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Capítulo 7 151 Introdução: o debate (ainda permanente) sobre as causas dos transtornos mentais Pode-se supor que o debate, ou pelo menos o interesse, sobre a origem ou causas dos trans- tornos mentais existe praticamente desde a origem do homem. Os próprios termos sobre ‘o problema mental’, desde o primitivo conceito pineliano de ‘alienação mental’, passando por ‘doença mental’, e agora com ‘transtorno mental’ e ‘distúrbio mental’, que são os conceitos ado- tados pela Psiquiatria, não têm significados muito úteis para representar aquilo que pretendem definir, pois terminam necessitando de referências ao conceito de normalidade (transtorno e distúrbio de uma dada normalidade). E aí reside um grande problema. O comportamento diferenciado de alguns, as atitudes exóticas, o falar sozinho ou com os deuses ou demônios, deve ter levantado hipóteses (e ainda levantam), muito variadas, de fatalidades a possessões e divindades. Por isso, o entendimento de tais fatos foi explica- do predominantemente por causas sobrenaturais, mágicas, místicas e religiosas. Em outros momentos, surgiram teorias médicas de origens diversas, que associavam tais experiências aos elementos da natureza, aos vapores e humores, aos miasmas e assim por diante. Após a descrição da paralisia geral progressiva (neurosífilis) por Bayle, em 1822, os defensores da causalidade orgânica dos transtornos mentais encontraram motivos para supor que para to- Medicalização e determinação social dos transtornos mentais: a questão da indústria de medicamentos na produção de saber e políticas Paulo Amarante Eduardo Henrique Guimarães Torre

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  • Captulo 7

    151

    Introduo: o debate (ainda permanente) sobre as causas dos transtornos mentais

    Pode-se supor que o debate, ou pelo menos o interesse, sobre a origem ou causas dos trans-

    tornos mentais existe praticamente desde a origem do homem. Os prprios termos sobre o

    problema mental, desde o primitivo conceito pineliano de alienao mental, passando por

    doena mental, e agora com transtorno mental e distrbio mental, que so os conceitos ado-

    tados pela Psiquiatria, no tm signi#cados muito teis para representar aquilo que pretendem

    de#nir, pois terminam necessitando de referncias ao conceito de normalidade (transtorno e

    distrbio de uma dada normalidade). E a reside um grande problema.

    O comportamento diferenciado de alguns, as atitudes exticas, o falar sozinho ou com

    os deuses ou demnios, deve ter levantado hipteses (e ainda levantam), muito variadas,

    de fatalidades a possesses e divindades. Por isso, o entendimento de tais fatos foi explica-

    do predominantemente por causas sobrenaturais, mgicas, msticas e religiosas. Em outros

    momentos, surgiram teorias mdicas de origens diversas, que associavam tais experincias

    aos elementos da natureza, aos vapores e humores, aos miasmas e assim por diante. Aps

    a descrio da paralisia geral progressiva (neuros#lis) por Bayle, em 1822, os defensores da

    causalidade orgnica dos transtornos mentais encontraram motivos para supor que para to-

    Medicalizao e determinao social

    dos transtornos mentais: a questo da

    indstria de medicamentos na produo

    de saber e polticas

    Paulo Amarante

    Eduardo Henrique Guimares Torre

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    Determinao Social da Sade e Reforma Sanitria

    das as enfermidades mentais seria possvel encontrar um substrato orgnico. E o procuram

    at hoje.

    Isaias Pessotti (1994) fez uma importante anlise de toda a trajetria dos saberes sobre a lou-

    cura, de Homero e Hipcrates, passando por Galeno e outras tantas referncias na trajetria das

    cincias. No entanto, um marco fundamental para o pensamento da modernidade sobre a lou-

    cura foi dado, certamente, pelo surgimento da obra de Philippe Pinel. E no apenas em relao

    ao seu livro, que uma espcie de base terica de toda a Psiquiatria, mas de sua obra poltica,

    de libertao dos loucos das correntes e, paradoxalmente, da fundao do hospcio de alienados.

    Ou a menos da fama que se atribui a Pinel de todas estas proezas, pois Robert Castel (1978) nos

    demonstrou que, na verdade, sua capacidade como manager foi muito mais de organizar deter-

    minadas iniciativas que j vinham sendo realizadas e produzidas prtica e conceitualmente. O

    homem certo na hora e lugar certos, diria Castel.

