ótica, o exercício cotidiano do hábito de agir corretamente é um dos alicerces em que jaz a excelência moral – e política - pois se

torna um hábito “espontâneo” na vida em sociedade. É claro que essa recusa de Montaigne em admitir o uso de normas ou padrões morais

exteriores à constituição do sujeito tem como exceção aquelas que lhe impõem condutas no registro público, frente às quais, o exercício da

liberdade deve ocorrer em outros termos192.

Desse modo, do ponto de vista político, o ceticismo leva Montaigne à prudência, à moderação e ao diálogo, a partir de um exercício

autocrítico permanente. O ensaísta distingue as coisas “comme elles servent” ( l’utile ), de “comme elles sont” (l’honnête)193. O efeito dogmático

dos costumes, porém, atinge a todos. Não é possível suplantar os costumes plenamente assim como não nos é possível sairmos de nós mesmos.

2006, p. 90) 191 EVA, Luiz. A Figura do Filósofo: ceticismo e subjetividade em Montaigne. São Paulo: Ed. Loyola, 2007, p. 260.

192 A relação entre o exercício da vida pública e a condução da vida privada é discutida no capítulo “De poupar a vontade” (Ensaios, III, 10). 193 Ensaios, III, 10.

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A subjetividade de Montaigne não deve ser compreendida de forma literal como registro de suas características pessoais – como

usualmente pensaram alguns comentadores – mas sim como registro de juízo. Montaigne pensa que toda tentativa de saber multiplica as questões

e acaba obscurecendo o que se quer esclarecer. O conhecimento que Montaigne alcança de si mesmo foi uma descoberta feita ao longo dos

Ensaios. Plenamente falando, subjetividade não foi o seu ponto de partida, isso somente começa a se tornar mais claro para Montaigne

especialmente na metade do segundo ensaio e ao longo do terceiro. Pretendemos mostrar, assim, que subjetividade não é o mapeamento de

espaços interiores, mas a base de sua ação, enquanto juízo confrontado ininterruptamente com a diversidade e a mutação. Na primeira página dos

Ensaios, Montaigne adverte ao leitor que “só escrevi para mim mesmo, e alguns íntimos” e que buscou retratar-se em sua simplicidade natural,

“sem artifício de nenhuma espécie, porquanto é a mim mesmo que pinto” e que, se outras fossem as circunstâncias, “de bom grado me pintaria

nu”, uma vez que “sou eu mesmo a matéria deste livro”. Fincado na idéia de si mesmo, portanto, a perspectiva de Montaigne é subjetiva, de

modo que o que ele expõe não é doutrina e sim experiência, “não é lição dada a outrem e sim por mim a mim mesmo”. Desse modo, ele impôs a

si mesmo o falar livremente de tudo o que lhe dizia respeito Ou seja, a partir de sua experiência singular ele pretende repassar o que lhe é útil

para o bem-viver, pois pode ser útil aos outros, mas que cada um julgue por si mesmo para não se apegar às apreciações alheias. Busca aprender

sempre alguma coisa em suas relações com os outros, como um dos melhores meios de se instruir e reproduz exemplos “tirados do que li, ouvi,

fiz, ou disse” (I, XXI). Por isso mesmo: “Em tudo e em todo lugar meus próprios olhos bastam para me controlar, para me por de sobreaviso em

relação a mim mesmo” 194.

Como quer que seja e quaisquer que sejam as inépcias que me passam pela mente, não as esconderei, como não esconderia meu relato se

em fez de jovem e belo me representasse calvo e grisalho como o sou, em verdade. Exponho aqui meus sentimentos e opiniões, dou-os como os

194 Ensaios, I, 23.

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concebo e não como os concebem os outros; meu único objetivo é analisar a mim mesmo e o resultado dessa análise pode, amanhã, ser bem

diferente do que hoje, se novas experiências me mudarem 195.

O estudo de si e dos outros tem que ser um caminho pelo qual abrimos espaço até as outras pessoas. A sabedoria não pode dar as

costas para a política, nem instruir por palavras, mas pela ação, como vimos. A sabedoria é social e não anti-social. O excessivo apego às teorias

e aos livros, aliado à solidão e à melancolia, torna-nos inaptos para a vida em sociedade e inábeis na política.

Referências

EVA, Luiz. A Figura do Filósofo: ceticismo e subjetividade em Montaigne. São Paulo: Ed. Loyola, 2007,

PANICHI, Nicola. Au-delà de la vertu “innocente: Montaigne et les théoriciens de la raison d’État. Actes Du Colloque International tenu

à University of Chicago (Paris) lês 29 et 30 avril 2006

2006.

FETZ, Reto Luzius. Michel de Montaigne – Filosofia como busca por auto-identidade. Filósofos da Renascença. Unisinos, 1999.

MONTAIGNE. Ensaios. tradução de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. – (Paidéia)

SCORALICK André. Experiência e Moralidade no último dos Ensaios de Montaigne. São Paulo: USP, 2008. Diss.

195 Ensaios I, 26.

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LOCKE: O TRABALHO COMO FUNDAMENTO DA PROPRIEDADE - Hélio da Siqueira 196

O presente trabalho tem como objetivo a partir da obra de John Locke, Segundo Tratado sobre o governo civil, mais

especificamente no capitulo V, mostrar como o filosofo fundamenta a propriedade. Considerando a razão natural, na qual os homens desde o seu

nascimento tem direito a sua preservação, a comer a beber, além de todas as outras coisas que Deus lhe proporciona para a sua sobrevivência,

fica claro para ele que Deus deu a terra a seus filhos e a toda a humanidade. Locke percebe que para alguns é difícil perceber como alguém pode

tornar-se proprietário de alguma coisa. Por isso ele vai procurar mostrar como os homens podem adquirir em porções distintas do que Deus deu a

humanidade. Para ele, Deus além de dar o mundo aos homens também lhes deu a razão para se servirem dela para seu maior beneficio e

conveniência. Para John Locke, todos os produtos da natureza, assim como as frutas e os animais selvagem pertencem à humanidade em comum,

justamente por serem algo espontâneo da natureza. Sendo assim ninguém possui direito sobre qualquer um desses produtos, excluindo desta

forma o resto da humanidade. Para Locke, como os produtos são espontâneos da natureza, é preciso que haja um meio para apropriar-se deles,

antes que se tornem proveitosos para um homem em particular. Para o filosofo o trabalho do corpo e a obra produzida por suas mãos são

propriedades sua. Com isso toda a vez que alguém tira algo do estado no qual a natureza colocou e deixou, através do seu trabalho, isso se torna

sua propriedade. Ao remover este objeto pertencente ao estado de natureza através de seu trabalho, adiciona-lhe algo que exclui o direito dos

outros homens. Para Locke sendo este trabalho uma propriedade do trabalhador, nenhum outro, a não ser ele próprio tem o direito sobre aquilo

196 Graduando em Filosofia – UNIOESTE - e–mail: [email protected]

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que seu trabalho lhe acrescentou. Desde que aquilo que sobrou na natureza seja suficiente aos outros em quantidade e qualidade. Portanto Locke

fundamenta na categoria trabalho a aquisição da propriedade. Para ele esse é o fundamento natural da propriedade. Sendo assim não há

propriedade sem trabalho, esse é, portanto o fundamento natural da propriedade. Locke entende que o trabalho estabeleceu uma distinção entre

ele os outros e o bem comum, pois ele acrescentou algo mais que a natureza, ou seja, o seu trabalho e assim esses bens tornam-se seu direito

privado. Para ele ainda que a terra e os outros bens inferiores pertençam a todos os homens em comum, cada um guarda a propriedade de sua

vida, e sobre esta ninguém tem direito algum. Num segundo momento pretende-se também mostrar que com o surgimento do dinheiro,

estabeleceram-se limites aos territórios. E através de leis internas foi regulamentada a propriedade particular da sociedade. Foram feitos também

muitos tratados renunciando toda a reivindicação e direitos sobre a terra e posse do outro, deixando de lado toda a pretensão ao direito comum

natural. E através de um acordo positivo, estabeleceu-se um direito de propriedade com partes e parcelas diferentes.

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NIETZSCHE – REFULGENCIA NOS CAMINHOS DA ANIQUILAÇÃO - Louise Cristina Vieira 197

A filosofia sob a “força do martelar” caracteriza em Nietzsche o percurso de uma crítica à tradição metafísica que vai desde a noção

platônica de um mundo onde jaz a verdade daquilo que se conhece, até a modernidade, na qual o sujeito ganha lugar relevante nas investigações

sobre o problemático caráter do mundo como multiplicidade que aparece ao sujeito compreendida sob a forma da unidade. No percurso da

crítica, conceitos foram utilizados pela metafísica tradicional com o intuito de garantir o desvelamento de um mundo teorizável, tais como

espírito, consciência, alma e sinônimos, são interpretados segundo o filósofo como o caminho rumo à desvalorização de tudo o que significasse

corporalidade, vida.

Especificamente com Descartes e a noção de sujeito determinada a partir da res cogitans, (sendo aquela que tende para o conhecimento,

mais do que pode conhecer; pois, a vontade seria infinita e o entendimento humano limitado)198, a época moderna da filosofia mergulha na

perscrutação cujos pólos opositores são o sujeito, tomado como eu, e o mundo; tal oposição é dada pela incongruência dessas instâncias distintas.

Nesse percurso em que a determinação do homem se atrela às necessidades metafísicas do conhecimento, o corpo, como parte do mundo, res

extensa, se torna empecilho, impossível como instrumento na tarefa do conhecimento. Os conceitos de alma, espírito, modernamente, res

cogitans, sujeito, consciência, são tomados por melhores e verdadeiros princípios para o desvelamento de mundo. Assim, a tarefa do

conhecimento é engajada sob o pressuposto de que esta razão de cunho teórico é instrumento dado a esta tarefa – de desvelar o véu de maia199

197 Acadêmica Unioeste - [email protected]

198 Cf. in Meditações Metafísicas 199 O véu de Maya é o véu da ilusão, o mundo enquanto representação submetido ao princípio de razão. Schopenhauer. 2001. L I, § 3. p, 14).

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sob a mundanidade; a razão é a determinante necessária na busca das verdades realíssimas, absolutas de um verdadeiro mundo, onde o critério de

verdade e realidade é a correspondência conveniente entre o teórico racional e as percepções do homem no mundo.

Concomitante à tarefa crítica, em que o desmonte dos pressupostos modernos é dado como diagnóstico de decadência do homem teórico,

Nietzsche enreda uma nova concepção à relação homem e mundo, que já não segue o caminho trilhado na história da metafísica; o filósofo, como

quem devolve o homem a si próprio, aponta no corpo, corporalidade, mundo, o fio condutor que pode oferecer um novo horizonte de sentido à

filosofia, ao filosofar e à compreensão mesma das noções homem e mundo, que agora não são considerados opostos200. Sob a perspectiva do

corpo, mundo, como multiplicidade, o filósofo alemão não somente evidencia o caráter insuficiente das concepções filosófico-modernas, mas

empreende a perspectiva crítica como arma criadora, num movimento de destruição e re-criação.

As noções de apolíneo como harmonia, criação e dionisíaco como desmedida, destruição, presentes na obra de 1872201 - persistem na

obra nietzschiana sob os signos: criação e destruição, considerados pelo filósofo como doutrina natural do fazer filosófico202, de modo que “o

golpe do martelo não constitui fim, atuando melhor enquanto instrumento para que surja aquilo que ainda não foi vislumbrado.” (Onate, 2003).

Assim sendo, a ultrapassagem das noções metafísicas da tradição aparece já sob princípio diverso do alvo de suas críticas – o mundo é, nelas,

tomado não como algo que deve ser descoberto em sua perspectiva absoluta ou seu pólo verdadeiro, mas, ao contrário, sob o fio condutor do

corpo aprendemos que nossa vida só é possível através do jogo da multiplicidade.

Nome dado pelos Hindus para a nossa realidade, que é apenas uma distração sensorial, uma teia de aranha, que ao mesmo tempo em que esconde, revela.

http://www.saindodamatrix.com.br/archives/2002/10/o_veu_de_maya.html 201 O Nascimento da Tragédia, ou Helenismo e Pessimismo (Die Geburt der Tragödie, Oder: Griechentum und Pessimismus). 202 A construção nietzschiana do filósofo em Ecce Homo: O anti-sócrates. <http://www.eaic.uel.br/artigos/CD/2445.pdf>

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Nietzsche instaura o corpo como máxima figura a ser considerada na tarefa filosófica de dar sentido a mundo203; com isso, delimita uma

diferença essencial em relação à tradição metafísica, pois se outrora o supremo valor fora a res cogitans, alma, espírito e tudo o que se

caracteriza no para além do mundo, agora de modo diverso, e não inverso, o corpo é considerado o lugar donde derivam todas as nossas

possibilidades – “assim atravessa o corpo a história, lutando e elevando−se. E o espírito, que é para o corpo? É o arauto das suas lutas e

vitórias, o seu companheiro e o seu eco.” (Za. Da virtude dadivosa).

Na perspectiva filosófica nietzschiana, o corpo já não pode ser considerado em sua denotação comum, não é uma substância com

determinações absolutas, nem uma unidade a partir da qual se possa determinar uma “natureza humana”; a concepção do filósofo é autentica,

pois considera o corpo um organismo constituído a partir da hierarquia de um conjunto de impulsos em jogo, numa luta por mais potência204.

Concebendo o corpo como relação hierárquica de forças em que as partes do organismo são hierarquias sob o signo de funções derivadas dessa

luta por domínio, o jogo dinâmico de impulsos permite que, embora haja uma hierarquia constituída da vitória do mais forte sobre o mais fraco, o

que não determina que um impulso dominante se perpetue como tal.

O corpo é tomado como instância determinante de nossa compreensão de mundo, que tomado a principio como multiplicidade, não evoca

as figuras metafísicas estabilizadoras e unificantes necessárias para o conhecimento. As noções de alma, espírito, consciência, são entendidas

pelo filósofo como um nome de qualquer coisa no próprio corpo205.

A compreensão da vida em geral como uma dinâmica da multiplicidade é esclarecida pelo filósofo através da doutrina da vontade a

potencia; o fenômeno indicado nessa doutrina determina ontologicamente a luta dos impulsos entre si por mais dominação. “Supondo finalmente,

203 No discurso de Zaratustra “Dos que desprezam o corpo”deparamo-nos com a seguinte passagem: “Tu dizes "Eu" e orgulhas−te dessa palavra. No entanto, maior − coisa que tu não queres crer − é o teu corpo e a tua razão grande.” (e-book ZA.)

204 A superação da dualidade cultura/biologia na filosofia de Nietzsche. Revita Tempo da Ciência ( 11 ) 22 : 115-135, 2º semestre 2004 – Unioeste. A luta por mais potencia é o caráter fundamental da vontade à potência.

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que se conseguisse explicar toda a nossa vida instintiva como a elaboração e ramificação de uma forma básica da vontade – a vontade de poder,

como é minha tese – supondo que se pudesse reconduzir todas as funções orgânicas a essa vontade a potencia, e nela se encontrasse também a

solução para o problema de geração e nutrição – é um só problema -, então se obteria o direito de definir toda força atuante, inequivocamente

como vontade à potencia . O mundo visto de dentro, o mundo definido e designado conforme o seu ‘caráter inteligível’ – seria justamente

‘vontade à potencia’ e nada mais.”206

No embate por mais potência, o organismo enfrentaria quaisquer barreiras para crescer e ampliar seu domínio, assim como a dominação,

incorporação ou assimilação da “natureza”. Deste modo, um corpo interpreta o “mundo exterior” com intuito, tendência a expandir suas forças,

elege o que lhe propicia um maior quantum de potencia, incorpora, toma o mais fraco como função de si; luta para dominar o mundo circundante;

portanto filosofar, interpretar, criar, também são formas de dominar. Nietzsche considera a vida como um jogo de forças, sendo o corpo uma

relação de impulsos que combatem entre si por dominação, o mundo também passa a ser esse jogo de forças, ou melhor, vontade à potência. O

mundo é visto de dentro, e definido conforme as relações e os graus de forças do organismo (cf. BM §36).

Segundo essa nova concepção, corpo é lugar da determinação de sentido, lugar donde nossas interpretações de mundo derivam. Assim,

Nietzsche toma a posição do “cético criador, interpretante”, pois não acredita que seja um “instinto do conhecimento” o pai da filosofia, mas algo

diverso, que apenas se utilizou desse instinto, como de um instrumento. (cf. BM § 6)

Deste modo, considera: “Outrora tomou-se a alteração, a mudança, o devir em geral como prova da aparência... Inversamente, vemo-

nos hoje, de certo modo enredados no erro, necessitados ao erro, exatamente na medida em que o preceito da razão nos constrange a

estabelecer unidade, identidade, duração, substancia, causa (...).”207

205 Cf. ZA. “Dos desprezadores do corpo”. 206 Além de Bem em mal §36. 207Crepúsculo dos ídolos, A “razão na filosofia §5

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A partir da compreensão de corpo como multiplicidade de impulsos, hierarquia, jogo de forças, é pertinente dar relevo ao questionamento

nietzschiano a respeito do próprio processo consciente, já que este emerge do jogo dinâmico vital.

A teoria da vontade à potencia devolve o homem ao solo de suas estratificações, se na história da filosofia (entenda-se metafísica) desde

Platão, houve uma separação entre aparência e realidade, fundamento e fundado, culminando na filosofia moderna com a trajetória cartesiana e a

caracterização do sujeito como coisa pensante em contraposição à coisa extensa, pensamento versus corporeidade, então, “efetivamente, se pode

perguntar em primeiro lugar, se há de todo oposições, e em segundo lugar, se aquelas avaliações e oposições populares, consagradas pelos

metafísicos, não serão apenas avaliações superficiais, perspectivas provisórias, projetadas mais do fundo de um recanto [...].208 ” Segundo

Nietzsche, a trajetória cartesiana de chegada ao cogito fora uma dentre tantas necessárias dissimulações do entendimento para que mundo fosse

apreensível teórico-racionalmente209. Assim, na obscuridade dos processos intrarracionais “não é a res cogitans que pensa os pensamentos, mas

são os pensamentos que, enquanto resíduos da inter-relação instintual , e no intuito de ampliar em sua esfera de atuação, inventam para si um

soberano unificador e coordenador.” (ONATE, 2003, pg.17) A idéia cartesiana de um sujeito (res cogitans – res extensa) que permanecia na

segurança de uma conquista racional, perde sentido frente às assertivas nietzschianas, que denunciam os subterfúgios da criação de conceitos.

É outorgada uma dimensão de maior profundidade na consideração de nossos instintos, pois ao plano de fundo de nosso sagaz

entendimento e suas ficções reguladoras jazem os “fluxos e refluxos do dinamismo vital presente em cada formação humana de domínio”.

(Onate, pg. 17)

Assim, Nietzsche prossegue em sua tarefa aniquiladora, arremessando para longe as certezas pretensas à filosofia. Segundo o

filósofo, a criação da linguagem teórica foi uma necessidade - “o homem ao mesmo tempo por necessidade e tédio, quer existir socialmente e em

208 Além de Bem e mal §2 209 Se pode conferir a idéia em Verdade e Mentira no sentido Extra-moral e em Humano Demasiado Humano, §2

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rebanho, ele precisa de um acordo de paz e se esforça para que pelo menos a máxima bellum omnium contra omnes210 desapareça de seu mundo

(...)”211; entretanto, esse tratado de paz, de convivência, trouxe consigo o primeiro impulso à verdade, e assim os homens tratam as palavras. É

fixada uma “designação uniformemente válida e obrigatória das coisas, e a legislação da linguagem dá também as primeiras leis da verdade [...].

Dividimos as coisas por gêneros, designamos a arvore como feminina, o vegetal como masculino: que transposições arbitrárias!” 212.

Deste modo, a linguagem constitui o modo como o próprio homem crê saber algo das coisas mesmas, mas essa verdade criada não se

verifica, pois a nossa linguagem não é mais que metáfora das coisas. A gramática é criação humana, arte de dissimulação, pois, na medida em

que nos acostumamos a crer em conceitos e nomes de coisas como eternas verdades, deixamos à margem a dimensão metafórica da linguagem

mesma. Seguindo a crença nas verdades encontradas, conduzimos nossa compreensão de tudo segundo a permanência e fixidez das palavras.

Em relação à lógica, a delação se dá no âmbito dos pressupostos - igualdade entre coisas, identidade de uma mesma coisa em diversos

marcos do tempo - pressupostos lógicos que por sua vez, em nada dão congruência ao mundo efetivo; todavia, os conceitos nascem da igualação

do não igual: “ assim como é certo que nunca uma folha é inteiramente igual a uma outra, é certo que o conceito de folha é formado por

arbitrário abandono dessas diferenças individuais, por um esquecer-se do que é distintivo, e desperta então a representação, como se na

natureza, além das folhas houvesse algo, que fosse ‘folha’(...)” 213.As formulações lógicas impelem sempre a um esquecimento que unifica as

coisas dadas, a caráter de necessidade.

Nietzsche indica o sentido da história da metafísica para seus criadores: “o olhar o passado os impele ao futuro, inflama seu

animo há ainda por mais tempo concorrer com a vida [...] esses homens históricos acreditam que o sentido da existência, no decorrer de seu

210 Guerra de todos contra todos. 211 Verdade e Mentira §1 212 Verdade e Mentira § 1 213 Verdade e Mentira §1

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processo, virá cada vez mais à luz”214. Assim, a exigência racional fez da história dos homens, ciência datada em conceito, verdades fechadas

num percurso entre o passado e o futuro, uma busca incessante que revela o lema da historicidade filosófica – “fiat veritas, pereat

vita” 215.Nietzsche ressalta que assim como tudo o que é orgânico não necessita somente de luz, mas também escuridão, analogamente, todo agir

requer esquecimento216. Podemos pensar em um homem que não tivesse essa força de esquecer, condenado a ver em tudo um vir-a-ser... “Tal

homem não acredita mais em seu próprio ser, não acredita mais em si, vê tudo desmanchar em pontos móveis e se perde nesse rio do vir-a-ser” 217.

O sentido histórico quando prepondera irrefreado, extirpa o futuro, e, se junto ao impulso histórico não se está “destruindo e limpando

terreno para que um futuro vivo na esperança construa sua casa sobre o chão desimpedido, [...], então o instinto criador é despojado de sua

força e de seu ânimo” 218; como vida decadente. Assim, “o sentido histórico torna seus servidores passivos e retrospectivos; e quase que

somente por esquecimento momentâneo, precisamente na intermitência desse sentido, o doente de febre histórica se torna ativo, para tão logo a

ação tenha passado, dissecar seu ato, impedir por meio da consideração analítica a continuação de seu efeito, e finalmente ressequi-lo em

‘história219. Entretanto, Nietzsche aponta que nosso fazer histórico só será melhor se, invés de investir em tornar estável o movimento inerente à

vida, cultivarmos a história em função dos fins da vida, considerando o caráter fundamentalmente dinâmico desta.

A desconsideração do particular e do efetivo é que possibilita conceituar, determinar formas, mas, a natureza, porém, não conhece

conceitos, formas ou espécies, “mas somente um ‘X’, para nós inacessível e indefinível” 220, de modo que está mais que no tempo de investir

214 Considerações extemporâneas – Da utilidade e desvantagem da história para a vida. §1 215 Haja a verdade, pereça a vida. Cf. Da utilidade e desvantagem da história para vida. §4 216 Cf. Considerações extemporâneas; Da utilidade e desvantagem da história para a vida. §1 217 Considerações extemporâneas; Da utilidade e desvantagem da história para a vida. §1 218 Considerações extemporâneas; Da utilidade e desvantagem da história para a vida. §7 219 Considerações extemporâneas; Da utilidade e desvantagem da história para a vida. §8 220 Verdade e Mentira § 1

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contra os descaminhos do sentido histórico, o gosto excessivo pelo processo, em detrimento da vida221. Deste modo, o filósofo diagnostica que no

tornar fixa a linguagem o homem determina o seu ‘agir como ser racional’ através de abstrações; por autoengano, transforma todas as suas

impressões e intuições em conceitos – e, acreditando que há algo assim no mundo efetivo, atrela aos conceitos o sentido de suas ações e de sua

própria vida. “Os senhores me perguntam o que são todas as idiossincrasias dos filósofos?... Por exemplo, sua falta de sentido histórico, seu

ódio contra a representação mesma do vir-a-ser, seu egipcismo. Eles acreditam que desistoricizar uma coisa, torná-la uma sub specie aetern222i,

construir a partir dela uma múmia, é uma forma de honrá-la. Tudo o que os filósofos tiveram nas mãos nos últimos milênios foram múmias

conceituais; nada de efetivamente vital veio de suas mãos. Eles matam, eles empalham, quando adoram, esses senhores idólatras de

conceitos223.” Esfacelado o solo sob o qual verdejara a filosofia moderna e seus principais conceitos, tornamos questionável também o campo da

representação; conduzimos, pois, a carroça de tudo pela estrada do nada: “O pensar consciente e em especial o do filósofo, é o menos forte e

por isso, é também relativamente o mais brando e tranqüilo dos modos de pensar – e, assim, precisamente o filósofo é o mais fácil de ser

induzido em erro sobre a natureza do conhecer.224”

A vontade de tornar racionalizável e passível de comunicação o conteúdo das percepções é o que impulsiona as empreitadas para fixar

dualidades absolutas: corpo – alma, sujeito – objeto, homem – mundo. Para nosso instrumento, edificamos a linguagem e agora cremos

fielmente nela, ignorando seu estatuto de instrumento metafórico. Assim, “... rimos quando encontramos ‘homem e mundo’ colocados lado a

lado, separados pela sublime pretensão da palavrinha ‘e’” 225.

221 Considerações extemporâneas; Da utilidade e desvantagem da história para a vida. §9 222 Do ponto de vista do eterno. 223 Crepúsculo dos Ídolos, I. 224 A Gaia Ciência, IV §333 225 A Gaia Ciência §346

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O MÉTODO INTUITIVO DE BERGSON E OS IMPRESSIONISTAS: UMA APROXIMAÇÃO - Andressa Rodrigues dos Santos 226

Um dos caminhos a ser desbravado do ponto de vista da reflexão estética é a relação entre a arte e a filosofia. Trata-se, portanto, de uma

relação que brota da experiência humana e que encontra na meditação filosófica um lugar privilegiado de interrogação. Antes de traçar como se

constitui o pensamento bergsoniano, devemos entender como a estética francesa do século XX se caracteriza. Para isso faz-se uma distinção em

dois períodos: o primeiro que termina com a guerra de 1939-1945, e o segundo, que se inicia com a Libertação de 1945. O primeiro período é

caracterizado, em termos estéticos, assim como a filosofia e a literatura, como uma consagração da supremacia do espírito. Constitui-se, na

verdade, como um período voltado, de certo modo, ao racionalismo, totalmente equilibrado com um método rígido e lúcido. Já no segundo

período, o espírito parece perder sua supremacia, talvez devido aos acontecimentos após a Libertação e as novas condições de vida. Neste

momento, há uma confusão dos gêneros e das doutrinas. É Mikel Dufrenne que, em um artigo da Revue d’esthétique, argumenta que a literatura

só é possível se explicada por uma filosofia; da mesma forma, a produção estética ilustrará o desenvolvimento filosófico, ele ainda diz, o filósofo

não apenas consulta a literatura como também busca inspiração nela. Com isso, encurta-se a distância entre o racionalismo entre as letras e a

filosofia. Bergson (1859-1941) pertence ao primeiro período, antes da guerra.

Na obra “Ensaio sobre os dados imediatos da consciência”, Bergson se propõe analisar os sentimentos estéticos, onde afirma que na

intervenção progressiva de elementos novos modificam a natureza dos sentimentos estéticos. Esse sentimento estético instaura-se no sujeito com

226 Bacharel em Filosofia – Bolsista PET-Filosofia – UNIOESTE - [email protected]

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uma maior intensidade que os outros sentimentos, ou seja, na medida em que é apresentado ao sujeito algo que seja ‘belo’, instaurasse um

sentimento estético que não altera sua intensidade pouco a pouco, assim como nos outros estados psíquicos ou estados da alma. O objetivo da

arte seria, então, “ [...] adormecer potências ativas, ou melhor, resistentes, da nossa personalidade, e levar-nos assim a um estado de docilidade

perfeita em que realizamos a idéia que nos é sugerida, em que simpatizamos com o sentimento expresso.” (BERGSON, 1988, p. 19).

Podemos entender com essa afirmação que o objetivo da arte é exteriorizar nossas potências, ou seja, de certa forma expor aquilo que está

na alma, a personalidade ou subjetividade. Bergson usa o termo ‘adormecer’ no sentido de que a arte, sendo exteriorizada causa uma espécie de

catarse, e nesse libertar dos sentimentos é como se acalmasse o ‘eu’ deixando-o em um estado de docilidade, por realizar a ideia sugerida, no

sentimento expresso na obra de arte. O filósofo, ainda, argumenta: “ Nos processos da arte encontramos, sob uma forma atenuada, purificados e

de alguma maneira espiritualizados, os processos pelos quais normalmente se obtém o estado de hipnose.” (BERGSON, 1988, p. 19). Então,

Bergson analisará os diferentes modo de expressão da arte; sobre as artes plásticas, Bergson dirá que elas causam um efeito da mesma espécie da

poesia que com movimentos regulares de ritmo, através dele que nossa alma é “ [...] embalada e adormecida, se esquece, como num sonho, para

pensar e ver com o poeta.” (BERGSON, 1988, p. 20), devido a fixidez que impõem à vida de imediato, e através de um contágio físico comunica

a atenção do espectador. E mesmo com essa imobilidade podemos encontrar efeitos análogos ao ritmo, argumenta Bergson:

A simetria das formas, a repetição indefinida do mesmo motivo arquitetônico, fazem a nossa faculdade de perceber oscile do mesmo ao

mesmo, e se desabitue das incessantes mudanças que, na vida diária, continuamente nos transportam à consciência da nossa personalidade...”

[BERGSON, 1988, p. 20]

Com isso, define-se o objetivo da arte em não apenas expressar os sentimentos, mas imprimi-los em nós. Bergson afirma, também, que se

a natureza apresenta-se de modo proporcional, a nossa faculdade da percepção embalar-se-á em uma harmonia, “ [...] nada interrompe o livre

impulso da sensibilidade, que apenas aguarda o desaparecimento do obstáculo para se emocionar simpaticamente.” ( BERGSON, 1988, p. 20)

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Na análise da profundidade do sentimento estético, Bergson afirma que quando um artista sugere seus sentimentos e pensamentos, estes

são apenas partes resumidas da sua história. História esta que é composta por fatos psicológicos, ou seja, quando o filósofo fala em história não

se refere às experiências vividas pelo artista, mas sim, dos sentimentos e pensamentos experimentados pela ‘alma’. Portanto, será considerada

uma arte inferior aquela que se limita a dar sensações, pois em sua análise tal arte nada mais sugere que uma sensação além dela mesma. Uma

obra de arte, porém, não se limitaria, pois a maior parte das emoções são enriquecidas e sugerem milhares de sensações, sentimentos ou ideias

que perpassam as emoções. Sendo assim, cada emoção é um estado psíquico único no seu gênero, sem definição e sem descrição. E esta emoção

indefinível “ [...] tão rica, tão pessoal, tão nova [...]” (BERGSON, 1988, p. 21), é o objetivo do artista, ou seja, em sua obra o artista quer que

experimentemos algo que não compreendemos. Com isso, a obra de arte ultrapassa a barreira que o tempo e o espaço estabelecem entre a sua

consciência e a de quem apreciará sua obra. Além disso, terá mais mérito a obra que for mais rica em ideias, sensações e emoções em seu

sentimento expresso.

É nessa direção de análise que, para Bergson, a arte pode desempenhar um papel fundamental inclusive enquanto subsídio crítico da

própria tradição metafísica. É o que ocorre quando o filósofo critica a metafísica227 clássica, na obra O pensamento e o movente, no momento em

que objetiva adotar um critério de exatidão como parâmetro, assim como as demais ciências que, ao tentar representar a realidade, acabam

congelando-a, por fazerem uso justamente de um esquema de linguagem impreciso. Com isso captam apenas uma parcela dessa mesma realidade.

Partindo de uma perspectiva bergsoniana, ao questionarmos sobre a linguagem filosófica, não encontraremos uma resposta satisfatória. A

227 Bergson afirma que a metafísica clássica originou-se no momento em que Zenão de Eléia assinalou as contradições inerentes ao movimento tais como nossa

inteligência os representa. Nessa retrospectiva, desde os filósofos antigos até os modernos, a principal tarefa exercida por eles foi a de ultrapassar, através de um trabalho intelectual, as dificuldades que suscitaram da representação intelectual do movimento e da mudança. Bergson enfatiza que a metafísica foi levada a investigar a realidade das coisas desconsiderando o tempo, o movimento e a mudança, excluindo assim, aquilo que nossos sentidos e nossa consciência podem alcançar. Sendo assim, a metafísica tradicional, na visão bergsoniana, é superficial por trabalhar com conceitos encadeados numa construção meramente hipotética, desvinculada da experiência, algo que, para Bergson, é essencial.

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linguagem sempre fora vista como “ [...] produto da inteligência concebida como faculdade instrumental.” (LEOPOLDO E SILVA, 1994, p. 9),

ou seja, a linguagem é o meio pelo qual a inteligência, simplesmente, domina a matéria e organiza o mundo de acordo com as necessidades

humanas. Como Bergson concebe a realidade como composta por duas tendências opostas, matéria e espírito, e como não julga possível a

compreensão do espírito pelo intelecto, sugere a necessidade de outro procedimento. Ele nos apresenta, em primeira mão, o método intuitivo que

passa a operar com dois níveis de noções fundamentais: a percepção e a memória, num esquema de linguagem diferente do conceitual. Como

vimos, na linguagem conceitual há uma paralisação da realidade impedindo que a noção de movimento e temporalidade sejam investigadas e

alcançadas. Como argumenta Bergson, pretende-se chegar a “essência” daquilo que é pura mobilidade e vir-a-ser, congelando essa parcela da

realidade, o que para o filósofo é uma clara contradição. A proposta de Bergson é abandonar os esquemas artificiais que posicionamos entre nós e

a realidade, e assim, abandonar alguns hábitos quanto à nossa percepção e ao nosso pensamento, pois é através deles que nos afastamos tanto da

realidade, ou seja, nos subtraímos de alguma forma da nossa própria realidade.

No Impressionismo, assim como na maioria dos movimentos artísticos, não é possível fixar com precisão cronológica o seu ponto de

abertura. A arte é uma corrente que remete ao infinito. E esta corrente composta por artistas profissionais e amadores, está carregada de

preferências, sugestões, meras opiniões e questões que constituem uma corrente de pensamento, ora com muita força, ora muito frágil, mas que

pode não cessar. Com o intuito de nos localizar historicamente, alguns adeptos da cronologia fixam-se no ano de 1974. Após a Guerra Franco-

Prussiana de 1970, um grupo de artistas que, na maior parte das vezes, eram recusados nos salões moldados pela oligarquia acadêmica. Refletem

uma arte mais otimista em relação à verdade, com uma proposta não ortodoxa de ver e pintar, carregada de luminosidade. Esse grupo denomina-

se Société Anonyme des Artistes Peintres, Sculpters et Graveurs e organizam uma exposição. Apesar de tudo, esses artistas não pretendiam ser

reformadores, pois não lançam manifestos nem teoria abstratas. A pretensão deles era inovar a técnica de pintar ou questionar os preceitos

acadêmicos que, mesmo depois dos obstáculos vividos durante o Romantismo, persistiam em simbolizar os padrões estéticos oficiais e populares.

Assim, o Impressionismo objetivava subverter tais padrões peculiares à estética acadêmica. A denominação “Impressionista” surge quando o

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crítico Louis Leroy publicou no jornal parisiense Charivari o artigo “Exposition des Impressionistes”. Formaram-se muitos grupos de artistas,

entre eles o de Degas, Sisley, Pissaro, Renoir e Berthe Morisot. Quem tem destaque é Claude Monet, o grande teórico mesmo sem tal intenção.

Monet possui um estilo muito pessoal, autodidata, ousado nas intenções, descontraído e anticonformista, caracterizando, assim, um

temperamento singular. Monet pretende não a realização de apenas mais uma pintura, e sim, uma “impressão” de pintura.

Renoir, Pissaro e Sisley são considerados os primeiros adeptos do Impressionismo. Para alcançar a “impressão”, seus adeptos refinam as

cores, simplificam a palheta e são resolutos em suas decisões, então, adotam o plein-air, com tintas claras e cintilantes. As cores são restringidas

às do prisma, sem mesclas, elas são postas uma ao lado da outra para reproduzir precisamente o tom do objeto iluminado. Houve também a

eliminação do preto, do betume, o terra de Siena e os ocres, assim como, Cézanne testemunha que Pissaro desde 1865 já havia feito isso, e depois

Monet. Alguns historiadores relatam que o plein-air foi encontrado pela Escola de Barbizon, situada às margens da floresta de Fontainebleau.

Onde jovens trabalhavam ao ar livre, em contato direto com a paisagem, trabalhando em esboços e estudos para depois executar as pinturas no

atelier.

Ao longo dos anos, o termo Impressionismo passou a ser usado com a intenção de explicitar o não enquadramento com o academicismo.

Bardi diz que as pessoas ingênuas que se limitam a aceitar fórmulas digeridas e acomodadas, se depararem com obras dos grandes mestres

antigos. Caso tais indivíduos se esforcem o mínimo possível, poderão verificar que o problema com o plein-air, tido como ponto fundamental

dentro do Impressionismo, e também, os problemas inerentes relativos à luz já se consistiam como uma das preocupações dos pintores do século

XVII. Assim, os Impressionistas encontram uma nova forma de representar a luz em uma pintura, através da “impressão”, direcionando, assim,

novos elementos às suas pesquisas. Deste modo, como qualquer outro novo movimento ou nova proposta, os Impressionistas não tiveram

aceitação imediata. Os impressionistas possuíam um modo distinto de ver a pintura e a executavam de maneira bastante contrária: sempre a uma

distancia bastante conveniente. A intenção dos impressionistas não era representar através de desenhos e claro-escuro, mas sim através de

manchas. As implicações que esta corrente artística provocou foram normais, na medida em que, a aceitação de uma nova proposta seja ela qual

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seja, é conturbada. Ainda mais quando se trata de interromper um pensamento expressivo tradicional que caracteriza o público acadêmico.

Assim, qualquer nova ideia seria entendida como uma espécie de desagravo, até mesmo de ofensa.

Segundo o pensamento bergsoniano, apenas a intuição – definida como uma simpatia que nos leva ao interior de um objeto e coincide

com aquilo que ele tem de único, ou seja, aquilo que não é possível exprimir, – tem a capacidade de apreender a unicidade e a particularidade de

um objeto. E a linguagem mais apropriada à intuição é a linguagem imagético-metafórica, para compreender a realidade viva e movente do

próprio objeto. A filosofia deverá criar uma expressão própria que consiga compreender e expressar melhor as coisas, ou seja, uma linguagem

aos moldes da linguagem poética, assim como no Simbolismo228 em que é adotada uma linguagem mais flexível. Neste ponto encontramos algo

de comum naquilo que é expresso em uma obra de arte e o objeto ao qual a filosofia se dedica, e é deste princípio que parte uma estética

bergsoniana. Devemos esclarecer que a intuição bergsoniana não é sinônimo de irracionalidade ou inconsciência; ao contrário, é muito mais

alargamento da consciência e reversão do modo habitual de operar do intelecto.

Assim como Izilda Johanson argumenta, podemos dizer que a questão da estética bergsoniana tem seu lugar, visto que ela surge dos

enigmas da filosofia, como parâmetro ou ponto de referência, constantes do pensamento filosófico. Por isso, Bergson defende que a filosofia

precisa se posicionar em relação à arte e trabalhar o que a arte representa na sua inclusão no mundo. O homem faz e se apraz com a arte, e as

obras são assim consideradas na medida em que se diferenciam do restante dos objetos que encontramos no mundo, essencialmente daqueles que

nos deparamos cotidianamente. As questões impulsionadoras são: o que as obras de arte realmente são, ou seja, o que nos leva até a elas; e o que

228 No Simbolismo, os poetas buscavam ultrapassar as fronteiras do significado, procurando uma construção lingüística que fosse mais próxima da imagem, de modo

que, a partir dela, viessem expressar a fluidez e o dinamismo de modo totalmente sugestivo. Em suma, o Simbolismo caracteriza-se pela concepção mística do mundo, pelo interesse no particular e no individual, pelo conhecimento ilógico e intuitivo, pela valorização da arte por ela mesma e pelo uso da via associativa das palavras em forma de metáforas. Assim como na teoria bergsoniana em que a linguagem conceitual não é adequada à filosofia, no Simbolismo a expressão direta não é capaz de captar e expressar aquilo que realmente é. No movimento artístico em questão, a metáfora é empregada com o intuito de atingir as essências através de associações de idéias permitindo alcançar outra realidade.

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incita alguém a criá-las. Assim, na experiência da arte estão implícitos os pressupostos das questões acima, mesmo que tais não estejam

pronunciadas formalmente. E, aqui, encontramos o cerne da questão: falar de uma estética bergsoniana exprime o reconhecer da relação existente

entre a filosofia e a arte, sobretudo sobre a perspectiva do conhecimento. Dentro disto arte e filosofia serão vistas caminhando para a mesma

direção, a via intuitiva. Sendo assim, reconhecemos as similitudes com os movimentos artísticos contemporâneos a Bergson: como o

Impressionismo, neste caso. Perceberemos, não uma semelhança teórica, mas nas propostas apresentadas pelo filósofo de renovação assim como

nos movimentos artísticos.

Como podemos perceber, o Impressionismo através das “manchas” trabalham, de certo modo, por sugestão assim como na proposta

bergsoniana do método intuitivo229 em que a essência será atingida por sugestão e, não, por conceitos. Assim como no pensamento bergsoniano

que critica a linguagem conceitual e pretende adotar a linguagem imagético-metafórica, o Impressionismo, através das cores e das formas, como

foi dito acima através de manchas que, obviamente, não representaram o objeto de forma fiel, mas elas sugerem o objeto. Assim, se apresentam

as semelhanças nas propostas tanto do pensamento bergsoniano, para a Filosofia, quanto do Impressionismo. E através da análise do sentimento

estético podemos perceber que Bergson pretende transferir, de certo modo, o método utilizado na arte para atingir seus espectadores para a

filosofia como meio para chegar as suas respostas. Assim como na arte, a intuição é utilizada para provocar sentimentos, sensações e emoções, a

filosofia pode, também, utilizar-se desse método intuitivo para alcançar o movimento e a mudança, como no caso da metafísica.

Referências bibliográficas

229 Bergson aposta podemos voltar para a percepção direta da mudança e da mobilidade. Ao nos desvencilharmos desses hábitos impostos pela razão, o primeiro

resultado está na percepção do movimento: “Representar-nos-emos toda mudança, todo movimento, como absolutamente indivisível” (BERGSON, H,. 2006, p. 164). Partindo da análise do movimento ou de toda e qualquer mudança, Bergson exemplifica: a mão A que encontra a mão B, tendo em vista que o percurso AB é simples, nesse ato temos a percepção imediata.

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BARDI, Pietro M. Gênios da Pintura: Impressionistas. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1995.

BERGSON, H-L: O pensamento e o movente. Tradução: Bento Prado Neto. São Paulo, Martins Fontes, 2006

_____. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Tradução: João da Silva Gama. Lisboa: Edições 70, 1988.

DUFRENNE, M. “Philosophie et littérature”, Revue d’Esthétique. Paris: PUF, 1953.

GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Tradução: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.

JOHANSON, Izilda. Arte e Intuição: A questão estética em Bergson. São Paulo: Associação Humanitas/FFLCH/USP, FAPESP, 2005.

LEOPOLDO E SILVA, Franklin. Bergson: Intuição e Discurso Filosófico. São Paulo: Loyola, 1994.

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VERDADE, INDETERMINISMO E METAFÍSICA EM POPPER – Al exandre Klock Ernzen 230

A dissertação visa abordar as noções de verdade, indeterminismo e metafísica. Popper engendra uma nova concepção segundo a qual a

verdade atua como elemento ideal, entretanto, regulador, logo, de ordem metafísica. Sem que se possa afirmar a possibilidade de alcançar a

verdade, o racionalismo crítico de Popper propõe que a visão indeterminista do mundo faz mais sentido do que a concepção determinista, por

permitir que os teóricos sejam mais fiéis aos limites da racionalidade. É através da crítica consistente e da submissão de teorias à apreciação da

comunidade teórica que tornamos nossas teorias mais “verossimilhantes”, ou seja, com maior conteúdo de verdade, correspondendo mais

proximamente aos fatos. Assim, não é contraditório com a tarefa da filosofia e da ciência, no âmbito do pensamento objetivo, pensar na presença

constante da metafísica, e isso por dois aspectos: a) em primeiro lugar, a verdade é disposta como elemento regulador para as pesquisas

científicas, cujo alcance é limitado no âmbito da constituição teórica; b) muitas teorias se apresentaram com muitos elementos cuja existência não

era comprovada empiricamente, no entanto, é certa sua influência na visão cosmológica de inúmeros cientistas.

1. OBJETIVOS

230 Mestrando Filosofia Unioeste

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1.2. Geral

O projeto de dissertação tem por objetivo a delimitação correta do que o autor entende por verdade, indeterminismo e metafísica em sua

obra. O objetivo é investigar na obra popperiana, os elementos que possam auxiliar no entendimento de como o autor propõe esta nova leitura da

constituição do conhecimento científico, baseada na ideia da existência de uma cosmologia cuja natureza metafísica influencia o modo de

entendimento de toda a ciência contemporânea, justificando o fato de manter – mesmo que não se possam ter provas empíricas – elementos

metafísicos para a explicação de como se pode melhor compreender o cosmos.

1.3. Específicos

a) determinar a aplicabilidade da visão cosmológica de Popper à ciência contemporânea;

b) determinar como se dá o encadeamento lógico dos conceitos de verdade, indeterminismo e metafísica como alternativa plausível para o

entendimento da proposta de Popper;

c) delimitar se o conceito de verdade, embora de ordem metafísica, é necessário para assegurar a proposta de visão indeterminista do mundo.

d) analise sobre os conceitos metafísicos: tais conceitos são necessários para que haja evolução no conhecimento objetivo rumo à verdade?

2. JUSTIFICATIVA

Os problemas teóricos que se relacionam aos conceitos de verdade, indeterminismo e metafísica merecem grande atenção na perspectiva

da cosmologia popperiana. Ao pensar sobre a constituição de conhecimentos científicos aceitos como tal, devemos ter em vista que estas

questões se apresentam ao longo dos tempos e merecem atenção especial. A posição de Popper é diferenciada em relação aos outros filósofos:

ele admite que a verdade atua como elemento regulador, porém, sem a possibilidade de alcançá-la, pois acredita que a visão indeterminista do

mundo faz com que os teóricos sejam mais fiéis aos limites da racionalidade. Não negligencia, contudo, que tanto a questão da verdade de teorias

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como a postura indeterminista acarreta a existência/manutenção destes conceitos – verdade e indeterminismo – metafísicos na constituição do

conhecimento objetivo.

É importante preservar e atentar para a fidelidade ao pensamento do autor para não incorrer em equívocos ou leitura superficial, como

fora o caso de alguns comentadores que consideraram Popper membro do Círculo de Viena. Popper deixou evidente em toda sua obra que as

posições positivistas não poderiam ser mantidas, neste sentido, o seu racionalismo crítico foi uma resposta direta à teoria destes filósofos. Outro

aspecto é que, após o advento da teoria da relatividade de Einstein e o surgimento da física quântica, todo o arcabouço teórico da ciência moderna

deve ser repensado para dar conta dessa realidade teórica nova que foge a todos os parâmetros tradicionais.

Por isso, a teoria quântica merece atenção especial, pois, muitos dos dados se apresentam de forma estatística e não passam de

especulação, ao menos, por enquanto. Todo esforço é valido para procurar teorias altamente explicativas, mas, se abandonarmos a busca pela

verdade, somada à visão indeterminista e com a postura de aceitação metafísica, a ciência pode padecer em sua tarefa primordial, qual seja, a

descrição e entendimento do cosmo que nos rodeia.

3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA DO PROBLEMA

3.1. O problema da Verdade

Nossa principal preocupação em filosofia e em ciência deve ser a procura da verdade (POPPER).

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O racionalismo crítico visa introduzir novamente a razão no âmbito da constituição do conhecimento científico. Segundo Popper, ao

longo da história a razão deixou de ser parte constituinte da ciência, sendo substituída apenas por dados oriundos dos sentidos os quais, por via da

generalização de casos particulares, assumiam a propriedade de leis constituintes do conhecimento científico. A ideia popperiana fundamental é

que a razão seja parte fundante e constituinte da ciência para que, por meio dela, possamos escolher entre teorias melhores e mais descritivas para

a resolução dos problemas em questão. A noção de debate crítico231 para a escolha entre teorias que se apresentam é um dos elementos que

possibilitam a escolha e fundação do conhecimento científico.

Na medida em que os dados oriundos dos sentidos não são suficientes para postular a veracidade de teorias por meio da indução, a

sugestão de Popper é de criarmos hipóteses e conjecturas que possam abranger o maior número de casos particulares. Através do método

hipotético-dedutivo de teorias livremente criadas pela mente humana é que poderemos deduzir fatos e, através de testes, poderemos determinar

qual é ou quais são as teorias que melhor descrevem a realidade. A origem de tais hipóteses não importa para a ciência, não constitui objeto de

investigação epistemológica. Mas o ponto central é a relevância das teorias, para ser considerada científica a previsão de fatos com descrições

ricas é determinante. Isso permite resultados que podem ser deduzidos de forma a tornar as teorias testáveis incansavelmente e assim, determinar

se ela descreve ou não os fatos.

Hipóteses e conjecturas devem ser ousadas e descritivas, com alto conteúdo de verdade e grande capacidade de descrever a

universalidade de fatos a ponto de ir contra a probabilidade de descrição de casos particulares. Teorias que tem alta probabilidade de descrição

verdadeira de um fato específico não se tornam interessantes para o conhecimento objetivo. O teórico comprometido com a ampliação do

231 Cf. O conhecimento e o problema corpo-mente. Nesta obra, Popper utiliza a noção de DCA – Debate Crítico Apreciativo – como meio de escolha entre teorias

concorrentes. No ato de solução de algum problema específico, podem surgir várias teorias, sendo necessário o DCA para optar por aquela teoria que dá melhor resposta e também para eliminar definitivamente outra teoria que não responde ao questionamento inicial. É pelo diálogo intersubjetivo que o cientista poderá definir qual é a melhor teoria para resolução de um problema específico.

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horizonte do conhecimento deve procurar criar e trabalhar com teorias que possam descrever o maior número de casos possíveis, ou seja, as

hipóteses devem apresentar a pretensão de abarcar todos os casos possíveis dentro de uma realidade possível. Quanto maior o grau de

universalidade de uma teoria, consequentemente apresentará menor probabilidade.

[...] se o progresso do conhecimento significa que passamos a utilizar teorias de maior conteúdo, significa também que usamos

teorias de menor probabilidade (no sentido do cálculo de probabilidades). Portanto, se nosso objetivo é a expansão do

conhecimento, não podemos visar igualmente a alta probabilidade: esses dois objetivos são incompatíveis (POPPER, 1994, p.

244)

A relação entre a razão e a busca pela verdade não é evidente, mas, está no fato de que a razão é mecanismo que possibilita a busca pela

verdade, baseada na crítica de teorias que pretendem descrever a realidade232. Por meio de testes empíricos é possível determinar se efetivamente

a teoria em questão descreve fatos. A verdade, portanto, se dá por correspondência com a realidade233, na medida em que a descreve mais

verdadeiramente ou menos. Se o critério de verdade é a correspondência, as teorias se apresentam em caráter provisório, não se pode postular que

a ciência objetiva é absolutamente certa. Popper usa a metáfora do pântano para ilustrar esta situação, afirmando que a ciência pode apresentar-se

como conhecimento científico, no entanto, suas bases são lançadas na medida em que o edifício teórico necessita de bases seguras. Estas bases,

contudo, são provisórias e ao longo da construção de teorias podem ser expandidas de acordo com a necessidade, não havendo possibilidades de

termos pilares firmes suficientes para postularmos uma teoria em caráter absoluto.

