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Análise do Conflito na Caxemira: da sua génese até à atualidade| Analysis

of the Kashmir Conflict: from its origins to the present

Carolina Aguiar dos Reis Mascarenhas

Finalista na licenciatura em Relações Internacionais no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas,

Universidade de Lisboa, Rua Almerindo Lessa, Pólo Universitário do Alto da Ajuda, 1300-663 Lisboa,

[email protected].

Resumo: O presente artigo analisa o conflito na Caxemira entre a Índia e o Paquistão do ponto desde da

sua origem com a repartição do Império Britânico, em 1947, até aos dias de hoje, influenciado por diversas

mudanças em termos conjunturais e estruturais não só nesta área da Ásia, mas por também por todo o

continente e ainda pelo Mundo, de forma a demonstrar que a realidade desta disputa, apesar das várias

oscilações de relações entre a Índia e o Paquistão, continua ainda bem assente e vincada nos conflitos do

mundo atual. Assim, este artigo pretende essencialmente “olhar para o passado para compreender as

modificações atuais”, nomeadamente aquelas que marcaram e ainda marcam o vale da Caxemira a partir

dos anos 2000.

Palavras-Chave: Conflito na Caxemira, Índia, Paquistão, Religião, Cultura, Influências,

Interesses.

Abstract: The following article analyses the conflict in Kashmir between India and Pakistan from the point

of its origin with the breakdown of the British Empire, in 1947, to the present day, influenced by several

changes in conjunctural and structural terms not only in this area of Asia, but by also across the continent

and also around the world, in order to demonstrate that the reality of this dispute, despite the various

oscillations in relations between India and Pakistan, is still well established and deep in the conflicts of the

current world. Thus, this article essentially intends to “look to the past to understand the current changes”,

namely those that have marked and still mark the Kashmir valley since the 2000s.

Keywords: Conflict in Kashmir, India, Pakistan, Religion, Culture, Influences, Interests.

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O domínio da região de Caxemira – Jammu & Kashmir –, por parte da Índia e do

Paquistão, vem se perpetuando há já muito tempo, mas, principalmente, desde a

descolonização por parte do antigo Império Britânico em 1947.

Internacionalmente, a Caxemira é reconhecida como parte integrante da administração

indiana. Porém, o governo do Paquistão posiciona-se contra este reconhecimento,

defendendo que o estatuto da região ainda é incerto e que somente o povo pode decidir o

posicionamento da mesma.

A realidade do conflito sobre esta região tem resultado, até aos dias de hoje, em várias

guerras e conflitos, em larga escala, que resultaram em diversas mortes, bem como a

propagação do ódio entre as diversas comunidades religiosas ramificadas através do

Islamismos e do Hinduísmo, e nos finais dos anos 90 para a frente com a introdução de uma

nova e preocupante variável no quadro da disputa, as armas nucleares, juntamente com as

também importantes as múltiplas linhas de falha em seu domínio interno adquiriram uma

primazia.

O conflito da Caxemira acabou por adquirir proporções para além das suas fronteiras,

escalando para os radares de grandes potências externas, nomeadamente os EUA, a China, a

Rússia, como não estatais como grupos fundamentalistas islâmicos, ou ainda

intergovernamentais e as Nações Unidas.

Figura 1. – Divisão da Caxemira – Diário de Notícias (2019).

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A História do Conflito pela Caxemira: origens

A Caxemira é um estado da Índia entre o Paquistão, Penjab, Afeganistão, Sinquião e

Tibete, inserido no contexto da Ásia do Sul, mais especificamente localizado na região

noroeste do subcontinente, fazendo fronteira com o Paquistão e com a China. Caracteriza-

se por ser a base de gigantescos dobramentos que formam a cadeia do Himalaia, o que torna

a Caxemira numa região de nascentes de rios caudalosos, inclusive o Rio Indo, e,

consequentemente, numa região muito rica em recursos naturais e glaciares. É devido a este

fator que a água tem sido um fator geopolítico de forte interesse entre a Índia e o Paquistão.

Historicamente, o vale da Caxemira foi sempre um lugar de migrações importantes para o

subcontinente indiano e de estabelecimento de diferentes grupos culturais. Politicamente, a

Caxemira era um estado principesco governado pelo marajá Hari Singh. Portanto, pela sua

formação geográfica e histórica, esta zona sempre foi um ponto de contacto entre interesses

divergentes.

O problema que envolve a Caxemira surgiu como uma consequência direta da partição

e da independência do subcontinente indiano, pelo Reino Unido, em 1947. Os Hindus

estavam concentrados no centro e no Sul da Índia, enquanto os indianos muçulmanos

concentravam-se sobretudo em Bengala e no Noroeste. Uma comissão britânica dividiu o

território entre a maioria do Paquistão muçulmano e a maioria da Índia hindu nos países que

se seguiram divididos. Nestas circunstâncias, cerca de 15 milhões de pessoas fugiram para as

novas fronteiras e 500 000 morreram em motins. Quatro regiões fronteiriças foram as piores,

nomeadamente, Sindh, Bengala, Punjab e Jammu Kashmir.

Como consequência da repartição, alguns reinos semiautónomos, como era o caso da

Caxemira, tiveram a liberdade de escolher de que lado ficar. Todavia, entre os estados

principescos da Índia, apenas Jammu e Caxemira tinha um marajá hindu, Hari Singh, à frente

de uma população maioritariamente muçulmana o que complexificou a escolha do marajá,

que estava indeciso entre optar pela Índia, pelo Paquistão ou até pela independência, pois em

termos geográficos o marajá poderia aderir a um dos dois novos domínios. Como se recusava

a dar a escolha à população, a Caxemira permaneceu dividida sobre o território, sendo que

dois terços dela, que inclui Jammu, o Vale da Caxemira e a área escassamente povoada por

budistas do Ladakh Oriental estão sob controle da Índia, e a terceira parte, que compreende

uma estreita faixa de terra, a “Caxemira Livre” e zonas setentrionais, incluindo Gilgit,

Baltistão e os antigos reinos de Hunza e Nagar, é administrada pelo Paquistão.

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Esta indecisão desenvolveu a tensão de Caxemira, pois é o único Estado indiano com

maioria islâmica. É neste contexto desenvolveu-se uma longa inimizade entre a Índia pós-

colonial e o recém-criado Paquistão muçulmano, focada, essencialmente, em eventos

históricos e religiosos e em filiações religiosas da região.

Estas reivindicações sobre o vale da Caxemira têm feito com que, desde 1947, a região

se tornasse palco de vários conflitos militares entre a Índia e o Paquistão, – 1947/48, 1965,

1971 e 1999. Além disso, a partir dos finais dos anos 90 observa-se um escalar da tensão,

bem como a preocupação da comunidade internacional principalmente no que toca à

segurança e à paz, aquando da introdução de armas nucleares por ambos os países na sua

política externa e de segurança A partir do século XXI, o conflito da Caxemira

complexificou-se devido às mudanças no panorama internacional com a influência de atores

não-estatais, nomeadamente de grupos fundamentalistas islâmicos e também pelo

empoderamento do indivíduo pelas novas tecnologias de informação e de comunicação,

trazendo este problema para a ribalta dos olhares públicos.

Conflitos: de 1947 a 1999

O conflito de 1947-1948 marca o início da primeira guerra entre a Índia e o Paquistão,

quando, em outubro, guerrilheiros tribais pashtuns 1da província da fronteira noroeste do

Paquistão invadiram a Caxemira com o apoio do governo paquistanês, com o intuito de

anexar ao país. Nestas circunstâncias, o marajá deixou Srinagar e apelou ao governo indiano

por assistência militar. Em troca, ele assinou o Instrumento de Adesão, cedendo a Caxemira

à Índia, a 26 de outubro de 1947. Esta decisão foi bastante contestada pelo Paquistão que

alegava que o marajá não tinha o direito de assinar um acordo com a Índia quando ainda

estava em vigor um acordo de paralisação com o Paquistão. No dia a seguir à assinatura, as

tropas indianas desembarcaram na Caxemira para combater as forças rebeldes, dando início

à primeira guerra indo-paquistanesa. Simultaneamente, durante a guerra, o então primeiro-

ministro da Índia, Jawaharlal Nehru, prometeu um referendo à população da Caxemira.

