UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES
ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ?
Curso de Pós graduação :
Especialização em terapia de família
Trabalho apresentado
pela aluna Maria do Carmo Costa de Queiroz
Fevereiro/2002
UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES
ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ?
Curso de Pós graduação :
Especialização em terapia de família
Trabalho apresentado
pela aluna Maria do Carmo Costa de Queiroz
Fevereiro/2002
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e sou.
Ao meu marido e filhos, com amor pelo apoio, ajuda e respeito à minha
profissão.
Com carinho, à minha ex-professora Jussara pelo apoio e compreensão
no que tento e no que faço.
Aos professores do curso, expresso minha gratidão, em especial ao
professor Antonio Ney, meu orientador.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 1
I O QUE É O ABORTO 3
II ABORTO: ALGUNS DADOS 7
III OS CORPOS FRAGMENTADOS 15
IV DEBATE BIOÉTICO 20
V TER OU NÃO TER FILHOS ? – SER OU
NÃO SER (MÃE): EIS A QUESTÃO 23
VI CONCLUSÃO 26
BIBLIOGRAFIA 27
1
INTRODUÇÃO
Este tema é polêmico por si só. Por ele atravessam discursos que se contrapõem e
que problematizam ainda mais a questão, impedindo a construção de um olhar mais
objetivo, menos tendencioso, apesar de sua complexidade.
É uma tarefa difícil tratar de um tema condenado ao emocionalismo, o que
impede uma total neutralidade que se faz sempre necessário quando se propõe a tomar
alguma coisa como objeto de estudo.
Mas apesar disso, tendo confessado a dificuldade de uma posição completamente
neutra, e também, do meu fascínio sobre este assunto, fruto do meu lugar de cidadã,
mãe e mulher no mundo, vou tentar abordar este assunto com a fidedignidade que ele
requer e com o objetivo de produzir reflexões sobre o quanto de desejo e/ou vontade
estão implicados na questão do aborto.
Para isso, vou utilizar dois campos teóricos: o campo Psicanalítico, que nos
remete a questão do desejo; e o campo do Direito, que nos remete a questão da
cidadania, do direito de dispor de nossos corpos, nossos destinos, e a responsabilidade
de nossos atos.
“Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas
Quando amadas, se perfumam...
Quando fustigadas, não choram
Se ajoelham, pedem, imploram
2
Mais duras penas...
Geram pros seus maridos os novos filhos de Atenas
Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito nem qualidade
Têm medo apenas...”
(“Mulheres de Atenas”, música de Chico Buarque de Holanda )
A questão do aborto e dos impasses que o envolve, situa-se muito além,
ultrapassa o âmbito das discussões médicas, legais, morais e sociais, para se colocar
num outro lugar: no lugar do sujeito, no lugar das dúvidas, no lugar das incertezas, no
lugar dos medos e receios, no lugar do assujeitamento e no lugar da sujeitção, ou seja,
num lugar singular.
É pensar sobre isto que este trabalho se propõe, para que no final, através das
questões por ele levantadas possamos lançar um foco de luz sobre o que nos inquieta,
que nos toma, que nos silencia, e nos remete sempre ‘as angústias de nossas “escolhas e
decisões”, ou ainda, de nossos mais obscuros desejos.
3
I
O QUE É O ABORTO?
No Novo Dicionário Aurélio, 1995, temos:
“Aborto: 1)Méd.: ação ou efeito de abortar,
abortamento, mau sucesso, 2) Jur.: interrupção dolorosa da gravidez
com expulsão do feto ou sem ela.”
“Abortamento: ação de abortar. 1) Méd.: expulsão
do feto antes do termo natural (mau sucesso) ou provocado. 20 Vulg.:
interrupção provocada e clandestina de uma gravidez. O abortamento
é punido por lei. Sartre: “ Um abortamento não é um infanticídio, é
um assassinato metafísico.”
Podemos ver, pelas duas definições acima o quanto de preconceito inconsciente
ou não, elas contêm. Podemos observar também, os atravessamentos dos discursos
social, moral e religioso, que determinam ideologia, costumes e tradição de uma cultura.
A definição obstétrica do aborto é: a perda de uma gravidez antes que o embrião e
posterior feto ( até a oitava semana diz-se embrião, a partir da nona semana, feto ), seja
potencialmente capaz de vida independente da mãe – esta definição é a mais objetiva
que temos até o momento.