    O Tratado mdico-"los"co sobre a alienao mental ou a mania (PINEL, 2007 [1801]), ou simples-

    mente o Tratado, como #cou emblematicamente conhecido, uma obra de grande envergadura

    terica. Pinel demonstra ser um exmio pesquisador, com slida formao #los#ca, cient#ca e

    poltica, seguindo principalmente os ensinamentos de seus mestres Linnaeu, Cabanis, Condillac

    e Locke. interessante observar que Pinel foi um grande mdico generalista, por assim dizer (j

    que no existiam especialistas em sua poca), e a prova disto seu livro clssico Nosogra"a "los"ca

    ou o mtodo de anlise aplicado Medicina, publicado pela primeira vez em 1798. Era, portanto, um

    conhecedor de doenas e, no entanto, preferiu a denominao de alienao mental para designar

    aquelas situaes que encontrava nos hospitais, e no o termo doena mental. Trata-se de uma

    opo absolutamente consciente, defendida de forma radical por Pinel, inclusive em seus calo-

    rosos debates com um de seus alunos, Bichat, que depois #caria conhecido como o fundador da

    moderna anatomopatologia, a qual defendia a causalidade fsica dos distrbios mentais.

    Pinel argumentava que

    seria um erro tomar a alienao mental para objeto de investigaes, entregando-se a discusses

    vagas sobre a sede do entendimento e a natureza de suas diversas leses (...) porque nada h de

    mais obscuro e impenetrvel. (apud BRANDO, 1886, p. 62-63).

    Para ele, a alienao mental tinha origem em causas morais, no desequilbrio das paixes.

    E aqui poderia ser localizada, talvez, a primeira meno questo da determinao social dos

    distrbios mentais, na medida em que para Pinel o desenvolvimento do processo civilizat-

    rio teria inequvoca responsabilidade na origem dos mesmos. Atento aos acontecimentos que

    ocorriam naqueles tempos de grandes transformaes polticas, econmicas e sociais, pois tal

    era o cenrio da Revoluo Francesa, ele podia constatar que aumentavam os casos de alienao

    mental no meio social.

    Em O homem e a serpente (AMARANTE, 2008, p. 43), tecemos algumas re;exes sobre essa ob-

    servao de Pinel:

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    Medicalizao e determinao social dos transtornos mentais: a questo da indstria de medicamentos na produo de saber e polticas

    Por certo, poderia se tratar do processo de medicalizao do social, de"nido por Foucault (1979),

    quando a medicina passa a apropriar-se conceitualmente dos fenmenos sociais; poderia, tambm,

    signi"car um processo de extenso do conceito de loucura, desrazo ou desvio, passando a abarcar

    outras tantas situaes fronteirias de desajustamento social; poderia, ainda, estar acontecendo um

    aumento real destas situaes na medida em que as rpidas e tumultuadas mudanas sociais, cultu-

    rais e econmicas fariam aumentar as exigncias para com os indivduos, e, portanto, aumentariam

    certas di"culdades no adaptar-se socialmente, o que reforaria as teorias sobre o desvio e o estigma

    como categorias de acuao; poderia, "nalmente, suceder que, com essas mesmas mudanas no

    quadro tico, ideolgico e cient"co, a loucura, a desrazo, o desvio e o desregramento estivessem

    em franco processo de dessacralizao, de desmisti"cao e de desritualizao que, assim, no en-

    contrassem mais as mesmas solues ou enquadres oferecidos pela religio, pelos mitos, pelos ritos e

    pelas culturas, tornando-se, ento, suscetveis de explicao predominantemente mdica.

    Esquirol, o mais expressivo discpulo de Pinel, viria a a#rmar, em 1838, na ocasio da apro-

    vao da Lei de Assistncia aos Alienados (a primeira sobre o tema em toda a histria, que

    in;uenciou vrias legislaes no mundo ocidental, inclusive a lei brasileira 1.1132 de 1903), que

    a loucura o produto da sociedade e das in;uncias morais e intelectuais (1838 apud CASTEL,

    1978, p. 111-112).

