O papel do trabalho no pensamento antigo e moderno
Jadir Antunes
“A base de toda divisão do trabalho desenvolvida e mediada pelo
intercâmbio de mercadorias é a separação entre a cidade e o campo.
Pode-se dizer que toda a história econômica da sociedade resume-se no
movimento dessa antítese” (Karl Marx: O Capital - Livro I).
O trabalho na Grécia Antiga
Segundo Vernant (1989, p. 10), os gregos nunca associaram a origem da riqueza
ao trabalho, ou seja, a uma atividade exclusivamente humana que exige certo
dispêndio de energias físicas e intelectuais. Para os gregos, segundo ele, era do esforço
da terra (physis) que vinham os frutos que alimentavam a mesa da cidade, e não do
esforço e do trabalho dos camponeses. Na concepção dos gregos, a terra era uma
espécie de divindade que abastecia a casa segundo uma vontade que lhe era própria, e
a abundância de riqueza produzida pela terra dependia sempre do bom ou mau
humor dos deuses da fertilidade e da fartura. Por isso, os gregos, diz Vernant, não
concebiam o trabalho agrícola como um ofício de homens especializados que requer
certo saber técnico capaz de aperfeiçoar as potências da terra e, assim, produzir mais
riquezas num menor tempo e com menos esforço humano.
Segundo Vernant (1989, p.13), o trabalho para o camponês grego era concebido
como uma forma de vida moral, como uma forma de experiência religiosa e de
comunhão com os deuses da terra. Por isso, antes de desenvolver uma técnica agrícola
voltada para o aperfeiçoamento de seu trabalho, o camponês grego preferia levantar
altares e oferecer sacrifícios e orações a esses deuses, na esperança de que eles lhe
trouxessem uma colheita abundante. Como diz Vernant (1989, p. 17), “a cultura da
terra não passa, ela própria, de um culto que institui o mais justo dos comércios com os
deuses”. Por isso, qualquer tentativa de se ampliar os poderes da terra através de um
Professor dos Cursos de Graduação e Pós-graduação (mestrado) em filosofia da (UNIOESTE) Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
artifício humano, de um artifício técnico, era considerada pelo camponês como um
sacrilégio e ofensa aos deuses que, irados, poderiam se vingar mandando pestes e secas
na próxima safra.
As artes da fabricação do vinho e do plantio de trigo podem nos dar um bom
exemplo de como se formavam as concepções do camponês grego sobre a origem da
riqueza. Sabemos que na fabricação do vinho e no cultivo do trigo nem todo tempo de
trabalho é tempo de trabalho humano. O tempo em que a uva permanece fermentando
e em que o trigo germina e se desenvolve pela ação da natureza, é um tempo de
trabalho que pertence exclusivamente à Natureza. Na concepção do camponês grego
um bom vinho e uma boa colheita de trigo eram muito mais o resultado desse trabalho
da Natureza do que do seu próprio trabalho. Assim, ao camponês antigo cabia a tarefa
de obedecer à vontade divina da physis e de adequar-se a ela sem resistência.
Desse modo, enquanto a terra trabalhava e produzia a riqueza, os camponeses
dedicavam seu tempo livre em rituais religiosos improdutivos e a escutar a voz dos
deuses e da natureza. Submetida, assim, aos desígnios da Natureza, a arte rural era
uma arte contemplativa que se submetia à regularidade dos movimentos da Natureza.
Por isso, segundo a concepção do camponês grego, no campo o maior ou menor
esforço humano sofria sempre a interferência dos humores dos deuses que regiam a
abundância de riqueza.
Dessa concepção mística surgia a idéia de que a justiça era uma atribuição
divina que tratava bem a todos que tratassem a terra com os cuidados merecidos por
um deus. A terra dava ao homem do campo tantos bens quantas fossem as orações e os
sacrifícios oferecidos aos deuses. Por esse caráter místico e religioso, como diz Vernant
(1989, p. 17) citando o pseudo-Aristóteles, de todas as ocupações a agricultura detinha
o primeiro lugar na ordem da justiça grega antiga. Por esse motivo, influenciados pelas
crenças religiosas rurais, os gregos antigos não desenvolveram a técnica e a ciência no
sentido moderno.
A técnica antiga
A técnica rural dos antigos não era propriamente uma técnica no sentido
moderno da palavra, pois ela não visava obter aumentos quantitativos da riqueza. O
mundo antigo grego não se interessou em racionalizar e sistematizar o trabalho por
vários motivos. O primeiro deles relaciona-se com o tamanho da propriedade rural.
Segundo Garlan (1984, p. 74), ainda que no período clássico já surgissem
grandes propriedades rurais – propriedades com no máximo 30 ha de terra – os gregos
em sua época clássica eram, em sua maioria, proprietários de pequenas unidades
familiares rurais (os oikos) com uma extensão de terras aproximada de 3 a 5 ha. Esses
pequenos camponeses exerciam o trabalho na terra auxiliados por cerca de 3 escravos
em média. Durante o tempo livre, esses camponeses se dedicavam às atividades
públicas na cidade – como a participação nos comícios, nos tribunais e nas mais
diversas magistraturas – ou ainda aos cultos religiosos da família no interior do
próprio oikos.
Além da pequena propriedade auto-suficiente de caráter patriarcal, no campo
predominava ainda o trabalho escravo em sua forma doméstica, onde o escravo era
concebido mais como parte da família do que como trabalhador e instrumento de
produção. O oikétès (o escravo doméstico) era um escravo rural que estava unido ao
senhor por uma relação de pertencimento familiar. Por este aspecto patriarcal da
escravidão, entre senhor e escravo reinava uma relação de fidelidade e um forte
espírito de solidariedade. Como parte da família, os escravos partilhavam de suas
alegrias e de suas tristezas, assim como, ao lado do senhor e sob sua supervisão,
trabalhavam a terra, fabricavam instrumentos e cuidavam do gado (Garlan, 1984, p.