4
A partir desta definição algumas questões se colocam;
- que situações podemos considerar como aborto?
- Quando um óvulo é retirado do útero, deve-se considerar um aborto?
- Não, porque ele não está fecundado pelo espermatozóide.
- E após o reimplante de um óvulo fecundado, se ele for eliminado pelo
organismo, teremos um aborto espontâneo?
- Tecnicamente, sim.
Segundo Danda Prado (1995, pág. 12, 13 ):
“Prossigo com as hipóteses: os cientistas
reimplantam diversos óvulos fecundados em cada tentativa para
engravidar uma mulher, afim de aumentar as possibilidades de
acertos ( é raro, mas acontece, que mais de um embrião continue seu
desenvolvimento no útero – em data recente jamais notificaram o
nascimento de quadrigêmeos de proveta ).
Se a justiça considera um atentado à vida o aborto
voluntário, por que não considerar criminoso o cientista que obtém
“seres vivos” sabendo de antemão que uma alta porcentagem deles
vai “ morrer”?
Porque o cientista sabe, assim como a mulher
grávida, que ali naquele embrião há uma vida em potencial, mas
ainda não há ser humano; e alguns países, reconhecendo como válido
esse enfoque, estabelecem que os fetos abortados antes da vigésima
oitava semana podem ser incinerados ou sumariamente eliminados,
5
mas a partir da vigésima nona semana , um certificado de natimorto
deve ser obtido das autoridades competentes. Nesses casos, o enterro
ou incineração devem ser acompanhados das mesmas medidas
administrativas que para uma pessoa morta, adulta ou criança.”
Se para um cientista é difícil se situar diante de tantas dúvidas e contradições,
responder dentro dos limites da ética, sobre o direito ou não de manipular a vida, a
complexidade e a problemática das mulheres diante destas questões, diante de seu
desejo ou recusa, diante de sua ambigüidade, é muitas vezes indimensionável.
É tarefa difícil, ou quase impossível, definir com clareza o que é o aborto. É
preciso reconhecer a ambigüidade que o envolve e as inúmeras causas do aborto, desde
a gravidez interrompida por uma decisão até as interrupções de gravidez ditas
espontâneas.
A questão que se coloca em conseqüência dessa impossibilidade de definição
precisa, é como saber até que ponto um aborto é ( inconscientemente ) espontâneo ou/e
( inconscientemente ) provocado?
Danda Prado, em seu livro O Que é o Aborto ( 1995 ), cita como exemplo dessa
dificuldade, uma maternidade no Rio de Janeiro “onde os funcionários se referem à
“enfermaria do tombo”, tal o número de casos de mulheres que ali dão entrada com
hemorragias e seqüelas de aborto alegando terem caído acidentalmente.
Ainda nesse livro ( pág. 16 ):
“é muito difícil, ‘as vezes quase impossível a um
médico, distinguir um aborto provocado de um espontâneo, inclusive
quando ouve intervenção de terceiros. Mais difícil ainda é distinguir
6
entre um tombo “planejado” e um acidente ocasional. Há mulheres
que deliberadamente tomam chá de ervas laxantes ou abortivas,
atiram-se de escadas, carregam pesos excepcionais afim de perder o
feto sem recorrer a terceiros, e quando interrogadas afirmam nunca
terem praticado um aborto. “Esquecem” essas tentativas, já que não
foram testemunhadas, principalmente quando o atraso menstrual foi
de poucas semanas e ninguém se inteirou dele.”
É nesse contexto confuso e antagônico entre o acaso e o acidente, entre a ação
inconsciente e a ação deliberada, entre o desejo de ter um filho e a culpa por não tê-lo
desejado naquele momento, que o aborto, sua definição, sua discussão se faz, como não
podia deixar de ser, impregnada de tabus, dúvidas, incertezas, culpas reprimidas e
lembranças esquecidas ou não.
7
II
ABORTO: ALGUNS DADOS
Segundo dados estatísticos revelados por Paulo Daher Rodrigues em seu livro Aborto
(1999 ), atualmente 20% dos atendimentos nas maternidades municipais são para
reparar seqüelas de abortos mal feitos e negados pelas pacientes através de desculpas
do tipo: que a hemorragia foi provocada por tombo.
