UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO
FACULDADE DE COMUNICAO
Programa de PsGraduao em Comunicao Social
Lus Carlos Paravati
ASPECTOS COMUNICATIVOS E CULTURAIS NOS HBITOS
CULINRIOS CAIARA DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DA
FAZENDA PICINGUABA, DE UBATUBA SP
So Bernardo do Campo, 2014
UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO
FACULDADE DE COMUNICAO
Programa de PsGraduao em Comunicao Social
Lus Carlos Paravati
ASPECTOS COMUNICATIVOS E CULTURAIS NOS HBITOS
CULINRIOS CAIARA DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DA
FAZENDA PICINGUABA, DE UBATUBA SP
Dissertao apresentada em
cumprimento parcial s exigncias
do Programa de Ps-Graduao em
Comunicao Social, da
Universidade Metodista de So
Paulo (UMESP), para obteno do
grau de Mestre.
Orientadora: Prof Dr: Cicilia Maria
Krohling Peruzzo
So Bernardo do Campo, 2014
FICHA CATALOGRFICA
P212a
Paravati, Lus Carlos
Aspectos comunicativos e culturais nos hbitos culinrios caiara da
comunidade quilombola da fazenda Picinguaba de Ubatuba - SP / Lus
Carlos Paravati. 2014.
146p.
Dissertao (mestrado em Comunicao Social) --Faculdade de
Comunicao da Universidade Metodista de So Paulo, So Bernardo do
Campo, 2014.
Orientao : Cicilia Maria Khohling Peruzzo
1. Comunicao social 2. Folkcomunicao 3. Cultura Brasil
Ubatuba (SP) 4. Comunidade quilombolas 5. Caiara Brasil So
Paulo (Estado) Ubatuba 6. Culinria Aspectos comunicativos I.
Ttulo.
CDD 302.2
FOLHA DE APROVAO
A dissertao de mestrado sob o ttulo Aspectos comunicativos e culturais nos
hbitos culinrios caiara da comunidade quilombola da Fazenda Picinguaba, de
Ubatuba SP, elaborada por Lus Carlos Paravati, foi defendida e aprovada em 17
de setembro de 2014, perante banca examinadora composta por Prof Dr Cicilia
Maria Krohling Peruzzo (Presidente/UMESP), Prof Dr Magali do Nascimento
Cunha (Titular/UMESP) e Prof Dr Priscila Ferreira Perazzo (Titular/USCS).
Declaro que o autor incorporou as modificaes sugeridas pela banca examinadora, sob
a minha anuncia enquanto orientadora, nos termos do Art.34 do Regulamento dos
Cursos de Ps-Graduao.
______________________________________
Prof. Dr. Cicilia Maria Krohling Peruzzo
Orientadora e Presidente da Banca Examinadora
______________________________________
Prof. Dr. Marli dos Santos
Coordenadora do Programa de Ps-Graduao
So Bernardo do Campo, 10 de novembro de 2014.
Programa: Ps-Graduao em Comunicao Social
rea de Concentrao: Processos Comunicacionais
Linha de Pesquisa: Comunicao miditica nas interaes sociais
Projeto temtico: Mdia local e comunitria
DEDICATRIA
Ao Seu Soares (in memoriam), pela pacincia em ouvir minhas histrias sobre o
andamento da pesquisa;
Ao Seu Z Pedro, grande mestre, pela sua sabedoria;
Deborah e ao Daniel, por torcerem pelos meus sonhos;
Manuela e Julia, que nasceram e me encantaram, no decorrer desta empreitada;
minha esposa Lucia Helena, pelo incentivo e companheirismo sempre.
O povo que planta e pesca,
canta, dana, faz festa,
no seu pedao de cho
Abastece a sua mesa,
Agradece a natureza
em qualquer religio.
Seu lugar seu oratrio,
Tirar o seu territrio
calar a tradio.
(Luis Perequ)
AGRADECIMENTOS
Agradeo Deus pela sade, oportunidade e proteo;
Prof Dr Cicilia Peruzzo, minha orientadora e professora, que com pacincia e
sabedoria me conduziu nos caminhos da comunicao;
Ao Prof Dr Laan Mendes de Barros, pelo acolhimento no programa de Ps-graduao;
Prof Dr Marli dos Santos, Coordenadora do programa, pela ateno e carinho;
Ao Prof Dr Jos Marques de Melo, Prof Dr Sonia Jaconi e Prof Dr Rosemeire
Laurindo, por me guiarem pelos gneros jornalsticos;
Prof Dr Magali do Nascimento Cunha por me trilhar pelos Estudos Culturais e pela
Construo do imaginrio e, sobretudo, pela valiosa colaborao na banca de
qualificao;
Prof Dr Cristina Schmidt por sua importante contribuio na banca de qualificao;
Rnia, Prof Andrade e a todo pessoal da Ctedra Unesco/Metodista, e ao Kleber Luiz
que fez parte dessa equipe;
Katia, Vanete, Walkiria, Joyce pela retaguarda e orientaes nos trmites
burocrticos;
Aos colegas doutorandos e Doutores Iury, Eduardo, Tyciane, Clarissa, Orlando, Vivian,
Renato, e Renata; aos colegas mestrandos e Mestres, Julio, Lus Erlin, Edvaldo, Aline,
Catherine, Tereza, Ariadne, Paula, Gilmar, Lira; e aos integrantes dos grupos de
pesquisa Comuni e Mire pela fora, companheirismo e momentos agradveis;
Aos queridos familiares Jessica, Rafael, Rodrigo, Debora, Marcos, Dona Luiza pelo
carinho e incentivo;
Aos amigos Aydee, Andrea, Antonio F, Frugoli, Pe. Cesar, Wilton e Uyeda, pelo
estmulo e torcida;
Aos queridos alunos de Gastronomia da UMESP e Mackenzie por me despertar para
essa caminhada;
Universidade Metodista e Capes pelo apoio financeiro;
Ao Jos Basaglia, do Ncleo Picinguaba, por me receber e apresentar a unidade de
conservao do Parque Estadual da Serra do Mar;
Aos novos queridos amigos do Quilombo da Fazenda: Dona Carmem (Fica), Dona
Maria (Me da Fica), Jaime, Dona Laura, Dona Cida, Dona Lucia, Dona Marcia, Seu
Dito, Seu Vinturante, Luciano, Ginacil, Claudionor, Luciana, Juliana, Bruna.