48). Nessas mesmas propriedades trabalhavam ainda na residência do senhor, um
pequeno número de escravos responsáveis pela realização dos diferentes serviços
domésticos, sendo o principal deles o da tecelagem, ao lado da esposa do cidadão
camponês. Por isso, mais do que educar o escravo como trabalhador para desenvolver
suas habilidades produtivas, a família educava o escravo para ser um animal
doméstico obediente e fiel a ela.
Na cidade, em seu período clássico, já existia certa divisão social e artesanal do
trabalho e uma classe trabalhadora numerosa dividida entre escravos e artesãos
estrangeiros. O escravo (doulos) era um escravo-mercadoria capturado em expedições e
guerras contra o Mediterrâneo. Na época clássica, diz Garlan (1984, p. 32), doulos era a
palavra mais popular para se referir à escravidão. Semanticamente, doulos se opõe
implícita ou explicitamente a éleuthéros (o homem livre), e mais ainda a polités (o
cidadão). Doulos, por isso, aparecia sempre ligado a uma relação de dominação e
possessão. No sentido mais estreito do termo, doulos significava o escravo perfeito
desprovido de toda liberdade. Num sentido mais amplo, doulos significava qualquer
tipo de submissão a uma força estrangeira. Doulos podia ainda significar sujeição
política, servidão moral e subordinação.
O escravo de tipo ateniense, o doulos, era, antes de tudo, um objeto de
propriedade de um senhor (um despotès) e transmissível a outro senhor, seja cidadão
(polités) ou estrangeiro residente (métèques), como gado ou bem móvel, independente
de sua vontade. O doulos era desprovido de qualquer personalidade jurídica,
existindo, por isso, como coisa ou objeto de trabalho ou de troca (Garlan, 1984, p. 4).
Segundo Garlan (1984, p. 69), pode-se afirmar com alguma precisão que na Atenas
clássica havia cerca de 21 mil atenienses cidadãos, 10 mil metécos e 400 mil escravos.
O caráter mercadoria da escravidão urbana não foi mais favorável para o
desenvolvimento da técnica do que o caráter doméstico da escravidão rural. O caráter
extorsivo e violento do trabalho escravo impediu qualquer progresso técnico no
interior do sistema artesanal antigo. Apesar do saber técnico do escravo-mercadoria ser
agora um saber mais eficiente que o saber do escravo doméstico, ele permaneceu sendo
um saber eminentemente prático e empírico voltado apenas para o aperfeiçoamento do
produto e não do trabalho.
Por saber técnico, supomos certo saber especializado que se acumula ao longo
de várias experiências, como um saber que é produto da observação e destinado ao
aperfeiçoamento do trabalho e ao aumento de sua eficiência e produtividade. A
produtividade do trabalho é aumentada quando o trabalhador consegue produzir com
o mesmo esforço e com o mesmo tempo de trabalho uma quantidade maior de riqueza.
Para isso, é fundamental que ele desenvolva a técnica. Os gregos nunca viram na
eficiência do trabalho uma maneira de tornar o trabalhador mais produtivo e eficiente
quantitativamente, mas apenas o de tornar o produto do trabalho mais útil e perfeito
para o uso humano. Como diz Glotz (1949, p. 18), números eram o que menos
preocupavam os gregos. “A estatística... era totalmente desconhecida tanto dos
estudiosos como das próprias cidades... Na história antiga não há – ou há tão pouca –
verdade quantitativa”.
Nas cidades eram encontradas pequenas oficinas artesanais, geralmente de
propriedade de um homem livre estrangeiro, onde se fabricavam diferentes produtos,
tais como vasos de barro, arreios e montarias para animais, vestimentas, móveis,
instrumentos musicais e instrumentos de guerra. Assim, certa divisão e especialização
do trabalho já era encontrada no sistema manufatureiro da cidade. Segundo Garlan
(1984, p. 77), o trabalho escravo jogava um papel essencial nessas pequenas oficinas.
Segundo ele, eram raros os artesãos que não dispunham de certo número de
trabalhadores como escravos. Os escravos mercadoria tinham ainda um papel central
na execução de diferentes trabalhos improdutivos como no comércio, nos bancos e nos
trabalhos públicos.
O escravo-artesão, diferente do camponês e do escravo rural, era um
trabalhador que já dominava um ofício e estava integrado a uma divisão técnica e
social do trabalho. No trabalho artesanal já se empregavam técnicas artificiais capazes
de elevar a produtividade do trabalho humano, ou seja, se empregavam certas técnicas
capazes de produzir mais riquezas com um menor esforço e num menor tempo de
trabalho. No trabalho artesanal, a riqueza se multiplicava de acordo com as técnicas
empregadas em cada ofício. Nele, uma maior ou menor expansão da riqueza já era
mais fruto do esforço e artifício humanos e menos da vontade dos deuses. Apesar de
certo progresso quantitativo da riqueza com o trabalho especializado em comparação
com o não-especializado, a finalidade da especialização não era o aumento quantitativo
da riqueza, mas sim, sua perfeição qualitativa (Glotz, 1949, pp. 198-205).
Segundo Vernant, os artesãos nunca empregaram a técnica em seus diferentes
ofícios para dominar as forças da natureza e as submeterem à vontade humana. A
técnica era empregada apenas com o sentido de aperfeiçoar o produto do trabalho e
nunca o trabalho do produtor. Segundo ele, apesar de certo desenvolvimento técnico e
científico em relação ao campo, os ofícios da cidade em sua época clássica continuavam
submetidos ao misticismo religioso do campo. Por isso, a mesma concepção de que a
abundância de riqueza era mais fruto do trabalho da natureza do que do homem
continuava predominando também no interior da cidade.