Segundo esse mesmo autor:
“ É praticamente impossível montar uma estatística
confiável sobre os casos que acabam nos hospitais públicos, aos quais
só vão mulheres pobres. As mulheres de classe média ou alta
procuram logo um ginecologista particular quando sofrem algum
problema decorrente do aborto.”
Estima-se que as problemáticas decorrentes do aborto seja a quarta causa da
mortalidade materna.
Um dado também de extrema importância é o fato de não existir dentro da
política de saúde pública, uma atenção a contracepção, mesmo que os números e as
estatísticas nos mostrem dados alarmantes ( 5 milhões de abortos são feitos por ano no
8
Brasil, com registro de quatrocentas mil mulheres tendo como causa da morte os
problemas decorrentes do aborto)
Em 1983 foi aprovado pelo Ministério da Saúde o Programa de Assistência
Integral a Saúde da Mulher, mas que ainda não foi adotado em todo o país. Esse
programa tem como meta levar mais informação e livre acesso aos métodos
contraceptivos, e por conseguinte, reduzir o número de abortos e a mortalidade
provocada por eles.
Apesar do aborto ser ilegal no Brasil, raramente se tem notícia de algum processo
penal por sua prática.
Outro dado estatístico é de que 33 milhões de abortos ilegais são realizados no
mundo, mas esse número pode ser duplicado se considerarmos os abortos ilegais.
“De acordo com a pesquisa, 66% da população
mundial vive em lugares onde o aborto é permitido. Quase todos os
países desenvolvidos e vários em vias de desenvolvimento, como
China, Cuba, Índia, Tunísia e Vietnã, já o incluíram na lei. ( ...)
Atrás apenas da arrecadação obtida com o tráfico
de drogas e com o jogo de bicho, os abortos provocados estão se
firmando como a terceira atividade ilícita bilionária no Rio de
9
Janeiro: movimentam nada menos que 100 milhões de dólares a cada
ano.”
( Daher Rodrigues,1999 )
Segundo as estatísticas, de 20% a 30% das mulheres brasileiras já fizeram pelo
menos um aborto. Existe no Rio de Janeiro em São Cristóvão, um Centro de Referência
para abortos permitidos por lei ( casos de estupro ou de a gravidez implicar em risco de
vida para a gestante ), a Maternidade Fernando Magalhães, no entanto, só registra uma
média de três abortos legais por ano.
“ Em Brasília, cerca de 800 mulheres reunidas durante
três dias para a Conferência Nacional Sobre Saúde e Direitos da
Mulher encerram o encontro, depois de longa discussão, incluindo no
documento final, uma proposta a favor da legalização do aborto. O
relatório, de quarenta e cinco páginas, será remetido a Constituinte.
“Nas condições em que ocorre eventualmente no Brasil,” diz o
documento: “o aborto constitui um problema de saúde pública e
saúde mental. É preciso proporcionar ainda assistência e condições
para que a mulher quando decida fazê-lo, faça-o de forma consciente,
tendo garantida sua assistência médica e psicológica. É preciso
informar sobre métodos contraceptivos existentes, para que o aborto
seja uma prática cada vez mais reduzida.”
( Paulo Daher Rodrigues, 1999 )
10
É importante salientar que desde 1940 o Código Penal admite o aborto legal. No
artigo 128 estão descritos os dois casos em que o aborto é permitido, e portanto, não é
punível, desde que praticado por médicos: no primeiro caso é quando não há outro meio
de salvar a vida da gestante, e no segundo caso é quando a gravidez é resultado de
estupro. Mesmo assim, apenas oito hospitais obedecem a lei.
Em conseqüência disso, atualmente tramita no Congresso Nacional o Projeto de
Lei 20/91 que regulamenta a prática do aborto na rede Pública de Saúde, uma
reafirmação do artigo 128 citado acima, cujo objetivo é garantir as mulheres o efetivo
exercício de um direito.