Pouco tempo depois, de forma a resolver o conflito, a Índia levou a disputa às Nações

Unidas. Uma resolução foi aprovada a 13 de agosto de 1948, pedindo às duas nações que

retirassem as suas forças. Quando tal acontecesse, seria realizado o tal referendo, permitindo

1 O povo Pashtun, conhecido como afegãos em persa e Pathans in Hindi-Urdu, é uma etnia indo-europeia do subgrupo de iranianos do Leste, com populações principalmente no Afeganistão e nas partes noroeste e ocidental do Paquistão.

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ao povo da Caxemira decidir sobre o seu futuro político. Todavia, as tropas nunca foram

retiradas e o refendo, até hoje, nunca aconteceu.

Após várias tentativas falhadas de resolver as tensões através de meios diplomáticos, a 1

de janeiro de 1949, foi acordado um cessar-fogo, estabelecendo-se, temporariamente, uma

linha de cessar-fogo, mas sem fronteira final, dividindo a Caxemira em duas.

Aproximadamente 65% do território, que inclui a maior parte de Jammu, Caxemira, Ladakh

e o glaciar de Siachen, ficaria sob controle indiano, enquanto os restantes 35%,

aproximadamente, que inclui a denominada “Caxemira Livre” (Azad Kashmir) e as regiões

setentrionais de Gilgit e Baltistão, com o Paquistão.

Mais tarde, em 1957, a Caxemira foi formalmente incorporada à União Indiana, mas

compreendida pelos termos do artigo 370º da constituição da Índia, que concede um estatuto

especial a Jammu e Caxemira, conferindo-lhe o poder de ter uma constituição separada, uma

bandeira de estado e autonomia sobre a administração interna do estado. Este artigo,

juntamente com o artigo N.º 35A, definiu que os residentes do estado de Jammu e Caxemira

viviam sob um conjunto separado de leis, que lhes conferia benefícios especiais relacionados

com a cidadania, possessão de propriedade e outros direitos fundamentais para proteger a

região.

Em 1962, a China atacou a Índia na região de Aksai Chin, na Caxemira, iniciando a guerra

Sino-Indiana. Esta guerra, também conhecida como conflito fronteiriço Sino-Indiano,

originou-se principalmente devido a uma fronteira disputada do Himalaia entre os dois países

que, por sua vez, já possuíam um passado violento entre as suas fronteiras devido à revolta

tibetana de 1959 quando a Índia concedeu asilo ao Dalai Lama. Neste sentido, sob a “Forward

Policy2”, a Índia colocou postos avançados ao longo da fronteira, inclusive ao norte da Linha

MacMahon3. Por não se conseguirem instalar ao longo da fronteira, as tropas chinesas

lançaram ofensivas simultâneas em Ladakh e na Linha McMahon sobre as forças indianas a

20 de outubro de 1962, ocupando assim Rezang La em Chushul a Ocidente e Tawang a

Oriente. A guerra terminou quando os chineses declararam um cessar-fogo a 20 de

novembro de 1962, retirando-se da área disputada. No seguimento deste conflito, a Índia

acabou por perder parte do seu território da Caxemira, que inclui uma parte de Ladakh

2 Conjunto de doutrinas de política externa aplicáveis a ambições e disputas territoriais, nas quais a ênfase é colocada em garantir o controle de territórios-alvo por invasão e anexação ou pela criação política de estados-tampão compatíveis. 3 Porção leste de uma Linha de Controle real proclamada pelo primeiro-ministro chinês Zhou Enlai em 1959, num mapa anexado à Convenção de Simla, tratado entre o Reino Unido e o Tibete celebrado em 1914.

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chamada Aksai Chin e Demchock, e uma parte adicional, transferida pelo Paquistão, que

mantinha relações amistosas com a China.

Três anos depois, em 1965, motivado pelo sucesso da China e pela crença de um exército

indiano desgastado, o Paquistão lança, a de 5 de agosto, a “Operação Gibraltar”, que

consistiu no envio de milhares de soldados, através da linha de cessar-fogo, vestidos como

habitantes da Caxemira, para incentivar a insurreição do Estado contra o domínio indiano.

As forças indianas, informadas pela população local, cruzaram a linha de cessar-fogo dez dias

mais tarde dando início ao segundo conflito entre a Índia e o Paquistão sobre o estatuto da

Caxemira.

A “Operação Gibraltar” falhou devido, parcialmente, ao insucesso do Exército do

Paquistão de conquistar Akhnoor, e aos avanços significativos das forças indianas, que

conseguiram atacar o sul do Paquistão e conquistar as cidades de Haji Pir Pass, Tithwal e

Kargil. Como resposta, o Paquistão lançou um contra-ataque, à qual apelidou de “Operação

Grand Slam”, com o objetivo de capturar a cidade de Akhnoor em Jammu, de forma a cortar

as comunicações e as rotas de suprimento das tropas indianas. Sucessivamente, ambos os

países foram respondendo aos ataques feitos um sobre o outro, levando novamente a que a

guerra ficasse num impasse. Após várias tentativas, por parte da Índia, de controlar pontos

estratégicos da Caxemira, como o Canal Icchogil e o Aeroporto Internacional de Lahore, os

EUA intervieram na disputa, solicitando um cessar-fogo temporário entre os dois países para

permitir a evacuação de seus cidadãos em Lahore. A guerra continuou até 22 de setembro

quando ambos os lados concordaram um cessar-fogo mandatado pela ONU.

Apesar da guerra ter deixado incerto o destino político do estado de Jammu e Caxemira,

ambos os lados aceitaram a intervenção da União Soviética como mediadora das negociações

que culminaram com a assinatura do acordo de Tashkent, em 1966, entre o primeiro-ministro

indiano Lal Bahadur Shastri e o presidente paquistanês Muhammad Ayub Khan, que

estabeleceu o recuo das reivindicações territoriais de ambas as nações e a retirada dos seus

exércitos do território, restaurando-se, assim, o status quo anterior.

Esta segunda guerra demonstrou uma mudança significativa das alianças e relações entre

as potências intervenientes, e com interesses, nesta área geográfica do globo, particularmente

num contexto em plena Guerra-Fria. Neste sentido, as relações entre o Paquistão e os EUA

deterioram-se significativamente principalmente após os EUA recusarem apoiar o Paquistão

nos termos do Acordo de Cooperação, mas também por emitirem uma declaração

enunciando sua neutralidade e, ao mesmo tempo, cortando suprimentos militares. Nestas

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circunstâncias, o ambiente de segurança no Paquistão tornou-se incerto e afastou-se

militarmente dos EUA, aproximando-se, simultaneamente, do Irão e da Indonésia, mas

especialmente da China, que demonstraram o seu apoio político ao Paquistão durante a

guerra.

Outra breve disputa eclodiu entre os dois países, em 1971, porém, por fatores

consideravelmente diferentes dos conflitos anteriores.

O crescimento de movimentos de independência no Paquistão Oriental, apoiados pela

Índia, gerou um ambiente de tensões e revoltas ao qual o Paquistão não conseguia controlar,

acabando por levar a uma enorme vaga de refugiados para Bengala Ocidental (estado indiano

adjacente). Pela sua incapacidade de deter estes movimentos de libertação e as atividades da

Índia no setor leste, a 3 de dezembro de 1971, o Paquistão lançou um ataque aéreo no setor

ocidental sobre vários aeródromos indianos. Como resposta, o exército indiano retaliou com

um ataque aéreo ao mesmo tempo que executava uma ofensiva para controlar Dhaka, capital

do Paquistão Oriental, bem como bloqueava, ao nível marítimo, o Paquistão Oriental. Face

a estas circunstâncias, os paquistaneses renderam-se e Dhaka caiu para as forças indianas e

Mukti Bahini 4 a 16 de dezembro, terminando rapidamente a guerra.

