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    Marcio Goldman*Anlise Social, vol. XLIV (190), 2009, 105-137

    Histrias, devires e fetiches das religiesafro-brasileiras: ensaio de simetrizaoantropolgica

    A partir da discusso sobre o estado actual dos estudos afro-brasileiros, este trabalhoaborda o debate, recentemente retomado, em torno das ideias outrora famosas defetiche e fetichismo. Partindo do modo como esse debate tem tido lugar nosestudos sobre as religies afro-brasileiras, so utilizados dados bibliogrficos e decampo relativos a uma dessas religies o candombl , a fim de apresentar a teorianativa do processo de criao subjacente ao que foi denominado, de fora, fetichee fetichismo. Em resumo, essa teoria sustenta que o processo de criao consistemais na actualizao de virtualidades j existentes do que na produo ex nihilo danossa cosmologia judaico-crist e capitalista.

    Palavras-chave: religies afro-brasileiras; fetichismo; histria; antropologia simtrica.

    Histories and fetishes of Afro-Brazilian religions: an essay

    in anthropological symmetrization

    Starting out from discussion of the current state of Afro-Brazilian studies, thisarticle addresses the recently revived debate over formerly widely disseminated ideasconcerning the fetish and fetishism. It first examines how that debate has beenconducted in studies of Afro-Brazilian religions, using bibliographical and field-workdata on one of those religions candombl to describe the native theory ofthe creation process which underlies that which outsiders have labelled fetish andfetishism. Briefly, the theory holds that process of creation actualizes existingvirtualities rather than producing, out of nothing, our Judaeo-Christian and capitalistcosmology.

    Keywords: Afro-Brazilian religions; fetishism; history; symmetrical anthropology.

    INTRODUO**Como em tantos outros campos da antropologia, a histria dos estudos

    antropolgicos a respeito das chamadas religies afro-brasileiras , em geral,

    * PPGAS, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Museu Nacional,Quinta da Boa Vista, s. n., So Cristvo, Rio de Janeiro, Brasil, 20940-040. e-mail:[email protected].

    ** Uma primeira verso deste texto foi apresentada em Setembro de 2007 nos colquiosAn epistemology for anthropology. International symposium (orgs. Christina Toren e Joo

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    contada por meio de um procedimento recursivo que situa essas religiesnuma histria que lhes exterior para, em seguida, reduzir o seu estudo aodesvendamento do seu verdadeiro lugar nessa histria previamente fixada.Teramos, nesse esquema, uma primeira fase evolucionista e/ou culturalista situada,grosso modo, entre o final do sculo XIX e o incio da dcada de70 , em que os autores estariam exclusivamente preocupados em detectarsobrevivncias africanas, descrevendo, para isso, o sistema de culto, osobjectos rituais, os smbolos e os mitos (viso interna, como se costumadizer). E, depois, uma reviravolta, sob a influncia da antropologia socialbritnica, sustentando, a partir de meados dos anos 70 do sculo XX, que esses

    ritos, mitos e smbolos deveriam ser analisados como a expresso de relaessociais concretas contemporneas, e no como sobrevivncias de um passadomais ou menos remoto (viso externa, portanto)1.

    de Pina Cabral, em Lisboa) e An epistemology for anthropology? A post-Lisbonsupplementary workshop (orgs. Christina Toren e Peter Gow, em Saint Andrews). Agradeoaos organizadores e participantes nos dois encontros. O artigo directamente tributrio dosencontros da Rede e Laboratrio de Antropologia Simtrica Abaet realizados, desde 2005, todasas sextas-feiras, tarde, no PPGAS-Museu Nacional-UFRJ. Agradeo a todos os participantesnesses encontros, em especial a Eduardo Viveiros de Castro, com quem os coordeno, e que, almdisso, dividiu comigo o curso Introduo a uma antropologia ps-social: redes, multiplicidadese simetrizaes (ministrado em 2006 no mesmo PPGAS), a que este trabalho tambm devemuito. Este trabalho tambm devedor do curso Simetria, reversibilidade e reflexividade naantropologia contempornea (ministrado, tambm em 2006, no PPGAS-USP). Agradeo a

    todos os alunos e professores que participaram nesses cursos, em especial a Jos GuilhermeMagnani, co-responsvel pelo segundo. Agradeo, igualmente, a Antonia Walford, GabrielBanaggia, Jaco Santana, Jlia Sauma, Martin Holbraad, Roger Sansi e Otvio Velho pela trocade ideias a respeito de diversos tpicos aqui explorados e pela ajuda em pontos especficos.A Tnia Stolze Lima tambm agradeo por isso, pela revelao do lindo trecho de Lawrencecitado adiante e por tudo o mais. A Dona Ilza, Gilmar, Gilvan e Marinho Rodrigues agradeoo pouco que sei sobre o candombl. Evidentemente, sou o nico responsvel pelos inmerosdefeitos que o texto contm.

    1 V., entre outros, Capone (2004, pp. 7-8 e 13-34), Dantas (1989, pp. 19-26), Fry (1989,pp. 13-17) e Maggie (2001, pp. 13-16). Para uma viso crtica, v. Serra (1995, pp. 44-75)e Banaggia (2008). Para simplificar muito, denomino aqui religies afro-brasileiras umconjunto algo heterclito, mas certamente articulado, de prticas e concepes religiosas cujasbases foram trazidas pelos escravos africanos e que, ao longo da sua histria, incorporaramem maior ou menor grau elementos das cosmologias e prticas indgenas, assim como do

    catolicismo popular e do espiritismo de origem europeia. Evidentemente, esses elementostransformam-se medida que so combinados, e vice-versa. Sobre essas religies pode dizer--se, quase letra, o que Guattari escreveu sobre o jazz (semelhana j observada por Opipari,2004, pp. 14-15).

    O jazz nasceu a partir de um mergulho casmico, catastrfico, que foi a escravizao daspopulaes negras nos continentes norte e sul-americano. E, depois, por meio dos maisresiduais ritornelos dessa subjectividade negra, houve uma conjuno de ritmos, de linhasmeldicas, com o imaginrio religioso do cristianismo, com dimenses residuais do imaginriodas etnias africanas, com um novo tipo de instrumentao, com um novo tipo de socializaono prprio seio da escravido e, em seguida, com encontros intersubjectivos com as msicasfolk brancas que estavam por l; houve ento uma espcie de recomposio dos territrios

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    Como escrevi recentemente (Goldman, 2005, pp. 104-105 e 119-120), no to fcil aceitar essa verso um pouco narcisista dos estudos afro-brasileiros.Em parte, porque o modelo utilizado , ele prprio, evolucionista, na medidaem que supe um inequvoco progresso entre as falsas teorias internalistas ea revelao externalista e, ao menos em parte, culturalista , uma vez que,quase invariavelmente, se ampara em supostas especificidades da sociedadebrasileira.

    Alm disso, muito claro que a maior parte dos autores geralmenteclassificados na primeira rubrica nunca deixou de se interessar por questessociopolticas mais amplas. Desde Nina Rodrigues (1900), preocupado em

    saber se os africanos no Brasil estariam aptos para a integrao na socie-dade brasileira, at Roger Bastide (1971), que explora a fascinante questodo que pode ocorrer com um sistema de crenas e valores quando perde oseu enraizamento social em sentido estrito. Nesse ltimo caso, , no mnimo,curioso que no se reconhea o carcter francamente sociolgico do modelode Bastide, que acreditava ser a dispora africana no Brasil uma espcie delaboratrio ideal para uma experincia em torno dos desajustes e reajustesentre uma superestrutura (para usar o seu vocabulrio) que perdeu a suabase e uma infra-estrutura que contribui para engendrar, mas que, aomesmo tempo, trabalhada por foras que escapam ao controlo dos agentese que actuam sobre o conjunto, modificando-o continuamente2.

    Em terceiro lugar, evidente que depois da dcada de 70 continuaram aser realizados trabalhos de pesquisa mais internalistas, seja sob a forma daanlise de sistemas cosmolgicos e rituais (por exemplo, Lpine, 1978, eSantos, 1977), seja sob a forma de monografias mais afinadas com tcnicasetnogrficas e concepes tericas que recusam, em maior ou menor grau,implcita ou explicitamente, a separao durkheimiana e estrutural-funcionalistaentre a base sociolgica e as representaes colectivas3.

    existenciais e subjectivos no seio dos quais no s se afirmou uma subjectividade de resistnciapor parte dos negros, mas que, alm do mais, abriu linhas de potencialidade para toda a histriada msica, e no unicamente para a histria da msica norte-americana lembro que Debussye Ravel, os maiores msicos ocidentais, foram extremamente influenciados por esse ritmo epor essa msica de jazz. Temos a, portanto, o exemplo de um mergulho casmico, noabandono quase total da escravido negra, que enriqueceu os mais elaborados universos musicais(Guattari, 1993, p. 120).

    2 Bastide (1971, pp. 35-36) foi o primeiro e talvez o nico a levantar a questode como conciliar perspectivas etnogrficas e sociolgicas no estudo das religies afro--brasileiras. Ou melhor, como conciliar a necessidade de levar a srio o que dizem os fiis coma tentativa de construir um quadro mais amplo dessas religies. O facto de ter separado asperspectivas em dois livros distintos (Bastide, 2000 [1958] e 1971 [1960], respectivamente)assinala que o problema no foi resolvido se que tem soluo.

    3 Entre essas monografias contam-se as de Anjos (2006), Cardoso (2004), Corra (2006[1992]), Halloy (2005), Iriart (1998), Johnson (2002), Opipari (2004), Sansi (2003), Segato(1995) e Wafer (1991), a par de outras, um pouco mais antigas, como as de Cossard (1970

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    Enfim, porque, quando bem observadas, as diferenas entre autores maisinternalistas e externalistas podem no ser to bvias como s vezes seimagina. Certamente possvel observar que a nfase parece ter sido des-viada de preocupaes com o detalhe sobre os cultos para os aspectossociolgicos e, mais especificamente, sociopolticos aparentemente maisamplos. Alm disso, uma ateno preferencial em relao a tpicos como oritual, a mitologia, a possesso, etc., foi cedendo espao a um interessecrescente pelas formas de interaco e convivncia com a chamada socie-dade abrangente. Finalmente, tambm pode, at certo ponto, ser observadoum certo deslocamento do objecto emprico de formas tidas, por vezes,

    como mais puras (o candombl baiano fornecendo o paradigma para essetipo de anlise) para aquelas mais sincrticas (como a umbanda).

    Deve-se notar, entretanto, que mesmo a perspectiva evolucionista e, porvezes, racista dos trabalhos mais antigos buscava estabelecer conexes comcontextos sociais mais abrangentes. Conexes eminentemente negativas,uma vez que a questo crucial consistia, basicamente, em tentar desvendaressa espcie de mistrio constitudo pela estranha permanncia dessas reli-gies primitivas num pas que se modernizava ou se devia modernizar.Questo resolvida, claro, com o apelo noo de sobrevivncia, queexplicava, por meio de uma espcie de inrcia prpria das instituies culturais,a permanncia das crenas e costumes africanos. Crenas e costumes que,como escreveu Arthur Ramos (1934) fiel mxima de Tylor (1913,p. 453) segundo a qual a antropologia a cincia do reformador , a lentaobra da cultura deveria extinguir progressivamente.