Finalizando esses dados, que na verdade, não são de forma alguma todas as
informações possíveis acerca do assunto, mas que expressam uma parte significante do
mesmo, reproduzo alguns depoimentos pró-aborto, retirados do livro de Paulo Daher
Rodrigues (1999 ), e também , depoimentos de mulheres dados a revista Veja:
“ Eu não acho que o aborto é de qualquer forma
errado. Desde que um indivíduo é completamente dependente de sua
mãe, ele não é uma pessoa.” – Virgínia Albernetly, Vanderlilt School
of Medicine, psiquiatra e antropóloga citada na revista Newsweek,
14 de janeiro de 1985.
“Através do condicionamento do público, uso de
linguagem, conceitos e leis, a idéia de aborto pode ser separada da
idéia de assassinato.” – Clinical Obstetrics
11
“ A imagem do bebê no ultra-som incomoda-me
mais que qualquer outra coisa. A equipe ( corpo médico da clínica )
não deveria vê-la. As mulheres que vieram fazer aborto nunca foi
permitido ver o ultra-som.” – Dr. Joseph Randall.
“Elas resolveram falar. Quebrando o muro de
silêncio que sempre cercou o aborto, oito dezenas de mulheres
procuradas por Veja decidiram contar como aconteceu, quando, por
quê. Falaram atrizes, cantoras, intelectuais – mas também operárias
domésticas, donas de casas. Falaram de angústia, de culpa, de dor e
de solidão. Também falaram de clínicas mal equipadas, de médicos
sem escrúpulos, de enfermeiras sem preparo, de maridos e namorados
ausentes.
A apresentadora Hebe Camargo contou que,
quando era uma jovem de dezoito anos, ficou grávida do primeiro
namorado e foi parar nas mãos de uma curiosa que fez a cirurgia sem
anestesia e sem cuidado.
A atriz Aracy Balabaniam,a Cassandra do Sai de
Baixo, ficou grávida quando estava quase chegando aos quarenta
anos e dando fim a um longo relacionamento. Resolveu fazer o aborto
convencida de que a criança não teria um bom pai, nem ela seria
capaz de criá-la sozinha.
Metalúrgica da Força Sindical, a mineira Nair
Goulart, 45 anos, fez dois abortos nos anos setenta por motivos
12
econômicos. Ela e o marido, também operário, ganhavam pouco,
viviam num quarto de despejo e não tinham meios de educar nenhum
filho.
“ Era verão de 1987, eu passava as férias em
Salvador. Numa noite, quando voltava sozinha para o hotel, um
homem bêbado me agarrou, tirou minhas
roupas ‘a força e me estuprou. Ninguém ouviu meus gritos. Nem o
meu choro. No dia seguinte, voltei para Belo Horizonte. Aquele
monstro me engravidou. Eu tinha 24 anos , era divorciada e mãe de
um filho de três anos. Fui para uma clínica no Rio de Janeiro. A única
sensação que tive foi de alívio. A decisão foi madura, mas fiquei muito
tempo em conflito, porque afinal, eu tinha um filho e tinha uma
formação católica.” – Myriam Marques, 34 anos, enfermeira.
“Os exames de ultra-sonografia mostram que o
feto tinha Síndrome de Tuner, disfunção cromossômica que lhe
garantiria sobrevida de apenas alguns dias. Quando soube, minha
primeira reação foi tê-lo assim mesmo. Durante duas semanas minha
vida virou do avesso. A certa altura vi que, para protegê-lo estava
sendo egoísta. Não havia motivo para prolongar o sofrimento daquele
feto. Fiz o aborto com autorização judicial. A sensação de estar
13
fazendo um aborto dentro da lei muda tudo. Mesmo arrasada, senti-
me amparada, protegida.”– Desirée Fanelato, 30 anos, biomética.
“ Era um senhor de meia idade, simpático, que me
explicou que não faria aquilo por dinheiro. Defendia o direito de a
mulher abortar sem correr riscos. Não gostaria de entregar meu
corpo a um aborteiro profissional Eu nunca entrara numa sala de
cirurgia. Tinha vinte anos e fazia cursinho. Namorava havia dois anos
e estudara muito para entrar na USP. Minha primeira reação quando
soube que estava grávida foi ficar feliz. Mas nós não tínhamos
condições financeiras. Foi uma decisão tranqüila. Eu não estava
pronta para ser mãe. Mas sou louca para ter um filho.” – Renata
Vicentini Mielle, 25 anos, estudante da USP.