232 Brian Magee aponta em seu livro As idéias de Popper que todo o conhecimento só poderá ter sua expansão e progresso por meio da crítica, cujo elemento

fundamental é a própria razão, esquecida ao longo dos séculos com a utilização da indução. 233 Cf. em Conhecimento objetivo o apêndice 9, intitulado “Comentários filosóficos sobre a teoria da verdade, de Tarki. “A teoria de Tarski permite-nos definir a

verdade como correspondência com os fatos; mas podemos usá-la também para definir a realidade como aquilo a que correspondem asserções verdadeiras.(...) e tal como

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A base empírica da ciência objetiva nada tem, portanto, de ‘absoluto’. A ciência não repousa em pedra firme. A estrutura de

suas teorias levanta-se, por assim dizer, num pântano. Semelha-se a um edifício construído sobre pilares. Os pilares são

enterrados no pântano, mas não em qualquer base natural ou dada. Se deixarmos de enterrar mais profundamente esses pilares,

não o fazemos por termos encontrado terreno firme. Simplesmente nos detemos quando achamos que os pilares estão

suficientemente assentados para sustentar a estrutura – pelo menos por algum tempo. (POPPER, 1975b, p. 119)

Aquilo que Popper chama de conhecimento objetivo tem por ideal a busca pela verdade. A tarefa do teórico é buscar constantemente

aproximar mais sua teoria ao ideal de verdade, que é a meta da ciência. Embora inalcançável, a verdade exerce inegável influência nas pesquisas

científicas, atuando como elemento que dá a noção de aproximação ou não de uma teoria científica ao ideal. Conjecturas e teorias que pretendem

descrever a realidade se apresentam como mais verossimilhantes aos fatos e por isso podem ser ditas “mais próximas” da verdade234. Ainda que a

ciência apresenta caráter dinâmico e provisório, não significa que não possa gerar conhecimento objetivo. Embora a “verdade absoluta” se

apresente como elemento metafísico, sem dúvida ela é essencial para a constituição de conhecimento científico, pois, é a meta da ciência.

3.2. O problema do Indeterminismo

Tarski nos permite substituir o termo “verdade” por “o conjunto de asserções verdadeiras”.(...) Simplesmente quero dizer que, se é possível definir ‘verdade’ como ‘correspondência com os fatos’, ou, o que dá no mesmo, como ‘correspondência com a realidade” (POPPER, 1975a, p. 302).

234 “Desse modo, a procura da verrosimilitude é um alvo mais nítido e mais realista do que a procura da verdade.(...) embora possamos nunca ter argumentos suficientemente bons, nas ciências empíricas, para alegar que alcançamos de fato a verdade, podemos ter argumentos fortes e razoavelmente bons para alegar que é possível termos feito progresso no rumo da verdade; isto é, que a teoria T é preferível à sua predecessora t, pelo menos à luz de todos os argumentos racionais conhecidos” (POPPER, 1975a, p. 63).

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[...] nós olhamos o futuro como não estando ainda completamente fixado: por contraste com o passado, que é fechado, por assim

dizer, o futuro está ainda aberto à influência; não está ainda completamente determinado. (POPPER,1988, p. 70)

Popper se declara abertamente indeterminista e acredita que esta é a melhor postura para entender a forma como se apresenta o mundo

diante de nós235. Considera que para darmos explicações melhores e eficientes sobre fatos, deveremos assumir a postura indeterminista em

detrimento da tradicional visão determinista de mundo. A evolução do conhecimento científico com seu desenvolvimento atual fortalece a ideia

de que não podemos compreender o universo como um todo e de forma estática, e que todo nosso conhecimento até hoje desenvolvido não é

suficiente para dar explicações satisfatórias a tudo que acontece, pois, o universo está em constante expansão.

Um dos fortes argumentos de Popper em favor da postura indeterminista é tomar nossas teorias como redes que pretendem apreender o

mundo, no entanto, nossas redes podem apreender aquilo que nossa malha da rede possibilita, ou seja, sempre haverá algum fato que escapa à

nossa pretensão de explicação através de teorias. Por isto, teorias são sempre reformuladas236, e até em certa medida, abandonadas, em prol de

teorias que possibilitem melhor apreensão do mundo dos fatos com melhores explicações sobre aquilo que acontece.

Mas como não há medida absoluta do grau de aproximação alcançado – do caráter grosseiro ou apurado da nossa rede – mas

apenas uma comparação com aproximações melhores ou piores, até mesmo os nossos esforços mais bem sucedidos podem

235 Popper faz uma analogia ao advento de uma sinfonia de Mozart para exemplificar que o determinismo é impossível: “[...] minha convicção o argumento intuitivo

de que a criação de uma obra nova, como a Sinfonia em Sol Menor, de Mozart, não pode ser prevista, em todos os seus pormenores, por um físico ou por um fisiólogo que estudem pormenorizadamente o corpo de Mozart – sobretudo seu cérebro – e o seu ambiente físico”. (POPPER, 1988, p. 57)

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produzir apenas uma rede cuja malha seja larga de mais para o determinismo. Tentamos examinar exaustivamente o mundo

através das nossas redes, mas a malha há-de sempre deixar fugir algum peixe miúdo: haverá sempre folga suficiente para o

indeterminismo. (POPPER, 1988, p. 62)

A razão exerce papel fundamental nesta busca constante, pois, é através dela que formulamos, discutimos e instituímos teorias por meio

da crítica para determinar aquilo que é chamado conhecimento científico e aquilo que deveremos abandonar. A postura indeterminista pode

facilitar a compreensão dos fatos, dado que, chegamos ao momento em que a postura determinista do mundo – qual foi defendida ao longo dos

séculos – não pode ser sustentada em ciência, haja vista que descobertas da física moderna apontam para um universo aberto e em constante

expansão, ou seja, aquilo que sabemos não é suficiente para postular que somos os únicos no universo e que ele possui limites existentes.

A nossa tarefa é a da busca incessante por melhores explicações sobre os fatos e, deste modo, deveremos apresentar teorias coerentes

com aquilo que desejamos aprender, pois, o indeterminismo metafísico está em consonância com o indeterminismo físico, segundo a tese

popperiana237. Uma teoria será melhor que sua concorrente se apresentar melhores resultados aos problemas determinados, mas, não podemos

deixar de lado a ideia principal de que, com a postura indeterminista aceita, nosso conhecimento será sempre moldado em torno da falibilidade238

236 O caráter aproximado de todo o conhecimento científico – a rede cuja malha tentamos tornar cada vez mais fina – fornece aquele que me parece ser o argumento

filosoficamente mais fundamental contra o determinismo científico, e a favor do indeterminismo. Secundário em relação a este, mas ainda assim importante, é o argumento a partir da assimetria entre passado e futuro. (POPPER, 1988, p. 69)

237 Se desejamos teorias que possam ter o caráter de universalidade, isto é, teorias que possam descrever tanto o passado quanto o futuro, não poderemos negligenciar a assimetria fundamental entre passado e futuro: “Mas, de modo igualmente evidente, nós olhamos o futuro como não estando ainda completamente fixado: por contraste com o passado, que é fechado, por assim dizer, o futuro está ainda aberto à influência; não está ainda completamente determinado” (POPPER ,1988, p. 70).

238 Apesar de a ciência contar com grande respaldo, nada justifica o fato de pensa-la como fonte última do conhecimento. “É possível que mais tarde (...) algo inteiramente novo possa ser encontrado, mas sonhar com um regresso, um regresso ao estilo clássico de Newton-Maxwell (e isso a que esses senhores se entregam não são mais do que sonhos) é algo que me parece não ter quaisquer esperanças, não vir a propósito e ser de mau gosto. E, poderíamos acrescentar, “não é sequer um sonho bonito”. (POPPER, 1989, p. 181)

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de teorias, ou seja, mesmo que uma teoria apresente bons resultados por certo período de tempo, nada garante que ela possa ser a representante

ou portadora de uma explicação final de determinado fato239.

Portanto, deve-se afastar qualquer tipo de convencionalismo tanto em filosofia como em ciência no sentido de termos uma teoria que

possa dar cabo a todos os problemas ou que ainda seja uma forma de determinismo instituído. Teorias são aceitas pela comunidade de cientistas

por testes intersubjetivos capazes de determinar a veracidade de dados apresentados, mas, jamais será suficiente para trazer alguma explicação

última de fatos. Em decorrência da postura indeterminista aceita, o convencionalismo torna-se supérfluo e é substituído por aceitação de teorias

cujos resultados melhores são apresentados. Sempre que uma teoria melhor surge, as menos descritivas e mais restritas são abandonadas.

3.3. O problema da Metafísica

[...] tais programas de investigação são indispensáveis à ciência, ainda que tenham uma natureza de física metafísica ou

especulativa e não de física científica. Originalmente, eram todos metafísicos, em quase todas as acepções da palavra (POPPER,

1989, p. 172)

239 Popper afirma que nem mesmo teorias bem sucedidas como de Newton ou Einstein foram concebidas como livres de superação: “Newton nunca acreditou que sua

teoria fosse a última palavra realmente, e Einstein nunca acreditou que sua teoria fosse mais do que uma boa aproximação da teoria verdadeira” (POPPER, 1975a, p. 63).

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Pode parecer contradição evidente pensar em algum problema metafísico para a constituição de um programa sério de pesquisa

científica. Porém, apesar da tentativa constante da eliminação da metafísica240 na constituição do conhecimento sobre bases empíricas seguras,

não há a possibilidade de retirar todos os elementos que ultrapassam o limite da experiência empírica. Ao longo da história – e Popper não vê de

outro modo – a ciência sempre foi permeada por elementos metafísicos e considera que ela não pode, de modo algum, abandonar este modo de

constituição da ciência partindo de condições metafísicas rumo à experiência, sempre com a pretensão de purificar o conhecimento científico

baseado em descrições de fatos.

Não se pode negligenciar que programas metafísicos exerceram grande influência na própria visão de ciência, propiciando que as bases

fundamentais de tais programas abram possibilidades de pensamento e fechem outras com o intuito de procurar a melhor descrição para o mundo

de fatos que se apresentam. Uma teoria dificilmente se apresentará isenta de qualquer elemento metafísico, ou seja, não há teoria alguma na qual

um ou outro elemento não escape da comprovação de testes empíricos e, cuja possibilidade de existência se faz essencial para que respostas a

problemas sejam possíveis.

Diante disso, para a constituição de uma epistemologia é necessária uma ontologia? Sim. Uma vez que para que se possa compreender

como ocorrem as mudanças no mundo, necessitamos de uma ideia unificada dele. É possível pensar em uma ontologia neste sentido, se levarmos

em conta a possibilidade de pensar o mundo como um todo, da forma como Parmênides e Einstein o fizeram. Através da ideia de totalidade

presente no mundo é possível pensar em teorias que possam descrever em caráter universal os fatos e assim nos aproximarmos mais da verdade,

ou seja, uma teoria é mais verossímil na medida em que melhor descreve os fatos. Mediante a imagem de mundo estabelecida, ainda que

hipotética, poderão ser aceitos ou refutados determinados enunciados, de acordo com a teoria em questão.

240 Popper faz menção a dez programas metafísicos que influenciaram a história da ciência ao longo dos temos em sua obra A teoria dos quanta e o cisma na física.

Cf. o capítulo 20, intitulado “Idéias e programas de investigação metafísica e a história da física”, p. 168.

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Porém, a pergunta que se impõe é a seguinte: “é legitimo concebermos teleologia no mundo? Se sim, teleologia fixa ou dinâmica?”

Certamente estamos incapacitados de responder de forma definitiva esta questão. Não obstante, se levarmos em conta que o fim específico da

ciência seja alcançar a verdade, então teremos uma teleologia fixa. No entanto, se temos a perspectiva de que a busca pela verdade na qual teorias

são sempre substituídas umas pelas outras de acordo com seu conteúdo de verdade, então, a teleologia deverá ser tomada como dinâmica, uma

vez que podemos dizer que estamos mais próximos da verdade, mas, não temos nunca garantias de que esta é a verdade última. “Assim temos,

por assim dizer, de reformar a linguagem ordinária enquanto a usamos, como foi dito por Neurath em sua metáfora do navio que temos de

reconstruir enquanto tentamos manter-nos a seu bordo. Esta é realmente a situação do senso comum crítico, tal como o vejo” (POPPER, 1975a,

p. 65).

Portanto, assim como na metáfora do barquinho de Neurath241, a busca pela verdade é como a reconstrução constante de um barco sobre

as águas do oceano. Sempre deveremos possuir uma hipótese ou teoria que dê conta de mantermos a navegação quando nossas teses antigas

ruírem. No oceano dos fatos possíveis, não sabemos com certeza para onde os ventos das nossas criações teóricas nos levam, ou seja, ora os

ventos da verdade estão favoráveis ao norte, ora ao sul. O fato é que estamos constantemente navegando, reconstruindo linguisticamente as

referências e refazendo teoricamente nossas representações. Entretanto, nunca podemos saber ao certo se a verdade se encontra próxima ou à

distância. Mesmo que o que sabemos seja pouco em relação ao que ignoramos, seguimos construindo e melhorando nossa embarcação a fim de

navegar rumo ao desconhecido para torná-lo conhecido.

Referências

241 NEURATH, Philosophical papers.

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Obras de Karl Popper

1. _____. The Logic of Scientific Discovery. (translation of Logik der Forschung). London: Hutchinson, 1959.

2. _____. Conjectures and Refutations: The Growth of Scientific Knowledge. London: Routledge, 1963

3. _____. Objective Knowledge: An Evolutionary Approach. Oxford: Clarendon Press, 1972.

4. _____. Unended Quest; An Intellectual Autobiography. London: Fontana, 1976.

5. _____. 'A Note on Verisimilitude', The British Journal for the Philosophy of Science 27, 1976, 147-159.

6. _____. The Open Universe: An Argument for Indeterminism. (ed. W.W. Bartley 111). London: Hutchinson, 1982.

7. _____. The Open Universe: An Argument for Indeterminism. London and Ney York. Routledge, 1982.

8. _____. Realism and the Aim of Science, London: Hutchinson, 1982.

9. _____. Quantum Theory and the Schism in Physics. London and Ney York. Routledge, 1982.

10. _____. Knowledge and the Mind-Body Problem: In Defence of Interactionism. (ed. M.A. Notturno). London: Routledge, 1994.

11. ___. (1974b). “Intellectual Autobiography”. In: Schilpp, (1974).

Traduções

1. POPPER, Karl R. A Lógica da Pesquisa Científica. Trad. Leônidas Hegenberg. São Paulo, Cultrix, 2° ed., 1975b.

2. POPPER, Karl R. Pós-Escritos à Lógica da Descoberta Científica volume 1. O realismo e o objetivo da ciência. Trad. Nuno Ferreira da Fonseca. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1987.

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3. POPPER, Karl. Pós-Escritos à Lógica da Descoberta Científica volume 2. O Universo Aberto. Lisboa. Dom Quixote.1988.

4. POPPER, Karl. Pós-Escritos à Lógica da Descoberta Científica volume 3. A Teoria Quântica e o Cisma na Física. Lisboa, Dom Quixote.1992.

5. POPPER, KARL R. Conhecimento Objetivo. Trad. de Milton Amado. Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 1975a.

6. POPPER, Karl R. O conhecimento e o problema corpo-mente. Trad. Joaquim Alberto Ferreira Gomes. Lisboa: Edições 70, 2002.

7. POPPER, Karl. Em Busca de um Mundo Melhor. Lisboa.Ed.Fragmentos.1992

8. POPPER, Karl. O Mito do Contexto. Uma Defesa da Ciência e da Racionalidade. Lisboa, Edições 70.1999.

9. _______. Apêndice. O balde e o holofote: duas teorias do conhecimento. In: Conhecimento Objetivo. Trad. de Milton Amado. Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 1999, pp. 313-333.

10. POPPER, Karl R. Conjecturas e Refutações. Trad. de Sérgio Bath. Brasília, Editora da UNB, 3º ed., 1994.

11. POPPER, Karl Raimund. Autobiografia intelectual. São Paulo: Cultrix, 1986.

BIBLIOGRAFIA GERAL

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2. GILLIES, D. (1997). “A Contribuição de Popper à Filosofia da Probabilidade”. In: O’Hear (1997).

3. MILLER, D. (1997b). “Propensões e Indeterminismo” In: O’Hear (1997).

4. WORRAL, J. “Revolução Permanente: Popper e a Mudança de Teorias na Ciência”. In: O’hear (1997).

5. HACOHEN, Malachi Haim. Karl Popper – Os anos de formação. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/Popper-Bio-1.pdf>. Acesso em: 23 março 2009.

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6. GRÁCIO, Maria Cláudia Cabrini. Sobre a indução. Disponível em: <ftp://ftp.cle.unicamp.br/pub/arquivos/educacional/ArtGT4.pdf>. Acesso em: 19 março 2009.

7. MAGEE, Bryan. As ideias de Popper. Trad. Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. Ed.: Cultrix. São Paulo, 1973.

CHALMERS, Alan. O que é ciência afinal? Trad. de Raul Fiker. Ed. Brasiliense. São Paulo, 2006.

8. HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano. Coleção: Os Pensadores. Tradução de Leonel Vallandro. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

ACKERMANN, R. (1977). The Philosophy of Karl Popper. United States of America:

The University of Massachusetts Press.

9. MILLER, David. Popper, escritos selectos. Editora Fondo de Cultura. Madrid, 1997.

10. KEUTH, Herber. The philosophy of Karl Popper. Cambridge University Press, 2000.

11. PELUSO, Luis Alberto. A filosofia de Karl Popper. Papirus, 1995.

12. QUECALTO, Ramon. Karl Popper, de La epistemologia a La metafísica. Secretariado de Publicaciones, 1996.

13. NEURATH, Otto. Philosophical papers 1913-1946. Edited and translated by Robert S. Cohen and Marie Neurath, Dordrecht/Boston/Lancaster: D.Reidel Publishing Company, 1983.

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SOBRE O CONCEITO ARISTOTÉLICO DE NATUREZA – Jonatha n Junges

Aristóteles, no desenvolvimento de sua filosofia da natureza, procura identificar os princípios constitutivos que estão no fundamento de

toda e qualquer natureza, para, então, propor um método de investigação cientifica segundo o qual um investigador deva observá-la e estudá-la.

Nossa proposta é demonstrar os principais conceitos relacionados a essa explicação correta da natureza, e esclarecer de que maneira conseguem

satisfatoriamente articular-se para uma possível explicação, levando em consideração a dinâmica e a multiplicidade do mundo físico.

Ao descobrir suas primeiras definições acerca da natureza, o modelo aristotélico se distingue frente a toda uma tradição da física mais

antiga, principalmente frente à filosofia de Parmênides. A refutação de Aristóteles a Parmênides é efetivamente uma de suas afirmações-base

para uma investigação correta da natureza; trata-se de rejeitar a negação do movimento. Para o pré-socrático, o ser tem uma série de predicações

peculiares como “os caracteres da imutabilidade, imobilidade e unidade”.242 Isso, em ultima instância, contraria todas as observações dos

sentidos, e, por consequência, toda a dinâmica e multiplicidade do mundo fenomênico.

A partir disso, torna-se perceptível que o conceito de movimento tem, na física aristotélica, uma importante função. Observe-se que o

sentido adotado para o conceito de movimento, em Aristóteles, não é aquele que compreendemos hoje, principalmente quanto à concepção que o

restringe ao ao deslocamento. Para Aristóteles, a abrangência do conceito de movimento conhece quatro instâncas: o deslocamento ou

locomoção; o definhamento e crescimento; mudanças na quantidade, e ainda segundo a sua alteração, mudança na qualidade.243

242 SOUZA (org.), 1996, p.21. 243 Física, III, 201a 5-11.

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A geração e a corrupção (Aristóteles dedicou uma obra inteira a este problema) constituem um modelo peculiar de movimento, diferente

do que se dá nos três primeiros tipos de movimentos, caracterizados, em suma, por mudanças acidentais ou não essenciais. Ggeração e corrupção

permeiam as gerações substanciais, como p. ex., o nascimento.244 Assim, o movimento será um dos princípios para uma investigação correta da

natureza, dado que se o ignorarmos ignoraremos também, por conseguinte, a natureza.245

Já o próprio termo grego phýsis traz em si uma significação que, por sua vez, corrobora a compreensão de natureza aristotélica. Podemos

relacionar a phýsis como o processo do que nasce e está destinado a algo, e que deva ser submetida à realização. “A phýsis é, por assim dizer, a

universal mistura seminal dos elementos”.246 Ela deverá ser sempre harmônica, jamais entendida em um sentido anárquico ou ocasional, pois, se

se planta uma semente de melancia, nascerá uma melancia e não uma beterraba. Ora, a explanação mesma impede negar a relevância do mundo

fenomênico e sua multiplicidade, e, além do mais, relaciona-se a uma visão teleológica da natureza, como.

Outra distinção importante que concerne à natureza é a sua diferença entre o que é por natureza, conforme à natureza e por técnica.

Podemos considerar equivalentes as expressões conforme a natureza e por natureza, na medida em que retratam o que é inerente aos entes, ou

seja, aquilo que é subjacente à própria natureza, suas peculariedade comum submetidas às mesmas leis. Para compreendermos melhor o que

possam ser essas leis, tomaremos um exemplo comum: uma criança se oncebe como um ente que está em direção a algo – tornar-se um adulto.

Este processo está em conformidade com a natureza, significa uma mudança natural, à qual todos os membros desse gênero estão sujeitos;

contém, assim, um princípio imanente de movimento ou repouso.247 Também isso ocorre com as plantas e animais e com todos os entes ditos

naturais, tendo em vista que se constituem por alteração em direção a algo. Por outro lado, a técnica, apesar de ser um tipo especial de “natureza”,

não é natureza, apenas a imita.

244 ANGIONI, 2009, p.201. 245 Física, III, 200b. 246 SPINELLI, 2006, p.37. 247 Física, II, 192b 12-13.

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Conforme a técnica, podemos compreender toda arte manufaturada que tenha sido utilizada da matéria da natureza. A técnica imita a

natureza na medida em que o seu resultado é semelhante ao ente natural. O produto da técnica é constituído de matéria e de forma (falaremos

disso mais adiante). Efetivamente, na construção de uma mesa aproveita-se a madeira248 para construir o objeto (sua forma). Os entes que vêm a

ser mediante a técnica têm e sofrem alterações ou mudanças, como ocorre nas coisas que vêm a ser por natureza, mas não as têm em si: não se

constituem por um princípio inato de movimento ou de mudança. O que ocorre, quando os manufaturados sofrem algum tipo de alteração, é em

virtude de sua matéria, enquanto esta é conforme a natureza.249 Ilustraremos melhor esta noção através de um artefato qualquer, a saber, uma

mesa. Ela mesma não tem em si um princípio inato de movimento; dela própria não nascerá uma mesa, mas, se enterrarmos a mesa, brotará a

própria madeira; entretanto, de um homem nasce um homem250. Portanto, uma característica comum ao resultado da técnica é que depende de

princípios externos para sua efetividade plena, em contraste com o que se dá com os entes por natureza.251

Dado que Aristóteles já tem uma idéia muito genérica sobre o que é a natureza, porém, ele ainda não encontrou uma solução para o seu

problema. Pois, apesar de aceitar que o movimento é algo imprescindível para uma phýsis, sua investigação ainda não atingiu um dos seus

objetivos, ou seja, descobrir quais são os princípios elementares na constituição da natureza. Em vista disso, também não diagnosticou, se é um

ou mais de um princípio, e ser for mais de um, saber quantos são e, portanto, se são infinitos ou não, já que por sua vez se forem infinitos, é

incognoscível para nós.

No capitulo um do livro dois da Física, nosso filósofo atinge um dos seus objetivos, que é a primeira definição de alguns princípios

fundamentais acerca da natureza. “Denomina-se natureza a primeira matéria que subjaz a cada um dos que possuem em si mesmo um principio

248 Não devemos relacionar a matéria de um objeto (madeira, p.ex.) como um princípio elementar da natureza. O que ocorre de fato é que uma madeira é constituída

em sua essência por uma matéria ou um substrato, com a propriedade de participar de tudo que é por natureza. Ver ROSS, 1987. p.76. 249 ROSS, 1987, p.75.

250 Física, II, 193a 9-20.

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de movimento ou mudança; mas, de outra maneira, denomina-se natureza a configuração e a forma segundo a definição”.252 Ora, movimento,

matéria e forma são o dinamismo que podem explicar à natureza, mas a matéria e a forma são os seus princípios fundamentais que constitui toda

natureza, porém, elas não são separadas no mundo físico, apenas no pensamento253.

Em vista de que existem pelo menos dois princípios fundamentais que constitui uma filosofia natural, não deve haver segundo Aristóteles

mais que três. Este último, denominado privação, talvez não seja um princípio no mesmo sentido de matéria e forma, porque ele justamente não

é. Entretanto, a privação possibilita a relação de ambas no processo do devir ou da mudança.254

A privação se for compreendida como um intermédio entre o ser e o não ser no processo de mudança, em vista disso a existência de um é

a negação do outro. P.ex., o homem quando é uma criança, ele deverá se desenvolver para tornar-se adulto, quando este é adulto, não é mais

criança. A privação é um não ser em sua essência255. Entre a potência (possibilidade) e o ato (o que é) de alguma coisa, “existe” uma que nunca

será, nem em ato e nem em potencia, ela não é. “Uma coisa vem ao ser a partir de sua privação, o que é realmente simpliciter não ser [...]”.256

Portanto, é exatamente o que faz uma coisa poder ser.

A matéria se entendida como um substrato primeiro de cada coisa, no qual se realiza a mudança, em vista de um devir, ou de um vir a ser,

sendo ela aquilo que será determinado até o fim da geração, tendo em vista uma realização. A matéria está sempre em uma condição de potência

em se tornar algo, quando ela atinge o seu objetivo final, “em vista do que”, ela não é mais matéria, mas sua própria realização, o ato, ou também

251 ANGIONI, 2009, p.202.

252 Física, II, 193a28. 253 Física, II, 193b 4-6. 254 ROSS, 1987, p.73. 255 SPINELLI, 2002, p.269. 256 ROSS, 1987, p.74.

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podemos denominar a forma. Entretanto, por mais paradoxalmente que possa parecer, ela em sua essência jamais deixa de ser matéria, mesmo

depois de sua realização, pois, “a matéria nunca existe em seu estado puro, mas é sempre constituída de uma forma”.257

Em vista disso, a forma determina a matéria em seu processo de realização, sendo compreendida como a efetividade, o ato realizado,

“aquilo que o ser é”, “em direção a quê”, sendo a forma considerada mais natureza que a matéria.258 A forma está sempre direcionando a matéria

para concluir o devir no processo de realização. Parece haver uma hierarquia da forma sobre a matéria. Segundo Ross afirma que:

“Para Aristóteles, a natureza de alguma coisa reside mais aqui [forma] do que na sua matéria, pois uma coisa é o que é, possui a sua

natureza, do modo mais pleno, desde o momento em que existe como ato, quando atinge a sua forma [...]”.259

Assim, a matéria seria como um suporte, ela estaria em uma inclinação de dependência da forma, e logo incompleta, dado que está em

potencia de poder ir em direção a algo, mas ainda não é, dado que é a forma que efetivamente confecciona o ser para sua atividade plena.

Entretanto, se pensarmos em uma relação recíproca está hierarquia se dissolve, na medida em que é necessária a união de ambas para uma

efetividade completa do ser. A teoria das causas de Aristóteles explicara melhor esta relação entre matéria e forma, mas não iremos elucidar aqui

neste presente trabalho.

Para finalizar, é relevante recorrermos os principais pontos que foram vistos no texto. Observemos que, Aristóteles inicializou sua

problematização levando em consideração as filosofias anteriores da sua época, principalmente com a doutrina de Parmênides. Ao defender a

existência de fato do movimento, Aristóteles busca no processo do devir, uma de suas bases para explicar a natureza. Nosso filósofo, a partir

disso, busca uma definição satisfatória de natureza, dividindo o que permeia a natureza e o que é outra coisa, a saber, a técnica. Além disso, na

sua investigação procura encontrar os princípios fundamentais que constituem de fato o ente natural. Ao descobrir, que matéria e forma são as

257 Ibid, p. 74-75. 258 Física, II, 193b 15-17. 259 ROSS, 1987, p.76.

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bases fundamentais, que concerne a natureza, e com isso mostrar que suas relações é que podem de fato, promoverem e explicarem o devir do

mundo fenomênico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

ARISTÓTELES. Física I-II. Prefácio, tradução, introdução e comentários. Trad. Lucas Angioni. Campinas: Unicamp, 2009.

ARISTÓTELES. Física. Trad. Guillermo R. de Echandia. S.l.: Gredos, 1995.

ROSS, D. Aristóteles. Trad. Luís Felipe Bragança. Lisboa: Dom Quixote, 1987.

SPINELLI, M. Questões fundamentais da filosofia grega. São Paulo: Loyola. 2006.

SPINELLI, M. Helenização e recriação dos sentidos: a filosofia na época da expansão do cristianismo. Porto Alegre: Edipucrs, 2002.

SOUZA, José Cavalcante de (org). Os pré-socratico. Fragmentos, doxografia e comentários. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

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CIVILIZAÇÃO E CULTURA EM MARCUSE: UMA CRÍTICA À SUB JETIVIDADE RACIONAL E À CULTURA AFIRMATIVA - Elemar Kleber Favreto 260

RESUMO

Esta comunicação tem por objetivo apresentar as principais críticas de Marcuse à “cultura afirmativa”, termo que expressa o modo de

concepção da sociedade burguesa capitalista moderna. A crítica marcuseana vêm de encontro à crítica heideggeriana à metafísica e à técnica

modernas. A cultura se coloca, diante desta interpretação, como uma forma de fruição estética, como celebração da alma, enquanto que a

civilização seria o ambiente do trabalho e da busca pela satisfação das necessidades cotidianas. Esta separação acaba outorgando à sociedade uma

distinção de classe, sendo que a classe dominante impõe a cultura como um modo de reificação do trabalhador, já que este anuncia a si mesmo a

busca pela felicidade que se encontra sempre no futuro e nunca no presente. A “cultura afirmativa” impõe ao homem a necessidade de uma

transcendência, tirando dele a possibilidade de uma fruição estética imanente, já que mesmo o burguês busca esta felicidade através do aumento

de seu capital; a sua cultura não lhe faz refletir sobre a desiguldade presente, ao contrário, o faz buscar ainda mais o aumento da desigualdade.

A crítica de Marcuse à subjetividade racional se coloca diante da ciência e da cultura moderna. Podemos perceber isso no seu artigo

“Sobre o carater afrimativo da cultura”, onde ele critica a cultura afirmativa, conceito cunhado por Horkheimer para pensar a cultura burguesa.

260 Mestre em Filosofia e Professor Colaborador do curso de Filosofia da UNIOESTE – Toledo. E-mail: [email protected]

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Neste artigo, Marcuse se volta ao pensamento da antiguidade para tentar estabelecer uma comparação com algumas anuances da cultura atual.

Parece haver, portanto, já no mundo grego, uma caracterização social diferenciada: de um lado, estariam aqueles que se voltam para os afazeres

cotidianos, para suprir as necessidades da existência do homem e, de outro, aqueles que se dedicam ao trabalho intelectual.

Com esta distinção, Marcuse verifica uma outra separação importante no modo de pensar a sociedade, ele nos mostra que, de um lado,

haveria a civilização, aquela que se preocupa em satisfazer as necessidades da existência cotidiana, a esfera do útil e do necessário e, de outro, a

cultura, que se preocupa com valores mais elevados e que não dizem respeito ao necessário e ao prático, e sim à esfera do teórico e anímico.

Sabemos que para a sociedade grega estas postulações teóricas não se erigiam como valores propriamente universais, e sim gerais. É apenas com

as filosofias de Platão e Aristóteles que estes valores teóricos acabam se instaurando como valores universais e a separação entre o necessário e o

anímico se tornam uma postura de superioridade dentro da sociedade grega.

Marcuse critica o modo de pensar da filosofia clássica, no sentido de outorgar ao pensamento moderno a possibilidade de trazer a tona a

subjetividade racional. É com Descartes que podemos pensar mais claramente esta subjetividade técnico-científica, já que mesmo na reflexão que

se dirige a uma certa generalidade, o ego cogito, se verifica uma racionalidade puramente subjetiva. A razão cartesiana não ultrapassa as linhas

da mera transcendência para se situar num campo transcendental mais evoluído. Descartes outorga, assim como Platão e a tradição filosófica,

uma transcendência a uma idéia, a idéia do eu. O espírito humano se voltaria unicamente à razão, à racionalidade que é capaz de criar

mecanismos técnicos; capaz de estabelecer, matematicamente, teorias científicas para o “progresso” da humanidade. Mas onde estaria a

sensibilidade, a instintividade, a alma humana que não é puramente racional? A anima, “o sujeito das paixões”, como chama Descartes, não seria

um produto da Razão, ele se mostraria como um certo contraponto à racionalidade, já que se estabeleceria como fruto dos processos químicos e

mecânicos do corpo. A alma (anima) seria, neste pensamento cartesiano, em alguma medida, um produto da res extensa. Isso pode ser ilustrado

na seguinte passagem de Marcuse:

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Desde Descartes o caráter de substância da alma é fundado na peculiaridade do eu como res cogitans. Enquanto todo o mundo exterior-

ao-eu se converte em matéria por princípio mensurável e calculável em seu movimento, o eu seria a única dimensão da realidade que se subtrai

ao racionalismo materialista da burguesia ascendente. Na medida em que o eu se contrapõe como substância essencialmente diferente ao mundo

dos corpos, ocorre uma divisão do eu em dois âmbitos, que é digna de nota. O eu como sujeito do pensamento (mens, espírito) permanece em

auto-assegurada independência do lado de cá do ser da matéria, como o seu a priori, enquanto Descartes procuraria explicar materialisticamente

o eu como alma (anima), como sujeito das “paixões” (amor e ódio, alegria e tristeza, ciúme, vergonha, arrependimento, gratidão, etc.). As

paixões da alma seriam atribuídas à circulação do sangue e sua modificação no cérebro.261

Claro que a alma, dentro da filosofia da razão, que se estende desde Descartes até a filosofia contemporânea, irá ganhar um campo só seu,

um fragmento do eu racional que guarda todos os seus anseios, instintos, desejos e sensibilidades. E enquanto alguns pensadores elevam a alma

humana a um patamar ao qual a própria razão nunca poderá entender (Kant), outros irão inserir a discussão sobre a alma num campo puramente

racional, criando até mesmo uma disciplina capaz de entendê-la e tratá-la, a psicologia. A reflexão de Marcuse é marcada, ao menos nesta sua

primeira teoria crítica, pelo pensamento de Freud. Ele tenta, em alguns pontos, reinterpretar as idéias da psicanálise para pensar a cultura de um

modo diverso da sociedade racional burguesa. Esta discussão, no entanto, não será trabalhada neste texto, já que demandaria um tempo e um

empenho maiores, coisa que extrapolaria a extensão desta fala.

Devemos pensar agora as relações que esta crítica à subjetividade racional e, em certa medida, à filosofia clássica, possui com a

instauração dos princípios e valores universais da sociedade burguesa. Isso nos faz pensar que a subjetividade racional, elevada como princípio

261 MARCUSE, Herbert. Sobre o caráter afirmativo da cultura. In: Cultura e Sociedade - Vol. 1. Trad. Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 104. Em diante: Marcuse, 1997.

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universal pelo pensamento moderno, deva guiar toda a ciência e a técnica e, portanto, todas as relações do homem com as coisas e do homem

consigo mesmo: com a sua cultura e com a sua alma.

A instauração dos princípios teóricos gerais da sociedade grega (elevada a uma caracterização prévia de universalidade com Platão e

Aristóteles) como valores universais se concretizam com mais propriedade quando deixam de ser pensados pela filosofia e se colocam diante da

sociedade em geral, isso ocorre com a sociedade burguesa, onde acaba se erigindo também a forma da cultura como tal.

Conforme a sua essência, a verdade de um juízo filosófico, a bondade de uma ação moral, a beleza de uma obra de arte, devem afetar a

todos, se referir a todos, comprometer a todos. Independente de sexo e origem, sem referência à sua posição no processo produtivo, esses

indivíduos precisam se subordinar aos valores culturais. Precisam assumi-los em sua vida, facultando-lhes permear e transfigurar sua existência.

A “cultura” fornece a alma à “civilização”.262

Por estes dois conceitos continuarem persistindo – cultura e civilização – como dois campos separados do conhecimento na Idade

Moderna, Marcuse afirma a prevalência de um tipo de compreensão da cultura que a eleva por sobre a base da utilidade material. Essa situação é

retirada do pensamento de Horkheimer, que cunha o termo “cultura afirmativa”, que significa que os valores do bom, verdadeiro, justo e belo

devem ser elevados e validados universalmente, sendo realizáveis no “interior de cada sujeito”, sem que esteja implícito o compromisso de

transformar a realidade. Cada um, diante da cultura burguesa, pode ser atingido pela magnitude de seus valores, mesmo que persista a miséria

material.

A questão é que estes valores universais acabam fazendo com que haja uma distinção de classes, de um lado, aqueles que dominam e, de

outro, aqueles que são dominados, já que essa forma de compreensão possui uma conexão muito estreita com a prática política. A distribuição

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dos prazeres e encargos gerados pela sociedade é repartida injustamente. Porém, a cultura é direcionada a um sujeito abstrato, independente de

sua posição de classe.

A cultura burguesa, a “cultura afirmativa”, toma a alma para si, instituindo a ela um caráter de individualização do homem. A alma seria o

ponto de ruptura com a concepção cartesiana e a submissão das paixões aos processos mecânicos e químicos do corpo. A celebração da alma se

mostra como um meio de tentar superar a reificação, de tentar superar a transformação do homem em coisa, em produto e máquina.

A cultura afirmativa protesta com a alma contra a reificação, mas termina sucumbindo a ela mesmo assim. A alma é resguardada como

único plano da vida não absorvido no processo de trabalho social. [...] E nessa qualidade – negativa – ela se torna, assim, a única ainda imaculada

garantia dos ideais burgueses. A alma glorifica a resignação. [...] A alma sozinha evidentemente não tem valor de troca. O valor da alma não é

incorporado nela de modo a se consolidar em seu corpo como objeto que pode se converter em mercadoria. Há uma bela alma num corpo feio,

uma alma saudável num corpo doente, uma alma nobre num corpo mesquinho – e vice-versa. Existe um cerne de verdade na afirmação segundo a

qual o que acontece com o corpo não pode afetar a alma. Mas esta verdade assumiu uma forma terrível na ordem vigente. A liberdade da alma foi

utilizada para desculpar miséria, martírio e servidão. Ela serviu para submeter ideologicamente a existência à economia do capitalismo.263

Os valores da cultura, no sentido aqui empregado por Marcuse, são os valores da alma, que são concebidos no interior das pessoas e só

alcançam o exterior a partir desta interioridade. Essa forma de compreensão caracteriza a cultura afirmativa. Para ela, o indivíduo se realiza como

tal, não unicamente pelo uso direto da razão, mas pela alma que lhe confere a sua individualidade. No entanto, esta exaltação da alma não é

262 Marcuse, 1997, p. 95. 263 Marcuse, 1997, p. 108.

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direcionada ao mundo do trabalho, e sim ao mundo abstrato do desfrute estético, portanto, direcionado àqueles que podem usufruir deste ócio

necessário a tal deleite, a burguesia.

No capitalismo liberal, a alma escapa à lógica do mercado e por isso permanece à margem do mundo do trabalho. O novo sistema

econômico alcançou sua hegemonia, entre outros, devido à revolução industrial, que foi possibilitada pela razão técnica, e necessitou apenas dos

corpos, ou seja, da mão-de-obra, inicialmente para a manufatura e depois para a indústria mecanizada. A reificação corporal de homens, mulheres

e crianças, condenados à exploração, miséria, penúria e sofrimento nas frentes de trabalho, é compensada pela exaltação da beleza da alma.

Porém, a cultura afirmativa não se destina ao proletariado rude, mas à burguesia refinada que, graças à fruição estética, engrandece sua alma e se

vê dispensada de refletir que a condição abastada na qual vive só é possível pela miséria dos trabalhadores.264

Mesmo a celebração burguesa da alma já se mostra como uma nova forma de controle do homem, servindo de apoio para as práticas

burguesas de dominação, já que se coloca como uma ideologia perante as massas, ao mascarar a desigualdade e afirmar a realidade em que se

encontram. A cultura afirmativa, neste sentido, se manifesta como uma cultura que traz a esperança de superação do capitalismo, mas que ainda

se encontra presa aos seus mecanismos, pois a burguesia dominante a postula como uma ideologia a ser levada aos trabalhadores, de modo a

inspirá-los e reificá-los nesse processo.

A superação desta cultura afirmativa, segundo Marcuse, se daria por ela mesma, ou seja, retirando dela o seu caráter afirmativo e a

mostrando como uma forma de desequilíbrio social. Temos que ter em mente que a caracterização da cultura como afirmativa já é uma negação

da “igualdade social”, neste sentido já é uma imposição por parte da burguesia dominante. Podemos perceber que a celebração da alma postulada

pela cultura afirmativa eleva a cultura do burguês, mas não o faz refletir sobre as desigualdades da sociedade, pelo contrário, acaba motivando-o

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a traçar e impor uma cultura cunhada por eles aos operários rudes que trabalham nas fábricas. Aqui podemos perceber algumas relações desta

discussão com aquilo que irá aparecer mais claramente na “Dialética do Esclarecimento” de Adorno e Horkheimer, sobre os termos “cultura de

massas” e “indústria cultural”. A crítica que eles dirigem é ao termo usado para designar as novas tecnologias que apareciam no início do século

passado, a mídia eletrônica. O termo “cultura de massas”, cunhada pela sociedade diante dessas novas tecnologias, suporia a cultura idealizada

pelas massas e pautada na sua educação e orientação, entretanto, isso não refletia o que realmente ocorria na sociedade, por isso a “indústria

cultural” refletia melhor a cultura que se alastrava, já que se ela mostra como uma cultura fabricada e vendida para as massas.

Embora a cultura tenha este caráter mercantil, ao “mostrar imagens belas”, ela apresenta um mundo que pode ser diferente. Neste sentido,

a reivindicação pela felicidade depõe contra esta ordem estabelecida. Ao protestar contra a ordem vigente e reivindicar uma outra forma de

existência, a obra de arte antecipa uma maneira nova de organização da humanidade, mais feliz e livre. Porém, diante da impossibilidade de

efetivação dessa nova realidade, a cultura conserva em si a esperança de que o futuro possa ser melhor. Assim, Marcuse afirma que a arte é uma

“promessa de felicidade” e, como promessa, reconcilia-se com a existência miserável em que vive a maioria dos homens.

O que podemos fazer para mudar esta perspectiva é, portanto, não negar a cultura em si, mas o seu caráter positivo de transcendência, isto

é, negar a possibilidade de um futuro melhor e a promessa de felicidade. Ao negar o caráter afirmativo da cultura não negamos a ela mesma, mas

negamos os seus dispositivos de velamento e dominação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: Ensaios e conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes, 2002.

264 SILVA, Rafael Cordeiro. A arte e reconciliação em Herbert Marcuse. In: Trans/Form/Ação, Vol. 28, nº. 1. São Paulo, 2005, p. 32.

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MARCUSE, Herbert. Sobre o caráter afirmativo da cultura. In: Cultura e Sociedade - Vol. 1. Trad. Wolfgang Leo Maar. São Paulo: Paz

e Terra, 1997.

PAGNI, Pedro Angelo. Subjetividade, corpo e educação na obra de Herbert Marcuse. In: Perspectiva – V. 21, nº. 1. Florianópolis:

Editora da UFSC, 2003.

SILVA, Rafael Cordeiro. A arte e reconciliação em Herbert Marcuse. In: Trans/Form/Ação, Vol. 28, nº. 1. São Paulo, 2005.

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DAVID HUME, IMMANUEL KANT E OS FUNDAMENTOS DA MORAL - Bruno Martinez Portela 265 - Ramon Alexandre Matzenbacher 266

INTRODUÇÃO

A discussão sobre fundamentação moral que pretendo desenvolver neste texto parte da seguinte questão: a moral é relativa a

algum sentimento ou provém da razão? Essa não é uma disputa nova, ambas as posições foram defendidas na antiguidade e principalmente na

tradição filosófica moderna. Porém, o tema permanece atual devido a sua importância e centralidade no debate contemporâneo. Pretende-se,

portanto, expor alguns dos argumentos constitutivos das teorias morais de David Hume e Immanuel Kant evidenciando a diferença entre a

fundamentação empírica feita por Hume e a fundamentação transcendental kantiana. Utilizarei como fonte de referencia a “Fundamentação da

Metafísica dos Costumes” de Kant e a obra “Uma investigação sobre os princípios da Moral” de Hume. Estas duas obras são fundamentais das

teorias morais dos respectivos filósofos.

David Hume (1711 – 776) foi o defensor de uma fundamentação empírica da moral afirmando a impossibilidade de uma

justificação puramente racional do agir humano. Para ele, uma fundamentação moral é somente possível no âmbito dos afetos e o método

adequado para a investigação é o método empírico, sendo possível investigar e extrair conclusões para a filosofia moral a partir da análise da

linguagem e dos juízos que comumente fazemos em relação ao caráter ou ação dos indivíduos. Isso seria possível, pois para Hume há um padrão

na natureza humana, há um sentimento peculiar da constituição mesma dessa natureza que norteia nossos juízos morais.

265 Autor, mestrando em Filosofia na UFSM – Bolsista CAPES

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No texto Investigação sobre os princípios da moral (1751) que, para Hume, de suas obras é "incomparavelmente a melhor",

esclarece que o sentimento moral é análogo ao sentimento estético, cujos princípios gerais são uniformes na natureza humana e necessitam

freqüentemente que algumas funções do entendimento preparem o caminho para que o referido sentimento tenha um discernimento adequado de

seu objeto. Argumenta também que algumas virtudes são naturais e outras são artificiais, sendo estas últimas provenientes das nossas relações

sociais. O que ambas possuem em comum, é que o valor moral atribuído a cada uma delas decorre, pelo menos em parte, da noção de utilidade

que para Hume é, em última instância, o princípio através do qual guiamos nossos juízos morais. O que o leva a concluir que “o mérito pessoal

consiste inteiramente na posse de qualidades espirituais úteis ou agradáveis para a própria pessoa ou para outros" (Hume, 1995, p.151).

Kant, por sua vez, afirma que uma filosofia moral pura deve existir, o que se evidencia na “idéia comum do dever e das leis

morais” (Kant, 2004, p. 47). Ele explicita que uma lei, para ter valor moral, ou seja, fundamentar uma obrigação precisa “implicar em si uma

absoluta necessidade” (Kant, 2004, p. 47). Kant compreendeu que mesmo considerando a natureza humana globalmente, enquanto há elementos

empíricos na base da moralidade, as leis que dela possam deduzir-se nunca implicarão uma absoluta necessidade. É possível pensar que a

argumentação kantiana oferece uma hipótese: só existe moral se fundada a priori nos conceitos puros da razão, qualquer moral que permita em

sua base elementos empíricos é relativa, ou seja, nunca valerá universalmente. A seguinte passagem do texto kantiano esclarece o presente

parágrafo:

“os princípios empíricos são sempre impróprios para servir de fundamento a leis morais. Porque a universalidade, com a qual estas devem

valer para todos os seres racionais sem distinção, a necessidade prática incondicionada que lhes é imposta, desaparecem, se o princípio das

mesmas derivar da constituição peculiar da natureza humana, ou das circunstâncias contingentes em que ela se encontra” (Kant, 2004, p. 106).

Hume compreende que tanto a razão quanto o sentimento têm um papel fundamental na moralidade, permeando nossas decisões morais.

Porém, afirma ser o sentimento o que torna a moralidade fonte de motivação. A razão não tem força suficiente para constituir ou regular nossas

266 Co-autor, mestrando em Filosofia na UFSM – Bolsista CAPES

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ações e, sem o sentimento moral, as distinções morais não teriam significância alguma em nossas decisões. Nesse sentido, embora o fundamento

último da moral seja assentado, conforme Hume, no citado sentimento moral, ele não poderia ser devidamente experimentado sem a influência da

razão. Para explicitar tal ponto, Hume recorre à analogia com nossos juízos estéticos, pois neles são muitas vezes necessários alguns raciocínios

para se experimentar o sentimento adequado.

Convém lembrar que no artigo Do padrão do gosto (1757) Hume afirmou que “os princípios gerais do gosto são uniformes na natureza

humana” (Hume, 1999, 346). Porém, qualquer alteração na constituição interna humana ou mesmo certa falta de delicadeza pode alterar o correto

juízo estético, justificando, dessa forma, a heterogeneidade destes juízos. Não foi por acaso que Hume se utilizou dessa analogia. Sendo a moral

também uma questão de gosto, calcada num sentimento natural do homem, é possível arriscar uma justificação também para a heterogeneidade

dos juízos morais e compreender por que o método empírico, em Hume, é o correto para se fundamentar a moral.

Hume busca no conceito de utilidade a universalidade que dará à moral um status positivo. Ele pretendeu, através da análise da

nossa linguagem e da forma como julgamos moralmente, demonstrar que a moral faz parte da natureza humana. Na investigação Hume afirma

que:

“Em todas as decisões morais esta circunstância de utilidade pública é o que sempre se tem principalmente em vista; e onde quer que

surjam disputas, seja em filosofia ou na vida cotidiana, referentes aos limites do dever, não se pode de nenhum modo decidir melhor a questão do

que averiguando, em cada um dos lados, os verdadeiros interesses da humanidade”. (Hume, 1995, p.32)

Kant defende o extremo oposto. O filósofo alemão esforçou-se por fundamentar o agir humano de tal forma que o sujeito moral,

ao executar uma ação, não fosse guiado por seus impulsos sensíveis, uma vez que para ele a moralidade tem seu lugar fundamentalmente na

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esfera da razão. Contrariamente às pretensões da teoria moral humeana, é possível admitir que Kant buscou a libertação do indivíduo do reino da

sensibilidade267, uma vez que esta, segundo ele, não pode oferecer um princípio universalmente válido para reger a ação do sujeito moral que,

para ele, em última instância só pode ser oferecido pela razão. E ao invés de calcar a ação humana em um sentimento interno natural do agente

moral, Kant utiliza o conceito de Boa Vontade como sendo o impulso268 racional que leva o sujeito moral a agir.

Utilizando-se do conceito de Boa vontade, Kant pretende afastar ainda mais as teorias empiristas da tarefa de fundamentação

moral. Na teoria moral humeana, como visto, o valor atribuído às nossas virtudes ou qualidades em geral decorrem da noção de utilidade. Nesse

sentido, o que é considerado bom em determinada cultura devido a sua utilidade, pode ser considerado nocivo em outro contexto. O que há de

comum nos juízos morais, nesses casos, é que ambos serão norteados pelo conceito de utilidade, ou seja, seria o sentimento moral constitutivo da

natureza humana que, de acordo com Hume, se inclina, quando não afetado por interesses pessoais, ao bem da humanidade. Kant pretende evitar

justamente esse relativismo gerado pelas teorias semelhantes à humeana, advertindo já no início da primeira seção da FMC que:

“Não é possível conceber coisa alguma no mundo, ou mesmo fora do mundo, que sem restrição possa ser considerada boa, a não ser uma

só: uma BOA VONTADE.” (Kant, 2004, p. 53).