    A incluso de variveis morais e intelectuais na determinao dos distrbios mentais reve-

    la um campo complexo, no qual a di#culdade de se determinar os fatores, ou a inter-relao

    de fatores sociais, culturais, fsicos, genticos, espirituais e ideolgicos, inaugura ou consolida

    um debate que permanece ainda hoje. A doena mental, como categoria de acusao, um

    recurso amplamente utilizado para nomear a diferena e a diversidade de alguns ou para in-

    validar a atitude rebelde ou de luta de pessoas e sujeitos coletivos, como o caso exemplar da

    denominao de Loucas da Praa de Maio, dada pelos militares s mes de desaparecidos da

    ditadura argentina (BOUSQUET, 1983), alm de tantas outras formas de estigmatizao, violncias

    e constrangimentos. Algumas histrias clssicas podem ser estudadas em Uma Histria Social da

    Loucura, de Roy Porter (1990).

    Simo Bacamarte e os novos territrios da loucuraUm autor que conseguiu explorar ampla e brilhantemente esse debate foi Machado de Assis,

    em O Alienista, inicialmente, pela percepo da amplitude do conceito de loucura ou alienao

    mental, na medida em que esto relacionados a aspectos morais e, portanto, ilimitveis. Simo

    Bacamarte, o alienista, em conversa com seu amigo, a#rma: A loucura, objeto dos meus estu-

    dos, era at agora uma ilha perdida no oceano da razo; comeo a suspeitar que seja um conti-

    nente (MACHADO DE ASSIS, 1989 [1882], p. 29). Ou ainda:

    Supondo o esprito humano uma vasta concha, o meu "m, Sr. Soares, ver se posso extrair a prola,

    que a razo; por outros termos, demarquemos de"nitivamente os limites da razo, e da loucura. A

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    Determinao Social da Sade e Reforma Sanitria

    razo o perfeito equilbrio das faculdades; fora da insnia, insnia e s insnia. (MACHADO DE

    ASSIS, 1989 [1882], p. 29).

    Munido de conceitos e teorias de limites imprecisos entre a cincia e a moral, Simo Baca-

    marte analisava os comportamentos e construa novas concepes. Assim que

    homem de cincia e s de cincia, nada o consternava fora da cincia; e se alguma cousa o preocu-

    pava naquela ocasio, se ele deixava correr pela multido um olhar inquieto e policial, no era outra

    cousa mais do que a idia de que algum demente podia achar-se ali misturado com a gente de juzo.

    (MACHADO DE ASSIS, 1989 [1882], p. 26).

    Em suas palavras, pretendia ampliar o territrio da loucura. (MACHADO DE ASSIS, 1989 [1882],

    p. 27-28).

    E era com este objetivo que o

    alienista procedeu a uma vasta classi"cao dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente

    em duas classes principais: os furiosos e os mansos; da passou s subclasses, monomanias,

    delrios, alucinaes diversas. Isto feito, comeou um estudo aturado e contnuo; analisava os

    hbitos de cada louco, as horas de acesso, as averses, as simpatias, as palavras, os gestos,

    as tendncias; inquiria da vida dos enfermos, pro"sso, costumes, circunstncias da revelao

    mrbida, acidentes da infncia e da mocidade, doenas de outra espcie, antecedentes na fa-

    mlia, uma devassa, en"m, como a no faria o mais atilado corregedor. E cada dia notava uma

    observao nova, uma descoberta interessante, um fenmeno extraordinrio. (MACHADO DE

    ASSIS, 1989 [1882], p. 23).

    E os esforos e a atitude profundamente investigativa do alienista, ou esse despotismo cien-

    t#co de que era acusado, produzia resultados visveis, j que, de

    todas as vilas e arraiais vizinhos a4uam loucos Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram

    monomanacos, era toda a famlia dos deserdados do esprito. Ao cabo de quatro meses a Casa

    Verde era uma povoao. No bastaram os primeiros cubculos; mandou-se anexar uma galeria de

    mais trinta e sete. (MACHADO DE ASSIS, 1989 [1882], p. 20).

    A perspiccia de Machado de Assis, atento aos fenmenos sociais, aponta para o processo

    de medicalizao inerente ao campo da loucura e distrbios mentais e do poder desptico que

    contm o saber psiquitrico. Um vereador (personagem de O Alienista), referindo-se a esse poder

    desmedido e a essa atitude que v doenas em tudo e em todos (e que tambm poderia produzir

    as doenas), questiona: Quem nos a#rma que o alienado no o alienista?. (MACHADO DE ASSIS,

    1989 [1882], p. 40).