“ Eu tinha um corpinho lindo, sobrancelhas
grandes e cabelos compridos e escuros. Começava minha carreira de
cantora no rádio. Na minha primeira relação sexual fiquei grávida.
Não podia contar para ninguém. Meus pais sempre foram muito
severos e naquela época era uma perversão ter relação sexual sem se
casar. Contei para uma amiga, uma vizinha. Ela soube de um local
onde uma mulher fazia aborto. Ela não era médica. Sem medicamento
nenhum, fez a curetagem. A dor era tão intensa que ameacei gritar,
jamais vou esquecer daquela voz falando em tom alto e áspero para
14
eu calar a boca. Voltei para casa e tive hemorragia por vários dias.
Acabei em um hospital. Estava muito doente. Minha família nunca
soube disso e foi ruim ter de esconder. Para ser mãe a gente tem que
desejar ter um filho. Ele tem direito ‘a vida, é verdade. Mas com amor
dos pais, com condições para crescer com saúde e boa educação.
Quem vai garantir isso? Um Estado falido, miserável e hipócrita? A
Igreja, nem pensar. Sou católica e até hoje não me arrependo do que
fiz. Hoje tenho o Marcelo, a melhor coisa que me aconteceu. Estava
casada e preparada para ter um filho. Sinto-me muito feliz.” – Hebe
Camargo, 68anos, apresentadora de TV.
( Veja, 17 de setembro de 1997 )
15
III
OS CORPOS FRAGMENTADOS
Nos últimos tempos se tem falado muito sobre o aborto e muito ainda se tem para
falar. Muito do que se fala, se refere a um único aspecto da questão: a vida e a morte do
feto no útero.
É desse aspecto, desse fragmento de discurso, desse fragmento do corpo – o útero
- como uma parte anatômica e dissociada do corpo feminino, sobre essa parte tomada à
parte, que os diversos discursos como o religioso, o político, o médico, etc., aplicam
seus conceitos.
É completamente desconsiderado o ser humano constituído de braços, pernas,
órgãos, cérebro, sentimentos, emoções, alegrias, tristezas, lágrimas, risos, amores,
paixões e desejo. O sujeito precisa ser ignorado, anulado calado e excluído.
É necessário ressaltar que essa visão fragmentada do corpo não é de exclusividade
de nenhuma área dos saberes. É comum as expressões como: “mão-de-obra”, “o coração
do país”, “os cérebros da engenharia”, como se uma parte do corpo pudesse dar a
representatividade, mas na verdade é se perder de vista a totalidade.
A totalidade que se levada em conta, escapa ao poder controlador. A
fragmentação dos corpos , os seus fragmentos, servem a função normatizadora das
instâncias de poder da sociedade.
Lei e religião incidem sobre esse “corpo aos pedaços”, legitimando seu poder
sobre a ordem das coisas.
16
É nesse contexto, que a sexualidade se dissocia do prazer, ligando-se de uma
forma intensa à reprodução.
“Nem o homem nem a mulher aprendem a sentir-se
um ser sexualizado, isto é, a sentir seu corpo, masculino ou feminino,
como uma totalidade prazerosa...”
( Maria Tereza Verardo, 1987 )
É difícil para nós, por algumas vezes, compreendermos o alcance de frases tais
como, “ nosso corpo, a nós pertence”; “ filho, só os desejados”; “contra a defesa da
honra”. Estas frases usadas não como jargões do movimento feminista, na verdade,
estão relacionadas com diversos aspectos da vida das mulheres, na apropriação de seus
corpos, no poder de decisão sobre seus destinos.
Existem muitos fatores que contribuem para limitar e até mesmo impedir o
controle da mulher sobre sua própria vida.
A reprodução é um fato inerente à vida das mulheres. Poder lidar com o desejo de
ser mãe, de parir, de ter filhos ou a possibilidade de recusa de tudo isso, como expressão
de seu desejo, é reafirmar, garantir seu lugar de sujeito e a posse de seu corpo e de seu
destino.
Podemos pensar esta questão a partir de dois pontos que se contrapõem e se
interrogam mutuamente: do que se trata, ou melhor, o que está em jogo quando falamos
de aborto, procriação e mulheres?
