31
UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? Curso de Pós graduação : Especialização em terapia de família Trabalho apresentado pela aluna Maria do Carmo Costa de Queiroz Fevereiro/2002

ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ?

Curso de Pós graduação :

Especialização em terapia de família

Trabalho apresentado

pela aluna Maria do Carmo Costa de Queiroz

Fevereiro/2002

Page 2: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ?

Curso de Pós graduação :

Especialização em terapia de família

Trabalho apresentado

pela aluna Maria do Carmo Costa de Queiroz

Fevereiro/2002

Page 3: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e sou.

Ao meu marido e filhos, com amor pelo apoio, ajuda e respeito à minha

profissão.

Com carinho, à minha ex-professora Jussara pelo apoio e compreensão

no que tento e no que faço.

Aos professores do curso, expresso minha gratidão, em especial ao

professor Antonio Ney, meu orientador.

Page 4: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 1

I O QUE É O ABORTO 3

II ABORTO: ALGUNS DADOS 7

III OS CORPOS FRAGMENTADOS 15

IV DEBATE BIOÉTICO 20

V TER OU NÃO TER FILHOS ? – SER OU

NÃO SER (MÃE): EIS A QUESTÃO 23

VI CONCLUSÃO 26

BIBLIOGRAFIA 27

Page 5: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

1

INTRODUÇÃO

Este tema é polêmico por si só. Por ele atravessam discursos que se contrapõem e

que problematizam ainda mais a questão, impedindo a construção de um olhar mais

objetivo, menos tendencioso, apesar de sua complexidade.

É uma tarefa difícil tratar de um tema condenado ao emocionalismo, o que

impede uma total neutralidade que se faz sempre necessário quando se propõe a tomar

alguma coisa como objeto de estudo.

Mas apesar disso, tendo confessado a dificuldade de uma posição completamente

neutra, e também, do meu fascínio sobre este assunto, fruto do meu lugar de cidadã,

mãe e mulher no mundo, vou tentar abordar este assunto com a fidedignidade que ele

requer e com o objetivo de produzir reflexões sobre o quanto de desejo e/ou vontade

estão implicados na questão do aborto.

Para isso, vou utilizar dois campos teóricos: o campo Psicanalítico, que nos

remete a questão do desejo; e o campo do Direito, que nos remete a questão da

cidadania, do direito de dispor de nossos corpos, nossos destinos, e a responsabilidade

de nossos atos.

“Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas

Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas

Quando amadas, se perfumam...

Quando fustigadas, não choram

Se ajoelham, pedem, imploram

Page 6: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

2

Mais duras penas...

Geram pros seus maridos os novos filhos de Atenas

Elas não têm gosto ou vontade

Nem defeito nem qualidade

Têm medo apenas...”

(“Mulheres de Atenas”, música de Chico Buarque de Holanda )

A questão do aborto e dos impasses que o envolve, situa-se muito além,

ultrapassa o âmbito das discussões médicas, legais, morais e sociais, para se colocar

num outro lugar: no lugar do sujeito, no lugar das dúvidas, no lugar das incertezas, no

lugar dos medos e receios, no lugar do assujeitamento e no lugar da sujeitção, ou seja,

num lugar singular.

É pensar sobre isto que este trabalho se propõe, para que no final, através das

questões por ele levantadas possamos lançar um foco de luz sobre o que nos inquieta,

que nos toma, que nos silencia, e nos remete sempre ‘as angústias de nossas “escolhas e

decisões”, ou ainda, de nossos mais obscuros desejos.

Page 7: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

3

I

O QUE É O ABORTO?

No Novo Dicionário Aurélio, 1995, temos:

“Aborto: 1)Méd.: ação ou efeito de abortar,

abortamento, mau sucesso, 2) Jur.: interrupção dolorosa da gravidez

com expulsão do feto ou sem ela.”

“Abortamento: ação de abortar. 1) Méd.: expulsão

do feto antes do termo natural (mau sucesso) ou provocado. 20 Vulg.:

interrupção provocada e clandestina de uma gravidez. O abortamento

é punido por lei. Sartre: “ Um abortamento não é um infanticídio, é

um assassinato metafísico.”

Podemos ver, pelas duas definições acima o quanto de preconceito inconsciente

ou não, elas contêm. Podemos observar também, os atravessamentos dos discursos

social, moral e religioso, que determinam ideologia, costumes e tradição de uma cultura.