LISTA DE FIGURAS
Figura n 1 - Placa de indicao do Ncleo Picinguaba. ................................................ 53
Figura n 2 - Placa de indicao do Ncleo Picinguaba. ................................................ 53
Figura n 3 - Sede do Ncleo Picinguaba. ...................................................................... 53
Figura n 4 - Placa indicativa da Casa da Farinha .......................................................... 59
Figura n 5 - Placa indicativa do Quilombo da Fazenda. ............................................... 59
Figura n 6 - Casa de Farinha - Quilombo da Fazenda. .................................................. 59
Figura n 7 - Casa de Farinha - Quilombo da Fazenda. .................................................. 59
Figura n 8 - Logomarca do Quilombo da Fazenda Picinguaba desenvolvido pelo
programa de incluso social e promoo da cidadania, realizado pela Universidade So
Judas Tadeu, em parceria com o programa luz para todos. ............................................ 61
Figura n 9 - Reunio na Assembleia Legislativa de So Paulo ..................................... 62
Figura n 10 - Banana verde para o preparo do azul-marinho. ....................................... 95
Figura n 11 - Banana verde j em cozimento para o preparo do azul-marinho. ........... 95
Figura n 12 - Peixe limpo para o preparo do azul-marinho........................................... 95
Figura n 13 - Peixe em cozimento com a banana verde para o preparo do azul-marinho.
........................................................................................................................................ 95
Figura n 14 - Azul-marinho finalizado. ......................................................................... 95
Figura n 15 - Salada de corao de banana, ou salada quilombola. .............................. 95
Figura n 16 - Folha da taioba, muito presente nas preparaes culinrias. ................. 101
Figura n 17 - Ponto de venda de farinha de mandioca, na casa de farinha do Quilombo
da Fazenda. ................................................................................................................... 101
Figura n 18 - Loja de artesanato do Quilombo da Fazenda. ....................................... 105
Figura n 19 - Artigos de artesanato produzidos no Quilombo da Fazenda. ................ 105
Figura n 20 - Fruto da palmeira juara. ....................................................................... 113
SUMRIO
RESUMO ..........................................................................................................................9
ABSTRACT ....................................................................................................................10
RESUMEN ......................................................................................................................11
INTRODUO ...............................................................................................................12
Captulo I COMUNIDADE, CULTURA E IDENTIDADE ........................................18
1. Comunidade e comunicao comunitria ............................................................... 18
2. Cultura, identidade e comunicao ......................................................................... 27
2.1. Cultura e identidade ......................................................................................... 30
2.2. Cultura popular ................................................................................................. 32
2.3. Cultura caiara.................................................................................................. 36
2.4. Cultura quilombola ........................................................................................... 40
2.5. Cultura alimentar .............................................................................................. 42
Captulo II CARACTERIZAO DO NCLEO PICINGUABA..............................46
1. Parque Estadual da Serra do Mar ............................................................................ 46
1.1. Ncleo Picinguaba............................................................................................ 52
1.2. Quilombo da Fazenda (Serto da Fazenda)...................................................... 58
2. Cultura, e tradies na comunidade ........................................................................ 64
2.1. O cotidiano do Serto da Fazenda antes da construo da BR-101 ................. 65
2.2. A vida no Quilombo da Fazenda aps a construo da BR-101 ...................... 72
Captulo III COMUNICAO E CULTURA NO QUILOMBO DA FAZENDA .....77
1. A cultura alimentar caiara ..................................................................................... 77
2. A cultura alimentar no Quilombo da Fazenda ........................................................ 80
3. Aspectos comunicacionais da transmisso dos saberes e fazeres culturais do
Quilombo da Fazenda ................................................................................................. 88
3.1. Culinria ......................................................................................................... 100
3.2. Artesanato....................................................................................................... 105
4. A cultura alimentar tradicional ressignificada pelas prticas culinrias atuais no
Quilombo da Fazenda ............................................................................................... 107
CONCLUSO ...............................................................................................................115
REFERNCIAS ............................................................................................................119
RESUMO
PARAVATI, Lus Carlos. Aspectos comunicativos e culturais nos hbitos culinrios
caiara da comunidade quilombola da Fazenda Picinguaba, de Ubatuba SP, 2014. 146 f. Dissertao (Mestrado em Comunicao Social) - Universidade Metodista
de So Paulo, So Bernardo do Campo.
Estudo sobre os processos comunicativos envoltos na transformao dos hbitos
culinrios da comunidade quilombola da Fazenda Picinguaba de Ubatuba, SP. O
objetivo entender as origens e as causas que provocaram alteraes nos hbitos
culinrios da comunidade do Quilombo da Fazenda, a partir de uma anlise comparativa
entre os fazeres primitivos e os praticados hoje. Foi analisado tambm o processo
comunicacional desenvolvido para a transmisso da cultura alimentar entre as geraes,
identificando as linguagens utilizadas. Como instrumento para o entendimento desses
fenmenos, esta pesquisa foi realizada luz das teorias e conceitos dos estudos
culturais; dos conceitos sobre comunidades e identidades, alm da teoria da
folkcomunicao desenvolvida por Luiz Beltro. Para tanto, foi realizada pesquisa
bibliogrfica e estudo de documentos, alm de entrevistas utilizando-se a modalidade
histria oral com os membros da comunidade. Os resultados obtidos apontam uma
mudana nos hbitos alimentares da comunidade do Quilombo da Fazenda, devido
facilidade de acesso ao comrcio de gneros alimentcios, decorrente da construo da
rodovia Rio-Santos, e a influncia trazida pela televiso, a partir da implantao da rede
de energia eltrica em 2008. No entanto, observamos que apesar dessa mudana, a base
da cultura alimentar quilombola vem mantendo muito dos seus aspectos originais. A
comunicao dentro da comunidade quilombola e a transmisso dos saberes e fazeres
tradicionais da comunidade ocorrem predominante pela oralidade. Identificamos a
presena de dana, msica, roda de conversa, culinria, artesanato que correspondem
aos gneros da folkcomunicao.