    O problema que em 1970 isso ainda no havia ocorrido. No ,pois, de admirar que, escrevendo justamente num momento em que asreligies de matriz africana pareciam estar a sofrer um processo de cresci-mento e expanso, os autores que comearam a pesquisar nessa dcadatenham sido tentados, por assim dizer, a fazer da necessidade virtude. Se omistrio consistia em compreender a convivncia das religies africanasno Brasil com os processos de modernizao, e se j no era possvelaplicar conceitos como os de sobrevivncia, nada melhor do que fazer daprpria modernizao a causa da permanncia e at mesmo do desenvolvi-

    mento dessas religies. Foi desse modo que se passou a uma nfase quaseexclusiva nas relaes externas dos grupos religiosos, explicando as suascaractersticas como efeito de estruturas mais amplas e mais actuais que assustentariam (Goldman, 1984, pp. 107-109, e 1985, pp. 25-31).

    e 2006), Leacock (1972), Lima (2003 [1977]) e Serra (1978). Sem dvida, elas fornecemhoje uma base etnogrfica e conceptual bem mais ampla e mais slida do que aquela de quese dispunha h alguns anos para qualquer tentativa de realizar a proposta de retomar em basesmais seguras, com um novo sentido crtico, o projecto de Roger Bastide, de um estudosinptico das religies surgidas na dispora negra (Serra, 1995, p. 10).

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    Em poucas palavras, parece-me que o que aproxima internalistas eexternalistas, a despeito das suas inegveis diferenas, o seu respeitoexcessivo pela histria. Uns e outros tendem a conceber as religies afro--brasileiras como entes mergulhados numa historicidade que no lhespertence, cabendo-lhes to-somente resistir a esse fluxo temporal exter-no mantendo-se ento imutveis ou, mais frequentemente, degradando--se lentamente at desaparecerem , ou acomodar-se a ele, passando assima sofrer transformaes que apenas repercutem aquelas, mais fundamentais,da sociedade abrangente.

    Se aceitarmos, contudo, com Deleuze e Guattari (1980, p. 537), que a

    histria somente traduz em sucesso uma coexistncia de devires, que tudocoexiste em perptua interaco (Deleuze e Guattari, 1980, p. 536) e que anica maneira de escapar do tema absurdo da sociedade sem histria ou dasociedade contra a histria (Deleuze e Guattari, 1980, p. 536) contornar aprpria histria e levar em conta a coexistncia dos elementos, esse quadrode referncias deve, necessariamente, passar por profundas alteraes4.

    Ora, exactamente este o ponto de Roger Bastide na segunda parte deAs Religies Africanas no Brasil, significativamente intitulada Estudo so-ciolgico das religies afro-brasileiras. Aps resumir as semelhanas e di-ferenas entre o candombl baiano e o xang pernambucano e constatar queas primeiras so muito mais marcantes do que as segundas que poderiam,no limite, ser atribudas exclusivamente a uma diferena de nvel econmicoentre os fiis dos dois cultos (Bastide, 1971, pp. 266-272) , o autor

    prolonga a reflexo e levanta a mesma questo para as relaes entre ocandombl e o xang, em conjunto, quando confrontados com as religiesafricanas donde teriam tido origem. A concluso que as variaes podemsempre ser atribudas necessidade de adaptao s novas condies devida (Bastide, 1971, p. 277):

    Se estudarmos, pois, com cuidado as transformaes que parecem ter--se operado na passagem do culto de um continente a outro, percebemos queessas transformaes, na realidade, no so mais do que variaesgeogrficas ou o que os antroplogos chamam algumas vezes dealternativas culturais [Bastide, 1971, p. 279].

    As variaes geogrficas explicam, por exemplo, as mudanas no calen-

    drio das festas, em funo da mudana de hemisfrio (Bastide, 1971, p. 278),ou o facto de cada terreiro cultuar todas as divindades, dado que a relativafraqueza demogrfica de cada nao impediu a constituio de confrariasseparadas por divindades (Bastide, 1971, p. 278), ou ainda as diferenas na

    4 Como escreveu recentemente Eduardo Viveiros de Castro (2007, p. 116), o devir ,literalmente, o que escapa tanto mimesis a imitao e a reproduo quanto memesis a memria e a histria. O devir amnsico, pr-histrico, anicnico e estril;ele a diferena na prtica.

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    quantidade dos orixs reconhecidos, j que a flutuao demogrfica pode fazercom que no haja devotos de um ou de outro, o que sinnimo da suadesapario, segundo o prprio modelo africano (Bastide, 1971, p. 279), eassim por diante.

    Entretanto, mais do que isso e aqui reside a novidade da contribuiode Bastide em relao a este ponto , na maior parte dos casos, as trans-formaes no so arbitrrias, mas consistem na actualizao de alternati-vas j presentes nas religies africanas, motivada pelas novas condiesobjectivas (Bastide, 1971, pp. 278-281):

    Parece-nos justamente que as oposies que podemos encontrar entre osmodelos africanos e os modelos afro-brasileiros desaparecem quandoestudamos essas diversas alternativas de ao permitidas aos prprios iorubapor suas normas culturais [] No h, portanto, diferenas de fatos, masapenas a predominncia de certos termos de alternativas num pas, e deoutros, no outro [Bastide, 1971, pp. 279-280].

    Assim, a substituio da regra de determinao de pertena a um orix (pormeio da divinao, e no da descendncia patrilateral) uma actualizao deuma alternativa j existente em frica, ainda que s utilizada em poucos casos(doenas, descoberta de orixs oriundos da linhagem materna que podem seradoptados, o facto de ter sido criado no templo de uma certa divindade,etc. Bastide, 1971, p. 280). Da mesma forma, a reduo do tempo de

    iniciao de trs anos, em frica, para nove meses, no Brasil, significa apenasa actualizao do modelo masculino africano, j diferente do feminino (Bastide,1971, p. 281). Nesse sentido, o que em frica apenas uma tendncia []e o que l no mais que uma alternativa, torna-se regra, no Brasil (Bastide,1971, p. 281), e isso, claro, em funo de presses sociolgicas, que fazemcom que as mulheres disponham de mais tempo para o culto, uma vez queos homens devem trabalhar, ou que seja muito difcil, dadas as estruturasfamiliares na escravido, estabelecer a linhagem de algum.

    Isso significa, como demonstrou bem mais recentemente Erwan Dianteill(2002, pp. 123 e 126), que nunca existiu uma religio yoruba, que mais tardeviria a sincretizar-se com outras igualmente unas e puras. A religio yoruba como qualquer outra, alis um patchworkou um complexo que

    contm inmeras possibilidades ou virtualidades que se actualizaro commaior ou menor fora segundo as situaes5. Nesse sentido, no h qualquerrazo para repetir Bastide, que limitou a sua hiptese aos candombls de

    5 Como escreveu Dianteill (2002, p. 126):

    A dinmica da expanso e transformao dos cultos locais nos territrios yoruba de factoforneceu um modelo para os escravos dessa regio. Assim, no h base real para o espanto expressopelo primeiros antroplogos cubanos [] em relao ao sincretismo afro-cubano, uma vezque essa natureza compsita j era caracterstica da religio dos yoruba antes da sua deportao.

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    origem yoruba e fon, insistindo na busca de decadncias e degeneraesquando abordava as religies de origem bantu. Como no caso dos mitosestudados por Lvi-Strauss, estamos sempre s voltas com sistemas em quecada singularidade pode e deve ser tratada como uma transformao dasdemais. Se no h origem, to-pouco h inveno.

    O FETICHISMO HOJE

    Creio que um tpico que pode permitir uma abordagem um pouco maisconcreta das questes at aqui levantadas o famoso, ou famigerado, tema

    do fetichismo. Como sabido, o termo foi empregue pela primeira vez em1760 por Charles de Brosses a fim de caracterizar a primeira religio dahumanidade. Sabe-se tambm que esse fetichismo consiste numa elabora-o do termo fetiche, cunhado nos sculos XVI e XVII por navegantes ecomerciantes portugueses e holandeses na costa ocidental de frica. Termodestinado a designar os objectos materiais que os africanos elaboravam eaos quais estranhamente atribuam supostas propriedades msticas ou religio-sas, passando ento a ador-los.

    A partir do sculo XIX, o termo conheceu um estranho destino. Por umlado, foi usado como conceito central por alguns dos principais fundadoresdas cincias humanas modernas: Comte, Marx e Freud, para citar apenas osmaiores. Por outro, foi quase unanimemente considerado por etngrafos e

    antroplogos uma simples m traduo de ideias e objectos variados e, atcerto ponto, muito heterogneos.

    Aparentemente, a srie de trs artigos que William Pietz dedicou ao assunto publicados em 1985, 1987 e 1988 na revista de esttica Res, sob o ttulogeral de O problema do fetiche reactivou um certo interesse pelos aspec-tos etnogrficos e histricos do tema, se no pela sua dimenso de conceitogeral. Pietz, de facto, traou minuciosamente a histria do que denomina umproblema-ideia singular; para isso acreditou ser necessrio refutar as quatroordens de argumentos que, segundo ele, so simultnea ou alternadamenteutilizados para afastar a possibilidade de qualquer emprego do termo fetiche.Nem os argumentos universalistas (que reduzem o fetichismo a um casoparticular de formas universais de simbolismo ou de erro lgico), nem os

    histricos (que fazem do conceito a projeco etnocntrica do discursoocidental), nem os particularistas (condenando o conceito como metnografia, resultante de textos superficiais e preconceituosos escritos porviajantes e comerciantes), o convencem. Contra a crtica etnogrfica, porexemplo, Pietz resume assim a sua tese:

    Esse mtodo ignora o estatuto histrico e transcultural desses textos,numa tentativa de reconstruir as culturas singulares das sociedadesprimitivas na sua pureza autnoma. Entretanto, tambm possvel estudar

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    esses textos coloniais e antigos relatos de viagens como produes originais,resultantes do encontro abrupto de mundos radicalmente heterogneos.Como registos descritivos, eles so frequentemente fantasmticos, mas porisso mesmo possvel encar-los como resduos da elaborao criativa denovas formas de conscincia social [Pietz, 1985, p. 6].

    Em termos muito sumrios, o fetichismo pode no dizer muita coisasobre as sociedades africanas, mas seria extremamente eloquente sobre nsmesmos. A frica, desenhada pelas narrativas a que Pietz se refere, teriafornecido a imagem sobre a qual trabalharam os filsofos iluministas e,depois deles, todos os que, de alguma forma, empregaram a noo defetichismo. Se os primeiros estenderam a crtica superstio e ao inte-resse, supostamente na base das religies africanas, a todos os tipos dereligio institudos, outros, mais tarde, daro continuidade a esse trabalho,aplicando a crtica a todo o tipo de conhecimento no cientfico, ou melhor,a todo o tipo de conhecimento definido pela cincia como no cientfico.