A definição obstétrica do aborto é: a perda de uma gravidez antes que o embrião e

posterior feto ( até a oitava semana diz-se embrião, a partir da nona semana, feto ), seja

potencialmente capaz de vida independente da mãe – esta definição é a mais objetiva

que temos até o momento.

Page 8: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

4

A partir desta definição algumas questões se colocam;

- que situações podemos considerar como aborto?

- Quando um óvulo é retirado do útero, deve-se considerar um aborto?

- Não, porque ele não está fecundado pelo espermatozóide.

- E após o reimplante de um óvulo fecundado, se ele for eliminado pelo

organismo, teremos um aborto espontâneo?

- Tecnicamente, sim.

Segundo Danda Prado (1995, pág. 12, 13 ):

“Prossigo com as hipóteses: os cientistas

reimplantam diversos óvulos fecundados em cada tentativa para

engravidar uma mulher, afim de aumentar as possibilidades de

acertos ( é raro, mas acontece, que mais de um embrião continue seu

desenvolvimento no útero – em data recente jamais notificaram o

nascimento de quadrigêmeos de proveta ).

Se a justiça considera um atentado à vida o aborto

voluntário, por que não considerar criminoso o cientista que obtém

“seres vivos” sabendo de antemão que uma alta porcentagem deles

vai “ morrer”?

Porque o cientista sabe, assim como a mulher

grávida, que ali naquele embrião há uma vida em potencial, mas

ainda não há ser humano; e alguns países, reconhecendo como válido

esse enfoque, estabelecem que os fetos abortados antes da vigésima

oitava semana podem ser incinerados ou sumariamente eliminados,

Page 9: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

5

mas a partir da vigésima nona semana , um certificado de natimorto

deve ser obtido das autoridades competentes. Nesses casos, o enterro

ou incineração devem ser acompanhados das mesmas medidas

administrativas que para uma pessoa morta, adulta ou criança.”

Se para um cientista é difícil se situar diante de tantas dúvidas e contradições,

responder dentro dos limites da ética, sobre o direito ou não de manipular a vida, a

complexidade e a problemática das mulheres diante destas questões, diante de seu

desejo ou recusa, diante de sua ambigüidade, é muitas vezes indimensionável.

É tarefa difícil, ou quase impossível, definir com clareza o que é o aborto. É

preciso reconhecer a ambigüidade que o envolve e as inúmeras causas do aborto, desde

a gravidez interrompida por uma decisão até as interrupções de gravidez ditas

espontâneas.

A questão que se coloca em conseqüência dessa impossibilidade de definição

precisa, é como saber até que ponto um aborto é ( inconscientemente ) espontâneo ou/e

( inconscientemente ) provocado?

Danda Prado, em seu livro O Que é o Aborto ( 1995 ), cita como exemplo dessa

dificuldade, uma maternidade no Rio de Janeiro “onde os funcionários se referem à

“enfermaria do tombo”, tal o número de casos de mulheres que ali dão entrada com

hemorragias e seqüelas de aborto alegando terem caído acidentalmente.

Ainda nesse livro ( pág. 16 ):

“é muito difícil, ‘as vezes quase impossível a um

médico, distinguir um aborto provocado de um espontâneo, inclusive

quando ouve intervenção de terceiros. Mais difícil ainda é distinguir

Page 10: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

6

entre um tombo “planejado” e um acidente ocasional. Há mulheres

que deliberadamente tomam chá de ervas laxantes ou abortivas,

atiram-se de escadas, carregam pesos excepcionais afim de perder o

feto sem recorrer a terceiros, e quando interrogadas afirmam nunca

terem praticado um aborto. “Esquecem” essas tentativas, já que não

foram testemunhadas, principalmente quando o atraso menstrual foi

de poucas semanas e ninguém se inteirou dele.”

É nesse contexto confuso e antagônico entre o acaso e o acidente, entre a ação

inconsciente e a ação deliberada, entre o desejo de ter um filho e a culpa por não tê-lo

desejado naquele momento, que o aborto, sua definição, sua discussão se faz, como não

podia deixar de ser, impregnada de tabus, dúvidas, incertezas, culpas reprimidas e

lembranças esquecidas ou não.

Page 11: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

7

II

ABORTO: ALGUNS DADOS

Segundo dados estatísticos revelados por Paulo Daher Rodrigues em seu livro Aborto

(1999 ), atualmente 20% dos atendimentos nas maternidades municipais são para

reparar seqüelas de abortos mal feitos e negados pelas pacientes através de desculpas

do tipo: que a hemorragia foi provocada por tombo.