Kant compreende que a idéia do valor absoluto, em conseqüência da qual a Boa vontade prescinde de qualquer critério de

utilidade, muito embora seja de acordo com a razão comum, pode ser uma ilusão, ou seja, é possível que não se tenha compreendido a intenção

da natureza ao conceder à razão a capacidade de “direcionar” a vontade humana. Para eliminar tal dúvida, Kant precisa mostrar a primazia da

razão em relação ao sentimento no que diz respeito à função de determinação da vontade. Para tal, argumenta que é um princípio fundamental

267 Para Kant uma ação motivada por nossas inclinações sensíveis são sempre heterogêneas, por isso o sujeito é livre apenas quando age moralmente. 268 Motivo moral(“Bewegungsgrund”), em contraposição a móbil (“Triebfeder”) segundo o Professor Dr. Christian Hamm (Napoli, R. B.(org) 2003, p.67)

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que “naturalmente” não exista um órgão destinado a determinada função que não seja também o mais apropriado a cumprir tal função. Nesse

sentido, o autor compreende que a natureza não nos teria dotado de razão tendo como fim único a promoção da conservação e bem-estar do

homem, que para Kant é a maneira que comumente compreende-se o conceito de felicidade. O instinto seria, conforme Kant, o mais apropriado

para cumprir tal função. Se a felicidade fosse a finalidade propriamente humana, prossegue o autor, a natureza “teria impedido que a razão se

imiscuísse num uso prático” (Kant, 2004, p.54), pois além do instinto, como dito acima, ser mais bem indicado para tal fim, a razão, em

determinadas situações, pode servir de obstáculo a esse fim.

Kant também explicita que as nossas virtudes ou qualidades – como a inteligência, o juízo, a moderação –, assim como os dons da

fortuna – como o poder, a riqueza, a honra – se carecerem da Boa Vontade para lhes dar um fim universal, podem facilmente se deixarem

corromper. A Boa vontade, no entanto, é boa incondicionalmente, ou seja, boa por si mesma. Nesse sentido, seu valor se dá pelo querer e não

pelo que se cumpre por meio dela. Kant se refere à Boa vontade como “não um mero desejo, mas o apelo a todos os meios que estão ao nosso

alcance” (Kant, 2004, p. 54). Esse valor, continua Kant, permanece mesmo na pior das hipóteses, ou seja, mesmo se essa vontade não tivesse

poder de cumprir seus propósitos, ainda sim teria valor. Tendo em vista a importância do conceito de Boa vontade na teoria kantiana, é fácil

compreender porque que o conceito de utilidade, para a sua fundamentação moral, passa a ser não só desnecessário, como equívoco.

Conclusão

Para os fins da seguinte apresentação, uma conclusão definitiva não é apropriada. Embora o presente texto pareça privilegiar a

teoria moral kantiana como uma resposta à humeana, este tema não está fechado. Ambos os autores permanecem atuais na discussão ética. Têm-

se, pelo menos, dois caminhos possíveis em relação ao presente diálogo:

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O primeiro caminho é admitir, com Kant, que a moral trata de valores universais aos quais a vontade humana deve se adequar.

Nesse sentido, mesmo que todo o resto da teoria kantiana seja um total equívoco, as portas para uma fundamentação natural da moral

permanecem fechadas. Nessa alternativa, a teoria humeana será no máximo reduzida a um estudo antropológico.

A segunda opção é creditar à filosofia humeana o papel de fundamentadora da moral, destituindo a pura razão deste papel. O

ganho desta alternativa é ter em mãos uma teoria mais intuitiva que a kantiana. O grande problema dessa teoria é que, não obstante o poder

descritivo das inter-relações humanas e juízos morais, não é possível falar em um conceito de dever em sentido estrito, ou seja, ganha-se em

descritividade, perde-se em prescritividade.

REFERÊNCIAS

BRITO, A. N. Hume ou Kant?. Philósophos, Goiânia, v. 7, p. 121 – 128, 2002.

HUME, David. Investigação Acerca do Entendimento Humano. Coleção Os Pensadores. Tradução de Anoar Aiex. São Paulo: Editora

Nova Cultural Ltda, 1996.

_______. Uma Investigação Sobre os Princípios da Moral. Tradução de Jose Oscar de Almeida Marques. Campinas: Editora da

Unicamp, 1995.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2004.

NAPOLI, R. B. (Org.) ; ROSSATTO, Noeli Dutra (Org.) ; FABRI, M. (Org.) . Ética e Justiça. 1. ed. Santa Maria: Palotti, 2003. v. 1. 208

p.

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ESTADO DE NATUREZA E NATUREZA HUMANA EM HOBBES - Ge rson Vasconcelos Luz 269

Por estado de natureza, na filosofia de Thomas Hobbes (1588-1679), se compreende a instância na qual o homem não identifica limites no

seu campo de ação, nem poder soberano sobre si. Já a natureza humana é descrita como uma somatória de faculdades e poderes naturais do

homem (HOBBES, 2010, p.04), que podem ser resumidos a quatro espécies “[...] força vital, experiência, razão e paixão” (HOBBES, 1992,

p.27). Para cada indivíduo a própria vida consiste em um bem supremo e a preservação de si um dever e direito natural. Diante disso, nota-se um

paradoxo: a autoconservação permite que cada qual aja segundo o princípio da busca da realização do útil para si, mas, a dinâmica desse

comportamento, faz brotar um espírito beligerante entre os homens. Pois, numa condição puramente natural, todo homem direito todas as coisas

(HOBBES, 1992, p.36-37).

Hobbes não se preocupa em descrever as condições reais na qual se vive antes da instauração do Estado. Entretanto, deixa claro que, a

deduzir pelas paixões humanas, estado de natureza dos homens não é senão uma condição hipotética de guerra de todos contra todos (HOBBES,

2003, p.109). Diante disso, devemos interrogar: teria o homem uma natureza bélica? Ou a guerra é um produto resultante do modo mediante a

qual os indivíduos visam satisfazer paixões particulares? A segunda hipótese nos parece mais coerente em relação ao sistema filosófico de

Hobbes.

Embora todo homem esteja em guerra com todo homem, não necessariamente ser humano possui uma natureza bélica. Como vimos, a

natureza do homem é uma somatória de faculdade e poderes naturais. Nesse sentido, a princípio e em princípio, todo indivíduo age em vista da

obtenção do bem para si mesmo. A beligerância que há entre os homens é conseqüência ou reflexo de como se vive.

269 Mestrando em Filosofia – UNIOESTE - [email protected]

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Certas espécies animais vivem naturalmente em harmonia umas com as outras. Nesse caso, pressupõe-se que a razão que sustenta um tipo

de vivência comum aparentemente sem conflitos significativos está no uso regrado das paixões. Nesse sentido, suas preocupações parecem estar

ligadas as necessidades fundamentais da existência biológica, a alimentação, a procriação, a habitação, o descanso do corpo e coisas semelhante.

Diante disso, destaquemos a seguinte ironia dirigida ao pensamento aristotélico: “[...] talvez haja alguém interessado em saber por que a

humanidade não pode fazer o mesmo” (HOBBES, 2003, p.145).

Hobbes elenca seis razões pelas quis animais e homens se diferenciam:

[...] Primeiro, entre eles [nós] há uma disputa por honra e precedência270, enquanto os animais não têm nada disso. Daí que só para os

homens haja ódio e inveja, de que brotam sedição e guerra, e não para os animais. Depois, o apetite natural das abelhas e criaturas semelhantes é

sempre conforme, e elas desejam todas um bem comum que não se diferencia do bem particular. Já o homem dificilmente considera boa qualquer

coisa cujo gozo não porte alguma proeminência a avantajá-la sobre aquelas coisas que os demais possuem (HOBBES, 1992, p.107).

Nota-se que o problema não está tanto no cultivo particular da honra e da precedência. O fator de complicação aparece no modo pelo qual

se estabelece a competição entre os homens.

Prossegue Hobbes:

Terceiro, as criatura privadas do uso da razão não vêem defeito, ou pensam não vê-lo, na administração de suas repúblicas

(commonweals), ao passo que numa multidão de homens sempre há muitos que, supondo-se mais sábios que os outros, empenham-se em inovar,

e diversos inovam de distintas maneiras, o que traz a dissensão interna [...]. Quarto, essas criaturas brutas, embora possam ter uso da voz o

bastante para transmitir suas afecções umas às outras, carecem porém daquela arte das palavras que é requisito necessário para todos os

movimentos da mente, pela qual o bem é representado a esta como sendo melhor, e o mal pior, do que realmente são (HOBBES, 1992, p.107).

270 No Leviatã, esta expressão (preferment) é substituída por dignidade (dignity).

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Nota-se que nesses dois argumentos que, primeiro, embora a razão seja algo comum aos animais, a existência da cadeia articulada de

pensamento no homem, é fonte de diferenciação. Esse tipo de pensamento sempre orienta o indivíduo em função de algum desejo ou desígnio.

Outras criaturas têm seus pensamentos regulados sempre em vista de necessidades básicas da existência biológica. Conseqüentemente, por

possuir o que Hobbes denomina de cadeia desgovernada de pensamentos, não lhes é possível a linguagem no sentido em que é concebida nos

humanos.

Prossegue Hobbes:

Quinto, elas não sabem distinguir injúria de dano, de modo que, enquanto tudo lhes corre bem, não censuram suas semelhantes. [...].

Finalmente, o consentimento de tais criaturas brutas é natural, o dos homens apenas por pacto, ou seja, artificial. Por isso não é de estranhar que

algo mais seja necessário aos homens, para que possam viver em paz (HOBBES, 1992, p.107).

Ao contrário de pensadores como Aristóteles, Hobbes não reconhece que uns nasceram para dominar e outros para serem dominados.

Todos são agentes e todos tendem a querer dominar. O ponto de partida para a satisfação das carências é a igualdade e não uma diferença quanto

aos direitos. A problemática do conflito se apresenta na medida em que alguém toma do todo algo para si. Ora, para o outro agente tudo é seu.

Pois, a natureza “[...] deu a cada um um271direito a tudo; isso quer dizer que, num estado puramente natural, [...] era lícito cada um fazer o que

quisesse, e contra quem julgasse cabível, e portanto possuir, usar e desfrutar tudo o que quisesse ou pudesse obter” (HOBBES, 1992, p.36).

Ressaltemos, a natureza do homem consiste numa soma de faculdades e poderes naturais e todos são iguais quanto as suas capacidades

relativas ao uso das capacidades físicas e mentais. Alguns indivíduos possuem massas musculares e corpos mais robustos que outros; portanto,

são mais fortes. Outros são mais astuciosos. Mas a diferença é pequena para que com base nela possamos derivar uma teoria da desigualdade

natural. Ora, escreve Hobbes, “[...] quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta

maquinação, quer aliando-se com outros que encontrem ameaçados pelo mesmo perigo” (HOBBES, 2003, p.106).

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A igualdade deve ser pensada também a partir da esperança de se atingir fins os desejados. A conseqüência imediata dessa forma de

igualdade deriva da seguinte questão: “[...] se dois homens desejarem a mesma coisa, no mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por

ambos, eles tornam-se inimigos” (HOBBES, 2003, p.107). Nota-se que os homens não são inimigos naturais; a paixão a que chamamos de

inimizade é manifestada pela força do contingencial.

A igualdade quanto à capacidade de atingir os fins almejados, que faz os homens em dadas circunstâncias, enxergarem-se como inimigos,

gera um clima de desconfiança recíproca. Com isso, há apenas um meio de garantir para si o objeto de disputa: procurando antecipar-se ao

concorrente. A antecipação é procedida com astúcia, força; com as virtudes cardeais. E isso é o que exige a própria necessidade de conservação

de cada agente (HOBBES, 2003, p.108).

A antecipação remete a idéia da escassez de recursos. Mas não devemos situar a escassez no sentido de que a natureza seria parca em

recursos. O problema está em que, muitas vezes, muitos querem algo que não pode pertencer ao mesmo tempo a todo.

Para Marques, a dedução do estado de guerra de todos contra todos não requer que coloquemos como premissas a escassez de recursos e a

belicosidade natural. Pois,

Ainda que todos estivessem satisfeitos com sua situação e desejassem desfrutar pacificamente dela, a mera possibilidade de que alguém

pudesse tentar ampliar seu poder por meio de conquistas leva à necessidade de que mesmo os mais pacíficos venham a tomar medidas

preventivas voltadas para a expansão do próprio poder (MARQUES, 2009, p.85).

Poder é uma palavra chave para compreendermos as razões pelas quais os homens se digladiam em torno da obtenção de seus interesses

pessoais. “Na realidade, o que impulsiona o homem contra o homem é o desejo inesgotável de poder” (BOBBIO, 1991, p.35). Poder significa

meio para a realização de um dado desejo.

271 Grifo nosso.

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A vontade de prosperar constantemente faz brotar a competição – uma paixão que possibilita situações de conflitos entre os homens.

Além da competição, outras duas paixões corroboram para a existência do espírito beligerante: a desconfiança e a glória. A primeira, afirma

Hobbes, “[...] leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação” (HOBBES, 2003,

p.108). Para Macpherson (1979, p.36), as três causas de conflito são tendências que se manifestam em qualquer tipo de sociedade humana; mas

elas se tornam paixões destrutivas quando não há poder comum que as mantenham reprimidas. Daí a dedução de que antes da instauração do

Estado se vive em guerra todos contra todos.

Bobbio (1991, p.38) vê a expressão guerra de todos contra todos como uma hipérbole, como uma figura de retórica com a qual Hobbes

quer mostrar uma situação intolerável entre os homens. O estado de guerra, afirma Hobbes,

[...] não consiste apenas na batalha ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é

suficientemente conhecida. Portanto, a noção de tempo deve ser levada em conta na natureza da guerra [...]. Porque tal como a natureza do mau

tempo não consiste em dois ou três chuviscos, mas numa tendência para chover [...], também a natureza da guerra não consiste na luta real, mas

na conhecida disposição para tal [...] (HOBBES, 2003, p.109).

Na passagem transcrita Hobbes deixa claro que o estado de natureza não é um campo de batalha no qual os indivíduos se digladiam

realmente o tempo todo. Kayser (2007, p.25), observa que se trata de uma guerra em potência. Mesmo que a batalha seja fictícia, a possibilidade

de se tornar real é constante.

A predisposição humana à competição, à desconfiança e à glória, em si mesma, não se constitui um problema real. Ao contrário, trata-se

de paixões que visam atender a necessidade de autoconservação. Esses elementos estão muito mais para permitir o estabelecimento da

prosperidade que para fomentar a miséria entre os homens. O problema é a inexistência de uma estrutura organizacional que possibilite o uso

comedido e politicamente responsável das paixões. Se por um lado há uma tríade de paixões que permite a beligerância, por outro, há também

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outras três que nos projeta para a sociabilidade. Estas são, “[...] o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida

confortável e a esperança de as conseguir por meio do trabalho” (HOBBES, 2003, p.111).

REFERÊNCIAS

HOBBES, Thomas. Do Cidadão. Tradução de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

______. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro; Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

______. Os Elementos da Lei Natural e Política. Tradução de Bruno Simões. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1991.

KAYSER, Marcos. O Paradoxo do Desejo: Hobbes e a Mecânica do Desejo nas Representações de Poder. São Leopoldo: Nova

Harmonia, 2007.

MACPHERSON, Crawford Brough. A Teoria do Individualismo Possessivo de Hobbes até Locke. Tradução de Nelson Dantas. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1979.

MARQUES, José Oscar de Almeida. Hobbes e a medida da desigualdade entre os homens. In: Cadernos de Ética e Filosofia Política. São

Paulo, n. 14, p.73-101, jan.-jun., 2009.

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O OLHAR DE NIETZSCHE SOBRE A EDUCAÇÃO: PROJEÇ ỖES E DIAGNÓSTICOS – Angélica Lúcia Engelsing 272

Embora o filósofo Friedrich Nietzsche tenha apenas em seus primeiros escritos tratado especificamente do tema educação, este sempre

manteve seus esforços filosóficos voltados sobre a educação, seja de forma direta ou indireta, visto que a educação é para ele o único meio capaz

de fazer o homem se elevar como um ser da cultura e, consequentemente, ser capaz de agir e de criar, assim como é clara a preocupação deste

com a formação de outro ser, ou seja, com a formação de um ser elevado, superior, capaz de ser mestre de si mesmo. Tal fato pode ser observado

em algumas de suas primeiras obras, tais como, Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino ([1872] 2003) e III Consideração

Intempestiva: Schopenhauer como educador ([1874] 2003).

Assim sendo, busco por meio deste texto, expor as principais ideias e críticas apresentadas pelo filósofo no ensaio intitulado Sobre o

futuro dos nossos estabelecimentos de ensino (2003), que é fruto de uma série de cinco conferências proferidas por Nietzsche na Sociedade

Acadêmica da Basiléia. Nelas, o filósofo aborda a preocupante e decadente educação predominante no ginásio e demonstra o seu

descontentamento para com o descaso de uma formação que é essencial, pois é ela que despertará impulsos nos educandos que os levarão pouco

a pouco à Universidade, além de possibilitar que todas as outras instituições possam medir-se pelo objetivo cultural pretendido por esta

formação. Neste ensaio Nietzsche também faz duras críticas às instituições de ensino que buscavam tornar os homens pequenos e medíocres,

272 Graduanda em Filosofia pela UNIOESTE – Campus Toledo/PET-Filosofia - [email protected]

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formando-os apenas para servirem aos interesses do mercado, do Estado e da ciência. Busco, ainda, descrever as imbricações que há, segundo

Nietzsche, entre educação, cultura, natureza e sociedade.

Na primeira conferência Nietzsche apresenta duas tendências predominantes nos estabelecimentos de ensino da época. Aparentemente

estas duas tendências são opostas, porém ambas são nefastas nos seus efeitos e unidas nos seus resultados. Nietzsche observou que uma tendência

objetivava estender tanto quanto possível a cultura, ou seja, visava à ampliação máxima da cultura. Enquanto a outra tendência visava reduzi-la e

enfraquecê-la, ou seja, objetivava a redução da cultura e exigia que ela abandonasse suas ambições mais nobres, elevadas e sublimes.

Segundo a primeira tendência a cultura deveria ser levada ao maior número possível de pessoas, a círculos cada vez mais amplos. Deveria

portanto, ser universalizada. Esta extensão é, segundo Nietzsche, um dos dogmas da economia política da época, pelo fato de que o objetivo e o

fim da cultura é a utilidade, ou seja, o lucro, o maior ganho possível de dinheiro. Deste modo, do ponto de vista desta tendência:

A cultura deve ser mais ou menos definida como o discernimento graças ao qual alguém se mantém no ‘cume de sua época’, graças ao

qual se conhece todos os caminhos que permitem facilmente ganhar dinheiro, graças ao qual se possui todos os meios pelos quais se dá o

comércio entre os homens e os povos (Nietzsche, 2003, p. 61-62).

Para Nietzsche, esta tendência evidencia uma visão utilitária da cultura, pois seu objetivo é quantitativo e econômico e não visa à elevação

cultural do homem. Assim, buscava-se estender a educação ao maior número possível de pessoas, pois o mercado necessitava delas para

estabelecer as suas relações de comércio. O Estado, a fim de defender seus interesses, desejava a extensão máxima da cultura para garantir a sua

própria existência, uma vez que, investindo na formação de seus funcionários e exércitos, poderia garantir melhor êxito na luta contra outros

Estados. Portanto, na visão do filósofo, esta tendência de ampliação da cultura é nefasta porque vê o homem como algo “corrente”, ou seja, como

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algo que pode se tornar rapidamente em um ser que ganha muito dinheiro e também porque, “enfraquece a tal ponto a cultura, que ela não pode

mais admitir qualquer privilégio ou ganhar qualquer respeito” (Idem, p. 62).

A outra tendência, de redução da cultura, exige que esta abandone as suas ambições mais nobres, elevadas e sublimes, e se ponha a

serviço de algo que não ela mesma. Assim como, exige que ela se submeta como serva à outra forma de vida, por exemplo, ao Estado,

provocando assim o seu total aniquilamento. Esta tendência aponta para a divisão e a decorrente especialização das ciências, visto que a

especialização do erudito em uma determinada área faz com que ele se torne muito particular e despreocupado com todas as outras ciências,

assim esta tendência faz com que ele se distancie cada vez mais da verdadeira cultura. Isto leva Nietzsche a afirmar que tal tendência possui a

mesma ação nefasta da primeira, pois ao fazer a divisão do trabalho nas ciências, faz com que o erudito se torne um operário de fábrica e se

distancie cada vez mais da verdadeira cultura e das demais ciências.

O jornalismo é apontado pelo filósofo, como sendo o ponto de confluência entre estas duas tendências, pois este acabou por substituir a

cultura, e é justamente onde os eruditos vão divulgar seus saberes ao povo. Os jornaleiros, considerados os “senhores do momento”, acabaram

por substituir o lugar dos grandes gênios, ou seja, dos grandes mestres, daqueles guias estabelecidos para sempre. Para Nietzsche, os gênios são

aqueles seres capazes de se educar contra a sua época e reencontrar e purificar seu próprio ser, aqueles que vivem e se movem com autenticidade,

enfim são aqueles que dão exemplos tanto pela vida real quanto pelos livros. Segundo Larossa (2002), os jornalistas não são gênios, porque eles

opinam sobre tudo e sobre todos, falam sobre qualquer coisa, possuem opiniões próprias, porém não passam de opiniões, e estão subordinados às

leis da moda, às demandas do mercado e ao gosto da opinião pública. Desta forma, as duas tendências, assim como, o seu ponto de culminância,

dão origem a essa “pseudo-cultura”, que mais tarde é denominada pelo filósofo de “barbárie cultivada”.

Na segunda conferência Nietzsche destaca que a situação desanimadora presente nos estabelecimentos de ensino do seu tempo podia ser

claramente percebida pela leitura dos pedagogos e pela pobreza de espírito pedagógico de suas produções, e aponta para o fato de que é

justamente no ginásio onde estes maus profissionais atuam. Portanto, o que se vê nos estabelecimentos de ensino é a ausência de talentos

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XVº SIMPÓSIO DE FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA DA UNIOESTE 25 A 28 DE OUTUBRO DE 2010 – TOLEDO - PR Página 316

realmente inventivos e a ausência de homens práticos, ou seja, daqueles que têm ideias boas e novas e que sabem que a genialidade e a prática

correta, encontram-se necessariamente no mesmo indivíduo. Uma questão fundamental levantada por Nietzsche diante deste fato é: como

poderiam os professores realizar a técnica da formação cultural se eles próprios não haviam sido iniciados em uma cultura nobre e superior; se

eles próprios desconhecem a verdadeira cultura e estão impregnados por esta cultura de jornaleiros?

Para o filósofo, o que se via na época era uma falsa cultura, uma cultura essencialmente histórica, que se reduzia ao conhecimento

livresco e jornalístico, que é caracterizada por uma justaposição de conhecimento, carente de qualquer unidade e desprovida de estilo. A

verdadeira cultura, porém, objetivada por Nietzsche e ausente nos professores da época, se caracteriza por uma unidade de estilo artístico em

todas as manifestações de um povo, tendo como finalidade transformar a natureza em uma obra de arte acabada. Desta maneira, a meta da

educação seria ajudar a natureza a produzir os exemplares mais bem sucedidos, raros e superiores. Outro fato que dificulta o surgimento de uma

cultura verdadeira é o descaso e o pouco valor atribuído à língua materna. Isto se deve ao fato de a cultura jornalística ter se impregnado em

todos os âmbitos da sociedade, assim, termos chulos passaram a ser usados preferencialmente a termos mais vernáculos e formais. O que para

Nietzsche, é incompreensível, uma vez que a “cultura começa por um caminhar correto da língua” (NIETZSCHE, 2003, p.77), ou seja, com um

bom uso da língua, estrito, cuidadoso e artístico.

Ainda nesta conferência o filósofo faz duras críticas à universalização da cultura e à massificação, pois devido a estes dois processos,

surge um número elevado de estabelecimentos superiores de ensino destinados à formação das massas. Este fato é preocupante, pois influencia

cada vez mais esta cultura degradante, e essencialmente jornalística, uma vez que vão lecionar nestes lugares mestres sem vocação, que não

possuem a menor delicadeza com o trabalho pedagógico e que por seus dons se encontram em harmonia com o baixo nível e com a mediocridade

de seus alunos.

Na terceira conferência o filósofo defende a tese de que a natureza produz um número limitado de homens para a cultura. Por este motivo,

deveria haver apenas algumas instituições de ensino superior, pois somente assim, a purificação e a renovação do espírito alemão poderia

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realmente ocorrer. Nietzsche defende ainda uma cultura voltada para o surgimento dos gênios e vê na educação das massas a impossibilidade do

seu surgimento. Pois, nivelar todos os homens como iguais é o que torna uma cultura decadente, e é o que degrada a educação, porque, os

homens pertencentes às massas não deixam marcas originais para os tempos vindouros e não deixam parâmetros para avaliar a grandeza de uma

época. Assim, para Nietzsche, “não é uma cultura de massas que deve ser a nossa finalidade, mas a cultura de indivíduos selecionados, munidos

das armas necessárias para a realização das grandes obras que ficarão” (Idem, p.90).

O fenômeno da ampliação da cultura e o surgimento de um grande número de escolas serviriam apenas para atender aos interesses do

Estado, que estabelecia uma relação entre o ginásio e os postos mais elevados das classes dos funcionários. O Estado ao mesmo tempo em que

persegue seus próprios fins, obriga todos os seus servidores a se apresentarem diante dele, dotados da cultura universal. O Estado antigo - Grego -

distanciava-se dessa visão reguladora e utilitária da cultura, pois este era tão somente um companheiro de andar vigoroso e forte, disposto ao

combate, que por meio das duras realidades escoltava seu mais nobre amigo, pelo qual tinha admiração e do qual recebia o reconhecimento em

troca.

De acordo com o filósofo, a formação massificada presente nos estabelecimentos de ensino faz com que uniformizamos a todos a partir de

características comuns e medíocres. O adestramento realizado pela educação tradicional, expressa claramente o que é permitido pela má

consciência da sociedade decadente da época, isto leva Nietzsche a afirmar que o que se faz não é uma educação, mas apenas uma instrução, e

“um adestramento do cérebro”. Nietzsche em nenhum momento nega a necessidade de instruir as massas, mas aponta para o fato de

possibilitarmos o surgimento dos gênios por meio de escolas nobres (destinada àqueles que por sua natureza são mais fortes e superiores e

aprestam maiores possibilidades de se tornarem gênios), para que assim, toda a cultura alemã pudesse ser elevada. Deste modo, o que cada

homem aprende é importante para a sua sobrevivência, mas o que ele aprende e faz com este fim, não representa e não se relaciona com a

verdadeira cultura e com a verdadeira educação.

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Na quarta conferência proferida por Nietzsche, o filósofo apresenta o que é para ele a verdadeira cultura. Assim, a verdadeira cultura é

aquela que se desliga do mundo das necessidades naturais, e é aquela que se desliga da luta individual pela vida. Porém, em um segundo

momento, o filósofo aponta para o fato de que não podemos subjugar a natureza e nem expulsá-la, pois ela sempre retorna, ou seja, mesmo que

queiramos nos desligar dela nós não conseguiríamos, porque ela é herdada na alma e no corpo. Nietzsche apresenta deste modo, outro tipo de

educação que busca, exatamente, exaltar a natureza de cada indivíduo, assim, “se vocês querem guiar um jovem no verdadeiro caminho da

cultura, abstenham-se de romper a relação ingênua, confiante e, por assim dizer, a relação pessoal e imediata que ele tem com a natureza” (Idem,

p.105).

Ainda nesta conferência, Nietzsche afirma que não temos estabelecimentos que formem para a cultura, o que nós temos são apenas

estabelecimentos de ensino para as necessidades da vida, que, no entanto, mesmo assim julgam formar para a cultura, mas que na verdade não

formam nem para o combate/luta pela existência, nem para a cultura. Estabelecimentos de cultura são aqueles que visam o nascimento do gênio e

a criação de suas obras; que visam uma obediência e uma habituação à disciplina; são aqueles que não deixam vislumbrar no fim de sua trajetória

um posto de funcionário ou um ganho material; são aqueles que buscam intensificar a potência dos impulsos de um organismo, que se dá por

meio da auto-superação, ou seja, quando na necessidade de superar obstáculos, é preciso que o indivíduo potencialize seus impulsos a fim de

superá-los. Segundo Nietzsche a potencialização dos impulsos de um organismo é o que elevaria a cultura, assim, nesta perspectiva, a educação é

um longo caminho para a elevação do homem, é um processo contínuo, que não visa um fim imóvel (pronto e acabado) ou material.

Na quinta e última conferência o filósofo ataca com mais força a formação que é oferecida aos jovens no ginásio e nas Universidades.

Nietzsche critica fundamentalmente o fato de predominar nos estabelecimentos de ensino, o ensino da cultura histórica, ou seja, o que se faz é um

ensino neutro da história, onde o que importa é conhecer a história, e denominar e atribuir características a determinadas épocas e fatos. Assim, o

objetivo desses estabelecimentos não é refletir, questionar, criar e agir, assim como não se atribui aqui valor algum à filosofia e à arte. Outro fato

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criticado por Nietzsche é a falta de gênios nesses estabelecimentos, ou seja, a falta de grandes guias que por meio da obediência, da disciplina, da

instrução e do sentido de dever podem conduzir um homem ao verdadeiro caminho da cultura.

Podemos, portanto, ver que as críticas de Nietzsche à educação de seu tempo podem ser aplicadas ao nosso tempo, ou melhor, elas

possuem a mesma validade para a nossa realidade educacional. Um fato que pode ser observado, é que atualmente também objetiva-se dar uma

formação a todos, porém esta formação ainda está longe de ser de qualidade, longe de ser considerada uma educação de verdade. Também

podemos observar claramente que não se dá valor ao uso correto da língua, e ainda subjuga-se o valor que a filosofia e a arte possuem para a

formação do ser humano. Bem como, observa-se que a educação ainda atende às necessidades do Estado e dos comerciantes, tal fato pode ser

observado com a grande oferta de cursos que visam formar e qualificar para o mercado de trabalho, e pouco se busca formar para o refletir, para

o criar e para o agir.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre Educação. Tradução de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São

Paulo: Loyola, 2003.

LAROSSA, Jorge. Nietzsche & a Educação. Tradução de Alfredo Veiga-Neto. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

AZEREDO, Vânia Dutra de (org). Nietzsche: Filosofia e Educação. Ijuí: Ed. Unijuí, 2008 (Coleção Nietzsche em Perspectiva).

BOEIRA, Nelson. Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

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ANÁLISE DO ARGUMENTO DE FREGE CONTRA A TEORIA DA VE RDADE COMO CORRESPONDÊNCIA - Ana Carneiro Conzatti 273

Introdução

Este trabalho tem por objetivo reconstruir e analisar criticamente o argumento através do qual Frege, em seu texto “O Pensamento”, alega

a falsidade da teoria da verdade por correspondência, evidenciando pontos fortes e fracos. Para tanto, inicialmente será analisada a parte do

argumento que avalia a possibilidade do uso linguístico da palavra “verdadeiro” como uma relação; em seguida, analisa-se a parte seguinte do

argumento, no qual Frege ataca diretamente o conceito de verdade como correspondência, avaliando-o segundo três possibilidades: verdade

como correspondência perfeita; verdade como correspondência imperfeita; e verdade como correspondência segundo um ponto de vista

determinado. Conclui-se com uma breve crítica ao argumento, conforme exposto pelo filósofo, apontando os pontos fortes e fracos de sua

abordagem.

Análise Linguística do Argumento de Frege contra a Teoria da Verdade como Correspondência

A Concepção de Verdade como Relação

273 Bacharel em Sistemas de Informação e Graduanda em Filosofia - Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL - [email protected]

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No início do seu argumento, Frege parte do uso habitual do termo “verdadeiro” para invalidar em termos linguísticos a Teoria da Verdade

por Correspondência. Ele alega que considerar o conceito de verdade como correspondência é inadequado, pois remete à idéia de relação (x

corresponde a y), a qual, por sua vez, vai de encontro ao uso cotidiano da palavra “verdadeiro”, que é comumente utilizada como uma

propriedade, não como uma relação (FREGE, 2002).

Críticas ao Aspecto Linguístico do Argumento

À primeira vista tal argumentação parece plausível, já que, quando se afirma que “x é verdadeiro”, não se supõe nada com o qual aquilo

que é verdadeiro deva relacionar-se para sê-lo. Contudo, uma análise mais cuidadosa evidencia ser possível formar propriedades a partir de

relações, como no caso de “x é pai”, que pode ser escrito como “Ey (x é pai de y)”. O mesmo ocorre com a propriedade de “ser verdadeiro”, por

exemplo: “x é verdadeiro” ↔ “Ey (x corresponde a y)”.

Análise Conceitual do Argumento de Frege contra a Teoria da Verdade como Correspondência

A Verdade como Correspondência Perfeita

Frege continua sua análise da teoria como correspondência, desta vez sob uma perspectiva conceitual. Para tanto, toma como pressuposto

inicial a verdade como correspondência perfeita e afirma que, para haver correspondência perfeita entre duas coisas, ambas devem coincidir

(FREGE, 2002). Contudo, quando se fala que “x corresponde a y”, as coisas que estão em correspondência são uma idéia e um objeto, ou seja,

coisas de naturezas distintas. Mas a correspondência que pode haver entre coisas distintas não é uma correspondência perfeita, logo, o

pressuposto de que a verdade é correspondência perfeita é falso.

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A Verdade como Correspondência Imperfeita

Seguindo o argumento, Frege fala que é absolutamente essencial, quando se considera a verdade como correspondência, que as coisas

correspondentes sejam de naturezas distintas entre si, pois o que se busca é a correspondência entre idéia e objeto (FREGE, 2002). Ora, assim

sendo, não é possível haver correspondência perfeita, apenas imperfeita.

No entanto, assumir a verdade como correspondência imperfeita é o mesmo que afirmar que não existe verdade perfeita e, como a

verdade não admite um mais ou menos, considerar a verdade como correspondência imperfeita implica em afirmar que nada é verdadeiro, o que,

obviamente, é falso. Portanto, é falso afirmar que verdade é correspondência imperfeita.

A Verdade como Correspondência Segundo um Ponto de Vista

Frege avalia a questão ainda de uma terceira perspectiva: será, a verdade, correspondência apenas segundo determinado ponto de vista

(FREGE, 2002)? Para determinar a verdade de algo, então, seria necessário definir inicialmente qual seria o ponto de vista da correspondência.

No entanto, o filósofo alega que, para isso, recair-se-ia em uma pergunta similar à primeira, pois para determinar o ponto de vista é necessário

fazer uso do próprio conceito de verdade. Assim, a definição de verdade tornar-se-ia circular, o que invalida qualquer outra tentativa de definir

verdade como correspondência. Afirmar que verdade é correspondência segundo um ponto de vista, portanto, também é falso.

Críticas ao Aspecto Conceitual do Argumento

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O argumento, aqui reconstruído, pressupõe que correspondência é identidade, seja total ou parcial. No primeiro caso, pressupõe a

identidade perfeita entre as coisas que se correspondem. No segundo, avalia a possibilidade da identidade ser imperfeita (algo como uma

semelhança ou aproximação) ou da coincidência ocorrer apenas sob um determinado ponto de vista (equivalendo à identidade de um único

aspecto).

O problema dessa visão é que ela não considera outros possíveis significados para a palavra “correspondência”. Ela pode ser vista, por

exemplo, não como identidade, mas como adequação entre o que se tem em mente e o que ocorre na realidade, isto é, como uma associação entre

um pensamento e um estado de coisas. Esse é o caso da definição que Aristóteles dá, em sua Metafísica, onde uma sentença é verdadeira quando

o que se diz que é é, ou o que se diz que não é não é; e falsa quando ocorre o contrário (ARISTOTLE, 2010). Aqui, pensamento e realidade são

completamente distintos entre si, mas com aquele é possível designar esta, de forma que um a determinado pensamento corresponda uma parcela

da realidade. Isso mostra que a verdade como correspondência pode ser vista sob outra perspectiva, em vez de avaliar as coisas em

correspondência exclusivamente com relação ao nível de semelhança ou identidade. E essa possibilidade Frege não analisou.

Por outro lado, a questão de ser a verdade indefinível, não apenas como correspondência, mas de uma forma geral, vai ao encontro do que

Frege acredita, pois ele considera o conceito de verdade como fundamental e, portanto, auto-evidente, o que impede que se dê uma definição que

não seja circular. Essa visão pode ser exemplificada da seguinte forma: na afirmação “verdade é X” está implícita a constatação prévia de X. Isso

significa que, para que essa afirmação possa ser proferida, deve-se antes responder à pergunta “X é?” ou “X ocorre?” e, para tanto, é impossível

não fazer uso da própria noção de verdade. Ora, o que mais seria a pergunta, se não a busca pela verdade do que está sendo perguntado? Dessa

forma, perguntar “X é?” é o mesmo que perguntar “é verdade que 'X é'?”. E para responder a essa nova pergunta seria necessário uma ainda

outra, do mesmo gênero, e assim sucessivamente, ao infinito. Por isso que, para Frege, o termo “é verdadeiro” em uma sentença possui apenas

valor de realce, pois o conteúdo semântico que confere verdade a uma declaração encontra-se implícito na própria declaração e não pode ser

exteriorizado em sentença alguma, pois não é definível. Neste ponto, o argumento de Frege é forte e invalida a definição de verdade como

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correspondência, pois é necessário fazer uso do próprio conceito de verdade para definir se há correspondência entre duas coisas e, portanto, o

conceito não esclarece o que é verdade, pelo contrário, ofusca-a.

Conclusão

Como foi possível verificar ao longo do texto, a crítica de Frege à Teoria da Verdade como Correspondência possui diversos pontos

fracos. Na análise linguística da questão, o fato de ser possível formar propriedades a partir de relações invalida sua argumentação. Na análise

conceitual, o ponto fraco está no fato do filósofo assumir como pressuposto que correspondência é identidade (total ou parcial) entre as coisas

que correspondem. Ele desconsidera a possibilidade de que seja outra coisa, como adequação, no caso da definição dada por Aristóteles.

Contudo, apesar desses diversos pontos fracos, o último argumento que Frege expõe, por si só, é suficiente para, em termos linguísticos e

conceituais, afirmar que não é possível definir verdade como correspondência pelo simples motivo de que não é possível definir verdade sem,

para isso, fazer uso de uma definição circular. Essa demonstração ainda fornece um bom suporte para a visão fundamentalista do filósofo ao

apontar o caráter basilar do conceito de verdade.

REFERÊNCIAS

ARISTOTLE. Metaphysics. Disponível em: <http://classics.mit.edu//Aristotle/metaphysics.html>. Acesso em: 29 set. 2010.

FREGE, Gottlob. O Pensamento: Uma Investigação Lógica. In: FREGE, Gottlob. Investigações Filosóficas. Porto Alegre: Edipucrs, 2002.

Cap. 1, p. 09-39. (Coleção Filosofia - 141).

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O PRAGMATISMO DE DEWEY E AS CRÍTICAS A SUA FILOSOFI A EDUCACIONAL = Cosmo Rafael Gonzatto 274

Considerações Iniciais

O contexto educacional que presenciamos até o atual momento é marcado por fortes características vindas de outras épocas ou gerações, e

que aos poucos foram se instalando em nossa cultura educacional como espécies de crenças ou dogmas. No decorrer dos séculos inúmeras

propostas educacionais foram surgindo para tentar suprir essas carências e marcas que estas propostas educacionais deixavam aos poucos no

âmbito educacional. Em meio a essas propostas surge a do filósofo norte-americano Jonh Dewey. O filósofo elabora suas teorias educacionais a

partir do pragmatismo de Charles Sanders Peirce e William James com a proposta inovadora do aprendizado através do processo de reconstrução

da experiência do indivíduo.

O texto tem por objetivo principal apresentar a nova proposta pedagógica elaborada pelo filósofo John Dewey para tentar suprir as

carências apresentadas no âmbito educacional e os erros daqueles que ao fazerem leituras equivocadas das obras do autor concluíram que a

pedagogia deweyana poderia ser denominada como uma espécie de espontaneísmo pedagógico.

O texto está dividido em duas partes: na primeira apresentaremos essa nova concepção filosófica denominada pragmatismo, apresentando

as suas principais ideias, a sua origem, e as propostas educacionais adotada pelo filósofo da educação John Dewey a partir dessa filosofia

pragmática.

274 Acadêmico do curso de Filosofia LP na UPF e bolsista CNPQ do Grupo de pesquisa “Pragmatismo, filosofia e educação: as interfaces entre a experiência,

reflexão e políticas de ensino” coordenado pelo Dr. Altair Alberto Fávero.

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Na segunda parte mostraremos as críticas feitas por alguns filósofos da educação, que ao lerem os textos de Dewey acabaram

generalizando suas idéias e direcionado as mesmas para um caminho inverso das quais o filósofo pretendia com sua pedagogia.

Dewey sempre se mostrou bastante otimista em relação à educação, pois para o filosofo a educação consistia na capacidade que o

individuo teria de poder aprender por si próprio, de uma maneira que pudesse ter autonomia em suas idéias e ações, e é a partir disso que muitos

filósofos entendem a sua pedagogia como espontaneista. Por não compreenderem que para Dewey autonomia não implica total liberdade de ação,

mas sim a capacidade de se poder prever e usar a sua inteligência para os devidos fins e meios, para evitar o malogro de suas ações, e poder tentar

prever um fim com maior êxito.

E a partir dessas considerações feitas no texto que acreditamos ter apresentado de acordo com as ideias do autor, que a pedagogia

Deweyana é bastante útil no processo de desenvolvimento cognitivo dos indivíduos, pois além de ajudar a desenvolver um pensamento crítico,

reflexivo e autônomo, onde o individuo conseguirá aos poucos construir o seu próprio aprendizado, de uma maneira inversa ao qual se tinha

então na pedagogia tradicional. O indivíduo também conseguirá aprender com as suas próprias experiências, descartando assim toda aquela idéia

central da filosofia tradicional que acreditava que o conhecimento estava em uma esfera metafísica contemplativa. Experiência essa que implica o

conceito fundamental para se poder entender quase toda a filosofia educacional proposta por Dewey e que se for mal compreendida poderá

acabando por gerar equívocos, como ocorre até o exato momento.

1- O pragmatismo e a pedagogia Deweyana

O pragmatismo surgiu a partir da tradição do empirismo inglês de David Hume e John Locke que consideravam a experiência

como fonte de aprendizado único, descartando assim as idéias inatas. Mais tarde com a idéia de que toda experiência conduz à possibilidade de se

poder prever um fato futuro, surge então o pragmatismo com Willian James e Charles Sanders Peirce. Desse modo a experiência deixa de ser

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analisada apenas como um acúmulo de fatos sucessivos que levam a uma verdade única e passa a ser concebida como uma possibilidade de

prever uma verdade, que até então é concebida como modificável.

O pragmatismo adotou duas formas: uma forma metafísica que é representada por James, Schiller e que constitui uma teoria da

verdade e da realidade; e a segunda forma a metodológica, que é considerada como uma teoria do significado que tem como principais filósofos

Peirce, Mead e Dewey. Nesse capítulo nos deteremos mais especificadamente às teorias do filósofo John Dewey direcionado a sua nova

concepção pedagógica.

Segundo Abbagnano a obra de John Dewey, nascido em Burlington, Vemont (EUA), em 20 de outubro de 1859 e falecido em

Nova Iorque, em 2 de Junho de 1952, é constituída principalmente pelo pragmatismo, iluminismo e naturalismo. Está ligado ao pragmatismo por

ser contra a idéia de uma razão pura e já determinada pelo intelecto. Ao iluminismo pela razão ser a responsável pela ordem e estabilidade no

mundo social e natural. E ao naturalismo por acreditar que entre o homem e a natureza não existe distanciamento, mas sim uma relação de

continuidade, evolução; e que essa evolução deve ser considerada como fundamento da conduta humana.

Para se compreender o pragmatismo de Dewey é preciso entender antes que o pragmatismo deweyano é uma critica a filosofia

tradicional. Filosofia essa que pode ser bem descrita principalmente pelo conceito elaborado pelo filósofo grego Platão através da existência de

um dualismo entre os dois mundos, o mundo sensível e o mundo inteligível. Enquanto que no mundo sensível temos um mundo onde o homem

vive, onde existem as incertezas, as dúvidas, as experiências diárias, as modificações, as transformações das coisas, o aprendizado através dos

sentidos. O mundo inteligível é totalmente oposto ao mundo sensível, é o mundo das certezas, das formas perfeitas das coisas, onde existe a

razão.

E é a partir dessa concepção platônica que surge uma filosofia educacional, uma maneira como se trabalhar com o conhecimento, com a

formação dos alunos. Conhecimento esse que é que deve ser concedido aos alunos através do professor, pois o professor seria aquele que estaria

mais próximo desse mundo da razão, pois seria o detentor do conhecimento. A partir disse possuímos então uma relação vertical do

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conhecimento, onde o aluno se tornaria como um receptáculo do saber, que estaria diante do professor numa condição hierárquica, onde receberia

o conhecimento como algo já pronto e imodificável. Essa concepção Platônica adotada para o ensino tornou-se forte no decorrer dos séculos,

desde a própria época grega até hoje que o denominamos como ensino tradicional.

A critica que Dewey faz ao dualismo platônico, quanto à existência desses dois mundos, está em querer justificar que nós não

precisamos de outro mundo, de outra esfera metafísica contemplativa para poder explicar os nossos problemas, mas sim que somos responsáveis

por esse mundo em que vivemos. E que as respostas para os problemas aqui encontrados podem serem respondidos através da observação da

nossa experiência.

Experiência essa que é o principal conceito da filosofia pragmatista de Dewey, que ao contrário da filosofia tradicional que descarta a

ignorância, a possibilidade humana que o ser humano tem de errar e concentra o conhecimento todo em uma esfera metafísica contemplativa.

Para o filósofo da educação experiência consiste na condição de conduzir o indivíduo através de sua ação, a outra ação futura, para que ele possa

futuramente prever uma nova ação e conceber um novo conhecimento, aperfeiçoando assim a cada nova ação. Lembrando que esse

conhecimento é tido sempre como em um processo de transformação, no qual ele trabalha em conjunto com as ações retidas pelo indivíduo nas

anteriores, pois nem uma ação tem como finalidade isolada uma da outra.

Como percebemos o objetivo principal da pedagogia deweyana consiste principalmente na capacidade própria que os indivíduos possuem

de aprender por suas experiências, aliando assim a capacidade que cada um possui de reter as suas experiências, e aliando elas com a sua

inteligência para que possa auxiliar em uma ação futura pela busca do conhecimento. Conhecimento esse que para Dewey é sempre observado

como algo modificável e construtivo.

2- A Critica à Dewey e ao seu pressuposto espontaneísmo pedagógico

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A proposta educacional elaborada por Dewey possui elementos inovadores como principais características de sua pedagogia estão a de

tentar fazer o indivíduo pensar por si próprio, provocando uma autonomia no sujeito no modo de agir diante do contexto escolar e social que

presencia. Pressupondo uma idéia contrária a proposta por Dewey e por fazerem leituras apressadas e até mesmo superficiais de suas obras,

muitos autores acabam gerando equívocos quanto à pedagogia deweyana, acabam generalizando as suas idéias e as criticando, como se elas

estivessem direcionadas a um espontaneísmo pedagógico, onde o aluno agiria por livre e espontânea vontade dentro da sala de aula.

Château afirma que o educador pode preparar um diálogo válido, sem se preocupar com o assunto que vai versar. Mas poderá continuar a

chamar-se diálogo a uma série indefinida de palavras que não têm outro fim, outro conteúdo que elas próprias, pois nunca se chegará a uma

confrontação ao mesmo tempo atenta e sólida das convicções duma pessoa com as de outra? (Château apud Snyders, 1974, p. 64)

Como podemos perceber a crítica principal atribuída à pedagogia Deweyana está em querem provar que o seu método de ensino não

possui enraizamento teórico suficiente para conduzir uma aula, que não existiria um conteúdo pré-programado para as mesmas, e que em função

disso acabaria direcionando a uma espécie de espontaneísmo pedagógico, onde quem determinaria o rumo da aula seria o interesse do aluno.

As críticas ao método novo de ensino são diversas e dando continuidade a elas temos a do filósofo da educação Saviani que afirma que o

erro da Escola Nova está em querer tentar transformar o processo de ensino como pesquisa, pois acredita que os assuntos que a escola trata são

vistos como problemas do ensino (Saviani, 2008, p.37). Pesquisa essa que abaixo o próprio autor denomina os cincos passos iniciais que crítica o

ensino tradicional:

[...] então, o ensino seria uma atividade (1º passo) que, suscitando determinado problema (2º passo), provocaria o levantamento dos dados (3º passo), a partir

dos quais seriam formuladas as hipóteses (4º passo) explicativas do problema em questão, empreendendo alunos e professores, conjuntamente, a

experimentação (5º passo), que permitiria confirmar ou rejeitar as hipóteses formuladas. (SAVIANI, 2008, P. 37)

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Segundo Saviani é impossível fazer pesquisa sem ter embasamento teórico suficientemente para conduzi-la, seria impossível

querer se chegar ao conhecido sem conhecer o mesmo. (SAVIANI, 2008, p. 37). O que percebemos aqui é que talvez tenha ocorrido uma leitura

rápida e generalizada daqueles que tentavam fazer da escola nova como um método de ensino espontaneista e não preparado teoricamente. Ao

contrario do que descrevem esses autores, o controle das aulas, o domínio do conteúdo, não está sob o controle dos próprios alunos como eles

mesmos afirmam, e sim do próprio professor que atua como uma espécie de fio condutor nesse caso, onde ele tenta guiar e direcionar os alunos

até formularem a resposta correta a respeito do problema proposto a ser investigado.

Considerações finais

O presente texto tentou apresentar de uma maneira sistemática os principais pioneiros do pragmatismo Charles Sanders

Peirce e William James, a sua origem e influência na pedagogia elaborada por John Dewey e os principais conceitos desse seu novo método de

ensino. Tambem foram apresentadas as críticas feitas por alguns filósofos da educação em relação ao novo método de ensino deweyano.

Dewey ao escrever suas obras sempre se mostrou bastante otimista quanto a educação, pois almeja uma educação para todos,

democrática e que pudesse preparar o individuo para viver em sociedade. Não apenas viver de uma forma alienadora em massa, mas que pudesse

pensar por si próprio, fazer juízos de valores, possuir um pensamento critico e reflexivo, que o desse autonomia própria para agir e fazer suas

próprias escolhas para melhor poder contribuir na melhora do meio em que vive.

Enfim, como podemos perceber mesmo ao passar de décadas da morte de Dewey, as críticas a sua pedagogia ainda persistem em

continuarem, ou até mesmo surgirem. Mas em meio a tantas críticas e falsas crenças, e até mesmo ao espontaneismo pedagógico que a maioria

dos autores denominam a sua pedagogia ser. O que temos são filósofos, educadores, que com um pensamento dogmático, não conseguem

considerar que a pedagogia tradicional está sendo vista como algo ultrapassada, e que nada mais justa seria tentar adaptar ela ao processo

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evolutivo da sociedade. Elaborando uma nova forma de educar que possa ajudar a acompanhar, enfrentar e desenvolver o homem diante dos

problemas sociais atuais enfrentados. Problemas esses que Dewey tenta apresentar através da sua nova proposta educacional.

Referências bibliográficas:

ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. Trad. Antonio Ramos Rosa, Conceição Jardim e Eduardo Lúcio Nogueira. 2 ed. Editorial

Presença. Lisboa,

DEWEY, John. Como Pensamos. Trad. Hayée de Camargo Campos. 3 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959a.

DEWEY, John. Democracia e Educação. Trad. Godofredo Rangel e Anísio Teixeira. 3 ed. São Paulo: CIA Editora Nacional, 1959c.

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SAVIANI, Dermerval. Escola e Democracia. “Ed. Comemorativa”. Campinas: Editora Autores Associados, 2008.

SNYDERS, Georges. Pedagogia Progressista. Trad. Manuel Pereira de Carvalho. Coimbra: Livraria Almedina, 1974.

