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Uma escola tradicional,mas sem tradicionalismo

EducaçãoCADE

RNO

DE FOLHA DIRIGIDA

www.folhadirigida.com.br27 de março a 2 de abril de 2014

FOLHA DIRIGIDA — O SENHOR ESTÁHÁ QUASE DOIS ANOS E MEIO NA DIRE-ÇÃO DO COLÉGIO SAGRADO CORAÇÃODE MARIA. QUE AÇÕES COLOCOU EMPRÁTICA AO LONGO DESTE PERÍODO?Amaro França — Vim de Recife paraeste desafio. É um novo mercado,uma nova praça, uma nova reali-dade, sem falar no atrativo que re-presenta o nome e da história dainstituição. Esta foi uma das gran-des motivações para eu estar aqui.Alguns desafios maiores tento re-sumir, pois sempre gestão é algodesafiador, seja qual for a realida-de. Mas, um elemento que temsido prioritário é o resgate da iden-tidade institucional. Essa é umaescola de referência, de história sig-nificativa para a cidade, o estadoe o país. Essa escola tem uma iden-tidade muito forte, um papel so-cial importantíssimo. E, nessesentido, uma de nossas priorida-des e esta, que se desdobra emalguns aspectos no sentido dainovação pedagógica, de projetosque correspondam com um diá-logo maior com a realidade quevivemos e investimentos emâmbito de tecnologia e espaçospedagógicos que possam melho-rar o processo de ensino-aprendi-zagem. Estas são algumas diretri-zes que estabelecemos.

PODERIA NOS FALASSE SOBRE ESTAIDENTIDADE A ESCOLA, A QUE SE REFE-RIU. QUAL A PROPOSTA PEDAGÓGICADO SAGRADO CORAÇÃO DE MARIA?A escola pertence à Rede Sagra-do, que tem cinco unidades noBrasil, e que possui toda uma me-todologia e unidade pedagógi-ca muito bem definidas. Ela partede pressupostos de cunho filo-sófico de identidade, princípiose valores, além de um ou outroeixo pedagógico que está ligado

mais a uma dimensão mais me-todológica. Há pressupostos pe-dagógicos mais globais, funda-mentais e com aspectos mais so-ciointeracionistas, mas tambémexistem outras vertentes pedagó-gicas que nos guiam. Por exem-plo, acreditamos que somos umaescola com princípios tradicio-nais, com relação à identidade,mas de princípios muitos inova-dores para responder à realida-de à qual vivenciamos.

O SAGRADO CORAÇÃO DE MARIA TEMMAIS DE UM SÉCULO DE EXISTÊNCIA.COMO A INSTITUIÇÃO LIDA COM O DE-SAFIO DE MANTER A TRADIÇÃO E, AOMESMO TEMPO, ESTAR ALINHADA COMOS NOVOS TEMPOS?É bom diferenciar o que é tradi-ção, que para nós está relaciona-do com a nossa identidade insti-tucional, da história que ela temem si, do que é tradicionalismo.Nesse aspecto, não somos tradi-cionalistas. Somos uma escola detradição, com seus princípios evalores dos quais não abrimosmão, mas que dialoga com a rea-lidade em que estamos inseridos.E aí está o grande desafio para maescola que tem princípios e valo-res: manter-se fiel a sua identida-de e corresponder às necessidadesdeste mundo que são tão desafi-adoras. Um exemplo disso é comoenfatizamos a formação continu-ada. Este é um princípio para nós.Estar sintonizado é estar sempreestudando, buscando qualificaçãode nosso corpo docente, técnicoe administrativo. Esta é uma for-ma importante de dialogar comrealidades desafiadoras. Existemescolas de modismo, que se ori-entam apenas pelo que a socie-dade cobra e, com isso, se perdemao longo do tempo.

NOS ÚLTIMOS ANOS, O EXAME NACIO-NAL DO ENSINO MÉDIO (ENEM) TOR-NOU-SE O SUBSTITUTO DOS VESTIBULA-RES PARA A MAIOR PARTE DAS INSTITUI-ÇÕES FEDERAIS EM TODO O PAÍS. COMISSO, TEM CRESCIDO A PRESSÃO DOSPAIS PARA QUE AS ESCOLAS TENHAM UMBOM DESEMPENHO NA PROVA. DE QUEFORMA A ESCOLA LIDA COM ESSA PRES-SÃO DECORRENTE DO ENEM?O Enem nasceu com um propó-sito e, de repente, ele passou aser o grande vestibular do país.E tornou-se uma espécie deranking nacional, até muito in-devido, para todas as escolas. Setomarmos como referência, porexemplo, o ensino superior, te-mos o Sistema Nacional de Ava-liação do Ensino Superior (Sina-es), que possui várias vertentespara avaliar a instituição de en-sino superior. E, na educaçãobásica, é praticamente o Enemque dita esta norma. E isto, in-felizmente, limita muito o pa-pel educacional da escola. Nonosso caso específico, trabalha-mos esse aspecto com muita se-riedade, pois acreditamos que oColégio Sagrado Coração deMaria tem o papel fundamentalde formar o sujeito enquantocidadão, mas também o sujeitoacademicamente bom, que possacompetir com outros alunos dequaisquer instituições. E quan-to aos resultados, inclusive, te-mos sido até prejudicados.