A vontade de ambos os países de pôr fim ao conflito e disputas que tanto marcavam as

suas relações bilaterais, levou à assinatura do Acordo Simla no ano seguinte, entre os

primeiros-ministros da Índia, Indira Gandhi, e do Paquistão, Zulfikar Ali Bhutto. Com este

acordo, ambos concordaram que nenhuma das partes pretenderia alterar a linha de cessar-

fogo na Caxemira, que passou a ser denominada a "Linha de Controle5" (LoC), de maneira

unilateral independentemente das diferenças mútuas e interpretações jurídicas. Do mesmo

modo, os dois lados concordaram mais uma vez em resolver a questão pacificamente. Porém,

as questões domésticas que dominavam os países acabaram por colocar a situação de

Caxemira em segundo plano.

Os anos 80 ficaram marcados por um escalar de reivindicações e de violência no estado

de Jammu e Caxemira por parte dos movimentos separatistas, sob o alegado comando do

Paquistão, na região da Caxemira devido às mudanças conjunturais que marcavam a Ásia

4 Também denominado de “Exército de Libertação”, refere-se às organizações armadas que lutaram contra o

Exército do Paquistão durante a Guerra do Bangladesh, ao lado das forças Indianas. 5 Esta linha atravessa uma região montanhosa de cinco quilómetros de altitude. A Norte as forças rivais entrincheiram-se na região de Siachen. O leste e sul, onde vivem os habitantes da Caxemira, só administrados pela Índia, enquanto o Norte e Oeste são geridos pelo Paquistão que denomina a província de “Caxemira Livre”.

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Meridional. Assim, observa-se de um lado uma radicalização cada vez mais acentuada do

Islão no Paquistão e no Afeganistão, com o crescimento de movimentos fundamentalistas

islâmicos, nomeadamente da Al Qaeda, e do outro o ressurgimento de um nacionalismo

hindu fanático na Índia. Este cenário de instabilidade no vale da Caxemira conduziu à

intervenção dos EUA, que pretendia prevenir e impedir o crescimento destes tais

movimentos fundamentalistas islâmicos na região. Como tal, os EUA começam a

desenvolver, de forma mais acentuada, relações de trabalho entre a Índia e o Paquistão, de

forma mediar e facilitar o processo diplomático para resolver a disputa da Caxemira. Porém,

tal não alterou a conjuntura na Caxemira quando, até então, manifestações não violentas pela

autodeterminação da Caxemira se transformaram em massacres, nomeadamente entre os

muçulmanos de Caxemira e uma pequena minoria hindu – Pandits. O status quo da Caxemira

foi amplamente mantido até 1989 quando os guerrilheiros pró-independência e pró-

Paquistão atacaram o Vale da Caxemira, estabelecendo um reino de terror e expulsando quase

todos os hindus.

Simultaneamente, no final dos anos 80 e durante a década de 90, o escalar das tensões e

o aumento da insegurança entre a Índia e o Paquistão fez-se sentir no panorama internacional

quando, tanto a Índia como o Paquistão testaram, com sucesso, dispositivos nucleares para

aperfeiçoar os sistemas das suas armas nucleares, nomeadamente de longo alcance. Neste

contexto, embora o Paquistão afirme que os seus mísseis são um esforço de salvaguardar a

sua segurança, em julho de 1999, os agentes aduaneiros indianos apreenderam componentes

alegadamente enviados da Coreia do Norte, alegando serem destinados ao programa de

mísseis do Paquistão. A hostilidade entre os dois países demonstrou-se atenuar quando o

primeiro-ministro indiano, Atal Behari Vajpayee, em 1999, inaugurou o serviço de ônibus

quatro vezes por semana Deli-Lahore-Deli, diminuindo assim a tensão ao longo da LoC.

Porém, apesar dos vários esforços, nomeadamente diplomáticos, as infrações da LoC

mantiveram-se em grande número.

No fim desse ano, o Paquistão levou a cabo uma estratégia para dominar a região

administrada pela Índia através de invasões de tropas e grupos terroristas paquistaneses no

território indiano, posicionando-se em altitudes mais altas que lhes dava uma vantagem

competitiva no combate. Com base em informações de locais, o exército indiano conseguiu

determinar os pontos de incursão e lançar a "Operação Vijay", dando início à “Guerra de

Kargil” de 1999. As hostilidades em Kargil pioraram quando a Índia, com medo que muitos

dos seus principais postos vazios fossem ocupados por infiltrados, que, segundo ela, eram

treinados e armados pelo Paquistão e baseados na Caxemira Livre com o conhecimento total

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do governo paquistanês e do afegão e de outros mercenários estrangeiros os acompanhavam,

começou a patrulhar as alturas de Kargil. O Paquistão insistiu que os envolvidos eram

combatentes da liberdade da Caxemira a quem apenas davam apoio moral. Esta disputa nas

alturas de Kargil, limitada à Caxemira, acabou por custar à Índia inúmeras e pesadas baixas.

Por estas razões e apesar de muita pressão dos militares e do público, o governo indiano

decidiu não atravessar a LoC. Simultaneamente, o Paquistão também sofreu internamente

críticas por limitar a sua guerra ao fogo de artilharia na LoC e derrubar aeronaves indianas.

A restrição demonstrada pela Índia em não escalar o conflito colocou uma tremenda pressão

internacional, liderada pelos EUA, sobre Paquistão, para se retirar das alturas de Kargil.

Todavia, apesar dos esforços por parte dos EUA para mediar o conflito, a Índia opôs-se à

sua interferência, afirmando que se tratava de uma questão bilateral.

O conflito terminou com a intervenção do presidente dos EUA, Bill Clinton, que se

encontrou com o primeiro-ministro do Paquistão, Nawaz Sharif, em Washington em 4 de

julho de 1999.

Anos 2000 até aos dias de hoje

Com o novo século, as tensões na Caxemira pareciam despertar um diferente interesse

no panorama internacional. Mas, também nestes anos, outros fatores acentuaram-se e

alteraram a conjuntura vivida na região, nomeadamente o fenómeno da globalização que, por

si só, alterou toda a estrutura das relações e do sistema internacional. As relações entre a

Índia e o Paquistão, no que diz respeito a Caxemira, tornaram-se mais complexas, pois no

mundo globalizado, novos atores não-governamentais, como as organizações não-

governamentais, grupos nacionais e de identidade têm muito mais influência nos níveis

nacional e global, através da construção de pontes para estabelecer de paz.

No início dos anos 2000, certas medidas de restabelecimento das relações entre os dois

países pareciam estar a ter resultado. No entanto, esses esforços foram impedidos por

ataques terroristas periódicos, nomeadamente o ataque ao Parlamento indiano em 2001 que

quase deixou as duas nações à beira de uma guerra nuclear, fazendo parar quaisquer

conversas sobre a paz por uns tempos. Como resposta, as tropas indianas foram mobilizadas

para as fronteiras de Punjab e Caxemira.

Apesar do grande contexto militar e de segurança, quer regional quer mundial, o novo

milênio começa de maneira promissora para a região da Caxemira onde um novo governo

estável no centro, sob o comando de Muffi Muhammed Sayeed, do Partido Democrático do

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Povo, um novo partido regional, vence as eleições, trazendo esperança para o

desenvolvimento e a normalidade. De facto, em 2004, foi acordado um cessar-fogo e o

primeiro-ministro Vajpayee até viaja a Islamabad. O governo seguinte de Manmohan Singh

procura continuar as discussões, ao mesmo tempo, que o comércio é aberto no LoC, gerando

um novo entusiamo no que toca ao desenvolvimento, à governança e às infraestruturas.

Neste seguimento, em 2005, o serviço de autocarros entre Srinaga e Muzzaffarabad começa

marcando esta jornada pela paz e a estabilidade entre os dois países.