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INVESTIGANDO O CONCEITO DE DESENVOLVIMENTO NATURAL: UMA ABORADAGEM NO PENSAMENTO DE ROUSSEAU E DEWEY - Cristiano Eduardo Wendt 275

INTRODUÇÃO

Jean-Jacques Rousseau merece atenção especial quando tratamos de assuntos referentes à filosofia da educação. Essa atenção se dá pelas

objeções, proferidas pelo genebrino, ao projeto do Iluminismo no que tange à confiança ilimitada na razão. Exemplo claro é sua obra Emílio ou

Da Educação. onde demonstra o modelo ideal de educação-formação para seu aluno fictício (Emílio). Com o pressuposto de que a educação não

deve iniciar pela razão, mas sim pelos sentidos, pela experiência e pelo contato com a natureza. Neste horizonte que procuramos desenvolver o

trabalho, investigando a real importância do conceito e da aplicabilidade da educação natural.

Partimos de um conceito de educação natural que procure propiciar o desenvolvimento natural e espontâneo da criança, através do qual

ela fortaleça o corpo e refine seus sentidos. A finalidade, aqui, reside em que o infante não acelere o seu desenvolvimento físico, cognitivo e

moral. Para o genebrino a educação deve ser gradual com isso ele confronta-se diretamente com a pedagogia tradicional, em especial com a

concepção da ideia de criança, a saber, como um adulto em miniatura.

275 Aluno do PPGE- Mestrado em Educação - Universidade de Passo Fundo – UPF - [email protected]

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Iremos além do pensamento rousseauniano, buscaremos, em um pensador contemporâneo, questionar o conceito de desenvolvimento

natural e do próprio processo educacional pensado por Rousseau. O contra ponto com o filósofo suíço será realizado com base nos escritos do

filósofo americano John Dewey (1859 – 1952), amparando-nos em sua obra Democracia e Educação. Tentaremos investigar as críticas feitas

pelo pragmatista ao pensamento do Iluminista, no que se refere ao projeto de educação natural, mais propriamente dito a ideia de

desenvolvimento natural.

1 CRÍTICA DEWEYANA SOBRE O “DESENVOLVIMENTO NATURAL” APRESENTADO POR ROUSSEAU

Nos determos na reconstrução dos argumentos que Dalbosco apresenta em seu artigo Natureza e inteligência: O papel de educador em

Rousseau e Dewey, onde trata da aproximação e distanciamento no pensamento destes dois autores. Para empreender esta caminhada, ficaremos

detidos ao capítulo 2.2 Crítica ao princípio rousseauniano de “desenvolvimento natural”, onde procura apresentar dois momentos que Dewey se

mostra contrário ao pensamento de Rousseau.

O primeiro momento debruça-se na ideia de “aptidões inatas” e o segundo na identificação do conceito de natureza com o conceito de

Deus. Faz-se necessário demonstrar, também, que o enfraquecimento da inteligência humana e das faculdades dos indivíduos seria os

pressupostos para o desenvolvimento dos sujeitos. Mas, o principal dessa ideia de enfraquecimento é a “secundarização da atuação do educador,

uma vez que sua intervenção ativa poderia pôr em risco o desenvolvimento natural, cognitivo e moral das crianças” (DALBOSCO, 2010, p. 11).

Então, para que, conforme objeta o pragmatista, a natureza pudesse se desenvolver a contento, o educador deveria retirar-se completamente do

processo educativo. E é nesse aspecto que o conceito de natureza assume, segundo o Dewey, uma dupla identificação, com o conceito de Deus,

como de aptidões inatas.

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Começaremos reconstruindo a identificação da ideia de natureza com as aptidões inatas, na tentativa de apontar o rumo que Dewey toma

ao colocar Rousseau como defensor de um imobilismo da ação do educador. O americano nutre pelo genebrino “simpatia”, devido ao fato de

acreditar que o mesmo está apontando seus escritos para os “ideais de uma educação democrática” (DALBOSCO, 2010, p. 12). Isso ocorre

devido ao fato de que tendo defendido “a plasticidade e a diversidade das capacidades humanas inatas, o genebrino também já poderia ser visto

como um crítico do pressuposto metafísico da unidade e essência humana imutáveis” (DALBOSCO, 2010, p. 12). Assim, se fosse colocada em

confronto com a tradição escolástica “a teoria de seguir a natureza conteria uma idéia menos formal e abstrata de espírito e de suas faculdades e,

por isso, tinha significado progressista e transformador para a época” (DALBOSCO, 2010, p. 12).

Porém, a crítica que Dewey tece à Rousseau pode ser visualizada na seguinte passagem de Democracia e Educação: “Pensa que este

desenvolvimento se produza independentemente do uso que lhes dê” (DEWEY, 1959, p. 123). O que ele pretende é apontar que o genebrino

defende um desenvolvimento que seja independente e ao mesmo tempo espontâneo das aptidões. Estaria, assim, atribuindo um poder demasiado

às “forças humanas naturais” (DALBOSCO, 2010, p. 12). Isso estaria ocasionando, a retirada do educador do processo educacional dos infantes,

não havendo mais necessidade da presença do adulto. Agora a força humana natural realizaria todo o trabalho.

Dewey conduz suas objeções apontando que Rousseau esqueceu-se de atribuir o real significado ao conceito e papel da inteligência e

seria a natureza livre de qualquer ação inteligente que conduziria o desenvolvimento do educando. Então, “Dewey conclui que o genebrino teria

atribuído um papel quase passivo ao adulto em sua tarefa de acompanhar o desenvolvimento natural da criança” (DALBOSCO, 2010, p. 12).

Segundo Dewey:

O fato é que as atividades inatas se desenvolvem, não pelo exercício casual e caprichoso, mas pelo uso que delas se faz. E a função do meio social é, como já

vimos, orientar o desenvolvimento dando às aptidões o melhor uso possível. As atividades instintivas podem chamar-se, metaforicamente, espontâneas, no

sentido de que os órgãos proporcionam forte tendência para que as atividades sejam de certa natureza – propensão tão forte que não podemos contrariá-la

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pois tentar contrariá-la seria, provavelmente, pervertê-las, atrofiá-las e corrompê-las. Mas a concepção de um espontâneo desenvolvimento normal dessas

atividades é puro mito (DEWEY, 1959, p. 124).

Trataremos doravante acerca da identificação do conceito de natureza com o conceito de Deus, conforme aponta o pragmatista. Sobre isso

diz Dalbosco:

Dewey amarra o conjunto de suas objeções a uma idéia decisiva: Rousseau vinculou energicamente o inatismo das aptidões e faculdades humanas no conceito de natureza e defendeu o desenvolvimento natural e espontâneo daquelas, porque adotou, como núcleo de seu argumento, a identificação entre natureza e Deus. É esta identificação que tornaria compreensível sua insistência na defesa do desenvolvimento natural e espontâneo: porque foram criadas por um Deus sábio e bom, assim reconstrói Dewey o argumento de Rousseau, as aptidões originárias só se desenvolverão de modo bondoso, se seu desenvolvimento for natural. Deste modo, os homens não podem determinar o uso a ser dado às atividades inatas porque se colocariam contra o plano divino (DALBOSCO, 2010, p. 13).

Infere-se da passagem acima que o autor parte do pressuposto de que se Deus e natureza possuem a mesma significação para o genebrino,

segue que as aptidões humanas deverão ser sempre boas. Isso pelo fato de que “como Deus é bom e a natureza é Deus, as aptidões humanas, uma

vez que são originadas da deusa natureza, se forem desenvolvidas de acordo com ela, tornar-se-iam obviamente boas” (DALBOSCO, 2010, p. 13

- 14). O que resulta desta ideia é que para Dewey Rousseau concebe, aqui um determinismo, o qual estaria diretamente ligado à ideia de um ser

superior, uma força que estaria a serviço do “desenvolvimento natural e espontâneo das capacidades humanas” (DALBOSCO, 2010, p. 14).

Dalbosco encerra procurando ressaltar que para o pragmatista americano o genebrino estaria muito longe de uma ideia pragmatista de educação,

pois não teria conseguido justificar satisfatoriamente “o princípio de que por meio do exercício do corpo se chega ao desenvolvimento do

espírito, pois isso seria, inclusive, a própria intenção da natureza” (DALBOSCO, 2010, p. 14).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na busca de encontrar algumas possibilidades de interpretação dos problemas levantados, ofertamos a Rousseau o direito à sua defesa

perante o tribunal ao qual foi lançado.

Assim, o ponto que tomaremos como condutor de nossas considerações acerca do apresentado nesse trabalho trata de que Dewey, grosso

modo, realizou uma leitura apressada de Rousseau no que se refere ao conceito de natureza, pois não conseguiu identificar a relação feita por

Rousseau entre natureza e razão. Isso pode ter ocorrido pelo fato de que Dewey aponta para um ideal de “sociedade democrática, profundamente

dependente da crença otimista na ciência moderna e nos procedimentos de seu método” e com isso “tornou seu pensamento prisioneiro do

conceito científico-moderno de natureza, cegando-o completamente do sentido normativo de natureza” (DALBOSCO, 2010, p. 20).

Podemos levantar a hipótese de que em Rousseau é a razão que tem o papel de ser a mediadora dos desejos. É ela que poderá, juntamente

com a natureza, forjar cidadãos capazes de administrar suas vidas e a vida em sociedade.

Porém, queremos chamar a atenção para um conceito que Dewey não tratou de devidamente: o conceito de liberdade, o qual pode ser

considerado de fundamental importância para o esclarecimento do conceito de natureza pelo genebrino. Assim, levantamos a hipótese de que o

aspecto singular que reside na ideia de natureza humana reside, inicialmente, na ideia de liberdade. Não podemos pensar um processo

educacional sem levar em consideração o conceito de liberdade. Então, esse é o esteio de um projeto de educação natural. Assim, Rousseau

procura pensar a liberdade na primeira infância em um contexto onde ela é dominada pelas necessidades, sendo, ao mesmo passo, incapaz de

suprir essas necessidades. Surge, então, o conceito de liberdade bem regrada, na tentativa de tratar desse problema. Antes de darmos significado à

liberdade bem regrada, devemos compreender o que não se adéqua a este conceito, ou seja, a liberdade numa perspectiva selvagem, onde não há

existência de regras ou leis. Ela está presente na natureza do ser humano, expressando-se de maneira mais forte nos infantes. A vontade reina

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soberanamente, uma vontade absoluta que deve ser entendida como os caprichos, os desejos. Uma liberdade bem regrada, por sua vez, implica na

presença constante de regras. Numa vontade educada, que significa a racionalização das necessidades, conseguindo por meio dela distinguir

realmente o que é necessidade e o que é capricho. Finalizamos dizendo que o projeto de educação natural pensado por Rousseau se fundamenta

em um conceito de liberdade bem regrada. E é nesse aspecto que se dá, no processo de educação de Emílio, a passagem à moralização.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DALBOSCO, Claudio A.. Teoria social, antropologia filosófica e educação natural em Rousseau. In: DALBOSCO, C. A.; FLICKINGER,

H. G. (Org.). Educação e Maioridade: dimensões da racionalidade pedagógica. São Paulo – Passo Fundo. Cortez Editora – UPF Editora, 2005.

DALBOSCO, Claudio A.. Crítica da razão e iluminismo pedagógico em Rousseau. In: SGRÓ, Margarita. Teoría Crítica de la Sociedad,

Educación, Democracia y Ciudadanía. Tandil: UNCPBA. 2008.

DALBOSCO, Claudio A.. Natureza e inteligência: O papel de educador em Rousseau e Dewey. In: DALBOSCO, Claudio A..

Pragmatismo, teoria crítica e educação. Autores Associados. Passo Fundo, 2010.

CAMBI, Francis. História da Pedagogia. Fundação Editora da UNESP, 1999.

DEWEY, John. Democracia e Educação. Companhia Editora Nacional. São Paulo, 1959.

ROUSSEAU, J-J. Emílio ou Da Educação. Bertrand Brasil. Rio de Janeiro, 1992.

ROUSSEAU, J-J. Emílio ou Da Educação. Martins Fontes. São Paulo, 2004.

OLIVEIRA, Maria Alejandra. Educación, comunicación y democracia: aportes de John Dewey para una pedagogía de caráter socio-

político. In: CENCI, Angelo V.; DALBOSCO, Claudio A.; MÜHL, Eldon H.. (Org.). Sobre filosofia e educação: racionalidade, diversidade e

formação pedagógica. Ed. UPF. 1999.

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FILOSOFIA COM CRIANÇAS: UMA PROPOSTA LIPMANIANA ANC ORADA NOS CONCEITOS DEWEYANOS276 - Francieli Nunes da Rosa 277

Considerações iniciais

Ensinar filosofia na escola se tornou um tema a ser pensado e discutido por educadores e pesquisadores de vários países. A Filosofia é a

faculdade mental que nos permite aprender, extrair significados e transformar aquilo que foi aprendido em aptidão para continuar aprendendo. O

seu ensino deve ser parte da educação dos estudantes, para Lipman, esse ensino deve ocorrer desde os primeiros anos escolares, dessa forma,

contribuindo para que a criança também tenha acesso ao mundo da Filosofia e, por meio de uma atitude filosófica, possam ter uma relação

melhor com as situações que vão enfrentar no seu dia-a-dia, buscando sábias soluções e pensando bem sobre as questões que afetam o homem e a

sociedade.

Tanto Lipman quanto Dewey pensaram de maneira sábia e efetiva o processo de educar desde as primeiras experiências de sala de aula da

criança. E foi inspirado em John Dewey que Matthew Lipman propõe e idealiza o Programa Filosofia para Crianças. O texto está dividido em

três partes, na qual a primeira vamos apresentar uma breve passagem do modelo de educação que ele teve na sua infância, visualizando a sua

formação acadêmica e como ele pensou e propôs o Programa de Filosofia com Crianças.

276 Texto produzido a partir de discussões e leituras feitas no grupo de pesquisa Pragmatismo, filosofia e educação: as interfaces entre experiência, reflexão e

políticas de ensino, coordenado pelo Prof. Dr. Altair Alberto Fávero. 277 Acadêmica do Curso de Filosofia LP da Universidade de Passo Fundo e Bolsista Pibic-UPF. E-mail: [email protected].

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Na segunda parte do texto iremos tratar de suas influências filosóficas, nos detendo somente na influência deweyana em seu pensamento,

a esse Lipman estudou e se aprofundou por tratar de modo geral e complexa a educação de sua época. E, por fim, na terceira parte do texto vamos

tratar da proposta lipmaniana para uma educação filosófica de qualidade.

1 O pensamento de Lipman sobre o Programa Filosofia para crianças

Pensar um espaço educacional em que nele estejam ancoradas propostas para um pensar de ordem superior, foi o que Matthew Lipman,

considerado pioneiro no que tange a elaboração de um Programa de Filosofia na escola fez. Lipman se fundamentou tanto em filósofos antigos

quanto contemporâneos, naqueles que pensaram os problemas da educação e trataram a filosofia como uma questão de formação integral

humana. Lipman ressalta dois fatores principais que fazem parte da natureza do homem e do seu desenvolvimento na sociedade e que segundo

Brocanelli são “o espírito filosófico e a educação” (2010.p.29). O homem é um ser que sempre procura inovar, criar e entre outros investigar para

solucionar problemas, mas de certa maneira ele possui um espírito filosófico que não se satisfaz com aquilo que está dado, ou seja, aquilo que

está pronto. A criança, principalmente, possui com mais exatidão esse espírito investigativo, por isso deve-se levar em conta essa fase da vida não

podendo passar despercebida, em especial nos primeiros anos escolares.

As propostas que orientaram o seu pensar para a elaboração do Programa de Filosofia com Crianças, foram em aproveitar o mundo das

descobertas em que a criança está envolvida. A sua intenção era que as crianças estivessem inseridas em discussões relacionadas à sua idade

fazendo uma ponte com o mundo, ou seja, a sociedade. Segundo Brocanelli “a educação é vista como um processo que se estende durante toda a

vida do homem, estando ou não frequentando uma escola” (2010, p.29). Lipman sempre se ocupou em pensar a aplicação da filosofia nas

escolas, foram anos de experiências em escolas e universidades que o motivou para a elaboração do Programa, mas uma de suas preocupações

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era a partir de temas filosóficos e discussões em sala de aula pudesse se transformar em comunidade de investigação278 em que nela as crianças

pudessem amadurecer intelectualmente. Em uma discussão dialógica o conteúdo é enriquecido com o surgimento de novas idéias e o processo

reflexivo é gerado. Para Lipman,

quando as pessoas se envolvem num diálogo, são levadas a refletir, a se concentrar, a levar em conta as alternativas, a ouvir cuidadosamente, a prestar muita

atenção as definições e aos significados, a reconhecer alternativas nas quais não havia pensado anteriormente e, em geral, realizar um grande número de

atividades mentais nas quais não teria se envolvido se a conversação não tivesse ocorrido (1994, p.44).

A ideia que se trava num diálogo argumentativo é que os participantes questionem e pensem sobre o assunto que está sendo discutido. O

objetivo é superar o raciocínio superficial. Pois os participantes devem ter um olhar crítico sobre o que se discute, isso torna um processo que

implica uma melhora crescente das habilidades de raciocínio279. A discussão filosófica é antiga e deve ser cada vez mais cercada de conceitos

relevantes ao conhecimento humano, temas como justiça, liberdade, o belo, o tempo, etc., devem fazer parte da discussão na sala de aula como

comunidade de investigação.

Para Lipman o papel da Filosofia na escola é o de estabelecer ligações entre as outras disciplinas para que seu conteúdo não fique

fragmentado como estão nos livros didáticos. Lipman diz que as crianças têm uma tendência natural a filosofia “se a principal contribuição da

criança ao processo educacional é seu caráter questionador, e se a filosofia é caracteristicamente uma disciplina que levanta questões, então a

filosofia e as crianças parecem ser aliadas naturais” (LIPMAN, 1994, p.50). Desse modo, a principal preocupação não deve ser em esperar

278 Termo criado por Charles Sander Pierce, em seu original era restrito somente a cientistas por realizarem trabalhos comuns com objetivos diferentes. Na educação, a sala de aula torna-se uma comunidade de investigação, quando os alunos dividem opiniões com respeito, desenvolvendo questões a partir de idéias de outros, dando as razões seus argumentos.

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trabalhos que revelam alguma criatividade filosófica, mas que sejam capazes de explorar e expressar seu pensamento sempre participando da

comunidade de investigação.

2 A influência do pensamento filosófico e pedagógico de John Dewey

Após inúmeras leituras e estudos filosóficos, ministrando aulas de filosofia e pesquisando sobre o assunto, Lipman observou a

importância de alguns pensadores, que poderiam de certa maneira contribuir com seus pensamentos e propostas educacionais e pedagógicas.

Dentre eles podemos citar Sócrates, Aristóteles, Wittgenstein, Piaget, Willian James, entre outros, nos quais recebem uma maior atenção no seu

livro intitulado O pensar na educação. Porém, os dois pensadores que Lipman aprofundou mais seus estudos foram Sócrates, John Dewey e

Vygotsky. Nesse caso iremos estudar somente a influência deweyana, mas não perdendo de vista as contribuições feitas por Sócrates e Vygotsky.

O pensamento de Dewey começou a ter influência no de Lipman, quando ele recebeu de seu professor da Universidade um livro de John

Dewey, a partir disso podemos ver alguns pontos importantes desses dois filósofos, tais como: o pensar melhor, o pensamento reflexivo, a

possibilidade de ensinar a pensar, a curiosidade, a postura do professor em sala de aula, a experiência, a educação como busca de uma maior

significação da vida e, por fim, a lógica da investigação; tudo isso foi construído por Lipman, a partir das idéias de Dewey. Para Dewey o

pensamento reflexivo é o que faz com que a pessoa saia da beira da estrada e comece a examinar as coisas e o seu próprio pensamento, dessa

maneira chegando a um pensar melhor. No pensamento reflexivo as palavras e as frases não se perdem e nem são desperdiçadas, segundo Dewey

“as partes sucessivas de um pensamento reflexivo derivam umas das outras e sustentam-se umas às outras; não vão e vêm confusamente” (1959,

p.14). A capacidade que temos de pensar reflexivamente sobre as coisas que nos cercam é o que nos torna mais civilizado e, assim, o diferencia

279 “Habilidades de raciocínio são competências em áreas como classificar, definir, formular questões, dar exemplos e contraexemplos, identificar similaridades e diferenças, construir e criticar analogias, comparar, contrastar e tirar inferências válidas” (LIPMAN, 1990, p.99)

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do selvagem, dessa forma, Lipman considera o raciocínio como uma habilidade fundamental do homem e o seu aperfeiçoamento só é possível

porque ele é um ser aberto para as descobertas e é capaz de acumular experiências.

A educação tem uma importância fundamental no que tange o aprendizado de conhecimentos e ajudando assim as crianças a pensarem

bem. Com essa afirmação, nos perguntamos: é possível ensinar a pensar? Dewey em seus escritos vai dizer que ensinar a pensar não é algo muito

relevante, pois o pensamento é uma capacidade natural do homem. Porém “é possível ensinar a pensar melhor ou pensar bem através das técnicas

e habilidades de pensamento” (BROCANELLI, 2010, p.45). À medida que vai ocorrendo esse processo o professor tem a função de mediador, ou

seja, aquele que media, direciona e coordena a sala de aula para que o diálogo não siga outros caminhos, mas apenas os que levam a um

pensamento reflexivo.

Dewey pensa em filosofia de educação não se referindo a própria Filosofia da Educação, mas um modo de educar e ser educado como um

ato único na vida do indivíduo, levando em conta as experiências da vida, dentro e fora da escola. Assim, fica claro esse pensamento quando ele

diz que a “educação, para realizar seus fins, tanto para o indivíduo quanto para a sociedade, deve basear-se em experiência – que é sempre

experiência atual de vida de algum indivíduo” (1971, p,95). Quando Dewey trata da experiência, ele destaca o valor que esta representa para cada

indivíduo quando vivida intensamente e aproveitada em todos os estágios da vida de cada ser. Dessa mesma maneira Lipman considera a

experiência importante para o processo educacional dentro e fora da escola.

Um dos fatores importantes em que podemos colocar em paralelo o pensamento de Dewey e Lipman é justamente a questão da lógica

para poder alcançar o pensamento consistente e correto. Sem a lógica é impossível ter um raciocínio organizado e que leve a conclusões

verdadeiras. Da mesma forma, identificar os pensamentos ou afirmações inconsistentes. Assim como Dewey pensou sobre a lógica e a sua função

no aprendizado humano, Lipman levou em consideração suas idéias e afirmações, passando a elaborar um programa que visa valorizar o

conteúdo filosófico e a lógica como instrumento para se chegar a pensar melhor.

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3 Proposta lipmaniana para uma educação filosófica desde a infância

Em sua época de escola, Lipman foi educado aos moldes da educação tradicional, no qual seguia um modelo de cumprimento de regras,

onde num simples desvio dessas regras, a criança era posta de castigo. Assim, ele considera este tipo de educação algo que não promove a

atividade própria da criança, mas a sua obrigação de cumprir aquilo que é dito tanto pela escola como pelo professor. Em contrapartida com esse

modelo tradicional, Lipman, por meio de estudos e pesquisas abre uma série de propostas para uma educação mais ativa e participante, “com

abertura e liberdade para o aluno, dando a ele a oportunidade de expressar suas concepções e opinião sobre a realidade” (BROCANELLI, 2010,

p.71).

No Programa de Filosofia para Crianças, Lipman busca elucidar a ideia de uma educação que dá privilégios, não apenas a conteúdos, mas

a participação dos alunos com as suas experiências de vida, numa relação entre professor-aluno e aluno-aluno. Lipman coloca como ponto

culminante a discussão e o diálogo combinado com a reflexão a partir de temas propostos que interessam os alunos. O interesse de Lipman com o

Programa “é formar indivíduos que pensem melhor e se engajem em um comportamento filosófico, ou seja, que as crianças, desde as primeiras

séries escolares, tenham contato com temas da filosofia e iniciem discussões acerca desses temas” (BROCANELLI, 2010, p.72).

Na sala de aula não deve haver doutrinação, isto é, o professor de maneira nenhuma deve impor sua posição ou pensamentos particulares,

mas promover a participação de todos os alunos acerca de um tema proposto. A metodologia pedagógica deve estar baseada na discussão,

levando em conta, que as crianças têm uma maior propensão para a expressão verbal. Essa metodologia dialógica deve estar inserida desde a

educação infantil até o fim do ensino médio, preparando, assim, cada pessoa para o ensino superior e para um pensamento crítico.

Outra necessidade que Lipman aponta é a instrução dos professores, pois é impossível trabalhar apenas com inspiração, ou seja, “nenhum

texto para os alunos e nenhum manual para os professores; para Lipman, este modelo, no momento, era impraticável” (LIPMAN, 1990, p.207).

Os alunos devem receber textos para que a disciplina seja acompanhada por eles, assim como os professores devem fazer seus planos de aula e

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possuir um manual, por isso, Lipman elabora as novelas filosóficas acompanhada pelo material do professor servindo de instrução para as

discussões e orientando o professor.

E, por fim, é necessária uma pesquisa educacional, onde seu objetivo é perceber o envolvimento das crianças com a filosofia. “Essa

pesquisa é um instrumento de medida do funcionamento do Programa que a escola pode fazer anualmente” (BRICANELLI, 2010, p.75). Apesar

de todo esse planejamento, Lipman só vê a possibilidade desses paradigmas se realizarem se acontecer dentro da sala de aula a comunidade de

investigação. Ela permite que seus participantes ultrapassem este componente da racionalidade e cheguem ao pensamento crítico, criativo e

reflexivo por meio do diálogo. Assim Lipman ressalta que:

A comunidade de investigação é uma sociedade deliberativa envolvida com o pensar de ordem superior. Isto significa que suas deliberações não são simples

bate-papos ou conversações; são diálogos logicamente estruturados, todavia, não os impossibilita de atuarem como um estágio para o desempenho criativo

(1995, p.302).

Nesse caso é preciso esclarecer alguns pontos: (i) o pensar de ordem superior é um pensar estruturado segundo padrões do Programa de

Filosofia para Crianças, isto é, um pensar lógico e que tenhas boas razões; (ii) há uma diferença entre conversação e diálogo: a conversação se dá

quando as pessoas conversam sobre quaisquer assuntos sem compromisso, e diálogo, é uma conversa, porém, com compromisso e desejo de se

chegar a um ponto comum. Portanto, a comunidade de investigação possibilita aos participantes a troca de idéias e experiências.

Assim destacamos que a principal contribuição do Programa Filosofia para Crianças de Lpiman é a Comunidade de Investigação. Ela

deve ser formada em sala de aula com as crianças, incentivando-as à discussão de temas filosóficos e que estes temas se relacionem com o

cotidiano da criança. Mas antes da formação dessa Comunidade, deve haver um espírito filosófico dentro da Universidade e uma atitude

filosófica de cada estudante que se prepara para trabalhar com as crianças.

Considerações finais

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Este estudo que fora feito é de modo geral, alicerce para poder pensar uma educação de qualidade embasada num estudo teórico e de uma

reflexão sobre o pensamento e a prática de Lipman sobre o Programa Filosofia com Crianças. Portanto, quando propomos em utilizar no texto as

preocupações de Lipman, vemos que o seu propósito era oferecer uma educação que atendesse às necessidades integrais do homem. Assim,

podemos destacar não somente o Programa, mas as atitudes de Lpiman para criá-lo, isto é, a atitude em pensar um Programa em que nele estejam

ancoradas as necessidades intelectuais das crianças, possibilitando um trabalho filosófico desde a educação infantil até o ensino médio e desse

modo, capacitando-os para a educação superior ou para a vida em sociedade.

Para que propostas como essa não percam o seu foco principal, é necessário que surja uma proposta norteadora que oriente o trabalho de

Filosofia com Crianças em todas as escolas. Porém, devemos destacar outra preocupação: a formação filosófica dos professores. Por um lado,

pensando nas próprias crianças, onde algumas delas serão professores daqui a algum tempo e, de certa maneira, poderão ser bons educadores

num futuro próximo. Por outro lado, deve haver um trabalho conjunto com os profissionais da educação e com as crianças, levando os

professores a obterem uma melhor qualificação filosófica dentro da Universidade, esse trabalho deve ser sustentado e mantido pela reflexão em

pequenos grupos e pela prática escolar.

Referências

BROCANELLI, Cláudio R. Matthew Lipman: educação para o pensar filosófico na infância. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.

DEWEY, John. Como pensamos. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.

_____________. Experiência e educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971.

LIPMAN, Matthew. A filosofia vai à escola. São Paulo: Sumus, 1990.

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_________________. O pensar na educação. Petrópolis: Vozes, 1995.

LIPMAN, M.; OSCANYAN, F.S. & SHARP, A.M. A filosofia na sala de aula. Trad. Ana Luiza Falcone. São Paulo: Nova

Alexandria, 1994.

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POLÍTICA E EDUCAÇÃO: UMA RELAÇÃO ENTRE O BEM VIVER ARISTOTÉLICO E A RECONSTRUÇÃO DA EXPERIÊNCIA DEWEYANA - Gabriela Nas cimento Sousa

INTRODUÇÃO

Política e educação são conceitos que se integram e que de certa forma se assemelham na filosofia de Aristóteles e John Dewey. Ambos

são desenvolvimentos da vida, não podem ser entendidos como conceitos inatos ou que possam ser passados instantaneamente aos seres

humanos. A educação através da reconstrução da experiência proposta por Dewey, leva o ser humano a pensar numa educação contínua, assim

como a política do bem viver proposto por Aristóteles propõe um progresso contínuo das atitudes humanas visando o bem comum.

Partindo destas constatações de aproximação dos dois autores, uma relação entre a política do bem viver aristotélico e a educação

por reconstrução da experiência se torna realizável, e no seu desenvolvimento será possível evidenciar uma suposta reabilitação/desenvolvimento

da filosofia pratica no âmbito da educação para a vida.

1 – O BEM VIVER ARISTOTÉLICO

Segundo Aristóteles, o homem possui uma característica fundamental que o diferencia dos demais seres. Esta característica o torna capaz

de medir suas ações para atingir um bem supremo e se localiza na faculdade racional da alma, considerando esta como portadora de duas

faculdades. No conceito aristotélico, a alma é dividida em duas partes, a racional e a irracional. A irracional comporta hábitos de sobrevivência e

é presente em todos os seres, sejam eles humanos ou não, na faculdade racional é que encontramos a razão em duas dimensões, a teórica que diz

respeito ao que não se pratica, se conhece a partir de conceito, e a prática que se concretiza na ação e se conhece a partir de experiências.

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Toda ação humana visa um bem, e esta pode ser apenas uma estratégia para adquirir um bem maior. “Toda arte e toda indagação,

assim como toda ação e todo propósito, visam a algum bem ; por isto foi dito acertadamente que o bem é aquilo que todas as coisas visam.”

(ARISTÓTELES, 2001, p.17). O bem individual não pode ser considerado tão nobre quanto o bem comum, o homem não pode ser isolado por

ser político por natureza, logo, o bem para um tem que visar o bem para todos, a não ser assim, visará um bem imediato, não de prolongada

realidade nem para a comunidade, também não será bem maior, mas pode servir de premissa para ele.

Segundo Aristóteles, o bem viver é possível para todo o ser humano que está inserido na polis, “Ora o Estado é uma associação de

homens com capacidade para suprir à sua existência.” (ARISTÓTELES, 2002, p.39), por isso parto dessa concepção para clarear as noções

aristotélicas sobre cidadão. O homem exerce sua função de homem no papel político de cidadão. É na polis que a concretização da possibilidade

do bem viver humano pode ser praticada. A prática deste bem, não visa apenas o bem individual, considera-se que assim como toda ação visa um

bem, todo bem visa um bem maior e este é o bem coletivo. Sendo na polis que o homem se torna realmente homem por praticar sua função

fundamental que é a consonância da prática com a teoria através da razão tendo em vista a prática do bem, é evidente a finalidade da polis ser

definida pelo bem comum desvinculado da sobrevivência e conectado com o viver plenamente. “ao mesmo tempo que já tem condições para

assegurar a vida de seus membros, ela passa a existir também para lhes proporcionar uma vida melhor.” (ARISTÓTELES, 2002, p.15) Podemos

examinar melhor a composição da polis tendo em mente o modo analítico do pensamento de Aristóteles. Analiticamente partimos da finalidade

das coisas para chegar ás suas partes, sendo que a finalidade das coisas correspondem ao estagio inicial de desenvolvimento das mesmas. Logo,

partimos da família e seus componentes para construir a óikos ou aldeia e assim chegar a composição da cidade ou polis. A família se caracteriza

pelo seu caráter unicamente de sobrevivência e se integrando com outras estruturas semelhantes forma uma aldeia onde se constrói relações de

sobrevivência integradas e que serve de premissa para a construção da cidade onde além da subsistência se age conjuntamente para adicionar

bens á vida simplificada.

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2 – A RECONSTRUÇÃO DA EXPERIÊNCIA

O norte-americano John Dewey dedica-se á reconstrução da experiência como meio eficaz para concretizar a educação. Segundo ele, a

experiência e a educação não podem ser tratadas como sinônimos, assim teríamos uma compreensão equivocada dos demais conceitos

deweyanos.A experiência deve ser entendida como a ação do individuo perante o que ele conhece, ela não subentende preservação, pois é uma

relação de transformação mútua do individuo agente e do individuo ou meio participante que sofre a ação. Também podemos compará-la com a

natureza, sendo que o agir e reagir experimental é transformador e se encontra em constante mudança. Percebe-se que a experiência motiva a

educação porque necessita dela para ser bem sucedida, assim como a educação motiva a experiência porque se concretiza na sua reconstrução.

O caráter educacional da experiência se encontra especificamente em sua reconstrução, momento em que as relações se estabelecem, se

tornam perceptíveis e servem de elementos estimulantes para novas relações experimentais.Torna-se impossível o aprendizado quando apenas

refletido através de experiências já concretizadas, é necessário colocar em prática as reflexões adquiridas nas experiências do passado para

melhorar as do presente e assim visar melhorias para as futuras. “... a experiência na sua qualidade de tentativa subentende mudança [...] quando

a mudança feita pela ação se reflete em uma mudança operada em nós, esse fluxo e refluxo são repassados de significação. Aprendemos alguma

coisa.” (DEWEY, 1959, p. 152). O aprendizado ocorre quando agimos racionalmente em solução á certo problema, quando praticamos a

reorganização ou reconstrução da experiência partindo de experiências já vividas e de conhecimentos reavaliados que tornam os sentidos

mutáveis. Muda-se o sentido e a utilidade das coisas através de experimentos feitos através da interação ou relação do individuo e do meio,

concretizando a transformação através do individuo que se vê suscetível á mudança por ele mesmo intencionada. Refletindo experiências

passadas do próprio individuo, do meio o qual ele está inserido e dos outros indivíduos que dividem vivencias, através dos conhecimentos

adquiridos e reconstruídos, ocorre uma construção coletiva. Um ser age, influência a ação do outro e produz melhorias no meio e na intenção das

suas ações futuras.

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Para o filósofo educador, na escola que desenvolvidas estratégias disponíveis e cabíveis para tentar eliminar as fontes de conflito

tanto subjetivas quanto sociais. Assim, torna-se fundamental saber a finalidade da educação, para que se consiga construir um plano escolar. O

desenvolvimento destas estratégias requer uma escola conectada com o funcionamento da sociedade a qual os alunos vivem, de forma que ela

possa aprimorar a vivencia destes e não prepara-los para a vida. O aprendizado não ocorre como requisito para se viver, ele ocorre durante a vida,

é combustível para, tanto que não só o aluno aprende, mas o professor. “... o processo educativo desde que ele é praticamente um processo de

interação e ajustamento entre esses dois fatores: a criança e a experiência do adulto.” (DEWEY, 1978, p. 47)

É na escola então, que para Dewey a educação é instruída perante análise, teoria e conhecimento que serão transferidos ao projeto de

reconstrução da experiência. Sofremos experiências e relações inevitáveis que nos instigam a procurar conhecimentos capazes de modificar

nossas ações do passado a fim de melhorá-las de modo que influenciem as coisas e seres os quais interagimos. Tendo influenciado coisas e seres

através de experiências racionais bem sucedidas teremos conhecimento ampliado e aprendizado, pois estas coisas e seres modificados causaram

nossa própria mutação. “...aprender da experiência é fazer uma associação retrospectiva e prospectiva entre aquilo que fazemos às coisas e aquilo

que em conseqüência essas coisas nos fazem gozar ou sofrer.” (DEWEY, 1959,p. 153).

3 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tornam-se familiares os pensamentos, visto que, para Aristóteles a função do homem seria o exercício ativo do elemento racional no

âmbito da ação para o bem viver. A prática racional só pode ser concretizada através da ação política do homem inserido na polis. Partindo desta

concepção Aristotélica é possível visualizar uma conecção com o pensamento de Dewey, sendo que, ele constrói uma filosofia educacional

voltada á pratica não desconsiderando a teoria, ele intensifica a prática mais do que seus colegas pragmatas James e Pierce e se envolve com

política para melhoria da sua filosofia social. Para ele a mediação da teoria e da prática constrói o aprendizado perante ações racionais que visam

a melhoria coletiva, modificam agente e sofredores dentro da comunidade. “O indivíduo isolado nada é; só mediante a assimilação das aspirações

e da significação das instituições organizadas atinge ele a verdadeira personalidade” (DEWEY, 1959, p.101 e 102)

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Há, tanto em Dewey quanto em Aristóteles uma interdependência entre a esfera pública e privada se considerarmos o desenvolvimento

subjetivo do individuo como premissa para ações que resultem num aprimoramento do meio e dos indivíduos que sofrem ações racionais. No

pensamento de Aristóteles o ser humano é capaz de mediar as duas dimensões da parte racional da alma (teoria e prática) apenas se está inserido

na polis, onde é possível a interação com seres que desfrutam da mesma capacidade e que assim se desenvolvem através de conhecimentos que

sofrem resignificações ao longo da vida, guiados pelo ideal do bem viver, sendo que a sobrevivência é especifica apenas na família e na aldeia.

Mesmo que Dewey tenha afirmado que os indivíduos dificilmente tenham interesses comuns, e ainda “não há livre reciprocidade do dar e receber

entre os membros do grupo social” (1959, p.90), a necessidade Aristotélica pela busca de um bem superior comunitário não se faz menos

sustentável. Uma vez que a educação estimula os membros da sociedade a se interligarem, tendo oportunidades iguais para que o “mútuo dar e

receber” se concretize.

O filósofo norte-americano fala da reconstrução da experiência como meio eficaz para concretizar a educação, pois para tal reconstrução é

necessária uma reflexão sobre as experiências já passadas, conhecimentos já adquiridos que estimulem ações racionais em prol do

desenvolvimento do individuo e dos que o rodeiam. “... educarem, não para o existente estado de coisas, mas para tornar possível uma melhor

humanidade futura.” (DEWEY, 1959, p.102). Talvez Aristóteles tenha dito algo parecido, usando outras palavras quando fala sobre a

investigação dos primeiros princípios no livro Ética à Nicômacos. Ele explica que, em alguns casos, o fato (o experienciado), é o começo para o

entendimento das razões pelas quais ele acontece, pode deixar de acontecer ou vir a acontecer. De certa forma, é uma forma de aprendizado.

Veja-mos:

“Em alguns casos basta que o fato esteja bem estabelecido, como no caso dos primeiros princípios: o fato é o ponto de partida, ou

primeiro princípio. (...) tentar investiga-los (os primeiros princípios) em conformidade com sua natureza e esforçar-se-nos para

expressa-los com precisão, pois eles tem grande influência na seqüência da investigação.” ( ARISTÓTELES, 2001, p. 28)

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Ainda considerando a citação de Aristóteles, pensemos principalmente em quando ele cita “investiga-los em conformidade com a

natureza”. Aqui cabe colocar a idéia deweyana de que o homem age por natureza, esta reage nele mesmo modificando suas futuras ações e o

fazendo sofrer ou usufruir delas. É só depois que agimos que entendemos realmente as coisas, que entramos em contato com a natureza, porque

enxergamos como deveríamos ter agido e estamos possibilitados a desenvolver conhecimento para uma nova ação.

“... age sobre o meio ambiente de acordo com sua própria estrutura, simples ou complexa. Em conseqüência as mudanças produzidas no meio ambiente

reagem sobre o organismo e sobre suas atividades, de sorte que o ser vivente experimenta e sofre as conseqüências de seu próprio comportamento. “

(DEWEY,1959,p.104)

Além de ser considerado superior por sua natureza racional interativa, o homem também se torna grandioso para Aristóteles por possuir o

dom da fala “... tem a finalidade de indicar o conveniente e o nocivo e, portanto também o justo e o injusto;” (ARISTÓTELES, 2002, p. 15).

Logo, pode-se concluir que o homem tem a capacidade de educar e ser educado. Educar-se politicamente seria desenvolver as

habilidades políticas do homem através da linguagem para que a moral individual seja aprimorada e vise o aprimoramento da moral social. “Na

ordem natural, o Estado antepõe-se à família e a cada indivíduo, visto que o todo deve, obrigatoriamente, ser posto antes da

parte.”(ARISTÓTELES, 2002, p. 14). Tal concepção se encontra de fato com a pedagogia social de Dewey que defendia a dependência das

classes sociais, e o desenvolvimento da solidariedade criticando as instituições filantrópicas e colocando como essencial o envolvimento dos

cidadãos de forma que seja mútuo o aprendizado através de experiências compartilhadas. “Compondo-se o Estado de uma porção de indivíduos

como dissemos, é pela educação que convém traze-los á comunidade e à unidade.” (ARISTÓTELES, 2002, p.46). Nesta citação, nos deparamos

com a necessidade da educação como meio para desenvolver interesses comunitários, que por assim serem, remetem ao ideal de unidade.

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Não há preparação para a política, o homem se torna cidadão já inserido na pólis. A educação e a política são desenvolvidas durante a

vida, o homem se torna político no seu envolvimento com a comunidade assim como se educa através desse envolvimento que não cessa. Nem se

educa nem se torna político para viver, ambos são desenvolvidos durante a vida e a constituem de ações que visam melhor viver e estimulam

diferentes buscas com o mesmo propósito de melhoria que constitui o infinito dentro da finitude humana.

Não há dualismo, nem ceticismo ao falarmos em consonância de esferas (racional e prática), assim como não há ditadura em uma

democracia. Porém, analisando politicamente e vendo na democracia acontecerem algumas ditaduras mascaradas, como aquele patrão que

escraviza seu empregado sabendo que aquele é sua única fonte para a sobrevivência e não o aconteceria nada, existem algumas escolas que fixam

seus conteúdos no teórico e esquecem que educar não depende apenas disso, mas também de experiência e se encaixam em uma analise de

filosofia da educação. E aqui se torna de importância o estudo aqui feito a fim de retomar a razão prática onde teoria e experiência se aliam para

combater os dualismos, de Aristóteles à Dewey.

4. REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Ética à Nicomaco. São Paulo: Editora Martin Claret, 2001.

ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002.

DEWEY, John. Vida e Educação. São Paulo: Melhoramentos, 1978.

DEWEY, John. Democracia e Educação. Tradução de Godofredo Rangel e Anísio Teixeira. 3°ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional,

1959.

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O PARRICIDIO DE PARMÊNIDES NO DIÁLOGO “SOFISTA” DE PLATÃO - Rafael Camilo da Silva

Em suma o diálogo é uma definição do sofista, esse desiderato será posto em prática ao longo de toda a obra por duas personagens, o

Estrangeiro e Teeteto. O sofista é aquele que intitula-se possuidor de todos os saberes, podendo falar com segurança sobre medicina, arte, guerra,

política, moral, música, etc. Diz conhecer essas ciências mais profundamente que os próprios especialistas referente a cada uma. Toda essa

capacidade não é algo que passa pelo conhecimento do Estrangeiro sem estarrecê-lo. Mediante isso, o Estrangeiro questiona a Teeteto se é

possível tal capacidade a um ser mortal, e após trocarem algumas palavras, suas opiniões afluem em uma mesma direção, qual seja, da

impossibilidade de tal capacidade. Contudo, essa conclusão não anula o fato dos sofistas afirmarem possuir tal poder, o que inelutavelmente leva

o interlocutores, o Estrangeiro e Teeteto, a classificarem os sofistas como impostores, como produtores de um falso saber. Aqui surge todo o

problema: como é possível um falso saber? como é possível dizer algo que não é? Em síntese: como é possível o Não-ser? Todas essas

dificuldades são impostas pela impossibilidade de pensar, e conseqüentemente de dizer, o Não-ser. Parmênides proibira o caminho do Não-ser

alegando que este é um Não-ser de forma absoluta, por isso não podemos sequer pensá-lo. O Ser recebe o mesmo tratamento por Parmênides, ele

também é entendido de forma absoluta, ele é completamente igual a si mesmo. Para Parmênides as coisas são ou não são, não há meio termo.

Quando o Estrangeiro classifica o sofista como um produtor de imagens, lhe concede o apanágio de poder criar algo que não é nem

completamente verdadeiro, pois a imagem é imagem de alguma coisa, nem completamente falso, já que a imagem enquanto imagem é alguma

coisa.

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Mesmo diante desses empecilhos, devemos aderir à natureza do sofista a arte mimética, ou seja, a arte de imitar. O sofista é aquele que

faz imitações, ao sofista cabe o papel de não dizer as coisas em si, o real, mas sim a imagem destas. O sofista não passa de um produtor de

imagens. O Estrangeiro toma cautela em dividir a imagem em duas: cópia e simulacro. A cópia é uma imagem que respeita as proporções do

objeto copiado, o simulacro por sua vez modifica essas proporções. Ao identificar o sofista como um produtor de imagens abre-se a possibilidade

para a existência do falso, logo o sofista é produtor de falsidades. Agora é imperioso demonstrar que o “falso” de alguma forma é, porém

devemos salientar que o falso é aquilo que não é, e quando o Estrangeiro infligiu-se o desiderato de mostrar a existência do falso, ele

corajosamente confronta a assunção de Parmênides, que proibira a possibilidade do “Não-ser” ser de alguma forma.

Essa espinhosa situação compele o Estrangeiro à tomar uma fatal decisão: terá que alterar a concepção de Ser do pai Parmênides. Para

salvar a distinção entre falsidade e verdade, entre filosofia e sofística, é imprescindível imantar o Não-ser ao Ser do pai Parmênides. Assim,

quando Ser e Não-ser são unidos, é concretizado o parricídio de Parmênides, já que este teria proibido a razão de percorrer esse caminho. Mas foi

esse rompimento que possibilitou a existência da falsidade. Desta forma o Não-ser foi possibilitado a partir da compreensão de que ele é aquilo

que diz coisas diferentes, em relação ao objeto do qual se diz tais coisas. O Não-ser não é tratado como um Não-ser absoluto, essa era a visão de

Parmênides, mas sim, como uma diferença àquilo que ele é aplicado.

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A FORMA DA EXPERIÊNCIA NA PRIMEIRA DEDUÇÃO TRANSCENDENTAL DE KANT - Pedro Henrique Vieira

RESUMO

O intuito deste trabalho é acompanhar o processo de síntese descrito na primeira edição da Dedução transcendental de Kant, expondo a

maneira como, através da unidade conferida pelo entendimento ao diverso da intuição em geral numa experiência possível, é determinada a

forma desta experiência e, por consequência, de toda a realidade objetiva.

PALAVRAS-CHAVE: Kant; experiência; imaginação; apercepção transcendental; categorias.

INTRODUÇÃO

O período moderno da filosofia tem como característica marcante a de buscar no sujeito os fundamentos ou princípios do conhecimento.

Descartes, por exemplo, encontra no cogito – a certeza de si próprio enquanto coisa pensante – a pedra de toque para o conhecimento claro e

distinto de Deus e da natureza. Propondo-se a suspender o juízo acerca de tudo o que possa mostrar o menor grau de dubitabilidade, ele chega à

evidência de sua própria existência ao notar que em todo ato de pensamento há também a consciência subjetiva desse mesmo ato. Desta maneira,

eu, que penso, devo necessariamente existir e, como realizo diversos atos de pensamento numa consciência unitária, devo ser uma substância

pensante. (cf. LANDIM FILHO, 1998, p. 263s) Destes princípios Descartes tenta deduzir, seguindo o método dos geômetras, todo o seu sistema

de pensamento.

Immanuel Kant se encontra numa perspectiva semelhante; ao notar que as pretensões metafísicas de se elevar para fora do alcance da

experiência e obter conhecimento a priori de objetos constituíam um mero tatear sem caráter científico, o pensador propôs um giro copernicano

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para a filosofia: tentemos, ao menos uma vez, admitir que, ao contrário do que se pensara até então, os objetos é que devem se regular pelo nosso

conhecimento. Talvez possamos, deste modo, conhecer objetos antes dos mesmos nos serem dados, ou seja, de maneira a priori, de acordo com

as pretensões metafísicas.

Novamente, portanto, se busca no sujeito os fundamentos para o conhecimento de objetos. Porém, diferentemente de Descartes, Kant

busca estabelecer os limites e as possibilidades do conhecimento a priori em sua referência a objetos; ou seja, enquanto o primeiro encontra no

pensamento o fundamento para a clareza e distinção do meu conhecimento acerca de objetos (o que culminará, na Sexta Meditação, na

necessidade de uma crença em sua existência), o último busca nas estruturas apriorísticas do sujeito a possibilidade da própria construção de

conceitos de objetos, bem como a adequação destes conceitos a seus usos possíveis.

No projeto kantiano, toda experiência é duplamente constituída: há, de um lado, a intuição, que garante seu conteúdo – e, no caso dos

homens, é dada através da sensibilidade, – e, do outro, o conceito, através do qual a primeira é pensada, isto é, submetida a regras pela

espontaneidade do entendimento (cf. A 92).

A respeito da intuição é célebre a tese de Kant, desenvolvida na Estética transcendental de sua Crítica da razão pura, segundo a qual

tempo e espaço são formas puras da sensibilidade, sem valor algum no âmbito das coisas nelas mesmas. Tais formas possuem, portanto,

realidade empírica e idealidade transcendental: são condições sensíveis da possibilidade do aparecimento de qualquer objeto, mas não são nada

fora da experiência.

O filósofo, mais adiante, na sua Analítica transcendental, para tratar da maneira como a intuição é pensada pelo entendimento e

submetida a conceitos, estabelece como objetivo “(...) a decomposição de todo o nosso conhecimento a priori nos elementos do conhecimento

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puro do entendimento” (A 64)280. Para tanto é preciso, segundo ele próprio, demonstrar que há conceitos puros elementares (categorias) que, em

sua totalidade sistemática, devem compor todo o campo do entendimento puro. (cf. A 64) No primeiro livro da Analítica, Kant, então, segue

(...) os conceitos puros até aos seus primeiros germes e disposições no entendimento humano, onde se encontram preparados, até que, finalmente, por

ocasião da experiência, se desenvolvam e, libertos pelo mesmo entendimento das condições empíricas que lhe são inerentes, sejam apresentados em toda a

sua pureza (A 66).

Os conceitos, segundo Kant, são assentados em funções, que são a unidade do ato da espontaneidade do pensamento ao ordenar um

diverso de representações sob uma representação comum, tanto numa intuição, quanto num juízo (cf. A 68, 79); o conceito de corpo, por

exemplo, é a unidade de representações diversas como extensão, impenetrabilidade, etc., e o juízo “todo corpo é extenso” reúne, por via analítica,

as representações de corpo e extensão. A função dos conceitos e dos juízos é, portanto, relacionar representações por meio da unificação daquilo

que nelas é comum.

Kant, com isto, parte buscando na tábua dos juízos, fornecida pela lógica tradicional, as funções lógicas do entendimento, pois, segundo

ele, a cada uma delas corresponde uma categoria. Deve-se cobrir, assim, todo o campo do entendimento puro que, em sua totalidade sistemática,

confere unidade a representações diversas. Tal unidade é possibilitada por um processo de síntese, pelo qual é pensado o diverso da intuição

através dos conceitos puros (cf. A 77). É produzido, assim, conhecimento objetivo ou experiência, a partir da qual o entendimento pode formular

juízos281.

280 Como o usual nos trabalhos a respeito da Crítica da razão pura, usarei nas referências somente a indicação da edição da obra (A, referindo-se à primeira

edição; B, referindo-se à segunda) e a numeração padrão do texto. 281 O entendimento, na posse de suas categorias, não pode fazer nenhum outro uso destas senão o de, por seu intermédio, formular juízos. Entende-se aqui por

juízo “(...) o conhecimento mediato de um objecto, portanto a representação de uma representação desse objecto.” (A 68) Segundo Kant, o entendimento pode ser representado como uma faculdade de julgar, já que podemos reduzir a juízos todas as suas ações (cf. A 69.)