POR QUE?por dois anos consecutivos, oInep não divulgou nossos resul-tados. Para que se tenha umaideia, foram 25 mil escolas ca-dastradas na última edição doEnem e, destas, 14.575 ficaramsem resultado. E, entre elas, estáa nossa. Estamos em uma brigajudicial para que este resultadoseja divulgado. No entanto, ape-sar disso, tivermos um crescimen-to importante no ensino médio.Isto acontece por conta do bomresultado dos nossos alunos,pois sabemos as notas individu-ais; elas só não foram divulga-das oficialmente. E temos tam-bém nossos alunos sendo apro-vados tanto em instituições pú-blicas como em particularesmuito sérias. Para nós, a educa-ção vai muito além do Enem.Encaramos isso com muita seri-edade. Em uma análise de expe-riência educacional e de gestão,o Enem, nesse momento, tem asua relevância e terá durante umcerto tempo, como aconteceucom os vestibulares específicosdas universidades públicas. Asociedade vai tomar novas cons-ciências e novos rumos políticospara redefinir este aspecto. Paranós, o Enem é um processo queestá sempre em foco, mas nãonos angustia.

HOUVE ALGUMA JUSTIFICATIVA DOMEC PARA A NÃO-DIVULGAÇÃO DANOTA DOS ALUNOS DO SAGRADO CO-RAÇÃO DE MARIA?Nenhuma. Não só para a nossacomo também para mais de 14mil escolas. Temos buscado es-clarecimento e, nesse sentido, vaiuma crítica ao Inep, é o fato deque fizemos todo um pedidoformal, preenchemos um proto-colo via site da instituição, entra-mos com representação judiciale, até o momento, não temosuma justificativa plausível paranós e para as outras escolas.

ACREDITA QUE ISTO PREJUDICA A ES-COLA? DE QUE FORMA?Realmente, é lamentável em umprocesso tão significativo comoeste, não ter o resultado. É óbvioque no primeiro momento vemo problema da imagem das es-colas que não têm o resultado di-vulgado. Mas, nosso trabalho étão sério que nesse aspecto temostoda uma compreensão dos pais,dos alunos em relação a nossaformação. Mas, é óbvio que que-remos uma explicação do Inepsobre o que aconteceu.

NA CONDIÇÃO DE EDUCADOR, COMO VÊAS MUDANÇAS QUE O ENEM SOFREU,PARA SE TRANSFORMAR EM VESTIBULARNACIONAL? FORAM POSITIVAS? ESPE-RA QUE TRAGA BONS RESULTADOS PARAA EDUCAÇÃO BRASILEIRA?Considero as avaliações de largaescala importantes, desde que te-nham um norte. Na realidade ori-ginal do Enem, este norte era abusca pela melhoria da educação.Seus resultados deveriam ser ve-rificados e, a partir daí, políticasdeveriam ser adotadas para queas melhorias acontecerem. Mas,de repente, o Enem perdeu suaidentidade e passou a ser o gran-de vestibular do país. Com isso,tornou-se muito mais um instru-mento para a formação de umranking e, sob esse aspecto, o nãovejo com bons olhos. Acho umacrueldade, pois limita todo opapel educacional. No entanto,se os dados forem trabalhadospara que avanços sejam alcança-dos, aí considero o exame impor-tante. Para isto, é preciso queexista uma vontade política sé-ria e se defina, entre outras coi-sas, qual o papel do ensino mé-dio na realidade do hoje.

A SEU VER, QUAL DEVERIA SER ESSAIDENTIDADE?O primeiro aspecto é que o ensi-no médio tenha uma característi-ca de diálogo com a realidade. Nãopode ter conteúdos que não sãosignificativos. É preciso tambémque ele abra portas para uma rea-lidade que se aproxima do merca-do. Para isso, necessita ter tambémfoco no desenvolvimento de ou-

tras habilidades e competências.Faz-se necessária, ainda, uma for-mação mais humana. Muitas es-colas, hoje, trabalham o conteúdopelo conteúdo. E quando este alu-no entra no ensino superior, quetem suas especificidades e desafi-os, ou quando chega à realidadedo mercado, valores e habilidadesfundamentais, como saber traba-lhar em equipe, não foram cons-truídos. E isto acaba gerando de-semprego. Não estou falando dacompetência técnica, mas de com-petência humana. Não se trata dedizer que o ensino médio deve setornar um ensino técnico, mas quepossa também ter essa perspecti-va. Aqui na escola, por exemplo,procuramos realizar práticas devisitas a universidades públicas eprivadas de qualidade, que tenhamexperiências diferenciais no mer-cado. É interessante já trazer umpouco dessa realidade e dessa dis-cussão para o ensino médio.