    Assim, se o fetichismo foi inicialmente concebido como uma espcie defalsa fsica, que aplicaria mal o princpio de causalidade, atribuindo a seresinanimados um poder que no tm, essa concepo acabou por ser substi-tuda ou suplementada pela de fetichismo como uma espcie de falsa socio-logia, que fixaria a agncia social onde ela certamente no est. E, aindaque nos dois casos sejam duas cincias que aparentemente garantem o que real e, portanto, a possibilidade de denunciar a iluso, no segundo h uma

    espcie de duplicao do processo crtico, pois uma sociologia verdadei-ra que pretende no apenas denunciar como explicar uma falsa. Devera-mos aqui prolongar a observao de Alfred Gell (1998, p. 101) acerca damagia. Do mesmo modo que esta no uma teoria fsica alternativa ou falsa,mas uma teoria que funciona na ausncia de uma teoria fsica e que tem basesnum certo tipo de experincia, o mais interessante do chamado fetichismo no que seja uma teoria sociolgica falsa, mas um saber que funciona na ausn-cia (e no na falta) de uma sociologia quer dizer, da prpria ideia desociedade. Assim como a noo de causalidade no propriedade particularda fsica, a de socialidade certamente no o da sociologia6.

    Entretanto, este no o ponto central do texto de Pietz, cujo mtodo,segundo nos diz:

    Estuda a histria do uso do fetiche como um campo de acontecimentosexemplares que no testemunham nenhum modelo ou verdade anterior ou

    6 Estendo aqui para a sociologia um procedimento adoptado por Eduardo Viveiros deCastro (no prelo), que aplicou a observao de Gell sobre a magia e a fsica ao domnio doparentesco e da biologia: O ponto de Gell pode ser transposto analogicamente para oparentesco [] Parentesco o que se tem quando se procede sem uma teoria biolgica darelacionalidade. Neste sentido, como me parece concluir o autor, o parentesco e a magia so,de facto, partes, aspectos ou dimenses dos mesmos mundos conceptuais.

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    externa ao prprio arquivo. Ele encara o fetiche como um objectoradicalmente histrico que no nada alm da totalidade das sries de seususos particulares [Pietz, 1985, p. 7].

    certo que os objectivos de Pietz no so aqueles que, em geral, osantroplogos perseguem. Apesar disso, ele toca numa questo que paira halgum tempo sobre a antropologia: seremos capazes de dizer algo interessan-te sobre outras formas de pensamento e de socialidade naquilo que tm dediferente em relao s nossas? Ou estamos limitados ao que nos parece, eque ns definimos como comum, a ns mesmos e aos outros7?

    Aparentemente, adoptando esta ltima posio, a crtica historicista dePietz logo se detm no que Latour (1996, p. 29) considera uma tolernciaexcessiva para com os usos freudianos e, principalmente, marxistas danoo de fetichismo8. Como se algum tipo de corte epistemolgico pudes-se ser estabelecido entre as falsas elucubraes de De Brosses ou dosiluministas e o estatuto verdadeiramente cientfico que Marx e Freud teriamconseguido alcanar.

    No final de contas, as consequncias do mtodo adoptado por Pietz nodeveriam deixar de intrigar os antroplogos. Por maiores que sejam a eru-dio e a profundidade dos seus textos, difcil deixarmos de indagar se, nocaso do fetichismo, os povos africanos envolvidos nessa histria de factono teriam nenhum modelo ou verdade anterior ou externa ao prprio

    arquivo ou, ao menos, se no fariam parte das sries de seus usosparticulares. Mais precisamente, se eles no teriam algo a dizer sobre oassunto, ou se aquilo que inegavelmente tm a dizer no deveria tambm, eno mnimo, fazer parte do dossier.

    Foi contra essa ausncia, de resto intencional e explcita, no texto dePietz, que um antroplogo protestou num trabalho recente:

    No que se segue examinarei a histria de Pietz a respeito da origem dofetiche para ento tentar suplementar a sua explicao (extrada quaseexclusivamente de fontes ocidentais) com algum material que nos possafazer vislumbrar o que os personagens africanos da histria podem terpensado que estava a ocorrer [Graeber, 2005, pp. 410-411].

    O protesto de David Graeber, entretanto, acaba por soar algo tmidoquando observamos que, ao longo do seu texto, o que os personagens

    7 Como lembra Bob Scholte (1984, p. 963), se verdade que a antropologia sempreprocurou derrubar as certezas da razo ocidental sobre a sua superioridade face dos outros,no o menos que ela tende sempre a esquecer que somos ns quem definimos o que o outro ou no.

    8 Aqui e em todo este trabalho abordo a histria das teorias do fetichismo do ponto devista do que entendo ser o materialismo dialectico (Pietz, 1988, p. 109).

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    africanos da histria podem ter pensado que estava a ocorrer se limita aalgumas prticas rituais e especulaes cosmolgicas muito genricas, almde a uma teoria sobre a ordem social que o autor estranhamente assimila aocontratualismo europeu (Graeber, 2005, p. 14-15). Ou seja, o discurso sobreos fetiches ou, mais precisamente, aquilo que, nesses discursos, no separece com os nossos modos de pensar e definir a realidade continua aser silenciado em benefcio daquilo que os euro-americanos, comerciantesou antroplogos, consideram fundamental.

    Alm disso, num imenso esforo para salvar o sentido marxista do fetichis-mo, Graeber conclui que os fetiches, de facto, constituem objectos que

    parecem assumir qualidades humanas, que, em ltima instncia, derivam defacto dos prprios actores (Graeber, 2005, p. 425). O equvoco dos nativosderivaria apenas, como nos lembra o autor, da extraordinria complexidadedos processos de criao, o que dificultaria a percepo da totalidade social,conduzindo compreensvel iluso de que no se responsvel por aquilo deque se pelo menos co-autor (Graeber, 2005, p. 428). Graeber observa ainda,simpaticamente, que, desse ponto de vista marxista, os fetiches africanosseriam, por assim dizer, singularmente pouco fetichizados (ou pouco fetichis-tas), uma vez que o seu carcter socialmente fabricado no poderia deixar deaparecer para actores to interessados em relaes sociais como seriam osafricanos. Na verdade, seriam os europeus, pouco preocupados com relaessociais e obcecados com os objectos de valor, que teriam projectado o seuprprio fetichismo sobre os africanos (Graeber, 2005, p. 432).

    Do ponto de vista africano, prossegue Graeber, um fetiche um deus emprocesso de construo (Graeber, 2005, p. 427), e pelo menos esse fetichis-mo pr-capitalista pode ser salvo como uma forma de criatividade social.O perigo, conclui o autor, vem quando o fetichismo d lugar teologia, acerteza absoluta de que os deuses so reais (Graeber, 2005, p. 431) almda mercadoria, claro.

    Por mais simptica que seja a posio de Graeber, ela tende a deixar-nosalgo confusos. Primeiro, porque a sua tentativa de salvar os africanos conduzida revelia deles mesmos:

    claro que seria ir longe demais dizer que a viso fetichista simplesmente verdadeira: Lunkanka no pode realmente amarrar os

    intestinos de ningum; Ravololona no pode realmente impedir que ogranizo caia sobre a plantao de ningum. Como observei em outro lugar[] em ltima instncia estamos lidando aqui apenas com o paradoxo dopoder, o poder sendo algo que s existe se outras pessoas pensarem queexiste; um paradoxo que, como igualmente argumentei, tambm reside nocorao da magia, que sempre parece rodeada por uma aura de fraude,exibicionismo e ardil. Mas poder-se-ia argumentar que isso no apenas oparadoxo do poder: tambm o paradoxo da criatividade [Graeber, 2005,p. 430, itlicos meus].

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    O que realmente difcil entender por que motivo o autor experimentaessa necessidade de limitar os saberes nativos num texto que pretende justa-mente captar a perspectiva africana sobre o problema do fetiche. Mais do queisso, o que realmente difcil de compreender de que forma a conversodo fetichismo em poder, ou mesmo em criatividade social, poderia seresclarecedora, ainda que possa ser tranquilizadora. Pois sustentar que umfetiche um deus em processo de construo pode ser muito caridoso, mas altamente duvidoso que esse enunciado possa ser aceite pelos directamenteinteressados no tema (voltarei a este ponto). E embora, como assinalou Sansi(2007, p. 27), seja difcil determinar at que ponto fetisso se tornou uma

    palavra crioula ou permaneceu apenas como expresso pidgin (posio dePietz, 1985, p. 5), tendo a acreditar que o termo tenha servido fundamental-mente para tentar explicar aos europeus algo que os africanos poderiam com-preensivelmente imaginar que estes jamais entenderiam9.

    Em segundo lugar, a tentativa de Graeber para salvar Marx conduzidajustamente a partir do que h de mais problemtico e menos original nomarxismo, a saber, o cientificismo que compartilha com boa parte do seusculo. Pois apenas desse ponto de vista que se pode sustentar a possibi-lidade de atingir uma viso privilegiada da totalidade do sistema social, sendofetichistas todos aqueles que, limitados aos seus pontos de vista particulares,esto condenados a enxergar apenas uma parte desse todo, ao qual apenasalguns privilegiados teriam acesso. Como observou Franois Chtelet (1975,

    pp. 31-32), o mais interessante em Marx no certamente esse tipo decientificismo positivista, mas um perspectivismo que abre inmeras outraspossibilidades. O Capital, como sustenta Chtelet, consiste, sobretudo, numadescrio etnogrfica e histrica do sistema capitalista efectuada do ponto devista do proletariado e no da burguesia, justamente. Que esse ponto devista tenha sido considerado mais totalizante e, em consequncia, mais verda-deiro ou cientfico, apenas contribuiu para a desgraa poltica e terica domarxismo e no deveria hoje ser utilizado nem como estratgia analtica, nem,muito menos, como postura poltica destinada a salv-lo.

    Finalmente, a fim de salvar os africanos (e o marxismo), Graeber pareceacreditar ser necessrio condenar os europeus (ao menos os capitalistas).Estes seriam os nicos que, de facto, se enganariam a respeito da natureza da

    vida colectiva, imaginando que aquilo que, na verdade, no passa daobjectificao das relaes sociais estaria na origem dessas mesmas relaes.Se a expresso me for perdoada, o nico verdadeiro fetichismo seria o da

    9 Esta parece ser, alis, a posio de Joseph Dupuis, que, escrevendo em 1824 a partirda sua experincia entre os ashanti, sustentava que fetiche evidentemente uma corruptelado portugus, provavelmente introduzida na regio pelos seus primeiros exploradores eadoptada pelos africanos a fim de adequar coisas ligadas religio, direito ou superstio compreenso dos seus visitantes (cit. in Pietz, 1987, p. 116).

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    mercadoria e o nico fetichista verdadeiro aquele que denuncia o fetichismodos outros.