Em 2007, parecia que finalmente a Índia e o Paquistão estavam perto de chegar a um

acordo, mas, esse momento perde-se quando, no fim desse ano, Pervez Musharraf renuncia

o cargo de chefe do exército e, em agosto de 2008, renuncia o cargo de presidente, fugindo

para a Inglaterra, levando a que, nestas circunstâncias, os militares mudem de ideias em

relação à região da Caxemira, pondo novamente em ação a “Operação Topac”. Ao mesmo

tempo, por não fazerem parte de nenhuma das reuniões bilaterais, as partes interessadas

dificultaram o processo de paz, assim como os ataques terroristas ocorridos no sul asiático,

nomeadamente o ataque de 2007 ao Samjhauta Express, que matou 68 civis, maioria de

cidadania paquistanesa e os ataques de Mumbai, em 2008, realizados por militantes

paquistaneses. Todos estes fatores contribuíram para uma maior distância nas negociações

da paz entre os dois países.

Face a esta conjuntura, as questões ao nível do local complicaram-se, nomeadamente

com decisões controversas, por parte do governo indiano, como a “Armed Forces (Special

Powers) Act” (AFSPA), que, apesar de serem uma estrutura institucional não democrática,

agem exageradamente de uma maneira politizada. Além disso, no início de 2008, os governos

estaduais e centrais alocaram terras no vale da Caxemira ao Conselho do Santuário Shri

Amarnathji para estabelecer abrigos para os peregrinos. Essas e outras decisões conduziram

a uma nova onda de manifestações civis marcadas pelos jovens que se expressam atacando

as forças policias com pedras, emergindo a uma nova e usual forma de protesto no vale. As

forças de segurança respondem às pedras com tiros. Porém, os jovens que morrem nas

mesmas são considerados mártires pela libertação da Caxemira. Simultaneamente, são nestas

circunstâncias, que várias bandeiras ligadas ao Estado Islâmico emergem, pois, neste

contexto político-religioso e num estado desarticulado, os grupos jihadistas haviam

convencido vários caxemirenses em integrar o movimento mundial de protesto muçulmano.

Em desespero, o governo de Jammu e Caxemira cai e vai a eleições, acabando por vencer

Omar Abdullah, que traz uma nova esperança ao revogar a AFSPA.

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Desde a eleição de novos governos na Índia e no Paquistão no início de 2010, foram

feitas algumas tentativas para melhorar as relações, em particular desenvolvendo um

consenso sobre o acordo do estatuto de Acesso Não-Discriminatório ao Mercado em Base

Recíproca (NDMARB). Em novembro de 2015, o primeiro-ministro indiano, Narendra

Modi e o primeiro-ministro paquistanês Nawaz Sharif, concordaram retomar as negociações

bilaterais. Uma visita do primeiro-ministro Modi ao Paquistão, não programada levou ao

acordo de um cessar-fogo. Mas, apesar desses esforços, as relações entre os países

permaneceram frígidas, após repetidos atos de terrorismo transfronteiriço, nomeadamente o

ataque de Pathankot, em 2016, a uma base militar indiana na zona da Caxemira administrada

pela Índia, que voltou a colocar a disputa pela Caxemira nos centros das atenções não só

entre os dois países, mas também para a comunidade internacional. A Índia alegou que o

ataque tinha sido orquestrado por um grupo jihadista apoiado pelo Paquistão, mas, o

Paquistão negou essa acusação, alegando que o ataque havia sido uma reação local à agitação

na mesma devido à força excessiva das forças indianas sobre os cidadãos. O ataque provocou

um confronto militar em toda a LoC, com uma escalada nas violações do cessar-fogo e

ataques esporádicos às forças de segurança indianas. Estas escaramuças, juntamente com os

contínuos ataques terroristas e o aumento da retórica nacionalista de ambos os lados levaram

a um colapso das relações bilaterais entre as duas nações.

Mais tarde, em 2019, após o ataque de Pulwama, o governo indiano revogou o estatuto

comercial do país mais favorecido do Paquistão, que lhe havia concedido em 1996, e

aumentou o imposto alfandegário para 200%, afetando o comércio paquistanês. A 5 de

agosto de 2019, uma mudança radical foi feita no estado de Jammu e Caxemira quando o

Parlamento indiano aprovou o Projeto de Reorganização de Jammu e Caxemira, numa

tentativa de integrar a região de maioria muçulmana com o resto de país, revogou o artigo

370º. Simultaneamente, a dissolução da entidade jurídica do estado significa igualmente a

dissolução do artigo 35ºA, que concedia aos residentes direitos e privilégios que lhes

permitiam ser administradores do seu próprio território.

O Paquistão condenou veementemente a decisão indiana, alegando que esta viola a

resolução das Nações Unidas, classificando-a de "ilegal" e jurando "exercer todas as opções

possíveis" contra ele (Shah Mahmood Qureshi, ministro dos Negócios Estrangeiros do

Paquistão). Neste sentido, o país prometeu empreender esforços diplomáticos para impedir

que a revogação, através da ordem presidencial, possa ser aplicada. Além disso, cortou

relações diplomáticas, fechou o espaço aéreo e suspendeu o comércio bilateral com a Índia.

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Também o líder da Caxemira administrada pelo Paquistão, Sardar Masood Khan, rejeitou a

decisão indiana, alegando que a Índia "pode ir para a guerra" com o Paquistão nesta situação.

Na prática, esta situação modificou completamente o ambiente vivido em Caxemira. As

ligações à Internet foram cortadas e os telefones foram desligados na região nos dias

anteriores ao anúncio da ordem presidencial. As reuniões públicas foram proibidas, dezenas

de milhares de tropas foram enviadas para a região e os turistas foram instruídos a deixar a

Caxemira sob avisos de uma ameaça terrorista. Ao mesmo tempo, inúmeros protestos e

manifestações, cada vez mais violentos, entre a população e as forças armadas, têm vindo a

generalizar-se pela província. Nestas circunstâncias, o Paquistão apelou ao debate

internacional junto das Nações Unidas, nomeadamente no Conselho de Segurança.

Por sua vez, de acordo com a Constituição Indiana, o artigo só pode ser revogado por

ordem presidencial, que terá que ser apresentada à Assembleia Constituinte. Contudo, este

organismo foi dissolvido em 1957, e não se tendo estabelecido um procedimento oficial a

seguir, várias foram as visões debatidas sobre qual deve ser o procedimento. Nestas

circunstâncias, por um lado temos aqueles que defendem que basta a ordem presidencial,

enquanto outros acreditam que precisa da luz verde dos deputados. O Governo indiano

afirma que a ordem presidencial entrará em vigor assim que for aprovada pela câmara baixa

do Parlamento indiano, onde o partido nacionalista hindu Bharatiya Janata (BJP) detém a

maioria.

Esta mudança de Modi na Caxemira vem no seguimento da promessa feita ao longo da

sua campanha e do seu partido – BJP -, onde defendeu inúmeras vezes o fim do estatuto

especial de Caxemira, alegando que impede a sua integração com o resto da Índia, indo contra

a visão ideológica do partido de criar uma nação hindu homogênea. Portanto, para alcançar

esta sua visão, Modi fez da Caxemira um aviso e um modelo para qualquer estado vá contra

a tal procura "unidade".

Desde 1947 até aos dias de hoje o objetivo principal da Índia em relação ao Estado

de Jammu e Caxemira manteve-se praticamente inalterado – a unificação indiana. Todavia,

ao longo dos anos, observa-se uma mudança gradual da posição indiana no que toca ao

assunto, isto é, enquanto em 1948 a Índia levou a questão da Caxemira à ONU e era a favor

de um referendo, na década de 1990 opôs-se a qualquer tentativa de mediação da ONU ou

de terceiros. Hoje, mantém ainda essa atividade protecionista no que toca à questão da

Caxemira argumentando que se trata de um assunto regional e bilateral. Simultaneamente, as

ações e as decisões do governo indiano têm sido para além de cada vez mais controversas,

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também cada vez mais restritas e violentas. Para além disto, a decisão da Índia de conceder

novos direitos a pessoas de fora, incluindo a propriedade e a instalação na Caxemira

administrada pela Índia, pode possivelmente promover mudanças demográficas

fundamentais para a área da maioria de muçulmana, no futuro.