17
O aborto, se pensado como uma decisão racional, e como uma das maneiras de se
evitar uma gravidez não desejada, sua proibição traz como conseqüência, filhos não
desejados, mas se pensarmos que a gravidez é anterior a decisão do aborto, onde estaria
agora colocada a questão do desejo? Mais ainda, onde ficaria a questão da vontade
quando se impõe às mulheres nascimentos de filhos pelos quais elas não se decidiram
por tê-los?
Outra questão a que isso tudo remete é de que as mulheres são ideológicas e
culturalmente educadas para se casar e ter filhos, como o ideal máximo de vida.. Isto se
inscreve de tal forma em seu corpo, em suas atitudes, em sua vida, que as barreiras
contra a contracepção, o aborto, apenas reforçam a obrigatoriedade das mulheres de
terem filhos, desejados ou não, e sua culpabilidade por recusarem, esse destino.
Voltando a questão da fragmentação dos corpos, na mulher isso se dá de uma
maneira mais confusa. Seu corpo deve ser usado como arma de sedução, mas deve
negar isso para poder ser julgada e aceita moralmente pela sociedade.
Para conseguir êxito nesta tarefa, a mulher precisa passar de desejante para
desejada. Desejada pode ser, mas não pode desejar. É necessário abrir mão de seu
desejo.
“Os impulsos sexuais femininos são permitidos
apenas dentro do casamento, sob a orientação do marido a quem ela
deve dar prazer, de preferência sem senti-lo.”
( Maria Tereza Verardo, 1987, 11 )
18
Isto quer dizer, que a relação sexual não pode ser considerada um fim em si
mesma. Se exclui assim o prazer, o exercício livre de sua sexualidade. É necessário
abrir mão de seu prazer.
Se a relação sexual é a condição necessária para a maternidade, e a maternidade
está inscrita na mulher e portanto, no seu papel de esposa, esta condição faz com que a
mulher perca seu estatuto de mulher para adquirir o de mãe ( a mãe é sempre
assexuada). A mãe não é nada, é só mãe. É necessário abrir mão do seu corpo.
Abrir mão do seu corpo é o preço que a mulher paga pela conquista de uma
função social: a função de reprodução (reprodução de indivíduos da mesma espécie que
aumentarão o contigente de força de trabalho ). O corpo da mulher passa a ser um
instrumento de controle e um “patrimônio social”. Passando assim, do particular para o
coletivo, além de abrir mão de seu corpo, perde também a individualidade.
“No momento em que o corpo se transforma em
patrimônio social, ele pode ser legislado.
Criam-se normas que determinam se o fruto
daquele ventre pode ser útil à sociedade. Esse corpo passa a ser
administrado pelo Estado, pela Igreja e pelo Marido.”
( Maria Tereza Verardo,1987,11 )
O que parece de maior relevância nesses fatos é de que muitas vezes, a grande
maioria das mulheres não se dão conta disso. Não se questionam. Não interpelam o
outro. Seguem assujeitadas, os seus destinos.
19
“ As lágrimas vertidas pelas mulheres não deixam
marcas no mundo.”
( Marion Zimmer Bradley, As Brumas de Avalon )
20
IV
DEBATE BIOÉTICO
Neste capítulo abordaremos a questão moral, ética e das idéias do senso comum
sobre o aborto.
Começamos por abordar algumas posições moralmente extremas sobre esse
assunto. Estas posições extremas muitas vezes apresentam incoerência com relação aos
seus próprios princípios, como por exemplo, com relação a heteronomia e a autonomia.
Há um movimento chamado “ Católicas Pelo Direito de Decidir ,” fundamentado na
doutrina cristã, e por isso mesmo, sob o ideal da heteronomia, que defendem o direito
decisório da mulher sobre a reprodução. Posição ambígua já que acreditam que a vida
seja um dom Divino., mas defendem a autonomia sobre ela. Há outras posições inversas
a esta onde se defende o princípio da heteronomia da vida, muito embora, sejam
movimentos que se encontram sob o ideal da autonomia, da liberdade individual.
Como nos diz Débora Diniz e Marcos de Almeida, em seu artigo Bioética e
Aborto:
“Isto ocorre basicamente, porque no campo da
moral, com rara exceções, as pessoas não se comportam com a
coerência lógica comum dos tratados de filosofia moral. As escolhas
morais processam-se de inúmeras maneiras – com influências da
família, do matrimônio, da escola, dos meios de comunicação em
21
massa, etc. – o que acaba por mesclar princípios e crenças
inicialmente inconciliáveis. Na verdade, grande parte da população
encontra-se confusa entre os extremos morais acima representados.”