Segundo esse mesmo autor:

“ É praticamente impossível montar uma estatística

confiável sobre os casos que acabam nos hospitais públicos, aos quais

só vão mulheres pobres. As mulheres de classe média ou alta

procuram logo um ginecologista particular quando sofrem algum

problema decorrente do aborto.”

Estima-se que as problemáticas decorrentes do aborto seja a quarta causa da

mortalidade materna.

Um dado também de extrema importância é o fato de não existir dentro da

política de saúde pública, uma atenção a contracepção, mesmo que os números e as

estatísticas nos mostrem dados alarmantes ( 5 milhões de abortos são feitos por ano no

Page 12: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

8

Brasil, com registro de quatrocentas mil mulheres tendo como causa da morte os

problemas decorrentes do aborto)

Em 1983 foi aprovado pelo Ministério da Saúde o Programa de Assistência

Integral a Saúde da Mulher, mas que ainda não foi adotado em todo o país. Esse

programa tem como meta levar mais informação e livre acesso aos métodos

contraceptivos, e por conseguinte, reduzir o número de abortos e a mortalidade

provocada por eles.

Apesar do aborto ser ilegal no Brasil, raramente se tem notícia de algum processo

penal por sua prática.

Outro dado estatístico é de que 33 milhões de abortos ilegais são realizados no

mundo, mas esse número pode ser duplicado se considerarmos os abortos ilegais.

“De acordo com a pesquisa, 66% da população

mundial vive em lugares onde o aborto é permitido. Quase todos os

países desenvolvidos e vários em vias de desenvolvimento, como

China, Cuba, Índia, Tunísia e Vietnã, já o incluíram na lei. ( ...)

Atrás apenas da arrecadação obtida com o tráfico

de drogas e com o jogo de bicho, os abortos provocados estão se

firmando como a terceira atividade ilícita bilionária no Rio de

Page 13: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

9

Janeiro: movimentam nada menos que 100 milhões de dólares a cada

ano.”

( Daher Rodrigues,1999 )

Segundo as estatísticas, de 20% a 30% das mulheres brasileiras já fizeram pelo

menos um aborto. Existe no Rio de Janeiro em São Cristóvão, um Centro de Referência

para abortos permitidos por lei ( casos de estupro ou de a gravidez implicar em risco de

vida para a gestante ), a Maternidade Fernando Magalhães, no entanto, só registra uma

média de três abortos legais por ano.

“ Em Brasília, cerca de 800 mulheres reunidas durante

três dias para a Conferência Nacional Sobre Saúde e Direitos da

Mulher encerram o encontro, depois de longa discussão, incluindo no

documento final, uma proposta a favor da legalização do aborto. O

relatório, de quarenta e cinco páginas, será remetido a Constituinte.

“Nas condições em que ocorre eventualmente no Brasil,” diz o

documento: “o aborto constitui um problema de saúde pública e

saúde mental. É preciso proporcionar ainda assistência e condições

para que a mulher quando decida fazê-lo, faça-o de forma consciente,

tendo garantida sua assistência médica e psicológica. É preciso

informar sobre métodos contraceptivos existentes, para que o aborto

seja uma prática cada vez mais reduzida.”

( Paulo Daher Rodrigues, 1999 )

Page 14: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

10

É importante salientar que desde 1940 o Código Penal admite o aborto legal. No

artigo 128 estão descritos os dois casos em que o aborto é permitido, e portanto, não é

punível, desde que praticado por médicos: no primeiro caso é quando não há outro meio

de salvar a vida da gestante, e no segundo caso é quando a gravidez é resultado de

estupro. Mesmo assim, apenas oito hospitais obedecem a lei.

Em conseqüência disso, atualmente tramita no Congresso Nacional o Projeto de

Lei 20/91 que regulamenta a prática do aborto na rede Pública de Saúde, uma

reafirmação do artigo 128 citado acima, cujo objetivo é garantir as mulheres o efetivo

exercício de um direito.