COMO O SENHOR AVALIA A SITUAÇÃO DOENSINO PRIVADO? QUAIS OS PRINCIPAISDESAFIOS PARA UMA ESCOLA DO SETOR,HOJE, MANTER-SE NO MERCADO?Parto do pressuposto que a gestãoela não tem receita pronta. Mas, háalguns aspectos que são fundamen-tos da gestão. Respeitar a culturalocal e organizacional é um fatordecisivo para qualquer gestão. Istonos dá a sensibilidade necessáriapara traçar algumas metas e desa-fios. É importante também planejarconhecendo a realidade. E, nesseaspecto, entra a dimensão orça-mentária, dos investimentos. Di-zem que o papel do gestor é ser ogrande maestro da instituição edu-cacional que possibilite o resulta-do final da qualidade, que é aaprendizagem dos alunos. E paraisto, temos o papel fundamentalde articulação, de mediação, de li-derança junto à equipe de profes-sores, equipe pedagógica, família.Outro desafio também é poderavançar nos resultados sem perderaquilo que lhe é princípio e valor.Um aspecto importante é alinharprocessos administrativos, enten-da-se financeiros, de forma espe-cífica. Não se pode comprometeresta parte de forma alguma. Esta éuma organização como qualqueroutra, do ponto de vista de empre-sa. Então, não se pode levar a umcomprometimento. As despesasdevem ser feitas de forma muitobem planejada. Este são os prin-cipais desafios, a meu ver, paraqualquer instituição educacional.

MUITOS GESTORES EDUCACIONAIS DI-ZEM QUE GERA MUITA PREOCUPAÇÃOAS MUDANÇAS FREQUENTES NA LEGIS-LAÇÃO EDUCACIONAL. DE QUE FORMAISTO AFETA AS ESCOLAS?Uma boa escola, mais ou menosem setembro, está projetando oujá tem projetado todo o ano vin-douro. E, de repente, vem umadecisão de legislação, um decre-to ou uma normatização, que vaicomprometer muito seu orça-mento. Então, o que se faz neces-sário? Percebo que as normatiza-ções têm um fim em si, mas pre-cisam ter um tempo para quesejam executadas. E não tenhadúvida que algumas decisões queparecem ter um fim positivo têmum impacto direto, no sentido fi-nanceiro, de estrutura, entre ou-tros aspectos. Quando estas leissão impostas, têm um impactona organização letiva, funcionale administrativa. E lamentavel-mente, temos sofrido com isso naeducação e, principalmente, noensino superior. Isso é um desa-fio para o setor privado.

esde 2012 à frente de uma das mais tradicionais instituições de ensino do Rio,o Colégio Sagrado Coração de Maria (Sacré-Coeur de Marie), o professor per-nambucano Amaro França, de 43 anos, possui dois objetivos principais. Ele busca,por um lado, promover um fortalecimento da identidade institucional da esco-la, que completará 103 anos de existência em junho deste ano. Em outra frente,atua no sentido de aliar a tradição centenária do colégio às demandas da educa-

ção moderna. Para isso, tem investido em capacitação de professores e utilização de re-cursos tecnológicos para incrementar as atividades nas salas de aula e nos laboratórios.Formado em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) etambém em Ciências Religiosas pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-PR), o diretorfez também especialização em Psicopedagogia pela UFRN e em Gestão Acadêmica eUniversitária pela Fundação Pedro Leopoldo (FPL-MG). Hoje, faz mestrado em Educa-ção pela Universidade da Madeira de Portugal.Mas, suas referências não são só acadêmicas ou de gestão. Durante sua trajetória profissio-nal, Amaro França atuou como professor, coordenador pedagógico, vice-diretor e diretor-geral, cargos ocupados tanto em instituições de educação básica quanto de ensino superior.Ele também é o primeiro homem a comandar uma escola da Rede Sagrado Coração deMaria em todo o mundo. Ao falar sobre sua busca por unir o respeito à história da ins-tituição e a necessidade de inseri-la na vanguarda educacional, ele salientou que o ca-minho é ser tradicional, sem ficar preso ao tradicionalismo.“Somos uma escola de tradição, com seus princípios e valores dos quais não abrimos mão,mas que dialoga com a realidade em que estamos inseridos. E aí está o grande desafio parama escola que tem princípios e valores: manter-se fiel a sua identidade e corresponder àsnecessidades deste mundo que são tão desafiadoras”, destacou o diretor, que também fazpalestras sobre temas como gestão, formação humana e práticas educacionais e é autor dedois livros: “Interlocuções – reflexões sobre a vida” e “Composições do caminho”.

De repente, oEnem perdeu sua

identidade epassou a ser

o grandevestibular do país.

Diretor do Colégio Sagrado Coração de Maria, o professor Amaro França fala, nesta entrevista,sobre ensino médio, Enem, desafios para gestão nas escolas privadas e, ainda, salienta como busca

conciliar a tradição de mais de um século de existência com as demandas da educação moderna

ZENITE MACHADO

AMARO FRANÇA

Uma escola tradicional,mas sem tradicionalismo

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