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    Medicalizao e determinao social dos transtornos mentais: a questo da indstria de medicamentos na produo de saber e polticas

    O saber psiquitrico e a produo de doenasNo captulo A casa dos loucos, Foucault demonstra como Charcot, ao pesquisar a histeria

    para poder apreender as caractersticas da doena, terminava por produzir o que pretendia co-

    nhecer e descrever. Para Foucault,

    o ponto de perfeio, miraculosa em demasia, foi atingido quando as doentes do servio de Charcot,

    a pedido do poder-saber mdico, se puseram a reproduzir uma sintomatologia calcada na epilepsia,

    isto , suscetvel de decifrao, conhecida e reconhecida nos termos de uma doena orgnica. E

    en"m, episdio decisivo onde exatamente as duas funes do asilo - prova e produo da verdade

    por um lado; conhecimento e constatao dos fenmenos por outro - se redistribuem e se super-

    pem exatamente. O poder do mdico lhe permite produzir doravante a realidade de uma doena

    mental cuja propriedade a de reproduzir fenmenos inteiramente acessveis ao conhecimento. A

    histrica era a doente perfeita, pois que fazia conhecer. Ela retranscrevia por si prpria os efeitos do

    poder mdico em formas que podiam ser descritas pelo mdico segundo um discurso cienti"camente

    aceitvel. Quanto relao de poder que tornava possvel toda esta operao, como poderia ser

    detectada j que as doentes dela se encarregavam e por ela se responsabilizavam - virtude suprema

    da histeria, docilidade sem igual, verdadeira santidade epistemolgica. A relao de poder aparecia

    na sintomatologia como sugestibilidade mrbida. Tudo se desdobrava da em diante na limpidez do

    conhecimento, entre o sujeito conhecedor e o objeto conhecido. (1979, p. 123).

    Mais recentemente, vem ocorrendo um interessante processo de produo de uma nova

    mas nem tanto doena. Trata-se do distrbio de mltipla personalidade. Essa doena, igno-

    rada 25 anos atrs, est ;orescendo na Amrica do Norte (HACKING, 2000, p. 12-13) e atualmen-

    te acomete centenas de pessoas. A mltipla personalidade foi descrita originalmente como uma

    forma bizarra de histeria (HACKING, 2000, p. 12-13) e o primeiro caso foi fotografado em cada

    um de seus dez estados de personalidade. O fotgrafo foi nada mais nada menos que Charcot.

    Hacking prossegue argumentando que os mltiplos, como so conhecidos, sempre foram

    associados com hipnose e terapia de hipnose, por meio da qual as pessoas descobrem que foram

    abusadas sexualmente na infncia. Ou seja, o distrbio de mltipla personalidade teria como

    etiologia um trauma oriundo de um abuso sexual. A prpria Associao Americana de Psiquia-

    tria passou a questionar se o distrbio seria uma doena verdadeira. Ou seria uma condio pro-

    duzida pelas terapias de hipnose, regresso, vidas passadas e outras do gnero? Os mltiplos so

    altamente sugestionveis; estariam no topo da escala de possibilidade de sugesto, diz Hacking.

    Como uma condio aproximada ou derivada de um quadro histrico ou dissociativo, no seria

    altamente considervel que estas situaes fossem induzidas?

    A pergunta levantada pela Associao Americana de Psiquiatria bastante curiosa e intri-

    gante. Por um lado, porque questiona a realidade do distrbio enquanto doena, seja no sentido

    epistemolgico, seja pelo propsito de preservar o saber psiquitrico de acusaes relacionadas

    a outros distrbios, sndromes, transtornos, desordens, que poderiam ser, da mesma forma,

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    Determinao Social da Sade e Reforma Sanitria

    produzidos por uma srie de estratgias que no apenas a sugestionalibidade. Por outro lado,

    porque aceita, mesmo que involuntariamente, a possibilidade de que uma doena possa ser

    produzida arti#cialmente.