Palavras chave: comunidade.quilombo.caiara.alimentao.folkcomunicao.
ABSTRACT
PARAVATI, Lus Carlos. Aspectos comunicativos e culturais nos hbitos culinrios
caiara da comunidade quilombola da Fazenda Picinguaba, de Ubatuba SP, 2014. 146 f. Dissertao (Mestrado em Comunicao Social) - Universidade Metodista
de So Paulo, So Bernardo do Campo.
Study about the communicative processes involved in the quilombola community from
Fazenda Picinguaba de Ubatuba, SP culinary habits transformation. Its objective is to
understand the origins and causes that provoked the Quilombo da Fazenda community
culinary habits changes, using a comparative analysis between primitive and current
doings. The communication process developed to transmit the feeding culture between
generations was also analyzed, identifying the languages used. As an instrument to
understand these phenomena, this research was carried at the light of cultural studies
theories and concepts; of concepts about communities and identities, and also the
folkcommunication theory developed by Luiz Beltro. For such, bibliographic research
and document studies were performed, and also interviews using the oral history
method with community members. The results obtained indicate a change in Quilombo
da Fazenda community feeding habits, due to ease the of access to food commerce
provided by both the Rio-Santos highway construction and the influence brought by
television, with the implantation of electric energy in 2008. However, we observe that,
in spite of these changes, the quilombola feeding culture basis keeps many of its
original aspects. The communication inside the quilombola community and the
traditional knowledge and doing transfer occur mostly orally. We identify the presence
of dancing, music, conversation circle, culinary, craftsmanship that correspond to the
folkcommunication genre.
Keywords: community.quilombo.caiara.feeding.folkcommunication
RESUMEN
PARAVATI, Lus Carlos. Aspectos comunicativos e culturais nos hbitos culinrios
caiara da comunidade quilombola da Fazenda Picinguaba, de Ubatuba SP, 2014. 146 f. Dissertao (Mestrado em Comunicao Social) - Universidade Metodista
de So Paulo, So Bernardo do Campo.
Estudio acerca de los procesos comunicativos envueltos en la transformacin de los
hbitos culinarios de la comunidad quilombola de la Fazenda Picinguaba, Ubatuba - SP.
El objetivo es entender los orgenes y las causas que provocaron alteraciones en los
hbitos culinarios de la comunidad el Quilombo da Fazenda, a partir de un anlisis
comparativo entre los hagas primitivos y los practicados hoy. Fue analizado tambin el
proceso comunicacional desarrollado para la transmisin de la cultura alimentar entre
las generaciones, identificando el lenguaje utilizado. Como instrumento para el
entendimiento de esos fenmenos, este estudio fue realizado guiado por las teoras y
conceptos de los estudios culturales; de los conceptos sobre comunidades e identidades,
adems de la teora de la folkcomunicacin desarrollada por Luiz Beltro. Para ello, fue
realizada investigacin bibliogrfica y estudios de documento, adems de entrevistas
utilizndose la metodologa de la historia oral con los miembros de la comunidad. Los
resultados obtenidos apunta un cambio en los hbitos alimenticios de la comunidad del
Quilombo da Fazenda, debido a la facilidad de acceso al comercio de gneros
alimenticios, provenientes de la construccin de la carretera Rio-Santos, y la influencia
de la televisin, desde la implantacin de la red de energa elctrica en 2008. No
obstante, observamos que a pesar de ese cambio, la base de la cultura alimentar
quilombola viene manteniendo mucho de sus aspectos originales. La comunicacin
dentro de la comunidad quilombola y la transmisin de los saberes y hagas tradicionales
de la comunidad ocurren predominantemente por medio de la oralidad. Identificamos la
presencia de la danza, la msica, las ruedas de conversacin, la culinaria, la artesana
que corresponden a los gneros de la folkcomunicacin.
Palabras clave: comunidad.quilombo.caiara.alimentacin.folkcomunicacin.
12
INTRODUO
As mudanas sociais ocorridas, sobretudo, nas ltimas dcadas, provocadas pelo
acelerado avano tecnolgico; a construo da rodovia Rio-Santos nos anos 1970,
trazendo uma desconfigurao do entorno da Serra do Mar e da praia com consequente
explorao imobiliria da regio; a criao do Parque Estadual da Serra do Mar com a
incorporao da rea onde se localiza a comunidade do Serto da Fazenda, delimitando-
a como rea de preservao ambiental; as novas prticas gastronmicas adotadas em
decorrncia das constantes exigncias de adaptao da sociedade brasileira ao mercado
global compem o cenrio deste estudo.
A preservao, manuteno e alteraes das tradies culturais, dos costumes,
dos saberes e fazeres, da comunidade do Serto da Fazenda, hoje reconhecida pela
Fundao Palmares como remanescente de quilombo e denominada Quilombo da
Fazenda Picinguaba, vem sofrendo nesses ltimos 40 anos, influncias externas em
virtude do processo de desenvolvimento turstico aliado preservao ambiental da
regio.
Neste contexto, o problema de pesquisa se insere na questo dos aspectos
comunicacionais utilizados para transmisso e preservao dos hbitos culinrios, dos
rituais de memria aplicados na preservao do patrimnio imaterial que envolve o
repertrio de usos, costumes, saberes e fazeres culturais da comunidade do Quilombo da
Fazenda.
