Captulo 7
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Introduo: o debate (ainda permanente) sobre as causas dos transtornos mentais
Pode-se supor que o debate, ou pelo menos o interesse, sobre a origem ou causas dos trans-
tornos mentais existe praticamente desde a origem do homem. Os prprios termos sobre o
problema mental, desde o primitivo conceito pineliano de alienao mental, passando por
doena mental, e agora com transtorno mental e distrbio mental, que so os conceitos ado-
tados pela Psiquiatria, no tm signi#cados muito teis para representar aquilo que pretendem
de#nir, pois terminam necessitando de referncias ao conceito de normalidade (transtorno e
distrbio de uma dada normalidade). E a reside um grande problema.
O comportamento diferenciado de alguns, as atitudes exticas, o falar sozinho ou com
os deuses ou demnios, deve ter levantado hipteses (e ainda levantam), muito variadas,
de fatalidades a possesses e divindades. Por isso, o entendimento de tais fatos foi explica-
do predominantemente por causas sobrenaturais, mgicas, msticas e religiosas. Em outros
momentos, surgiram teorias mdicas de origens diversas, que associavam tais experincias
aos elementos da natureza, aos vapores e humores, aos miasmas e assim por diante. Aps
a descrio da paralisia geral progressiva (neuros#lis) por Bayle, em 1822, os defensores da
causalidade orgnica dos transtornos mentais encontraram motivos para supor que para to-
Medicalizao e determinao social
dos transtornos mentais: a questo da
indstria de medicamentos na produo
de saber e polticas
Paulo Amarante
Eduardo Henrique Guimares Torre
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Determinao Social da Sade e Reforma Sanitria
das as enfermidades mentais seria possvel encontrar um substrato orgnico. E o procuram
at hoje.
Isaias Pessotti (1994) fez uma importante anlise de toda a trajetria dos saberes sobre a lou-
cura, de Homero e Hipcrates, passando por Galeno e outras tantas referncias na trajetria das
cincias. No entanto, um marco fundamental para o pensamento da modernidade sobre a lou-
cura foi dado, certamente, pelo surgimento da obra de Philippe Pinel. E no apenas em relao
ao seu livro, que uma espcie de base terica de toda a Psiquiatria, mas de sua obra poltica,
de libertao dos loucos das correntes e, paradoxalmente, da fundao do hospcio de alienados.
Ou a menos da fama que se atribui a Pinel de todas estas proezas, pois Robert Castel (1978) nos
demonstrou que, na verdade, sua capacidade como manager foi muito mais de organizar deter-
minadas iniciativas que j vinham sendo realizadas e produzidas prtica e conceitualmente. O
homem certo na hora e lugar certos, diria Castel.
O Tratado mdico-"los"co sobre a alienao mental ou a mania (PINEL, 2007 [1801]), ou simples-
mente o Tratado, como #cou emblematicamente conhecido, uma obra de grande envergadura
terica. Pinel demonstra ser um exmio pesquisador, com slida formao #los#ca, cient#ca e
poltica, seguindo principalmente os ensinamentos de seus mestres Linnaeu, Cabanis, Condillac
e Locke. interessante observar que Pinel foi um grande mdico generalista, por assim dizer (j
que no existiam especialistas em sua poca), e a prova disto seu livro clssico Nosogra"a "los"ca
ou o mtodo de anlise aplicado Medicina, publicado pela primeira vez em 1798. Era, portanto, um
conhecedor de doenas e, no entanto, preferiu a denominao de alienao mental para designar
aquelas situaes que encontrava nos hospitais, e no o termo doena mental. Trata-se de uma
opo absolutamente consciente, defendida de forma radical por Pinel, inclusive em seus calo-
rosos debates com um de seus alunos, Bichat, que depois #caria conhecido como o fundador da
moderna anatomopatologia, a qual defendia a causalidade fsica dos distrbios mentais.