    O carter, evidentemente, vicioso desse tipo de proposio no escapou aBruno Latour no pequeno, mas fundamental, livro que dedicou ao fetichismo.Alm disso, de forma bem diferente da de Graeber, Latour no pretende salvaros africanos ou o seu fetichismo. Bem pelo contrrio, o fetichismo africanoservir justamente para salvar os europeus do seu antifetichismo, ou seja, daestranha tese que parecem sustentar segundo a qual a modernidade os terialivrado de um fantasma que assombra todas as formaes pr-modernas, asaber, o fantasma da crena (Latour, 1996, pp. 9-10, 15, 29, 33-35 e 55).

    A argumentao de Latour complexa e sofisticada e dela no reterei aquimais do que um ponto, aquele em que o autor deixa claro que o seu interessepelo tema diz respeito exclusivamente sua prpria sociedade:

    Foi somente por mim, claro, que me interessei, ou antes, por essesinfelizes brancos, os quais se quer privar da sua antropologia, encerrando--os em seu destino moderno de antifetichistas [Latour, 1996, p. 96]10.

    Latour pretende, assim, demonstrar que, como toda a gente, tambm oeuropeu ligeiramente superado por aquilo que construiu (Latour, 1996,p. 43); que entre Pasteur e os fetichistas a diferena apenas de grau, no denatureza, uma vez que um e outros no so nem inteiramente realistas neminteiramente construtivistas; que possvel afirmar, tanto do cido lctico do

    primeiro quanto dos fetiches dos segundos, que so, ao mesmo tempo, des-cobertos e produzidos. O nico problema, do ponto de vista dos antroplogos, que a realizao desse projecto exige que Latour deixe explicitamente de ladoo que os fetichistas tm a dizer a respeito do que fazem, concentrando-seexclusivamente nas suas prticas (Latour, 1996, pp. 85-89).

    Este ponto aqui crucial, uma vez que nele Latour localiza o que parececonsiderar a dificuldade fundamental da antropologia, provavelmente a mes-ma que fez com que, a partir de 1991, a sua obra venha progressivamentea afastar-se da antropologia simtrica, que ento anunciava, na direco deuma nova sociologia. Assim, em 2005, Latour escrever que para que asociologia possa enfim tornar-se to boa quanto a antropologia necessrioconceder aos membros das sociedades contemporneas tanta flexibilidade

    para se definirem a si mesmos quanto aquela oferecida pelos etngrafos(Latour, 2005, p. 41). Essa derradeira e aparente homenagem, contudo, logose converte em crtica aberta. Pois tudo indica que a sociologia no sejaapenas to boa quanto a antropologia, mas melhor do que ela:

    Para o melhor e para o pior, e ao contrrio da sua irm, a antropologia,a sociologia no se satisfez jamais com a pluralidade das metafsicas: ela tem

    10 V. tambm Latour (1999, cap. 9).

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    tambm necessidade de abordar a questo ontolgica da unidade dessemundo comum [Latour, 1996, p. 259].

    Prisioneira do culturalismo e do exotismo, a antropologia no seriacapaz, portanto, de cruzar esse outro Rubico, o que conduz da metafsica ontologia (Latour, 1996, p. 117), na medida em que reduz as metafsicasque descobre a representaes, apelando para o relativismo cultural, que, nofinal de contas, acaba por pressupor a unidade de um mundo explicvel pelacincia. No se trata, pois, de tentar descrever a coerncia de um sistema depensamento (Latour, 1996, p. 90), mas de reconhecer que:

    Encontro mais exatido no meu fermento de cido lctico se o iluminocom a luz das divindades do candombl. No mundo comum da antropologiacomparada, as iluminaes cruzam-se. As diferenas no existem para seremrespeitadas, ignoradas ou subsumidas, mas para servirem de chamariz paraos sentimentos, de alimento para o pensamento [Latour, 1996, pp. 102-103].

    Compreende-se perfeitamente que, ao estudar cientistas, Latour tenhaadoptado como mtodo uma ateno, se no exclusiva, ao menos privilegiadadas suas prticas. Na medida em que tendemos a conceder cincia o direitode definir a nossa realidade, o discurso dos cientistas teria, sem dvida, opoder de impor como pontos de vista os recortes e as categorias que, ao

    invs, se trata de estudar. No entanto, no assim que as coisas se passamquando escutamos um fetichista ou um adepto do candombl. Os seusdiscursos, ao contrrio daqueles dos cientistas, tendem a ser consideradosfalsos ou, em todo o caso, como enunciando uma verdade que no anossa; nesse sentido, possuem um potencial de desestabilizao dos nossosmodos de pensar e definir o real, que, creio, cabe aos antroplogos explo-rarem. O que significa que a simetria entre a anlise das prticas cientficase aquelas dos africanos ou do candombl s pode ser obtida mediante aintroduo de uma assimetria compensatria, destinada a corrigir uma situa-o assimtrica inicial. Mais ou menos que uma antropologia simtrica,tratar-se-ia ento de elaborar simetrizaes antropolgicas.

    Como vimos acontecer com Pietz e at certo ponto com Graeber , as

    dificuldades sentidas, pelo menos por alguns antroplogos, em relao aLatour parecem derivar dessa sua solidariedade com o ponto de vista doobservador, por meio da qual, h muito tempo, Lvi-Strauss (1958, p. 397)definia a sociologia em oposio antropologia11. De facto, nas suas

    11 Como escreveu Lvi-Strauss (1958, pp. 396-397):

    Entretanto, permanece verdade que, em todos os casos, a sociologia estreitamentesolidria com o observador [] Essa atitude no menos real [] na sociologia de

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    conceptualizaes acerca do fetiche e do fetichismo, os trs autores cadaum a seu modo e por diferentes motivos evitam a anlise cuidadosa dasteorias nativas sobre o tema. Consequncia, creio, dessa hiptese, implcitaou explcita, de que apenas a unidade de um mundo comum pode garantira possibilidade ou estar na base do interesse por outras sociedades e poroutros pensamentos.

    H cerca de quarenta anos, Pierre Clastres (1979, pp. 36-37) sustentavaque a antropologia possui um carter intrinsecamente paradoxal, derivado dofacto de, mesmo estando profundamente enraizada na razo ocidental, nopoder deixar de estabelecer relaes com os saberes dominados, com os quais

    o Ocidente havia, em princpio, recusado qualquer aliana, com essas lingua-gens estranhas, como as denomina Clastres, dos ndios, dos camponeses,dos operrios das minorias, enfim. Essas relaes funcionam como forascentrfugas que afastam a antropologia das formas dominantes do conheci-mento e fazem com que a histria da disciplina se desenrole no espao abertoentre o conhecimento cientfico dos outros e o dilogo com eles.

    Dilogo que, entretanto, est, evidentemente, longe de ser o avesso dacincia. Como demonstraram Isabelle Stengers (2002, pp. 167-176) e Stengerse Chertok (1990, p. 36), a homogeneidade do campo cientfico no passade uma quimera. Se as cincias de laboratrio se constituram aplicandoprocedimentos homlogos aos do julgamento, isso no significa que estaseja a nica forma dotada do poder de objectivar um conhecimento cient-

    fico. Ao julgamento, Stengers ope a aprendizagem, condio de possibi-lidade do que denomina cincias de campo, entre as quais eu, ao contrrioda autora, tambm incluiria a antropologia12.

    sntese ou de tendncia filosfica. Aqui o cientista estende, sem dvida, a sua investigao apores mais vastas da experincia humana; ele pode mesmo dedicar-se a interpret-la na suatotalidade. O seu objecto j no se limita ao observador, mas sempre do ponto de vista doobservador que ele empreende ampli-la. No seu esforo para produzir interpretaes esignificaes, , acima de tudo, a sua prpria sociedade que ele pretende explicar; so as suasprprias categorias lgicas, as suas prprias perspectivas histricas que ele aplica ao conjunto.Que um socilogo francs do sculo XX elabore uma teoria geral da vida em sociedade, elaaparecer sempre e do modo mais legtimo (pois essa tentativa de distino no implica danossa parte qualquer crtica) como a obra de um socilogo francs do sculo XX. Enquantoo antroplogo, colocado diante da mesma tarefa, se esforar intencional e conscientementetambm (e no de modo algum certo que ser bem sucedido) em formular um sistemaaceitvel tanto para o indgena mais longnquo quanto para os seus prprios concidados oucontemporneos. Enquanto a sociologia se esfora para fazer a cincia social do observador,a antropologia procura, por sua vez, elaborar a cincia social do observado, quer procurandoatingir na sua descrio de sociedades estranhas e longnquas o ponto de vista do prprioindgena, quer ampliando o seu objecto at incluir a prpria sociedade do observador, tentando,porm, desenvolver um sistema de referncia fundado na experincia etnogrfica e indepen-dente tanto do observador como do seu objecto.

    12 Stengers distingue as cincias de campo tanto das de laboratrio quanto daquelas emque os objectos se interessam pelas questes que lhes so colocadas. nesse ltimo grupo,

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    Essa perspectiva pluralista sobre a histria das cincias convida os antro-plogos a substiturem completamente o julgamento pela aprendizagem, par-tindo, assim, de uma hiptese oposta, ou distinta, daquela dos mundos emcomum: a de que o valor do dilogo com outras formas de pensar e viverse deve apoiar justamente naquilo que estas tm de diferente. As demaisseces deste texto sero ento dedicadas a esboar a anlise de uma pro-blemtica fetichista a partir do que os assim denominados tm a dizersobre o assunto. Anlise que no apenas alimenta a esperana de compreen-der melhor o fenmeno em questo, mas at mesmo de tornar mais interes-sante a sua utilizao iluminadora sobre ns mesmos, estabelecendo cone-

    xes mais ricas do que aquelas a que nos limitamos quando apelamos paraa necessidade de um mundo em comum. Trata-se, em resumo, e se quea entendo bem, de seguir uma proposta lanada por Marilyn Strathern:

    Ao antropologizar alguns desses temas [] no estou a apelar para outrasrealidades culturais simplesmente porque quero negar o poder dos conceitoseuro-americanos [] O ponto estend-los com imaginao social. O queimplica perceber como so postos para funcionar no seu contexto indgenae, ao mesmo tempo, como poderiam funcionar num contexto exgeno[Strathern, 1996, p. 521].

    OS ESTUDOS AFRO-BRASILEIROS HOJE

    Encontro mais exactido no meu fermento de cido lctico se o iluminocom a luz das divindades do candombl, escrevia Latour (1996, p. 103). Defacto, a par de um romance escrito por um autor indiano, com um exemploextrado de uma pequena etnografia sobre o candombl que o autor trabalha.Mais precisamente, o que chamou a sua ateno sobre essa religio foi umadas suas principais e mais impressionantes caractersticas, a saber, o facto deque as suas divindades (orixs, voduns ou inquices, dependo da nao decada terreiro ou templo) so feitas no processo de iniciao. E feitas aomesmo tempo em que so feitas as pessoas dos prprios iniciados, aqueles que

    devero ser possudos pelas divindades por ocasio de cerimnias especficas.Fazer o santo ou fazer a cabea so justamente os nomes pelos quais conhecido esse complexo ritual de iniciao (Goldman, 1984 e 1985).

    claro, que ela aloca as chamadas cincias humanas, ainda que elas no sejam as suas nicasocupantes. Adopto aqui uma verso simplificada do esquema de Stengers, opondo apenas ascincias cujo procedimento se baseia no julgamento das que se baseiam na aprendizagem,dentro das quais incluo, sem dvida, a chamada antropologia social ou cultural (v. Stengers,2002, p. 176, e 2003).