O Paquistão, durante décadas, reivindicou a Caxemira como sua por razões religiosas

e culturais, visto que a maioria dos caxemirenses é muçulmana, e, como tal, o estado de

Jammu e Caxemira deve estar integrado na República Islâmica do Paquistão, e não à nação

indiana, por aproximações culturais.

Face aos novos eventos, a posição do Paquistão nada difere da que tem apresentado ao

longo dos anos, ou seja, o governo quer que a decisão da Índia seja revertida, pois, segundo

o primeiro-ministro Imran Khan, revogar a Caxemira controlada pela Índia é uma autonomia

ilegal sob o direito internacional. Em resposta, o Paquistão tem pressionado a Índia, cortando

laços diplomáticos e comerciais.

Em suma, não só na Caxemira, mas por várias zonas do subcontinente indiano, é

ainda visível as consequências deixadas pelo mandato britânico, nomeadamente as diferentes

fações e partidos políticos religiosos estabelecidos que induziram uma cultura discriminatória

e segregacionista que o Estado indiano continuou após alcançar sua independência. Este

aspeto, juntamente com a pobreza concentrada entre os muçulmanos, deu origem ao

estabelecimento e à disseminação de grupos fundamentalistas muçulmanos e hindus que

procuram purificar a região de mitos ilegítimos. Por isso, ainda hoje, a Caxemira é

considerada uma das áreas mais militarizadas do mundo, contribuindo para a instabilidade

no sul da Ásia, que está longe de ser resolvida, apesar dos muitos esforços nacionais, bilaterais

e globais.

Outros intervenientes

Apesar do conflito da Caxemira ser essencialmente uma questão disputada e discutida

entre Nova Deli e Islamabad, ao longo dos anos e face a novas circunstâncias, outros atores

começaram a intervir, ou de forma passiva ou de forma mais ativa, na região, quer por

interesses na área, quer por alianças ou relações com um dos países principais. Neste aspeto,

podemos destacar a China, a Rússia (antiga União Soviética) e os EUA.

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A posição da China sobre a questão da Caxemira pode-se dizer que evolui em quadro

fases distintas, todavia, foi pouco, senão quase nada, imparcial, pois, historicamente, as

decisões chinesas mostraram uma inclinação para o Paquistão.

A disputa sobre as fronteiras entre a Índia e a China envolve essencialmente três partes:

um setor ocidental, um setor intermediário e um setor oriental. O setor ocidental, que

pertence à linha Johnson proposta pelos britânicos em 1865, mostra Aksai Chin como parte

do estado indiano. A China não levantou objeções a essa demarcação até a década de 1950,

quando começou a mudar de posição e enfatizou que a Linha McDonald desenhada em 1893,

que colocava Aksai Chin no território chinês, estava correta. Também Ladakh, ou grande

parte dele, foi mostrado em mapas oficiais da China como parte da China. Essas agressões

cartográficas e incursões fronteiriças dominaram o discurso entre a Índia e a China,

dificultando a resolução dos seus problemas fronteiriços. Mais tarde, como resposta ao

redesenho feito pela Índia do mapa de Jammu e Caxemira, que declarou Ladakh como

território da união, a China ficou do lado do Paquistão e levantou a questão de Aksai Chin

no CSNU, afirmando o seu direito soberano sobre a região, e emitiu um aviso sobre a Índia,

indicando a interrupção da estabilidade ao longo da fronteira Índia-China. Como resposta,

a Índia alegou que o redesenho do mapa de Jammu e Caxemira era assunto interno do país

e não mudaria o status quo ao longo da Linha de Controle Real (ALC) e das fronteiras

internacionais. No entanto, após a reestruturação da região, pode-se esperar que a China

continue com sua agressão cartográfica e fortaleça a sua postura militar dentro do território

indiano em Ladakh e outras áreas.

Apesar de no princípio dos anos 50, a China ter mantido uma posição neutra em

relação ao conflito da Caxemira, afirmando que se tratava de uma “questão pendente entre

as duas nações” (primeiro-ministro Zhou Enlai durante a visita à Índia em dezembro de

1956), que esperava ver resolvida “satisfatoriamente”, esta sua posição facilmente se inverteu

no fim da década. Em 1957, a China anunciou a conclusão de uma estrada através do platô

de Aksai Chin reivindicada pela Índia como seu território e pela China como parte do Tibete

Ocidental. Nova Deli reagiu enviando patrulhas de reconhecimento militar e um memorando

para Pequim, afirmando seus direitos soberanos sobre a região. A China rejeitou a alegação

da Índia. O atrito entre as duas nações foi exacerbado na década de 1960. A China começou

a pressionar a Índia na fronteira de Ladakh, mobilizando pessoal do Exército de Libertação

Popular (PLA) 6 para a área, conduzindo a confrontos com as forças de segurança indianas.

6 Comando militar dedicado à realização de operações armadas contra a Índia.

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Ao mesmo tempo, a China começou implicitamente a advogar a guerra em nome do direito

à autodeterminação da Caxemira, deixando de chamá-la de “guerra de libertação nacional” e

repetindo a posição do Paquistão de que cabia ao povo da Caxemira decidir de qual nação

fazer parte.

Nas décadas de 1960 e 1970, a China mudou sua posição em direção ao apoio público

às opiniões do Paquistão sobre o assunto, primeiramente devido à mudança de circunstâncias

da China na região, pois a guerra de 1962 com a China levou ao controle de uma massa

considerável de terra em Leh e Ladakh em Jammu e Caxemira, tornando, a partir deste

momento, a China como parte interessada na questão da Caxemira. Em segundo, nestas

décadas, a aliança da China com o Paquistão aprofundou-se com base no interesse mútuo de

enfraquecer a posição da Índia na região. Esta aliança desenrolou uma séria de atos e acordos

feitos entre os dois países, nomeadamente o tratado fronteiriço China-Paquistão de 1963,

que transferiu o Vale Shaksgam, a noroeste da geleira Siachen, para a China, permitindo-lhe

entrar no PoK e estabelecer acesso direto ao Afeganistão e chegar perto do oeste da Índia e

fronteiras do Norte. Um ano depois, em 1964, em apoio ao Paquistão, Pequim pediu um

plebiscito supervisionado pela ONU na Caxemira, e em 1965, durante a guerra indo-

paquistanesa, a China deu apoio moral, diplomático, militar material e inteligente ao

Paquistão.

Os laços sino-paquistaneses continuaram a fortalecer-se na década de 1970 durante

a guerra Índia-Paquistão de 1971, em que o papel da China foi uma mistura de apoio

moderado entre repreensões suaves e pragmatismo rígido, enfatizado o Acordo Simla de

1972 e endossado a intervenção da ONU na questão da Caxemira.

Porém, desde o início dos anos 80, sob a liderança de Deng Xiaoping, a China voltou

à sua antiga posição de que era uma questão entre a Índia e o Paquistão, enquanto procurava

equilibrar a necessidade de satisfazer as demandas de apoio do Paquistão e o crescente

interesse em desenvolver um melhor relacionamento com os países Índia. Porém, manteve

tacitamente uma inclinação pró-Paquistão.

No início dos anos 90, a posição da China tornou-se inequívoca de que a questão da

Caxemira é uma questão bilateral a ser resolvida pela Índia e pelo Paquistão por meios

pacíficos. Além disso, devido ao terrorismo transfronteiriço no seu auge dentro da Caxemira,

Pequim, em resposta ao terrorismo patrocinado pelo Paquistão na região, começou a ceder

ao lobby diplomático da Índia, porém, nunca se referiu oficialmente a uma intervenção da

ONU, mas sim defendeu as negociações bilaterais entre Índia-Paquistão como a única

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maneira de abordar a questão. Mais tarde, em maio de 1998, após os testes de Pokhran na

Índia, Pequim mais uma vez exigiu que a questão da Caxemira fosse encaminhada à ONU.

Enquanto a Índia justificava os testes em nível internacional referindo-se à ameaça da China,

Pequim denominou as ações da Índia como "hegemônicas" e culpou a Índia por incitar a

tensão militar no sul da Ásia. A China também ampliou sua assistência secreta ao programa

de mísseis do Paquistão e à modernização militar. A China demonstrou um papel neutro

durante a guerra indo-paquistanesa, em 1999, com a guerra de Kargil, mesmo após o pedido

direto de ajuda pelo Paquistão.