Nesta concepção mística, o trabalho do artesão, como o do camponês, nunca era
visto como a fonte original da riqueza, ao lado da Natureza, mas apenas como seu
meio. O artesão era considerado pela cultura grega como um mero instrumento da
riqueza e nunca como seu verdadeiro sujeito e criador. Como diz Vernant ( 1989, p. 31),
“os artesãos só desempenham o papel de intermediários: são os instrumentos através
dos quais se realiza um valor de uso num objeto”. Na concepção da cidade, os artesãos-
livres, apesar de não serem escravos e propriedades de outro homem, apesar de
exercerem seu trabalho como homens livres dentro de sua própria oficina, eram
concebidos como ferramentas ou instrumentos de trabalho, semelhantes aos animais
de tração e ao arado do camponês.
Muito abaixo dos artesãos-livres estavam, ainda, os artesãos-escravos da
cidade, considerados um instrumento animado de produção e pertencendo jurídica e
economicamente a outro homem como sua propriedade. O proprietário de escravos
tinha um poder absoluto, de vida ou morte, sobre seu escravo. Sobre o escravo não
recaía o direito público, o direito que regulava as relações políticas entre os homens
livres da cidade, mas sim, o direito doméstico, o direito rural, onde seu senhor o
governava despoticamente. O escravo, por isso, como diz Glotz (1949, p. 177), não
tinha personalidade jurídica e muito menos política.
Não sendo uma pessoa, o escravo não dispunha de seu próprio corpo, que
pertencia a outro. Sendo ele próprio uma propriedade, jamais poderia, como escravo,
ser proprietário. Segundo uma bem conhecida tese filosófica de Aristóteles, os escravos
se diferenciavam dos animais de tração apenas pelo fato de que falavam. Assim, ao
lado das crenças religiosas rurais, o preconceito com o trabalho escravo contribuiu para
impedir todo desenvolvimento técnico e científico no mundo antigo. Em lugar do
desenvolvimento da ciência e da técnica no sentido moderno, os gregos preferiram
dirigir suas energias intelectuais para o desenvolvimento da filosofia, da arte e da
especulação abstrata sobre o mundo. Entre eles, a principal técnica ou instrumento de
produção era o trabalho escravo. Como diz Glotz (1949, p. 185): “o escravo é um
instrumento animado; uma equipe de escravos é uma máquina que tem homens por
peças”.
Segundo as concepções filosóficas da cidade, o elemento fundamental da
riqueza não era, como temos visto, o trabalho do artesão, mas sim a demanda do
usuário. O artesão em sua oficina não produzia seu produto com a finalidade de ele
mesmo consumi-lo, como ocorria no campo onde predominava a auto-suficiência e a
unidade entre trabalho agrícola e artesanal. Ele o produzia para outro na forma
mercadoria. E o produzia segundo as necessidades e a encomenda do usuário. Por isso,
segundo a concepção grega, o fundamento da riqueza era o usuário, que determinava
suas propriedades e seu uso, e não o trabalho do artesão, que a produzia, mas não a
consumia nem desfrutava de suas propriedades.
Os gregos chamavam essa atividade do artesão de produção ou fabricação
(poiésis) e a do usuário de ação (práxis). As ferramentas de trabalho apenas produzem,
mas não agem. O homem produz algo, quando este algo é uma coisa tangível, sensível
e objetiva que pode separar-se dele como coisa. O homem age quando sua ação se
encerra nela mesma e quando esta ação não se separa dele próprio. A arte da ação não
pode ser objetivada, ao contrário da arte da produção, pois seu produto é geralmente
um discurso. As artes da fabricação são artes como a do sapateiro, do oleiro e do
pedreiro. As artes da ação, ou artes contemplativas, são as artes da política, da
dramaturgia, da música e da filosofia. Enquanto as artes da fabricação são uma
ocupação exclusiva de escravos e artesãos, as artes da ação são uma ocupação dos
proprietários de terras – os únicos homens ociosos e verdadeiramente livres da cidade.
Um exemplo dessa relação entre ação e produção pode ser encontrado em A
República, de Platão, onde um tocador de flautas encomenda uma flauta ao artesão.
Platão acreditava haver três artes diferentes na cidade: a do uso, a da fabricação e a da
imitação. Esta última era a arte sofística da mera cópia ou imitação que não possuía
nenhum conhecimento válido para a cidade. A do uso era a arte do usuário e a da
fabricação era a arte do fabricante. Segundo ele, a arte do flautista era superior à do
artesão por ser uma arte voltada para a ação. A arte do fabricante era inferior
exatamente porque na concepção filosófica de Platão, o fabricante fabricou a flauta em
vista do uso do flautista, em vista de uma ação e de uma finalidade que estavam
separadas dele próprio como produtor, e a finalidade e a ação são metafisicamente
superiores à arte da produção (Cf. A República 601b a 602b).
Segundo a concepção de Platão, o fabricante de flautas era um mero servo ou
instrumento das necessidades do flautista. Para ele, a atividade do flautista, a sua ação,
era também superior à atividade do fabricante de flautas, vista como uma atividade
meramente mecânica e instrumental. Ao executar sua música o flautista produzia um
produto superior à própria flauta, produzia um discurso, sua música, destinado à
satisfação das necessidades superiores da cidade, as necessidades de ordem espiritual.
A arte do usuário governava, assim, a arte do fabricante.
Ainda que durante o governo de Péricles os artesãos livres – certa porção de
atenienses de nascimento que haviam perdido suas terras para os grandes
proprietários rurais – participassem ativamente da política e dos comícios da cidade,
sua participação era condenada pela massa majoritária dos camponeses. Apesar de sua
importância econômica para a cidade, esses artesãos deveriam ser excluídos da política
porque sua atividade era uma mera fabricação, porque era uma atividade ainda presa
aos desígnios da natureza e submetida à vontade e arbítrio dos deuses. Os artesãos
deveriam ser excluídos da comunidade política e viver como meros servos e
instrumentos de suas necessidades superiores, porque sua ação era mera submissão e
servidão. A comunidade política deveria ser exercida, por isso, exclusivamente por
homens de ação, por homens livres e emancipados da arte de produzir suas próprias
necessidades.