    E o que mais seria necessrio para que uma condio, digamos, arti#cial, venha a ser consi-

    derada como doena? Hacking d algumas pistas interessantes. Uma delas vem por intermdio

    de uma forma muito particular de de#nir um movimento (HACKING, 2000, p. 50-65). Para o au-

    tor, os movimentos psicolgicos nasceram junto com a medicalizao da loucura. Ningum

    hesita em falar do movimento fundado e orquestrado por Sigmund Freud, provoca Hacking

    (2000, p. 50). Mas o que um movimento? Trata-se do conjunto de estratgias de produo de

    conhecimentos, de veiculao pblica desses conhecimentos, de criao e organizao de atores

    sociais inclusive contrrios aos princpios do movimento, pois, dentre outros aspectos, no

    h nada como um inimigo comum para curar dissidncias (HACKING, 2000, p. 65) e de alguma

    base social que aceite tais princpios. No caso do distrbio de mltipla personalidade, o ingre-

    diente essencial do movimento dos mltiplos foi a obsesso americana com o abuso infantil, um

    misto de fascnio, de repulsa, raiva e medo (HACKING, 2000, p. 51).

    A outra argumentao do autor diz respeito produo de conhecimentos sobre a causao

    da mltipla personalidade.

    A psiquiatria no descobriu que os repetidos abusos infantis causam a mltipla personalidade. A

    psiquiatria forjou esta interligao, da mesma forma que um ferreiro transforma um metal derretido

    em ao temperado. (HACKING, 2000, p. 108).

    A questo fundamental, perseguida pelo autor,

    a forma pela qual a prpria idia de causa foi forjada. Depois que temos essa idia, obtemos um

    instrumento muito poderoso para criar as pessoas, ou melhor, para nos criar. A alma que constru-

    mos constantemente construda de acordo com um modelo explanatrio de como viemos a ser o que

    somos. (HACKING, 2000, p. 108).

    Muito prazer, Fulano de Tal, bipolar: identidade e produo de doenasO conceito de doena, to comum e usual no campo da Medicina, parece ser amplamente co-

    nhecido e esclarecido, mas a realidade est muito longe disso. Berlinguer (1988, p. 19) considera

    que tudo se complica quando se procura de#nir o que a doena; qual , portanto, a natureza

    do fenmeno que se quer controlar, e nos convida a procurar os conceitos em dicionrios ou

    enciclopdias e constatar as di#culdades em encontrar acepes coerentes umas com as outras.

    Hegenberg, em Doena: um estudo #los#co (1998), prope-nos muitos outros desa#os e pro-

    blemas relativos ao conceito de doena. En#m, tanto o conceito de doena quanto o de sade

    (tal como o almejado estado de bem-estar fsico, mental e social, proposto pela Organizao

    Mundial da Sade (OMS), em 1946) remetem a uma srie de aspectos polticos, ticos, morais,

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    Medicalizao e determinao social dos transtornos mentais: a questo da indstria de medicamentos na produo de saber e polticas

    ideolgicos e assim por diante, que submetem tais conceitos e as prticas do campo da sade

    a muitos interesses e questes que escapam ao que se pretendia restringir no mbito exclusivo

    das cincias e da Medicina.

    Com tamanha impreciso, vimos como a medicalizao (ILLICH, 1975; FOUCAULT, 1977) en-

    contra um campo frtil. De Pinel e Esquirol, construindo o conceito alienao, passando por

    Charcot, produzindo as histricas que queria estudar e descrever, aos mltiplos, em voga nos

    Estados Unidos, podemos citar alguns exemplos emblemticos para nossa re;exo. Porm,

    mais recentemente, surge uma hiptese bem mais ousada e preocupante. Trata-se do conceito

    de disease-mongering ou, em uma traduo mais objetiva, fabricao de doenas. O termo foi

    criado por Lynn Payer (1992), redatora de revista mdica, que listou os dez mandamentos para

    a fabricao bem-sucedida de uma nova doena. Destacamos alguns desses mandamentos,

    tais como:

    tomar uma funo normal e insinuar que h algo de errado com ela e que precisa ser tratada; encon-

    trar sofrimento onde ele no necessariamente existe; de"nir uma parcela to grande quanto possvel

    da populao afetada pela doena; (...) encontrar os mdicos certos; enquadrar as questes de ma-

    neira muito particular; (...) tomar um sintoma comum, que possa signi"car qualquer coisa e faz-lo

    parecer um sinal de alguma doena sria. (BERENSTEIN, 2007).