Finalizando esses dados, que na verdade, não são de forma alguma todas as

informações possíveis acerca do assunto, mas que expressam uma parte significante do

mesmo, reproduzo alguns depoimentos pró-aborto, retirados do livro de Paulo Daher

Rodrigues (1999 ), e também , depoimentos de mulheres dados a revista Veja:

“ Eu não acho que o aborto é de qualquer forma

errado. Desde que um indivíduo é completamente dependente de sua

mãe, ele não é uma pessoa.” – Virgínia Albernetly, Vanderlilt School

of Medicine, psiquiatra e antropóloga citada na revista Newsweek,

14 de janeiro de 1985.

“Através do condicionamento do público, uso de

linguagem, conceitos e leis, a idéia de aborto pode ser separada da

idéia de assassinato.” – Clinical Obstetrics

Page 15: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

11

“ A imagem do bebê no ultra-som incomoda-me

mais que qualquer outra coisa. A equipe ( corpo médico da clínica )

não deveria vê-la. As mulheres que vieram fazer aborto nunca foi

permitido ver o ultra-som.” – Dr. Joseph Randall.

“Elas resolveram falar. Quebrando o muro de

silêncio que sempre cercou o aborto, oito dezenas de mulheres

procuradas por Veja decidiram contar como aconteceu, quando, por

quê. Falaram atrizes, cantoras, intelectuais – mas também operárias

domésticas, donas de casas. Falaram de angústia, de culpa, de dor e

de solidão. Também falaram de clínicas mal equipadas, de médicos

sem escrúpulos, de enfermeiras sem preparo, de maridos e namorados

ausentes.

A apresentadora Hebe Camargo contou que,

quando era uma jovem de dezoito anos, ficou grávida do primeiro

namorado e foi parar nas mãos de uma curiosa que fez a cirurgia sem

anestesia e sem cuidado.

A atriz Aracy Balabaniam,a Cassandra do Sai de

Baixo, ficou grávida quando estava quase chegando aos quarenta

anos e dando fim a um longo relacionamento. Resolveu fazer o aborto

convencida de que a criança não teria um bom pai, nem ela seria

capaz de criá-la sozinha.

Metalúrgica da Força Sindical, a mineira Nair

Goulart, 45 anos, fez dois abortos nos anos setenta por motivos

Page 16: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

12

econômicos. Ela e o marido, também operário, ganhavam pouco,

viviam num quarto de despejo e não tinham meios de educar nenhum

filho.

“ Era verão de 1987, eu passava as férias em

Salvador. Numa noite, quando voltava sozinha para o hotel, um

homem bêbado me agarrou, tirou minhas

roupas ‘a força e me estuprou. Ninguém ouviu meus gritos. Nem o

meu choro. No dia seguinte, voltei para Belo Horizonte. Aquele

monstro me engravidou. Eu tinha 24 anos , era divorciada e mãe de

um filho de três anos. Fui para uma clínica no Rio de Janeiro. A única

sensação que tive foi de alívio. A decisão foi madura, mas fiquei muito

tempo em conflito, porque afinal, eu tinha um filho e tinha uma

formação católica.” – Myriam Marques, 34 anos, enfermeira.

“Os exames de ultra-sonografia mostram que o

feto tinha Síndrome de Tuner, disfunção cromossômica que lhe

garantiria sobrevida de apenas alguns dias. Quando soube, minha

primeira reação foi tê-lo assim mesmo. Durante duas semanas minha

vida virou do avesso. A certa altura vi que, para protegê-lo estava

sendo egoísta. Não havia motivo para prolongar o sofrimento daquele

feto. Fiz o aborto com autorização judicial. A sensação de estar

Page 17: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

13

fazendo um aborto dentro da lei muda tudo. Mesmo arrasada, senti-

me amparada, protegida.”– Desirée Fanelato, 30 anos, biomética.

“ Era um senhor de meia idade, simpático, que me

explicou que não faria aquilo por dinheiro. Defendia o direito de a

mulher abortar sem correr riscos. Não gostaria de entregar meu

corpo a um aborteiro profissional Eu nunca entrara numa sala de

cirurgia. Tinha vinte anos e fazia cursinho. Namorava havia dois anos

e estudara muito para entrar na USP. Minha primeira reação quando

soube que estava grávida foi ficar feliz. Mas nós não tínhamos

condições financeiras. Foi uma decisão tranqüila. Eu não estava

pronta para ser mãe. Mas sou louca para ter um filho.” – Renata

Vicentini Mielle, 25 anos, estudante da USP.

“ Eu tinha um corpinho lindo, sobrancelhas

grandes e cabelos compridos e escuros. Começava minha carreira de

cantora no rádio. Na minha primeira relação sexual fiquei grávida.