Aristóteles e o trabalho
O preconceito popular antigo em relação ao trabalho prático e à arte da
produção está mais bem claro e explicado na Metafísica de Aristóteles. Nessa obra,
Aristóteles divide o conhecimento humano em duas categorias: em conhecimento
prático fundado na experiência, e conhecimento científico, filosófico ou teorético
fundado na especulação abstrata.
Para Aristóteles, todos os animais recebem da natureza a faculdade de conhecer
pelos sentidos. Aos homens, porém, a natureza deu a faculdade de conhecer pelo
raciocínio. O artesão fabricante era concebido por Aristóteles como uma espécie
superior de animal, porque além de conhecer pelos sentidos possuía a faculdade da
memória. A faculdade da memória produzia assim, a experiência, um conhecimento
mais elevado que o conhecimento animal, adquirido pelo hábito e pela repetição.
Ainda que todo conhecimento humano tenha a experiência e os sentidos como
ponto de partida, não são eles o fundamento do conhecimento verdadeiro do mundo e
das coisas, segundo Aristóteles, porque a experiência fornece apenas um conhecimento
prático, utilitário e particular. O conhecimento prático-empírico tem ainda o defeito de
não conhecer as causas daquilo que produz. Para Aristóteles, o verdadeiro
conhecimento humano é o conhecimento filosófico, que conhece as causas não
aparentes, empíricas ou sensíveis do mundo e das coisas.
O conhecimento prático do artesão, segundo Aritóteles, por ser um
conhecimento meramente individual, tem ainda o defeito de não poder ser ensinado,
ao contrário do conhecimento científico ou filosófico que por sua natureza universal
pode ser ensinado e comunicado aos homens da cidade. Evidentemente, o
conhecimento prático do operário grego era transmitido de geração em geração dentro
de cada família e de cada ofício. Mas para Aristóteles, e para a cultura grega em geral,
o operário, geralmente um escravo ou um estrangeiro livre, não formava parte do
gênero humano, pertencendo mais propriamente ao gênero dos bárbaros e
incivilizados do mediterrâneo.
Assim, apesar de sua evidente utilidade para a vida humana, o conhecimento
técnico do operário era visto por Aristóteles como um conhecimento inferior e sem
valor de verdade para a cidade. Acima deste conhecimento prático adquirido pela
experiência e pelo hábito estava o conhecimento científico ou teorético. O
conhecimento científico ou teorético se caracterizava, segundo Aristóteles, pelo fato de
não ser um conhecimento em vista de uma utilidade prática e de ser um conhecimento
pelo conhecimento. O conhecimento científico e teorético, assim como o conhecimento
filosófico, seria um verdadeiro conhecimento por não ter a utilidade como fim. Por
esses motivos, Aristóteles e a cultura grega condenaram o desenvolvimento da técnica
e da mecânica na cidade e consideraram como legítimo apenas o conhecimento
especulativo e contemplativo do mundo: o conhecimento filosófico. Movidos por esse
preconceito, o mundo antigo não desenvolveu uma ciência e uma tecnologia no sentido
moderno, ou seja, um discurso racional sobre a técnica.
Por conceber o trabalho do artesão como mera produção, “os diretores de obras,
qualquer que seja o trabalho de que se trate, têm mais direito a nosso respeito que os
simples operários”, dizia Aristóteles (1992, p. 6). Os operários não mereciam o respeito
da cidade, porque “se parecem com esses seres inanimados que trabalham, porém sem
consciência de sua ação” (Aristóteles, 1992, p. 6). O preconceito de Aristóteles com o
trabalho operário se explica pelo seu preconceito com a democracia. Segundo Glotz
(1949, p. 153), as assembléias do povo ateniense na época de Péricles eram assembléias
tomadas de sapateiros, carpinteiros, ferreiros, cultivadores, revendedores e outros
artífices livres da cidade. Artífices esses que geralmente não possuíam escravos como
sua propriedade e viviam apenas de seu próprio trabalho.
Os gregos, até sua época clássica, devotavam um verdadeiro desprezo pelas
formas materiais da riqueza produzida na cidade. Para eles, os amantes da riqueza
material poderiam ser comparados a bárbaros e animais sem alma, sem logos, e sem
razão. Por esse motivo, nunca se interessaram pelo desenvolvimento das habilidades
manuais e artesanais e pelo desenvolvimento de uma ciência e de uma técnica voltadas
para o aperfeiçoamento do trabalhador para o trabalho. Seu interesse no trabalho se
dirigia sempre para o aperfeiçoamento do produto e não para o do produtor.
Os economistas e a riqueza capitalista
Esse desprezo e essa crítica às formas materiais da riqueza foram mantidos
desde a antiguidade até o final da Idade Média. Foi somente com o surgimento da
modernidade capitalista – e da Economia Política clássica como ciência – que o
trabalho foi elevado à condição de atividade digna do homem.
Os primeiros economistas da história moderna a refletir sobre a natureza da
riqueza capitalista foram os chamados mercantilistas – entre 1450 e 1750 –, também
chamados de metalistas. Para eles, a nova riqueza trazida pela modernidade se
identificava imediatamente com o dinheiro. Com essa concepção, a forma metálica da
riqueza – o ouro – era a forma suprema e meta de toda nação moderna. Segundo a
concepção metalista, os reinos modernos deveriam dedicar seus esforços econômicos,
então, ao processo de acumular dinheiro. O caminho para atingir tal objetivo era o
mercado internacional e a obtenção de saldos positivos cada vez maiores na balança
comercial do Estado. Ampliar a riqueza da nação se identificava, desse modo, com o
entesouramento estatal.
A primeira reação a essa concepção metalista de riqueza surgiu com a chamada
fisiocracia – entre 1750 e 1780. Para esta concepção, a riqueza de uma nação deveria ser
medida pela dimensão do volume de trabalho investido na produção agrícola.
Segundo a fisiocracia, o trabalho era o fundamento da riqueza. Porém, não seria
qualquer trabalho humano que criaria a verdadeira riqueza nacional, mas sim, apenas
o trabalho agrícola. Para a fisiocracia, as outras formas de trabalho, como a
manufatureira e a artesanal, em franca expansão no século XVIII na Europa, não
agregavam nenhum valor novo à riqueza já produzida pelo trabalho agrícola, mas
apenas a transformavam em novas utilidades.
