A Arte Narrativa segundo Borges e o Ex-mágico Rubião
Maria Aparecida BarbosaDoutora em Literatura
Na coletânea Discusión publicada em 1989 pela Editora Emecé, de Barcelona, há
um texto, de 1932, denominado “El arte narrativo y la magia”, no qual Jorge Luis Borges
tenta averiguar como os narradores de novelas fabulosas conseguem despertar a fé
poética. O autor pressupõe que haveria uma relação com “uma forte aparência de
veracidade, capaz de produzir a suspensão da dúvida” (BORGES, 1989, p. 226). Essa “fé
poética”, ele explica mais clara e detidamente num ensaio da coletânea Sete Noites,
dedicado à Divina Comédia de Dante Alighieri. Tratar-se-ia de um abandonar-se
voluntário durante a fruição da leitura. Referindo-se a Coleridge, fala da fé poética como
uma “voluntária suspensão da incredulidade” (BORGES, 1999, volume III, p. 231).
Quando assistimos a uma representação teatral, sabemos que no palco há homens disfarçados que repetem as palavras de Shakespeare, de Ibsen ou de Pirandello que lhes puseram na boca. Mas nós aceitamos que esses homens não estão disfarçados; que esse homem, disfarçado que monologa lentamente nas ante-salas da vingança é na realidade o príncipe da Dinamarca, Hamlet; abandonamo-nos. No cinematógrafo é ainda mais curioso o procedimento porque aí vemos não mais o disfarçado, mas fotografias de disfarçados, e mesmo assim acreditamos neles enquanto dura a projeção. (BORGES, 1999, volume III, p. 231)
No ensaio de 32, Borges emprega o termo “magia” para postular uma distinção
entre processos causais do relato. Num primeiro caso, haveria uma concatenação de
motivos que imitariam o mundo real. Recorrendo aos estudos de Frazer compilados em O
Ramo de Ouro (1920), o gênero narrativo pode ser, por outro lado, regido por uma ordem
bem diversa, um vínculo inevitável entre coisas distantes que caracteriza a magia imitativa
e homeopática. Borges ilustra essa segunda forma de causalidade da narrativa com as
mulheres estéreis de Sumatra que cuidam de meninos de madeira, afim de que seu
ventre fecunde; e com o caso da raiz amarela da cúrcuma, que, por semelhantes razões
analógicas, presta-se para a cura da icterícia; ou ainda com a infusão de urtigas, usada
para combater a urticária. Lúcida e atávica, a ordem narrativa baseada nessa fórmula é
mais valorizada no texto.
Concomitante ao ensaio de Borges, reporto-me à trajetória de um escritor de
parcos, mas bastante representativos contos da literatura brasileira, o escritor mineiro
Murilo Rubião. Considero importante destacar-lhe alguns dados biográficos. Apesar de
algumas experiências em prosa inéditas, e três poemas publicados que ele considerava
“péssimos”, o escritor começou a escrever, de fato, no suplemento literário da Folha de
Minas, um pequeno jornal de Belo Horizonte, que, na verdade, nunca chegou a vingar
dentro da mídia daquele estado, pois se manteve constantemente em dificuldades
financeiras. Principalmente nos anos 40, contudo, passaram pela sua redação intelectuais
como Afonso Arinos, Cyro dos Anos, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Roberto
Drummond, Ziraldo, Ivan Ângelo e o próprio Murilo, que ali divulgou grande parte de seus
textos. A partir de 1966, esse escritor fundou e dirigiu o Suplemento Literário do diário
oficial Minas Gerais, que, em seus primórdios e áureos anos, num período que vai até
1975 mais ou menos, contou com colaboradores como João Guimarães Rosa, Carlos
Drummond de Andrade e Murilo Mendes. Além de poesias e ensaios literários, o
Suplemento publica artigos sobre teatro, cinema e artes plásticas.
Da década de 30 do século passado, isto é, contemporâneo ao texto de Borges
sobre a narrativa, é o conto “O Ex-Mágico da Taberna Minhota”. Trata-se, nesse caso, do
lamento de um homem mágico muito habilidoso, capaz de fazer delirar platéias com seus
truques, que, no entanto, não valorizou seus talentos. Tanto que acaba por perdê-los,
finalmente, ficando até mesmo sem o emprego de funcionário público que, através de
farsas, pretendeu, em vão, manter. A epígrafe, retirada da Bíblia, introduz a narrativa:
“Inclina, senhor, o teu ouvido, e ouve-me, porque, eu sou desvalido e pobre” – Salmos
LXXXV, 1. Murilo incorporou à sua literatura recursos míticos religiosos e, parece-me que
essa prática pode ser analisada como se fosse a busca de um vínculo inevitável entre
coisas distantes, análoga à ordem narrativa homeopática estudada por Borges.