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Kant, após isto, em sua famosa Dedução transcendental, tenta demonstrar de que modo os conceitos puros do entendimento devem se

referir necessariamente e a priori a todo diverso da intuição, como condição para que o mesmo diverso possa ser pensado no conceito de um

objeto.

Para que possamos compreender as estruturas apriorísticas que, como regras, possibilitam que a experiência seja constituída,

acompanharemos aqui a síntese descrita na primeira edição da Dedução transcendental, expondo a maneira como, através da unidade conferida

pelo entendimento ao diverso da intuição em geral numa experiência possível282, é determinada a forma desta experiência e, por consequência, de

toda a realidade objetiva.

AS TRÊS ETAPAS DA SÍNTESE DO ENTENDIMENTO

Segundo o filósofo, a espontaneidade do entendimento opera uma tripla síntese que constitui o conhecimento. Cada etapa desta síntese é

realizada por uma faculdade da alma – a saber, sentidos, imaginação e apercepção283. (cf. A 97) Primeiramente ele se propõe a apresentar cada

etapa isoladamente para, após isto, mostrar a maneira como elas se relacionam para a produção da experiência, entendida aqui como “(...) um

encadeamento de todas as representações segundo leis. (…) A unidade completa e sintética das percepções exprime, com efeito, precisamente a

forma da experiência e não é outra coisa que a unidade sintética dos fenômenos segundo conceitos.” (A 108-110).

Conforme afirmado na Estética transcendental, todas as nossas representações estão submetidas ao tempo – a forma do sentido interno. O

diverso da intuição, portanto, deve ser compreendido num todo, para que possa ser representado de forma distinta enquanto pertencente a um

momento na série sucessiva das representações. A primeira etapa da síntese consiste justamente nesta capacidade da síntese transcendental da

282 A noção de experiência possível deve ser entendida aqui como as condições a priori que possibilitam, independentemente de qualquer conteúdo empírico, a

experiência em geral e os objetos desta experiência. A intuição em geral ordenada pela síntese do entendimento compõe, portanto, o campo de objetos desta experiência possível. (cf. A 95)

283 Esta tese pode ser encarada como controversa no contexto da Dedução e é possível matéria para pesquisas posteriores.

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imaginação produtiva de percorrer os elementos diversos de uma representação sensível sob as formas puras da intuição, compreendendo-os num

todo e reduzindo-os a uma imagem; a tal operação Kant dá o nome de síntese da apreensão na intuição. (cf. A 98-99)

A segunda etapa é a síntese da reprodução na imaginação. Segundo Kant, há leis empíricas que permitem a reprodução ordenada dos

fenômenos. Deste modo, eu posso, por exemplo, a partir de determinada causa, reproduzir em meu pensamento seu efeito usual.

Para tanto, é necessário, porém, que “(...) os próprios fenômenos estejam submetidos a uma tal regra e que no diverso das suas

representações tenha lugar acompanhamento ou sucessão, segundo certas regras (...)” (A 100.) Do contrário, minha imaginação não poderia unir

os fenômenos de tal maneira que, quando uma determinada causa empírica me é dada ao pensamento, eu possa também representar seu efeito

habitual. É preciso, deste modo, que haja um fundamento a priori que possibilite esta reprodução ordenada dos fenômenos na experiência, para

que nossa imaginação possa estabelecer leis empíricas.

Nisto consiste esta segunda etapa da síntese, a cargo da capacidade da faculdade transcendental da imaginação, que reproduz as

representações previamente dadas. Para, por exemplo, chegar a uma lei empírica de que, a partir de determinada causa, segue-se determinado

efeito, a imaginação deve seguidamente reproduzir o fato em meu pensamento, do mesmo modo como, numa dedução matemática ou numa

enumeração, deve reproduzir os passos anteriores para operar os posteriores. (cf. A 100-102)

No entanto, Kant afirma:

Sem a consciência de que aquilo que nós pensamos é precisamente o mesmo que pensávamos no instante anterior, seria vã toda a reprodução na série das

representações. Pois haveria no estado atual uma nova representação, que não pertenceria ao ato pelo qual devia ser, pouco a pouco, produzida, e o diverso

dessa representação não formaria nunca um todo, porque lhe faltava a unidade, que só a consciência pode alcançar (A 103).

Um amontoado de intuições sucessivas não constituiria ainda uma experiência. Para tanto, é necessário que haja uma consciência una que

submeta o diverso a uma só representação. Nisto consiste a última etapa, denominada síntese da recognição no conceito, que submete o diverso a

conceitos segundo a unidade necessária da autoconsciência (apercepção transcendental).

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Para compreendermos esta terceira etapa temos que ter em vista que o nosso conhecimento de um objeto tem por conteúdo somente o

dado da Sensibilidade (faculdade que apenas recebe o diverso sob suas formas puras), como uma modificação do espírito causada por um objeto;

o próprio objeto em si mesmo não é nada para nós além daquilo a que nosso conhecimento se refere. Porém, todo conceito de um objeto contém

também uma unidade com a qual o diverso necessariamente concorda. O conceito de metal, por exemplo, encerra em si, numa unidade, um

diverso de representações dadas à Sensibilidade. Desta forma, devem ser as determinações do pensamento que submetem o diverso a regras e,

assim, a unidade do seu conceito não pode ser outra coisa que não a “(...) unidade formal da consciência na síntese do diverso das

representações” (A 105).

Já que, no entanto, todo conhecimento exige um conceito para que seja possível a reprodução do diverso da intuição, deve haver algo que

torne necessária a priori a síntese de todo o diverso. O princípio transcendental da unidade da consciência na síntese do diverso de todas as

nossas intuições é a apercepção transcendental, o eu penso kantiano, que se serve de fundamento a priori à unidade de todos os conceitos:

Ora não pode haver em nós conhecimentos, nenhuma ligação e unidade desses conhecimentos entre si, sem aquela unidade de consciência, que precede

todos os dados das intuições e em relação à qual é somente possível toda a representação de objectos (A 107).

É, portanto, somente mediante esta unidade da consciência que os fenômenos podem ser todos reproduzidos como ligados entre si,

possibilitando a consciência dos estados do sujeito em seu sentido interno ou apercepção empírica:

A consciência originária e necessária da identidade de si mesmo é, portanto, ao mesmo tempo, uma consciência de uma unidade, igualmente necessária, da

síntese de todos os fenómenos segundos conceitos, isto é, segundo regras, que não só os tornam necessariamente reprodutíveis, mas determinam assim,

também, um objeto à sua intuição, isto é, o conceito de qualquer coisa onde se encadeiam necessariamente (A 108).

Isto porque o espírito não poderia reconhecer sua própria unidade diante de suas representações se não tivesse também consciência de sua

espontaneidade ao ligar o diverso da intuição submetendo-o a categorias, isto é, a regras. Em outras palavras, eu só percebo todas as

representações como minhas pelo fato de ter consciência de que as ligo numa única apercepção: acompanho cada uma projetando sobre elas a

representação “eu penso” e, assim, constituo-as como ligadas por um princípio de unidade transcendental.

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É desta autoconsciência pura, unitária e imutável, que deriva a unidade de todos os objetos e, por conseguinte, de toda a experiência

possível. “A unidade objetiva de toda a consciência (empírica) numa consciência (a de apercepção transcendental) é, portanto, a condição

necessária mesmo de toda a percepção possível (...)” (A 123) Isto porque eu não poderia receber no entendimento nenhuma percepção sem que a

mesma estivesse sob a unidade da minha autoconsciência na sua síntese.

O entendimento, segundo Kant, necessariamente submete a uma unidade conceitual todas as percepções dadas pela Sensibilidade. Deste

modo, as próprias categorias são condições do pensamento numa experiência possível; sua validade objetiva é, portanto, demonstrada, já que

somente mediante elas podemos conhecer objetos. Sua possibilidade repousa, porém, na submissão necessária de todo dado da Sensibilidade à

apercepção originária, na qual todo o diverso tem de estar conforme às condições da síntese segundo conceitos.

Deste modo, todo o diverso da intuição deve estar submetido à apercepção transcendental, como condição de possibilidade para que possa

se tornar um conhecimento mediante as categorias; do contrário, seria uma intuição cega sem encadeamento numa experiência: “todos os

fenómenos estão, pois, universalmente ligados, segundo leis necessárias e, por conseguinte, numa afinidade transcendental (...)” (A 114)

A FORMA DA EXPERIÊNCIA

Passemos agora, então, à exposição encadeada do que foi afirmado anteriormente. Segundo o autor, “Se quisermos agora seguir o

princípio interno desta ligação das representações até àquele ponto em que devem todas convergir, para aí receberem, antes de mais nada, a

unidade do conhecimento indispensável a uma experiência possível, teremos de começar pela apercepção pura.” (A 116)

Toda e qualquer intuição só pode ser “minha” caso seja recebida numa autoconsciência – a apercepção originária ou transcendental, – que,

conforme o que foi afirmado anteriormente, é o princípio de toda unidade sintética num sujeito.

A unidade da apercepção reporta-se, porém, à síntese pura da capacidade transcendental da imaginação, onde o diverso da intuição é

compreendido num todo, como condição para a composição da matéria de todo o conhecimento. Assim, “(...) a unidade transcendental da síntese

da imaginação é a forma pura de todo o conhecimento possível” (A 118.) Neste momento, o filósofo caracteriza o entendimento puro como a

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unidade da apercepção relativamente à síntese transcendental da imaginação; logo, deve haver no entendimento puro conhecimentos a priori

que possibilitam, mediante a autoconsciência transcendental, a unidade da síntese pura da imaginação.

Tais conhecimentos são as categorias:

Por conseguinte, a faculdade empírica de conhecer, que o homem possui, contém necessariamente um entendimento, que se reporta a todos os objectos dos

sentidos, embora apenas mediante a intuição e a síntese que nela opera a imaginação; a esta intuição e à sua síntese estão sujeitos todos os fenômenos, como

dados de uma experiência possível. Como esta relação dos fenómenos a uma experiência possível é igualmente necessária (pois sem essa relação nunca nos

era dado conhecimento algum por meio dos fenômenos e, por conseguinte, não seriam absolutamente nada para nós), segue-se que o entendimento puro é,

por intermédio das categorias, um princípio formal e sintético de todas as experiências e os fenômenos têm uma relação necessária ao entendimento (A119).

A possibilidade da reprodução ordenada dos fenômenos repousa, portanto, na unidade que a imaginação transcendental, por intermédio

das categorias e em referência à apercepção originária, confere à intuição. Obtemos, deste modo, a experiência: o todo do diverso das intuições

ligado e submetido a regras numa única autoconsciência.

O papel atribuído por Kant à capacidade transcendental de imaginação na constituição do conhecimento é inovador: é ela que liga os

extremos da Sensibilidade e do Entendimento, garantindo a submissão da intuição a conceitos e a constituição da experiência real ou natureza284.

“Somos nós próprios que introduzimos, portanto, a ordem e a regularidade dos fenómenos” (A 125.) Os próprios objetos, nas palavras de Kant,

(...) na verdade, como fenômenos, constituem um objeto que está simplesmente em nós, pois uma simples modificação da sensibilidade não se encontra fora

de nós. Ora, esta representação mesma exprime que todos estes fenômenos, portanto todos os objetos com os quais nos podemos ocupar, estão todos em

mim, isto é, são determinações do meu eu idêntico; esta representação exprime, como necessária, uma unidade completa dessas determinações numa só e

mesma apercepção. (...) Nosso conhecimento não trata com outra coisa que não sejam fenômenos, cuja possibilidade reside em nós próprios, cuja ligação e

284 A este respeito, afirma Heidegger: “(...) a contribuição positiva da Crítica da Razão Pura, de Kant … reside no impulso que deu à elaboração do que

pertence propriamente à natureza e não em uma 'teoria do conhecimento'. A lógica transcendental é uma lógica do objeto a priori, a natureza, enquanto setor ontológico.” (HEIDEGGER, 2002, § 3, p. 37)

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unidade (na representação de um objeto) se encontram simplesmente em nós, por conseguinte, devem preceder toda a experiência e, antes de tudo, torná-la

possível quanto à forma (A 129-130).

CONCLUSÃO

O filósofo, por fim, afirma que todas as caracterizações dadas anteriormente por ele mesmo ao Entendimento são reduzidas a uma só:

faculdade das regras. São, deste modo, as estruturas subjetivas, que, como regras, que possibilitam o conhecimento objetivo da natureza e

mesmo a própria noção de natureza, nas suas relações de necessidade e universalidade entre os fenômenos. Em outras palavras, um objeto só é

possível mediante um sujeito que o pense (ao menos no que diz respeito às estruturas do conhecimento humano). O entendimento humano é,

portanto, a instância normativa da natureza, o que significa que todas as leis empíricas são subordinadas às suas leis puras. Assim,

compreendendo as relações entre intuição pura, imaginação transcendental, categorias e apercepção originária, temos a estrutura do entendimento

ou razão teórica, que possibilita que, mediante o diverso dos fenômenos dados à intuição, a experiência seja constituída.

BIBLIOGRAFIA

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HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo – Parte I. 11a edição. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.

HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. Tradução de Christian Viktor Hamm e Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

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LANDIM FILHO, R. F. Do "Eu penso" cartesiano ao "Eu penso" kantiano. Studia Kantiana, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 263-289, 1998.

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O JOGO DE FORÇAS ENTRE PRINCÍPIO DE REALIDADE E PRI NCÍPIO DE PRAZER NA CIVILIZAÇÃO PARA HERBERT MARCUSE - Cleberson Odair Leonhardt

Parece que quanto mais avançado o estágio de desenvolvimento de uma civilização, maior é a estrutura de dominação nela presente. Fato

este percebido por vários filósofos como Nietzsche e mesmo Freud, que chama a isso de mal necessário. Esta dominação tanto pode ser percebida

na esfera política e social, com estados dominando outros estados ou homens dominando outros homens, como na esfera da cultura, na qual

grandes impérios sempre souberam utilizá-la como uma das formas mais eficientes de dominação, bem como em várias outras esferas do

processo civilizatório. nesta pesquisa pretende-se investigar o próprio cerne dessa dominação no processo civilizatório, de acordo com o

pensamento de Marcuse, que está interligado com todas as esferas, que por hora chamaremos de forças, que são forças antagônicas disputando

entre si o domínio hierárquico.

No jovem Nietzsche estas forças antagônicas são identificadas como dois impulsos primordiais – apolíneo e dionísiaco. O Nietzsche da

maturidade, designa o mundo como um conjunto de forças que buscam dominar. Já Freud designa como um jogo de forças entre dois princípios:

princípio de realidade e princípio de prazer, que é também a identificação que Marcuse faz dessa busca por domínio.

A hipótese de partida deste trabalho é estabelecer e demonstrar estas relações de poder e de como o princípio de realidade sobrepujou o

princípio de prazer na vida do ser humano. Para uma melhor compreensão desta questão precisa-se ter em mente, bem como analisar toda a teoria

de Marcuse que demonstra esse domínio. Domínio este, que ele considera exagerado, quando introduz os conceitos de mais-repressão e princípio

de desempenho como aperfeiçoamentos de domínio do princípio de realidade.

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Segundo Freud apud Marcuse (1972, p. 33) “a história do homem é a história de sua repressão (...) essa coação é a própria pré-condição

do progresso. Se tivessem liberdade de perseguir seus objetivos naturais, os instintos básicos do homem seriam incompatíveis com toda

associação e preservação duradoura (...)”. Marcuse, no entanto, vê nos instintos básicos algo mais do que simples inimigos da civilização, para

ele estes podem ser portadores de um potencial questionador e transformador. Em busca destas pistas de reconciliação da civilização com nossos

instintos é que levantamos esta discussão.

Marcuse explica que para Freud essa mudança é descrita como transformação do Princípio de Prazer em Princípio de Realidade. Nos mais

remotos processos primários, os homens lutavam apenas por obter prazer, mas essa busca de prazer irrestrito entrou em conflito com o meio

natural e humano. E eles compreenderam de forma traumática que uma gratificação plena e indolor de suas necessidades era impossível. Então

surge um novo princípio de funcionamento mental: o princípio de realidade, que supera o princípio de prazer. O homem aprende então a

renunciar ao prazer, a satisfação imediata incerta e destrutiva substituindo-a por uma satisfação e um prazer adiado, restringido, mas garantido.

Portanto, para Freud o princípio de realidade, mais modifica do que nega o princípio de prazer. (MARCUSE, 1972, p. 35).

Porém, logo de início, surge a incógnita que pergunta como essa mudança se mantém dentro da sociedade. Essa suposição só seria viável

se houvesse uma contínua repetição desse evento. A primeira hipótese que responda a essa indagação de que se há uma repetição contínua do

evento traumático da substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade, inclusive no sistema repressivo da sociedade capitalista, é o

próprio Freud que levanta. Para Freud, segundo citação de Marcuse, esse acontecimento traumático no desenvolvimento do homem se repete ao

longo da história da espécie, bem como de cada indivíduo humano.

Filogeneticamente ocorre primeiro na horda primordial, quando o pai primordial monopoliza o poder e o prazer, e impõe a renuncia por parte dos filhos.

Ontogeneticamente ocorre durante o período inicial da infância, e a submissão ao princípio de realidade é imposta pelos pais e outros educadores. Mas tanto,

no nível genérico como no individual, a submissão é continuamente reproduzida (MARCUSE, 1972, p. 36).

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Portanto, comenta Marcuse (1972, p.36) o fato do princípio de realidade ter de ser constantemente renovado na história do

desenvolvimento humano indica que o triunfo sobre o princípio de prazer jamais é completo e seguro.

A civilização, na concepção de Freud, jamais suprime o estado natural, ou seja, o princípio de prazer existe dentro da própria civilização,

retido no inconsciente. E daí de seu refugio afeta, de muitas maneiras, a mesma realidade que o superou. É o “retorno do reprimido”. A repressão,

como fenômeno histórico, é externa e ao mesmo tempo interna, pois, o indivíduo introjeta senhores e ordens em seu aparelho mental. Essa

introjeção interna por parte do indivíduo resulta em uma luta dinâmica contra a liberdade, uma auto-repressão, que Freud desvela como a

dinâmica da civilização. Estas concepções terão, no entanto, um outro viés para Marcuse. Apoiado nas idéias de Fromm e dos revisionistas,

Marcuse dirá que a civilização não é só isso. Esta repressão torna-se, também, uma luta pela sobrevivência. E transferindo para a abrangência

macro da sociedade, torna-se econômica, pois desvia as energias da atividade sexual para o trabalho, tornando o mesmo algo não prazeroso.

Esta ideia de que as energias sexuais têm de ser desviadas para o trabalho, ou seja, que o princípio de prazer não se combina com o de

realidade, acompanha a civilização. E, de certa forma, Freud corrobora ao considerar ‘eterna’ a ‘luta primordial pela existência’. Em vista disso,

uma civilização não-repressiva seria impossível. Contudo, Marcuse, vê nessa mesma teoria freudiana elementos que a transgridem, desfazendo, e

até mesmo, invertendo essa tradição. Isso, vemos claramente quando Freud demonstra o conteúdo repressivo presente nos valores e nas

realizações da cultura. Ao fazer isso, ele está negando o próprio fundamento ideológico da cultura, de que a razão seria a grande construtora da

cultura.

Voltemos, pois, o olhar para a teoria freudiana propriamente dita. Nos vários estágios da mesma, o aparelho mental aparece como uma

união de opostos: do consciente e do inconsciente, dos processos primários e dos processos secundários, das forças herdadas e das forças

adquiridas, da realidade psicossomática e da externa.(MARCUSE, 1972, p. 41). Esse dualismo persiste até mesmo na topologia: id, ego e

superego. Onde os elementos intermediários tendem para os dois pólos. E, chega ao ponto máximo com o Princípio de Prazer e o Princípio de

Realidade, princípios básicos que governam o Aparelho Mental. (MARCUSE, p.42). O id é a camada fundamental, maior e mais antiga, não é

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consciente, nem social, não é afetada pelo tempo, ignora valores, não busca autopreservação. Somente busca satisfazer necessidades instintivas

de acordo com o princípio de prazer. Já o ego desenvolve-se a partir do id, para preservar a existência, ele observa e testa a realidade,

representando o mundo externo para o id. Protegendo-o, desse modo, pois, o id na sua luta cega para satisfazer seus instintos [o organismo] seria

facilmente aniquilado.

Desse modo, a missão do ego é controlar os impulsos instintivos do id, reprimindo ou reconciliando-os com a realidade. Dessa maneira, o

ego destrona o princípio de prazer e substitui-o pelo princípio de realidade. No desenvolvimento do ego surge o superego. Que tem suas origens

na dependência da criança dos pais e depois de outras entidades sociais. Estas dependências tornam-se restrições externas, introjetadas no ego,

gerando a consciência e daí o sentimento de culpa, necessitando de punição e repressões. “Contudo, as repressões cedo se tornam

inconscientes[grifo meu], como se fôssem(sic) automáticas e uma ‘grande parte` do sentimento de culpa mantêm-se inconsciente” (MARCUSE,

1972, p. 49). Talvez essa expressão de Freud: “as repressões tornaram-se inconscientes” não seja feliz, pois, não se trata do mesmo inconsciente

do id, que ele mesmo expôs como só preocupado em satisfazer as necessidades instintivas. Talvez, essas repressões seriam muito mais

automáticas e ligadas ao hábito do que inconscientes. Do contrário, se criaria mais uma camada mental entre o ego e o superego. Mas, enfim, é

dessa introjeção das repressões que os indivíduos punem-se por feitos que já foram anulados ou que são incompatíveis com o mundo civilizado.

Para Freud com o progresso da civilização os indivíduos aceitam a necessidade da não-liberdade, submetendo-se ao princípio de

realidade. No entanto, esse conceito freudiano, de princípio de realidade, foi criticado por Marcuse, principalmente por converter as

contingências históricas em necessidades biológicas. Ou seja, ao considerar (ao menos ao não ter diferenciado) essa aceitação da não-liberdade,

da repressão, como um fato biológico, inerente a corporalidade humana e não como um fato historicamente construído. Ou ainda, pela

generalização de uma específica forma histórica da realidade para a realidade pura e simplesmente. Isso toma outro viés na investigação de

Marcuse. Tomando a transformação repressiva dos instintos como realidade e fato biológico ficamos inertes. Enquanto como forma específica e

histórica da realidade, está passível de mudança a qualquer tempo.

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É por esse motivo, que Marcuse irá reformular esses conceitos freudianos. Até porque, Freud ao justificar o conflito irreconciliável entre o

princípio de prazer e o princípio de realidade, expressou o fato histórico de que a civilização progrediu como dominação organizada. E para tal

apresentou esses processos históricos como processos naturais (biológicos). Essa extrapolação, segundo Marcuse, requer uma duplicação de

conceitos: o conceito de Mais-repressão e o de Princípio de Desempenho. Conforme citação de Marcuse (1972, p. 51):

[...] os têrmos(sic) freudianos, que não diferenciam adequadamente entre as vicissitudes biológicas e as histórico-sociais dos instintos, devem ser

emparelhados com os têrmos(sic) correspondentes que assinalam o componente histórico-social específico. Apresentaremos agora dois dêsses(sic)

têrmos(sic): Mais-Repressão[grifo do autor]: as restrições requeridas pela dominação social. Distingue-se da repressão[grifo do autor](básica): as

‘modificações’ dos instintos necessários à perpetuação da raça humana em civilização. Princípio de Desempenho [grifo do autor]: a forma histórica

predominante do princípio de realidade[grifo do autor]”.

O fato subentendido no princípio de realidade é que o mundo é muito pobre para satisfazer as necessidades instintivas dos indivíduos sem

impor restrições, então se necessita de trabalho, que nesta perspectiva é concebido sempre como sacrifício, como labor. No entanto, Marcuse

considera esse argumento freudiano falacioso, pois, este é um fato de uma organização específica de carência. Do mesmo modo, como na já

citada específica forma de realidade. O que ocorre na realidade é que a distribuição da escassez e do trabalho foram impostos aos indivíduos, por

meio da dominação racional.

Além disso, há vários modos de dominação. Numa determinada sociedade onde todos trabalham há um modo de dominação diferente da

sociedade onde apenas um determinado grupo exerce as atividades laboriosas. Bem como, a repressão será de diferente grau e teor de acordo com

o modo de produção, o tipo de economia e até mesmo os estágios em que a civilização se encontra. No entanto, segundo Marcuse, é importante

notar que embora o grau de controle repressivo dos instintos seja diferenciado:

[...]as instituições históricas específicas do princípio de realidade e os interêsses(sic) específicos de dominação introduzem contrôles(sic) adicionais [grifo

do autor] acima e além dos indispensáveis à associação civilizada humana. Êsses(sic) contrôles(sic) adicionais, gerados pelas instituições específicas de

dominação, receberam de nós o nome de mais-repressão [grifo do autor] (MARCUSE, 1972, p. 52-53).

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Como exemplos de mais-repressão, Marcuse (1972, p. 53) cita as modificações e deflexões de energia instintiva para perpetuar a família

patriarcal-monogâmica, a divisão em hierarquias no trabalho e o controle público da existência privada do indivíduo. Estes são exemplos de

mais-repressão ligadas à instituições de determinado princípio de realidade, ou seja, formas de repressão não mais necessárias para a existência e

o avanço da civilização, servem apenas para justificar determinadas formas de dominação de uns sobre os outros, são mais-repressão. Desta

forma nem tudo que aparece de forma repressiva na civilização se torna algo necessário uma vez que este princípio de realidade específico na

verdade contêm fundamentos sociais e históricos e não pode, portanto ser justificado apenas ao nível biológico, ou seja, ele não pode ser

naturalizado.

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CIÊNCIA E METAFÍSICA: A TEORIA DO CONHECIMENTO DE B ERGSON - Luiz Ricardo Rech

Frequentemente Bergson é aclamado como filósofo da duração, intuicionista, espiritualista, ou até mesmo evolucionista com tendências

vitalistas. Tudo isso pode até estar correto, mas diz respeito, particularmente, a um esforço de investigar segundo uma concepção própria de

metafísica, um dos problemas mais instigantes do século XIX na ciência, principalmente em sua segunda metade: o fenômeno da vida.

Obviamente, Bergson não se ocupou unicamente das questões ligadas à evolução das espécies em suas obras. Há, no entanto, que se considerar

que é nessa discussão em específico que o filósofo trata do elã vital e é tratando desse conceito que Bergson identifica a gênese do seu conceito

de intuição, razão pela qual julgamos que a abordagem sobre a vida seja de caráter extremamente importante para entender sua filosofia285.

Diretamente ligada à argumentação sobre a evolução das espécies, também está uma concepção de teoria do conhecimento que vai além dos

limites impostos pelo método científico.

A discussão sobre o funcionamento e a evolução da vida chama a atenção dos pensadores daquela época, principalmente após a

revolucionária proposta de Charles Darwin (1809 - 1882) que lança em 1859 A evolução das espécies e que passa a defender uma proposta de

evolução da vida por mecanismos que prescindem do papel de um Deus criador para sua existência. O impulso dado por Darwin a essa questão é

crucial para o acirramento de duas posições contrárias: aqueles que defendem uma visão mecanicista da vida e aqueles que são partidários de

uma visão não determinista do problema. Obviamente, Bergson é representante direto da segunda vertente. Atribuir a Bergson, no entanto,

rótulos tais como vitalista, espiritualista ou outros, é propor uma abordagem reducionista e improdutiva do seu pensamento. Esses rótulos

285 Não trataremos aqui, no entanto, da discussão relacionada ao debate sobre a biologia nem à postura bergsoniana sobre essas questões.

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deixam em segundo plano discussões importantes como as feitas por Bergson em relação à consciência, ao conhecimento, estética, ética e até

mesmo o papel da ciência e da metafísica em um período no qual o pensamento científico se impõe de maneira muito intensa.

No Ensaio, Bergson já se coloca contra a postura kantiana de considerar o conhecimento como relativo e condicionado por formas puras a

priori. Espaço e tempo, assim considerados, são para Bergson, apenas uma idealidade intelectual. Servem para a matemática e para a aplicação

no mundo físico. Atuam muitíssimo bem no campo das ciências, mas se restringem pela sua própria formalidade. A crítica levantada por Bergson

nesse sentido diz respeito, portanto, a uma visão restritiva do conhecimento. Conhecimento para o filósofo, assim, vai muito além do conteúdo

intelectual e formal da realidade. É contra um paradigma que afirma a impossibilidade do conhecimento do que é indeterminado – liberdade, as

diversas expressões do sentimento estético, a subjetividade e por fim, da própria vida – que Bergson se coloca. Essa parcela da realidade é

encarada pelo filósofo como algo de natureza espiritual.

Para dar conta dessa outra dimensão do conhecimento é que Bergson constrói, desde o Ensaio, um conceito pelo qual é frequentemente

lembrado, o de intuição286. Quando Bergson fala do intelecto, por sua vez, há uma nítida associação com a parcela material da realidade. Vale

frisar que, para o filósofo, essa é apenas uma das manifestações da realidade. Sendo o campo de atuação do intelecto a manipulação da matéria, a

manutenção da vida e seus efeitos práticos, há a necessidade de considerar uma outra faculdade destinada à compreensão da outra parcela da

realidade para que se alcance uma teoria do conhecimento mais completa e profunda.

É a partir disso que, segundo Bergson, abrem-se as portas para uma compreensão mais profunda da realidade. Sob esse aspecto é que

também podemos afirmar que, para compreendê-la, Bergson está propondo uma nova teoria do conhecimento, de caráter ontológico287: “O

espetáculo da evolução da vida sugere-nos uma certa concepção do conhecimento e também uma certa metafísica que se implicam

286 Ainda que Bergson trate da intuição desde os seus primeiros trabalhos, é somente em A evolução criadora que o filósofo trata da gênese dessa faculdade do

conhecimento. A intuição, nesse sentido, é uma das três tendências contidas no elã vital, ao lado do intelecto e do torpor vegetativo. 287 Afirmamos o caráter ontológico da proposta bergsoniana pois o filósofo transpõe o limite imposto no Ensaio que era o da psicologia para uma interpretação

que se estende ao próprio cosmos, sem rupturas.

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reciprocamente.” (EC, p. 201). De acordo com Bergson, a evolução das espécies – o desenrolar do movimento da vida – é sob essa medida, um

exemplo extremamente nítido da constituição da própria realidade como um todo. Tendo em vista que a metafísica bergsoniana exige, antes de

mais nada, uma experiência direta do real, torna-se claro que a concepção de conhecimento defendida pelo filósofo é fundamental para a

compreensão do surgimento e da evolução do fenômeno da vida. Seja como for, compreensão metafísica ou científica da realidade, ambas

deverão ser expressas pela linguagem. Isso é o que torna a linguagem um tema tão importante a Bergson288.

Ao analisar as características da matéria, do intelecto e das regularidades do mundo físico, expressas em leis universais, Bergson afirma

que a linguagem tem um caráter objetivo óbvio e que a sua tendência natural é a da espacialização, enquanto um ideal objetivo, por meio da

aplicação de conceitos. A linguagem, sendo de caráter fortemente intelectual, estabelece uma relação estreita com o mundo físico, conceitual e,

portanto, com uma interpretação científica da realidade. A metafísica, por sua vez, tem por objeto de estudo algo que escapa aos quadros

conceituais, à mensuração, repetição e à regularidade observada na matéria. Porém, essa rigidez conceitual não é definitiva. Há na linguagem

uma certa abertura, uma flexibilidade que lhe concede um caráter plástico e lhe possibilita a mobilidade dos signos, ainda que sua tendência

natural seja em sentido oposto.

A situação difícil que surge, então, é justamente o da expressão de cunho metafísico, o discurso filosófico propriamente dito. Se a

linguagem apresenta certa flexibilidade, como utilizar essa propriedade para dar conta do conteúdo que mais interessa à filosofia? Cabe ressaltar

aqui que a preocupação de Bergson é, pois, com o que ele denomina espírito e suas manifestações. A dimensão espiritual é o cerne da filosofia:

subjetividade, liberdade, sentimento estético, psicologia e assim por diante. O fenômeno da vida, estética e problemas do campo da psicologia

são de caráter filosófico para Bergson justamente por estarem muito mais ligados a uma aproximação subjetiva do que objetiva, espiritual do que

material, indeterminada em vez de determinada. É por esse motivo que o filósofo lança mão do seu conceito de intuição. Oposta ao intelecto, a

intuição não visa à suplantação daquele, mas sim à sua complementação.

288 Cf. LEOPOLDO E SILVA, Franklin. Bergson:intuição e discurso filosófico. São Paulo: Loyola, 1994.

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A dimensão espiritual da realidade, tão importante na filosofia de Bergson, é pura mobilidade. Essa mobilidade, no entanto, sem um

registro, sem memória, sem a permanência de um passado que se prolonga e que dura em um presente que é pura tensão entre o que fica e o que

está por vir, é simplesmente uma cronologia. A duração, assim, não é mais que justamente esse movimento. O tempo em sua característica mais

profunda passa a ser muito mais uma propriedade do mundo do que uma forma a priori que condiciona a percepção dos fenômenos. Portanto, há

uma dimensão espiritual da realidade. Essa dimensão é pura mobilidade qualitativa e não mais quantitativa. A percepção dessa mobilidade não

pode se dar pelo intelecto, mas sim pela intuição que tem como disposição natural uma aderência às mudanças qualitativas daquilo que observa.

O problema da expressão surge justamente na tendência natural da linguagem, como recurso intelectual, de fixar conceitos.

A preocupação com a linguagem não diz respeito, portanto, a uma depuração da linguagem em sentido formal. Tampouco está propondo

Bergson uma completa arbitrariedade no uso dos signos linguísticos. A flexibilização da linguagem, proposta por Bergson, visa à compreensão do

mundo pelo uso de recursos linguísticos que transmitam a fluidez do movimento inerente às manifestações da consciência. Não causa surpresa,

portanto, que se utilizem tantos conceitos expressos pelo uso abundante de metáforas em suas obras. A sugestão de imagens cumpre um dos

passos do seu próprio método intuitivo. Muitas são as referências a expressões artísticas, por exemplo. Literatura, música, pintura, dança, são

frequentemente abordadas e servem de exemplo de uma dimensão humana importante, criativa e indeterminada. As raízes dessa indeterminação

se ligam, como se disse no princípio, à manifestação da própria vida, problema que não aprofundaremos aqui. Todas essas manifestações aludidas

pelo filósofo vão além de seu caráter artístico, nesse caso. Transmitem uma forma de conhecer e comunicar aquilo que sentem. A harmonia da

música ou da dança é mais do que o arranjo formal dos seus elementos, para Bergson.

Bergson estaria, então, propondo uma linguagem para a filosofia que assuma um caráter literário, musical, artístico enfim? Certamente

não. O que pretende ao fazer referências à manifestação artística é tomar emprestado sua fluidez na tentativa de ampliar a capacidade de

expressão do discurso filosófico em busca de uma melhor compreensão do mundo. Essa proposta encerra em si uma preocupação com uma crise

no discurso filosófico de sua época. O empobrecimento da experiência humana é caracterizada pela polarização crescente da época em direção a

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uma interpretação de mundo que se dá unilateralmente pelo estabelecimento de rígidos padrões científicos na tentativa de compreender tudo que

é possível quantificar, relegando o restante à impossibilidade do conhecimento.

O conhecimento, para Bergson, vai além dos limites impostos aos sentidos sob uma ótica kantiana. Se o intelecto realiza um processo de

síntese da experiência que se tem da realidade, não significa que esta realidade não possa ser experimentada e conhecida em todos os seus

aspectos. A experiência deve ir além dos limites do intelecto que objetiva e espacializa o que é apresentado aos sentidos. Bergson, a partir do

desenvolvimento de uma psicologia, de uma teoria do conhecimento e de uma cosmologia peculiares, estabelece um discurso sobre os problemas

que se formam ao se aplicar exclusivamente o intelecto sobre as estruturas da realidade que se apresenta sob tendências. O possível e o real, o

nada, ordem e caos. Todos esses conceitos, diz Bergson não passam de pseudo-problemas filosóficos, ou confusões que se criam na transposição

dos mecanismos intelectuais para um campo de investigação que diz respeito à metafísica. Se a linguagem é necessária para a comunicação, para

o discurso sobre o real, esse discurso não pode se valer das mesmas regras para a ciência e para a metafísica.

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AXEL HONNETH E O SENTIDO MODERNO DA IDÉIA DE RECONH ECIMENTO - Angelo Vitório Cenci

O conceito de reconhecimento, observa Honneth (2008), sempre desempenhou um papel essencial no âmbito da filosofia prática. Ele

aparece já na ética antiga, inserido no ideal de bem viver que a acompanhava. Para os gregos, reconhecer e ser reconhecido como uma pessoa de

valor era algo associado à concepção de que somente poderia levar uma vida boa quem pudesse ser estimado dentro da esfera da polis. No centro

desse ideal comunitário de vida estavam os homens reconhecidos como livres e iguais, cuja igualdade em sentido político era traduzida mediante

o mesmo direito de falar na assembléia (isegoria) e de ter a mesma condição perante a lei (isonomia). Essa concepção clássica vinculava, porém,

uma noção restritiva de reconhecimento, sustentada na idéia de honra calcada num ideal aristocrático de vida. Como o reconhecimento em seu

sentido pleno só era possível na visibilidade da esfera política todos os que ficavam de fora desta eram dele excluídos.

É com o iluminismo moderno que as bases de tal concepção sofrerá uma profunda transformação. O ideário iluminista, amparado numa

perspectiva universalista, amplia o princípio do reconhecimento a todos os humanos. O percurso moderno da idéia de reconhecimento principia

com Rousseau, passando Kant e Fichte, mas é somente em Hegel que se tornará a base de uma ética. A formulação de Hegel se tornou célebre

pelo alcance de seu esforço em empreender uma história da evolução da eticidade humana a partir de tal idéia. Hegel é justamente o ponto de

apoio para os atuais esforços de renovação do princípio do reconhecimento levados adiante por autores como Charles Taylor e Axel Honneth.

Seja através da idéia de uma política do reconhecimento ou de luta por reconhecimento mediante uma gramática moral dos conflitos sociais ou,

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ainda, de outras formas,289 o fato é que tal tema ocupa hoje o primeiro plano do repertório da filosofia social. Mais do que isso, ele se constitui

atualmente numa espécie de chave de leitura extremamente produtiva para tratar grandes questões que envolvem as ciências sociais.290

De modo distinto ao que ocorria nas sociedades tradicionais, não há mais como eleger hoje uma forma de vida única como modelar. As

figuras do herói, do sábio ou do santo, que pautaram tais sociedades e se alicerçavam em formas exemplares de vida, há muito não servem mais

de parâmetro para sociedades onde convivem diferentes formas de vida, das quais muitas podem ser consideradas valiosas. Viver em sociedades

pluralistas implica a imposição de exigências complexas aos indivíduos e grupos humanos no que tange ao princípio do reconhecimento. Tais

sociedades demandam o necessário aprendizado e a disposição, por parte de seus membros, em conviver com diferentes códigos culturais e

morais. Elas também requerem, ao mesmo tempo, um regramento jurídico formal que garanta direitos fundamentais para todos os sujeitos

indistintamente. Um dos principais desafios, no que tange à problemática do reconhecimento, é como conciliar o respeito às diferenças e às

singularidades de indivíduos e grupos, típicas de sociedades pluralistas, com a exigência de igualdade e universalidade consolidada pela herança

iluminista moderna.

Em Honneth,291 a transformação operada em relação à concepção tradicional de reconhecimento pode ser identificada de modo claro

mediante o terceiro dos padrões de reconhecimento recíproco por ele proposto, a solidariedade ou estima social.292 Esta configura-se como forma

de reconhecimento em sentido moderno somente na medida em que ultrapassa o padrão estamental tradicional. Nas sociedades que se orientavam

por tal padrão a reputação dos indivíduos era definida como honra social. Em tais sociedades, pautadas por uma eticidade convencional, o termo

honra expressa o grau de reputação social que um indivíduo é capaz de adquirir quando consegue cumprir as expectativas coletivas de

289 Além de Honneth e Charles Taylor inscrevem-se em torno a essa problemática, entre outros, autores como Nancy Fraser e Michael Walzer. 290 A esse respeito, entre outros, Caillé e Lazzeri (2007). 291 Para o que segue, Honneth, 2003 (p.198-211). 292 Essa mudança poderia ser identificada também no reconhecimento jurídico em sua forma moderna a qual não permite mais exceções e privilégios em função do

status das pessoas (Honneth, 2003, p.178s.).

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comportamento vinculadas ao status social. Em sociedades estamentais a hierarquia substancial de valores, articuladas de maneira hierárquica,

não é colocada em questão. Os padrões de comportamento de cada estamento são determinados pela ordem social de valores. Por sua vez, as

propriedades da personalidade pelas quais se orienta a avaliação social de uma pessoa são sempre as de um grupo determinado por status. O valor

decorrente de sua contribuição coletiva para a realização das finalidades sociais é o parâmetro pelo qual é medido também o valor social dos

demais membros.

Em grupos definidos por status os indivíduos podem se estimar mutuamente como pessoas por vivenciarem uma situação social comum.

Em tal situação partilham propriedades e capacidades que correspondem, na escala dos valores sociais, a uma determinada medida de reputação

social. A distinção social que corresponde à organização estamental da estima social se refere à identidade do grupo. As realizações mediante as

quais o indivíduo pode ver-se reconhecido distinguem-se pouco das propriedades coletivas de seu estamento. A auto-relação prática que ele pode

alcançar em tal experiência de reconhecimento é um sentimento de orgulho do grupo: a honra possui um sentido coletivo.

Com o advento da modernidade, a ordem hierárquica da estima social passa por uma mudança estrutural. A compreensão da ordem social

de valores deixa de ser dar mediante um sistema referencial objetivo; tal ordem perde tanto o fundamento metafísico de sua validade quanto a

capacidade de normatizar o comportamento e, pois, também de determinar a escala de prestígio social. O sujeito converte-se numa grandeza

biograficamente individuada. Simmel (1998) havia discutido essa problemática ao mostrar como o século XVIII inaugurara o “individualismo da

liberdade” – típico do iluminismo – fundamentado na igualdade natural de todos os indivíduos. Tal perspectiva compreendia que as formas de

vida socialmente vigentes nesse período, como os privilégios da nobreza e o servilismo da população camponesa, limitavam as capacidades dos

indivíduos. Haveria que se afirmar então o valor de cada indivíduo singular como algo que reside nele mesmo, na sua auto-responsabilidade, e

isso era justamente o que cada um tinha em comum com todos os demais sujeitos. Por essa razão, o cerne da individualidade assentava-se na

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igualdade universal. O indivíduo compreende-se como genérico, livre e igual e essa concepção serve de bandeira para sua auto-afirmação diante

das instituições sociais.293

Parte considerável do que os princípios de honra asseguravam ao indivíduo migra para o âmbito da relação jurídica, alcançando validade

com o conceito de dignidade humana. Porém, tal âmbito não é capaz de recolher todas as dimensões da estima social. Ocorre que, para se sentir

valiosa a pessoa necessita ser reconhecida em realizações que ela não partilha de modo indistinto com todos os demais sujeitos. Como as formas

de conduta eticamente aceitas não podem mais ser estabelecidas de antemão, o que agora orienta a estima social não são mais as propriedades

coletivas e sim as capacidades biograficamente desenvolvidas do indivíduo. A estima social aplica-se agora justamente àquelas propriedades

singulares que caracterizam um indivíduo, diferenciando-o de outras pessoas.294 O conceito de honra é deslocado para a esfera privada, dando

gradativamente lugar ao de prestígio social. As noções de prestígio ou reputação passam a indicar a medida de estima que o indivíduo goza

socialmente, mas no que se refere a suas realizações e capacidades individuais. Em termos da nova forma que a estima social assume como

padrão de reconhecimento tem-se um duplo processo em relação ao conceito de honra: sua universalização até tornar-se dignidade e sua

privatização até tornar-se integridade subjetivamente reconhecida.

Contemporaneamente as teorias do reconhecimento tem de ocupar-se com um segundo problema, decorrente do que foi exposto até aqui.

O vínculo entre identidade individualizada e reconhecimento não pode ser concebido a partir de um prisma monológico, o de um suposto sujeito

que se constitui e se reconhece isoladamente. Tal vínculo tem de ser buscado no caráter eminentemente dialógico da vida humana uma vez que

293 Simmel (2006) observa, no entanto, que se o individualismo do século XVIII se fundamentava na igualdade pela liberdade e vice-versa, o individualismo do

século XIX vai enfatizar a desigualdade, isto é, aquilo que é absolutamente próprio a cada indivíduo, o que o diferencia dos outros. Nesse caso, não se trata mais de ser apenas um indivíduo livre, liberto em relação aos laços que o prendia às instituições, como as corporações e a Igreja, mas um indivíduo específico e insubstituível.

294 Para Honneth (2003), esta forma de reconhecimento se vincula à pressuposição de um contexto de vida social no qual seus membros formam uma comunidade de valores orientando-se por objetivos éticos comuns. É tal comunidade de valores que possibilita que os projetos de realização pessoal sejam respeitados de forma solidária. Com o surgimento da identidade individualizada na modernidade, emergem as propriedades diferenciais dos indivíduos. Por conseguinte, a estima social é o que permite ao sujeito referir-se de modo positivo às suas propriedades e capacidades concretas.

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tornamo-nos humanos e capazes de compreendermo-nos e, pois, de definirmos nossa identidade, somente mediante a aquisição de “ricas

linguagens de expressão humana”, como dirá Taylor (2000, p.246). Expressões como a literatura, a arte e a linguagem ordinária só podem ser

aprendidas com base na interação com os outros. A própria gênese do espírito humano é dialógica e intersubjetiva e a definição de nossa

identidade ocorre sempre em diálogo com esses outros e, por vezes, em luta com a identidade que eles querem reconhecer em nós. Isso significa

que a identidade é constituída mediante o diálogo, este em parte aberto e em parte interno com o outro. Enquanto aberto, desenrola-se no plano

social na forma de uma política do igual reconhecimento; enquanto interno, ocorre no plano da intimidade onde, na relação com os outros

significativos, sua identidade é configurada (Taylor, 2000). Nas palavras de Honneth, a identidade pessoal possui fundamentalmente uma

“estrutura intersubjetiva” (2003, p.272). Isso significa que a formação do Eu prático vincula-se diretamente à pressuposição do reconhecimento

recíproco entre sujeitos uma vez que é somente quando os indivíduos se vêem confirmados em sua autonomia pelos demais que podem chegar a

uma compreensão de si mesmos na condição de “um Eu autonomamente agente e individuado” (2003, p.120). Em outros termos, a formação

prática da identidade demanda a experiência do reconhecimento intersubjetivo.

Referências

CAILLÉ, A.; LAZZERI, C. (Dir). La reconnaissance aujourd'hui. Paris: CNRS Éditions, 2009.

HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003.

____ . Disrespect: the normative foundations of critical theory. Cambridge: Polity Press, 2007.

___ . La societé du mépris. Paris: La découverte, 2008a.

SIMMEL, G. O indivíduo e a liberdade. In: Jessé Souza e Berthold Öelze (Orgs.). Simmel e a modernidade. Brasília: UNB, 1998.

____ . Questões fundamentais de sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

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TAYLOR, C. A política do reconhecimento. In: Argumentos filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000.

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A SOLUÇÃO POPPERIANA AO PROBLEMA DE COMPTON: COMO É POSSÍVEL SIGNIFICADOS INFLUIREM SOBRE O MUNDO FÍSICO? - Mate us Romanini

Introdução

A questão determinismo versus indeterminismo exerce papel central no pensamento de Karl Popper (1902–1994). Sua defesa da realidade

da liberdade, da responsabilidade moral e da criatividade humana, assim como sua explicação da racionalidade humana e da sua teoria do

conteúdo e do crescimento da ciência como um empreendimento objetivo, racional e demonstravelmente racional tem esta questão como crucial

(CLARK, p. 178).

Popper, em conferência proferida em Memória de A. H. Compton, visa defender um ponto de vista intermediário entre o determinismo

físico e o indeterminismo. Segundo o autor, Compton descreve o que ele chama de “pesadelo do determinista físico”. Tal “pesadelo” pode ser

descrito como a auto-suficiência do mundo físico de modo a não permitir intervenções externas, tais como pensamentos e sentimentos. Popper,

assim como Compton, é um indeterminista físico. Mesmo assim o autor acredita que o indeterminismo tão somente não é capaz de combater o

determinismo:

Se o determinismo é verdadeiro, então o mundo inteiro é um relógio que funciona com impecável perfeição [...]. Por outro lado, se é verdadeiro o

indeterminismo de Peirce, ou de Heisenberg, [...], então o puro acaso desempenha um papel principal em nosso mundo físico. Mas é o acaso realmente mais

satisfatório do que o determinismo? (POPPER. 1999, p. 208).

Levando em consideração que coisas não-físicas tais como objetivos, deliberações, teorias, intenções e valores exercem algum papel na

produção de mudanças no mundo físico e que nem todas as mudanças físicas podem ser explicadas por teorias físicas deterministas ou então

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devidas ao acaso, o problema é compreender por que coisas não-físicas afetam o mundo físico de tal modo. Segundo Popper (Ibid. p. 211),

Compton estava ciente deste problema como sugere a seguinte citação de suas Conferências da Fundação Terry (apud. POPPER. 1991, p. 211):

Há algum tempo escrevi ao secretário da Universidade de Yale concordando em proferir uma conferência a 10 de novembro, às 5 horas da tarde. Ele tinha

tanta confiança em mim que enunciou publicamente que eu lá estaria, e o auditório tinha tanta confiança em sua palavra que foi ao salão à hora especificada.

[...] As possibilidades de estar eu em outra parte nesse momento eram em número infinito. Considerada como um evento físico, a probabilidade de atender a

meu compromisso era fantasticamente pequena. Por que, então, era justificada a crença do auditório?... Eles conheciam meu propósito (que) determinava

que eu estaria lá.

Este caso da viagem de Compton apresenta um problema que pode ser posto do seguinte modo: como um conteúdo ou significado

abstrato (contido em documentos, pronunciamentos, promessas, regras morais, etc.) pode controlar os movimentos físicos de um homem? É uma

possível solução a este problema que será apresentada a seguir.

1.

Segundo Popper, o problema de Compton é o da influência de significados abstratos sobre a conduta humana e o mundo físico. Para uma

resposta a este problema, Popper propõe que seja seguido o postulado da liberdade de Compton. Tal postulado exige que qualquer solução a este

problema deva explicar a liberdade sem reduzi-la ao acaso. A liberdade deve ser explicada como o resultado de uma interação entre algo quase

aleatório e um controle restritivo flexível. Em outras palavras, este postulado requer que sejam combinados liberdade e controle flexível.

A solução proposta por Popper passa pela formulação de uma nova teoria que se diferencia radicalmente de algumas teorias que ele

denomina “modelos de chave-mestra de controle”. Estes modelos tomam o corpo como uma máquina que é regulada por um ou mais pontos de

controle centrais. É sobre estes pontos que a mente agiria sobre o corpo. Outra teoria, proposta pelos estudiosos do quantum, sugere que a mente

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age sobre o corpo influenciando e selecionando saltos de quantum amplificados pelo sistema nervoso central. Os saltos amplificados agiriam

sobre os pontos de controle provocando o movimento do corpo. Segundo Popper, Compton não estava satisfeito com essas teorias e as utilizou

somente para “mostrar que o indeterminismo (ou mesmo a ‘liberdade’) humano não contradiz necessariamente a física do quantum” (Ibid. p.

214).

O problema de tais modelos é o de que eles seriam satisfatórios somente se todas as ações humanas fossem repentinas e impensadas.

Popper admite que haja decisões de tal tipo, mas não é este tipo de ação que foi questionada por Compton. Decisões que se conformam tanto ao

postulado quanto ao problema de Compton são alcançadas apenas por meio de deliberação.