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    O exemplo, percebe-se, parece feito por medida para as teses de Latour:divindades produzidas por humanos. O problema que quando se passarpido de mais pelas subtilezas de um mundo conceptual qualquer corre-sesempre o risco de perder algo essencial. Pois, se perguntarmos a um adeptodo candombl se ele quem faz as divindades, a resposta ser certamentenegativa13. Por outro lado, se a questo for se esta ou aquela divindade foifeita por algum, a resposta dever ser positiva. Isso porque as divindades,como as pessoas, j existem antes de serem feitas ainda que, claro, noexistam da mesma maneira. O ponto crucial, para simplificar muito, adistino estabelecida entre os orixs gerais (Ians, Ogum, Omolu), que

    existem em nmero finito, e a multiplicidade intensiva dos orixs individuaisou pessoais (a Ians de tal pessoa, o Ogum dessa outra, o meu Omolu v. Goldman, 2005, p. 9). Apenas dos segundos se pode dizer que sofeitos,os primeiros existindo desde sempre ou desde os tempos mticos. A partirdo nascimento, cada um de ns de um orix (geral), mas apenas algunsde ns seremos convocados para a iniciao e apenas nesse momento tere-mos o nosso orix (pessoal). Essa diferena , geralmente, marcada pelautilizao exclusiva do termo portugus santo para designar o objecto dafeitura: ningum diz que fez o orix, mas que fez o santo ainda que essaspalavras, noutros contextos, possam funcionar como sinnimos (Serra,1978, pp. 59-60, e 1995, pp. 266-270; Sansi, 2005, p. 152).

    Como demonstrou Serra (1978, p. 60), o santo e a filha-de-santo nascemde uma espcie de enlace entre o orix e a inicianda. O que significa quefazer o santo ou fazer a cabea no tanto fazer deuses, mas, nestecaso, compor, com os orixs, um santo e uma outra pessoa. Neste caso,porque no so apenas os humanos que so dos diferentes orixs, mastudo o que existe e pode existir no universo: grupos sociais, animais, plantas,flores, comida, pedras, lugares, dias, anos, cores, sabores, odores Todosos seres pertencem a determinados orixs e, ao mesmo tempo, alguns devemou podem ser consagrados, preparados ou feitos para eles.

    Desde o comeo, os estudiosos do candombl ficaram confusos comessa modalidade de ontologia. Assim, na ltima dcada do sculo XIX, oprimeiro trabalho sobre o tema, da autoria de Nina Rodrigues (1900),

    significativamente intitulado O Animismo Fetichista dos Negros Baianos,tinha dificuldades em decidir se o candombl seria fetichismo ouanimismo difuso, ou seja, atribuio de vida a seres inanimados ou asimples escolha de certos objectos como residncia material momentnea deum ser espiritual. Alm disso, aos olhos do autor (mdico legista e psiquiatra,

    13 Assim, uma grande me-de-santo baiana garantiu a Donald Pierson (1971 [1942],p. 320) que o africano no adora coisas feitas pela mo humana. Adora a natureza. O que uma pedra (fetiche)? um mineral, no ? No foi feita por mo humana.

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    lembremos) a religio dos orixs tambm aparecia como uma espcie depolitesmo confuso, uma vez que as divindades pareciam, simultaneamente,existir em si mesmas, ser meramente representadas por objectos ou imagense ser fixadas em objectos inanimados. Assim, ao perguntar a um africa-no certamente com segundas intenes se Ogum no era um sim-ples objecto de ferro, ouve como resposta que sim, um simples pedaodaquele trilho de bonde que ali est ou pode ser Ogum, mas somente depoisde o pai do terreiro o ter preparado (Rodrigues, 1900, p. 59, itlicosmeus).

    O ponto aqui, claro, no aplicar esta ou aquela teoria, ou esta ou

    aquela crtica, do fetichismo ao candombl, mas, justamente, delinear umconfronto entre essas teorias e crticas com aquelas existentes no prpriocandombl. Assim, mais de um sculo aps o trabalho de Nina Rodrigues,e mais de meio sculo aps o aparente abandono dessa temtica (consideradaetnocntrica ou exotizante), um novo interesse pelos objectos materiais docandombl parece ter provocado um certo retorno aos tpicos outrora agru-pados sob a confusa e certamente acusatria rubrica de fetichismo. Umasrie de trabalhos recentes parece ter, assim, reintroduzido, em maior oumenor grau, implcita ou explicitamente, o que poderamos denominar oproblema do fetiche (ou do fetichismo) no candombl (v., entre outros,Anjos, 1995 e 2001, Sansi, 2003, 2005 e 2007, Opipari, 2004, e Halloy,2005).

    A feitura do santo, escreveu ainda Nina Rodrigues (1900, p. 75),compreende duas operaes distintas, mas que se completam: a preparaodo fetiche e a iniciao ou consagrao do seu possuidor. O orix fixa-do ou plantado, simultaneamente, na cabea da filha-de-santo e numconjunto de objectos dispostos sobre um tipo de prato. Esses objectosvariam muito, mas a ferramenta simblica do orix, algumas moedas e aomenos uma pedra, encontra-se em quase todos os conjuntos. A esse con-junto d-se o nome de assentamento, espcie de duplo da filha-de-santo,que dele dever cuidar (limpando-o e oferecendo sacrifcios peridicos) aolongo de toda a vida. Ao morrer, o assentamento ser despachado com ela,ou melhor, com o seu esprito.

    Foi justamente o assentamento que fez com que os primeiros estudiososdo candombl no tivessem dvidas em considerar essa religio uma formade fetichismo, sendo os assentamentos os fetiches. E curioso que, deentre todos os objectos que compem um assentamento, as pedras (ots,ots ou its) sempre tivessem chamado mais a ateno, como se fosse maisescandaloso atribuir vida a esses seres inanimados por excelncia. E cu-rioso observar tambm que, de um modo ou de outro, os trabalhos maisrecentes sobre o tema tambm se concentram nas pedras, que constituem,afinal, apenas um dos elementos que compem os assentamentos. Porque,

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    ainda que elas sejam um dos melhores exemplos desse processo em que algose torna o que j , talvez seja, se me for permitida a expresso, uma certafixao nessas pedras aquilo que explica por que parecemos continuar coma mesma dificuldade que assombrava Nina Rodrigues h mais de cem anos.

    Por outro lado, e contra as antigas interpretaes que supunham o carc-ter inteiramente fortuito da descoberta da pedra que far parte do assenta-mento de algum14, Sansi observou com preciso que, mesmo havendo algode casual na descoberta da pedra que dever fazer parte do assentamento dosanto, essa descoberta , ao mesmo tempo, uma espcie de encontro, umhasard objectif, para utilizar a expresso surrealista (Sansi, 2005, p. 143),

    determinado, em parte, pelo desejo da prpria pedra. ela que, de algumaforma, pede futura filha-de-santo que a encontre; mas a pedra s podefaz-lo porque compartilha algo com aquela de cujo assentamento far parte,a saber, a pertena a um mesmo orix. Diferentes orixs exigem pedrasdiferentes: escuras e de ferro para Ogum, porosas para Omolu, de dupla facepara Xang, e assim por diante:

    Reconhece-se a agncia incorporada nas pedras antes de sua consagrao,ainda que essa agncia s seja reconhecvel no momento certo pela pessoacerta constituindo uma ddiva do objecto para essa pessoa [Sansi, 2005,p. 143].

    Na sua monografia sobre o candombl no Recife, Arnaud Halloy sublinhaa distino nativa entre pedra cheche (comum) e ot propriamente dito, ouseja, uma pedra que um orix (Halloy, 2005, p. 515). Em relao a esta,no h nenhuma dvida: o ot o orix (Halloy, 2005, p. 514)15. Noentanto, e ao mesmo tempo, diz o autor, os participantes no culto dizemque o ot representa o orix e que o ot a morada do orix (Halloy,2005, p. 515). o jogo divinatrio dos bzios que determina o estatutoontolgico das pedras (Halloy, 2005, p. 531), estatuto que, no obstante,s se actualizar na cerimnia de assentamento, o acto de investidura quefunda a passagem do estatuto de objecto ordinrio quele de objecto cultual(Halloy, 2005, p. 518). Noutras palavras, a pedra, que s se torna o orixaps o assentamento, j o orix desde o comeo. O que significa que todas

    as pedras do mundo se repartem segundo trs possibilidades ontolgicas

    14 Prolongamento, alis, do que Pietz (1985, p. 8) denomina teoria do primeiroencontro, que desde o sculo XVI sustentava que os fetiches africanos seriam encontrados poracaso, contingncia ou capricho traos ento definidos como caractersticos da ordemsocial ou da personalidade africana.

    15 No mesmo sentido em que Martin Holbraad (2003, p. 51) argumenta que o doloconsagrado recebido pelos adivinhos cubanos deveria ser denominado divindade-dolo, umavez que a parafernlia consagrada [] no vista como uma representao da divindade,mas como a prpria divindade.

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    aparentemente distintas: pedras comuns, que nunca deixaro de ser o queso; pedras especiais, que podem tornar-se orixs; e pedras que so orixs.Distino meramente relativa, bem entendido, uma vez que, mesmo co-muns, todas as pedras pertencem a orixs especficos e que entre podertornar-se orix e ser orix existe apenas uma distncia a ser suplantada noritual (Anjos, 1995, pp. 141 e 145).

    Nesse sentido, somos todos como as pedras. Tambm ns podemos sercomuns, podemos ser destinados iniciao e podemos, se nos iniciar-mos, tornar-nos parcialmente divinos. Como sugeriu Valdina Pinto (1997,p. 54), usando como exemplo a religio dos kimoyo (povo de lngua bantu),

    pode bem ser que um certo vitalismo, e no o animismo, esteja nocorao do candombl. Uma espcie de vitalismo generalizado que poderiatalvez estar prximo do modelo Dakota (Gell, 1998, pp. 247-248), queLvi-Strauss (1962, pp. 144-145) havia aproximado da filosofia da evoluocriadora de Bergson16 e que Gell (1998) aplicou s obras de arte17. Modu-laes de uma fora nica denominada ax (similar das bem conhecidasnoes de mana e orenda, entre outras) constituem tudo o que existe e podeexistir no universo, seguindo um processo de diferenciao e individuao.A unidade dessa fora garante que tudo participa em tudo, mas as suasmodulaes fazem com que haja graus de participao18.

    Num vocabulrio mais actual, poderamos dizer que, se somos como aspedras, porque humanos, pedras e tudo o mais so pessoas distribudas

    (Gell, 1998), feitos de conexes parciais (Strathern, 2005) recprocas. Aocontrrio de Donna Haraway (1991, p. 181), uma filha-de-santo no tem deescolher entre ser uma deusa e um cyborg: ela ambos ao mesmo tempo.