Não podia contar para ninguém. Meus pais sempre foram muito

severos e naquela época era uma perversão ter relação sexual sem se

casar. Contei para uma amiga, uma vizinha. Ela soube de um local

onde uma mulher fazia aborto. Ela não era médica. Sem medicamento

nenhum, fez a curetagem. A dor era tão intensa que ameacei gritar,

jamais vou esquecer daquela voz falando em tom alto e áspero para

Page 18: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

14

eu calar a boca. Voltei para casa e tive hemorragia por vários dias.

Acabei em um hospital. Estava muito doente. Minha família nunca

soube disso e foi ruim ter de esconder. Para ser mãe a gente tem que

desejar ter um filho. Ele tem direito ‘a vida, é verdade. Mas com amor

dos pais, com condições para crescer com saúde e boa educação.

Quem vai garantir isso? Um Estado falido, miserável e hipócrita? A

Igreja, nem pensar. Sou católica e até hoje não me arrependo do que

fiz. Hoje tenho o Marcelo, a melhor coisa que me aconteceu. Estava

casada e preparada para ter um filho. Sinto-me muito feliz.” – Hebe

Camargo, 68anos, apresentadora de TV.

( Veja, 17 de setembro de 1997 )

Page 19: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

15

III

OS CORPOS FRAGMENTADOS

Nos últimos tempos se tem falado muito sobre o aborto e muito ainda se tem para

falar. Muito do que se fala, se refere a um único aspecto da questão: a vida e a morte do

feto no útero.

É desse aspecto, desse fragmento de discurso, desse fragmento do corpo – o útero

- como uma parte anatômica e dissociada do corpo feminino, sobre essa parte tomada à

parte, que os diversos discursos como o religioso, o político, o médico, etc., aplicam

seus conceitos.

É completamente desconsiderado o ser humano constituído de braços, pernas,

órgãos, cérebro, sentimentos, emoções, alegrias, tristezas, lágrimas, risos, amores,

paixões e desejo. O sujeito precisa ser ignorado, anulado calado e excluído.

É necessário ressaltar que essa visão fragmentada do corpo não é de exclusividade

de nenhuma área dos saberes. É comum as expressões como: “mão-de-obra”, “o coração

do país”, “os cérebros da engenharia”, como se uma parte do corpo pudesse dar a

representatividade, mas na verdade é se perder de vista a totalidade.

A totalidade que se levada em conta, escapa ao poder controlador. A

fragmentação dos corpos , os seus fragmentos, servem a função normatizadora das

instâncias de poder da sociedade.

Lei e religião incidem sobre esse “corpo aos pedaços”, legitimando seu poder

sobre a ordem das coisas.

Page 20: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

16

É nesse contexto, que a sexualidade se dissocia do prazer, ligando-se de uma

forma intensa à reprodução.

“Nem o homem nem a mulher aprendem a sentir-se

um ser sexualizado, isto é, a sentir seu corpo, masculino ou feminino,

como uma totalidade prazerosa...”

( Maria Tereza Verardo, 1987 )

É difícil para nós, por algumas vezes, compreendermos o alcance de frases tais

como, “ nosso corpo, a nós pertence”; “ filho, só os desejados”; “contra a defesa da

honra”. Estas frases usadas não como jargões do movimento feminista, na verdade,

estão relacionadas com diversos aspectos da vida das mulheres, na apropriação de seus

corpos, no poder de decisão sobre seus destinos.

Existem muitos fatores que contribuem para limitar e até mesmo impedir o

controle da mulher sobre sua própria vida.

A reprodução é um fato inerente à vida das mulheres. Poder lidar com o desejo de

ser mãe, de parir, de ter filhos ou a possibilidade de recusa de tudo isso, como expressão

de seu desejo, é reafirmar, garantir seu lugar de sujeito e a posse de seu corpo e de seu

destino.

Podemos pensar esta questão a partir de dois pontos que se contrapõem e se

interrogam mutuamente: do que se trata, ou melhor, o que está em jogo quando falamos

de aborto, procriação e mulheres?

Page 21: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

17

O aborto, se pensado como uma decisão racional, e como uma das maneiras de se

evitar uma gravidez não desejada, sua proibição traz como conseqüência, filhos não

desejados, mas se pensarmos que a gravidez é anterior a decisão do aborto, onde estaria

agora colocada a questão do desejo? Mais ainda, onde ficaria a questão da vontade

quando se impõe às mulheres nascimentos de filhos pelos quais elas não se decidiram

por tê-los?