Para responder ao problema de Compton, Popper busca esclarecer o desenvolvimento e distinção das funções da linguagem e a distinção

entre desenvolvimento de órgãos e desenvolvimento de instrumentos.

2.

Para explicar a evolução da linguagem humana Popper adota a teoria das funções da linguagem de Karl Bühler295, segundo a qual a

linguagem possui três funções: [1] a função sintomática ou expressiva; [2] a função estimulante296 ou sinalizadora; e [3] a função descritiva. A

estas três funções Popper acrescenta outras, dentre as quais a mais importante é a [4] função argumentativa.

Estas quatro funções da linguagem podem ser distribuídas em dois grupos de funções: as funções inferiores, que abarcam as funções [1] e

[2]; e as funções superiores, às quais pertencem as outras duas funções [3] e [4], que decorrem das primeiras.

295 Cf. The Mental Development of the Child, de 1919. 296 Na tradução para a conferência de 1965, contida na obra Conhecimento Objetivo, na segunda função é utilizado o termo liberadora, enquanto que na tradução da

4º edição da obra Conjecturas e Refutações este termo dá lugar a estimulante. Para este trabalho será utilizado o segundo termo por parecer mais claro e preciso do que o primeiro.

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A função sintomática ou expressiva consiste na capacidade de expressar ou apresentar sintomas por parte de um organismo. A função

estimulante ou sinalizadora pressupõe que haja pelo menos dois organismos, um emissor e pelo menos um receptor de modo que a expressão do

primeiro organismo estimule o segundo fazendo com que este responda ao estimulo, tornando-o um sinal.

Pode ocorrer que um organismo expresse algo sem com isso influenciar outros organismos. Assim, é possível que a primeira função

ocorra sem a segunda, apesar de que “em qualquer caso genuíno de comunicação pela linguagem, sempre ocorrem juntas” (Ibid. p. 216).

Estas duas funções da linguagem estão presentes em todos os animais. Porém, a linguagem humana é muito mais rica por possuir funções

que as linguagens dos demais animais não possuem. Sem as funções superiores não haveria evolução do raciocínio e da racionalidade.

A função descritiva da linguagem é utilizada quando fatos são descritos. Pode haver, em meio a uma descrição, expressões de sentimentos

que podem ou não afetar outras pessoas, mas, além disso, uma descrição é composta de asserções descritivas que podem ser verdadeiras ou falsas

– corresponder ou não aos fatos.

Apesar da importância da função descritiva, Popper considera a mais nobre função da linguagem a função argumentativa. Esta seria a

última função a se desenvolver, pois, via de regra, os argumentos são contra ou a favor de asserções descritivas. A evolução desta função está

estritamente ligada à atitude argumentativa, que é uma atitude crítica e racional. Esta atitude crítica e racional faz da função argumentativa a

geradora da capacidade de argumentar crítica e racionalmente de modo a promover a eliminação de erros.

Assim como a função descritiva, a função argumentativa desenvolve padrões ideais de controle, ou de idéias reguladoras: a principal idéia

reguladora da função descritiva é a verdade, enquanto que a idéia reguladora da função argumentativa é a validade.297 As funções superiores da

linguagem não substituem as inferiores, estas são controladas, mesmo que de forma flexível, pelas idéias reguladoras de verdade e de validade.

297 Segundo Popper, a lógica formal pode ser tomada como uma das formas de argumentação crítica. Dado que a validade é a idéia reguladora da função

argumentativa e que a lógica fornece os instrumentos para a distinção entre argumentos válidos e inválidos, parece que a lógica exerce papel fundamental para o perfeito funcionamento desta função.

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Segundo Popper (1972, p. 325), o tipo de função utilizado somente pode ser definido analisando a intencionalidade do sujeito que se

refere a algo. Depende se ele intencionalmente expressa, ou sinaliza, ou descreve ou então toma posição quanto a um ponto de vista. O

comportamento lingüístico de duas pessoas pode ser semelhante, mas enquanto uma pode estar apenas expressando, outra pode estar descrevendo

ou argumentando sobre algo.

3.

A evolução humana, distintamente da dos demais animais, se dá principalmente, mas não somente, pelo desenvolvimento de instrumentos

diversos que contribuem para a manutenção e evolução da espécie. Popper não nega que, por mais rudimentares que sejam, é possível encontrar

tais tipos de coisas entre outras espécies de animais. No entanto, enquanto estes desenvolvem prioritariamente melhores olhos e ouvidos, além de

pernas cada vez mais velozes ou mais fortes, o ser humano desenvolve binóculos, aparelhos de audição e automóveis.

O homem, em vez de desenvolver cérebros e memórias melhores, desenvolve instrumentos – como papel, tinta, impressoras,

computadores, etc. – que acrescentam à linguagem novas dimensões que originalmente ela não possuía – como, por exemplo, a manutenção de

textos tais quais foram escritos a milhares de anos, ou mesmo uma capacidade de armazenamento digital de milhões de obras.

4.

Segundo Popper (Ibid. p. 220), as funções superiores da linguagem evoluíram de modo a suprir a necessidade de melhor controle sobre

duas coisas: sobre as funções inferiores da linguagem; e sobre a adaptação dos seres humanos ao ambiente, de modo a não apenas desenvolverem

novos instrumentos, mas também teorias e padrões de seleção. Assim, o desenvolvimento das funções superiores da linguagem levou ao

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desenvolvimento de significados e conteúdos abstratos – o homem aprendeu a abstrair das várias formas de formular ou expressar uma teoria o

conteúdo do qual depende sua verdade.

A solução proposta por Popper está de acordo com o postulado de Compton, pois o controle dos indivíduos e de suas ações pelos

significados é um controle flexível. Significados, propósitos ou objetivos podem ser adotados ou não após deliberação e discussão, eles podem

ser rejeitados livremente se o indivíduo pensar que não atingem seus padrões reguladores. O mecanismo controla, mas é também controlado.

As funções superiores da linguagem controlam de algum modo tanto as funções inferiores da linguagem quanto a adaptação dos homens

ao ambiente em que vivem. Assim o problema de Compton pode ser respondido do seguinte modo: a criação de significados através do

desenvolvimento das funções superiores da linguagem criou mecanismos de controle que agem sobre os homens, que aceitam ou não essa

regulação, mas que os influenciam de modo a fazer com que eles ajam e interajam no mundo físico. Isto é, há uma interação indireta dos

significados com o mundo físico.

BIBLIOGRAFIA

CLARK, Peter. Popper e o Determinismo. In.: Karl Popper: Filosofia e Problemas. O’HEAR, Anthony (Org.). Trad. Luiz Paulo Rouanet.

São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.

MEJÍA, Rafael M. La selección racional del conocimiento. El Darwinismo epistemológico de Karl R. Popper. Manizales: Editorial

Universidad de Caldas, 2006

POPPER, Karl Raimund. Conhecimento Objetivo: Uma Abordagem Evolucionária. Trad. Milton Amado. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia,

1999.

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POPPER, Karl Raimund. Conjecturas e Refutações. Trad. Sérgio Bath. Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1972.

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O PAPEL POLÍTICO DA RELIGIÃO PARA A MANUTENÇAO DO E STADO E DO BEM COLETIVO DOS CIDADÃOS NO PENSAMENTO DE MAQUIAVEL - Adriana Maria da Silva

Quando a temática da religião é abordada por Maquiavel não é realizada de forma metodologicamente teológica, mas na análise da

importância da crença e a maneira que é trabalhada na cultura da política. Com a função de estabelecer um papel essencial para a organização da

vida coletiva, a religião é analisada a partir de seus resultados práticos, sua inclinação é de despertar tanto o medo quanto a dedicação dos

cidadãos a favor da vida coletiva. Sua posição é passar a exercer ensinamentos na capacidade de desempenhar a tarefa patriota de movimentar os

homens a favor da formação, manutenção e fortalecimento do Estado.

A importância de uma religião não é o valor de seu fundador, o teor dos seus princípios, ou o conteúdo de sua doutrina, contudo

uma ferramenta para ser aplicada em favor das ações políticas na concepção do Estado e na convivência coletiva entre os cidadãos. Sobre a

aplicação da religião à vida política. Maquiavel afirma:

E, de fato, nunca houve ordenador de leis extraordinárias, em povo nenhum, que não recorresse a Deus; porque de outra maneira

elas não seriam aceitas: pois há muitas boas coisas que os homens prudentes conhecem, mas que não tem em si razões evidentes

para poderem convencer os outros. Por isso, os homens sábios, que querem desembaraçar-se dessa dificuldade, recorrem a Deus

(Discursos I. 11).

É possível compreender com Ames que, “a religião é um instrumento político, um meio pelo qual o governante prudente pode realizar,

em nome de Deus, coisas extraordinárias e inabituais indispensáveis à continuidade no tempo do domínio político”. (2002, p. 198). Neste sentido,

é importante que o governante seja um bom intérprete das manifestações que a religião oferece, pois a proteção do Estado e o amor à pátria do

povo dependerão desta habilidade. A religião se torna um elemento de grande eficácia política que deve ser dirigida com inteligência pelo

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condutor do Estado para manter as instituições e a moralidade pública e para garantir com prudência a conservação da pátria (AMES, 2002, p.

200).

A função da política na religião se faz por dois resultados diferentes e é reduzida a uma dupla função, com a formação e geração de um

mesmo efeito. Para Maquiavel a religião compreendida como instrumentum regni se transforma em ferramenta para o oficio dos governantes.

Levar os cidadãos a cumprir por meio da coação a produção de um resultado. Contribuir com o viver coletivo, normativo e com a atuação como

força de persuasão da educação cívica. Os dois efeitos possuem a mesma função e ocorrem ao mesmo tempo dentro do papel político da religião,

no qual é cultivar a paz e a ordem do Estado. Nas palavras de Leonardi, “o exercício da religiosidade é indispensável à construção do espaço

humano e das relações sociais que dela decorrem”. (2007, p. 10). Sendo assim, em sua dimensão política, a religião transforma os hábitos do

povo, mais do que conflitos sociais, as denúncias ou, até mesmo, as leis. Os cidadãos passam a ter respeito, monitorar ações e acontecimentos

desfavoráveis à manutenção do Estado, provocando e estimulando um viver em coletividade. O sentimento religioso, quando direcionado ao

culto dos símbolos pátrios, ao respeito das instituições políticas produz um efeito civilizador eficiente. Maquiavel aborda o tema da ordenação

civil pela análise de como Roma se utilizou da religião para organizar suas instituições e a vida normativa das leis:

Embora Roma tivesse Rômulo como primeiro ordenador e lhe coubesse reconhecer nele, como se filha fosse, o nascimento e a educação que teve os céus,

julgando que as ordenações de Rômulo não bastavam a tanto império, inspiraram no peito do Senado romano e eleição de Numa Pompílio como sucessor de

Rômulo, para que as coisas que Rômulo deixara sem fazer fossem ordenadas por Numa; este, encontrando um povo indômito e desejando conduzi-lo à

obediência civil, com as artes da paz, voltou-se para a religião, como coisa de todo necessária para se manter uma cidade e a constituiu de tal modo que por

vários séculos nunca houve tanto temor a Deus quanto naquela república, o que facilitou qualquer empreendimento a que o senado ou aqueles grandes

homens romanos quisessem entregar-se (Discurso I, 11).

Nesta passagem, Maquiavel apresenta a iniciativa que coube a Numa, sucessor de Rômulo, em que o problema político era limitar seu

povo ao cumprimento civil. Este, em função da necessidade de pacificar o povo romano, usou a religião como instrumento para “conduzi-lo à

obediência civil”. Este uso da religião como instrumentum regni delimita o âmbito de análise da religião. A religião desempenhou um papel

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constitutivo da sociedade e formador do caráter dos cidadãos. O empreendimento político dos homens e Estado foi facilitado pela função de

coesão social, desempenhada pela religião. O ensino e o preparo dos cidadãos para viverem segundo uma conduta normativa fazem da religião

uma espécie de terreno preparado sobre o qual depois se projeta o Estado e o viver político, e nesta mesma reflexão, nas expressões de Martins:

Mais do que pensar a relação entre religião e política, ou mesmo a respeito da dimensão religiosa para os atores políticos, tema recorrente em vários

pensadores, a questão de Maquiavel está em pensar a religião no mundo político como ferramenta na condução das coisas públicas. Os ordenadores não

devem respeitar sentimento religioso de um povo, mas saber usar desse para bem governar (Martins, 2007, p. 124).

Não é somente o aspecto político da religião que deve ser enfocada, mas o uso que se pode fazer quando se deseja ordenar uma cidade,

como era o caso da religião sob o governo de Numa, o qual para alcançar seus objetivos, não tratou o povo no terreno da força, mas compreendeu

que precisava voltar-se as “artes da paz”. Numa compreendeu que a força não era o elemento fundamental para levar os cidadãos à obediência, e

sim à religião. Esta, fundada na paz, na firmeza que a obediência e o temor despertam e transformam a relação do indivíduo para com o Estado,

dando a esta relação o mesmo caráter de obrigação que os homens têm para com o sagrado.

A religião exige do governante a habilidade de servir-se de forma perspicaz da fé e do povo para induzi-los à obediência da lei civil, pois

não é a violência, mas a religião o elemento mais eficaz para levar o povo a um vivere civile. Somente um líder virtuoso é capaz de levar os

cidadãos a temer a desobediência às ordens do Estado como se fosse uma ofensa a Deus, pois o temor de Deus só é eficaz quando utilizado por

um governante que possa dirigi-los corretamente. Portanto, a grandeza de uma religião procede da função e importância que ela exerce em

relação à vida coletiva e “ambas, função e importância, são de caráter normativo: a religião ensina a recorrer e a respeitar as regras políticas a

partir do mandamento religioso” (AMES, 2005, p. 53), isso se deve à dominação e à força do mandamento divino em relação à lei humana para

submeter o povo, pois “cidadãos temiam muito mais violar o juramento que as leis, por quanto estimavam mais o poder de Deus que os homens”

(DISCORSI, I, 11).

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De fato, as diferenças entre a lei divina e a regra política pertencem ao conhecimento do governante. O povo não consegue diferenciá-las

da forma apropriada. Se uma lei é apresentada ao povo apenas como lei estabelecida pelo dirigente ela não atingirá o objetivo aspirado de forma

pretendida, mas, se for exposta ao povo como um mandamento divino ela se torna facilmente recebida, pois o medo de violar uma lei divina é

maior que descumprir uma lei estabelecida pelo legislador, no qual a religião torna-se mais hábil que a força das leis humanas no domínio e

organização dos cidadãos.

Considerando, pois, que a religião, em seu fundamento, é essencialmente “temor de Deus” e que cumpre o papel de formadora de

sentimento político dos cidadãos, Maquiavel destaca vários instrumentos referidos capazes de produzir comportamentos politicamente úteis ao

ordenamento do Estado, com destaque: à simulação, aos juramentos e aos vaticínios.

Uma das funções políticas mais importantes da religião consiste em inibir a corrupção do Estado. O desprezo do culto aos deuses,

geralmente, favorece e eleva a incidência da corrupção. Para que a função política da religião seja eficaz, ela precisa ter natureza universal, válida

para todos os indivíduos. Não pode ser partidarizada ou particularizada por grupos ou facções, pois isto leva à descrença. Os governantes, mesmo

que não sejam religiosos, devem respeitar os sentimentos religiosos já que a religião cumpre a função de auxilio na manutenção da unidade do

povo e dos bons costumes. “O conhecimento da diferença entre a norma política e o mandamento divino é do domínio unicamente de quem

governa” (AMES, 2006, p. 56). Em outras palavras, fica claro que a questão principal não é a verdade da religião e sim a da interpretação da

vontade divina por aqueles que comandam e a favor de seus propósitos. A simulação tem destaque nos exemplos de Maquiavel, quando esta

atitude faz da religião uma ferramenta apta para proporcionar comportamentos individuais e coletivos politicamente vantajosos. Novamente

podemos destacar a atuação de Numa em Roma:

Numa ficaria em primeiro lugar: porque, onde há religião, facilmente se podem introduzir armas; e, onde houver armas, mas não houver religião, esta com

dificuldade poderá ser introduzida. E vede que Rômulo, para ordenar o senado e para criar outras ordenações civis e militares, não precisou da autoridade de

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Deus, mas Numa sim, e este simulou ter intimidade com uma Ninfa, que lhe aconselhava aquilo que ele deveria aconselhar ao povo: e tudo porque ele queria

criar ordenações novas e inusitadas naquela cidade, mas desconfiava que sua autoridade não bastava (Discursos I, 11).

Aqui o verdadeiro problema não é saber se há ou não algum fundo de verdade na religião, mas dirigir os sentimentos e as energias que a

religião suscita no espírito dos cidadãos num caminho politicamente útil e construtivo. Numa, diz Maquiavel, percebeu que sua autoridade seria

incapaz para “criar ordenações”, porém compreendendo a importância de tal iniciativa “simulou ter intimidade com uma Ninfa, que lhe

aconselhava aquilo que ele deveria aconselhar o povo”. O logro, evidentemente, só era do conhecimento de Numa, sendo posteriormente

avaliado pelos resultados obtidos, o povo maravilhado, cedia ante todas as argumentações. Portanto para Maquiavel, as atitudes em

favorecimentos ao bem coletivo dos cidadãos são justificáveis pelo resultado produzido, pois a simulação garante ao ordenador um

estabelecimento de ordem obediente, sem o uso da força do Estado.

Um segundo aspecto pode ser observado no modo como os romanos se serviam dos oráculos e vaticínios, no capítulo XIII do primeiro

livro dos Discursos, podemos encontrar exemplos apresentados por Maquiavel referente de como os romanos utilizavam a religião para reordenar

a cidade, realizar suas empresas e debelar tumultos:

Como o povo romano tivesse constituído tribunos com poder consular, sendo todos plebeus exceto um, e ocorrendo naquele ano peste, fome e certos

prodígios, os nobres usaram essa ocasião na nova eleição dos tribunos, dizendo que os deuses estavam irados porque Roma usara mal a majestade de seu

império, e que não havia outro remédio para aplacar os deuses, senão restringir a escolha dos tribunos à classe dos nobres: donde que a plebe, atemorizada

por aquela religião, elegeu os tribunos todos os nobres (Discursos I, 13)

Outro exemplo apresentado por Maquiavel é do modo de como os capitães se utilizavam dos temores religiosos para obter soldados

dispostos a uma iniciativa patriota e participativa nas batalhas:

Vê-se também como, na expugnação da cidade de Veios, os capitães os exércitos se valiam da religião para manter seus homens dispostos às empresas; pois,

como o lago Albano estivesse surpreendentemente cheio naquele ano, e os soldados romanos estivessem enfadados com o longo assédio, querendo voltar

para Roma, os romanos inventaram que Apolo e alguns outros vaticínios diziam que naquele ano se expugnaria a cidade de Veios, desde que se vazasse o

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lado Albano: e isso fez que os soldados suportassem o fastio do assédio, dominados que estava pela esperança de expugnar a cidade; e prosseguiram

contentes, até que Camilo, tornando-se ditador, expugnou a cidade, depois de dez anos de sítio (Discurso I, 13)

O pensador afirma que neste caso a religião bem usada, serviu para conquistar a força aquela cidade e a devolução do tribunado a

nobreza. Sem esse meio, dificilmente se teria chegado a qualquer um desses objetivos. Tal utilização desses critérios, “é importante destacar que

o resultado deve convergir com o bem coletivo. É esse efeito positivo, reconhecido por todos, o que valida a sua utilização” (AMES, 2006, p.

60). Portanto, a interpretação cujo efeito é manifestamente beneficiável apenas as minorias favorecidas, ou a algum dirigente no poder, tem por

conseqüência a difamação no oráculo ou nos augúrios, no qual o prejuízo da fé e em sua descrença brota o tumulto, que danifica a continuação

durável da vida do Estado.

Outro aspecto que deve ainda ser destacado é o proveito do juramento religioso feito em público em relação ao juramento político,

que não provoca na mesma obrigação. O pacto feito entre os homens e os deuses, por estar alicerçado no temor, cria mais comprometimento do

que os pactos feitos entre os homens. Ao perceber a fragilidade desses pactos humanos por oposição à força dos juramentos para com os deuses,

Maquiavel vê nesses o grande instrumento político à disposição do ordenador para instaurar um sólido Estado. E mais vez menciona o uso desta

ferramenta pelos romanos:

E quem examinar as infinitas ações do povo de Roma em conjunto e de muito dos romanos de per si verá que aqueles cidadãos temiam muito mais violar o juramento que as leis, porquanto estimavam mais o poder de Deus que o dos homens, como se vê claramente dos exemplos de Cipião de Mânlio Torquato. Porque, depois da derrota infligida por Aníbal aos romanos em Canas, muitos cidadãos se haviam reunido e, desacoroçoados com a pátria, combinaram abandonar a Itália e ir para a Sicília ; Cipião ao saber disso, foi ter com eles e, de espada em punho, obrigou-os a jurar que não abandonariam a pátria. Lúcio Mânlio, pai de Tito Mânlio, que depois foi chamado Torquato, fora acusado por Marcos Pompônio, tributo da plebe,e, antes de chegar o dia do julgamento, Tito foi ter com Marcos e, ameaçando matá-lo se ele não jurasse que retiraria a acusação feita a seu pai, obrigou-o a jurar; e aquele, tendo jurado por medo, retirou a acusação (Discursos I, 11).

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A passagem nos leva a compreender que, o uso que se faz do juramento, estabelece uma involuntária manifestação de

responsabilidade da parte do individuo, uma intensa vinculação entre o medo reservado de um Deus e uma obrigação pública de caráter político.

O Estado não se conserva pela força e sim pela lei e a eficácia da lei que é reconhecida através dos instrumentos da religião. “A dinâmica do

juramento: ele não resulta de um ato espontâneo, de uma obrigação coletiva que uma comunidade dá voluntariamente a si própria, mas, muito

antes, é sempre efeito de uma coerção” (AMES, 2002, p. 62).

Portanto, por conservar apenas o resultado coercitivo e, por assim dizer, inibidor, a religião aparece de modo negativo para quem deve

obedecer. Já do ponto de vista do Estado, sua função é positiva. Considerada como valor instrumental, a religião é um elemento de grande

eficácia política que deve ser manejado com astúcia pelo chefe de Estado para manter as instituições e a moralidade pública e para assegurar

melhor a defesa da pátria e um bem coletivo para seus cidadãos.

Referências

AMES, José Luiz. Maquiavel: A Lógica da Ação Política. Cascavel: Edunioeste, 2002.

______. Religião e política no pensamento de Maquiavel. Kriterion, Belo Horizonte, n. 113, p.51-72, jun.2006.

FORNAZIERI, Aldo. Maquiavel e o bom governo. 2006. Tese de Doutorado. USP. São Paulo

LEONARDI, Evandro M. Entre o elogio e a censura: o lugar da religião no pensamento de Nicolau Maquiavel. 2007. Dissertação de

Mestrado. Unioeste. Toledo

MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Tradução MF. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

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MARTINS, José A. Os fundamentos da república e sua corrupção nos Discursos de Maquiavel. 2007. Tese de Doutorado. USP. São

Paulo.

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UM PARALELO ENTRE A FILOSOFIA OCIDENTAL E A FILOSOF IA ORIENTAL – Leandro Nunes 298

Historicamente constata-se que o homem sempre buscou e, ainda busca incessantemente respostas para questões que nos arremessam

aos confins do Universo, a um suposto código oculto da natureza. Movido por questões que engendram curiosidade e sede de saber, o homem

sempre procurou maneiras de provar que o Universo é uma extensão de seu pensamento. De um modo contundente o homem procurou respostas

para questões que supostamente excedem as barreiras de seu pensar. A origem da vida e os segredos ocultos do Universo são alvos de incessante

pesquisa e especulação. Nesse contexto, a filosofia possui um papel de suma importância nessa busca por respostas. Desde Tales de Mileto

(aprox. 624 a.C. - 556 a.C), o homem instiga-se por respostas a perguntas que o senso comum diz serem irrespondíveis. Toda a curiosidade do

homem acerca dos mistérios da natureza nos levou a encontrar os limites do nosso próprio pensar.

TUDO COMEÇA COM OS GREGOS

Tales de Mileto foi o primeiro homem a se ter registro na história, que deu uma resposta cosmológica para a origem de todas as

coisas, para a origem do universo, e assim, acaba por romper com a tradição que respondia tais questões recorrendo à cosmogonia. Tales

acreditava que todos os seres vivos eram compostos por água ou vindos dela. A sentença de Tales “A água é a arkhé da phýsis”, mais do quê uma

resposta à pergunta sobre a origem dos entes, é um marco fundamental para a história do homem, o ponto de partida para todo o conhecimento

298 Acadêmico UNIOESTE - [email protected]

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possível. Os gregos antigos possuem um papel de protagonistas na história da humanidade, foram eles que começaram a transformação do animal

homem em o ser pensante homem. O homem por assim dizer, saiu de seu papel de mero coadjuvante que atuava numa minúscula parte do

Universo, para tentar alcançar o papel de protagonista do Universo. Após Tales de Mileto, os pensadores gregos preocuparam-se em estabelecer

um conhecimento que não necessitasse mais da cosmogonia, o misticismo já não satisfazia a curiosidade do homem.

Os filósofos de Mileto (Tales, Anaximandro e Anaxímenes) haviam observado as mudanças que ocorrem na natureza, o nascimento, o

desenvolvimento e a morte, mas não chegaram a problematizar esta questão. Não obstante, Heráclito de Éfeso (aprox. 540 a.C. - 470 a.C.),

inserido no contexto pré-socrático, parte do princípio de que tudo é movimento, e que nada pode permanecer estático, ou que "tudo flui", "tudo se

move", exceto o próprio movimento. Heráclito, ao contrário de Tales, acreditava que o fogo era a arkhé da phýsis, que o fogo seria o elemento do

qual deriva tudo o que nos circunda. Na direção contrária a Heráclito, outro filósofo pré-socrático, Parmênides de Eléia (cerca de 530 a.C. - 460

a.C), acreditava na unidade e na imobilidade do ser, que o ser é uno, eterno, não-gerado e imutável. Parmênides inferiu que o mundo sensível é

uma ilusão e foi o primeiro filósofo a duvidar dos dados dos sentidos. Nesse sentido, por volta do ano 400 antes de Cristo, dois outros gregos,

Leucipo e seu discípulo, Demócrito, inferiram que tudo o que existe no mundo é composto de pequenas partículas indivisíveis, denominadas

átomos que em grego significa "aquilo que não pode ser cortado".

Entretanto, entendo que a sentença de Protágoras “o homem é a medida de todas as coisas” pode ser tida como marco inicial da busca

do homem para remeter uma possível centralização do universo para si, o homem queria ser o centro de tudo que possa existir. O homem, como

não poderia ser diferente, começou a observar o todo a partir de seu pensamento. Desde então o homem tentou esquematizar o universo/natureza

para lhe servir, o homem criou leis para o funcionamento do Universo, para que este se enquadre a seu dispor, o universo deveria servir o homem

e não o homem servir o Universo. Podemos percorrer toda a história da humanidade que vamos nos deparar com grandes mentes que dedicaram

toda sua vida à procura de respostas que possibilitem uma total mecanização da natureza para seu favor:

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Nós podemos tomar o estado presente do universo como o efeito do seu passado e a causa do seu futuro. Um intelecto que, em dado momento, conhecesse

todas as forças que dirigem a natureza e todas as posições de todos os itens dos quais a natureza é composta, se este intelecto também fosse vasto o suficiente

para analisar essas informações, compreenderia numa única fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e os do menor átomo; para tal intelecto

nada seria incerto e o futuro, assim como o passado, seria presente perante seus olhos (Laplace, 1814)

O OUTRO LADO DA HISTÓRIA

De um modo geral, a História que aprendemos nas escolas e universidades limita-se a relatar somente a história do ocidente, pois,

parece-me que o oriente é o lado obscuro da terra e da humanidade e, por isso, não merece qualquer menção à sua história. Não é comum termos

acesso à produção de pensadores orientais, mas isso não significa que não haja ciência e filosofia no oriente, muito pelo contrário, o oriente tem

uma história de pensamento magnífica e muito rica em conhecimento, que merece ser estudada tanto quanto a história ocidental.

O pensamento oriental ou a filosofia oriental caracteriza-se como uma doutrina feita por sábios ancestrais, que desenvolveram uma

profunda meditação sobre o ser. Os sábios ou filósofos orientais, geralmente são caracterizados como pessoas de idade avançada e que viveram

em plena harmonia com o cosmo. A filosofia oriental é composta por três pensamentos distintos, mas que remetem a um mesmo fim. O primeiro

destes pensamentos a ser analisado neste texto é o da filosofia Persa. A filosofia Persa tem suas origens nas tradições ancestrais Iranianas, e

claramente percebe-se que tal pensamento sofreu influência de Zaratrusta299. Por toda a história iraniana ou da antiga Pérsia, observa-se o

surgimento de várias escolas filosóficas, se bem que o termo filosofia teve sua origem na Grécia, portanto, denominar essas correntes de escolas

filosóficas é errôneo, pois, na época esse termo não existia, a caracterização de filosofia oriental surgiu muitos séculos após o surgimento desses

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pensamentos. Correntes de pensamento acerca das leis do universo, da natureza e sobre ética (ou viver bem), são os principais ramos da filosofia

Persa, os persas assim como todos os pensadores orientais, são conhecidos pela total sintonia entre mente e universo.

O segundo pensamento oriental a ser abordado, é o pensamento Hindu. O pensamento Hindu é originário da Índia, tendo como

principal alicerce questões sobre a natureza e a posição humana no universo. O pensamento Hindu atribui a criação do universo a uma

autoconsciência de um ser primordial, que é fundamento dos fenômenos a posteriori e a priori . A filosofia hindu acredita que o universo possui

uma ordem cósmica e é movido por uma lei causal. As principais questões que norteiam este pensamento, são questões que remetem a um

possível cognitivo universo-homem, ou universo-mente. As duas maiores obras hinduístas são o Mahabharata, que a autoria é atribuída a

Krishna Dvapayana Vyasa, livro este que contém mais de 74.000 versos em sânscrito300, e cerca de 1,8 milhões palavras. O Mahabharata é

considerado o livro sagrado de maior relevância no hinduísmo. O outro livro hindu é o Ramáiana, que tem sua autoria atribuída ao poeta

Valmiki. O Ramáiana possui aproximadamente 24 mil versos que contam a história de um príncipe que teve sua esposa seqüestrada por um

demônio.

O terceiro pensamento oriental e o que darei mais destaque neste trabalho é a filosofia Chinesa. A filosofia chinesa é simbolizada pelo

ideograma Tao que é comumente traduzido por “caminho”, entretanto, na filosofia chinesa Tao significa algo que é abstrato e por vezes

intraduzível; no ocidente, usando de uma analogia esdrúxula, podemos compará-lo como equivalente a Deus. Tao é a realidade insondável e

indizível, é o poder absoluto que une cada partícula no universo, é um ser transcendente, que como tal é inacessível ao nosso conhecimento. O

pensamento oriental procura estar em perfeita simetria com o caminho da natureza301 ou a imensidão cósmica, para tanto, o pensador oriental não

299Zaratustra viveu na Ásia Central, num território que compreendia o que é hoje a parte oriental do Irão e a região ocidental do Afeganistão. Não existe um consenso

em torno do período em que viveu; os académicos têm situado a sua vida entre 1750 e 1000 a.C.. 300Sânscrito, é uma língua da Índia, com uso litúrgico no Hinduísmo, Budismo, Jainismo. 301Tian-Dao ou caminho da natureza (também traduzido como "céu" e às vezes por "Deus") corresponde à ordem das coisas de acordo com a lei natural.

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se guia por doutrinas morais ou normativas, ele acredita estar contido num vazio cósmico onde apenas as leis naturais o impelem. O místico

oriental é desatrelado da vida física, do senso comum, ele vive em perfeita sintonia com o universo.

O Tao de que se pode falar não é o verdadeiro e eterno Tao. O nome que pode ser dito não é o verdadeiro nome. O que não tem nome é a origem do Céu e da Terra.

E o nomear é a mãe de todas as coisas. Sem a intenção de o considerar,

Podemos apreender o mistério e as suas subtilezas, Através da sua ausência de forma.

Tentando considerá-lo, só podemos ver a sua manifestação Nas formas que definem o limite das coisas.

Ambos provêm da mesma fonte e são o mesmo. Diferem apenas devido ao aparecimento dos nomes.

São o mistério mais profundo, a porta para todos os mistérios.

(Lao-Tsé. Tao Te Ching. Martin Claret, 2003, cap. 1.)

O oriental acredita que há uma força/corrente que une todas as coisas, tal força é invisível e somente pode ser alcançada pela

meditação do ser. A partir deste preceito, o pensador oriental acredita que a realidade visível deriva de uma realidade invisível, da qual todas as

coisas se originaram. Neste sentido, o oriental acredita que todas as coisas/ações possuem uma intima relação. Tal pensamento pode ser

relacionado no ocidente com a teoria do caos. A teoria do caos é um pressuposto – a ser verificado - que parte da suposição de que todos os

eventos da natureza, aparentemente isolados e esparsos, estivessem ou fossem ligados por uma linha invisível, que a princípio não fizesse sentido

algum, mas que remete a um fim único, a uma totalidade una. Para melhor clarificar tal postulado, preciso primeiro tentar elucidar o que seria a

teoria do caos. A teoria do caos ou o conceito caos teve seu início ou sua primeira menção na Grécia antiga, segundo a mitologia grega o caos

significava o anterior a origem, o estado não organizado, ou o nada de onde o universo surgira. De acordo com a Teogonia de Hesiodo, o caos

precedeu a origem, não só do mundo, mas também dos deuses, "O Caos não tem estátua nem figura e não pode ser imaginado; é um espaço que

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só pode ser conhecido pelas coisas que nele existem e ele contém o universo infinito." (Hesíodo; séc. VIII a.C.). Frances A. Yates, com o

desenvolvimento da matemática, da física e de outras ciências, afirmou que a Teoria do Caos surgiu com o propósito de compreender e dar

resposta às flutuações erráticas e irregulares que se encontram na natureza e não obstante dar outro sentido ou visão a mecânica quântica. A teoria

do caos tenta explicar como uma série de fatos ou acontecimentos (espaço/cronológicos) distintos pode remeter a um mesmo fim.

Voltando ao pensamento oriental, percebemos que ao contrário da maioria dos pensadores ocidentais, o pensador oriental não crê em

um Deus com forma humana, ou que tenha qualquer outra forma, o oriental acredita que se há uma divindade, esta dever ser de natureza

incompreensível. O pensador oriental percebe o mundo de um modo que difere da visão que o pensador ocidental acredita, deixando de lado uma

visão racional ele procura se relacionar com as coisas à sua volta porque acredita que tudo faz parte de um todo e que não há graus de

importância entre as partes que compõe este todo. Para o oriental tudo está contido numa mesma energia cósmica, todas as coisas possuem uma

mesma origem que remete a um desconhecido insondável.

O conceito de vida eterna não tem nada a ver com ansiedade pela vida. A verdade é que não há morte de fato. Como é possível não haver morte? Porque, na verdade, existe não duas, mas uma única energia, uma força motriz que a tudo permeia, na raiz das atividades de nossas vidas. O Grande Vácuo, que é o ponto em comum de toda vida, já existe, e a vida nasce continuamente em seu interior. Então, qual a necessidade da vida ou da morte? É porque o nosso desejo pelas coisas toma proporções indevidas que nos desorientamos e começamos a separar vida e morte. Se observarmos deste espaço de quietude e tranquilidade, veremos que nunca houve vida ou morte alguma. Evidentemente há apenas uma única energia fluindo e circulando. (Can Tong Qi Shuliu. O segredo da vida eterna, prefácio)

CONCLUSÃO

É rotineiro perceber uma diferenciação errônea de filosofia ocidental e filosofia oriental, a filosofia não é geográfica, não existem

pólos geográficos na filosofia, a filosofia é universal. O oriente em suma, é o centro não-dimencional da razão humana, é a alvorada da verdade,

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em última instância, é o eu divinizado de Feuerbach302, ou seja, são as qualidades do homem elevadas ao infinito. Não obstante, a verdadeira

diferenciação entre o pensamento ocidental e o pensamento oriental, é que o primeiro considera o Universo a partir dos fenômenos sensíveis,

enquanto o segundo acredita que os fenômenos sensíveis são manifestações do invisível e, portanto, considera o universo a partir do não-sensível.

Um leitor desatento pode ser levado a acreditar que estou comparando essas filosofias para encontrar uma vencedora, mas é justamente

o contrário que pretendo salientar. O pensamento ocidental e o pensamento oriental não são opostos, mas sim complementares, são duas formas

diferentes de examinar/perceber a realidade que indicam um mesmo fim. Uma congruência destes dois pensamentos talvez seja a única forma de

conhecer a realidade tal como ela é, realidade esta que pode diferir de como à percebemos (dados dos sentidos); uma realidade que é real somente

em si mesma, ou seja, uma realidade que provavelmente deve diferir da “realidade percebida” pelo homem.

Trinta raios convergem para o meio de uma roda Mas é o buraco em que vai entrar o eixo que a torna útil.

Molda-se o barro para fazer um vaso; É o espaço dentro dele que o torna útil.

Fazem-se portas e janelas para um quarto; São os buracos que o tornam útil.

Por isso, a vantagem do que está lá Assenta exclusivamente

na utilidade do que lá não está. (Lao-Tsé. Tao Te Ching, Martin claret, 2003, cap. 11)

Os “buracos” que não percebemos; o vazio que há no seio de nossas questões mais obscuras; o limite de nosso pensar...

Independente da forma como designamos esses enigmas, todos eles remetem a um mesmo fim. Talvez a única possibilidade de resposta para

estas questões, repouse numa filosofia que possa reunir um pouco do que cada pensamento que compõe as filosofias ancestrais alcançou.

302Ludwig Andreas Feuerbach (Landshut, 28 de julho de 1804 — Rechenberg, Nuremberg, 13 de setembro de 1872) filósofo alemão.

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Referências

BARNES, Jonathan. Filósofos Pré-Socráticos. São Paulo: Martins Fontes, s.d.

ROHDEN, Huberto. O espírito da Filosofia Oriental. São Paulo: Martin Claret, 2009.

KAHN, Fritz. O livro da natureza: A matéria cósmica da física clássica. 5º Ed. São Paulo: POx, 1965.

LAO-TSÉ, Tao Te Ching: O livro que revela Deus. 4º Ed. São Paulo: São Paulo: Martin Claret, 2003.

FEUERBACH, Ludwig. A Essência do Cristianismo. 2º Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.

LEGRAND, Gerard. Os Pré-Socráticos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.

GLEISER, Marcelo. Criação Imperfeita: Cosmo, Vida e o Código Oculto da Natureza. Rio de Janeiro: Record, 2010.

LAPLACE, (1814, apud STEWART, 1990 p. 17/18).

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A MORTE DA ESTÉTICA - Lucas Sariom de Sousa

Introdução

§ 1 – Da minha pedra de toque

São os olhares que fazem um quadro. Qualquer objeto aceito como arte, torna-se artístico (cf. Le processus créatif, Marcel Duchamp).

Dos problemas da estética, o que mais me chamou a atenção foi sempre esse: “o que é a arte”. Apesar de no começo as pretensões serem

bastante infantis, esta foi a que mais persistiu e me incomodou mais. Estudando a história da filosofia através do viés estético, notei que nada me

satisfazia e poucos filósofos diziam algo com que eu poderia concordar, em relação com as experiências e as concepções que havia formado em

meu contato com a arte até então. Daí que de concepções várias necessitei de um caderno para não esquecê-las, e de um caderno vieram vários, e

deles saiu este texto.

Duchamp, um dos estetas importante com que me meti, demonstrou na prática artística que para um objeto ser obra de arte basta ser

reconhecido efetivamente como tal por parte do público. Desse modo, basta colocar algo num museu – ou até menos que isso – e nada mais.

Digamos que, de certa forma, a própria prática verificou o que ele disse na teoria, visto que o que ele fez ainda é reconhecido com arte, mas o

rebaixamento da artisticidade para uma simples retórica mais aproxima o artista de mero sofista do que eleva ao seu podium merecido de

Criador.

O problema que se desenrolará por aqui, portanto, será justamente este: o de dizer qual objeto afinal pode ser considerado artístico. E,

para tanto, terei como pressuposto aquilo que se firmou como arte através da história: eles são minha pedra de toque, os inegavelmente gênios da

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história da arte, e suas respectivas obras primas. Bach, Mozart, Beethoven, Chopin, Homero, Sófocles, Eurípedes, Ésquilo, Hesíodo, Safo,

Aristófanes, Plauto, Virgílio, Horácio, Dante, Boccaccio, Rabelais, Vitor Hugo, Chateaubriand, Goethe, Schiller, Schlegel, Blake, Shakespeare,

Byron, Camões, Machado de Assis, Dostoievsky, Tolstoi, Augusto dos Anjos, Olavo Bilac, Fernando Pessoa, Edgar Allan Poe, Michelangelo, da

Vinci, Rembrandt, Van Gogh, Picasso etc., além de outros – na verdade, contra a minha vontade –, como Duchamp, Elvis, Beatles, Black

Sabbath, Pollock, etc., nem que sejam, estes últimos, para uma análise e exemplificação de não-arte, se esse for o caso.

§ 2 – Os tipos de conhecimento necessários a todo ‘abridor de mundo’

Tomando como pressuposto a teoria exposta mais claramente em Kant de que a única coisa que percebo são fenômenos, i.e., que nosso

único conhecimento provém das percepções possíveis de nossa subjetividade, tomo também o pressuposto fenomenológico de que o que deve ser

estudado é, na verdade, as estruturas do aparecer, não enquanto aparecem ao humano somente, mas a todo ‘abridor de mundo’, toda subjetividade

enquanto percebe fenômenos.

Dado que aqui pretendo estudar a arte, e que o contato com a obra de arte se dá obviamente por um movimento epistemológico, passo a

analisar em primeira instância o conhecimento objetivo do fenômeno, o que me faz notar que toda subjetividade, ao entrar em contato com uma

aparência fenomênica, possui, por uma estrutura a priori, três formas de conhecimento: necessariamente a subjetividade passa a ter a

possibilidade de conhecer essa aparência enquanto ‘o que’ ela é, as partes e divisões empíricas que ela possui, as relações entre essas partes, etc.

– essa parte chamo de aparecido, pois é o conhecimento de ‘o que me apareceu’; também torna-se necessário que, dado esse aparecido, ele tenha

sido de certa maneira específica pelo meu estatuto de subjetividade, esse tipo de conhecimento é o do ‘como’ ele aparece, ou seja, esse processo,

esse, aparecendo – ou ainda, o conhecimento do aparecer; mas além disso há junto desse aparecido possuidor de um aparecer específico algo de

que não seria perdoável esquecer, i.e., que a especificidade, ou a idiossincrasia, ou a singularidade, desse aparecido revela necessariamente a

possibilidade do aparecer deste aparecido tal como ele aparece – e eu o chamo simplesmente de possibilidade.

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Esses são os tipos a priori do conhecimento do aparecimento e, como foi dito, são necessários a todo ‘abridor de mundo’. Mas há ainda

outras relações necessárias, porém que talvez não sejam senão possíveis à subjetividade humana, tendo em vista a formação do seu conhecimento

de acordo com a sua constituição. Neste ponto vale ressaltar uma coisa antes de descrever sobre esses outros tipos de conhecimentos.

O aparecer dá-se através da multiplicidade dos fenômenos; e essa multiplicidade só é possível dentro das possibilidades dadas ao aparecer

pelo seu fundante. Portanto, seria loucura se eu saísse chutando a qualquer direção tentando acertar qual seria esse fundante: antes de tudo, devo

compreender todas as possibilidades, pois só sua completude mostrará o caminho para o transcendental. A completude dessas possibilidades,

porém, pode extrapolar a determinação do mero ‘abridor de mundo’, recaindo a uma fenomenologia não a qualquer subjetividade, mas à

subjetividade do humano – essa certeza, porém, é algo que só poderá aparecer quando já tivermos conhecido todas essas possibilidades

cognoscitivas, incluindo o tédio, a angústia e o que quer mais que possa ser encontrado.

Daí que me permito a análise da interação entre a subjetividade e a aparência, sendo este o conhecimento que possuímos, e.g., sobre

andar, respirar, lavar a louça, trocar uma lâmpada – um conhecimento que não se encaixaria nem no do aparecido, do aparecer ou da sua

possibilidade, pois a tentativa de descrever esse tipo de conhecimento seria não só extremamente dificultoso como incompleto, bastando a rápida

vivência ou a prática de certa atividade e seu conhecimento está adquirido – e que chamo de conhecimento prático303. Assim como também a

análise da dação de sentido ao aparecido, tendo em vista todas as suas características de aparência: essa análise refere-se ao conhecimento das

relações geradas pela aglomeração e univocidade dos aparecidos, pois as várias características de um objeto “coladas” umas nas outras geram a

relação entre essas características, de forma que, quando vemos uma delas, tendemos a relacionar com as outras, trazendo em nossa percepção,

303 Uma evidência da dificuldade de uma descrição do conhecimento prático é os compêndios de técnica musical, principalmente para o piano, instrumento

bastante difundido e de muito fetiche sobre seu toque, que por mais rodeios e palavrórios que fizessem sobre o simples abaixar dos dedos sobre as teclas não conseguem mais que o próprio tocar ao vivo.

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por uma espécie de lembrança, as supostas características relacionadas à presença da característica percebida – processo de lembrança esse que

preferi chamar de reminiscência.

Adiantando um pouco o que ainda está para ser exposto, cada tipo de conhecimento referir-se-á a uma “ciência” ou, mais adequadamente,

uma pesquisadora correspondente: o aparecido à Ciência; o aparecer à Filosofia; e as possibilidades à Arte. Se for aceito o conhecimento da

interação com os fenômenos e da relação entre as características dos aparecidos, então a primeira corresponderá ao conhecimento que a maioria

dos velhos possui (pelo seu tempo de vida relacionado necessariamente com a prática) numa instância individual e, numa instância universal (a

prática de vivência da humanidade), a Política e a Economia; e a segunda talvez à própria filosofia, visto que procuraria conhecer

ontologicamente o modo do aparecer desse sentido.

§ 3 – O florescer da epistemologia na morte da estética

Portanto, se a arte seria a pesquisadora das possibilidades do aparecido, é mais que evidente que a arte existe através do conhecimento.

Disso para que o título deste capítulo ocorra é um passo: a estética, enquanto o estudo principalmente de o que é a arte, na verdade resume-se

exatamente ao que é a epistemologia.

O que é a arte? Uma forma de conhecimento referida a algo que não a ciência: se a epistemologia é a parte da filosofia que se

responsabiliza pelo conhecimento, e normalmente tomamos esse conhecimento como sendo do âmbito da natureza científica, i.e., ‘como

conhecemos’ e ‘o que é a ciência’, então a própria filosofia necessitaria de outra divisão correspondente à “filosofia-logia” sendo o estudo do

‘como conhecemos o aparecer’ ou ‘o que é a filosofia’. Esta última pergunta, porém, é deveras extensa e importante, quase merecedora de uma

subdivisão só dela se não fosse o problema também da arte: é necessária a divisão de ‘como conhecemos a possibilidade’ ou ‘o que é a arte’ se

essas perguntas se encaixam perfeitamente sobre a única questão de ‘como é o conhecimento’?

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A arte não é senão a pesquisadora do conhecimento das possibilidades. Para tomar consciência do que ela é deveras, o caminho desenrola-

se de modo mais complexo do que eu esperava: para saber o que é o conhecimento das possibilidades é necessário saber antes o que é um

conhecimento, mas seria impossível compreender o conhecimento como um todo sem passar também pela filosofia e pela ciência. Não obstante a

arte seja um conhecimento, ela é também, por outro lado, uma criação, novamente necessitando compreender tanto. E, como se não bastasse,

também a arte é algo que se manifesta principalmente na história – como é perceptível através dos gênios – obrigando também o seu estudo.

Sensibilidade

Analítica da Sensibilidade

§ 1 – Sensibilidade

Todo o conhecimento humano só é adquirido por haver anteriormente uma capacidade, uma faculdade de aquisição desse conhecimento.

Chamarei aqui esta faculdade de sensibilidade.

§ 2 – Sensibilidade Prática e Teórica

De todos os tipos de conhecimento que um humano pode adquirir pela sua inerente subjetividade perceptora de fenômenos, listo aqui dois

tipos: prático e teórico.

§ 3 – Sensibilidade Prática

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Esta é a sensibilidade que se refere à vida. Tudo que fazemos e que não constatamos como um conhecimento teórico, i.e., aquelas ações

simplíssimas e banais, até despercebidas, que fazemos e adquirimos rapidez com o tempo, como, e.g., escrever, comer, varrer a casa etc.. É, de

certa forma, a sensibilidade dos velhos ante a sua vivência pelo tempo.

Tudo o que ocorre na cotidianidade sensibiliza o homem na sensibilidade prática; mas, na criação cotidiana, ela se utiliza de todos os

artifícios teóricos possíveis. A sensibilidade teórica – até mesmo a filosofia e a ciência – é utilizada, e.g.: como adorno; finalidade da criação;

eficácia do instrumento; assim como e sensibilidade prática, utilizada com a técnica praticada para a melhor atuação.

Também deve constar que a sensibilidade prática utiliza-se de todas as sensibilidades epistemológicas para que possa, na sua criação, agir

com a mais exata primazia.

§ 4 – Sensibilidades Teóricas

De todas as sensibilidades teóricas só consegui, após várias análises, reconhecer dois tipos: as adequadas e a pura.

O primeiro tipo visa a adequação do conhecimento com a realidade patente ou latente. O segundo tipo não tem tais aspirações: é, pelo

contrário, simples pesquisador da possibilidade do aparecido enquanto possibilidade puramente.

Porém, todas as sensibilidades, até mesmo a prática, referem-se às possibilidades da realidade de alguma forma. Por isso, a sensibilidade

adequada visa a possibilidade mais adequada à realidade – a mais adequada à realidade; enquanto a sensibilidade pura (ou estética) visa todas as

possibilidades.

§ 5 – Sensibilidades Adequadoras

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Neste tipo de conhecimento, reconheço toda forma de conhecimento que visa alcançar uma possibilidade. Assim é todos os ramos da

ciência – matemática, física, química, biologia, história, geografia, economia, gramática e as ciências ocultas, para citar os mais gerais – e a

própria filosofia.

Minha concepção de ciência acaba por participar bastante da de Popper e Kuhn, bons investigadores da epistemologia – participação esta

mais esclarecida no desenvolvimento da sensibilidade histórica. Às vezes penso que não fiz nada senão simplesmente aproveitar o conceito de

ciência dos dois, de modo a não fazer nada senão simplesmente espalhar suas definições para a arte e a filosofia, assim como designar uma

faculdade para cada uma desses tipos de conhecimento.

Quiçá alguns deverão me execrar por colocar a filosofia junto à ciência, mas se for notado que a sensibilidade adequadora é a faculdade

de aquisição dos conhecimentos que visam a adequação com a realidade; e que a ciência nada mais é que o estudo do aparecido, do que aparece,

enquanto a filosofia é o estudo do aparecer, as coisas começam a se aclarar. Deve-se observar somente que o estudo do aparecer que designo à

filosofia não remete a nada senão todo o âmbito que lhe é próprio e não de qualquer outro tipo de conhecimento: tanto o aparecer dos fenômenos

como concebidos de outras formas (e.g., o aparecer do realismo ingênuo em Aristóteles) – i.e, sejam eles os fenômenos da teoria Kant ou não –,

de forma a incluir toda a história da filosofia.

Os cientistas ocultos, que poderiam irresistivelmente desejar, como que por loucura, pressupor sua forma de conhecimento num quarto

tipo de ciência, por ser esse seu objeto de pesquisa “oculto” ou “transcendente” (como chamam), esclareço que pensar, e.g., numa ciência do

mundo espiritual é ainda certamente pensar numa ciência do aparecido relacionando-se com os outros aparecidos do seu espaço assim como

temos a biologia e a astronomia, cada uma no seu espaço.