Nos anos 2000, permanecendo na sua posição relativamente neutral, a China foi

convidada para a Conferência Hurriyat, com o objetivo de ajudar a resolver a questão da

Caxemira, apelando à união entre a Índia e o Paquistão, porém, a resposta foi pouco positiva.

No entanto, Pequim não se afastou completamente dos separatistas.

Questionando a posição da Índia sobre a Caxemira, recusou-se a conceder um visto

ao general Baljit Singh Jaswal, chefe do Comando Norte do Exército Indiano em Jammu e

Caxemira, assumindo simultaneamente a área como um "território disputado". Face a esta

isto, a Índia apresentou um protesto a Pequim, afirmando: "Ao negar o visto ao general

Jaswal, a China questionou o estatuto do estado de Jammu e Caxemira, no que se refere à

soberania do país". Simultaneamente, o PLA procurou estabelecer uma posição no PoK,

enviando aproximadamente 11 000 tropas militares, assim como desenvolvendo unidades de

construção, comunicação e de engenharia, para controlar a região militar e diplomaticamente,

sugerindo a transferência do controlo do território por parte do Paquistão à China.

Rejeitando os relatos dos media sobre a presença militar, Pequim descreveu a região como o

"Norte do Paquistão" e Jammu e Caxemira como a "Caxemira controlada pela Índia". Ao

fazê-lo, a China não questionou apenas a posição da Índia sobre o PoK, mas também

legitimou a reivindicação do Paquistão no território.

A aparente oscilação de Pequim na questão da Caxemira, pelo menos em termos da

política externa declarada publicamente, ajudou a China a obter ganhos de curto e médio

prazo, colocando-a numa posição vantajosa em relação à Índia a longo prazo. Isso ficou claro

com o anúncio da China de seu projeto “One Belt One Road” (atual “Belt and Rode Iniciative”

(BRI)), em 2013, em que estabelecia um Corredor Econômico da China ao Paquistão

(CPEC), passando pelo PoK, o que levantou sérias e legítimas preocupações à Índia, pois, o

estabelecimento deste corredor levou a um fortalecimento de laços militares entre Pequim e

Islamabad, com o objetivo de combater a proeminência da Índia na região do sul da Ásia,

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levando a que a China fornecesse, clandestinamente, ao Paquistão tecnologias nucleares e de

mísseis.

Além da pressão internacional, a reversão da posição da China também pode ser

explicada por dois outros fatores: o incansável trabalho político e diplomático realizado pelo

governo de Modi e os ataques cirúrgicos de 2016 e os ataques aéreos de Balakot, que

demonstraram a assertividade militar da Índia. no território ocupado e a constatação de que

a amizade da China com o Paquistão pudendo custar ao CPEC.

Atualmente, após a decisão da Índia de revogar o estatuto constitucional especial do

estado de Jammu e Caxemira em agosto de 2019 e declarar Ladakh como território da União,

a China voltou a manifestar-se sobre a questão, envolvendo a Índia e o Paquistão, emitindo

declarações pró-Paquistão, ao longo de várias semanas, regressando ao esforço de

internacionalizar a questão de Caxemira, bem como movendo forças ao longo da Fronteira

de Ladakh de forma a manter a pressão sobre a Índia. Simultaneamente, a 16 de agosto de

2019, a pedido do Paquistão, a China, enquanto membro permanente, convidou o Conselho

de Segurança das Nações Unidas (CSNU) a realizar uma reunião informal a portas fechadas

sobre o assunto. Devido aos esforços diplomáticos da Índia, todos os 15 membros do CSNU

receberam instruções de Nova Deli, e essa reunião do CSNU permaneceu em grande parte

simbólica entre as relações sino-paquistanesas. Mais recentemente, em janeiro de 2020, a

China procurou novamente internacionalizar a questão da Caxemira no CSNU a pedido do

Paquistão, porém, vê-se isolada após os 14 membros rejeitaram o pedido da China para

discutir a situação de Caxemira, afirmando tratar-se de uma questão “bilateral” entre a Índia

e o Paquistão, que, segundo o enviado russo Dmitry Polyanskiy deve ser resolvida “através

de esforços bilaterais baseados no Acordo Simla de 1972 e na Declaração de Lahore de

1999.” A decisão de empurrar esta questão da Caxemira no CSNU pelo Paquistão, através

da China, acontece dias depois de a Índia ter permitido a visita de 15 enviados estrangeiros

para o estado.

De fato, a China utilizou a sua aliança com o Paquistão e o conflito da Caxemira para

restringir o surgimento da Índia como um concorrente potencial ao seu próprio aumento na

dinâmica global do poder. Enquanto esses esforços começaram em 1959 com a China e o

Paquistão construindo a Rodovia Karakoram (KKH) passando por PoK, seguida pela

assinatura do acordo de fronteira de 1963, a reação parece estar culminando no CPEC.

Em suma, a posição da China sobre a questão da Caxemira prende-se essencialmente

com a aliança política, militar e diplomática que desenvolveu ao longo dos anos com o

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Paquistão contra a Índia e com as suas próprias prioridades e agendas geopolíticas na região,

nomeadamente com a sua presença no PoK.

Historicamente, a URSS, e hoje em dia a Rússia, apoiou a Índia no que toca à questão da

Caxemira. Esta longa parceria militar e diplomática aprofundou-se sobretudo nos anos 50

quando os líderes soviéticos, Krutchev e Bulganin viajaram até Srinagar em 1955, onde

Krutchev reafirmou a aliança político-diplomática entre os dois países, dizendo que “se

houver algum problema na Caxemira, Deli deve apenas gritar”. Moscovo manteve a sua

palavra e exerceu o seu poder de veto no CSNU ao bloquear medidas anglo-americanas a

favor do Paquistão na Caxemira na década de 1950.

Durante o período de Guerra Fria, os vários vetos da União Soviética face a resoluções

adotadas pelo Paquistão sobre Caxemira, ajudaram a travar muitas das resoluções que o

Paquistão tentava adotar, bem como a “empurrar” o Ocidente sobre este assunto,

nomeadamente, o de 1961 contra uma resolução que pedia um cessar-fogo quando a Índia

atacou Goa, que era portuguesa, e o de 1962, que marca o centésimo veto russo no CSNU,

que apoiava a posição da Índia na Caxemira, causando um forte golpe no objetivo do

Ocidente de retirar o território em disputa do controle da Índia e entregá-lo ao Paquistão.

Estas posições russas enfureceram o bloco ocidental, que se posicionava veementemente

contra a Índia, que retravam a Rússia como um obstáculo ao funcionamento do CSNU.

Face à guerra Indo-paquistanesa, em 1971, sobre a questão da libertação de Bangladesh,

foi visível a formação das alianças entre cada um dos países. Na ausência de uma solução

política para a crise no Paquistão Oriental e para responder ao alinhamento trilateral China-

EUA-Paquistão, a Índia assinou o Tratado de Paz, Amizade e Cooperação de vinte anos com

a URSS, em agosto de 1971, que auxiliou a Índia em termos de inteligência nuclear e de

programas espaciais. Além disso, uma das cláusulas do tratado implicava que cada país

deveria ajudar o outro em caso de ameaça à segurança nacional.

De facto, até aos dias de hoje, a Rússia manteve a sua posição face à questão da Caxemira

e apoiando as decisões indianas. Primeiramente o governo russo defende que “a decisão da

Índia (em Jammu e Caxemira) é uma decisão soberana conforme sua Constituição”7, além

disso, a Rússia continua a defender que a resolução desta disputa é entre a Índia e o Paquistão,

por meio do diálogo e com base no acordo de Simla e na declaração de Lahore.

Simultaneamente, Babushkin afirma que a Rússia não tem papel a desempenhar nas disputas

7 Enviado russo Nikolay Kudashev durante uma entrevista em 2019.

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entre Índia e Paquistão, a menos que ambos os países procurem a sua mediação na resolução

da Caxemira.