Para a fisiocracia, as formas de trabalho desenvolvidas na cidade eram
improdutivas quando comparadas com o trabalho do campo. Para ela, o artesão e o
manufatureiro da cidade apenas modificavam a forma natural do trabalho já
produzido no campo. O sapateiro, por exemplo, não agregava nenhum valor novo em
trabalho ao fabricar sapatos para a sociedade. Ele apenas dava nova forma à matéria
natural do couro produzido no campo, transformando-o em uma nova utilidade.
François Quesnay (1983, p. 257), um importante fisiocrata francês, dividia a
sociedade em três grandes classes sociais: a classe produtiva, a classe dos proprietários
e a classe estéril. A classe produtiva era a classe dos trabalhadores agrícolas, a dos
proprietários era a dos proprietários fundiários especialmente, e a classe estéril era a
classe composta por todos os cidadãos ocupados em ofícios diferentes do ofício da
agricultura e que viviam à custa deste ofício.
Apesar de avançarem suas concepções sobre o fundamento da riqueza e do
valor para além da concepção metalista dos mercantilistas, e mesmo para além da
concepção grega, os fisiocratas permaneceram ainda presos ao passado e à observação
empírica dos fatos. A multiplicação da riqueza surgida da terra e da Natureza pelo
trabalho empregado parecia testemunhar fielmente que os ofícios da cidade apenas
modificavam as formas primárias de riqueza produzidas pela Natureza, sem
acrescentar-lhes nenhum valor novo. Para os fisiocratas, apenas a renda do trabalhador
agrícola vinha diretamente do trabalho humano com a terra. A riqueza excedente, na
forma de renda fundiária, era concebida como uma espécie de dádiva da Natureza e,
por isso, não possuía nenhuma relação com o trabalho, devendo pertencer
naturalmente ao proprietário da terra.
Antes ainda dos fisiocratas, John Locke já havia colocado em destaque o papel
do trabalho na criação da riqueza e na formação do seu valor em oposição ao papel da
terra. Segundo ele, “é, na realidade, o trabalho que provoca a diferença de valor em
tudo quanto existe” (Locke, 1978, p. 50). Locke também reconhecia o papel da técnica e
do melhoramento artificial da terra na produção de riqueza em abundância para a
sociedade. Uma terra abandonada e inculta, segundo ele, produz muito menos riqueza
do que uma terra bem cultivada e trabalhada. O aperfeiçoamento do trabalho e da terra
permitiria à sociedade, desse modo, produzir mais riquezas com uma menor extensão
de terra.
Enquanto uma terra inculta possuía pouco valor para a sociedade, uma terra
bem cultivada tinha um valor mais elevado. Como dizia Locke (1978, p. 51), “é o
trabalho, portanto, que atribui a maior parte de valor à terra, sem o qual dificilmente
valeria alguma coisa”. Como podemos ver, Locke está muito distante da mística
camponesa grega e da divinização dos poderes naturais da terra, pois para ele é ao
trabalho “que devemos a maior parte de todos os produtos úteis da terra” (Locke, 1978,
p. 51).
Adam Smith e os paradoxos da riqueza capitalista
Apesar da originalidade de Locke e dos fisiocratas, foi com Adam Smith (1983)
que os paradoxos da riqueza e do valor da modernidade capitalista começaram a se
tornar mais claros para o pensamento.
Smith é geralmente considerado o verdadeiro fundador da Economia Política
clássica. Foi ele quem, pela primeira vez, conseguiu demonstrar cientificamente que a
sociedade moderna não estava jogada ao acaso ou à vontade divina. Como a Natureza
e suas leis já descobertas pelos físicos, a economia estava regida por um conjunto de
leis econômicas que tinham por fundamento o capital: a força dinâmica que dominava
a nova ordem moderna.
Na questão do valor, Smith prosseguiu pensando como os fisiocratas, para
quem o trabalho era o fundamento natural da riqueza. Ele, porém, ultrapassou a
concepção naturalista e limitada da fisiocracia, para quem apenas o trabalho específico
do campo criaria riqueza. Para Smith, a riqueza é produto de todo e qualquer trabalho,
independentemente de suas formas naturais e específicas. Com Smith, o trabalho
enquanto tal passou, desse modo, a ser considerado o verdadeiro fundamento da
riqueza e do valor. Toda nação moderna deveria, por isso, estimular não apenas a
atividade agrícola, mas deveria estimular, também, o desenvolvimento do capital e do
trabalho manufatureiro da cidade – as principais forças produtivas da sociedade
moderna.
Segundo Smith, a riqueza não poderia ser identificada com o dinheiro. Para ele,
o fundamento da riqueza era o trabalho, podendo ser medida através dele. Smith
observou que a palavra valor possuía um duplo significado. Às vezes designando a
utilidade do produto e outras vezes designando seu valor de troca. Ao primeiro
sentido Smith chamou de valor de uso, e ao segundo chamou de valor de troca. A fim
de investigar esse paradoxo, Smith se propôs, então, a investigar os princípios que
regulam a troca entre diferentes mercadorias e os princípios que regulam a distribuição
da riqueza dentro da sociedade.
A força da concepção de Smith reside no fato de ele pensar a sociedade
capitalista como uma totalidade. Segundo ele, a sociedade inteira poderia ser dividida
em três diferentes classes de cidadãos: os trabalhadores, os capitalistas e os
proprietários de terra. Todas as restantes camadas da sociedade viveriam como
camadas ou classes subsidiárias ou derivadas dessas classes fundamentais. Por isso,
essas três classes poderiam, segundo essa concepção, ser consideradas igualmente
como membros da sociedade. Todas elas poderiam, legitimamente, reivindicar o
direito de cidadania, pois todas, cada uma com seu fator de produção específico,
participariam igualmente da produção da riqueza nacional.