A comunicao comunitria se caracteriza como popular, pois a cultura, os
saberes, os modos e os fazeres so transmitidos, de gerao a gerao,
predominantemente pela oralidade, com o sentido de transferir conhecimentos,
utilizando-se das manifestaes culturais, na maioria baseadas no folclore, e praticadas
com esmero pelos membros mais antigos.
Cria-se sentimento de pertena nos mais jovens, incentivando a manuteno e
perpetuao da cultura. Os hbitos alimentares do Quilombo da Fazenda sofrem
influncia da culinria caiara, devido a sua localizao prxima ao litoral. Seu prato
emblemtico o peixe azul-marinho, preparado a base de peixe e banana verde, alm de
outros de caractersticas singulares da cultura caiara como a paoca de banana e o
bolinho de taioba.
13
Dentro desta perspectiva pergunta-se: Quais transformaes e processos
comunicacionais esto implicados na preservao das tradies culinrias da
comunidade do Quilombo da Fazenda?
Como hiptese acreditvamos que apesar da introduo das prticas alimentares
contemporneas, sobretudo, aps a implantao da Rodovia Rio-Santos que possibilitou
uma maior integrao com a vida urbana do municpio, e o acesso aos meios de
comunicao de massa, a comunidade quilombola preservava seus hbitos culinrios
tradicionais. H uma estreita ligao entre folclore e comunicao popular no processo
comunicativo de preservao e disseminao da cultura local, que utiliza como ritual de
memria a oralidade para a transmisso das prticas culinrias da comunidade.
O objetivo da pesquisa foi analisar a relao entre os aspectos culturais e
identitrios, os processos comunicacionais utilizados para transmisso da herana
culinria entre os habitantes e suas geraes, e a relao da comida caiara e a
comunidade do Quilombo da Fazenda. Os objetivos especficos foram:
identificar os hbitos alimentares quando do surgimento do quilombo e os
presentes hoje na comunidade, e analisar quais os principais fatores que
influenciaram possveis mudanas;
comparar os aspectos culturais da cozinha praticada nesses dois perodos,
bem como as formas de comunicao e a linguagem utilizada para
transmisso dessa cultura;
analisar os resultados apontados pelo confronto dos dados obtidos;
identificar e descrever, a partir dos resultados, o processo comunicacional
envolto nas alteraes dos hbitos alimentares e o estado atual da cozinha
caiara praticada pela comunidade quilombola.
Como justificativa consideramos que a comunidade quilombola da Fazenda
Picinguaba encontra-se dentro da rea do Parque Estadual da Serra do Mar no
municpio de Ubatuba, So Paulo. constituda por pouco mais de 40 famlias e, por se
tratar de uma rea de proteo ambiental, so impossibilitadas de praticar qualquer
atividade que possa comprometer o meio ambiente. Dentro desse contexto, o
levantamento e a identificao dos hbitos culinrios praticados no passado, as formas
de preservao das tradies, e o confronto com os praticados na atualidade se faz
relevante devido ao risco existente da perda da memria dos costumes e dos fazeres da
comunidade.
14
Na metodologia desta dissertao utilizamos como primeiro passo a reviso
bibliogrfica, buscando assim fundamentao conceitual e terica, com consulta a
livros, artigos, de peridicos, dissertaes e teses que possibilitaram fornecer subsdios
no tocante a comunidades, comunicao popular, aspectos folkcomunicacionais,
identidade, imaginrio, cultura caiara e cultura quilombola.
A cultura caiara tem suas razes comuns cultura caipira e sertaneja. Sua fonte
principal de sustento vem da agricultura. Seus saberes esto associados ao tempo da
natureza, periodicidade das atividades da terra e, principalmente, do mar,
expressando-se em produtos materiais como moradia, instrumentos de trabalho,
manifestaes culturais e rituais religiosos.
Por cultura quilombola entendemos tratar-se de uma cultura muito prxima da
cultura rural, independente da localizao da comunidade, localizando-se aos arredores
do litoral ou muito distante dele. O sustento advm da cultura de subsistncia. Tem
grande sentimento de pertena ao territrio, demonstrando apego s tradies regionais
e ancestrais, com suas manifestaes culturais fortemente vinculadas ao passado,
lutando para manter viva a memria social e a valorizao dos saberes tradicionais.
Para Alda Judith Alves-Mazzotti e Fernando Gewandsznajder (1998, p.181) este
exame auxilia o pesquisador na construo de um panorama geral que permite
identificar as pesquisas mais relevantes para as questes de seu interesse. Esta pesquisa
bibliogrfica, em material j elaborado por outros pesquisadores, permite o
embasamento de teorias e conceitos j consagrados, de forma a ampliar a nossa viso
sobre o tema, possibilitando novas compreenses e interpretaes sobre o horizonte
caiara.
Sergio Vasconcelos de Luna (1998) nos recomenda saber o que j existe,
descobrir as lacunas, entraves tericos e/ou metodolgicos. Para ele (1998, p. 102)
existem fontes secundrias (material j existente), fonte primria, que so os dados
originais coletados pelos autores.
Outro recurso que utilizamos nesta pesquisa foi o de entrevistas na modalidade
histria oral com os membros da comunidade do Quilombo da Fazenda. De acordo com
Haguette (2005, p.79-81) a histria oral pode ser enfocada dentro de at duas
perspectivas: como documento e como tcnica de captao de dados. Dentre as funes
que ela desempenha, interessa-nos a perspectiva documental para a anlise da hiptese
sobre a preservao da cultura local no processo em movimento de vida da populao
do Quilombo da Fazenda Picinguaba.
15
A entrevista, para Haguette (2005, p. 86) como um processo de interao
social entre duas pessoas na qual uma delas, o entrevistador, tem por objetivo a
obteno de informaes por parte do outro. Para este fim, organiza-se um roteiro de
entrevista de acordo com a problemtica central para obteno das informaes
pretendidas.