§ 6 – Sensibilidade Pura

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Essa sensibilidade é a referente ao conhecimento da arte, i.e., o tipo de sensibilidade que visa o conhecimento de todas as possibilidades,

sejam elas reais ou não, mas sempre possíveis de alguma forma.

Dizer sobre o conhecimento de ‘todas as possibilidades’ na verdade referir-se-ia a toda e qualquer possibilidade, incluindo a adequada.

Por isso separei desse modo: a sensibilidade refere-se à pesquisadora do conhecimento de todas as possibilidades enquanto não-adequadas, i.e.,

puras, de maneira a atingir mais propriamente o conhecer artístico.

§ 7 – Sensibilidade Intuitiva e Sensibilidade Criativa

A sensibilidade intuitiva é somente o movimento da sensibilidade de conhecer, o primeiro movimento, que acontece no contato com outro

objeto, natural ou artificial – um fenômeno.

A sensibilidade criativa é o segundo movimento, a qual além de promover o conhecimento da prática da criação (que sensibiliza como a

sensibilidade intuitiva), gera o resultado da criação, o criado, a obra.

A nomeação de primeiro e segundo movimento da sensibilidade justifica-se pela lei da finalidade: o homem não deve conhecer pelo

conhecer, mas conhecer para fazer, ou então ele não teria sobrevivido nas eras mais remotas – o desígnio da sensibilização é a criação. Por causa

disso, que toda teorização requeira um furto, o primeiro movimento é o conhecer, o outro, a aplicação deste conhecimento: todas as

contemplações da ciência, da filosofia e da arte visam, além da criação nestas vertentes, a atuação na vida, no viver mesmo.

Referente às sensibilidades intuitivas, cada tipo corresponde a uma parte de intuição e uma parte de criação:

Percepção científica (o conhecer): compreensão dos elementos da realidade e suas relações de acordo com a melhor hipótese adquirida

pela hipotetização dedutiva; Criação científica (o teorizar) – processo de geração e tentativas de falseamento das teorias de modo a adequá-las à

realidade; Percepção filosófica (o interpretar) – compreensão crítica das possibilidades da realidade, na medida da compreensão do aparecer e

seu fundamento; Criação filosófica (o refletir) – tentativa de teorizar sobre o aparecer através da análise lógica dos poucos dados disponíveis

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sobre o transcendental; Percepção artística (o contemplar) – compreensão da totalidade das possibilidades humanas, mais propriamente

concebida puramente, i.e., não adequada; Criação artística (o criar) – tentativa da manifestação de uma nova possibilidade humana, que

sensibilize a história a uma nova possibilidade de experienciar a realidade.

§ 8 – Sensibilidade Singular e Sensibilidade Histórica

Assim como a sensibilização dá-se no indivíduo, ela também acontece com a humanidade, e ela é refletida diretamente na história: todas

as características do indivíduo, portanto, jazem também na humanidade: há o conhecimento no indivíduo e a história na humanidade; há a prática

política no primeiro, e a própria política no segundo – por isso que, se para a melhor criação individual é necessária a melhor sensibilização, a

política também deve se utilizar de todo o conhecimento adquirido para sua melhor prática e para um mais bem viver.

Aliás, se a sensibilidade criativa e a intelectiva também forem consideradas, então: Percepção prática individual (tirocínio) –

conhecimento adquirido pela prática, pelo exercício ou estágio sobre certa interação específica com os objetos; Criação prática individual (ação)

– a ação efetiva na prática, i.e., a ação não teorizadora nem pura, criadora de instrumentos úteis ou do próprio ato interessado; Percepção prática

genérica (política e economia) – o conhecimento da história do funcionamento da polis, da técnica do bem viver de seus indivíduos; Criação

prática genérica (atuação política, na polis) – ação de primeira causa individual, mas de efeito genérico, que tenta atingir o bem viver individual

na história.

Isso ocorre porque, friso, a sociedade é, enquanto interação subjetiva com o aparecido de seus fenômenos, uma construção, criação, a

partir de uma natureza humana necessária (natureza essa posterior ao seu fundante, mas uma possibilidade dele), independente, portanto, da

individualidade – natureza essa a da humanidade, manifesta na história. Por isso a existência da necessidade organizativa da sociedade junto à

contingência em suas formas de organização – essa contingência é, como ficará mais bem exposto quando eu expor sobre as criações, as

possibilidades da criação.

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§ 9 – Sensibilização Histórica

Na humanidade, a sensibilização histórica ocorre quando certa criação tenta atingir o grau de historicidade, o estatuto verdadeiro da

essência do seu tipo próprio de criação. Essa sensibilização se dá de dois modos, no indivíduo e na história, mas imperceptível pelo primeiro:

quando é atingida a sensibilização da história, através da sua propriedade historizadora – a novidade –, a criação fica, portanto, com o estatuto de

obra genial, i.e., ganha uma graduação de relevância, de mérito, de uma importância a uma rememoração e expansão ao conhecimento de outros

humanos; no caso do indivíduo, é aquele momento em que pensamos “o conhecimento disto me acrescentará algo”, “estudar isto não me

engrandecerá em nada”.

§ 10 – Os âmbitos, gêneros, tipos e graus da sensibilidade

A faculdade de conhecimento chama-se sensibilidade pela justa razão de conter graus, âmbitos e gêneros da sensibilidade de cada tipo de

conhecimento. Cada tipo de conhecimento, correspondente a sua sensibilidade, é dividido em vários gêneros, que possuem vários âmbitos, que

podem ser conhecidos com grau mais ou menos profundo.

Já expus os tipos de sensibilidade e as razões para tanto, basta compreendermos suas divisões. Os âmbitos são o que também compreendo

por ‘época’: o âmbito está ligado à noção de história, pois manifesta, ao longo do tempo, as possibilidades próprias do seu tipo através de uma

ordem ontológica e uma ordem empírica; quanto mais se conhece a história, mais sensibilizado se está enquanto os âmbitos da sensibilidade – há

o âmbito platônico e o aristotélico, e.g., e o segundo só se conhece bem quando em resposta ao primeiro, mas, ainda assim, podem ser conhecidos

separadamente, assim como se estuda Newton excluindo toda física anterior.

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Os gêneros são exatamente as divisões, classes e subclasses, da sensibilidade: através de cada especificação atinge-se uma parte de um

tipo, sendo possíveis que todos esses gêneros sempre estejam presentes durante a ordem dos âmbitos – na ciência há a matemática, biologia,

física, química etc., e o conhecimento de uma não implica necessariamente no conhecimento de outra.

§ 11 – Graus da sensibilidade

Os graus são os níveis de capacidade de percepção da relevância de cada elemento de um gênero num âmbito: quanto maior o grau, mais

claramente será concebida certa criação; maior a capacidade de julgamento sobre ela; mais rica se torna a obra; ou, até mesmo isto, possível se

torna a apreciação de certa criação.

Deveras pode ser impossível a compreensão de uma criação sem um alto grau de sensibilidade, pois é essa graduação que permite em

certos âmbitos, principalmente, a percepção dos elementos ali postos: e devo reforçar que sem um grau de sensibilidade profundo não é possível

a compreensão nem de uma criação artística, filosófica ou científica profunda. Esta é a pior ignorância, pois não possibilita a consciência da

falha, diferente da sensibilidade de âmbito – afinal sentimos a falta quando nos falta o conhecimento da história.

Esses graus são nos três tipos dados por critérios diferentes. A finesse, que seria a sensibilidade própria da filosofia, guia-se pela

percepção da relevância de um questionamento ou de uma conceituação; pelo o que o autor diz, assim como pelo o que ele não diz; pela

adequação que se propõe com a teoria, de modo a dizer ‘como é’, tendo a consciência de ‘como não é’, assim como as razões para tanto; e pela

criticidade. A configurabilidade é a sensibilidade da ciência: essa, mais facilmente explicável, é a capacidade de con-figurar, i.e., a percepção da

compatibilidade da figura, da forma teorizada, com o representado e o funcionamento interno ou externo (aparecido). E a sensibilidade própria da

arte é a própria ‘perceptibilidade pura’, ou a ‘perceptibilidade da possibilidade’: a compreensão dos elementos criados, ou seja, postos pelo

criador e não aleatórios, de modo a formar a unidade de expressão da essência de uma possibilidade em sua pureza; é a compreensão da novidade

da arte verdadeira e a mediocridade do plágio; é perceber os elementos importantes e sua função no todo formador da unidade; etc..

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Seja em qual for desses tipos, sem essa graduação não é possível perceber a relevância de uma nova possibilidade.

§ 12 – A suscetibilidade

Mas, a ‘perceptividade pura’, o grau de sensibilidade próprio da arte, não pode ser confundido com a suscetibilidade, um grau de

sensibilidade estético e aplicável completamente somente à arte.

Se a explicação dada no §2 da Introdução sobre a reminiscência estiver ainda clara, então fica fácil a compreensão da suscetibilidade: ela

é a capacidade de compreensão do sentido, de modo que quanto maior o grau, mais rápida e eficiente é a reminiscência, permitindo o gozo do

sentido da obra – a beleza das cadências e dos acordes; distorções pitorescas; as imagéticas poéticas etc..

Essa sensibilidade é a que diferencia o apreciador calado e frio do apreciador vivaz e apaixonado: um pouco consegue deixar-se acometer

do sentido; o outro consegue ligar as intuições da obra com as suas já guardadas na memória com eficácia, levando-o ao gozo intelectivo, a

alucinação mágica da arte, a contemplação do divino.

Mas, friso fortemente, aqui é onde jaz tantos problemas com a compreensão da arte, pois é esse elemento que produz tantas quimeras na

mente dos estetas fazendo-os pensar a arte ser algo tão mágico a ponto de não pertencer aos domínios da mortalidade, sendo seus criadores não

humanos – deuses. E pior: aqui jaz o gosto particular de cada um; o prevalecimento da subjetividade; a percepção individual que promove os

juízos singulares e enaltece este ou aquele autor; que nos faz esquecer a humanização que é a sensibilização epistemológica do humano – aqui

mora o péssimo argumento daqueles que dizem a arte ser o que individual decidir que é –, pois o sentido existe em sua forma a priori e a

posteriori, e, sendo este último formado somente junto com a formação do indivíduo, é ele quem nos dá a tão cara individualidade, e muito

facilmente faz, através da sua mágica inerente, pensar que ele seja o determinador da totalidade de nossos objetos contemplados.

Espero que o que já foi dito e o resto seja claro para desfazer este nó górdio.

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A Compreensão

§ 1 – A aquisição de sensibilidade

O conhecimento forma-se com a memória, a estocagem de fenômenos ou fatos objetivos, de modo ou a adquiri-los diretamente, intuindo-

os, ou indiretamente, através de colóquios, leituras etc..

A sensibilidade, enquanto a capacidade de adquirir conhecimento, é a capacidade de perceber os fatos objetivos. Dado que a sensibilidade

possui graus, a própria aquisição de conhecimento é também um aprofundamento desses graus da sensibilidade, pois dá-nos maior amplitude de

consciência, dá-nos uma concepção mais apurada do domínio ao qual essa sensibilidade pertence.

A sensibilização ocorre, portanto, pelo conhecimento de um fato diferente, o qual também é necessariamente uma nova possibilidade

daquilo ao qual o fato pertence, e.g., se os elefantes da Malásia começassem a voar e soubéssemos disso de alguma forma (direta ou

indiretamente), conheceríamos esse fato diferente, essa nova possibilidade daquilo ao qual esse fato pertence, isto é, que se um malaio subisse

num elefante de lá, sairia voando nele. Esse fato diferente é de um âmbito que antes não tínhamos ciência, o âmbito do vôo dos elefantes malaios.

Desse modo, passamos a teorizar a totalidade das nossas possibilidades, as anteriores juntamente com o novo fato, para tentar compreender todo

o conjunto dos nossos conhecimentos: a amplitude aumentada do nosso conhecimento pelo novo fato é a amplitude da nossa sensibilização. Devo

reforçar que apesar do exemplo dado ser da sensibilidade científica ele se aplica também a todas as sensibilidades epistemológicas: dadas as

novas reflexões filosóficas podemos compreender melhor o aparecer; ou dadas as novas criações compreendemos mormente a totalidade das

possibilidades humanas.

Existem, então, dois tipos de fatos: os percebidos comumente, por todos ou a maioria, e os percebidos somente com a sensibilização

anteriormente dada – esses últimos só são percebidos com a ordem de fatos anteriores. Por isso, antes de possuirmos as teorias de Darwin,

poderíamos talvez supor que o aparecimento de um cisne preto seria causa do Príncipe da Soturnez, não percebendo o fato darwiniano, i.e., não

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perceberíamos a causa como sendo não algo fantasioso e imaginativo, mas meramente genético, sem antes notar o evolucionismo e o modo da

seleção.

E esse movimento de compreensão ocorre não só no indivíduo, mas também na história. Apesar de ser mais explicado melhor

posteriormente, adianto já uma parte.

Na história também há uma ordem, de modo que as perspectivas de uma nova época venham necessariamente da época atual, pois ela dá,

a partir de si, as possibilidades do reconhecimento da nova época. Isso ocorre porque seria impossível que ocorresse o que acusam a Leonardo da

Vinci, e.g., que alguns homens ultrapassaram sua época – de modo algum: o que fizeram foi sensibilizar-se de acordo com seu avanço

conterrâneo e ter percebido, a partir disso, o que outros não perceberam, e, por isso, se fosse possível “ultrapassar sua época”, isso ocorreria com

todo e qualquer gênio. Disso também se deve notar uma ordem, pois seria impossível ir à lua antes de descobrir o fogo, e.g., ou o domínio do

metal.

O processo de compreensão pode ser compreendido mais facilmente como o de um círculo que se expande: este círculo possui as divisões

dos tipos de conhecimentos; possui também vários pontos, que são os conhecimentos; juntamos todos esses pontos de um modo tal como se

formasse um aglomerado circular; e quando notamos os pontos lançados esparsamente pela área do círculo, vemos que formam um círculo

desfigurado nas suas extremidades, podendo até alguns pontos estar a distâncias realmente desfiguradoras; a distância dos pontos com o centro é

o âmbito, e a clareza do ponto, o seu grau; de fato, aquele ponto mais distante do centro libera todo um círculo perfeito a partir do seu raio,

mostrando como compreendemos os avanços da arte, e.g., através dos avanços da ciência e da filosofia; a expansão desse círculo é o processo de

sensibilização. Talvez eu possa ainda utilizar-me do exemplo do círculo mostrando uma curiosa característica do progresso: quanto mais próximo

do centro, mais simples e belo, quanto mais distante, mais complexo e feio.

§ 2 – Sensibilização pela formação da possibilidade (teoria)

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A compreensão da possibilidade já é presente em Popper, pelo seu conceito de holofote, quando ele demonstra como teorizamos, ou

formamos uma hipótese. Essa sensibilização, apesar de mais claramente vista na observação do indivíduo, também está presente na história, mas

o processo dessa última será mais bem desenvolvido e explicitado na parte da história.

Essa teoria expõe que a nossa aquisição de conhecimentos objetivos se dá da seguinte maneira: adquirimos primeiramente os

conhecimentos diretos, pela intuição, descobrindo o funcionamento natural mais evidente; conforme cada conhecimento, tenha ele se repetido ou

não, vamos gerando possibilidades teóricas de adequação, de modo que aquelas que continuam mais estáveis vão ganhando mais segurança e

crédito; e quando há um falseamento, excluímos ela para o estabelecimento de outra, utilizando-se evidentemente, de todos os dados que

possuímos neste novo momento.

Porém devo acrescentar que, de tempos em tempos, a mudança é drástica – normalmente, é aquele momento em que nos surpreendemos

com uma teoria e com a sua explicabilidade, completamente diferente e inovadora, em relação à anterior: quando isso ocorre, é a mudança de

âmbito, passamos para um novo paradigma. Essa noção de âmbito não é muito claro na ciência, pela verossimilhança (como diz Popper) entre

certas teorias, mas na arte e na filosofia o âmbito é mais visível. Um caso fácil na filosofia de mudança de âmbito seria a passagem do período

Grego para o Medieval, com a passagem para a concepção de humano enquanto criado, ou do Medieval para o Moderno, com a virada à

subjetividade de Descartes; na arte – na música –, nosso belo período magno também nos dá um fácil exemplo – Barroco, Classicismo,

Romantismo (deveras nada seria tão eloquente).

Assim, ambas as sensibilidades (adequada e pura) possuem o mesmo movimento de compreensão das possibilidades: na filosofia e na

ciência há a teorização das possibilidades de modo a fechar o leque das possibilidades à determinação pela lei de adequação da totalidade do seu

objeto explicativo; na arte esse movimento existe somente não como sensibilizador de uma teoria, mas de toda a completude de um âmbito,

abrindo o leque de possibilidades (ao contrário da sensibilidade adequada) através dele.

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Por isso, é essência própria do conhecimento adequado a tentativa de determinação dos fenômenos; enquanto é essência própria do

conhecimento puro a não determinação, teorização, dos fenômenos, mas o seu conhecer puro.

§ 3 – Descoberta versus didática à sensibilização

Dado certo conhecimento num certo sujeito, o novo conhecimento só pode ser dado de duas formas: ou por conhecimento; ou por

descoberta.

O primeiro ocorre pelo contato com certa aparência, sendo necessário somente que a sensibilidade o perceba, sendo possível sua

compreensão e memorização. O segundo ocorre a partir dos conhecimentos dados anteriormente, os quais, quando organizados relacionando-se

entre si, descobrem outras possibilidades, e.g., se imaginarmos dois pontos, podemos descobrir infinitos pontos entre eles, e, se tivermos três

pontos quaisquer, podemos descobrir um triângulo etc..

Um novo conhecimento abre uma nova gama de relações entre outros conhecimentos anteriores, manifestando as estruturas dessas

relações, i.e., possibilitando a compreensão de uma fôrma adequadamente aplicável a qualquer outra aparência. Novamente, quando surgir uma

aparência em que não se encaixa nossa fôrma, moldamo-la para que se adéqüe como anteriormente.

Dessa forma, ainda que não haja uma sensibilização histórica empírica por parte do indivíduo, pode haver, ao que parece, certo tipo de

sensibilização transcendental dos movimentos da história, i.e, dado que a sensibilidade possui uma ordem de conhecimento, se um indivíduo

possuir uma grande inteligência (um rápido processamento intelectual de informações), bastará pouca sensibilização posterior para que ele

conheça, completando as possibilidades latentes, a estrutura anterior em sua essência.

Porém, dado que isso só é possível com um grande interesse por parte do indivíduo, outros necessitam da didática, i.e., a complementação

das estruturas possíveis de um dado âmbito sensibilizador.

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Esse didatismo, portanto, não passa de uma explicação, um explorador dos detalhes de certo âmbito. Mas como é geral a necessidade da

didática (por, o que me parece, uma preguiça de pensamento), não é suficiente que alguém faça uma obra inovadora ou um comentário rápido

inovador: é necessário que ele nos demonstre todo o âmbito dessa possibilidade, ensinando todas as possibilidades dentro dessa possibilidade, ou

então haverá uma compreensão superficial, podendo corresponder à inutilidade da criação da obra, visto que será esquecido em alguma

prateleira. Seria como assistir Duchamp colocar um vaso num museu e achar que a revolução artística é colocar vasos em museus, ou talvez

somente objetos industrializados em museus; ou então ouvir falar da possibilidade de extraterrestres e somente imaginar que eles sejam humanos:

ele seria mal compreendido de qualquer maneira.

§ 4 – Compreensão de subjetividades na criação

Explicando de outro modo, posso dizer que a sensibilização dá-se pelo conhecimento das tentativas de sobrevivência de uma

subjetividade criadora, e o que deveras acabamos por contemplar são, em essência, outras subjetividades sobreviventes possíveis que me servem

de exemplo, que passam a pertencer a mim como um modelo de modo de existência na medida em que conheço uma nova possibilidade. Aí há o

aumento da sensibilidade: na contemplação de outras subjetividades possíveis. Desse modo, a arte, a ciência e a filosofia possuem essa

propriedade de ser Humana, humanizadora, de forma patente, por serem as possibilidades da subjetividade; de modo que a contemplação de

uma obra seja, além de uma objetividade, também uma subjetividade objetivada na obra pelo criador.

§ 5 – Compreensão na sensibilidade pura

“Quanto mais se conhece, mais se aprecia”. (Edward McCurdy – The notebooks of Leonardo da Vinci)

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Como todas as sensibilizações epistemológicas encontram-se no mesmo âmbito da sensibilidade (de ser sensibilizada pelo conhecimento),

até mesmo a sensibilização estética será também pelo conhecimento. Portanto, também a contemplação da obra artística se dá através da sua

compreensão – tal como na compreensão de uma teoria científica –, mas de maneira que aqui o que se compreende também trás consigo poder

reminiscente tanto a priori como a posteriori (que são aqueles sentimentos tão fortes provocados pela arte e que nos confunde, fazendo-nos

pensar a arte mais como sensação do que compreensão).

A compreensão na arte se dá da seguinte maneira: ao perceber a obra de arte, intuímos necessariamente que esta criação só existe porque

há a possibilidade da sua existência; perceber que esta obra é possível de ser criada e que o criador só pode ser um humano, me dá

automaticamente o conhecimento da possibilidade de que eu, enquanto igualmente humano, posso também criar uma obra de arte deste mesmo

âmbito de possibilidade, se possuir os mesmos instrumentos – e isso acontece de forma patente ou latente, pois, ao ver tal obra, posso sair

correndo para fazer algo deste mesmo âmbito intuído, descoberto), assim como posso também sequer dar a mínima e, num momento futuro, criar

(seja uma criação artística ou não), necessariamente dentro dessas possibilidades que conheci até então, i.e., incluindo o desta obra o qual

falamos haver me sensibilizado.

Quem não compreende a obra de arte não se sensibiliza e não possui o conhecimento da possibilidade ali posto – e a evidência da não-

compreensão ocorre quando alguém que contemplou uma obra de arte não cria, posteriormente, no âmbito da possibilidade referente a esta obra.

Sensibilização Epistemológica

Relação entre as sensibilidades epistemológicas

§ 1 – Fundamento das ciências na sensibilidade humana

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Dado que a sensibilidade epistemológica humana distingue-se em três tipos, sensibilidade científica, filosófica e artística, também o

resultado dessas sensibilidades, suas criações, serão as ciências do homem – tudo o que o homem produz pelas suas sensibilidades

epistemológicas encaixa-se nelas.

§ 2 – O lugar da Filosofia na categorização das ciências

Observando as sensibilidades, percebe-se que a filosofia está como um intermediário entre a ciência e a arte: ciência (adequação); arte

(criação pura).

Na ciência, cada hipótese deve ser sempre falseada e só uma pode ser verdade, dada a única possibilidade adequada.

Na arte não há sequer hipotetização: há o puro argüir sobre todas as possibilidades – seu único critério de artisticidade jaz na exploração

de todas as possibilidades.

Na filosofia não há falseamento, ao menos explícito, pois não há aquisição de experiências falseadoras: todos os dados necessários para a

criação filosófica se dão a priori na percepção do mundo, não sendo necessário buscar no aparecido; portanto, a explicação do aparecer é dada

muito mais através da lógica do que da experimentação, pois é transcendental. Mas ainda só uma teoria pode ser verdadeira: por isso a seleção da

melhor teoria se dá através da maior explicabilidade englobante de todos os modos a priori de apareceres, na medida da sua aparência factual

transcendental – dado que assim como há fatos empíricos, há fatos transcendentais. Outra característica da filosofia é de possuir a sensibilização

da criticidade àquele que a possui: isso ocorre por causa da sua propriedade de não ser empírica, não possuindo a possibilidade da fácil

concepção clara de ‘o que é’, ‘o que não é’, ‘porque’ e ‘como’, e isso exige o hábil domínio da lógica aplicado aos conceitos. Basta, agora, notar

que é impossível possuir criticidade sem conceber “os não-seres de uma teoria”, i.e., as razões para que possa ser aceito o que a teoria afirma

sobre como uma coisa é, assim como as razões do que a teoria afirma como algo não é, na medida em que ela diz que é. Por isso, mesmo que se

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possa dizer “essa é a teoria filosófica final”, ou completa, ou última, mesmo assim é impossível entendê-la sem criticidade, sem dominar a

história anterior a ela, sem dominar os não-seres dela.

Destarte, a filosofia aproxima-se da ciência, dado seu caráter de adequação; e aproxima-se da arte, dado seu caráter de necessidade da

totalidade das possibilidades – esse é o lugar da filosofia no conhecimento.

Elas três participam das mesmas categorias do conhecimento, por serem do mesmo âmbito epistemológico, porém de maneiras diferentes

– por isso a posse das mesmas características em ambos, mas de maneiras contrárias.

A ciência: teoriza sobre fatos; sensibiliza pela compreensão de o que é a coisa, a qual não poderia ser de outra forma; é o conhecimento

da nossa única realidade (o aparecido).

A arte: cria sobre um material; sensibiliza pela compreensão de como a coisa poderia ser; é o conhecimento das possibilidades humanas.

A filosofia: teoriza pela totalidade das possibilidades; sensibiliza pela compreensão de como a coisa aparece; é o conhecimento das

possibilidades da realidade em seu aparecer.

Por conseqüência dessa equidade entre as ciências, também algumas das dificuldades existentes numa é facilmente também na outra, e.g.:

os filósofos reclamam do seu problema de alcançar sempre um conhecimento que é incomunicável sem enegrecimentos aos novos pupilos; por

isso, é sempre necessário “denegrir” os conceitos da filosofia para sensibilizar os novatos, e eles ainda não te entenderão – oras, na arte alcança-

se uma sensibilidade e gosto de necessidade que poucos entenderão; e na ciência é sempre necessário mostrar as partes mais básicas e simples, e

até que contradizem as mais recentes, de forma que um cientista nunca explicaria, sem denegrir sua teoria, a um pupilo. Na filosofia isso se

resolve do mesmo modo: deve-se começar do grau de sensibilidade menor para o maior, ainda que seja denegridor – porque esse problema existe,

sim, mas não é exclusivo da filosofia.

§ 4 - Observações sobre a arte entre as outras sensibilidades

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Existe a compreensão científica, que dá a clareza da compreensão das coisas enquanto aparecidos, coisas empíricas com as quais se lida

para manter são a consciência e continuar pensando (manter-se vivo); a filosofia, que dá a potência de ver com maior claridade as possibilidades

da realidade (através do englobamento das possibilidades em sua adequação), as quais a ciência não dá (pela sua exigência própria de

falseamento); e a arte, a clarificação das possibilidades humanas, que faz compreender a vida e toda mais a existência em todas as suas formas

possíveis (fantasiosas, realistas, abstratas etc.), entusiasmando o encaro com a fatalidade da vida: um mar insolúvel de questões, contradições,

sofrimentos, embates etc.. A arte possibilita ver a realidade com os olhos de alguém que vê a fantasia e a realidade acontecendo adiante e a aceita

para vivê-la; quer-se viver sua graça, alegria, tristeza, tragicidade para que se possa acordar no dia seguinte e saber que a falta de sentido não

atormenta – faz gozar mais forte!

Sensibilidade Científica

Sensibilidade Filosófica

É necessário para a filosofia listar todos os seus fatos transcendentais como são feitos na ciência.

§ 1 – A criticidade da filosofia

É-me um débito, por falar aqui sobre a filosofia, esclarecer que a filosofia não deve ser considerada um mero criticar, como alguns

acreditam, pois dizer isso seria não dizer nada sobre ela: sendo a filosofia a sensibilizadora das possibilidades da realidade na medida em que

tenta se adequar com elas no âmbito transcendental (as causas ontológicas do aparecer) – como já explicado –, sensibilizando-nos através da

reflexão para as possibilidades dessas causas, e as razões de cada possibilidade. Ao criar uma teoria, a filosofia obriga essa teoria excluir a

possibilidade das outras (afinal a sua pretensão é a de adequar-se verdadeiramente), criticando, portanto, as teorias que não a complementam e

possuem mesmo objeto explicativo.

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Compreendido que a filosofia critica deveras necessariamente, aqueles que dizem ser a essência da filosofia a crítica por criticar a todos

não se justifica, pois ou é a falta de sensibilidade para perceber o fato de que a ciência também critica todo seu âmbito. Ou também a falta de

sensibilidade para perceber o fato de que a filosofia possui a possibilidade de falar sobre todas as coisas, apesar de somente no seu âmbito de

aparecimento – o que faz com que alguns pensem a filosofia possuir toda a esfera das pesquisas, somente com a exceção do que a filosofia lhe

“tomou”.

Portanto, reforço: a filosofia possui o semblante de criticadora, por parecer criticar tudo e a todos em sua teorização, mas até a ciência o é

criticadora em todo o seu âmbito científico: a filosofia só possui um âmbito, por assim dizer, aparentemente mais lato.

Sensibilidade Estética

§ 1 – Aparente elevação da alma

Muitos autores estéticos e artistas consideram a contemplação da arte como uma “elevação da alma”, dado que a aparência que se tem é

de que ela nos promova uma evolução, assim como ela parece servir de um alimento espiritual, pelo seu caráter sublime seguido de prazer, por

todas as vezes que entramos em contato com ela. Talvez não seja injusto, pelo o que percebi até aqui, afirmar a visão destes que afirmam tais

coisas como quimérica, i.e., uma concepção filosófica com adornos da mesma natureza daquilo que fazem: arte.

Em Edgar Allan Poe percebemos uma das concepções quiméricas da sensibilização pelo conhecimento na arte: “O prazer mais intenso,

mais elevado e mais puro não se encontra mais que na contemplação do belo. Quando os homens falam em beleza, entendem precisamente uma

qualidade, mas uma impressão: em suma têm presente a violenta e pura elevação da alma...” Edgar Allan Poe.

§ 2 – Abertura de novas possibilidades humanas

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A arte nos faz perceber a realidade por um âmbito da sensibilidade que só o homem pode possuir: contemplar as aparências ao modo da

arte é ver a essência da nossa percepção das aparências, pois o mundo que percebemos não é o mundo mesmo, mas a nossa percepção do mundo

– e ao olhar pro mundo não vemos senão a nós mesmos, e quanto mais sensibilizados artisticamente, mais claramente nos vemos no mundo.

Essa essência que percebemos é completamente diferente da percebida pela ciência ou pela filosofia; as estruturas das relações

necessárias entre o aparecido ou o aparecendo: a arte manifesta a totalidade as características da subjetividade na sua existência, i.e., diante da

sua percepção no seu movimento. Pois todas as coisas que pensamos só são pensadas na medida em que são, de alguma forma, alguma

possibilidade do nosso pensamento, e a arte, por ser a exploradora incansável da totalidade das possibilidades da ação em seu resultado (na sua

criação) e da totalidade das possibilidades de paixão (na sua apreciação) é, portanto, necessariamente também a exaustora da totalidade das

possibilidades humanas: ela é a ciência de nós mesmos, em nossa totalidade.

Claro, nós mesmos pelo duplo que somos inerentemente: subjetividade a priori; e subjetividade a posteriori – i.e., o eu humano essencial,

puro, e a sua parte construída na percepção cotidiana das aparências.

§ 3 – O campo de pesquisa da arte

Não há necessidade de transferência de informações ou conhecimentos [científicos] nas obras de arte. A arte é uma produção não voltada

à informação, tendo o seu conteúdo voltado para sensibilização artística. É sempre, porém (como o é a ciência), pelo meio comunicativo.

Desse modo, é permitida à arte a informação, mas não é essa a sua meta; a informação só é válida quando utilizada para a sensibilização;

a informação, por isso, não deve ser confundida com a comunicação, que sempre existe na arte, visto que a comunicação é um provocar

entendimento, um fazer entender.

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Dado que a ciência não procura informar o contemplador, i.e., comunicá-lo um conhecimento, resta à arte somente a pesquisa pura: pelo

caso de não procurar adequar-se à realidade, somente gera o conhecimento da sua existência por ela mesma, manifestando nada além do que uma

nova possibilidade em cada uma das suas singularidades, em cada uma de suas obras.

Dado a exclusão da informação, por ser esse um conteúdo próprio da ciência, o desenvolvimento da arte dar-se-á somente pela geração

das possibilidades. Oras, nada são as possibilidades da arte senão seus modos.

As possibilidades da realidade humana são os modos da arte – e posteriormente dissertarei mais sobre os modos.

Esclarecimentos à Sensibilização Estética

§ 1 – Natural – Artificial

Apesar das faculdades humanas serem as mesmas tanto na apreciação do natural como na apreciação do artificial, nunca se aprazerá de

uma obra artística como de um objeto natural. Pois numa há a contemplação da beleza e fealdade, i.e., sua materialidade; enquanto na outra há

a contemplação da forma, da construção, da novidade.

A natureza não é a sensibilizadora por excelência, pois aquele que muito contempla a natureza, pouco consegue compreender a arte, mas

não com o contrário: quanto maior a sensibilidade artística, mais se descobre a natureza, por estarmos com a capacidade de percepção mais

aprofundada tanto à formalidade quanto à materialidade.

§ 2 – Materialidade - Formalidade

Aquele que somente contempla a materialidade da obra – e.g. a beleza de um intervalo, ou de uma cor, ou o sangue de uma morte etc. –

se engana ao pensar ser essa uma contemplação da artificialidade da obra de arte, pois não condiz com o que é a obra de arte, a forma, a

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novidade sensibilizadora impregnada nela: seria como prestar atenção à beleza da fonte dos caracteres utilizada na impressão de um texto ao

invés do conteúdo deste texto. A materialidade é somente aquilo com que se modela a obra de arte, e não a obra de arte mesma.

De certa forma, há, porém, somente a exceção do caso de quando a obra de arte é justamente a criação de uma materialidade diferente,

a qual passa, no fim das contas, a ser a forma modalizadora da obra de arte.

§ 3 – Cotidianidade – Arte

A arte, se vivida intensamente em sua contemplação, o será pela sua materialidade, pois a artificialidade da obra é comedida, e sempre

provocará uma alegria moderada, o gozo do conhecimento, o qual, nunca ultrapassando isso, não atingirá as fronteiras da loucura, apesar de ainda

provocar uma vivência mais intensa.

Pelo contrário, compreendida pela sua materialidade a arte será como a cotidianidade, pois é aí que homens sensibilizam-se pela morte de

parentes verdadeiramente, ou riem do tropeço de outrem, também verdadeiramente: por isso é necessária a compreensão da artificialidade da

obra artística, para comedir-se em sua expressão, seja trágica ou cômica, e de sua realidade pura e unicamente artística: o romântico é tão-só

aquele que dá forma à materialidade da arte através do trágico – a criação sobre a materialidade da sua vida enquanto sob a vivência da dor.

§ 4 – Arte-quimérica – Arte-compreensão

Alguns filósofos e muitos artistas, principalmente românticos, pensavam a arte ser algo extremamente mágico e voltado a um sentimento

intensíssimo: isso é próprio dos músicos e poetas, e, pior ainda, dos Românticos alemães. Eles viram na arte algo que excedia sua função.

Compreendei: a arte é a sensibilizadora voltada para compreender a vida, assim como a ciência, não uma droga que se toma para esquecê-la ou

ludibriar-se da sua realidade, i.e., do seu jogo, embate. Não é o enganador, ludibriador ou sofista, é o explicador, esclarecedor, filósofo – dá-nos

as possibilidades infinitas da realidade humana, não o engano do que ela é.

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Sensibilidade Prática

§ 1 – Caracterização básica da Sensibilidade Prática

Todo amadurecimento humano é gerado pela experiência específica de um trabalho realizado: idosos que fazem certas atividades

costumeiramente durante a vida e depois a fazem com maestria e presteza; ou garotos inocentes que se tornam mais pervertidos ou, pelo menos,

mais garanhões ao tentar infinitas vezes lidar com mulheres (assim como as mulheres se tornam mais retóricas e persuasivas ao lidarem com

homens ou mais calmas e compreensivas ao serem lidadas por eles); ou uma criança que começa martelando o dedo e com o tempo consegue

martelar todo o prego com só uma ou duas marteladas etc..

§ 2 – Encontro das sensibilidades epistemológicas na sensibilidade prática

Todas as sensibilidades epistemológicas, que são sensibilizações voltadas para elas mesmas, seja compreensão, seja criação, acabam no

final por coincidirem na sensibilidade prática, que é o momento em que essas sensibilidades atuam na vivência do humano, quando elas alteram

sua compreensão e atuação no mundo.

É com uma maior profundidade de sensibilidade filosófica que, e.g., um homem percebe a finalidade de ele agir dessa ou daquela forma

ante isso ou aquilo; ou com uma maior profundidade de sensibilidade artística que ele percebe que pode fazer algo diferente no qual os outros

sequer notam tal possibilidade; ou com uma maior profundidade de sensibilidade científica, reconhecendo a forma mais correta de proceder nesta

ou naquela circunstância.

§ 3 – Necessidade da sensibilidade prática

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E, mesmo se utilizado da filosofia, da melhor teoria científica e de todas as possibilidades artísticas que puderem ser adquiridas, todo

humano ainda pode findar em erro na prática: é a vivência que vai sensibilizando-o, de grau a grau, na prática a agir nesse âmbito não-teórico.

Sensibilização Criativa

A criação

§ 1 – Criar x Gerar

Criar significa, na realidade, simplesmente modificar, pois na natureza nada é criado, mas sim modificado, modulado, dado forma – ainda

que sejam criados novos elementos, como acontece com os “elementos artificiais” da tabela periódica, ainda assim não seria senão a modificação

de uma matéria pré-concebida que “modula-se para tal forma”. Por isso, o homem não gera: cria – o único gerador seria Deus, se seu processo de

dação de movimento ao mundo não for somente sobre essências pré-concebidas.

O que é analisado numa criação, seja científica, artística ou filosófica, destarte, é tão-somente o que o artista fez, e não os elementos

usados para a ‘modificação’ – as propriedades do material não são afinal artificiais, porém a escolha do material é ainda.

§ 2 - Manifestações através da Criação

“A criação duma qualquer obra de arte supõe sempre uma certa direcção (sic) das energias do homem”. (BAYER, Raymond – História

da Estética)

“Imaginer n'est au fond que se ressouvenir”. (Jean-François de la Harpe – Lycée, ou Cours de Littérature Ancienne et Moderne)

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Toda criação é uma manifestação de alguma ou algumas das possibilidades criativas do humano, e, portanto, faz parte do aglomerado da

totalidade das possibilidades do humano. Dentre as manifestações da criação – seja útil pela causalidade específica, e.g., furadeira para furar; pela

adequação, e.g., a teoria do existencialismo; seja pela pura, e.g., a quinta sinfonia – possui-se a manifestação da: causa da geração da

subjetividade, pois a causa do humano também possui as possibilidades dele; a liberdade da criação humana, pois há o que o humano não é capaz

de criar; o sentido, através dos âmbitos, das épocas, das obras; as ambições do humano; os tipos de criação, filosófica, científica e artística; a

auto-afirmação; etc.. Enfim, é possível o conhecimento pelo menos de parte do humano através da análise das manifestações criativas.

§ 3 – A manifestação na pureza

Mas, apesar de qualquer criação manifestar de alguma forma o humano, nenhuma é de forma mais completa que a criação pura – a arte.

Nela estão todas as possibilidades criadoras e todas as possibilidades práticas: nela é posta o agir humano em sua totalidade, seja como mera

causa, seja como imitação.

Ainda devo acrescentar que, pelas suas propriedades, arte não é menos que a manifestação total do humano, pois contemplar a arte é

contemplar toda a objetividade do homem materializada, assim como também contemplar a arte manifesta toda a possibilidade das categorias da

subjetividade, pois a arte é possível de ser dada sobre qualquer objeto conhecível, desde que de forma pura.

Mas todas as manifestações que há nas criações impuras, há também na pura.

Os tipos de criação

§ 1 – Das divisões de todas as coisas

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Para compreender a arte são necessárias três divisões: (1) Natural; (2) Artificial; (3) Histórico.

Esses graus representam: (1) a natureza, que é todas as coisas que existem, e, de certa forma, talvez possa ser incluído aí até mesmo a arte

e o homem; (2) o artificial é aquilo no qual o homem pôs sua mão, e que, na maioria das vezes, exigiu uma técnica para a sua produção, i.e., é

todo o produto do artífice, se este artífice não for Deus – pode ser artificial tanto um relógio como o acontecimento de ter uma árvore na calçada,

visto que foi um homem que pôs ela ali, mas, grosso modo, é tanto a criação voltada a certa utilidade como uma tentativa de inovação histórica;

(3) o histórico não é mais que a criação pura ou adequada que sensibilizou a história, possuindo, portanto, potência máxima de sensibilização de

um indivíduo conterrâneo qualquer que ainda não a conheça.

O artificial e o histórico ainda possuem quatro tipos, como já é de se notar por causa da sensibilidade humana, que são o científico, o

artístico, o filosófico e o prático. A obra de arte, e.g., é, por essa classificação, essencialmente artificial – nunca algo natural –, visto que não

dizemos as paisagens do Grand Canyon serem uma obra de arte: ainda que alguém plantasse uma árvore num palco ou num museu, sua

artisticidade estaria na sua estadia ali, não em sua natureza de árvore. E ela, a obra de arte, deve ser analisada a partir desse princípio, i.e., se

alguém plantar uma árvore num museu, só se apreciaria sua artisticidade, sua estadia ali.

Ainda devo considerar que tanto a arte como o artificial não devem ser considerados enquanto a criação, a forma, com um pingo de causa

natural, pois do contrário até mesmo regozijos ou excrementícios deveriam também ser considerados arte (sem que esses passassem por um palco

ou museu).

§ 2 – Criação Pura, Adequada e Útil

Apesar de haverem três tipos de criações – pura, adequada e útil –, todas essas três são tentativas de adequações a alguma coisa: criar

puramente é adequar-se à essência do humano; criar adequadamente é adequar-se à essência do aparecido; e criar utilitariamente é criar

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adequando-se à uma utilidade prática. A genialidade está na mais perfeita adequação da possibilidade, seja à essência do humano, do aparecido

ou da utilidade, que certo humano possa produzir numa certa época.

Também acrescento que a pureza da arte não vem senão da máxima liberdade de criação livre, desinteressada a uma adequação ou

utilidade, limitada pelas possibilidades que lhe são próprias (e que logo abaixo será mais bem esclarecida). Desse modo, há, obviamente, certa

liberdade até mesmo na criação útil e na adequada, permitindo a “artistificação” de uma obra não artística, ou, como preferiria dizer, permitindo

sua modulação – é o caso de um canivete, simples utilitário, possuir o desenho de um veado no cabo (desnecessário e desinteressado ao seu fim);

ou de todo aquela forma de se comunicar que conhecemos em alguns filósofos.

Isso mostra que toda criação humana, i.e., toda artificialidade tem a possibilidade de ser artística ou não, seja um simples martelo ou um

imperativo para ir à padaria – a utilidade impõe-se como uma limitação, mas o que resta como uma possibilidade de variação, aí jaz a

possibilidade de artistificação. Essa artisticidade será dada pela variedade do modo (se for sensibilizador ou não).

Dado tanto, nada menos que considerar a própria vida um material potencial à artistificação: naquelas possibilidades que restam entre

as limitações da nossa forma de existência e das que temos que passar para continuar vivos, a própria vida pode ser uma exploração das

possibilidades artistificáveis do humano. Mas isso faria mais parte da ética, e muito eu me delongaria falando disso numa obra que eu prefiro

que seja somente sobre epistemologia.

Criação útil

Tendo cada tipo de sensibilidade epistemológica sua correspondente criativa, esse corresponde à sensibilidade prática: assim como

podemos saber cavar um buraco ou o que é necessário para fazê-lo, também criamos pás ou retro-escavadeiras. Mas, em toda a criação útil não

há somente o uso da sensibilidade prática: também o de todas as outras sensibilidades. Melhor criará uma pá aquele que conhecer o

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funcionamento da terra e da mecânica humana; e ele poderá utilizar seus conhecimentos éticos para compreender este ato humano empírico a

partir de sua transcendentalidade, ou as possibilidades além da utilidade que a criação ali permite.

A criação útil manifesta as capacidades empíricas do humano de construção, assim como suas capacidades de adequação formal de uma

matéria a uma finalidade. E sua utilidade também possui relação a um interesse: a ambição de interação com a realidade aparente manifesta as

possibilidades de interesse do humano, assim como, posteriormente, as categorias de suas ambições.

Criação adequada

Esta criação não deve ser confundida com a útil, pois sua adequação é com o funcionamento da totalidade do que aparece – aparecido

(ciência), e seu aparecer (filosofia). É a tentativa de adequar o conhecimento com o que nos aparece, ao contrário do puro conhecimento das

possibilidades na criação pura. O interesse age de modo a ambicionar o humano a igualdade do que pensa ao que a coisa mostra ser, moldando a

teoria até que a compatibilidade mostre-se idêntica.

Criação pura

Assim como a criação adequada e útil, a criação pura também é interessada, mas à sensibilização. Isso ocorre porque ela só existe para a

compreensão da totalidade das possibilidades, o que é deveras muitíssimo importante. Ora, várias são as maneiras de se cavar, e várias são as

possibilidades: é o espírito artístico que possibilitará que nossa compreensão atualmente o mais adequada possível da realidade nos permita

construir uma pá ou uma retro-escavadeira – pode parecer uma compreensão demasiado rústica ou grosseira para a arte, mas é uma liberdade

possível que se mostra junto à adequação científica da escavação.

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“Destruamos todas as teorias, as poéticas e os sistemas. Derrubemos este velho gesso que mascara a fachada da arte! Não há regras

nem modelos; ou antes, não há outras regras senão as regras da natureza que plainam sobre toda arte, e as leis especiais que, para cada

composição, resultam das condições de existência próprias para cada assunto.” (Vitor Hugo – Do grotesco e do Sublime ou o prefácio de

Cromwell).

Mas apesar da pureza, i.e., da totalidade máxima das possibilidades da criação pura, evidentemente ela possui limites, ou seria a própria

totalidade absoluta. E as limitações da criação exibem o exato alcance das possibilidades criadoras do criador. Através desses limites, pouco falta

para alcançar o conhecimento das categorias, que ditam o modo de ser do criador.

Liberdade da criação pura

§ 1 – Limite da verdade – ou o problema da verdade na arte

Muitos autores estéticos dizem a arte ser a manifestadora da verdade, do ser etc.. Mas eia que não poderia ser nada disso – ou não seria

possível, em primeiro lugar, a fantasia, ou a criação de modo tão pura quanto ela é, e como a contemporaneidade mostra mais claramente.

A arte não manifesta a verdade: ela manifesta verdadeiramente. Ela não imita a natureza nem procura não imitar a natureza, ou o que quer

que seja, mas manifesta as possibilidades do seu criador – e não de uma só vez, mas de várias e várias, pois seria impossível que todas as

possibilidades manifestassem-se em uma só obra e no mesmo momento.

§ 2 – A limitação da Sensibilidade Artística

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Além disso, as possibilidades da arte estão no âmbito da sensibilidade epistemológica artística, sensitiva e criativa, não se intrometendo

nos âmbitos científico e filosófico – ao menos em tese, pois essas misturas acabam acontecendo na prática, como é o caso das obras filosóficas de

Nietzsche (e.g., Assim falou Zaratustra); e também o fato de que o conhecimento puro alcança a totalidade das possibilidades, e, por isso,

também o adequado, porém ainda em sua pureza.

§ 3 – A limitação do Modo

A arte está limitada por uma estrutura tal que só possibilite mera “variação de modo”. Essa limitação soa a mesma da música, na parte

em que possui “o primeiro tipo de contraponto”. Esse tipo é uma forma de composição pelos modos gregos que começa pela nota do modo e

termina pela mesma nota ou pela sua quinta e que possui uma variação entre a segunda e a penúltima nota com intervalos de terças e sextas,

principalmente, só para lembrar as regras principais. Considerando que há uma materialidade (os sons) e uma formalidade (o conteúdo de

expressão, e.g., de um modo dórico em uma ascensão e uma descendência somente), parece que há somente mera variação na escolha do modo

grego e as notas postas no meio (terças e sextas majoritariamente), mas arte não é só essa variação que aparenta ter o primeiro tipo de

contraponto – além do mais, exposto da maneira como o fiz.

A arte deve ser o inesperado, o impossível, o especial, o inalcançável, difícil, virtuoso, exemplar: por isso a arte está na forma, deveras,

mas somente quando essa forma pôde sensibilizar a história – se houve alguma composição assim (e.g., meramente um modo dórico em

ascensão e depois descendência, finalizando na tônica) e que tenha sido a primeira, causando espanto naqueles que a ouviram, movendo-os a

tomar essa peça como exemplo para suas próximas composições, então sim, ela é arte, caso contrário, foi só um exercício, um plágio, algo que

qualquer outro humano poderia ter feito, uma possibilidade conhecida pelos outros e que, portanto, não poderia sensibilizar ninguém mais.

§ 4 – A limitação de Sentido, a matéria da arte

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O humano possui certo rol de possibilidades de pensamento, tendo, a priori, essas possibilidades como relacionadas necessariamente

com ele. São resultado das categorias a priori da dação de sentido, e isso é o que permite o homem ter essa ou aquela idéia, pois está no seu rol

de possibilidades. Nesse rol está o humano e tudo o que há de artificial, i.e., está a essência do pensamento do homem como um todo.

O sentido humano é uma limitação da obra de arte, a matéria da arte, pois fecha os horizontes da criação pura sobre a essência do

humano: na música é necessária a relação tensão-relaxamento, ritmo, pergunta-resposta, começo-fim, frases, sentimentos etc..

Mas também com o sentido a posteriori, i.e., o sentido adquirido através da vivência, seja do autor (que possui seu sentido adquirido pela

sua sensibilização), seja da história (que possui seu sentido de acordo com o seu avanço e com sua época). Assim, seria impossível que Bach

compusesse romanticamente, ou que Beethoven pudesse ser romântico se não houvesse antes o classicismo, e, anteriormente, o barroco.

§ 5 – A limitação da matéria prima

Cada obra de arte pertence a um gênero artístico, que é compatível à matéria utilizada para sua facção. Cada matéria possui uma essência

própria, a qual limita toda obra a essa essência gerada seja pela matéria utilizada singularmente (sons), seja pela matéria utilizada misturada

(imagens em movimento e sons).

§ 6 – O limite modal do Modo Impossível

A arte possui um modo impossível: não pode ser a realidade comum. Isso porque a realidade comum não é um modo possível, mas um

modo atuando! A excrescência de um modo completamente imitativo da cotidianidade provém do fato de que esse modo é já completamente

esvaído por ela mesma – e a arte não quer nada além dos outros modos possíveis, aqueles que não conhecemos. Querendo ou não, a arte sempre

teve a necessidade de diferenciar-se da realidade cotidiana: ela é especial e diferente; precisa de atenção, e sua verdadeira intenção é, na verdade,

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de ser, ou tornar-se, a própria realidade cotidiana, mas demonstrada como numa proposta nova para ela, é a imitação da realidade possível –

vivemo-la!

Propriedade Historizadora

Materialidade e Formalidade

§ 1 – “Matéria-prima”

Como já devo ter explicado, ainda que de forma um pouco latente, toda criação possui duas partes bastante diferentes: a materialidade e a

formalidade. Essa divisão lembra bastante Aristóteles, e, para aquele que notou seus exemplos na metafísica, estes são majoritariamente sobre

objetos artificiais, criados. Porém, pouco importa, para a geração da possibilidade adequada, essa separação, pois sua materialidade é sempre a

mesma: qualquer pode ser o meio da comunicação, mas de preferência a mais eficaz – a palavra. Portanto, apesar dessa característica aplicar-se a

toda forma de conhecimento, muito mais informativa ela será para a arte.

Primeiramente, a materialidade não pode ser nada além daquilo que se utiliza como uma espécie de ‘matéria-prima’ para a criação de

qualquer coisa, mas num sentido mais lato, visto que essa materialidade alcança âmbitos até mais abstratos de matérias-primas. Há, então, duas

concepções da materialidade: o material, que pode ser a palavra, no caso da poesia, ou o som no da música; e a matéria, correspondente à

argumentação na poesia, ou ao relaxamento na música.