Com essa concepção revolucionária, Smith pôs definitivamente por terra todas
as concepções místicas e cosmológicas sobre os fundamentos da riqueza e da
cidadania. A classe trabalhadora foi finalmente concebida como uma classe legítima e
virtuosa, pois é do seu trabalho e do seu esforço que surge a riqueza da sociedade –
ainda que ela tenha que dividir esta riqueza com os capitalistas e os proprietários de
terra.
Smith nunca fez a apologia do capitalista individual e de seu suposto caráter
mágico e empreendedor. Muito pelo contrário. Smith não deixou de dizer que os
capitalistas sempre conspiram contra a sociedade, em qualquer tempo e lugar, e que
seus interesses sempre se opõem aos interesses da sociedade. Também nunca deixou
de criticar a classe dos proprietários fundiários, para ele uma classe parasitária que
gostava de colher onde nunca havia plantado.
Smith também não deixou de mostrar os efeitos devastadores do trabalho
assalariado na cidade sobre a moral e a saúde do trabalhador. Smith mostrou que em
oposição às formas assalariadas de trabalho da cidade, e que em oposição à divisão
manufatureira e ao caráter especializado e rotineiro do trabalho, o trabalhador do
campo era mais feliz e menos alienado.
Smith mostrou, ainda, que nem todas as formas de trabalho da sociedade
devem ser consideradas úteis para o progresso da riqueza. Ao contrário do mundo
antigo que desprezava o trabalho urbano, Smith glorificava o trabalho produtivo e
criador de riqueza em oposição ao trabalho improdutivo das camadas parasitárias e
hedonistas da sociedade – as mesmas camadas elogiadas pelo mundo antigo dedicadas
à contemplação e ao desperdício ocioso da riqueza.
Para Smith, como mais tarde para Ricardo, estas camadas – compostas por
velhos resíduos da Idade Média como o clero católico –, são camadas inteiramente
dispensáveis para o progresso material da sociedade. A crítica de Smith a estas
camadas parasitárias se assemelha muito com a crítica de Platão aos sofistas. Para
Platão, os sofistas eram meros imitadores que em nada contribuíam para o
desenvolvimento das virtudes morais da cidade. Para Smith, os sofistas modernos são
aqueles que em nada contribuem com o desenvolvimento da riqueza material, vivendo
do ócio e da apologia vulgar ao sistema capitalista.
David Ricardo e a luta de classes entre capital e renda da terra
Segundo David Ricardo (1996), a concepção de Adam Smith sobre o valor
possuía um paradoxo insuportável. Segundo seu ponto de vista, Smith operava com
uma dúplice e contraditória concepção de trabalho como fundamento do valor. Em
primeiro lugar, Smith acreditava que a riqueza nacional deveria ser medida pela
capacidade de comandar trabalho. Em segundo lugar, Smith acreditava que essa
riqueza deveria ser medida pela quantidade de trabalho total empregado em sua
produção. Ricardo, procurando superar os paradoxos de Smith, avançou, então, para
uma concepção de valor baseada nesta última, na noção de trabalho enquanto certo
quantum de energias gastas na produção, considerando a primeira uma concepção
falsa e errônea.
Como podemos perceber, a concepção de Ricardo sobre os fundamentos da
riqueza está bastante afastada da concepção mística do mundo antigo, para quem o
trabalho era visto como uma atividade sagrada e uma comunhão religiosa entre os
homens e os deuses da terra. Para o mundo antigo seria racional e mecânico demais
conceber o trabalho como simples dispêndio de energia humana. Mas os gregos não
conheceram a maquinaria e a ciência mecânica moderna, como Ricardo, filho delas e da
revolução industrial.
Ricardo desenvolveu sua teoria do valor a partir da crítica aos paradoxos de
Smith. Segundo ele, a verdadeira teoria do valor seria aquela que considerasse que o
valor de uma determinada mercadoria seria maior ou menor dependendo da maior ou
menor quantidade de trabalho necessário para sua produção. Smith acreditava que o
trabalho era o regulador das trocas e do valor da riqueza apenas nos estágios menos
desenvolvidos da sociedade – como o estágio primitivo. Segundo ele, na sociedade
moderna as trocas seriam reguladas pelo dinheiro. Ricardo, porém, avançou bastante
em relação a Smith quando defendera a tese de que mesmo nas sociedades dominadas
pelo capital o valor de uma mercadoria seria sempre determinado pela quantidade
total de trabalho necessário para sua produção.
Com essa concepção, Smith ainda caía no erro da fisiocracia ao associar a
origem da renda da terra à propriedade da terra e não ao trabalho. Para ele, a renda da
terra seria paga ao proprietário da terra pelo fato da terra ser considerada um fator de
produção, ao lado do trabalho e do capital. Desse modo, para Smith, a renda da terra
seria uma adição ao preço da mercadoria – ao lado do salário e do lucro.
Para Ricardo, porém, na sociedade moderna só havia dois fatores de produção:
o capital e o trabalho. Ao primeiro caberia o lucro e ao segundo o salário. A renda da
terra, segundo ele, seria uma renda subtraída do lucro do capitalista. Coerente com sua
teoria do valor, para Ricardo, salário, lucro e renda da terra eram diferentes partes de
um mesmo valor total contido no valor da mercadoria. Por isso, segundo ele, a renda
da terra era paga ao proprietário fundiário mediante uma dedução feita sobre o valor
integral do valor da mercadoria – especialmente uma dedução feita sobre o lucro do
capitalista.
Com a concepção de que a renda da terra era uma dedução sobre o lucro do
capitalista e não uma dádiva da Natureza, Ricardo estava denunciando para toda a
sociedade capitalista o quanto a classe dos proprietários fundiários não estava
interessada no progresso das forças produtivas do país. Ricardo estava mostrando que
a classe dos proprietários de terras era uma classe que deveria ser destruída política e
economicamente e que o excedente social deveria ser apropriado inteiro e
exclusivamente pela classe capitalista. Tanto para Ricardo quanto para Smith, a classe
capitalista era, ao lado da classe trabalhadora, a única classe interessada no progresso
das forças produtivas e na elevação da produtividade do trabalho social.