Ainda de acordo com Haguette (2005, 92-97), tudo que oral, gravado e
preservado pode ser considerado documento. Diferentemente do aspecto esttico do
documento escrito, a histria oral tem na memria um fator dinmico de interao entre
passado e presente, cujas funes so a aquisio de testemunhos relevantes para a
compreenso da sociedade, o preenchimento de lacunas dos documentos escritos, a
interdisciplinaridade.
O primeiro contato para incio da pesquisa e agendamento das entrevistas foi por
meio do Ncleo Picinguaba, onde de forma muito atenciosa, nos informaram sobre a
dinmica necessria aos procedimentos de pesquisa, colocando-nos em contato com os
moradores da comunidade do Quilombo da Fazenda.
A escolha dos entrevistados no foi aleatria. Escolhemos 9 (nove) pessoas,
priorizamos o testemunho de 6 (seis) mais idosos, pois conservam na memria as
prticas e costumes passados. Dentre os mais idosos destacamos 2 (dois) com papel de
liderana na comunidade, e as outras 4 (quatro) reconhecidamente envolvidas com o
artesanato e com as prticas alimentares nas ocasies de festas e comemoraes no
Quilombo. Os 3 (trs) mais jovens, foram escolhidos com o intuito de fazer um
contraponto das informaes. No decorrer dos captulos faremos uma apresentao dos
entrevistados.
Assim como Haguette, Verena Alberti em Manual de Histria Oral (2013, p.
33) considera que a histria oral individual, particular quele depoente, mas constitui
tambm elemento indispensvel para a compreenso da histria de seu grupo social, sua
gerao.
A histria oral pode ser empregada em diversas disciplinas das cincias humanas
e tem relao estreita com categorias como biografia, tradio oral, memria, linguagem
falada, mtodos qualitativos etc. Esse mtodo, (ALBERTI, 2013, p. 20-30) focado na
realizao de entrevistas luz de depoimentos de pessoas que participaram, ou
testemunharam acontecimentos, conjunturas, vises de mundo, podendo-se utiliza-la no
estudo de acontecimentos histricos, grupos sociais, movimentos, etc.
16
A histria oral possibilita reconstruir a histria atravs de mltiplas verses;
captar a lgica e o resultado da ao expresso na linguagem do ator; permitindo
recuperar aquilo que no encontramos em documentos de outra natureza, ou seja,
acontecimentos pouco esclarecidos, experincias pessoais, impresses particulares; a
tcnica da entrevista na modalidade histria oral introduz o pesquisador na construo
da verso conforme dados da prpria fonte (ALBERTI, 2013, p. 20-30).
Ainda para Alberti (2004, p. 24-27):
a histria oral pode ser utilizada como metodologia de pesquisa para
reconstituio de trajetrias de comunidades especficas, como as de
bairros, as imigrantes, as camponesas etc.[...] transmitem tradies
culturais, que vo surgindo medida que o entrevistado delas se lembra:
histrias, canes, poemas, provrbios, modos de falar de um grupo,
reminiscncias sobre antepassados e sobre territrios, informaes
transmitidas de gerao em, gerao ou dentro de um mesmo grupo
profissional etc.[...]
A metodologia de histria oral bastante adequada para o estudo da
histria da memria, isto , de representaes do passado. Estudar essa
histria estudar o trabalho de constituio e de formalizao das
memrias, continuamente negociadas. A constituio da memria
importante porque est atrelada construo da Identidade. Como
assinala Michael Pollak, a memria resiste alteridade e mudana e
essencial na percepo de si e dos outros. Ela o resultado de um
trabalho de organizao e de seleo daquilo que importante para o
sentimento de unidade, de continuidade e de coerncia isto , de identidade. E porque a memria mutante, possvel falar de uma
histria das memrias de pessoas ou grupos, passvel de ser estudada
atravs de entrevistas de histria oral.
Na operacionalizao da pesquisa as entrevistas foram gravadas e transcritas
literalmente, para posterior anlise do material; foi utilizado o recurso de dirio de
campo para inventariar as ocorrncias durante as visitas, comunidade.
Todas as entrevistas transcorreram de forma tranquila, no encontramos
dificuldades por parte das pessoas em relatar suas trajetrias de vida na comunidade.
Todos abordaram suas histrias de maneira humorada, mesmo quando falando das
dificuldades existentes no passado. Em nenhum momento sentimos desconforto por
parte dos entrevistados quanto ao uso do gravador ou mesmo do dirio de campo, onde
anotvamos os principais tpicos abordados.
Os entrevistados ficaram livres para descrever como chegaram comunidade,
quais eram as dificuldades antes da construo da rodovia Rio-Santos, quais eram os
alimentos utilizados no passado e de que maneira aconteceram as mudanas e
transformaes em suas vidas at os dias de hoje.
17
No sentido de coletar informaes documentais sobre a histria do local e da
comunidade, desde a antiga Fazenda Picinguaba at o reconhecimento como
comunidade quilombola; sobre a criao do Parque Estadual da Serra do Mar; sobre a
implantao do Ncleo Picinguaba; utilizamos os registros dos stios oficiais de
instituies governamentais e de entidades de comunicao e acadmicas na internet.
Para as entrevistas com os membros da comunidade quilombola, foi necessria a
aprovao do Comit de tica da Universidade Metodista de So Paulo, tendo em vista
tratar-se de pesquisa com seres humanos, pois dizem respeito, neste caso, preservao
da intimidade e da vida pessoal dos entrevistados.
Foi necessria, ainda, a aprovao pela COTEC Comisso Tcnico-Cientfica
do Instituto Florestal, rgo da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de So Paulo,
em virtude da rea onde se localiza o Quilombo da Fazenda estar inserida em rea de
proteo ambiental administrada pelo Parque Estadual da Serra do Mar, sob jurisdio
do Instituto Florestal. Todas as pesquisas em reas administradas pelo Instituto
Florestal, independente do tema, assumem compromisso de salvaguarda e proteo dos
recursos naturais.