Pinel argumentava que
seria um erro tomar a alienao mental para objeto de investigaes, entregando-se a discusses
vagas sobre a sede do entendimento e a natureza de suas diversas leses (...) porque nada h de
mais obscuro e impenetrvel. (apud BRANDO, 1886, p. 62-63).
Para ele, a alienao mental tinha origem em causas morais, no desequilbrio das paixes.
E aqui poderia ser localizada, talvez, a primeira meno questo da determinao social dos
distrbios mentais, na medida em que para Pinel o desenvolvimento do processo civilizat-
rio teria inequvoca responsabilidade na origem dos mesmos. Atento aos acontecimentos que
ocorriam naqueles tempos de grandes transformaes polticas, econmicas e sociais, pois tal
era o cenrio da Revoluo Francesa, ele podia constatar que aumentavam os casos de alienao
mental no meio social.
Em O homem e a serpente (AMARANTE, 2008, p. 43), tecemos algumas re;exes sobre essa ob-
servao de Pinel:
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Medicalizao e determinao social dos transtornos mentais: a questo da indstria de medicamentos na produo de saber e polticas
Por certo, poderia se tratar do processo de medicalizao do social, de"nido por Foucault (1979),
quando a medicina passa a apropriar-se conceitualmente dos fenmenos sociais; poderia, tambm,
signi"car um processo de extenso do conceito de loucura, desrazo ou desvio, passando a abarcar
outras tantas situaes fronteirias de desajustamento social; poderia, ainda, estar acontecendo um
aumento real destas situaes na medida em que as rpidas e tumultuadas mudanas sociais, cultu-
rais e econmicas fariam aumentar as exigncias para com os indivduos, e, portanto, aumentariam
certas di"culdades no adaptar-se socialmente, o que reforaria as teorias sobre o desvio e o estigma
como categorias de acuao; poderia, "nalmente, suceder que, com essas mesmas mudanas no
quadro tico, ideolgico e cient"co, a loucura, a desrazo, o desvio e o desregramento estivessem
em franco processo de dessacralizao, de desmisti"cao e de desritualizao que, assim, no en-
contrassem mais as mesmas solues ou enquadres oferecidos pela religio, pelos mitos, pelos ritos e
pelas culturas, tornando-se, ento, suscetveis de explicao predominantemente mdica.
Esquirol, o mais expressivo discpulo de Pinel, viria a a#rmar, em 1838, na ocasio da apro-
vao da Lei de Assistncia aos Alienados (a primeira sobre o tema em toda a histria, que
in;uenciou vrias legislaes no mundo ocidental, inclusive a lei brasileira 1.1132 de 1903), que
a loucura o produto da sociedade e das in;uncias morais e intelectuais (1838 apud CASTEL,
1978, p. 111-112).
A incluso de variveis morais e intelectuais na determinao dos distrbios mentais reve-
la um campo complexo, no qual a di#culdade de se determinar os fatores, ou a inter-relao
de fatores sociais, culturais, fsicos, genticos, espirituais e ideolgicos, inaugura ou consolida
um debate que permanece ainda hoje. A doena mental, como categoria de acusao, um
recurso amplamente utilizado para nomear a diferena e a diversidade de alguns ou para in-
validar a atitude rebelde ou de luta de pessoas e sujeitos coletivos, como o caso exemplar da
denominao de Loucas da Praa de Maio, dada pelos militares s mes de desaparecidos da
ditadura argentina (BOUSQUET, 1983), alm de tantas outras formas de estigmatizao, violncias
e constrangimentos. Algumas histrias clssicas podem ser estudadas em Uma Histria Social da
Loucura, de Roy Porter (1990).