Os EUA tinham um histórico de relações ambivalentes com a Índia. Durante a década

de 1950, as autoridades americanas encararam a liderança indiana com alguma cautela devido

ao envolvimento da Índia no movimento não alinhado, particularmente seu papel de

destaque na Conferência de Bandung de 1955. Como tal, os EUA esperavam manter um

equilíbrio regional de poder, o que significava não permitir que a Índia influenciasse o

desenvolvimento político de outros estados. No entanto, o conflito fronteiriço de 1962 entre

a Índia e a China, que terminou com a vitória chinesa, motivou os EUA e o Reino Unido a

fornecer suprimentos militares ao exército indiano, mas também a sua mediação que, apesar

de ter tido uma curta duração, ainda desenvolveu seis rondas de negociações entre 1961 e

1962. Após o confronto com a China, a Índia também pediu ajuda à União Soviética, o que

colocou algumas tensões nas relações entre EUA e Índia.

Todavia, as relações EUA-Paquistão foram mais consistentes e positivas, pois o governo

norte-americano encarou o Paquistão como um exemplo de um estado muçulmano

moderado e agradeceu a assistência paquistanesa em manter a linha contra a expansão

comunista ao ingressar na Organização do Tratado do Sudeste Asiático (SEATO) em 1954

e no Pacto de Bagdade (mais tarde renomeado como Organização Central do Tratado ou

CENTO) em 1955. O interesse do Paquistão nesses pactos surgiu do desejo de desenvolver

as suas capacidades militares e defensivas, que eram substancialmente mais fracas que as da

Índia, procurando o auxílio de países terceiros nesse aspeto, como foram o caso dos EUA e

do Reino Unido que acabaram por fornecer armas ao Paquistão. Porém, quando o Paquistão

invadiu a Índia em 1947, o CSNU, a pedido da Índia, interveio e aprovou a Resolução 211,

pedindo o fim dos combates e negociações sobre a solução do problema da Caxemira, e os

Estados Unidos e o Reino Unido apoiaram a decisão da ONU cortando o fornecimento de

armas aos dois beligerantes. Essa proibição afetou ambos os beligerantes, mas o Paquistão

sentiu os efeitos mais intensamente, pois possuía um exército muito mais fraco em

comparação à Índia. A resolução da ONU e a suspensão da venda de armas tiveram um

impacto imediato.

A preocupação dos EUA com a estabilidade no sul da Ásia aumentou consideravelmente

como resultado do aumento das armas nucleares e balísticas quer da Índia quer do Paquistão,

especialmente desde os testes nucleares de maio de 1998. De facto, a guerra de Kargil, em

1999, reforçou os olhares internacionais para a questão da Caxemira, nomeadamente o dos

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EUA, que, através do presidente da altura, Bill Clinton, acabaram por se envolver

diplomaticamente e travando uma guerra de grande escala e com possível uso de armas

nucleares.

Após os ataques do 11 de setembro, os EUA, na sua “Guerra contra o Terror”,

procuraram estabilizar as situações de terrorismo e de instabilidade no Médio Oriente e na

Ásia. Depois de 2001, alguns analistas argumentaram que o sucesso dos EUA no Afeganistão

estava vinculado à resolução da Caxemira – uma perspetiva defendida pelo governo

paquistanês. Neste sentido, um objetivo de longa data da política dos EUA no sul da Ásia

tem sido impedir que o conflito Índia-Paquistão se torne numa guerra interestadual. Isso

significava que os EUA tentaram evitar ações que favorecessem abertamente qualquer das

partes. Na última década, no entanto, Washington aproximou-se de Nova Deli, enquanto as

relações com o Paquistão continuaram a ser vistas com desconfiança.

Mais recentemente, a administração Trump, em 2018, "suspendeu" a assistência de

segurança e reduziu significativamente a ajuda não militar ao Paquistão, ao mesmo tempo

que aprofundava os laços com a Índia por considerar um pivot essencial e estratégico na sua

estratégia no Indo-Pacífico e como travão para a ascensão do poder e da influência chinesa

na área. No entanto, qualquer impulso dos EUA de "inclinar-se" para a Índia é, em certa

medida, compensado pelo atual papel de Islamabad e, na maioria das contas, vital para

facilitar as negociações de reconciliação no Afeganistão. A aparente aproximação do

presidente Trump com o primeiro-ministro do Paquistão e a oferta de mediação na Caxemira

em julho, foi vista por alguns como uma nova e potencialmente imprudente mudança

estratégica. A mesma atitude verificou-se agora recentemente em janeiro de 2020, à margem

do Fórum Econômico Mundial, realizado em Davos, aquando da reunião bilateral entre

Trump e Khan onde discutiram várias questões relacionadas à segurança regional,

nomeadamente Jammu e Caxemira. Porém, a Índia mais uma vez rejeitou a oferta e declarou

que a Caxemira é uma questão bilateral entre a Índia e o Paquistão.

De facto, estas alianças acabam por interferir indiretamente nos processos de resolução

da questão da Caxemira, pois, enquanto por um lado existe um grande esforço por parte da

China para discutir o a região, em coordenação com o Paquistão para destacar a questão

internacionalmente e evitar-se assim, a insegurança em escala. Por outro lado, temos a Rússia,

aliada da Índia, que defende que, por se tratar de uma questão de natureza “bilateral”, a ONU

deve-se abster. Porém, neste aspeto, a China utiliza várias vezes o argumento histórico do

papel de mediação das Nações Unidas e das várias resoluções anteriores do CSNU que

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incluíam os tratados indo-paquistaneses. Assim, estas posições divergentes fazem com que a

situação atual da Caxemira permaneça suspensa em termos de discussão na comunidade

internacional.

Violações de Direitos Humanos

Desde do início do conflito que vários abusos e violações dos direitos humanos são

praticados em ambos os lados do LoC da Caxemira, preocupando desde sempre governos e

organizações internacionais. Das várias violações as que mais se destacam são o abuso da

força sobre a população através de armas que apesar de não serem propriamente letais

provocam danos físicos e psicológicos às pessoas, nomeadamente as famosas armas “pellet”

usadas para "controlo de multidões" responsáveis por cegar, matar e traumatizar os cidadãos

da Caxemira, além de outras armas como as espingardas de ação de bomba que disparam

balas de metal.

Assim, organizações como a Amnistia Internacional têm realizado relatório em que

reportam as diversas violações, para além de usuais campanhas física ou online para reportar

a escalada de tais violações, bem como levar à mudança na região, como foi o caso da situação

constante do corte de eletricidade e internet em Jammu & Kashmir como forma de conter a

informação que transponha. Assim, neste seguimento, desenvolveu-se campanhas como

“Let Kashmir Speak”, para levantar o “blackout” feito às comunicações da Kashmir desde 5

de agosto, em que quase 8 milhões de pessoas na Caxemira vivem nesta situação.

Nestes últimos anos, a Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos,

publicou um primeiro relatório em junho de 2018, sem precedentes, sobre a situação dos

direitos humanos na Caxemira. Nesse relatório, a Comissão criticou ferozmente o governo

de indiano pelo uso excessivo de força sobre os civis, pelas violações de liberdade de

expressão e de organização, por outras violações de direitos humanos, como o uso de tortura,

e ainda por agir sob leis amplas e vagamente redigidas, segundo o relatório, que facilitam e

legitimam os abusos.