O primeiro captulo Comunidade, cultura e identidade tem a inteno de
fundamentar a compreenso sobre os laos que unem os diferentes tipos de comunidade.
Os tpicos sero divididos em funo da anlise dos conceitos de vrios autores sobre o
tema comunidade, cultura e identidade.
O segundo captulo Caracterizao do Ncleo Picinguaba serve de base para
contextualizar e situar a comunidade Quilombola da Fazenda, o Ncleo Picinguaba e as
circunstncias de ser uma comunidade tradicional inserida dentro de um Parque de
preservao ambiental. Faremos uso das entrevistas no sentido de conhecermos as
dificuldades existentes antes e depois da construo da Rodovia Rio-Santos.
No terceiro captulo Comunicao e cultura no Quilombo da Fazenda
procuramos descrever os saberes e fazeres culturais da comunidade do Quilombo da
Fazenda, os aspectos comunicacionais das formas de transmisso para a transferncia
dessa cultura. Este captulo far uso dos conceitos de folkcomunicao para explicar os
aspectos comunicativos que norteiam a cultura, de ontem e de hoje, do Quilombo da
Fazenda.
18
Captulo I COMUNIDADE, CULTURA E IDENTIDADE
1. Comunidade e comunicao comunitria
A histria social do Brasil, como colnia portuguesa, no incio do sculo XVI se
consolidou com a formao de pequenas aglomeraes humanas espalhadas pelo
territrio ocupado. A iniciativa portuguesa de povoar o territrio e dele tirar proveito
econmico por meio da explorao das riquezas naturais e do cultivo do acar fez
surgir pequenos vilarejos, aldeias, feitorias, engenhos e povoados, fazendo uso da
escravizao do nativo. Essa tentativa de escravizao do indgena no logrou o sucesso
esperado pelo colonizador no tocante necessidade de mo de obra para obteno dos
nveis produtivos e econmicos desejados. Portugal dominava o comrcio de especiarias
adquiridas no oriente comercializando-as na Europa, mantinha colnias na frica e
ndia (FERNANDES, 1975, p. 46).
Na frica, os portugueses exerciam o trfico de escravos. Os mercadores
portugueses negociavam direto com chefes tribais envolvidos no trfico. Esse comrcio
dava-se por meio de guerras por poder e composies polticas e territoriais entre as
tribos africanas. No Brasil, essa mo de obra foi comercializada em praticamente todo o
territrio, principalmente nos engenhos de acar do nordeste (TESKE, 2011, p. 43-44).
No final do sculo XVI, ndios e africanos trabalhavam juntos como escravos em
pssimas condies nos engenhos do nordeste colonial.
Devido s pssimas condies de vida, principalmente dos africanos
escravizados, iniciam-se os registros de protestos, destacando-se as comunidades de
fugitivos em toda a Amrica, conforme relata Flvio dos Santos Gomes (2013, p. 449):
Assim foi na Venezuela com os cumbes, na Colmbia com os
palenques; no Caribe ingls e EUA com os marrons; no Caribe
Francs com a marronage em Cuba com os cimaroons. No Brasil, desde
o perodo colonial, tais comunidades de fugitivos escravos receberam as
denominaes de quilombos e/ ou mocambos. A palavra quilombo/
mocambo para a maioria das lnguas bantu da frica Central e Centro-
Ocidental quer dizer acampamento. Em regies africanas centro-
ocidentais nos sculos XVII e XVIII, a palavra kilombo significava
tambm o ritual de iniciao da sociedade militar dos guerreiros dos
povos imbangalas (tambm conhecidos como jagas). [...] Embora no
existam pesquisas sistemticas nessa direo, sugere-se a
19
existncia de uma cultura escrava e a recriao de alguns significados
desse ritual africano (kilombo), entre os cativos no Brasil, no sentido de
que, ao fugir para quilombos, escravos reorganizavam-se numa
comunidade de africanos originrios de regies diversas e tambm de
crioulos (como eram denominados em termos de classificao racial os
escravos nascidos no Brasil, portanto descendentes dos africanos).
possvel, portanto, estabelecer nexos entre os significados do kilombo
na frica Central e as experincias histricas dos quilombos brasileiros.
Esse tipo de pequena comunidade preservou seus padres de cultura ou de
sociabilidade e os mantm, apesar do tempo. um tipo de comunidade embrionria, de
origem biolgica, cultural e social mestia (FERNANDES, 1975, p. 47).
Para fundamentao terica desta pesquisa, com o intuito de traar um perfil da
comunidade quilombola da Fazenda Picinguaba, no estado de So Paulo, nos
apoiaremos em conceitos de estudiosos sobre o tema comunidade.
Zygmunt Bauman, em Comunidade - a busca por segurana no mundo atual
(2003, p.7-8) considera que:
As palavras tm significado: algumas delas, porm, guardam sensaes.
A palavra comunidade uma dessas. Ela sugere uma coisa boa: o que quer que comunidade signifique, bom ter uma comunidade, estar numa comunidade. [...] como um teto sob o qual nos abrigamos da chuva pesada, como uma lareira diante da qual esquentamos as mos
nos dias gelados. [...] Aqui, na comunidade, podemos relaxar - estamos
seguros [...] Numa comunidade, todos nos entendemos bem, podemos
confiar no que ouvimos, estamos seguros a maior parte do tempo e
raramente ficamos desconcentrados ou somos surpreendidos. Nunca
somos estranhos entre ns.
A comunidade onde nos sentimos seguros, com sensao de aconchego exige
lealdade incondicional podendo-se considerar uma imperdovel traio, quando por
qualquer motivo essa lealdade no praticada. A comunidade existente exige
obedincia em troca dos servios que presta (BAUMAN, 2003, p.9).
H um preo a pagar pelo privilgio de viver em comunidade, preo esse que se
paga com a perda da liberdade e da autonomia. Abre-se mo da liberdade em favor da
segurana. De qualquer forma, em comunidade ou fora dela existe um preo que passa
pela perda da liberdade pela segurana ou perda da segurana pela liberdade
(BAUMAN, 2003, p.10).