Devido ao seu apurado senso científico e honradez intelectual, Ricardo não
deixou de mostrar os efeitos negativos do emprego de maquinaria em larga escala na
sociedade. Segundo ele, muitas vezes, ou quase sempre, ao poupar trabalho, ela não
traz nenhuma compensação ao conjunto da classe trabalhadora, que é desempregada
por ela. Ou seja, ainda que Ricardo possa ser visto pelos críticos da técnica e da
mecânica moderna como um economista cegado pelo iluminismo científico, ele próprio
fez questão de mostrar as contradições da maquinaria e da mecânica.
Ricardo é normalmente acusado pelos seus críticos de ser um fanático da
acumulação. Esta é uma acusação da qual Ricardo nunca precisaria se defender. De
fato, a teoria de Ricardo não está, de modo algum, preocupada em estudar as
condições de possibilidade de um consumo mais feliz e prazeroso pela sociedade –
como no mundo antigo e na Idade Média. Ricardo não foi um teórico do prazer e do
consumo. Ricardo foi um homem moderno, como Smith, e estava preocupado em
explicar a totalidade do sistema capitalista a partir de um princípio: o de que a riqueza
só poderia ser ampliada e existir em abundância para toda a sociedade com a
destruição política da classe parasitária dos proprietários fundiários, que nenhum
papel exerce na produção da riqueza, mas que consome grande parte dela. De acordo
com ele, somente com a destruição política e econômica dos proprietários fundiários;
somente com a destruição política e econômica das instituições arcaicas da Idade
Média; somente com a destruição dos privilégios estamentais da nobreza fundiária e
do clero católico; somente com a destruição dessas classes improdutivas seria possível
haver riqueza em abundância para toda a sociedade.
Essa abundância não viria da distribuição da riqueza apropriada pela nobreza
fundiária entre a massa da sociedade, muito menos entre a classe trabalhadora. Ricardo
advogava a necessidade dessa massa excedente de riqueza ser apropriada inteira e
exclusivamente pela classe capitalista. Mas essa massa não deveria ser dirigida, de
modo algum, ao consumo ocioso e improdutivo da classe capitalista, a um consumo
que nada criaria de novo, mas que apenas destruiria improdutivamente a riqueza já
produzida.
Segundo Ricardo, essa massa excedente de riqueza deveria ser convertida em
capital: na aquisição de novos meios de produção e no emprego de novos operários
para ampliar ainda mais a produção disponível ao consumo da sociedade. Ricardo, por
isso, não estava preocupado com a satisfação individual de cada cidadão capitalista,
não estava preocupado em medir o grau de satisfação das classes da sociedade, se elas
estavam mais ou menos felizes dentro desta sociedade.
Ricardo, como Smith, ao mostrar que só o trabalho cria valor e riqueza no
sentido capitalista e que a nobreza fundiária era uma classe parasitária, elevou a classe
trabalhadora ao mais alto posto capaz de ser ocupado por uma classe dominada dentro
de uma sociedade dividida em classes. Não foi sem motivos que Ricardo deu origem a
movimentos socialistas inspirados em suas concepções – os chamados ricardianos de
esquerda.
Com Ricardo, a classe trabalhadora recebeu toda a dignidade que poderia
receber de um intelectual das classes dominantes. Com ele, a riqueza foi finalmente
posta como produto do trabalho humano. Ainda que a Natureza seja a mãe da riqueza,
como já concebia Willian Petty, o trabalho foi concebido como seu verdadeiro pai. E
esta paternidade foi obra do gênio abstrato e racional de Ricardo, que conseguiu se
desprender das concepções místicas sobre os fundamentos da riqueza e demonstrar
matemática e cientificamente que só o trabalho poderia gerar valor. Ainda que a
riqueza em sua forma natural tenha uma dupla paternidade – a Natureza como mãe e
o trabalho como pai – é o trabalho da classe trabalhadora – seja ela urbana ou rural – o
único e verdadeiro pai do valor no sentido econômico e capitalista do termo.
Ricardo condenou, como já havia condenado Smith, todas as formas
parasitárias e hedonistas de vida – que em nome da defesa de valores morais
supostamente mais elevados que os valores do trabalho e da riqueza material
escondiam o interesse particular de viver sem trabalhar e a custa de trabalho alheio.
Ricardo dessacralizou a realidade humana. Com sua matemática e seu senso
prático e científico, Ricardo desvendou todos os insolúveis mistérios da metafísica e da
ontologia antiga e medieval sobre o trabalho e a ordem humana ocidental. Com ele, a
classe trabalhadora – com seu trabalho mecânico no interior da fábrica, com seu
sofrimento e sua luta para manter-se viva diariamente na irracional competição do
mercado de trabalho – foi posta enfim no mais alto grau da escala humana de valores.
Com Ricardo, a história pôde ser reescrita e reinventada. Com ele, a história humana
pôde finalmente perder seu caráter místico e nebuloso e ser entendida como
verdadeiramente humana e racional.
Diante da matemática e do racionalismo científico de Ricardo, a filosofia antiga,
apesar de sua grandiosidade e beleza literária, aparece como simples apêndice e
desdobramento da velha mitologia de origem rural. A divinização da Natureza nunca
passou de uma crença mística camponesa, segundo Ricardo, e foi, por isso,
inteiramente superada pelo seu senso científico.
O valor de uso do produto como base dos preconceitos antigos
Os gregos nunca valorizaram o processo de trabalho, mas apenas o produto
dele, porque fundavam seu modo de vida no valor de uso. Por isso, para eles não
importava aumentar a quantidade de riqueza produzida pelo trabalho e sim, apenas
aumentar a qualidade do produto fabricado. Já para o mundo moderno, onde impera o
valor de troca do produto, importa a quantidade de trabalho e não a qualidade do
produto.