Outra questão a que isso tudo remete é de que as mulheres são ideológicas e

culturalmente educadas para se casar e ter filhos, como o ideal máximo de vida.. Isto se

inscreve de tal forma em seu corpo, em suas atitudes, em sua vida, que as barreiras

contra a contracepção, o aborto, apenas reforçam a obrigatoriedade das mulheres de

terem filhos, desejados ou não, e sua culpabilidade por recusarem, esse destino.

Voltando a questão da fragmentação dos corpos, na mulher isso se dá de uma

maneira mais confusa. Seu corpo deve ser usado como arma de sedução, mas deve

negar isso para poder ser julgada e aceita moralmente pela sociedade.

Para conseguir êxito nesta tarefa, a mulher precisa passar de desejante para

desejada. Desejada pode ser, mas não pode desejar. É necessário abrir mão de seu

desejo.

“Os impulsos sexuais femininos são permitidos

apenas dentro do casamento, sob a orientação do marido a quem ela

deve dar prazer, de preferência sem senti-lo.”

( Maria Tereza Verardo, 1987, 11 )

Page 22: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

18

Isto quer dizer, que a relação sexual não pode ser considerada um fim em si

mesma. Se exclui assim o prazer, o exercício livre de sua sexualidade. É necessário

abrir mão de seu prazer.

Se a relação sexual é a condição necessária para a maternidade, e a maternidade

está inscrita na mulher e portanto, no seu papel de esposa, esta condição faz com que a

mulher perca seu estatuto de mulher para adquirir o de mãe ( a mãe é sempre

assexuada). A mãe não é nada, é só mãe. É necessário abrir mão do seu corpo.

Abrir mão do seu corpo é o preço que a mulher paga pela conquista de uma

função social: a função de reprodução (reprodução de indivíduos da mesma espécie que

aumentarão o contigente de força de trabalho ). O corpo da mulher passa a ser um

instrumento de controle e um “patrimônio social”. Passando assim, do particular para o

coletivo, além de abrir mão de seu corpo, perde também a individualidade.

“No momento em que o corpo se transforma em

patrimônio social, ele pode ser legislado.

Criam-se normas que determinam se o fruto

daquele ventre pode ser útil à sociedade. Esse corpo passa a ser

administrado pelo Estado, pela Igreja e pelo Marido.”

( Maria Tereza Verardo,1987,11 )

O que parece de maior relevância nesses fatos é de que muitas vezes, a grande

maioria das mulheres não se dão conta disso. Não se questionam. Não interpelam o

outro. Seguem assujeitadas, os seus destinos.

Page 23: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

19

“ As lágrimas vertidas pelas mulheres não deixam

marcas no mundo.”

( Marion Zimmer Bradley, As Brumas de Avalon )

Page 24: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

20

IV

DEBATE BIOÉTICO

Neste capítulo abordaremos a questão moral, ética e das idéias do senso comum

sobre o aborto.

Começamos por abordar algumas posições moralmente extremas sobre esse

assunto. Estas posições extremas muitas vezes apresentam incoerência com relação aos

seus próprios princípios, como por exemplo, com relação a heteronomia e a autonomia.

Há um movimento chamado “ Católicas Pelo Direito de Decidir ,” fundamentado na

doutrina cristã, e por isso mesmo, sob o ideal da heteronomia, que defendem o direito

decisório da mulher sobre a reprodução. Posição ambígua já que acreditam que a vida

seja um dom Divino., mas defendem a autonomia sobre ela. Há outras posições inversas

a esta onde se defende o princípio da heteronomia da vida, muito embora, sejam

movimentos que se encontram sob o ideal da autonomia, da liberdade individual.

Como nos diz Débora Diniz e Marcos de Almeida, em seu artigo Bioética e

Aborto:

“Isto ocorre basicamente, porque no campo da

moral, com rara exceções, as pessoas não se comportam com a

coerência lógica comum dos tratados de filosofia moral. As escolhas

morais processam-se de inúmeras maneiras – com influências da

família, do matrimônio, da escola, dos meios de comunicação em

Page 25: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

21

massa, etc. – o que acaba por mesclar princípios e crenças

inicialmente inconciliáveis. Na verdade, grande parte da população

encontra-se confusa entre os extremos morais acima representados.”

