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1 ZERO Joaquim Bartolomeu

ZERO

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Compilação para o 13º Premio Nacional de Poesia Sebastião da Gama

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ZERO

Joaquim Bartolomeu

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O homem da raiva

Esquarteja a máquina

Na sua fronte com potentes golpes.

Não lhe vale de nada!

Apenas fere a si próprio.

Mas a sua fraqueza de sentido,

Impede-o de parar.

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Pigmento!

Agarra-te ao pigmento!

Esquece o sentimento

Que pensas que existe à flor da pele.

É nada!

Apenas nulidade.

Dás-me vontade de rir!

Tu e todos

Que querem apoderar-se do cosmos

Como se fosse assim tão fácil.

É inútil pensar o pensar,

Visto que nunca encontraremos um rumo para nós.

Por isso desfragmento-me

Em copos vazios sucessivos

Na procura de algo mais

Para acabar com algo menos.

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Eu quero fugir à polícia

E roubar maçãs

Ao som de Carlos Paredes.

Eu quero mandar coisas ao ar,

Sem ter de explorar

O caos e o quociente

De números efémeros.

E mesmo que me doam

Os estalos è queima-roupa,

Hei-de fugir

Por caminhos de terra

Mal frequentados.

Qual conspiração, qual quê?

Nem os fantasmas santos,

Nem os velhos lá da rua

Me encontrarão.

Para além de mais fantasias

Sócrates tinha noção do que sabia

Energúmenos são aqueles que se deixam enganar

E já chega que este dia está no fim,

Enquanto o senso comum

Insiste em não desaparecer

Está na altura de escolher um rumo em busca de algo melhor.

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Neste país sem cor

Ainda há gente

Que procura saber qual o saber do universo.

Neste país sem gente

Ainda há loucos

Cheios de sanidade a monte.

Nesta praça,

Não há sentido ou direcção

Que sirva de locomotiva a qualquer género.

Acontece o que há para acontecer

E não se espera por mais que isso.

Já só resta

A esta pobre gente

Este velho ar que respiramos

Vezes sem conta

Ignorando a impureza que somos.

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Não me deixes conduzir.

Não me deixes sair.

Não me deixes resistir.

Não me deixes ir de encontro à luz.

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Num dia de chuva,

É difícil achar uma saída

Para um meio seguro.

Nos dias de chuva,

A hipocrisia fica em casa,

Com medo de se molhar.

Num dia de chuva,

Não posso ficar em casa.

Há que aproveitar

O cinza do céu,

E as ruas despidas de preconceito.

São dias de sentir a areia nos pés,

De olhar para o infinito

Na procura de um horizonte inexistente.

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Dói-me algo.

Algo que nem eu sei do que se trata.

As crianças correm loucas pela rua,

Sem saber o que fazem.

Dói-me algo,

E a fome, aperta-me o estômago,

Mas não chega a magoar.

Esta dor é desenfreada,

Sem esquemas estranhos

Que a expliquem.

Isto não é normal.

Não, não pode ser.

É capaz de ser

Aquela maldita consciência,

De que tanto

Ouvi falar

Em pequeno.

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Falta de cor

Parece que hoje o dia é cinza,

Cinza espesso,

Que não me deixa sair de casa,

Que não me deixa voltar a mim.

Por mais que esbraceje,

Não consigo afastar as nuvens,

Não tenho forças para afastar esta dor apática.

Este ruído de fundo

Que são mais gritos doentios

Que qualquer outra coisa,

Estão a dar cabo de mim

E de tudo o que ponho à mão.

Toda esta falsidade à minha volta,

É só mais carne para canhão

Para acumular a toda esta falta de cor.

Mal de mim que te sonhei, cidade.

Mal de mim, que ainda te quero.

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Hoje sinto-me divorciado do mundo.

Um agoiro dos dias que correm

Que me prende ao quarto, carente de luz.

Já só sonho a preto e branco.

Já só penso em pós-roque.

Entrei em mutação racional

E a cabeça não para de andar à roda.

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Por momentos

Existem singularidades

Inoportunas que nos paralisam.

Por momentos

Por mais vagos que sejam

Há sempre algo que corre simplesmente mal.

Não é que seja pura ciência,

Mas também não chega a ser arte,

São coisas,

Apenas coisa.

São galhos caídos involuntariamente

No meio da estrada,

Que me interrompem o rumo.

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Zero

Zero é um homem sem amigos,

Odiado por todos e mais alguns,

Ou talvez seja ao contrário.

Não se sabe bem.

É um homem que vive para si,

Que foge a qualquer movimento social.

Mesmo assim, talvez seja o mais politicamente correcto possível.

É sisudo, de expressões fechadas,

Fechadas para ele mesmo,

Um verdadeiro homem aparte.