O mundo antigo e a Idade Média eram sistemas geocêntricos. Neles, a terra
(physis ou natura) era o centro ao redor do qual todas as coisas giravam. Nestes
sistemas, era a terra o verdadeiro sujeito do universo e da cidade – da moral, da
política, da religião e da produção – e o homem era apenas seu servo e instrumento. No
mundo agrário pré-capitalista, o homem era um servo dos desígnios da physis. A terra
era um objeto sagrado que não poderia, de modo algum, sem violar as leis divinas que
regiam o universo, ser tocada e modificada segundo a vontade humana.
O mundo moderno rompeu com essa concepção e colocou no centro do
universo o homem e suas instituições: a ciência, a técnica, a mecânica, a maquinaria, o
trabalho, a indústria, o comércio, o dinheiro e o capital. O mundo moderno operou, por
isso, uma verdadeira revolução na história humana, revolução que ficou conhecida na
história do pensamento como revolução copernicana, porque com ela o homem
apareceu como o verdadeiro sujeito do conhecimento e da política, e a terra apareceu
como um mero instrumento de sua vontade e de seus desígnios.
No mundo rural da era pré-capitalista, o homem devia adequar suas
instituições, seu modo de vida e seu pensamento à natureza. Nele, o homem estava
irremediavelmente mergulhado numa natureza e num cosmos que não conhecia e que
jamais poderia modificar. Neste mundo, a mente humana era dominada pela
mitologia, pela religião e pela filosofia. Já no mundo moderno, a natureza deverá
adequar-se ao modo de vida do homem e às suas instituições. Nesse mundo, a
natureza e o cosmos aparecem como objetos externos que podem ser modificados pelo
trabalho e pelo pensamento.
No romantismo agrário pré-capitalista tudo devia adequar-se à ordem superior
da natureza. No mundo moderno, tudo deverá adequar-se à mecânica, à ciência e ao
capital. Neste mundo desencantado pela ciência e pela matemática, o romantismo da
mitologia, da poesia, da religião e da filosofia será visto como mero resquício do
passado rural da humanidade.
O mundo antigo, fundamentado sobre a pequena propriedade, o trabalho rural,
a escravidão e o valor de uso da riqueza, antes de desenvolver a ciência e a técnica no
sentido moderno, desenvolveu e aperfeiçoou as virtudes morais do homem através da
arte e da filosofia. O mundo moderno, pelo contrário, fundado sobre a grande
propriedade fundiária e industrial, sobre a cidade, o trabalho livre e o valor de troca da
riqueza, investiu suas energias intelectuais exclusivamente no aperfeiçoamento das
forças produtivas do trabalho e da riqueza material. No mundo antigo, por isso, um
boi era sempre considerado em sua figura natural de boi, que se alimenta e se
desenvolve por conta das forças contidas no interior da própria natureza. No mundo
moderno, porém, um boi é visto como um produto artificial que se alimenta e se
desenvolve por conta do trabalho do trabalhador e da técnica e da ciência humana nele
investidas.
Em vez de desenvolver o aperfeiçoamento da riqueza e suas qualidades úteis
para o homem como no mundo antigo, o mundo moderno capitalista aperfeiçoou
apenas as habilidades mecânicas e produtivas do trabalhador para o trabalho. Por isso,
em vez de submeter-se aos desígnios da Natureza, o mundo moderno tem
desenvolvido a ciência e a técnica para dominá-la e explorá-la.
Apesar destes paradoxos, porém, acreditamos que o mundo moderno foi muito
além do mundo antigo por conceber o trabalhador como membro digno da sociedade e
da cidadania e como sujeito criador da riqueza – ainda que ao lado da Natureza. Se
com Ricardo, o proletariado foi elevado ao patamar de sujeito da riqueza no sentido
moderno, foi com Marx que o proletariado foi elevado à condição de sujeito de ação no
sentido antigo do termo. Essa elevação do proletariado à condição de homem de ação
não foi, contudo, obra apenas do gênio revolucionário de Marx. Essa elevação foi
resultado do desenvolvimento do próprio sistema capitalista.
As cidades modernas com suas vilas operárias e as grandes fábricas com seu
sistema articulado de máquinas criaram uma classe trabalhadora universal
desconhecida para o mundo antigo. Ao contrário da relativa autossuficiência do
artesanato grego, a indústria capitalista é naturalmente dependente da existência de
outras grandes indústrias ao seu redor. Ao contrário dos artesãos das cidades-estado
gregas que viviam separados pela divisão artesanal do trabalho e pelas diferenças
religiosas e nacionais, o proletariado moderno trabalha em torno de uma única e
mesma grande indústria mundial formando, desse modo, uma única e mesma classe
social.
Ao contrário do artesão e do escravo antigo, que eram vistos como meros
instrumentos de trabalho e sem personalidade política na cidade, a classe trabalhadora
moderna foi convertida em sujeito pelo capitalismo, possuindo, por isso, sua própria
imprensa, seus próprios intelectuais e seus próprios partidos políticos.
Por esses motivos, a classe trabalhadora pode agora atuar politicamente, como
atuavam os aristocratas fundiários antigos, como homens de ação, como homens livres
e portadores de um saber e de um discurso político orientados para uma arte superior
à arte da mera produção: à arte da revolução e da criação de um novo mundo.
Bibliografia citada
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GARLAN, Yvon. Les esclaves en Grèce ancienne. Paris : Éditions La découverte, 1984.
GLOTZ, Glotz. História econômica da Grécia. Lisboa : Edições Cosmos, 1949.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Tradução de E. Jacy Monteiro. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
NAQUET, P. V. & VERNANT, J-P. Trabalho e escravidão na Grécia Antiga. Campinas: Papirus, 1989.
PLATÃO. A República. Tradução J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2006.
QUESNAY, François. Análise do quadro econômico. Coleção Os economistas. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
RICARDO, David. Princípios de Economia Política e Tributação. Tradução de Paulo Henrique Sandroni. Coleção Os Economistas. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
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