    Muitas pessoas que se encontram com alguma forma de sofrimento ou de mal-estar social,

    por sentirem-se rechaadas, rejeitadas, inoportunas e tantas outras possibilidades, identi#-

    cam-se com determinados diagnsticos na medida em que, no momento em que passam a ser

    consideradas doentes, deixam de ser culpadas por suas caractersticas, as quais, consideram

    que incomodam os demais. Outras situaes de angstia, insatisfaes, tristeza, entre outras,

    podem ser facilmente medicalizveis. Desta forma, as pesquisas epidemiolgicas podem ter

    muito mais um signi#cado de produo de comportamentos patolgicos do que de auferio

    de patologias no meio social. Muitas pessoas se apresentam como depressivas, portadoras

    de pnico e bipolares. Quando a OMS anuncia que, em 2020, existiro milhes de pessoas

    com depresso no mundo, no estaria, na verdade, construindo este cenrio? Quando a As-

    sociao Brasileira de Psiquiatria (ABP), em cooperao com o Ibope, divulga uma pesquisa

    que aponta para o fato de que 5 milhes de crianas tm sintomas de transtornos mentais,

    no estaria contribuindo para a medicalizao da infncia? Como podemos veri#car a me-

    todologia? A pesquisa recebeu apoio #nanceiro da indstria farmacutica, j que os recebe

    abundantemente para seus congressos e publicaes? No um fato surpreendente o Ibope

    realizar uma pesquisa cient#ca, que precisa passar por comits de tica e garantir uma srie

    de aspectos, tais como sigilo? Na pgina da ABP no h qualquer referncia a esses aspectos

    (ASSOCIAO BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA, 2008). Por que o Ibope e no uma universidade? Por que

    no recursos dos editais do CNPq? O Brasil um dos pases onde ocorre a maior medicaliza-

    o da infncia em todo o mundo.

  • 158

    Determinao Social da Sade e Reforma Sanitria

    Essa ordem de questes tem sido debatida mais recentemente em considervel parte do

    mundo, com um destaque especial para os trabalhos de Marcia Angell. Catedrtica do Departa-

    mento de Medicina Social da Havard Medical School, trabalhou muitos anos como editora cien-

    t#ca da New England Journal of Medicine (CARVALHO, 2009). Aps constatar problemas ticos na

    produo dos artigos, Marcia Angell passou, a partir de ento, a pesquisar o papel da indstria

    farmacutica na produo de medicamentos. Repassamos, a seguir, algumas informaes sur-

    preendentes, divulgadas em seu livro A verdade sobre os laboratrios farmacuticos (ANGELL, 2007),

    que deveriam servir de base para a criao de uma agenda poltica dos movimentos sociais

    democrticos no mbito da sade.

    O espectro de denncias e crticas do livro muito amplo, desde as fraudes nas frmulas

    e bulas at as informaes falsas e superfaturadas dos montantes gastos em pesquisa e desen-

    volvimento (P&D), alm dos subornos e propinas. Mas nos dedicamos a alguns aspectos mais

    espec#cos, que esto mais diretamente relacionados questo da medicalizao e da produo

    de doenas, no sentido da determinao social dos transtornos mentais. Neste sentido, impor-

    tante destacar que os laboratrios no tm acesso direto a sujeitos humanos, nem empregam

    seus prprios mdicos para executar ensaios clnicos (ANGELL, 2007, p. 44). Isso os torna depen-

    dentes dos servios pblicos, universitrios e de consultrios particulares. A participao das

    instituies pblicas geralmente minimizada ou totalmente apagada, dando a entender que

    os laboratrios assumem todas as despesas com P&D. Porm, considerando-se a necessidade

    de muitos mais ensaios e com menor tempo de pesquisa, com o objetivo de chegar imedia-

    tamente com o produto no mercado os laboratrios passaram a contratar empresas privadas

    para realizar as pesquisas. A entrada dessas contract research organizations (CRO), ou seja, organi-

    zaes para pesquisa por contrato, mereceria uma ateno especial, j que as mesmas escapam

    dos ditames ticos exigidos para a pesquisa com seres humanos, ou pelo menos, certo que tais

    pesquisas #cam muito menos sujeitas ao controle social e institucional das agncias pblicas de

    produo de conhecimento. Por outro lado, suspeita-se que muitos dos recursos pagos por estas

    empresas a mdicos participantes das pesquisas sejam, na verdade, pretexto para pag-los para

    prescreverem os medicamentos da indstria #nanciadora da pesquisa (ANGELL, 2007). Poderiam

    ser vistos como macetes promocionais (ANGELL, 2007, p. 55).