É um quarentão de laço apertado

A quem todos olham com desdém

E desaprovação.

É o homem zero total,

Longe de tudo e todos.

É o homem Zero.

Apático.

O eremita.

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Já é noite avançada

E a procissão ainda não chegou ao adro.

Se na terra dos homens de bem

Ainda não chegou a penumbra dos vultos,

Certamente que não tardará a chegar.

Os fantasmas do passado

Vão a caminho

E não há chuva de Novembro que os pare.

Se não parece normal,

Basta olhar para a pedra

Pois, lá o está escrito,

Que daqui ninguém sairá ileso.

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Na minha terra

Ainda há males que vêm por bem,

Ainda há gente doente da cabeça

Que não sabe em quem

Há-de bater,

Não sabe por onde está o seu rasto,

Nem o daqueles que o deixaram de o ser.

É mais uma terra de ninguém,

Que não faz a mínima ideia

De onde está ou por onde estará.

É terra de perdidos nunca achados

Que não têm onde cair mortos.

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Á sexta-feira

É quase certo

Cair no deserto.

É dia de descer às profundezas

E rezar para não voltar sozinho.

É para vestir a toga do não certo.

Ela afasta-me os álibis

E os corações felpudos de outrora.

Á sexta-feira é um bom dia

Para estar por cá.

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Rotina

O que anda a matar este povo

É a rotina.

Essa mulher vadia,

Mata e mata fortemente

E vai dando cabo desta gente,

Arrancando cada pedacinho de carne

Até só restar triste osso

Agarrado ao que resta do dia.

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Andam por aí uns mal dizeres

A cerca da Maria

Que não deixam de ser

Meros prazeres

Para quem está do lado de lá do balcão.

É esquizofrénismo

Que lhe alimenta o reumático.

Assim, por um dia destes

Ela ainda se muda para outras bandas,

Pois o povo gosta destas coisas agressivas,

De percevejos na ponta da língua

E de pedras para enfiar

À força em sacos alheios.

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Todos os meus sonhos

São mentiras baratas

Cheias de nada,

Como pó transformado em vácuo.

Em pleno gesto de insignificância

Estou por cá para fazer peso ao chão,

Sem sair do meu quadrado,

De dentro da minha parede metafórica

Faço por escavar algum caos

Que me faça andar para a frente.

Por mais que esperneie

Não consigo soltar deste foco de escuridão

Que contrasta com a névoa

Da fumaça que me circunda.

Agora, qualquer insignificância

Seria ouro.

Agora, qualquer pedra atirada

A mim,

Não passaria de mais uma banalidade

Que me esfregam na cara.

Mais uma vez, e com um extenso eco,

Já nada me resta,

Só me vale a pena ver tudo a correr a frente do nariz.

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Preto no preto,

Branco no branco.

É pura evidência que a todos atinge.

Mais do que bravura,

Simples curiosidade

Que corrói a integridade dos mal amados.

É assim,

Feito monocromo,

Que se vê as páginas do calendário

A serem arrancadas

De um único puxão.

Mas é com esta inibidade

Que me ausento desta terra

Para ver se há algo bom

Fora deste perímetro.

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Estes tempos modernos,

Ai, estes tempos modernos.

As mulheres com virgo

Passam pelas ruas num ar desajeitado,

A galar os homens de bons cheiros que passam.

As outras, já sem esse castigo

Esfregam as sua caras em livros,

Ainda na procura do seu homem

Intelectual de sotaque parisiense,

Posto isto quando as duas mulheres

Não são a mesma.

É a máquina perfeita, esta mulher.

Sabe como quer, para quê, com o quê.

Mas lá no fundo nem sabe se o quer.

Complexa, e não linear.

Travessa e angelical.

Tudo o que recebo, ela multiplica,

Para o bem e para o mal.

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Nestes dias de húmido calor,

Paira no ar,

Um estranho sentido oportunista

De querer fugir dos seus sítios do costume.

É uma necessidade vã que calha a todos.

É a sensação de dissabor

Que colecta de uns e doutros

A energia para sobreviver mais um dia.

Mais do que o fugir daqui,

A procura de refúgio noutro lado qualquer.

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Por fim, calmaria.

É com enorme gosto que pego

Novamente nesta tralha,

Que há longas semanas que planeava

Vir a este velho sótão de caixas cheias de pó,

Sem ter mais nada em mente.

O que eu gosto de abrir estas caixas cheias de ar estanque.

É um consolo significativo

Depois de todo este tempo de lavoura asfixiante,

Que neste sótão tão escuro

É bom encontrar aquela janela mínima

Ali ao canto,

Abri-la,

Fazer correr o ar empoeirado.

É um momento curto demais,

Tão curto que já acabou,

E já sinto outra vez

O cheiro do peso nos ombros

Da velha lavoura.