    Na sua monografia sobre os terreiros candombl em So Paulo, CarmenOpipari prope a utilizao dos conceitos deleuzianos de virtual e actuala fim de descrever essa ontologia de geometria varivel (Latour, 1991,p. 116, e 1996, p. 78) caracterstica do candombl:

    Em resumo, o ritual da feitura pode ser encarado como um processono qual o orix, que s existia de forma virtual, se actualiza. Essa actualizaono pressupe uma individualizao no sentido ocidental do indivduo, quer

    16 Cada coisa, ao mover-se, num momento ou noutro, aqui e l, pra por um tempo []Assim, o deus parou. O sol, to brilhante e magnfico, um lugar em que ele parou. A lua,as estrelas, os ventos, onde ele esteve. As rvores, os animais, so todos os seus pontosde parada, e o ndio pensa nesses lugares e para eles dirige as suas preces, para que estasalcancem o local em que o deus parou e obtenham ajuda e bno (Dorsey, cit. in Lvi--Strauss, 1962, p. 144).

    17 O que estou a propor, consequentemente, poderia ser denominado um modeloDakota da obra de um artista; cada trabalho [] um lugar onde a agncia pra e assumeuma forma visvel (Gell, 1998, p. 250).

    18 Como escreveu Roger Bastide (2000, p. 295), existe toda uma srie de graus departicipao, desde as associaes simples at s identidades.

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    dizer, uma unificao do ser, mas uma singularizao e uma personalizao.Em lugar de uma identificao do actor-adepto ao personagem-orix, vemossubstituir-se um bloco indissocivel, adepto-santo, que, por meio de ummovimento recproco de virar, aparece numaperformance cujo gestual reconhecido pelo grupo [Opipari, 2004, p. 276]19.

    O nico problema, parece-me, que a autora no concede nfase sufi-ciente ao facto de que, no pensamento deleuziano, o par virtual-actual seope ao par possvel-real, caracterstico de um certo kantismo, que, naantropologia, foi consagrado por Lvi-Strauss. Mesmo quando no actuali-

    zado, o modo de existncia do virtual no o de uma mera possibilidade,mas j, a seu modo, o de uma realidade. Voltarei a este ponto, pois, comoj observei de passagem, o que parece ocorrer com todos os seres convo-cados pelo candombl que, de algum modo, eles j so aquilo que podemou que devem vir a tornar-se. Alm disso, j deve ter ficado claro para oleitor que no h qualquer tipo de dialctica envolvida nesse processo: ovirtual no um negativo cujo lento trabalho transformaria as coisas apartir das suas contradies internas. Ao contrrio, ele uma purapositividade que apenas ou ainda no foi actualizada.

    O CANDOMBL HOJE

    Nesse sentido, e antes de uma rpida concluso, gostaria de tornar tudoisto um pouco mais concreto e, ao mesmo tempo, tentar acrescentar umpasso aos que vm sendo dados nos ltimos anos na direco de umacompreenso mais justa da complexidade envolvida nos modos de pensar eviver do candombl. Para isso apelarei ajuda dos meus amigos do TerreiroMatamba Tombenci Neto, situado em Ilhus, uma cidade de mdia dimensolocalizada a sul do estado da Bahia, no Nordeste brasileiro, onde h muitotempo desenvolvo o meu trabalho de campo20.

    Em 1999 comprei, em Paris, uma pulseira africana como presente paraGilmar, um dos meus amigos do terreiro. Esqueci-me completamente daorigem especfica da pulseira, mas lembro-me bem de que no provinha de

    nenhum dos povos que deram origem ao candombl brasileiro. Escolhi-aporque, alm de extremamente bela, era feita de contas vermelhas e brancas,as cores emblemticas de Xang, o orix de Gilmar. Algum tempo depois

    19 V. Anjos (2006) para uma das mais criativas conexes entre as cosmologias afro-brasileiras e a filosofia de Deleuze e Guattari; v. tambm Ochoa (2007).

    20 Na verdade, aps estudar o candombl em 1983, retornei a Ilhus, em 1996, paraestudar a poltica (v. Goldman, 2006). A partir de 2006 retomei a investigao sobre ocandombl.

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    ele disse-me que estava preparando a pulseira, ou seja, tratando-aritualmente com ervas, a fim de que pudesse servir como meio de proteco.

    Lembrei-me ento de algo que comprara antes de iniciar a investigaono Tombenci, mas quando j pesquisava o candombl. Em 1982, ao visitarum dos mercados da cidade de Salvador capital do estado da Bahia, tidacomo o maior centro da cultura afro-brasileira , resolvi comprar umapequena estatueta de Exu uma divindade muito especial, o mensageiro dosdemais orixs, o Mercrio do candombl, como Bastide o descreveu emalguma parte. Com alguma dificuldade, uma vez que no havia nenhumadesse tipo entre as estatuetas das demais divindades, consegui encontrar

    uma, medindo cerca de 15 centmetros, feita de ferro e, como comum,extremamente flica. Levei-a para casa, onde passou a ocupar um lugar nasala do meu apartamento.

    Decidi ento pedir a Gilmar que tambm preparasse o meu exu a fimde que ele me protegesse. Enviei a minha estatueta para Ilhus; ao retornarao campo, encontrei Gilmar, que me avisou de que o trabalho estava quasepronto e que agora precisvamos de baptizar o exu. Alis, perguntou,como voc vai fazer para guard-lo em casa? Perante a minha perplexi-dade, explicou que, uma vez preparado ou baptizado, o exu exigiriaoferendas peridicas: azeite de dend, cachaa, mel e, eventual e especial-mente, o sangue de algum animal. Como poderia eu oferecer essas coisasvivendo num apartamento? Seria bem melhor, completou Gilmar, mant-lona casa do exu do terreiro, onde, de tempos a tempos, ele poderia aliment--lo. Alm de ser o sacrificador principal, Gilmar justamente o responsvelpela casa do exu do Tombenci. Dei-me conta ento de que o exu se estavaa transformar em algo muito diferente do que fora at ento.

    Como Exu o mensageiro dos orixs, cada orix e, consequentemen-te, cada filha-de-santo tem o seu prprio exu, que deve ficar em localseparado da divindade. Por isso, todos os terreiros de candombl possuemuma casa do exu, onde esto assentados ou plantados todos os exus dosmembros iniciados ou em iniciao. Procedemos ento ao ritual, durante oqual o exu recebeu as devidas oferendas, incluindo o sangue de um galodegolado sobre a estatueta. Alm disso, recebeu um nome, que no posso

    revelar, uma vez que, conhecendo-o, qualquer um poderia us-lo contramim. Apenas Gilmar, a me-de-santo do terreiro e eu mesmo conhecemosesse nome, que s devo pronunciar em situaes em que a sua ajuda essencial. Sendo atendido, devo, claro, retribuir com novas oferendas esacrifcios.

    Perdi, assim, um exu (quase ornamental), mas ganhei o meu exu (pro-tector). De simples pedao de ferro iconicamente trabalhado, ele converteu--se numa divindade particular um fetiche, dir-se-ia certamente at aosculo XIX. Mas ter sido exactamente isso o que ocorreu? Ou melhor, ser

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    este o melhor modo de descrever o que aconteceu? O desejo de comprar oexu, a dificuldade e a insistncia em encontr-lo em Salvador, a ideia, quinzeanos mais tarde, de pedir que fosse preparado, tudo isso no estaria aindicar que, desde o incio, havia algo, alm de ferro, naquela estatueta? Umavida que, de algum modo, devia entrelaar-se com a minha? At o ferropode germinar, at o ferro, como escreveu Lawrence.

    Tudo se passa ento como se a preparao do exu libertasse algumacoisa nele j contida. Ora a teoria nativa da iniciao sustenta que ningumse inicia no candombl porque quer, mas porque a sua iniciao exigidapelo seu orix. Este costuma enviar sinais, que vo desde pequenos eventosinslitos e sonhos at crises pessoais mais ou menos violentas. Consultadosos bzios, descobre-se que a pessoa deve ser iniciada e procede-se aosrituais. Entre as formas mais comuns de orixs demonstrarem o seu desejopela iniciao de algum, encontra-se o que ficou conhecido na literaturaafro-brasileira como santo bruto e que os fiis denominam bolao. Emtese, esta pode acontecer a qualquer momento, mas, via de regra, ocorredurante um ritual pblico, geralmente quando o adepto escuta as msicas dasua divindade. Sofre ento uma possesso to violenta que rola pelo cho doterreiro em todas as direces at que, finalmente, pra, deitado no cho debarriga para cima, completamente enrijecido e em estado de aparentecatatonia. Pode-se ento despert-lo, de acordo com os procedimentos ri-

    tuais adequados, advertindo-o de que deve preparar a sua iniciao, ou, emcasos extremos, proceder directamente feitura do santo. Neste caso, apenas ao despertar que aquele que bolou descobrir que foi iniciado.

    Uma das funes da feitura do santo justamente a domesticao dotranse violento e selvagem anterior iniciao. Desde Nina Rodrigues, con-tudo, sabe-se que no so raros os casos [] em que mesmo antes dainiciao o santo j se revela. o que se chama um santo bruto, ainda nofeito (Rodrigues, 1900, p. 118)21. Desde essa poca, praticamente todos osestudiosos das religies afro-brasileiras seguiram essa ideia: os transes ante-riores iniciao so brutos (quer dizer, violentos) porque o santo aindano foi feito (ou seja, construdo). O modelo de uma natureza selvagem

    ou desprovida de forma, que deve ser conquistada, domesticada e organizadapor uma cultura criadora ou produtiva, parece permanecer subjacente atodas as descries e anlises do fenmeno. Creio, contudo, que tanto o

    22 A feitura do santo a funo inicial dos babalas. Como j deixei assinalado, parao negro fetichista qualquer objecto natural pode ser adorado ou cultuado como um orix, mas preciso que o pai-de-santo o prepare. H, verdade, manifestaes espontneas de umdeterminado orix, mas nestes casos trata-se, para os negros, de um santo bruto. precisoprepar-lo (Ramos, 1934, p. 61).

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    adjectivo bruto como o verbo fazer podem significar outra coisa. Trsoutros episdios etnogrficos e uma teoria mais ou menos nativa serviropara nos colocar na pista desse outro significado.

    Em Janeiro de 2006, ao presenciar a linda coreografia da Ians de umadas netas de Dona Ilza, a me-de-santo do Tombenci, no consegui contero comentrio de que era impressionante como ela danava bem, mesmo queainda no tivesse sido iniciada. Responderam-me que, de facto, ela estquase pronta, no falta mais quase nada para fazer.