Um segundo relatório da ACNUDH sobre a situação na Caxemira foi publicado em

2019 descreve como as tensões sobre a Caxemira continuam a afetar severamente os direitos

humanos de civis, incluindo o direito à vida. O relatório destaca que, na Caxemira

administrada pela Índia, a responsabilização por violações cometidas por membros das

forças de segurança indianas continua essencialmente inexistente e que apesar do alto

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número de civis mortos, “não há informações sobre quaisquer novas investigações sobre uso

excessivo de forças que levaram às mortes”. Além disso, relatam vários casos de detenções

arbitrárias e de “operações de isolamento e busca” e de regime legais especiais aplicados à

Caxemira governada pela Índia, que violam vários de direitos humanos, bem como o uso de

leis antiterrorismo usadas de forma imprópria para mirar a oposição política, ativistas e ainda

jornalistas, além destes sofrerem constantemente ameaças e assédio. O relatório também

denuncia vários desaparecimentos forçados de pessoas da Caxemira governada pelo

Paquistão, e cujos destinos e paradeiros continuam desconhecidos. Também revela que os

procedimentos jurídicos têm sido negligenciados no sentido em que “nenhum membro das

forças de segurança denunciado por tortura ou outras formas de tratamentos degradantes e

desumanos foi acusado em tribunal civil”. Além disso, denunciam o uso de armas letais sobre

civis ferindo-os gravemente, nomeadamente cegando-os. Simultaneamente, enfatiza que

"nem os governos da Índia nem do Paquistão adotaram medidas claras para abordar e

implementar as recomendações" feitas no relatório anterior, publicado em junho de 2018.

Como tal, o relatório reafirma as mesmas recomendações, e outras adicionais, e pede também

ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas que “considere (…) um possível

estabelecimento de uma comissão de inquérito para conduzir investigações internacionais

independentes e abrangentes sobre as alegadas violações de direitos humanos na Caxemira”.

No que toca a estes e outros relatórios, ambos os países têm tido uma atitude muito

passivo-agressiva. A Índia, no geral, nega as alegações nos relatórios e argumenta que, para

além deste assunto não ter lugar ao nível multilateral, por se tratar de uma questão regional

bilateral, as violações são maioritariamente realizadas por grupos apoiados pelo Paquistão, e

que qualquer tipo de força por parte das suas forças policiais é para garantir a soberania do

país e a estabilidade na região, protegendo os civis contra as diversas manifestações e

protestos. O Paquistão, por outro lado, aceita os relatórios, porém não demonstra mudanças

no seu comportamento, o que acaba por aprofundar a violência e instabilidade no vale.

Mais recentemente, a revogação do estatuto especial da Caxemira, por parte do

governo indiano, e todo o processo envolvente, sofreram severas críticas, nomeadamente

oponentes do governo, indianos e internacionais, consideram esta ação não democrática e

um ataque direto à identidade secular do país, defendendo que o BJP procura promover

ideais profundamente enraizados do hindu, deixando de fora as minorias Sikhs, budistas e

muçulmanas, e concluindo com o seu objetivo primordial de “reinventar a Índia como uma

Índia hindu”. Esta ação, juntamente com o projeto de lei de Emenda à Cidadania aprovado

pelo parlamento indiano que oferece amnistia a imigrantes ilegais não-muçulmanos,

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fornecendo a cidadania a minorias religiosas do Paquistão, Bangladesh e Afeganistão, gerou

inúmeros protestos pela Índia, nomeadamente no Nordeste pelo possível aumento de

imigrantes do Bangladesh, mas também pelo fator de marginalização e exclusão dos

muçulmanos, onde grande parte reside na região da Caxemira.

Considerações Finais

A realidade é que a tensão na região da Caxemira ainda de nada foi resolvida, nem

através dos conflitos bélicos, nem da persuasão nuclear nem através dos canais diplomáticos

e intermediários, quer entre os dois Estados, quer das Nações Unidas. Deste modo, a

comunidade internacional nas suas várias tentativas falhou em tentar remediar este conflito.

O problema e as tensões em Caxemira não são apenas uma consequência da

independência, mas também de outros fatores internos e externos, nomeadamente a

complexidade da área, física e socialmente, ao ser composta de várias regiões geográficas

distintas e com uma população dividida numa grande multiplicidade de religiões, etnias e

grupos linguísticos, e de castas. Isto significa que existem muçulmanos, hindus, sikhs e

budistas na população, mas que os dois principais elementos – muçulmanos e hindus – se

subdividem ainda mais entre si. Juntamente com essa diversidade social, várias alianças

políticas se estabelecem não se baseando apenas numa característica, mas em várias

características. Na Caxemira controlada pela Índia, existem três orientações políticas distintas

nesse sentido fundamental. Independência é a preferência de uma maioria decisiva no vale e

de uma minoria considerável na região de Jammu. A Índia é a preferida da maioria em Jammu

e em Ladakh e de uma pequena minoria no Vale. Uma minoria relativamente pequena no

Vale e outra ainda menor em Jammu é pró-Paquistão.

O prolongamento e escalar de instabilidade levou a que o problema da região de

Caxemira, um assunto regional defendido por muitos, se convertesse em matéria de interesse

internacional, não só para os dois principais países envolvidos, , mas também para outros

atores, nomeadamente países como antiga URSS, os EUA ou até mesmo a China, ou então

para atores não-estatais como os grupos fundamentais islâmicos que aproveitam a

instabilidade no território para se instalarem.

As mudanças fundamentais na dinâmica política do conflito da Caxemira

problematizaram a construção política tradicional de um estado de maioria muçulmana

contra uma Índia maioritariamente hindu. As identidades multiétnicas, multilíngues,

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multirreligiosas e regionais das várias comunidades da Caxemira e suas diversas, se não

divergentes, aspirações políticas levaram à necessidade de reconhecer o caráter

profundamente plural dessa sociedade nos dois lados da Linha de Controle.

A preocupação legítima dos estados paquistanês e indiano sobre questões básicas de

soberania territorial, interesses nacionais e segurança, leva a que a questão de Caxemira

assuma uma grande complexidade. As atuais posições paquistanesas e indianas sobre

Caxemira não se alteraram e não se preveem que se alterem no futuro próximo.

As fronteiras desenhadas a ferro e fogo de Jammu e Caxemira em 1947-48 estão para

ficar, e simultaneamente, parece que o conflito entre a Índia e o Paquistão é uma realidade

que permanecerá inalterada. É do interesse de ambos os países a encontrar uma saída viável

para este conflito, que ao longo do tempo tem provocado tantos focos de tensão que nenhum

dos intervenientes poderá esquecer.

Ao longo da história, o conflito de Caxemira viveu vários avanções e recuos no

processo de paz e estabilidade da região.

Existem três opções principais e mais visíveis para o futuro da região que são: a

autonomia completa da região, a divisão da região entre a Índia e o Paquistão, ou a divisão

entre as partes, juntamente com a China.

O conflito em Caxemira apresenta várias particularidades e todas elas transformam

este conflito em algo cada vez mais complexo. Acresce ainda que os dois principais atores

envolvidos neste processo são potências nucleares, o que traz para a “mesa” consequências

imprevisíveis. A resolução deste conflito não se afigura fácil e a intransigência das partes em

abdicar dos seus direitos promete alargar este conflito no tempo e, neste caso, apenas

continua a haver um perdedor, que é a população civil de Caxemira.

As particularidades da política internacional trazem novos ingredientes a uma

situação já de si explosiva. O advento do terrorismo e a proximidade da região a zonas de

instabilidade fazem com que o problema de Caxemira ameace tornar-se uma questão

transnacional, fazendo com que isso possa acelerar o processo de pacificação da região.

Este processo, que aparentemente é bilateral, tem um ator secundário muito

importante que é a China. Este ator com grandes interesses estratégicos, políticos e

económicos na região é uma parte interessada e que tem de ser ouvida em todo este processo,

uma vez que apenas com o seu consentimento toda esta questão será resolvida.

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Em suma, devido aos vários vetores que têm de ser tido em conta, a questão de

Caxemira apenas se resolverá com um diálogo construtivo entre os vários países envolvidos

e terá de haver um envolvimento muito forte da comunidade internacional no processo de

mediação para a resolução do mesmo. Índia e Paquistão terão de fazer cedências mútuas para

que o processo possa avançar e se chegue a bom porto. Podemos ainda inserir a questão de

Caxemira numa perspetiva mais regional que tem haver com a pacificação do sul da Ásia.

Para além disto, também podemos inserir este problema nas disputas político-religiosas que

existem nos dias de hoje. Seria um grande passo para a pacificação destas questões, e

mostraria uma grande boa vontade por parte das nações envolvidas, podendo ter um efeito

dominó nas relações internacionais.

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