No seremos humanos se no tivermos segurana ou se no tivermos liberdade.
Podemos e devemos buscar essas sensaes de aconchego. um sonho que buscamos
encontrar, porm no ser possvel que a tenhamos na quantidade que desejamos,
20
contudo no podemos deixar de tentar encontr-las. O melhor pode ser inimigo do
bom, mas certamente o perfeito um inimigo mortal dos dois (BAUMAN, 2003,
p.11).
No entender de Max Weber (1973, p. 140-141), comunidade uma relao
social quando existe atitude na ao social e esta se inspira no sentimento dos partcipes
como um todo, podendo se apoiar sobre toda espcie de fundamentos, afetivos,
emotivos e tradicionais. A comunidade normalmente por seu sentido a contraposio
radical de luta. O que no impossibilita que possa haver conflitos de opinies dentro
da comunidade.
Para o autor, no so todas as participaes comuns que implicam em
comunidade.
Comunidade s existe propriamente quando, sobre a base desse
sentimento, a ao est reciprocamente referida no bastando a ao
de todos e de cada um deles frente mesma circunstncia e na medida
em que esta referncia traduz o sentimento de formar um todo. [...] A
mesma comunidade de linguagem, originada numa tradio homognea
por parte da famlia e da vizinhana, facilita em alto grau a
compreenso recproca, ou seja, a formao de relaes sociais
(WEBER, 1973, p. 142).
Weber considera ainda que o surgimento de contrastes conscientes em relao a
terceiros, no caso de participantes de um mesmo idioma, cria um sentimento de
comunidade e formas de socializao.
Estes conceitos descritos por Baumam e Weber esto presentes nos antigos
refgios quilombolas, hoje denominado de remanescentes de quilombo, pois nesse
tipo de comunidade que seus moradores buscam sensao de conforto, segurana,
relaes sociais e estabelecem laos afetivos, emotivos e tradicionais.
De acordo com Ferdinand Tnnies (1995), podemos entender comunidade como
sendo de sangue, lugar, esprito / parentesco, vizinhana e amizade. A comunidade de
sangue est ligada possesso comum dos prprios seres humanos. Na comunidade de
lugar, o vnculo acha-se ao solo e terra. J na comunidade de esprito, essa ligao se
d com os lugares sagrados e divindades.
Segundo Tnnies (1995, p. 239) aonde quer que os seres humanos estejam
ligados de forma orgnica pela vontade e se afirmem reciprocamente, encontra-se
alguma espcie de comunidade chamando esses gneros de comunidade de parentesco;
vizinhana e amizade.
21
O parentesco para Tnnies (1995, p. 239), tem a casa como bero e corpo. A
vida comum sob o mesmo teto, a posse e fruio comum dos bens, especialmente dos
alimentos tirados das mesmas provises e repartidos sobre a mesma mesa. A
vizinhana a vida comum, conjunta, o conhecimento mtuo e confiante, as
necessidades do trabalho, dos hbitos e dos favores. condicionada essencialmente pela
proximidade fsica, sendo vulnervel sua manuteno em caso de afastamento. No caso
da amizade caracterizada a partir do modo de pensar, das condies de trabalho. A
divindade reconhecida e festejada por espritos comuns presentes na conscincia dos
que o veneram. Assim, os que compartilham das mesmas condies de trabalho,
partilham da mesma f, reconhecem-se entre si, pois esto ligados pelos mesmos laos.
Ainda para Tnnies (1973, p.104) as comunidades humanas se apresentam na
aproximao espacial e na espiritual, sendo esta ltima, a comunidade de vontade, de
compreenso.
Tnnies (1973, p.105) acrescenta:
Como a generalidade de uma lngua comum aproxima e une os
sentimentos humanos enquanto possibilidade real de compreenso da
palavra, da mesma forma existe um esprito comum, e mais ainda, suas
manifestaes mais altas, costumes e f comuns, que penetram nos
membros de um povo, smbolos de sua unidade e da concrdia de sua
vida, embora sem certeza, mas que nele e dele se estendem com
crescente intensidade e alcanam plenamente todas as divises e ramos
de uma raa; e, sobretudo, de maneira mais perfeita, as famlias cujo
parentesco remonta formao primitiva e importante de uma
associao orgnica dos seres, pelo sangue ou por aliana, que a famlia
antes de ser a famlia, momento em que ela j possui uma realidade
semelhante sua.
Tnnies (1995, p. 240) conclui que no conceito de vizinhana e no de parentesco
as pessoas estejam sob o mesmo teto, ou muito prximas, enquanto no conceito de
amizade existe uma espcie de lao invisvel, um imperativo moral, uma reunio
mstica animada de algum modo por uma intuio e uma vontade criadora.
No caso de comunidades tradicionais, como os quilombos, esto presentes de
forma concomitante os aspectos provindos de comunidade territorial de sangue e
amizade. Essa situao se verifica porque os membros dessas comunidades, formadas
por poucas famlias, estabelecem unies conjugais, e, por conseguinte de parentesco;
vivem em habitaes prximas, criando o hbito da vida conjunta, caracterizando
vizinhana; partilham das mesmas condies de trabalho, modo de pensar e da mesma
f, constituindo assim laos de amizade.
22
Entende-se por comunidades tradicionais, conforme definido por Diegues (1999,
p. 2-3):
So consideradas populaes tradicionais no-indgenas os grupos:
caiara, aoriano, caipira, babaueiro, jangadeiro, pantaneiro, pastoreio,
quilombola, ribeirinho/caboclo amaznico, ribeirinho/caboclo no-
amaznico (varjeiro), sertanejo/vaqueiro e pescado artesanal.