Simo Bacamarte e os novos territrios da loucuraUm autor que conseguiu explorar ampla e brilhantemente esse debate foi Machado de Assis,
em O Alienista, inicialmente, pela percepo da amplitude do conceito de loucura ou alienao
mental, na medida em que esto relacionados a aspectos morais e, portanto, ilimitveis. Simo
Bacamarte, o alienista, em conversa com seu amigo, a#rma: A loucura, objeto dos meus estu-
dos, era at agora uma ilha perdida no oceano da razo; comeo a suspeitar que seja um conti-
nente (MACHADO DE ASSIS, 1989 [1882], p. 29). Ou ainda:
Supondo o esprito humano uma vasta concha, o meu "m, Sr. Soares, ver se posso extrair a prola,
que a razo; por outros termos, demarquemos de"nitivamente os limites da razo, e da loucura. A
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Determinao Social da Sade e Reforma Sanitria
razo o perfeito equilbrio das faculdades; fora da insnia, insnia e s insnia. (MACHADO DE
ASSIS, 1989 [1882], p. 29).
Munido de conceitos e teorias de limites imprecisos entre a cincia e a moral, Simo Baca-
marte analisava os comportamentos e construa novas concepes. Assim que
homem de cincia e s de cincia, nada o consternava fora da cincia; e se alguma cousa o preocu-
pava naquela ocasio, se ele deixava correr pela multido um olhar inquieto e policial, no era outra
cousa mais do que a idia de que algum demente podia achar-se ali misturado com a gente de juzo.
(MACHADO DE ASSIS, 1989 [1882], p. 26).
Em suas palavras, pretendia ampliar o territrio da loucura. (MACHADO DE ASSIS, 1989 [1882],
p. 27-28).
E era com este objetivo que o
alienista procedeu a uma vasta classi"cao dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente
em duas classes principais: os furiosos e os mansos; da passou s subclasses, monomanias,
delrios, alucinaes diversas. Isto feito, comeou um estudo aturado e contnuo; analisava os
hbitos de cada louco, as horas de acesso, as averses, as simpatias, as palavras, os gestos,
as tendncias; inquiria da vida dos enfermos, pro"sso, costumes, circunstncias da revelao
mrbida, acidentes da infncia e da mocidade, doenas de outra espcie, antecedentes na fa-
mlia, uma devassa, en"m, como a no faria o mais atilado corregedor. E cada dia notava uma
observao nova, uma descoberta interessante, um fenmeno extraordinrio. (MACHADO DE
ASSIS, 1989 [1882], p. 23).
E os esforos e a atitude profundamente investigativa do alienista, ou esse despotismo cien-
t#co de que era acusado, produzia resultados visveis, j que, de
todas as vilas e arraiais vizinhos a4uam loucos Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram
monomanacos, era toda a famlia dos deserdados do esprito. Ao cabo de quatro meses a Casa
Verde era uma povoao. No bastaram os primeiros cubculos; mandou-se anexar uma galeria de
mais trinta e sete. (MACHADO DE ASSIS, 1989 [1882], p. 20).
A perspiccia de Machado de Assis, atento aos fenmenos sociais, aponta para o processo
de medicalizao inerente ao campo da loucura e distrbios mentais e do poder desptico que
contm o saber psiquitrico. Um vereador (personagem de O Alienista), referindo-se a esse poder
desmedido e a essa atitude que v doenas em tudo e em todos (e que tambm poderia produzir
as doenas), questiona: Quem nos a#rma que o alienado no o alienista?. (MACHADO DE ASSIS,
1989 [1882], p. 40).
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Medicalizao e determinao social dos transtornos mentais: a questo da indstria de medicamentos na produo de saber e polticas
O saber psiquitrico e a produo de doenasNo captulo A casa dos loucos, Foucault demonstra como Charcot, ao pesquisar a histeria
para poder apreender as caractersticas da doena, terminava por produzir o que pretendia co-
nhecer e descrever. Para Foucault,
o ponto de perfeio, miraculosa em demasia, foi atingido quando as doentes do servio de Charcot,
a pedido do poder-saber mdico, se puseram a reproduzir uma sintomatologia calcada na epilepsia,
isto , suscetvel de decifrao, conhecida e reconhecida nos termos de uma doena orgnica. E
en"m, episdio decisivo onde exatamente as duas funes do asilo - prova e produo da verdade
por um lado; conhecimento e constatao dos fenmenos por outro - se redistribuem e se super-
pem exatamente. O poder do mdico lhe permite produzir doravante a realidade de uma doena
mental cuja propriedade a de reproduzir fenmenos inteiramente acessveis ao conhecimento. A
histrica era a doente perfeita, pois que fazia conhecer. Ela retranscrevia por si prpria os efeitos do
poder mdico em formas que podiam ser descritas pelo mdico segundo um discurso cienti"camente
aceitvel. Quanto relao de poder que tornava possvel toda esta operao, como poderia ser
detectada j que as doentes dela se encarregavam e por ela se responsabilizavam - virtude suprema
da histeria, docilidade sem igual, verdadeira santidade epistemolgica. A relao de poder aparecia
na sintomatologia como sugestibilidade mrbida. Tudo se desdobrava da em diante na limpidez do
conhecimento, entre o sujeito conhecedor e o objeto conhecido. (1979, p. 123).