( Sérgio Costa, Iniciação a Bioética, 1998 )

O que podemos concluir é que quando se trata de princípios e valores morais e

éticos a questão se complica e se torna confusa exatamente por sua radicalidade,

tornando os temas de autonomia e heteronomia a grande questão da discussão ética e

moral acerca do aborto.

É sabido que na mulher a imperiosidade do instinto maternal é algo muito forte na

natureza feminina. Podemos notar sua força mesmo nas crianças e nos animais.

A partir daí, cabe perguntar, que motivos íntimos suficientemente fortes levaria

uma mulher a ir contra este instinto maternal, frustrando a finalidade, talvez a mais

importante do seu ser, sabedora de que comete um crime, já que o aborto é considerado

como tal no Brasil, e ainda assim, pratica o aborto? O que será que autoriza essa

conduta?

De qualquer forma, sejam quais forem os motivos, eles pertencem a gestante. Os

motivos são seus, assim como seria seu o filho que nascesse.

Ser mãe é um direito e não um dever da mulher. Trata-se portanto, de uma

possibilidade de escolha.

Não é apenas um fenômeno biológico, mas depende também, de todo um

simbolismo que como diz Lacan,

Page 26: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

22

“ se não houvesse esse diabo de simbolismo para (o homem )

empurrar o traseiro para até que afinal de contas ele ejacule, [ ... ] há

muito tempo que não haveria mais destes seres a falar.” ( Seminário

RSI, 1974 )

Não podemos deixar de reconhecer também, que a partir do movimento feminista,

as mulheres vêm tomando a palavra, vêm se organizando e se apropriando de seu corpo

e do poder sobre a procriação.

A medicina acompanha esta evolução compartilhando com os movimentos

feministas esta ideologia. Se pautando por suas demandas aparentemente simples como

“eu quero” ou “ eu não quero” ter um filho.

É claro que isso se dá de forma lenta e cuidadosa, mas o que podemos concluir é

que já se pode , pelo menos, colocar o aborto nos discursos políticos de saúde, nos

discursos teóricos, e principalmente nos discursos dos atores sociais envolvidos com

esta questão.

Page 27: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

23

V

TER OU NÃO TER FILHOS? _ SER OU NÃO SER ( MÃE ): EIS A QUESTÃO

Que motivos estão implicados na decisão de se ter ou não, um filho?

Não é na verdade uma decisão tão fácil de ser tomada como parece. É uma

decisão atravessada e enredada numa trama de fatores.

Abordaremos alguns mais comuns e mais evidentes, e deixaremos os mais

subjetivos para um outro momento.

Ter filhos pode ser uma opção, porque é isso que se espere de quem se casa.

Trata-se de uma resposta social.

Ter filhos pode ser uma opção que venha dar conta de uma satisfação em lidar

com crianças, participar de seu mundo, de suas fantasias, de suas brincadeiras.

Ter filhos pode ser ainda, uma opção de auto- realização, onde os desejos e

sonhos dos pais são realizados através dos filhos, com se esses sonhos pudessem ser os

mesmos.

Ter filhos pode ser ainda, uma opção bem mais particular , de preenchimento de

um “vazio” existencial. Cujo filho ocuparia um lugar cujo objetivo é não permitir que o

“vazio” existencial apareça.

Ter filhos pode ser também, uma tentativa de solução para um casamento, uma

relação em crise, na tentativa de salvar essa relação.

Ter filhos pode ser uma opção ligada ainda, a questões mais sérias como “

investimento” ou ainda como garantia de sobrevivência, ou seja, condições

socioeconômicas.

Page 28: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

24

E não ter filhos ? Que motivos estariam implicados nesta decisão ?

A falta de informação pode ser um deles,. Não saber sobre a sexualidade pode

levar mulheres a uma gravidez que não desejam nesse momento de suas vidas.

As mulheres ainda hoje, vivem a sua sexualidade mas, sem o direito de falar sobre

ela, e se o fazem transgridem uma ordem estabelecida. Isso faz com que mulheres

engravidem sem nem ao menos saber o que está acontecendo com o seu corpo e sem ao

menos a possibilidade de decidir sobre o desejo.

Outro motivo que levaria as mulheres a interromper uma gravidez são as falhas

dos métodos contraceptivos.