    Outra questo diz respeito aos grupos de pacientes que so criados pela indstria farmacu-

    tica. Tais grupos, constitudos aparentemente para defenderem direitos dos pacientes ou para

    alcanarem benefcios, tais como medicamentos gratuitos ou com descontos, funcionam, na

    verdade, como ms para atrair outras pessoas. Muitos recebem remunerao de algumas cen-

    tenas a alguns milhares de dlares pela participao num ensaio (ANGELL, 2007, p. 46). Visto de

    outro ngulo, como nos props Hacking (2000), podemos pensar na constituio de movimen-

    tos sociais de pacientes, que contribuem para legitimar a doena, o tratamento, a ao ben#ca

    da indstria. Tais pacientes tornam-se verdadeiros atores sociais, ativistas da doena.

    Benedeto Saraceno, antes de assumir o Departamento de Sade Mental da OMS em Ge-

    nebra, atentou para algumas das graves consequncias determinadas pelo poder econmico

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    Medicalizao e determinao social dos transtornos mentais: a questo da indstria de medicamentos na produo de saber e polticas

    da indstria farmacutica, dentre as quais uma forte, abrangente e #rme difuso de informa-

    es distorcidas; uma cumplicidade intelectual de muitos lderes de opinio que produzem

    informaes; estratgias informativas simpli#cadas, seguras e apetitosas para os receitantes e,

    s vezes, para o paciente que receber a prescrio; o poder cultural e o condicionamento eco-

    nmico de muitas instituies privadas ou pblicas de pesquisa farmacolgica determinam

    uma cumplicidade na produo da pesquisa que, mesmo se formalmente correta do ponto de

    vista metodolgico, frequentemente repetitiva, auto-reprodutiva e irrelevante para a sade

    pblica (SARACENO, 1993).

    Idias para uma agenda de luta sobre a medicalizaoJ no estamos debatendo a fragilidade epistemolgica de conceitos como transtornos men-

    tais, doenas, distrbios, desordens mentais, sndromes... Da mesma forma como no estamos

    debatendo as causalidades ou etiologias, se orgnicas, genticas, infecciosas, sociais, psicolgi-

    cas, espirituais, traumticas... Estamos considerando que uma determinada forma de produo

    de conhecimentos nesse campo pode criar realidades de doenas, tratamentos, prticas institu-

    cionais, sociais, culturais e polticas.

    No sentido de de#nir alguns pontos para a agenda poltica de luta a respeito do tema central

    deste texto, ou seja, a participao da indstria de medicamentos na determinao social dos

    transtornos mentais, #nalizamos com algumas propostas, em parte inspiradas nas ideias de

    Marcia Angell (2007).

    fundamental que seja equacionada e regulada a relao da indstria farmacutica com a

    formao e atualizao mdica, seja com o #nanciamento de cursos e de material didtico, seja

    com revistas cient#cas, congressos e pesquisas.

    Em relao pesquisa, muitas universidades pblicas realizam pesquisas com #nanciamen-

    tos da indstria farmacutica. Alguns dos protocolos no tm qualquer transparncia. Existem

    situaes nas quais os resultados das pesquisas so entregues indstria #nanciadora, que exer-

    ce poder de censura na divulgao dos mesmos. Quais as implicaes ticas envolvidas numa

    situao em que uma universidade pblica realiza pesquisas sob encomenda para atores que

    in;uenciam na formulao de polticas na rea? Muitas pesquisas epidemiolgicas que alar-

    deiam aumentos assustadores de transtornos mentais se incluem nessa categoria de pesquisas

    encomendadas. Na mesma linha, existem pesquisas sobre novas sndromes e transtornos que

    precisariam ser mais bem controladas.

    A indstria farmacutica deveria contribuir obrigatoriamente com o Fundo Nacional de Ci-

    ncia e Tecnologia, cujos recursos seriam distribudos a partir de editais pblicos, com seleo

    realizada por pares, como tem sido o caso dos editais do CNPq.

    Da mesma forma, as associaes pro#ssionais, inclusive conselhos, que realizam congressos e

    demais eventos com #nanciamento da indstria (muitos dos quais chegam a parecer verdadeiras

    feiras de medicamentos, com ofertas de brindes, passagens, hospedagens luxuosas, banquetes e

    festas), necessitam ser reguladas, precisam ser fruto de polticas pblicas e de controle social.

  • 160

    Determinao Social da Sade e Reforma Sanitria

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