Mais recentemente, vem ocorrendo um interessante processo de produo de uma nova
mas nem tanto doena. Trata-se do distrbio de mltipla personalidade. Essa doena, igno-
rada 25 anos atrs, est ;orescendo na Amrica do Norte (HACKING, 2000, p. 12-13) e atualmen-
te acomete centenas de pessoas. A mltipla personalidade foi descrita originalmente como uma
forma bizarra de histeria (HACKING, 2000, p. 12-13) e o primeiro caso foi fotografado em cada
um de seus dez estados de personalidade. O fotgrafo foi nada mais nada menos que Charcot.
Hacking prossegue argumentando que os mltiplos, como so conhecidos, sempre foram
associados com hipnose e terapia de hipnose, por meio da qual as pessoas descobrem que foram
abusadas sexualmente na infncia. Ou seja, o distrbio de mltipla personalidade teria como
etiologia um trauma oriundo de um abuso sexual. A prpria Associao Americana de Psiquia-
tria passou a questionar se o distrbio seria uma doena verdadeira. Ou seria uma condio pro-
duzida pelas terapias de hipnose, regresso, vidas passadas e outras do gnero? Os mltiplos so
altamente sugestionveis; estariam no topo da escala de possibilidade de sugesto, diz Hacking.
Como uma condio aproximada ou derivada de um quadro histrico ou dissociativo, no seria
altamente considervel que estas situaes fossem induzidas?
A pergunta levantada pela Associao Americana de Psiquiatria bastante curiosa e intri-
gante. Por um lado, porque questiona a realidade do distrbio enquanto doena, seja no sentido
epistemolgico, seja pelo propsito de preservar o saber psiquitrico de acusaes relacionadas
a outros distrbios, sndromes, transtornos, desordens, que poderiam ser, da mesma forma,
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Determinao Social da Sade e Reforma Sanitria
produzidos por uma srie de estratgias que no apenas a sugestionalibidade. Por outro lado,
porque aceita, mesmo que involuntariamente, a possibilidade de que uma doena possa ser
produzida arti#cialmente.
E o que mais seria necessrio para que uma condio, digamos, arti#cial, venha a ser consi-
derada como doena? Hacking d algumas pistas interessantes. Uma delas vem por intermdio
de uma forma muito particular de de#nir um movimento (HACKING, 2000, p. 50-65). Para o au-
tor, os movimentos psicolgicos nasceram junto com a medicalizao da loucura. Ningum
hesita em falar do movimento fundado e orquestrado por Sigmund Freud, provoca Hacking
(2000, p. 50). Mas o que um movimento? Trata-se do conjunto de estratgias de produo de
conhecimentos, de veiculao pblica desses conhecimentos, de criao e organizao de atores
sociais inclusive contrrios aos princpios do movimento, pois, dentre outros aspectos, no
h nada como um inimigo comum para curar dissidncias (HACKING, 2000, p. 65) e de alguma
base social que aceite tais princpios. No caso do distrbio de mltipla personalidade, o ingre-
diente essencial do movimento dos mltiplos foi a obsesso americana com o abuso infantil, um
misto de fascnio, de repulsa, raiva e medo (HACKING, 2000, p. 51).