( Sérgio Costa, Iniciação a Bioética, 1998 )
O que podemos concluir é que quando se trata de princípios e valores morais e
éticos a questão se complica e se torna confusa exatamente por sua radicalidade,
tornando os temas de autonomia e heteronomia a grande questão da discussão ética e
moral acerca do aborto.
É sabido que na mulher a imperiosidade do instinto maternal é algo muito forte na
natureza feminina. Podemos notar sua força mesmo nas crianças e nos animais.
A partir daí, cabe perguntar, que motivos íntimos suficientemente fortes levaria
uma mulher a ir contra este instinto maternal, frustrando a finalidade, talvez a mais
importante do seu ser, sabedora de que comete um crime, já que o aborto é considerado
como tal no Brasil, e ainda assim, pratica o aborto? O que será que autoriza essa
conduta?
De qualquer forma, sejam quais forem os motivos, eles pertencem a gestante. Os
motivos são seus, assim como seria seu o filho que nascesse.
Ser mãe é um direito e não um dever da mulher. Trata-se portanto, de uma
possibilidade de escolha.
Não é apenas um fenômeno biológico, mas depende também, de todo um
simbolismo que como diz Lacan,
22
“ se não houvesse esse diabo de simbolismo para (o homem )
empurrar o traseiro para até que afinal de contas ele ejacule, [ ... ] há
muito tempo que não haveria mais destes seres a falar.” ( Seminário
RSI, 1974 )
Não podemos deixar de reconhecer também, que a partir do movimento feminista,
as mulheres vêm tomando a palavra, vêm se organizando e se apropriando de seu corpo
e do poder sobre a procriação.
A medicina acompanha esta evolução compartilhando com os movimentos
feministas esta ideologia. Se pautando por suas demandas aparentemente simples como
“eu quero” ou “ eu não quero” ter um filho.
É claro que isso se dá de forma lenta e cuidadosa, mas o que podemos concluir é
que já se pode , pelo menos, colocar o aborto nos discursos políticos de saúde, nos
discursos teóricos, e principalmente nos discursos dos atores sociais envolvidos com
esta questão.
23
V
TER OU NÃO TER FILHOS? _ SER OU NÃO SER ( MÃE ): EIS A QUESTÃO
Que motivos estão implicados na decisão de se ter ou não, um filho?
Não é na verdade uma decisão tão fácil de ser tomada como parece. É uma
decisão atravessada e enredada numa trama de fatores.
Abordaremos alguns mais comuns e mais evidentes, e deixaremos os mais
subjetivos para um outro momento.
Ter filhos pode ser uma opção, porque é isso que se espere de quem se casa.
Trata-se de uma resposta social.
Ter filhos pode ser uma opção que venha dar conta de uma satisfação em lidar
com crianças, participar de seu mundo, de suas fantasias, de suas brincadeiras.
Ter filhos pode ser ainda, uma opção de auto- realização, onde os desejos e
sonhos dos pais são realizados através dos filhos, com se esses sonhos pudessem ser os
mesmos.
Ter filhos pode ser ainda, uma opção bem mais particular , de preenchimento de
um “vazio” existencial. Cujo filho ocuparia um lugar cujo objetivo é não permitir que o
“vazio” existencial apareça.
Ter filhos pode ser também, uma tentativa de solução para um casamento, uma
relação em crise, na tentativa de salvar essa relação.
Ter filhos pode ser uma opção ligada ainda, a questões mais sérias como “
investimento” ou ainda como garantia de sobrevivência, ou seja, condições
socioeconômicas.
24
E não ter filhos ? Que motivos estariam implicados nesta decisão ?
A falta de informação pode ser um deles,. Não saber sobre a sexualidade pode
levar mulheres a uma gravidez que não desejam nesse momento de suas vidas.
As mulheres ainda hoje, vivem a sua sexualidade mas, sem o direito de falar sobre
ela, e se o fazem transgridem uma ordem estabelecida. Isso faz com que mulheres
engravidem sem nem ao menos saber o que está acontecendo com o seu corpo e sem ao
menos a possibilidade de decidir sobre o desejo.