De qualquer forma, sejam quais forem os motivos, a opção por ter ou não um filho

deve ser respeitada.”

“Nas mulheres, o que chamamos matriz ou útero é

um animal dentro delas que tem um apetite de gerar filhos; e quando

fica muito tempo sem fruto, esse animal se impacienta e suporta esse

estado com dificuldade; erra pelo corpo inteiro obstrui as passagens

do fôlego, impede a respiração, lança em angústias extremas e

provoca outras enfermidades de toda sorte.”

(Platão, Timeu)

Ignora-se por completo o desejo das mulheres, lhes calam a voz, ensurdecem os

ouvidos aos seus clamores e argumentos, silencia-se sobre isso, controla-se o seu

desejo.

Page 29: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

25

“Não se faz mais o elogio da maternidade. Mas

também não se permite o aborto, mesmo sabendo que ele continua

existindo. O que se sente é só o silêncio. O Estado continua dispondo

do corpo da mulher como sempre fez. A sexualidade da mulher é

utilizada pelas políticas natalistas e antinatalistas. Incentiva-se a

maternidade quando se precisa de trabalhadores, cala-se quando eles

estão se tornando muito numerosos.

A legalidade do aborto decidida por homens –

juristas, padres ou médicos – leva a mulher a procurar locais

clandestinos, colocando-a novamente sob o poder dos homens

continuando tudo como está.”

(Maria Tereza Verardo, 1987, 66)

Dúvidas, incertezas, indecisões, impasses, ambigüidades e ambivalência

atravessam esta questão.

Ter ou não ter, ser ou não ser, eis a questão que se coloca e que insiste em retornar

em qualquer tempo, a qualquer momento.

Dar a mulher o direito de pelo menos falar de suas dúvidas, é o mínimo que

podemos fazer para começar a desvendar o enigma do desejo da maternidade.

Trata-se de um desejo, trata-se de uma escolha, trata-se trama onde estão

enredadas histórias pessoais, valores, conceitos, sociedade e principalmente sujeitos.

Atores de suas vidas. Mulheres, mães ou não. Filhos, paridos ou não. Trata-se de algo

que escapa e surpreende, mas que comparece mesmo que não se pretenda.

Page 30: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

26

VI

CONCLUSÃO

Questão de desejo ou vontade? Do desejo, a psicanálise fala de um lugar que lhe é

bastante familiar, o inconsciente. Conceito fundamental da teoria e da prática

psicanalista.

Lacan nos fala que o desejo é sempre o desejo do outro. Somos marcados pelo

olhar do outro, que nos identifica, que nos diferencia, que nos coloca na trama do

desejo, como sujeito também desejante.

É claro que estamos falando aqui, de algo inconsciente que produz seu efeito nos

discursos dos sujeitos, nas suas ações e atitudes, nas suas “escolhas”, mesmo que essas

escolhas possam parecer elaboradas e conscientes.

Já quando falamos da vontade, nos remetemos a questão da volição, que é uma

função mental, um processo neurofisiológico que tem como objetivo a autonomia do

indivíduo sobre sua ação, ou seja, sobre o seu domínio e controle. Isto quer dizer, que se

trata então de um processo consciente e elaborado.

O que podemos verificar através desse breve estudo é que o desejo ou vontade, o

que o aborto traz é um atravessamento de questões que invadem cortam, atravessam,

perpassam o corpo da mulher, sua alma, sua história, seu lugar, seus projetos, seus

sonhos, seus desejos e suas vontades.

Page 31: ABORTO UMA QUESTÃO DE DESEJO OU VONTADE ? DO CARMO COSTA DE QUEIROZ.pdf · Agradeço primeiramente a Deus, pois devo a ele tudo o que tenho e ... o país. Esse programa tem como

27

BIBLIOGRAFIA

- Prado, Danda, O que é o aborto – 4ª Ed. S.P. , 1955.

- Verardo, Maria Tereza, Aborto: Um direito ou um crime ?, S.P., Moderna, 1987.

- Rodrigues, Paulo Daher, Aborto, M.G., palpite,. 1999.

- Chatel, Marie – Magdeleine, Mal – Estar da Procriação ; As mulheres e a

medicina da reprodução, RJ, Campo Matemático, 1955.

- Costa, Sérgio Ibiapina Ferreira; Garrafa, Volnei e Oselka, Gabriel, Iniciação a

bioética, Conselho Federal de Medicina; Brasília 1998.

-