    Em Fevereiro de 2007 acompanhei Dona Ilza a uma festa num outroterreiro em Ilhus. J bem depois do incio do ritual, um homem de poucomais de 30 anos, muito mal-vestido e de aparncia suja e descuidada, entrouno terreiro. Como muito comum que mendigos e moradores de rua, emgeral, entrem em festas de candombl em busca de um pouco de comida,bebida e diverso, imaginei ser esse o caso. No entanto, quando os atabaquescomearam a tocar para Oxumar (o orix que a cobra de duas cabeasque tambm o arco-ris que faz a ligao essencial entre a Terra e o cu),o homem foi possudo e executou uma das mais lindas danas que j tiveo prazer de presenciar, encolhendo o seu corpo at quase tocar no cho eento erguendo-se rpida e sinuosamente, num movimento que em tudoevocava o de uma serpente. Comentei o facto no dia seguinte com DonaIlza; certa de que o danarino ainda no havia sido iniciado, ela respondeu-

    -me que, de facto, havia sido muito bonito, que ele danava muito bem, masque ainda seria preciso lapidar um pouco no sentido, claro, em que selapida uma pedra preciosa em estado bruto.

    O Matamba Tombenci Neto um terreiro muito antigo. Foi fundado em1885 pela av materna da actual me-de-santo e a sua organizao repousasobre os seus catorze filhos carnais e a respectiva parentela, alm dosiniciados e de muitos amigos. Um destes Jamilton Galdino Santana (conhe-cido por todos como Jaco), artista plstico, que se dedica elaborao delindssimos mveis rsticos ecolgicos. Nascido em Caravelas, pequenacidade situada no extremo-sul baiano, mudou-se para Ilhus em 1996 e logose aproximou do Tombenci, ajudando, com a sua habilidade, na elaboraode diversos objectos utilizados no culto. O mais impressionante de todos, semdvida, o trono que fabricou para a me-de-santo do terreiro. Esse tronofoi recortado com uma moto-serra no tronco de uma antiga jaqueira, derru-bada quando a regio em que se situa o terreiro comeou a ser urbanizada.Antes disso, e durante muitos anos, a jaqueira fora utilizada como local desacrifcio, absorvendo assim a fora vital dos animais sobre ela abatidos. Apster sido derrubada, Dona Ilza fez questo de preservar o tronco, que, finalmen-te, foi transformado por Jaco num trono, no qual ela se senta durante as festaspblicas do Tombenci. Os restos da madeira cortada durante a elaborao do

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    trono foram distribudos pela me-de-santo entre membros do terreiro, emfuno do facto de concentrarem muito ax e, consequentemente, seremcapazes de ajudar aqueles que os conservassem em casa.

    Jaco Santana possui uma teoria muito elaborada acerca da natureza dotrabalho que executa. Ele explica que, no comeo, tem apenas uma vaga ideiado que deseja fazer. J que no utiliza madeira industrial nem derruba rvo-res, comea ento a procurar na mata aquilo de que precisa, recolhendo cadapedao que imagina poder servir. Com o tempo, esses pedaos vo-se en-caixando por meio de um dilogo estabelecido pelo artista com a matriaque deve trabalhar. Trata-se, diz Jaco, de descobrir, na madeira, a forma queo seu estado actual oculta e que ele lhe deve devolver.

    Essa formulao, sabe-se, extremamente comum entre escultores, se-jam eles do Sul baiano, inuit ou renascentistas. Sempre mais encantada coma pintura do que com a escultura, a antropologia no parece ter prestadoateno a esta que , sem dvida, uma teoria alternativa do processo decriao. H mais de cem anos, entretanto, Freud j observava:

    A maior anttese possvel [] que o grande Leonardo da Vinci resumiu,com relao s artes, nas frmulasper via di porre eper via di levare.A pintura, diz Leonardo, trabalhaper via di porre,pois deposita sobre a telaincolor partculas coloridas que antes no estavam ali; j a escultura, ao

    contrrio, funcionaper via di levare, pois retira da pedra tudo o que encobrea superfcie da esttua nela contida [Freud, 1904, p. 270].

    Creio que nem mesmo Alfred Gell, que abordou, em Art and Agency, osobjectos tridimensionais, conseguiu escapar do modelo pictrico que parecedominar a antropologia da arte. A sua teoria da agncia, por mais interessantee original que seja, no incorpora essa dimenso crucial das artes que ope-ram por subtraco e no por adio. Por outro lado, deve ficar claro quea distino de Da Vinci no me parece ligada a uma operao apenas ma-terial, mas, sobretudo, a um processo de criao que pode tambm serconceptual. Assim, como escreveu Deleuze (1984, p. 57), uma srie de

    coisas a que se pode chamar clichs j ocupa a tela antes do comeo: um erro acreditar que o pintor esteja diante de uma superfcie em branco

    (S). O pintor tem vrias coisas na cabea (S). Ora tudo o que ele tem nacabea ou ao seu redor j est na tela, mais ou menos virtualmente, mais oumenos actualmente, antes que ele comece o trabalho. Tudo isso est presentena tela sob a forma de imagens, actuais ou virtuais. De tal forma que o pintorno tem de preencher uma superfcie em branco, mas sim esvazi-la,desobstru-la, limp-la [Deleuze, 1984, p. 57].

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    Noutros termos, porre e levare no constituem tipos, mas duas atitudespossveis frente ao processo de criao22.

    Sem dvida, como observou Sansi (2005, p. 142), o candombl tambm uma forma de arte e isso no apenas porque exige talentos e donsespeciais, mas tambm porque cria objectos, pessoas e deuses. Trata-se,contudo, necessrio acrescentar, de uma forma de arte muito particular,uma vez que todos esses entes j existem antes de serem criados, o que fazcom que o processo de criao envolvido s possa ser entendido como arevelao das virtualidades que as actualizaes dominantes contm, no duplosentido do termo. Se quisssemos emprestar um ar ainda mais nietzschianoa essa religio dionisaca, poderamos dizer talvez que se trata de se tornaro que se sem que isso implique, claro, nenhuma ideia de umaidentidade substancial a ser descoberta ou de uma identidade originria qualretornar. Numa formulao esttica ou mais directamente antropolgica,poderamos dizer tambm que se trata da criao de novos seres por meiode recortes efectuados num mundo pleno onde nada parece faltar. Mundoonde, ao contrrio, tudo est de algum modo em excesso. Lembremos que,como bem demonstrou Serra (1978, pp. 310-312), o problema da iniciaono candombl justamente o controlo de foras incrivelmente poderosas ea sua canalizao para os objectivos do culto, sem que isso implique areduo da sua potncia.

    CONCLUSO

    Na sua tentativa de demonstrar a novidade representada pela noo defetichismo, Pietz (1987, pp. 36-37), no segundo dos ensaios que dedicou aotema, sustenta que a genealogia da noo no remete para a de idolatria. Maisdo que isso, a dificuldade por ela oposta aos modelos cristos medievaisproviria do facto de no se deixar enquadrar em nenhum dos trs modelosde engendramento de seres e coisas reconhecidos pela teologia: nem a noo

    22 Foi a leitura de Stengers e Chertok (1990, p. 57-59) que chamou a ateno para aobservao de Freud. Para os autores, contudo, o ponto relevante a utilizao que apsicanlise fez desta oposio para desqualificar as tcnicas hipnticas, que procederiam porsugesto, ou seja, per via di porre, em benefcio da livre associao, que procederia semprepor extraco, quer dizer, per via di levare. Mas foi Ovdio de Abreu a quem agradeoimensamente quem me chamou a ateno para a dimenso propriamente conceptual dadistino. Como ele me fez ver, Deleuze est a referir-se ao pintor Francis Bacon, mas bvioque a operao isolada anloga quela do teatro de Carmelo Bene, que escreve as suaspeas a partir da eliminao das personagens que dominam a trama numa pea j existente,operao que Deleuze denominou minorao ou subtraco (Deleuze e Bene, 1979; v.tambm Abreu, 2003).

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    de criao (sempre divina) nem a de gerao (humana) serviam paraexplicar a sua gnese. Mas to-pouco o outro modo de os humanos engen-drarem coisas, a manufactura, parecia aplicvel, uma vez que o fetiche eratido como distinto dos dolos, ou seja, das representaes manufacturadasdas falsas divindades. verdade, prossegue Pietz (1987, pp. 27-28), queSanto Agostinho reconhecia que os actos humanos exclusivamente depen-dentes do livre arbtrio se aproximavam da criao, mas este, claro, nopoderia ser o caso do fetiche, elaborado por pessoas, s quais, justamente,se negava esse livre arbtrio.

    Se escutarmos, entretanto, aqueles, outrora acusados de fetichistas, comum pouco mais de ateno do que aquela que lhes dedicaram Pietz, Latourou Graeber, podemos talvez aprender com eles outras formas de pensar oprocesso de criao e a agncia em geral, bem como ter acesso a outrasmodalidades de ontologia23. O problema, contudo, justamente at ondesomos capazes de realmente escutar o que um fetichista, ou qualquer na-tivo, tem a dizer. A nica resposta, como observou Latour (2005, p. 48), o mximo possvel, quer dizer, at sermos postos em movimento pelosinformantes24. Estes, alis, nunca so informantes, mas actores dotadosde reflexividade prpria, ou seja, tericos, com os quais podemos e devemostentar dialogar e aprender. A capacidade de suportar a palavra nativa, lev--la efectivamente a srio e permitir que conduza a reflexo antropolgica at

    ao seu limite parecem-me os nicos critrios de qualidade disponveis nanossa disciplina qualidade, evidente, infinita e interminavelmente aper-feiovel.

    23 Esta tambm , parece-me, a posio de Alfred Gell. Nas poucas pginas directamentededicadas ao tema do fetiche, Gell (1998, pp. 59-62) insiste na necessidade de levar em contaas teorias nativas para compreender o fenmeno. Alm disso, sustenta que a agncia do fetichetambm depende do facto de ele ter sido feito, ou seja, de ter sido paciente de uma outraagncia. O nico problema, parece-me, consiste numa certa indeciso entre estender outransformar o conceito de relaes sociais a fim de permitir que incluam os objectos (mastambm os animais e os espritos) e reduzir esses seres s relaes sociais travadas sempreentre humanos. Assim, os objectos ora aparecem directamente como pessoas (Gell, 1998,p. 7), ora como substitutos de pessoas (Gell, 1998, p. 5), ora na vizinhana das relaessociais (Gell, 1998, p. 7). Da mesma forma, a teoria da agncia de Gell parece oscilar entreuma concepo da pessoa como cebola (Gell, 1998, pp. 139-140), ou seja, desprovida deum ncleo substancial e inteiramente composta por relaes, e uma que se assemelha ao queStengers e Chertok (1990, p. 268) denominaram alcachofra: sob as diversas camadas derelaes sociais, um ncleo humano seria sempre encontrado. por isso que no creio queas crticas a Gell devam insistir no facto de que, ao reconduzir os objectos s relaes sociais,eles perderiam a sua materialidade. O ponto, bem pelo contrrio, seria levar a noo derelaes at aos objectos e repetir, com Gabriel Tarde (1999, p. 58), que qualquer coisa uma sociedade, qualquer fenmeno um facto social.