A outra argumentao do autor diz respeito produo de conhecimentos sobre a causao
da mltipla personalidade.
A psiquiatria no descobriu que os repetidos abusos infantis causam a mltipla personalidade. A
psiquiatria forjou esta interligao, da mesma forma que um ferreiro transforma um metal derretido
em ao temperado. (HACKING, 2000, p. 108).
A questo fundamental, perseguida pelo autor,
a forma pela qual a prpria idia de causa foi forjada. Depois que temos essa idia, obtemos um
instrumento muito poderoso para criar as pessoas, ou melhor, para nos criar. A alma que constru-
mos constantemente construda de acordo com um modelo explanatrio de como viemos a ser o que
somos. (HACKING, 2000, p. 108).
Muito prazer, Fulano de Tal, bipolar: identidade e produo de doenasO conceito de doena, to comum e usual no campo da Medicina, parece ser amplamente co-
nhecido e esclarecido, mas a realidade est muito longe disso. Berlinguer (1988, p. 19) considera
que tudo se complica quando se procura de#nir o que a doena; qual , portanto, a natureza
do fenmeno que se quer controlar, e nos convida a procurar os conceitos em dicionrios ou
enciclopdias e constatar as di#culdades em encontrar acepes coerentes umas com as outras.
Hegenberg, em Doena: um estudo #los#co (1998), prope-nos muitos outros desa#os e pro-
blemas relativos ao conceito de doena. En#m, tanto o conceito de doena quanto o de sade
(tal como o almejado estado de bem-estar fsico, mental e social, proposto pela Organizao
Mundial da Sade (OMS), em 1946) remetem a uma srie de aspectos polticos, ticos, morais,
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Medicalizao e determinao social dos transtornos mentais: a questo da indstria de medicamentos na produo de saber e polticas
ideolgicos e assim por diante, que submetem tais conceitos e as prticas do campo da sade
a muitos interesses e questes que escapam ao que se pretendia restringir no mbito exclusivo
das cincias e da Medicina.
Com tamanha impreciso, vimos como a medicalizao (ILLICH, 1975; FOUCAULT, 1977) en-
contra um campo frtil. De Pinel e Esquirol, construindo o conceito alienao, passando por
Charcot, produzindo as histricas que queria estudar e descrever, aos mltiplos, em voga nos
Estados Unidos, podemos citar alguns exemplos emblemticos para nossa re;exo. Porm,
mais recentemente, surge uma hiptese bem mais ousada e preocupante. Trata-se do conceito
de disease-mongering ou, em uma traduo mais objetiva, fabricao de doenas. O termo foi
criado por Lynn Payer (1992), redatora de revista mdica, que listou os dez mandamentos para
a fabricao bem-sucedida de uma nova doena. Destacamos alguns desses mandamentos,
tais como:
tomar uma funo normal e insinuar que h algo de errado com ela e que precisa ser tratada; encon-
trar sofrimento onde ele no necessariamente existe; de"nir uma parcela to grande quanto possvel
da populao afetada pela doena; (...) encontrar os mdicos certos; enquadrar as questes de ma-
neira muito particular; (...) tomar um sintoma comum, que possa signi"car qualquer coisa e faz-lo
parecer um sinal de alguma doena sria. (BERENSTEIN, 2007).