Cada material comporta-se na percepção de forma única em comparação com os outros materiais: os sons, por não estarem ligados a

significados, mas somente à reminiscência, i.e., à relação imitativa inconsciente das outras percepções que tivemos outrora, por isso eles tomam

um caráter muito mais emotivo do que informativo; ao contrário da história (a literatura, mais exatamente os romances), que possui um caráter

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descritivo capaz de suscitar grandiosas imaginações, assim como o decorrer da vida de humanos e a sua complexidade etc.. Todo material,

portanto, produz, através da sua percepção, uma consciência própria da essência do material – sons, sentimento; história, humano; palavras

(poesia), e organização de significados na comunicação; etc..

Cada matéria possui seu sentido inerente ao perceptor, i.e., sendo um tipo somente de consciência gerada na contemplação de uma obra de

arte, também uma harmonia singular, algo que permita compreender tal obra, faz-se presente nesta matéria: é o caso de que quando se comunica

algo na poesia, seja concebido anteriormente que o interesse a priori da palavra é dizer algo, e, portanto, se o formar for completamente disperso

ou sem sentido, razão, ordem, sem uma forma posta pelo criador, então essa aleatoriedade nada tem a dizer, e a ninguém sensibiliza, pois mais se

assemelha a olhar a vários grãos de terra no chão – ninguém repara na ordem deles ou quer saber (e nem poderia) a causa complexa daqueles

grãos estarem daquela forma dispostos. E também com cada uma dos outros gêneros artísticos possíveis: nos sons há a harmonia (é necessário

que, sempre que uma quarta aumentada seja tocada, ela seja dissonante, e é impossível que nossa razão não o perceba dessa forma - feio); nas

figuras da pintura há a representação, ou na escultura há as formas em tridimensão, etc.. Mais claro deixou Nicolau dos Santos no seu tratado de

Sonometria e Música essa relação de necessidade entre a ordenação inata da matéria artística (através da sua perspectiva sonora):

“Tratar os sons a outrance simplesmente, por imprevistos torturantes e por motivos de fugir é trivialidade do senso comum, é pecado mil

vezes mais condenável que o exagero de se acorrentar a emoção ao feixo de princípios invariáveis e dogmáticos para assim ter de exprimi-la em

tôda a sua extensão”. (sic) (Nicolau dos Santos – Sonometria e Música)

Ou, para dizer em minhas palavras: besteira maior seria esquecer as propriedades da matéria que limitar certa criação completamente até a

mais rigorosa de todas as possibilidades, procurando atingir a essência da possibilidade de certo âmbito.

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§ 2 – A forma

Toda materialidade é somente aquilo que se possui para criar algo, para dar forma. Só a formalidade, portanto, é o que resta ao artista.

Esta última, por sua vez, é mais facilmente demonstrável pelas possibilidades já demonstradas na história, mais especificadamente pelos

períodos. Posso criar algo clássico, mas posso criar algo romântico; posso alcançar a alegria de um jovem Mozart na estrutura das formas

musicais levada à sua máxima expressão junto à harmonia a mais pura possível, assim como também a lugubridade de sua velhice junto a seus

réquiens, ainda na mesma harmonia; posso ser um romântico avassalador como Beethoven, mórbido como Goethe, um ingênuo amante como

Chopin, demoníaco como Liszt; moderno e rústico como Gogh, ou sonhador como Dali; e por aí vai a enorme lista de possibilidades alcançadas

na história.

Essas possibilidades são mais genéricas – quase como se fossem as possibilidades da vivência desses gênios. Mas há uma forma mais

sutil que deve ser também levada em consideração. Se fosse dito “Lucas comprou pão / Na loja do João”, ao invés de um simples e corriqueiro

“Comprou lá” ou “ele foi pegar pão pro café”, esse foi um detalhe que deve ser reparado. Se num filme percebe-se que várias imagens são

vermelhas e que isso foi algo escolhido pelo autor, ao invés de ter deixado qualquer aleatoriedade (como se vê no filme ‘corra Lola, corra’), oras:

aí é outro detalhe. Vários são os exemplos que podemos dar – não é algo extremamente especial, mas cada uma das incontáveis escolhas que um

autor faz a cada instante em que está criando sua obra; uma simples possibilidade de escolha, por parte do intérprete, de tocar um acorde de

sétima ou um acorde cheio num dos primeiros compassos da primeira balada de Chopin.

§ 3 – Relação entre matéria e forma

A relação entre a formalidade e a materialidade não é, afinal, complexa: uma é o que permite a possibilidade; a outra é uma das

possibilidades - aquilo que é possível transformar em uma nova possibilidade sensibilizadora é forma; e assim o é na arte, na filosofia e na

ciência.

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Analisando ainda sobre o que já disseram sobre a arte, pode-se pegar o exemplo dos antigos pólos Platão e Aristóteles: o primeiro

concebia o belo como algo para ser imitado, pura e simplesmente – quanto mais bela e mais harmoniosa a arte, além de ser transcendente às

coisas comuns, melhor (porém, desse modo, a arte teria acabado junto com a renascença); o segundo foi um pouco mais longe na história, pois

concebia a arte como aquilo que deveria ser feito com os cuidados sobre a determinação, a simetria e a unidade (mas a arte já teria acabado no

século XIX). Pois digo: o belo, i.e., o sentido do humano, não só deve ser imitado como será toda a vez que algo aparecer artisticamente ao

humano – ou ainda, poderia equivaler à materialidade da obra de arte; e as determinações, simetria e unidade, i.e., as características da criação

dadas pelo artista, são as possibilidades formais básicas para a apreciação humana da arte. Ambos descreveram eximiamente o essencial

necessário para a apreciação artística, faltou só conceber a necessidade da exploração das possibilidades – mas aí faltava a eles sensibilização

histórica para tal percepção.

A Historicidade da forma

§ único – A Duchamp

Se a forma é que possui a potência da sensibilização, então só ela pode ser a historizadora, só ela possui essa propriedade incrustada na

obra, colada a ela pelo criador. A sensibilização por parte da obra, portanto, é dada por uma propriedade posta nela, e é isso que coloca a obra na

história é que precisamos saber para dizer o que é arte, visto que a arte é, assim como a ciência, algo que necessita estar na história para mostrar

artisticidade.

São os olhares que fazem um quadro. Qualquer objeto aceito como arte, torna-se artístico (cf. Le processus créatif, Marcel Duchamp).

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Dada essa concepção de Duchamp, reconhecido esteta dos últimos tempos, percebe-se facilmente sua concepção – arte é o que se

considera tanto. Se eu caminhasse com um amigo por bandas remotas e encontrasse um pedaço de quartzo no chão, poderia exaltante dizer: “veja

que bela obra de arte!”, mas não acredito que funcione exatamente assim. Se um pedaço de quartzo o qual nenhum humano pôs a mão (pois eu

poderia simplesmente tê-lo visto e apontado a ele) fosse visto, eu não poderia sequer considerá-lo com um pingo de artificialidade, quanto mais

poderíamos considerá-lo arte. Se eu pusesse, daí, esse pedaço de quartzo num museu, nada além do fato de eu tê-lo posto ali seria notado –

alguém poderia mais facilmente pensar ser uma exposição de pedras ou, se a pedra tivesse um formato representativo, a artisticidade dela

apontaria a essa forma. Se Duchamp dissesse “qualquer objeto artificial aceito como arte, torna-se artístico”, ainda assim resultaria em

problemas: eu poderia dizer que todas as coisas que o humano faz seja arte, e, no final, tudo para que olhassem poderia ser arte se eu dissesse

“veja, arte!”, “veja, arte!”, “escute, arte!”, e isso se banalizaria de tal forma que não faria sentido dizer que existem artistas, pois esse seria o

mesmo que dizer “existem humanos”; ou também não faria sentido dizer que há as coisas naturais e as artificiais, mas somente as naturais e as

artísticas; também a ciência seria arte, e a filosofia, e lavar a louça, respirar, ir ao banheiro etc. – basta dizer “veja, arte!”, esperando que o outro

aceitasse como que por uma simples retórica.

A arte não é algo que simplesmente existe pela aceitação de alguém que isso existe. Mas Duchamp mostrou haver um problema na

concepção de arte do seu tempo quando expôs aquele penico: “se até o que eu fiz pode ser considerado arte, não seria então esse mero

“considerar arte” que a faz?”. Se ele tivesse aprofundado sua visão sobre sua própria obra teria visto que não foi a aceitação que a fez, mas a

inovação, a demonstração de uma nova possibilidade, dada a sensibilização através do movimento histórico que permitiu a compreensão dessa

possibilidade. A arte está nessa inovação ali incrustada.

“O caráter estético de um objeto não é uma qualidade desse objeto, mas uma atividade do nosso eu, uma atitude que assumimos em face

do objeto.” (Denis Huisman - L'Esthétique)

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Essa conclusão foi algo mais correta, apesar de que os propósitos do autor fossem diferentes e tenha ainda concluído que o objeto não faz

parte da artistificação, pois é essa atitude que assumo ante o objeto, i.e., a atitude de conhecedor deste objeto à frente dele que me manifesta sua

artisticidade: nada além da sensibilização que ele me provocar será importante ali, nem os sentimentos subjetivos que temos diante dele, pois se

tem isso o tempo todo sobre qualquer coisa, até ciência. Porém ele ainda não considera que essa qualidade artística esteja no objeto. Pois note

que, se fosse considerado que o que quer que conheçam fosse arte ou sensibilizador, eu poderia, da mesma forma, estudar Lamarck antes de

Darwin e nunca chegar a ver este último, considerando a teoria que possuímos atualmente a mais correta. Claro que normalmente vê-se Lamarck

e contrapõe-se com Darwin, mas isso é para fins didáticos, pois afinal a história preferiu Darwin, e ele foi (ou será) a melhor hipótese até que

alguém mostrou (ou mostrará) a melhor.

Por isso, é extremamente necessária que seja uma propriedade do objeto essa artisticidade, ou então seria deixado ao léu o julgamento da

sensibilidade histórica, quando, na verdade, a sensibilização que necessito enquanto indivíduo é diferente e singular, mas o estatuto de arte só

poderia provir da história: ela é a julgadora magna e verificadora da novidade da possibilidade exposta em cada obra de arte. Ainda, para fins de

especificação, retomo para dizer que a arte, em essência, nunca é nem será o objeto criado da obra de arte, mas sua objetividade, sua artisticidade,

i.e., o significado ou sentido de suas propriedades organizadas de tal forma que causem a sensibilização histórica, na medida em que sensibilizam

a nós enquanto subjetividades conhecedoras.

Se na arte, o valor fosse outro que não o histórico, hoje não seria possível a qualquer um que seja (no grau de sensibilidade que for)

apreciar a aqueles artistas históricos, tão reconhecidos enquanto artísticos, juntamente como é possível: leio tanto Fernando Pessoa como Olavo

Bilac e Gregório de Matos; ouço Beethoven, Mozart, Bach e Chopin; e deles emana não o belo ou o feio, que é passageiro através das épocas,

mas o artístico, não mais presente nos valores estéticos desta ou aquela época, mas presente nas possibilidades do humano.

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Sensibilização Histórica

“Tudo que é belo morre no homem, mas não a arte”. (Edward McCurdy – The Notebooks of Leonardo da Vinci)

História

§ 1 – Sensibilidade do Indivíduo e da Humanidade

Dado que assim como há a sensibilização do indivíduo humano também há a da humanidade, demonstrada na história: exibirei daqui

quais são suas semelhanças e diferenças e, enfim, como ocorre a sensibilização da história, visto ser o movimento da humanidade um reflexo do

movimento do indivíduo.

§ 2 – “O homem da humanidade”

A humanidade poderia ser facilmente imaginada como um homem: suas células constituintes do corpo são os indivíduos.

Mais exatamente, o cérebro é o conjunto dos gênios e dos políticos; os glóbulos brancos são a segurança civil (do conjunto estatal da

humanidade); o fígado são os médicos; os hormônios são os ímpetos históricos; as veias e artérias são as rodovias de locomoção; o intestino é os

fazendeiros; etc..

Devo notar que o cérebro fica tanto com a parte epistemológica como prática, e que, portanto, aí jaz tanto os filósofos, cientistas e artistas,

como também os professores e os políticos, se tomarmos esses últimos como aqueles que alteram efetivamente no andamento do bem-estar da

humanidade na história.

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Grosso modo, a história é o pensamento deste “homem da humanidade”, se sensibilizando em suas ciências e sua vivência conforme o

passar do tempo. Gênio é aquele que aparece na relevância da história, é um dos pensamentos da humanidade (assim como ‘o pensamento de

Leibniz’ refere-se à filosofia criada por ele, referir-se-ia também ao ‘pensamento Leibniziano da Humanidade’); medíocres são em geral os não-

gênios, aqueles que em nada ou muito pouco ajudaram no seu avanço (por isso, um medíocre não possui um pensamente – apropria-se do já

adquirido).

Esse homem possui sua infantilidade, sua maturidade, mas não muito mais que isso posso dizer. Desse modo, há seu período menos

sensibilizado, pueril, e outro mais sensibilizado, consciente dos seus limites; e há também seu corpo, ou melhor, ele possui ambições de bem-

estar, e o seu desenvolvimento nesse ramo acontece pelo desenvolvimento da política e da economia, através de tentar livrar-se o máximo

possível da escravidão do seu próprio sustento para poder “viver em paz”.

§ 3 – As manifestações na história

Há várias possibilidades de manifestação da criação na história, a princípio: a radical; a revolucionária; a popular; a didática; e a

incompreensível.

As criações radicais e revolucionárias são as criações geniais, os pensamentos da história. Nela desenrola-se o movimento do

conhecimento na história, um tipo participando de uma parte, e o outro de outra – o primeiro alterando a época, o segundo afirmando-a –; obras

geniais revolucionárias são, e.g., as meditações cartesianas; a teoria da relatividade de Einstein; ou a privada de Duchamp. A criação didática é a

criação da prática, que se desenrola para dar acesso aos indivíduos das obras geniais – são as obras de comentadores na filosofia; os chamados

‘estudos’ na arte; e os livros didáticos da ciência. As criações populares são oriundas de um movimento humano não-histórico, melhor

desenvolvido depois no parágrafo da contradição entre público e história, que diz respeito da masturbação do humano, i.e., quando ele não se

sensibiliza, desejando o prazer repetido do que ele já conhece – é difícil dar exemplos nesse tipo de criação porque, afinal, não se tem exemplos

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fáceis na história, mas basta pensar em algum cientista, artista e filósofo que não conhecemos por não ter feito nada merecedor de tanto, como

seria o caso, contemporaneamente, de alguma música qualquer escutavam ontem e não mais hoje. E, por último, o caso da obra incompreensível,

que é a do gênio de sensibilidade que, porém, era menos didático que isso, tornando-se execrável pelas suas pseudo-besteiras – Sócrates talvez

seja um bom caso, e Beethoven, quando atingiu um romantismo mais profundo.

Movimento Ontológico do Ser

§ 1 – A necessidade dos movimentos

Dada a existência temporal do humano, são necessários para manter sua existência de indivíduo dois movimentos da sensibilidade:

conhecer; e criar. A sensibilidade, sabemos, possui graus que não são ignoráveis. Portanto é sempre necessário que, em certos momentos dados,

o homem atinja certo conhecimento “x”: e.g. num dado momento o homem inventaria a roda; num outro, o fogo; num outro, a eletricidade; num

outro iria ao espaço etc.; assim como num dado momento da arte o homem passaria pela epopéia, o lirismo, o classicismo, o romantismo; ou no

caso da filosofia, passar pela concepção do ser “externo”; depois do ser “interno” (subjetivo); etc.. As ambições humanas e os graus da

sensibilidade fazem com que todos esses avanços sejam necessários. O homem avança na história e sensibiliza a humanidade ainda que não

queira: é ontológico o seu progresso.

Obviamente há, nesses avanços, a parte empírica (ou ôntica) e a ontológica, sendo a parte desta última o âmbito mais necessário e

fundamental da invenção (não importa se a primeira roda foi de pedra ou de madeira; ou com que instrumento foi feito, basta o fato de o homem

ter saído da terra com vida e consciência e essa é a melhor maneira de exemplificar o ontológico da ida ao espaço).

A história é, portanto, a manifestação empírica do movimento ontológico do ser, dado na medida das ambições. Não é possível saber o

destino desse movimento, só se sabe que é determinado e direciona-se a algum lugar, portanto, i.e., ele possui um fim.

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§ 2 – Os dois movimentos reflexos na humanidade

Há dois movimentos no indivíduo humano: o epistemológico e o prático. Todo homem tem seus problemas para sobreviver (comer,

defecar, trabalhar), que são os que se referem àquilo o que todo homem, por ter que manter sua vida, deve passar; e seus problemas

epistemológicos, de conhecer (artístico, filosófico, científico), que é a humanização do humano. Também na humanidade há esses dois

movimentos: um referente sobre a vida do homem e sua procura social pela liberdade do trabalho e justiça, uma busca relacionada à economia e a

política, na medida do bem viver; outro referente à sensibilização epistemológica da humanidade.

Toda a vida do homem gira em torno desses movimentos: um deles tenta manter a vida da melhor maneira possível, o outro ajuda a

mantê-la (e essa é mais uma diferença entre o humano e o animal – o animal só possui o primeiro movimento, pois não precisa da ajuda senão de

seus próprios instrumentos inerentes)

§ 3 – Movimento prático

O movimento prático, tanto individual como universal, remete-se à moral. Tanto num como outro há também avanço através das mesmas

regras de avanço da ciência: subjetivamente há a percepção individual de fatos para a teorização; universalmente, i.e., politicamente há a

descoberta, através da história, da universalidade mais exata dos valores propriamente humanos.

§ 4 - Dependência das sensibilidades na história

Tanto o avanço epistemológico (o movimento ontológico do conhecimento) como o avanço político (o movimento ontológico da

libertação) deve ser considerado como uma pirâmide triangular indivisível, pois é, na base, um todo que aponta para três direções (filosofia, arte e

ciência) que coincidem todos num único ângulo (política).

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XVº SIMPÓSIO DE FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA DA UNIOESTE 25 A 28 DE OUTUBRO DE 2010 – TOLEDO - PR Página 452

Quero dizer com essa imagem que as ciências não são independentes em evolução: as evoluções sensibilizadoras de uma abrem âmbitos

de outra – não de forma a mudarem suas épocas no mesmo momento, ontológico ou empírico, mas o fazerem na mesma ordem e de maneira a

influenciarem-se na evolução. Como exemplos temos da influência da ciência grega sobre sua filosofia; da filosofia medieval sobre sua arte e

ciência; do período romântico sobre Nietzsche, ou Schopenhauer; da influência renascentista sobre Descartes, sobre Michelangelo; etc..

Somente com essa inseparabilidade do conhecimento a história caminha, e seria insano considerar o contrário, pois a época é uma questão

de âmbito, é um ponto ontologicamente dado, do qual todas as obras bebem suas inspirações: a partir do instante em que leio “Os sofrimentos do

jovem Werther”, minha vida passa a não ter o mesmo sentido que antes tinha; e agora, muito mais permissível parece o suicídio, pois minha

mente o concebe como uma possibilidade, ao contrário da aparente atrocidade de antes; e isso me faz pensar se ist [nicht] Leiden alles Leben?…

Portanto, influenciando as outras sensibilidades pelas suas próprias sensibilizações, de acordo com a necessidade da ordem dos graus,

pontos ontológicos (âmbitos) estão determinados, e eles vão sendo preenchidos empiricamente pelas possibilidades que a contingência própria de

cada grau permite.

Época

§ único - Época enquanto o grau da sensibilidade da história

Da necessidade dos movimentos de sensibilização da humanidade, surge o movimento: tentando se sensibilizar, a história percorre todos

os domínios, um por um, até o seu limite. Chamo cada domínio de época, simbolizando todos os avanços das sensibilidades num dado momento

da história. Cada época é, por assim dizer, um ponto ontológico temporal que exibe as possibilidades do humano através das suas criações.

O movimento das épocas se dá seqüencialmente, de modo que uma época libera outra época da história, o que significa que se há A, então

a próxima diferença abrirá B, e C etc., na medida dos seus eventos empíricos.

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Cada época é manifestada através dos gênios, os criadores das obras historicamente relevantes, os quais são de dois modos, equivalentes

com os dois tipos de criações movimentadores da época: gênio revolucionário e gênio radicalizador. O primeiro é o gênio precursor, aquele que

alterou o paradigma, que trouxe um novo período para a arte, ou um novo método de pesquisa filosófica – temos como exemplo Sócrates,

Descartes, Beethoven, Einstein; o segundo é o gênio que aprofunda os efeitos do gênio revolucionário, pois procura estabelecer todas as

possibilidades dessa época, corrigir todas as falhas do paradigma, ou demonstrar, na filosofia, como o método foi mal utilizado pelo seu

precursor, de modo a criar a teoria filosófica mais adequada – aqui os exemplos são Aristóteles, Locke, Liszt, S. Hawking.

Esses dois tipos de gênios são o que mudam as épocas (revolucionando) ou as reafirmam (radicalizando).

A época conduz ambas as criações e a história, pois as obras do revolucionário só existem pela necessidade da mudança de âmbitos, por

ser o presente já exaurido de possibilidades; as do radicalizador, pela necessidade de afirmar o presente, afinal não só não há necessidades de

mudança de época como a possibilidade para isso, visto que não há a perspectiva de possibilidades de uma nova época; e também a época conduz

a história porque é ela a ordem da sensibilidade da humanidade.

O movimento ontológico do conhecimento

§ 1 – “As revoluções científicas”

Muito me ajuda que já filósofos como Hegel, Popper e Kuhn tenham pesquisado o avanço da história, desvalendo-me da necessidade de

passar pelas mesmas pelejas que eles passaram. Minhas convicções não me permitem concordar plenamente nem com um nem com outro, mas

posso dizer que muito do material que eles me proporcionaram será útil para, nas próximas linhas, não só esclarecer o movimento ontológico do

conhecimento por parte da ciência, mas também da filosofia e da arte.

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Em primeira instância já antecipo que vejo a epistemologia popperiana como essencialmente a mais adequada, como é mais facilmente

concebível ao indivíduo, se lembrarmos da sua teoria do “balde e holofote”, mas nos detalhes o mérito maior é de Kuhn, ainda mais como

podemos ver na história esses detalhes, pois Popper foi aí demasiado insensível das sutis diferenças. Hegel, por outro lado, com a sua tese,

antítese e síntese, pode ser percebido no movimento mais geral do processo.

§ 2 - Funcionamento do movimento

Analisando as teorias de Popper e Kuhn, tentarei demonstrar como surge a minha compreensão.

Minha primeira reclamação a Popper é a de que ele não possui consciência do movimento ontológico, mas meramente ôntico, e, portanto,

não sabe que, aconteça o que acontecer, a humanidade progredirá – isso o faz afirmar coisas como que a concepção de revolucionário e de

radicalizador são equivocadas, como se o radicalizador fosse um revolucionário incompetente (cf. Os perigos da ciência normal). Isso também é

aparente pela sua concepção explícita textualmente de que só a ciência possui um avanço aparente. Por isso, ele não percebe que falar da

incompetência do ‘cientista puro’ (revolucionário) e do ‘cientista aplicado’ (revolucionário incompetente, radicalizador) não remete senão à

“velocidade empírica” do avanço, visto ser ele ontológico, pois poderia ter o cientista a competência que desejasse, ele resolveria os problemas

que lhe estiverem disponíveis de serem resolvidos, dado que a revolução não é sempre possível.

A única possibilidade de que todos tivessem a capacidade de criar teorias inovadoras seria a de que se todos os humanos tivessem um

ímpeto extremamente vivaz para a sensibilização, e uma educação desde o mais cedo possível em relação ao seu nascimento (ou, apelando para a

filosofia, seria como se quiséssemos que somente nascessem humanos artistas, filósofos ou cientistas de magnitude tal como a de Sócrates, Platão

e Aristóteles (mas, ainda assim, eram só eles três em Atenas)); do caso contrário, e acho que é este o caso, os pesquisadores, por não possuírem

tanta vivacidade na busca pela sensibilização, eles estariam no seu âmbito (paradigma, no caso da ciência), até que este fosse mudado, i.e., até

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que alguém percebesse um fato fora desse âmbito pela sensibilização, revolucionasse; mas, ainda assim, a difícil possibilidade de ocorrer

somente gênios revolucionários na história é mínima, senão nula, isso é uma mera suposição empírica da algo sobre-humano.

Na verdade, o movimento da filosofia não possui “correções” como na ciência, pois a sua dificuldade seria tamanha, devido à

complexidade lógica, para resolver um mero problema na teoria de algum filósofo, que muito mais compensaria simplesmente criar uma nova

teoria – apesar de haver certos “adendos”, como é o caso de Schiller a Kant. E, claro, as implicações ao transcendental (o fundante) da teoria, que

muito mais freqüentemente percebem-se como sendo alterado quando há a tentativa de alteração. Na arte, por outro lado, é exatamente adendos

que ocorrem, até que todo o âmbito seja exaurido, quando há a interrupção do revolucionário para um novo âmbito.

Popper reclama de que Kuhn possui a crença de que na criação do radicalizador seja pressuposto o âmbito para a sua criação – seu

trabalho é procurar uma possibilidade diferente a partir (dentro) desse âmbito. Não vejo problemas na existência da época, do âmbito, diferente

de Popper, e, mais adiante, essa não existência de problemas será melhor demonstrada. Ele também acusa Kuhn de que haveria intermediários

entre o revolucionário e o radicalizador – pois não: ou há o revolucionário, ou há aqueles que o apóia, intermediários são logicamente

impossíveis, i.e., ou há o negador de um paradigma (acrescentando outro), ou há o afirmador de um paradigma (onde estão os intermediários?).

Textualmente também é perceptível que Popper também não tem a consciência de o que é âmbito, pois confunde constantemente o paradigma

com uma mera teoria.

Reclamando agora um pouco de Kuhn: ele, porém, pressupõe a aceitação de um referencial comum, sugerindo a dependência da

racionalidade de um conjunto de suposições. Popper demonstra muito bem como isso é falho e como leva logicamente ao relativismo.

Contudo, é aceitável de Popper que o conhecimento surge da hipotetização dedutiva, através dos fatos e fenômenos que adquirimos, e que

com eles vamos teorizando de modo a tentar abarcar a maior quantidade de explicações possíveis, até que apareça algum evento falseador para

teorizarmos novamente. Esse é o avanço substancial da ciência (bastante perceptível no indivíduo): ela avança na medida em que tenta explicar a

maioria dos fenômenos que possui presentemente. Somente com essa parte é possível compreender o avanço pela cada vez maior explicabilidade

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de fatos, também cada vez mais abundante. Para Popper isso parece o suficiente para a explicação do movimento da ciência, mas se ele for

aplicado para a filosofia e para a arte haverá pouco sucesso: para isso entramos com os detalhes de Kuhn, que universalizam a teoria para todo o

movimento ontológico do conhecimento.

Há o paradigma, que aqui chamo âmbito, ou época, o qual é a teoria predominante, que melhor adéqua-se à realidade. Quem criou essa

teoria foi o cientista extraordinário para Kuhn, ou revolucionário para mim: depois que essa teoria mostra-se como predominante, vem os

cientistas normais, ou radicalizadores para mim, que vão corrigindo os pequenos detalhes que encontram (manifestando as possibilidades

menores desse âmbito atual), pois, afinal, a estrutura geral da teoria mostra-se consistente (é o que Popper chama de verossimilhança), tampando

os buracos e falhas da teoria explicativa, até que seja encontrado um paradigma, um âmbito, um transcendental que resolve esses problemas, ao

contrário do que pensavam (quando esse paradigma não possui mais corretibilidade, procuramos por outro, sendo que isso não demonstra a

possibilidade exata do “ad hoc”); quebra-se, então, automaticamente com esse paradigma para dar luz a outro.

Com a junção das duas teorias temos o seguinte na arte: indo de acordo com Kuhn, deve haver a época, que determina o âmbito de

possibilidades, que será mais bem desenvolvida pelo radicalizador; e de acordo com Popper, esse âmbito não pode senão ter sido iniciado pelo

revolucionário através da “teorização de uma nova teoria abarcadora dos fatos que a teoria falseada anterior não abarcava”, i.e., através do

estabelecimento de um novo âmbito, uma nova época, abarcador de novas possibilidades, quando exaurida todas as possibilidades do âmbito

anterior. Dado que na arte a pesquisa é pela variedade das possibilidades, ao invés da possibilidade mais adequada, enquanto na ciência temos o

gerador do paradigma e os seus séquitos “tapa-buracos”; a função de cada um na arte é algo mais próximo de ‘liberador inicial de âmbito’ e

‘aprimorador da totalidade das possibilidades do âmbito’. E de modo análogo com a filosofia.

Não querendo simplificar, mas já simplificando, quando Hegel disse tese, antítese e síntese, não foi nada além de que há, no movimento

da história, a afirmação de um âmbito (tese) e a sua exaustão (antítese), gerando a proposição de um novo âmbito (síntese – tese). Por isso, a nova

época será sempre estabelecida como a abertura de um novo agrupamento de possibilidades, uma tentação fechada, limitada pela sua tese,

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afirmação ontologicamente concebida; capaz de abarcar suas possibilidades adequadoras que o âmbito anterior não o fazia, por ter sido exaurido

por completo pelo seu movimento de não-ser, de antítese; até que essa bomba exploda na revolução.

§ 3 - Funcionamento da graduação

A cada nova época, a vindoura renasce das cinzas da época passada; as perspectivas do revolucionário sobre a nova época que ele traz

vêm necessariamente da época desta anterior, pois ela dá, a partir de si, as possibilidades do reconhecimento da nova época.

Sendo assim, na passagem de uma época para outra, ocorre uma revolução para a tentativa de melhores possibilidades, mas de maneira

que essas melhores possibilidades carregam necessariamente a experiência das anteriores, pois os revolucionários, porém, ainda possuem

claramente as possibilidades anteriores, e, desse modo, o progresso histórico leva sempre consigo a evolução precedente às possibilidades

seguintes – basta observar, e.g., a evolução da pintura ou da literatura.

Portanto, no momento em que uma obra de arte diferente é criada, seu âmbito de sensibilidade sensibilizadora torna-se técnica, i.e., um

pressuposto aos próximos artistas criadores, os quais devem ser pelo menos tão sensíveis quanto os artistas anteriores – assim como num curso

de filosofia não se produz filosofia, num curso de artes não se produz arte e num curso de ciência não se produz ciência: porque nos cursos

aprende-se a técnica adquirida através da história – a filosofia, a arte ou a ciência far-se-á quando o aluno estiver fora dali.

§ 4 - O processo de seleção

A seleção na história dá-se da mesma forma que a seleção no indivíduo, porém, ao indivíduo esse movimento parece quase imperceptível.

Parece-me bastante natural que nós, humanos, banalizamos aquilo que há de comum, repetido e fácil de conseguir, ao passo que

guardamos o diferente, o novo e o raro.

Daí o movimento seletivo histórico.

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As obras humanas são selecionadas pelo tempo decorrido na medida do que vale mantermos: o inédito, o novo, o grandioso (mas não, o

raro, e.g., pois pode ser demente ou insignificante) – ou ainda, uma possibilidade antes não concebida; ao mesmo tempo em que a história

“sequer percebe” o comum, repetido e fácil. Os plágios, e.g – se concebidos em sua essência de plágio, i.e., a cópia de uma possibilidade sem a

adição de outra possibilidade –, são sempre excluídos automaticamente da história.

§ 5 - Âmbitos da novidade

A novidade é o que promove a seleção da história. Não é, porém, uma simples novidade ou diferençazinha, como alguém poderia pensar

ser, e.g., se eu mudasse o último acorde perfeito da nona de Beethoven para um acorde de sétima, quebrando com toda a perfeição do final e o

relaxamento causado. O diferente e o novo são algo de mais essencial. Fazer tal alteração na nona seria uma espécie de, primeiramente, um

plágio empírico, pois copiei toda a obra dele para só “desterminá-la” (afinal, uma música não resolvida não é senão uma música “não

terminada”); e, em segundo lugar, seria uma diferença tão pequena, de tão insignificante revolução, pela facilidade de alguém pensar algo dessa

estirpe e também pela facilidade de conseguir fazer isso (pois muito mais fácil foi pra mim fazer essa alteração do que criar a nona, trabalho esse

o de Beethoven), que nada além do que nenhum crédito eu mereço ganhar.

Merece, sim, ao contrário, Beethoven – ninguém poderia ter feito aquilo senão ele: jaz ali uma dificuldade técnica enorme, que faria

alguém gastar não poucos anos de estudo intenso para simplesmente ter a capacidade de escrever sobre aquelas regras harmônicas; e também as

propriedades da obra de serem revolucionárias, precursoras –, pois que outra obra não o representa melhor, Beethoven, o precursor do

romantismo?; Isso se não quisermos entrar nos detalhes revolucionários do modo com que Beethoven criava suas obras – outra marca do seu

mérito pelas suas inovações.

Por isso, deve-se ter bastante claro que a diferença é algo de mais essencial, mas também que o mérito, ou a genialidade, se dá por uma

infinita graduação somente concebível enquanto o medidor – i.e., o grau da dificuldade para alguém naquele tempo ter imaginado aquela

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possibilidade –, mas não detalhadamente enquanto o exato grau de mérito entre esse ou aquele autor – talvez sequer possamos dizer sobre o grau

da genialidade entre um revolucionário e um radicalizador.

A revolução nas ciências particularmente

§ 1 – As sensibilidades

A busca da ciência é a melhor explicação da realidade, a possibilidade perfeita de adequação entre nossa concepção e a realidade; A

arte que a completude dos modos de viver, pensar, agir, i.e., todo o conjunto das possibilidades humanas; e a filosofia quer todas as

possibilidades de explicação do aparecimento da realidade para nós. O novo da arte busca-se pela sua característica de pureza, por isso essa

simples e pueril busca por todas as possibilidades, enquanto na ciência o que temos é a adequação, por sua clara necessidade de utilidade,

finalidade – e não seria, deveras, senão uma aberração tentar dar uma finalidade à arte e à totalidade da filosofia.

Tendo esses dados de cada ciência sobre sua própria pesquisa, e tendo sido demonstrado já o movimento ontológico do conhecimento,

exemplificarei a seguir, em sua generalidade, como esse movimento acontece em cada ciência particularmente, visto que cada uma possui sua

característica própria.

§ 2 – A Ciência

A época é o que Kuhn compreende por paradigma, que seria o âmbito geral estabelecido para as pesquisas. Ao contrário do que ele pensa,

porém, não é sempre necessário que haja um plano de referência ao próximo pensamento que tivermos: temos simplesmente um conjunto de

fatos, fenômenos, adquiridos através da experiência comum ou de uma sensibilidade mais apurada, que nos dão certamente o ponto de partida

para o próximo conhecimento, pois são eles que nos permitem conhecer o próximo conhecimento. A partir desse âmbito, que não é uma

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referência, mas é nosso horizonte mais visível até o momento, seguimos através das tentativas de falsear essa teoria, pois é a única coisa que

podemos fazer, de modo a corrigi-la quando um pequeno problema aparece, visto que ainda não temos a possibilidade de visualizar algo mais à

frente.

Porém, quando isso ocorre – teorizar de modo a abrir um novo âmbito, revolucionar –, a primeira coisa que fazemos é tentar compreender

se esse é realmente uma teoria que abarca os problemas não abarcados anteriormente, e depois conceber essa teoria como dignamente nosso novo

instrumento, assim como tentar falseá-la novamente de acordo com os procedimentos radicalizadores.

§ 3 – A Filosofia

O avanço da filosofia, porém, não se dá exatamente por essa característica de uma teoria feita por um revolucionário e problematizada e

consertada por radicalizadores, até a próxima revolução. Na filosofia não há como consertar uma teoria.

Desse modo, o que temos em questão de uma nova teoria é que ela é a expressão das possibilidades do âmbito a qual pertence, na medida

em que se dá pela alocação do transcendental: ele é o seu paradigma. Já são vários os âmbitos em nossa história, e eles se desdobram exatamente

de acordo com as ideologias, ou mais propriamente, os métodos da filosofia para encontrar o verdadeiro aparecer. Talvez possa ser compreendido

melhor pelas espécies de gênios: os revolucionários Sócrates (por ter alterado completamente o modo de compreensão das coisas em relação aos

filósofos pré-socráticos); Descartes (que deu-nos a possibilidade de pensar a subjetividade como o ‘ponto fixo arquimediano’, Kant (por resolver

o problema do racionalismo-empirismo com uma possibilidade antes impensável), etc.; e seus correspondentes radicalizadores Plotino (por ser

neo-platônico); Locke (por aproveitar-se da revolução cartesiana para propor uma compreensão diferente da sua subjetividade); Schopenhauer

(que, apesar de inovador, comparando com Kant, não foi o suficiente, a ponto de mudar suas bases).

O olhar da filosofia, assim como o da ciência, aponta para somente um lado: a compreensão da única possibilidade que se adéqua

perfeitamente à realidade, porém seu objeto de pesquisa, com dados tão escassos; assim como também a dificuldade de correção dos detalhes de

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uma teoria; não nos permite a compreensão dessa única possibilidade, mas, como uma espécie de consolo, as melhores possibilidades. Contudo,

há ainda mais problemas, pois aquele que quiser compreender a legitimidade de uma das possibilidades de adequadoras da filosofia precisa de

uma capacidade de perceber a legitimidade dos questionamentos, da profundidade e amplitude das tentativas de respostas – isso é a criticidade, a

qual sem ela não haveria a compreensão das possibilidades de adequação e de não-adequação.

§ 4 – A Arte

No começo era o caos: logo vou descrever melhor sobre isso, mas devo já lembrar que no começo da arte o que havia era uma procura

tateante para o artístico, apesar de o princípio de diferenciação das possibilidades nunca tenha deixado de existir, e, portanto, o que é deveras

válido para a arte é aquilo que explora as possibilidades do âmbito da época, banalizando sempre o mero plágio: aqui, o paradigma dá-se pela

determinação do âmbito mais completo, que é, na verdade, só mais uma das partes da sua totalidade.

Assim, quando se dá um novo âmbito, é necessário investigar todas suas possibilidades, para se dizer haver completado-o – e não lembro

de uma época que tenha sido completamente exaurida por somente um artista, difundindo sua indústria somente para algumas possibilidades de

tal âmbito. Beethoven não foi a completude do romantismo, foi necessário que Chopin viesse, e Liszt, e Mahler, e Tchaikovsky, e Brahms, e

Schumann, e Schubert – se pensarmos só na música; mas quando todos eles vieram, houve algo como que se houvesse completado o âmbito

romântico, de forma a “deixar faltando” a manifestação somente de alguns detalhes [empíricos] pequenos, pois nossa mente já havia concebido a

completude do âmbito (sua essência) e pouco inventivo ou inovador seria continuar investigando por tais bandas, paços. Assim como, na ciência,

não é necessário continuar vendo as coisas caindo para saber que vão cair.

§ 5 – Expressividade objetiva da obra de arte

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A obra de arte nunca será uma sugestão da intenção da criação da obra à subjetividade do apreciador: é apenas uma expressão

objetivada pela subjetividade do artista na medida de duas capacidades, nunca se referirá a uma intenção de criação, ela não importa em nada

ao apreciador.

Na arte não importa o que você sente subjetivamente.

O sentimento da arte se dá na subjetividade humana. Porém, erra aquele que interpreta ‘subjetividade’ como singularidade: pelo

contrário, não se preocupa com os sentimentos particularíssimos do sujeito, mas somente com a universalidade da história, o que ainda não

torna tal sentimento objetivo, nem único – e sim humano.

Ao contrário da beleza humana aos humanos, que é importante para arte pelo sentido, o gosto particular das pessoas só importa para as

teorias psicológicas ou para Freud, nunca para a arte ou para a filosofia.

Apesar de que devo lembrar ainda que pouco importa se uma obra é erudita ou popular (como o belo caso dos espanhóis), o que é

necessário é que ela sensibilize. Seria problemático se alguém não compreendesse isso, pois não-arte é tão-somente a obra criada sem

propriedades sensibilizadoras, e não necessariamente a arte popular ou gravada, como queria Adorno.

Contradição entre Época e História: Público e Humanidade

§ 1 – Masturbação e História

Quem notou bem, há aqui um problema da seleção: a masturbação individual, i.e., aquela ambição que um apreciador de assistir o mesmo

filme ou de escutar a mesma música um milhão de vezes – não aparece na história.

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Apesar de a masturbação ser uma ambição, ela não passa de uma ambição por prazer – e o prazer não possui significado. A sensibilização

da história não reconhece a masturbação porque é impossível que a humanidade sentisse prazer. O máximo que ela pode fazer é conhecer algo e

“satisfazer-se” com sua novidade.

Para demonstrar como é impossível a história também masturbar-se, basta reparar que esse processo acontece tão-somente na arte, pois

um cientista nunca gostaria de conhecer a mesma teoria novamente – é o prazer da reminiscência que causa essa masturbação.

§ 2 – Público e Humanidade

Isso nos possibilita compreender a contradição entre público e humanidade, pois o sucesso popular, diferentemente do sucesso histórico,

dá-se pelo prazer proporcionado pela masturbação, quando o público alvo é masturbado de acordo com o gosto individual agrupado nele.

Pois é a masturbação e a falta de sensibilidade histórica que ocasiona na formação do mau público, dando graças às obras erradas e

rechaçando as gênios.

§ 3 – Gosto Popular e História

Havendo o gosto da época e a seleção da história, ou faz-se um, ou faz-se o outro, ou faz-se os dois – o que possui a propriedade do novo

permanece na história, assim como o que tem a propriedade do gosto popular que possui a fama. Chopin ou Mozart atingiram a história; aquele

que for visto em alguma propaganda ao ar livre – pois pouco vale mencionar algum nome – atingiu a fama; mas aquele que atingiu tanto a

história como o gosto popular, não só ganhou fama como ficou para a história – é o caso de Beethoven, Elvis etc..

A criação à masturbação

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§ único – Movimento histórico da sensibilidade prática na epistemologia

Há o movimento da sensibilidade prática que procura o bem viver de todos; e o movimento da sensibilidade epistemológica que procura

sensibilizar os homens. A primeira caminhou até chegar no que concebemos hoje como o capitalismo; a segundo caminhou até o que

conhecemos atualmente por história da ciência, da filosofia e da arte – na pós-modernidade, com incontáveis segmentos e possibilidades. Porém,

hoje o movimento prático faz com que produzamos para vender – é o imperativo contemporâneo –, e a história só poderia agir de modo a utilizar-

se dos meios epistemológicos, assim como acontece nos atos singulares (o sujeito age na prática de modo a também utilizar-se de todo o seu

conhecimento). Desse modo, podemos ver que a história apropria-se do conhecimento da comunicação e de aparelhos pequeníssimos para

produzir algo adequado ao consumo: o celular. Mas não só a ciência fica nesse âmbito: a arte e a filosofia também produzem obras adequadas ao

consumo. Na primeira temos, por exemplo, obras literárias chamadas ‘Best Sellers’, ou músicas misturadas à poesia conhecidas como ‘músicas’

simplesmente; e na segunda temos, por exemplo, revistas expondo seus filosofemas, ou qualquer outro tipo de “filosofias”. Devemos observar

uma coisa nesse âmbito de criações adequadas ao consumo: as obras são sempre voltadas para a mais fácil compreensão do público (uma música

deve possuir um argumento de fácil compreensão e um modo de expressão comum; um livro não deve possuir palavras usualmente

desconhecidas, assim como uma história simplesmente instigadora ou mágica; e uma “filosofia” deveria só se encaixar às perspectivas públicas

para a boa aceitação), assim como não serem de difícil compreensão (pouco seria possível para esse tipo a exploração das partes mais

complicadas, que exigiriam uma finesse, uma capacidade mais apurada de percepção).

“No princípio era o caos...”

§ único – A contenda das sensibilidades no início da história

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No princípio da história havia a confusão da ciência com a filosofia e a arte. E.g., a causa do eclipse é um demônio. Isso ocorre porque há

a confusão do aparecer com o aparecido (além de uma bela imaginação), i.e., o objeto da filosofia não se desvelou completamente, pois, enquanto

o aparecer do eclipse, pode ser uma possibilidade (o demônio); enquanto aparecido, é uma hipótese. Mais especificamente não podemos negar

que a tendência é considerar isso ser uma hipótese, pois é uma relação de um aparecido, apesar da invocação de uma possibilidade um tanto

artística; porém a filosofia acaba caindo aqui misturado junto com a ciência porque a própria filosofia ainda não se separou das outras ciências –

até as ciências ainda não se separaram entre si!

Pai, perdoa, pois eles não sabem o que fazem.

“... Mas no fim haverá a paz e o descanso eterno”

§ único – Jogo e Masturbação

Se a arte dá-se somente através da criação diferente, historicamente inovadora, então minha compreensão vai de encontro com a de

Schiller: arte não é um mero jogo.

Arte é criação pura, i.e., a formalização sem finalidade útil de uma materialidade, a qual possui uma harmonia própria de acordo com a

compreensão intrínseca do humano – o que chamo de sentido. Mas, sendo o sentido limitado, quando tivermos a consciência de todas as

maneiras de montar essas pecinhas para “brincar de arte”, quando não mais for possível inovar, ou encontrar um âmbito de possibilidades ainda

não conhecido, daí a arte exibirá seu caráter meramente lúdico, caso ainda seja tentada a criação. Depois disso, historicamente será o fim da arte,

com seu último resquício de criação somente enquanto jogo masturbador; e a compreensão dar-se-á somente de obras passadas, pois não há mais

inovação presente, ou então haverá uma melhor didática deles.

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E, filosoficamente, quando tivermos toda a compreensão do sentido humano, quando tivermos todo o conhecimento da compreensão

humana, subjetiva, da realidade, então conheceremos todo o aparecimento, e não mais haverá espaço para a criação, com o conhecimento de

todas as possibilidades de adequação.

Gênio

§ 1 - O que é

“Não há senão um peso que pode fazer inclinar a balança da arte: é o gênio” (Vitor Hugo – Do grotesco e do Sublime ou o prefácio de

Cromwell).

A humanidade é formada por humanos, mas a história é formada por gênios. Nada é o gênio senão aquele que atualiza o movimento

ontológico do conhecimento. Como bem se sabe, são necessários dois tipos de gênios: o revolucionário e o radicalizador. A necessidade do

gênio existe não por alguns não terem sido capazes de conseguir, mas de não terem a fortuna de estarem preparados, sensibilizados, para tanto

antes que outro. A história é, de certa forma, uma corrida: ganha o mérito aquele que chegar primeiro.

O gênio é o seu ímpeto, pois é o ímpeto que dirige o esforço – e, através disso, ser gênio é fazer o que nenhum outro pode fazer, é ser

melhor que todos os seus conterrâneos, dizer o que em toda a história do universo conhecido jamais alguém pôde dizer: só ao gênio é possível

ludibriar um vampiro.

§ 2 – Mérito pela dificuldade

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Adoramos a Deus por ser ele superior a nós: assim também ao gênio. É maior a adoração do divino pela sua infinitude; assim também

com o gênio: maior sua genialidade quanto maior for a amplitude de sua inovação.

A amplitude da inovação só pode ser medida de uma forma: a dificuldade para a criação, de forma que seja didática aos seus

conterrâneos, ou então pouco efeito teria. Tanto na arte como na filosofia e na ciência é difícil dizer como identificar essa amplitude – talvez seja

o suficiente dizer ser o difícil.

Ainda sobre a amplitude, Popper reclama daquela que Kuhn dá a certos gênios da história, mas é o caso em que ele não percebe que a

genialidade do gênio dá-se pela amplitude da sensibilização que ele gera, e não pela categoria de gênio (revolucionário ou radicalizador) – se a

amplitude é pequena, não há do que reclamar senão do óbvio; se é grande, não é o nome “cientista normal” ou “radicalizador” que vai tirar-lhe o

crédito. Apesar de Kepler ser só radicalizador, seu feito foi grande e isso o diferencia dos pequenos pesquisadores e ponto final.

§ 3 – O que faz o gênio

“Não há gênio grandioso sem alguma mescla de loucura, pois só um espírito acicatado atreve-se a dizer certas coisas inéditas.”

(Aristóteles – O homem de gênio e a melancolia, O problema XXX)

Essa loucura da qual Aristóteles diz nada é senão a diferença que emana do gênio, mas essa não é o que há de mais necessário – esta é a

receita do gênio: basta ter ao alcance da mão o ímpeto (um motor subjetivo) da criação – o resto é só ajudas contingentes. Mas, claro, não

qualquer mera ajuda: ser sensibilizado historicamente é necessário para se ter consciência de que se infere algo deveras diferente – do contrário, a

criação tentaria a inovação às cegas.

Um chute pode, com pouquíssima probabilidade, acertar o novo; no entanto dizer que ter o conhecimento da história ajuda não esclarece o

caminho daquele que procura a genialidade: o que leva ao conhecimento suficiente da história a ponto de conhecê-la e ter o poder de reconhecer

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uma obra nova, é certo grau incomum de esforço; mas o que leva ao conhecimento suficiente da história a ponto de conhecer o que ela própria

ainda não conhece, i.e., a ponto não só de reconhecer uma obra nova mas de criar uma, é o grau extraordinariamente excepcional de esforço.

Sabe-se do esforço pela formação de Mozart e suas dezenas de milhares de horas à frente do piano; sabe-se também não só das horas de

Beethoven ao estudo da música, mas os anos de criações e correções de suas obras; Tomás de Aquino não escreveu suas obras a partir de algum

sonho ou visão que teve certo dia; e Kant, Husserl e Hegel, e.g., não dedicaram menos que toda a sua vida para a filosofia. Se o esforço não

fizesse parte da genialidade, então pouco mérito os gênios teriam.

Se mais algo é necessário ao gênio – algo como uma genialidade inata –, então eu não saberia dizer o que é: isso tudo é que pude ver na

história pela minha sensibilidade atual.

Conclusão

A partir de tais questionamentos, consegui resolver, me parece, ao menos uma parte das questões que a mim tanto importunavam já há

tempos – principalmente sobre a noção de filosofia e de arte. O que deve acontecer a partir de agora é a exposição e o diálogo, com quem estiver

disposto para tanto, para que haja a análise da utilidade deste meu esforço para a história ou, pelo menos, para alguma pessoa.

Na tentativa de resolução dessas questões que, como eu disse na introdução, eram antes pueris, mas que, com o tempo, tornaram-se

pesarosamente penosas, acabei por entrar em contato com as afirmações de outros filósofos que afirmavam o contrário. Algumas dessas

contradições são, por exemplo, a de Schiller, que afirma a arte ser um jogo: ela só possui mero caráter lúdico ao humano. Mas aqui se pôde ver

que esse caráter lúdico não poderia haver senão no fim da arte, se ela fosse feita, ou então na masturbação, visto que só essas condições trariam

consigo essa característica de mera variação entre uma forma básica que alegra o contemplador.

Também Adorno disse que a arte não poderia ser considerada, sob hipótese alguma, algo industrial ou, como as suas conclusões chegam a

afirmar na sua extremidade, que a música não poderia ser gravada, tornando-se mercadoria e deixando seu estatuto de arte. Ora, e quem poderá

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impedir que uma obra gravada não sensibilize a história? Não é a própria gravação, na sua origem, uma sensibilização da humanidade? Não

possui, a gravação, possibilidades tais que permitam, tão-somente pela gravação, efeitos inéditos, inovadores? E mais isso, que é? Que é a

novidade? Ou uma obra sensibilizadora?

Pois foi isso o que custou dizer. Novidade é aquilo que nos dá o prazer comedido do conhecimento quando essa coisa, a qual

contemplamos, compreendemos; aquilo que, quando sairmos da consciência da contemplação, limitada a seus efeitos tão próprios da

característica essencial de sua materialidade, aplicaremos em nosso viver a nova possibilidade, antes desconhecida. Sensibilização é esse

processo tornar o humano mais humano, dando a ele o que a natureza, pelo que aparece, não lhe deu e agora, como se corresse atrás do prejuízo

evolutivo, necessita pagar a dívida da subsistência para poder criar a sua manhã com um sol extra-ordinário, nunca antes visto.