    24 Sobre este ponto, v. tambm Favret-Saada (1990, pp. 4-5).

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    No belo texto que dedicou ao fetiche no Atlntico lusfono, RogerSansi parece chegar a uma concluso em tudo semelhante minha:

    O evento no qual o fetiche encontrado no percebido pela pessoacomo arbitrrio, mas necessrio. O valor encontrado no objecto no atribudo arbitrariamente pela pessoa, mas visto como um valor imanentedo objecto, algo de incipiente que estava sempre l esperando por essa pessoaem particular, algo que ela reconhece. como se a coisa se oferecesse pessoa: como se ambas sempre tivessem pertencido uma outra. Nessesentido, este um processo de troca mediada entre a pessoa e um valor oculto

    que se est a oferecer pessoa [Sansi, 2007, pp. 32-33].

    No entanto, a frequncia da voz passiva talvez seja reveladora de umadistncia entre as nossas posies. Pois Sansi parece supor que h algo almda percepo dos agentes, algo que s a agncia do cientista social capazde conhecer:

    Os actores sociais percebem a conjuntura como a repetio dasestruturas tradicionais, quando de facto, ao serem repetidas, essas estruturasmudam [Sansi, 2007, p. 32, itlicos meus].

    Outro texto de Sansi leva esta posio ainda mais adiante25:

    certo, porm, que para os sujeitos histricos nem sempre fcilpercebera historicidade dos acontecimentos. No caso do candombl, vimosque os milagres ou as revelaes no sopercebidos como inovaes, mascomo redescobertas de algo esquecido ou no reconhecido. Revelaes quepermitem entender o passado noutros termos mais profundos, talvez maisautnticos. Talvez isto se deva ideologia das trocas mediadas, do dom, quepredomina em instituies como o candombl e que prefere ver a inovaocomo reproduo. Neste caso, a funo dos antroplogos seria reconhecera historicidade dessas revelaes, vercomo so, efectivamente, objectivaesde categorias sem precedentes: vercomo, ao querer reproduzir os valorestradicionais do candombl, este se transforma, incorporando a histria doseu pas e da sua gente [Sansi, 2009, p. 155, itlicos meus].

    25 Texto que o autor gentilmente colocou minha disposio e que ser publicado nestemesmo nmero da Anlise Social. Para alm de diferenas menores, ele compartilha com omeu trabalho uma srie de pontos comuns. O que serve, creio, como uma espcie decontraprova das possibilidades abertas pela investigao das teorias do mundo, da agncia edo processo de criao nas religies afro-brasileiras. Como me observou o prprio Sansi emcomunicao pessoal, talvez j seja possvel falar num pequeno e humilde paradigmatic shiftnos estudos afro-brasileiros.

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    Estaramos ento de volta a uma das acepes originais da noo defetichismo, aquela que acabou na origem da teoria marxista da ideologia? Aomenos em parte, os agentes sociais desconheceriam necessariamente o quefazem, cabendo apenas ao cientista social atingir os fundamentos da vida emsociedade? Sansi pode ento sustentar que, a despeito do que possam pensaros envolvidos, a caracterstica central do fetiche sua historicidade e nesse sentido que conclui que prticas, objectos e espritos supostamentesincrticos so transposies de histrias pessoais e colectivas, incorpora-das nas prticas do candombl. O sincretismo no outra coisa senohistria (Sansi, 2009, p. 142)26.

    Assim, mesmo reduzida a uma espcie de mnimo necessrio, a ilusonativa permanece e continua a caber ao cientista social esclarec-la. A estra-tgia que procurei seguir um pouco distinta. Como Latour (1996, pp. 102--103), no creio que as diferenas existam para serem respeitadas, ignoradasou subsumidas, mas, ao contrrio dele, to-pouco acredito que basta defini--las como chamariz para os sentimentos, alimento para o pensamento(Latour, 1996, pp. 102-103). O discurso e a prtica fetichistas, por exemplo,devem servir, fundamentalmente, para desestabilizar o nosso pensamento (e,eventualmente, tambm os nossos sentimentos). Desestabilizao que incidesobre as nossas formas dominantes de pensar, permitindo, ao mesmo tempo,novas conexes com as foras minoritrias que pululam em ns mesmos.Assim, se escutarmos atentamente o que dizem os fetichistas, podemos por exemplo, e em lugar de tentar explic-los por uma histria de que notm conscincia e que apenas ns conhecemos agenciar o seu discursocom a problematizao a que Deleuze e Guattari submetem a histria e qualme referi no incio deste texto.

    Nesse sentido, claro que a descoberta do fetiche, o encontro da pedra,a determinao do orix, podem ser entendidos como acontecimentos quan-do encarados do ponto de vista da histria; mas esses eventos tambmpodem ser lidos como a pura actualizao, no tempo histrico e no mundoextensivo e molar, de virtualidades intensivas e moleculares em perptuo

    26 Uma das armadilhas do dispositivo fetichista ocidental, historicamente constitudo apartir dos sculos XV e XVI, parece ser essa capacidade de atrair para o seu interior aquelesmesmos que, supostamente, dele se querem livrar. Assim, a interessante crtica que WyattMacGaffey enderea a Pietz comea por defender a necessidade de analisar o fetichismo luz das teorias indgenas (MacGaffey, 1994, p. 123), prossegue ressaltando o carcterconceptual das categorias nativas (MacGaffey, 1994, p. 128) e a inadequao das categoriasocidentais para dar conta delas (MacGaffey, 1994, p. 128), mas conclui que a relao entrea religio e a sociedade no Congo similar quela que Marx supunha existir entre ocapitalismo e a economia poltica como a sua religio e que o fetichismo sobre asrelaes entre pessoas, mais do que entre os objectos que medeiam e disfaram essas relaes,exprimindo de forma oblqua relaes reais de poder entre os participantes no ritual(MacGaffey, 1994, p. 130). Muito barulho por nada.

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    devir: a histria, lembremos, somente traduz em sucesso uma coexistn-cia de devires (Deleuze e Guattari, 1980, p. 537). Por isso, a histria sempre contada como variao de perspectivas face a um referencial fixo,em relao ao qual apenas o ponto de vista muda (s existe histria dapercepo Deleuze e Guattari, 1980, p. 428), enquanto aquilo com quese faz a histria antes a matria de um devir, no de uma histria (Deleuzee Guattari, 1980, p. 428).

    por essa mesma razo que internalismo e externalismo as duasperspectivas para as quais, como vimos, costumam ser remetidos os estudossobre as religies afro-brasileiras so igualmente insuficientes. Pois, se de

    um ponto de vista histrico, ou molar, tudo de algum modo externo ouinterno, do conjunto de virtualidades que compem a dimenso molecularda existncia no se pode dizer nem uma coisa nem outra: como tambmvimos, tudo coexiste em perptua interaco e preciso levar em contaa coexistncia dos elementos (Deleuze e Guattari, 1980, p. 536).

    Na mesma direco que Sansi, e aps seguir de perto o discurso nativosobre a iniciao no candombl, Opipari v-se obrigada a assinalar:

    Longe de ser considerado sob um aspecto essencialista ou ontolgico,como fora interior que o adepto do candombl adquiriria e que aumentaria medida do seu desenvolvimento na prtica ritual, essa potncia criadoradeve evidentemente ser tomada sob um aspecto material, scio-histrico,como motor da fabricao social e simblica das relaes humanas [Opipari,2004, pp. 368-369, itlicos meus].

    Dada a perspectiva deleuziana adoptada pela autora, tudo indica que elacompartilhe com Franois Zourabichvili (2004a) a hiptese de que no possvel falar em ontologia no pensamento de Deleuze, uma vez que a suaorientao fundamental seria a extino do ser em benefcio da relao(ou ainda do devir). Noutros termos, de facto possvel opor ontologia ehistria (Opipari) ou ontologia e devir (Zourabichvili). Mas apenas quandodefinimos a primeira, ao modo de Latour, como unidade do mundo ou doser, ou seja, de modo extensivo. Se, ao contrrio, entendermos porontologia justamente a multiplicidade intensiva de todas as virtualidades,ento, como escreveu Deleuze (1999, p. 217), o devir o ser [] o devire o ser so uma mesma afirmao27. Ora, como acredito que uma dasdimenses centrais do mundo conceptual do candombl justamente umuniverso em que o ser e o devir no se opem, foi nesse sentido aindaque de forma um tanto selvagem que utilizei o termo ontologia e osseus derivados ao longo deste texto.

    27 Ou, como escreveu o prprio Zourabichvili (2003), uma afirmao da multiplicidadecomo coordenada ontolgica originria (v. tambm Zourabichvilli, 2004b).

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    Marcio Goldman

    Dona Ilza, a me-de-santo do Tombenci, diz, como vimos, que a iniciaono candombl um problema de lapidao, mais que de produo. Diztambm que a relao entre filha-de-santo e orix de participao mtua,no de propriedade e isso ainda que ela se refira ao seu santo comominha Ians e que tambm diga que ela prpria de Ians. Nessadireco, j deve ter ficado claro que a expresso santo bruto, utilizadapara designar o orix antes da iniciao, no deve ser inteiramente compreen-dida no sentido de que se trata de um santo violento, manifestando-senuma pessoa passiva, mas no sentido em que ambos, santo e pessoa, cons-tituem uma espcie de pedra preciosa espera de ser descoberta e lapidada.

    Antes da iniciao, a futura filha-de-santo mais um diamante em bruto doque pura fora selvagem ou matria inerte espera da forma que lhe darvida se aceitssemos esse modelo hilemrfico, que supe umaimplausvel exterioridade entre forma organizadora e matria inerte e queDeleuze e Guattari (1980, p. 457) denunciam com razo. Trata-se, percebe--se, de uma forma de pensar o processo criativo distinta daquela que concedeum lugar central ao modelo da produo e da propriedade modelo que,como demonstrou Strathern (1996, p. 518, e 1988, pp.18-19, passim), cons-titui a metfora-raiz que sobrecodifica os nossos modos de pensar e deestabelecer relaes.

    As teorias e prticas nativas envolvidas na criao de seres, pessoas edeuses que, no entanto, j existem, determinam um mundo. Mas no odeterminam de acordo com o modelo judaico-cristo da criao ex nihilo, noqual o criador necessariamente superior criatura. De facto, essas teoriase prticas parecem remeter antes para conceitos como o de produodesejante, de Deleuze e Guattari (1972), que se prope compreender a pro-duo como um processo ininterrupto de cortes em fluxos, no de mode-lagem de contedos. Ou para o processo de construo da pessoa naMelansia, tal qual analisada por Strathern (1988), em que se procede maispor subtraco do que por adio. Ou ainda para a mxima latouriana(Latour, 1996) segundo a qual somos sempre ligeiramente superados peloque criamos.

    E no, no creio que essas (e outras) conexes, ainda que necessaria-

    mente parciais, sejam arbitrrias ou foradas. Pois essas teorias e prticas,sejam elas filosficas, antropolgicas ou nativas, so a consequncia deperspectivas que se recusam a imaginar um universo onde coisas e seres socriados do nada e onde, por mais que se produza, o vazio e a falta nocessam de existir. Essas teorias e prticas partem, ao contrrio, do princpiode que lidamos com um mundo pleno, onde o facto de nada faltar nosignifica que nada haja a fazer muito pelo contrrio.

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