Muitas pessoas que se encontram com alguma forma de sofrimento ou de mal-estar social,
por sentirem-se rechaadas, rejeitadas, inoportunas e tantas outras possibilidades, identi#-
cam-se com determinados diagnsticos na medida em que, no momento em que passam a ser
consideradas doentes, deixam de ser culpadas por suas caractersticas, as quais, consideram
que incomodam os demais. Outras situaes de angstia, insatisfaes, tristeza, entre outras,
podem ser facilmente medicalizveis. Desta forma, as pesquisas epidemiolgicas podem ter
muito mais um signi#cado de produo de comportamentos patolgicos do que de auferio
de patologias no meio social. Muitas pessoas se apresentam como depressivas, portadoras
de pnico e bipolares. Quando a OMS anuncia que, em 2020, existiro milhes de pessoas
com depresso no mundo, no estaria, na verdade, construindo este cenrio? Quando a As-
sociao Brasileira de Psiquiatria (ABP), em cooperao com o Ibope, divulga uma pesquisa
que aponta para o fato de que 5 milhes de crianas tm sintomas de transtornos mentais,
no estaria contribuindo para a medicalizao da infncia? Como podemos veri#car a me-
todologia? A pesquisa recebeu apoio #nanceiro da indstria farmacutica, j que os recebe
abundantemente para seus congressos e publicaes? No um fato surpreendente o Ibope
realizar uma pesquisa cient#ca, que precisa passar por comits de tica e garantir uma srie
de aspectos, tais como sigilo? Na pgina da ABP no h qualquer referncia a esses aspectos
(ASSOCIAO BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA, 2008). Por que o Ibope e no uma universidade? Por que
no recursos dos editais do CNPq? O Brasil um dos pases onde ocorre a maior medicaliza-
o da infncia em todo o mundo.
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Determinao Social da Sade e Reforma Sanitria
Essa ordem de questes tem sido debatida mais recentemente em considervel parte do
mundo, com um destaque especial para os trabalhos de Marcia Angell. Catedrtica do Departa-
mento de Medicina Social da Havard Medical School, trabalhou muitos anos como editora cien-
t#ca da New England Journal of Medicine (CARVALHO, 2009). Aps constatar problemas ticos na
produo dos artigos, Marcia Angell passou, a partir de ento, a pesquisar o papel da indstria
farmacutica na produo de medicamentos. Repassamos, a seguir, algumas informaes sur-
preendentes, divulgadas em seu livro A verdade sobre os laboratrios farmacuticos (ANGELL, 2007),
que deveriam servir de base para a criao de uma agenda poltica dos movimentos sociais
democrticos no mbito da sade.
O espectro de denncias e crticas do livro muito amplo, desde as fraudes nas frmulas
e bulas at as informaes falsas e superfaturadas dos montantes gastos em pesquisa e desen-
volvimento (P&D), alm dos subornos e propinas. Mas nos dedicamos a alguns aspectos mais
espec#cos, que esto mais diretamente relacionados questo da medicalizao e da produo
de doenas, no sentido da determinao social dos transtornos mentais. Neste sentido, impor-
tante destacar que os laboratrios no tm acesso direto a sujeitos humanos, nem empregam
seus prprios mdicos para executar ensaios clnicos (ANGELL, 2007, p. 44). Isso os torna depen-
dentes dos servios pblicos, universitrios e de consultrios particulares. A participao das
instituies pblicas geralmente minimizada ou totalmente apagada, dando a entender que
os laboratrios assumem todas as despesas com P&D. Porm, considerando-se a necessidade
de muitos mais ensaios e com menor tempo de pesquisa, com o objetivo de chegar imedia-
tamente com o produto no mercado os laboratrios passaram a contratar empresas privadas
para realizar as pesquisas. A entrada dessas contract research organizations (CRO), ou seja, organi-
zaes para pesquisa por contrato, mereceria uma ateno especial, j que as mesmas escapam
dos ditames ticos exigidos para a pesquisa com seres humanos, ou pelo menos, certo que tais
pesquisas #cam muito menos sujeitas ao controle social e institucional das agncias pblicas de
produo de conhecimento. Por outro lado, suspeita-se que muitos dos recursos pagos por estas
empresas a mdicos participantes das pesquisas sejam, na verdade, pretexto para pag-los para
prescreverem os medicamentos da indstria #nanciadora da pesquisa (ANGELL, 2007). Poderiam
ser vistos como macetes promocionais (ANGELL, 2007, p. 55).