A partir dessas epígrafes, Jorge Schwartz empreende em 1976 o estudo Murilo
Rubião: a poética do Uroboro, publicado em 1981 pela Editora Ática. Para enfatizar o
absurdo do sentido existencial, ele aproxima os personagens murilianos da serpente
mítica que morde sua própria cauda. Ao todo, o autor empregou 38 epígrafes bíblicas em
sua literatura, ou seja, usou-as de fato como um programa textual. Embora as citações se
impregnem dum diálogo com o novo contexto no qual estão sendo inseridas, elas mantêm
o peso do passado, mantêm o peso semântico dos textos bíblicos. Esse é um dos motivos
que sempre levou a crítica (refiro-me ao prefácio da edição Ática, escrita por Davi
Arrigucci Júnior, ao mencionado livro de Jorge Schwartz e a um artigo de Sérgio
Sant’Ana, publicado no Suplemento Literário) a considerá-lo o primeiro autor fantástico da
literatura brasileira. Tal interpretação, a partir do estudo dos gêneros literários me parece
pertinente. Acredito, todavia, que o texto de Murilo subverte as tentativas de exegese
conclusivas. Por um lado, sim, a narrativa homeopática, faz dele um autor de textos
fantásticos. Mas não exclusivamente. Vejamos como isso ocorre.
A aparentemente fragmentária análise desta comunicação não desconsidera a
definição precisa de conceitos como meio de reunir num todo coeso minha leitura da obra
de Murilo Rubião e de Borges. Para esse fim, aproprio-me da acepção atribuída pela
semióloga Mieke Bal, uma das fundadoras da ASCA1, segundo a qual:
Os conceitos teóricos ou jargões técnicos constituem instrumentos da intersubjetividade: eles contribuem para articular compreensão, para a comunicação de uma interpretação, e para refrear a fantasia fértil (wild gewordene Phantasie), além de possibilitar também uma discussão baseada numa terminologia comum. (BAL, 2002, p.10)
1 A ASCA - Amsterdam School of Cultural Analysis é um grêmio para doutorandos e pós-doutorandos. A essência desse centro de pesquisas é o reflexo das principais características dos “wandernden Begriffen”/”travelling concepts”, ou “conceitos nômades”, idéia inaugurada por Mieke Bal de constituir pontes entre diferentes disciplinas através de uma metodologia interdisciplinar.
Não me proponho a classificar o texto como pertencente a um gênero, mas sim, a
salientar características que o levam a participar de um ou mais gêneros em
determinados momentos. Nesse sentido, esboço um estudo da literatura proposta a partir
da confrontação de certos conceitos teóricos. Sendo assim, arrolo, para uma questão de
explicitação algumas considerações sobre termos que constantemente se imbricam. Seria
importante lembrar que “maravilhoso”, por exemplo, é um conceito que tem servido para:
...designar a forma primordial do imaginário de obras de todas as latitudes culturais como o Rãmayãna, As Mil e uma Noites, a Ilíada, a Odisséia, as canções de gesta os Edda escandinavos, os Nibelungen germânicos, o Romancero espanhol etc. Constitui igualmente importante elemento da épica renascentista e alcança o período romântico na evocação legendária do passado (Leyendas em prosa, de Bécquer, La légende des siècles, de Hugo), e em pleno realismo europeu sobrevive na gusca da sobre-realidade de Les chantes de Maldoror, de Lautréamont. Tradicionalmente, o maravilhoso é, na criação literária, a intervenção de seres sobrenaturais, divinos ou legendários (deuses, deusas, anjos, demônios, gênios, fadas) na ação narrativa ou dramática (o deus ex machina). É identificado, muitas vezes, com o efeito que provocam tais intervenções no ouvinte ou leitor (admiração, surpresa, espanto, arrebatamento). (CHIAMPI, 1980, p. 49)
Partindo do princípio de que a diferenciação entre natural e sobrenatural é clara, o
estudioso francês Louis Vax distingue o "maravilhoso", para ele contos baseados no
sobrenatural puro, das "histórias de horror", contos de origem natural, e do "fantástico",
contos que deixam o leitor na incerteza quanto à natureza dos fatos narrados.
Tzvetan Todorov, no seu livro Introdução à Literatura Fantástica, distingue ainda
subdivisões como o “estranho puro”, característico dos acontecimentos que parecem
sobrenaturais ao longo da narrativa e finalmente recebe tratamento racional; “estranho
puro”, ligados a temas tabus; “fantástico-maravilhoso”, sugestões do sobrenatural, pois
permanecem sem explicação; e o “maravilhoso-puro”, contendo elementos sobrenaturais
que não provocam qualquer reação particular nas personagens nem no leitor implícito.