Outro motivo que levaria as mulheres a interromper uma gravidez são as falhas
dos métodos contraceptivos.
De qualquer forma, sejam quais forem os motivos, a opção por ter ou não um filho
deve ser respeitada.”
“Nas mulheres, o que chamamos matriz ou útero é
um animal dentro delas que tem um apetite de gerar filhos; e quando
fica muito tempo sem fruto, esse animal se impacienta e suporta esse
estado com dificuldade; erra pelo corpo inteiro obstrui as passagens
do fôlego, impede a respiração, lança em angústias extremas e
provoca outras enfermidades de toda sorte.”
(Platão, Timeu)
Ignora-se por completo o desejo das mulheres, lhes calam a voz, ensurdecem os
ouvidos aos seus clamores e argumentos, silencia-se sobre isso, controla-se o seu
desejo.
25
“Não se faz mais o elogio da maternidade. Mas
também não se permite o aborto, mesmo sabendo que ele continua
existindo. O que se sente é só o silêncio. O Estado continua dispondo
do corpo da mulher como sempre fez. A sexualidade da mulher é
utilizada pelas políticas natalistas e antinatalistas. Incentiva-se a
maternidade quando se precisa de trabalhadores, cala-se quando eles
estão se tornando muito numerosos.
A legalidade do aborto decidida por homens –
juristas, padres ou médicos – leva a mulher a procurar locais
clandestinos, colocando-a novamente sob o poder dos homens
continuando tudo como está.”
(Maria Tereza Verardo, 1987, 66)
Dúvidas, incertezas, indecisões, impasses, ambigüidades e ambivalência
atravessam esta questão.
Ter ou não ter, ser ou não ser, eis a questão que se coloca e que insiste em retornar
em qualquer tempo, a qualquer momento.
Dar a mulher o direito de pelo menos falar de suas dúvidas, é o mínimo que
podemos fazer para começar a desvendar o enigma do desejo da maternidade.
Trata-se de um desejo, trata-se de uma escolha, trata-se trama onde estão
enredadas histórias pessoais, valores, conceitos, sociedade e principalmente sujeitos.
Atores de suas vidas. Mulheres, mães ou não. Filhos, paridos ou não. Trata-se de algo
que escapa e surpreende, mas que comparece mesmo que não se pretenda.
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VI
CONCLUSÃO
Questão de desejo ou vontade? Do desejo, a psicanálise fala de um lugar que lhe é
bastante familiar, o inconsciente. Conceito fundamental da teoria e da prática
psicanalista.
Lacan nos fala que o desejo é sempre o desejo do outro. Somos marcados pelo
olhar do outro, que nos identifica, que nos diferencia, que nos coloca na trama do
desejo, como sujeito também desejante.
É claro que estamos falando aqui, de algo inconsciente que produz seu efeito nos
discursos dos sujeitos, nas suas ações e atitudes, nas suas “escolhas”, mesmo que essas
escolhas possam parecer elaboradas e conscientes.
Já quando falamos da vontade, nos remetemos a questão da volição, que é uma
função mental, um processo neurofisiológico que tem como objetivo a autonomia do
indivíduo sobre sua ação, ou seja, sobre o seu domínio e controle. Isto quer dizer, que se
trata então de um processo consciente e elaborado.
O que podemos verificar através desse breve estudo é que o desejo ou vontade, o
que o aborto traz é um atravessamento de questões que invadem cortam, atravessam,
perpassam o corpo da mulher, sua alma, sua história, seu lugar, seus projetos, seus
sonhos, seus desejos e suas vontades.
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BIBLIOGRAFIA
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- Verardo, Maria Tereza, Aborto: Um direito ou um crime ?, S.P., Moderna, 1987.
- Rodrigues, Paulo Daher, Aborto, M.G., palpite,. 1999.
- Chatel, Marie – Magdeleine, Mal – Estar da Procriação ; As mulheres e a
medicina da reprodução, RJ, Campo Matemático, 1955.
- Costa, Sérgio Ibiapina Ferreira; Garrafa, Volnei e Oselka, Gabriel, Iniciação a
bioética, Conselho Federal de Medicina; Brasília 1998.
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