Outra questo diz respeito aos grupos de pacientes que so criados pela indstria farmacu-
tica. Tais grupos, constitudos aparentemente para defenderem direitos dos pacientes ou para
alcanarem benefcios, tais como medicamentos gratuitos ou com descontos, funcionam, na
verdade, como ms para atrair outras pessoas. Muitos recebem remunerao de algumas cen-
tenas a alguns milhares de dlares pela participao num ensaio (ANGELL, 2007, p. 46). Visto de
outro ngulo, como nos props Hacking (2000), podemos pensar na constituio de movimen-
tos sociais de pacientes, que contribuem para legitimar a doena, o tratamento, a ao ben#ca
da indstria. Tais pacientes tornam-se verdadeiros atores sociais, ativistas da doena.
Benedeto Saraceno, antes de assumir o Departamento de Sade Mental da OMS em Ge-
nebra, atentou para algumas das graves consequncias determinadas pelo poder econmico
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Medicalizao e determinao social dos transtornos mentais: a questo da indstria de medicamentos na produo de saber e polticas
da indstria farmacutica, dentre as quais uma forte, abrangente e #rme difuso de informa-
es distorcidas; uma cumplicidade intelectual de muitos lderes de opinio que produzem
informaes; estratgias informativas simpli#cadas, seguras e apetitosas para os receitantes e,
s vezes, para o paciente que receber a prescrio; o poder cultural e o condicionamento eco-
nmico de muitas instituies privadas ou pblicas de pesquisa farmacolgica determinam
uma cumplicidade na produo da pesquisa que, mesmo se formalmente correta do ponto de
vista metodolgico, frequentemente repetitiva, auto-reprodutiva e irrelevante para a sade
pblica (SARACENO, 1993).
Idias para uma agenda de luta sobre a medicalizaoJ no estamos debatendo a fragilidade epistemolgica de conceitos como transtornos men-
tais, doenas, distrbios, desordens mentais, sndromes... Da mesma forma como no estamos
debatendo as causalidades ou etiologias, se orgnicas, genticas, infecciosas, sociais, psicolgi-
cas, espirituais, traumticas... Estamos considerando que uma determinada forma de produo
de conhecimentos nesse campo pode criar realidades de doenas, tratamentos, prticas institu-
cionais, sociais, culturais e polticas.
No sentido de de#nir alguns pontos para a agenda poltica de luta a respeito do tema central
deste texto, ou seja, a participao da indstria de medicamentos na determinao social dos
transtornos mentais, #nalizamos com algumas propostas, em parte inspiradas nas ideias de
Marcia Angell (2007).
fundamental que seja equacionada e regulada a relao da indstria farmacutica com a
formao e atualizao mdica, seja com o #nanciamento de cursos e de material didtico, seja
com revistas cient#cas, congressos e pesquisas.
Em relao pesquisa, muitas universidades pblicas realizam pesquisas com #nanciamen-
tos da indstria farmacutica. Alguns dos protocolos no tm qualquer transparncia. Existem
situaes nas quais os resultados das pesquisas so entregues indstria #nanciadora, que exer-
ce poder de censura na divulgao dos mesmos. Quais as implicaes ticas envolvidas numa
situao em que uma universidade pblica realiza pesquisas sob encomenda para atores que
in;uenciam na formulao de polticas na rea? Muitas pesquisas epidemiolgicas que alar-
deiam aumentos assustadores de transtornos mentais se incluem nessa categoria de pesquisas
encomendadas. Na mesma linha, existem pesquisas sobre novas sndromes e transtornos que
precisariam ser mais bem controladas.
A indstria farmacutica deveria contribuir obrigatoriamente com o Fundo Nacional de Ci-
ncia e Tecnologia, cujos recursos seriam distribudos a partir de editais pblicos, com seleo
realizada por pares, como tem sido o caso dos editais do CNPq.
Da mesma forma, as associaes pro#ssionais, inclusive conselhos, que realizam congressos e
demais eventos com #nanciamento da indstria (muitos dos quais chegam a parecer verdadeiras
feiras de medicamentos, com ofertas de brindes, passagens, hospedagens luxuosas, banquetes e
festas), necessitam ser reguladas, precisam ser fruto de polticas pblicas e de controle social.
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Determinao Social da Sade e Reforma Sanitria
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