Todorov, no entanto, termina seu trabalho constatando que os temas da literatura
fantástica tornaram-se literalmente os mesmos das investigações psicológicas da primeira
metade do século passado.
Uma dessas pesquisas, conhecida como “Das Unheimliche” (O Estranho, segundo
a tradução da Imago), foi empreendida por Sigmund Freud, a respeito de alguns efeitos
da literatura que provoca medo e horror, a “literatura fantástica” inclusive. Enfatizo minha
intenção de desvincular, tanto quanto possível, o conceito unheimlich de conotações
psicológicas em nome do estabelecimento de um vínculo com a literatura, como categoria
crítica. O psicanalista, que sempre ilustrou seu trabalho com exemplos literários,
debruçou-se sobre os problemas semânticos que a designação suscita, e dedicou-se às
considerações sobre a ambigüidade do termo.
A palavra alemã unheimlich é o contrário de heimlich (familiar, íntimo) e de heimisch
(natural). Freud chama a atenção para as principais acepções de heimlich: familiar, íntimo,
doméstico e também: secreto, escondido da vista, dissimulado, tenebroso. A própria
palavra heimlich aproxima-se bastante, no seu sentido inverso, da segunda acepção, pois
a expressão unheimlich é ambígua: pode ser admitida como o antônimo da primeira
acepção, mas não da segunda. Assim, num processo semelhante, heimisch (natural),
também antônimo de unheimlich, se inverteria em seu contrário, sobrenatural, que, por sua
vez, acabaria coincidindo com unheimlich.
Essa “imanência do sobrenatural no familiar é considerada como uma prova
etimológica da hipótese psicanalítica” (KRISTEVA, 1994, p. 192), segundo a qual o
sobrenatural (que assusta e amedronta) remonta ao que é familiar há muito tempo. E
confirma a instigante afirmação de Schelling, da qual o psicanalista partira: “o unheimlich
é tudo aquilo que devia permanecer em segredo e foi revelado” (FREUD, 1919, p. 248).
Em Murilo Rubião, as menções bíblicas proporcionam justamente o efeito
fantástico de “unheimlich” (prefiro traduzir como sinistro), pois apontam inexoravelmente
para o passado e conferem uma atmosfera de contornos misteriosos que talvez seja
melhor não trair, não tentar desvendar, pois devem manter-se como metáforas.
Por outro lado, entretanto, observemos a auto-ironia dos seguintes trechos: “Hoje
sou funcionário público e este não é o meu desconsolo maior.” (RUBIÃO, 1993, p. 53).
Ou ainda: “somente a morte poria termo ao meu desconsolo. Firme no propósito, tirei dos
bolsos uma dúzia de leões e, cruzando os braços, aguardei o momento em que seria
devorado por eles.” (RUBIÃO, 1993, p. 55). Considerando também os efeitos cômicos que
o autor emprega, que rompem o caráter emocional típico do “fantástico” e transformam-no
num escritor transgressor do gênero, eu diria que essa literatura aproxima-se de uma
ficção crítica e autocrítica que renovou a ficção latino-americana ainda na primeira metade
do século XIX.
Através desta comunicação, aponho a versão inicial das minhas reflexões sobre a
convergência dos textos literários de Murilo e o ensaio borgeano. Muito além dessas
primeiras anotações sobre o tema, almejo compreender o panorama que determinou
algumas características de parte bastante significativa da literatura brasileira na primeira
metade do século XX.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARRIGUCCI JR., “O Mágico Desencantado ou as Metamorfoses de Murilo”. In RUBIÃO, Murilo. O Pirotécnico Zacarias. São Paulo: Ática, 1993, fls. 6-11.
BAL, Mieke. Kulturanalyse (Análise Cultural). Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2002.
BORGES, Jorge Luis. “El arte narrativo y la magia”. Barcelona: Emecé Editores, 1989.Sete Noites. In: Obras Completas. São Paulo: Globo, 1999.
CHIAMPI, Irlemar. O Realismo Maravilhoso. São Paulo: Perspectiva, 1980.
FREUD, Sigmund. “O Estranho”. In: “História de Uma Neurose Infantil e Outros Trabalhos”. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Volume XVII (1917-1919). Rio de Janeiro: Imago, 1969.
_____.“Das Unheimliche”. Edição alemã: Imago, G. W., Vol. 12, fls. 229-268.
KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Tradução de Maria Carlota Carvalho Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. P. 192.
RUBIÃO, Murilo. O Pirotécnico Zacarias. São Paulo: Ática, 1993.
SANT’ANA, Sérgio. “Fogos do Além”. In: Suplemento Literário 71. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais, maio 2001, fls.16-23.
SCHWARTZ, Jorge. Murilo Rubião: A Poética do Uroboro. São Paulo: Ática, 1981.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1992.