Mais recentemente, o governo brasileiro por meio do decreto n 6.040/2007 (ver
anexo n 1), que institui a poltica nacional de desenvolvimento sustentvel dos povos e
comunidades tradicionais, em seu artigo 3 (BRASIL, 2007) compreende por:
I Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas
prprias de organizao social, que ocupam e usam territrios e
recursos naturais como condio para sua reproduo cultural, social,
religiosa, ancestral e econmica, utilizando conhecimentos, inovaes e
prticas gerados e transmitidos pela tradio;
Alain Bourdin (2001, p.31) acredita que a comunidade a matriz de toda
sociabilidade. Considera que o ser social se define pelo pertencimento a um grupo,
caracterizado por laos familiares, de lngua e territrio, que Peruzzo e Volpato (2009,
p.146) classificam como a busca pelas razes, por um sentimento de pertena - que todo
indivduo busca - pelo viver-junto, pela vida em famlia, pelo pertencer a um ns.
So locais herdados de fatores histricos e de identidade local que
podem estar manifestados nos bens culturais e no conjunto de regras
comuns vividas por seus membros e expressos na religio, na cultura,
na etnia, etc. (Peruzzo; Volpato 2009, p.146)
E ainda Bourdin (2001, 43) define que:
O local , pois, um lugar privilegiado de manifestao delas, se
admitirmos que as estruturas antropolgicas so principalmente um
conjunto de representaes e de cdigos transmitidos pela prtica, como
os mitos se exprimem nos ritos.
Tambm Manuel Castells em A era da informao (1999, p.79) exprime seu
conceito de comunidade afirmando que:
Contudo, no creio que seja impreciso afirmar que ambientes locais, per
se, no induzam um padro especfico de comportamento ou, ainda,
justamente por isso, uma identidade distintiva. O provvel argumento
dos autores comunitaristas, coerente com minha prpria observao
intercultural, que as pessoas resistem ao processo de individualizao
e atomizao, tendendo a agrupar-se em organizaes comunitrias que,
ao longo do tempo, geram um sentimento de pertena e, em ltima
anlise, em muitos casos, uma identidade cultural, comunal.
23
Louis Wirth (1973, p. 83) conceitua comunidade como Uma base territorial,
distribuio de homens, instituies e atividades, no espao, uma vida em conjunto
fundada no parentesco e interdependncia econmica, e uma vida econmica baseada
em mtua correspondncia de interesses.
MacIver e Page (1973, p. 122) Definem comunidade como:
o termo que aplicamos a um povoamento de pioneiros, a uma aldeia,
uma cidade, uma tribo ou uma nao. Onde quer que os membros de
qualquer grupo, pequeno ou grande, vivam juntos e de modo tal que
partilhem, no deste ou daquele interesse, mas das condies bsicas de
uma vida em comum, chamamos a esse grupo comunidade. O que
caracteriza comunidade que a vida de algum pode ser vivida dentro
dela. No se pode viver inteiramente dentro de uma empresa comercial
ou de uma igreja; pode-se viver inteiramente dentro de uma tribo ou de
uma cidade. O critrio bsico da comunidade, portanto, est em que
todas as relaes sociais de algum podem ser encontradas dentro dela.
Para MacIver e Page (1973, p. 123), em estudo publicado originalmente em
Londres, no ano de 1955, as bases da comunidade so localidade e sentimento de
comunidade. Os autores (1973, p. 123) consideram que:
Em sua grande maioria, as comunidades so fixas e extraem das
condies de sua localidade um forte lao de solidariedade. At certo
ponto esse lao local tem-se enfraquecido no mundo moderno em
virtude de se estenderem os meios de comunicao; isso
particularmente evidente atravs da penetrao de padres urbanos
dominantes em reas rurais.
Embora a localidade seja uma base territorial, normalmente fixa, o mesmo pode
ocorrer para um agrupamento nmade, sujeito a mudanas frequentes, com o territrio
escolhido, ou seja, a superfcie da terra ocupada por todos os membros juntos para
formar sua habitao local, mesmo que somente para determinado perodo. Para
MacIver e Page (1973, p. 124) ... a localidade, embora seja uma condio necessria,
no suficiente para criar uma comunidade. Uma comunidade, repetimos, uma rea
de vida em comum. [...] que se compartilha tanto de um modo de vida quanto da terra
comum..
Apesar do tempo e das mudanas transcorridos da poca em que tal conceito foi
formulado, as caractersticas apontadas ainda so aplicveis e vlidas para a
Comunidade Quilombola da Fazenda, acrescenta ainda a noo de famlia, que
principalmente nas sociedades primitivas e nas comunidades tradicionais, possuem
atributos de comunidade.
24
Hans Freyer (1973, p. 132) entende que A comunidade s pode ser
compreendida como um membro da srie temporal concreta das formas sociais
fundamentais, isto , como uma estrutura determinada, sustentada por uma constelao
especfica das energias humanas.
O autor destaca a importncia da existncia de um idioma no grupo social, de
forma que, a lngua viva em cada membro da comunidade. O idioma um dos mais
significativos smbolos da vida em comunidade, faz parte de sua estrutura, a lei
constitutiva de uma realidade social. Toda cultura , na opinio do autor, idioma, no
qual patrimnio cultural (usos, mitos, instrumentos, tcnicas) possui forma de existncia
e acham-se mo de qualquer membro pertencente ao grupo (FREYER, 1973, p. 133).
Freyer concebe comunidade como uma lei estrutural determinada da ordem
social. Um mundo vital, que essencialmente unidade e que circunda os homens de um
horizonte comum, rene o grupo inteiro em um grande ns. Todo o acontecer no
afeta o individuo, afeta a comunidade, afeta o conjunto, o ns(FREYER, 1973, p.
134).
Continuando, (FREYER, 1973, p. 135) diz:
Um povo moderno no , em princpio, comunidade no sentido de que a
lei constitutiva desta determine completamente sua existncia. Em sua
estrutura, todavia, acha-se estratificado o princpio de comunidade.
Como comunidade idiomtica, como comunidade poltica, como
comunidade de descendncia, o povo traz em si traos que lhe
emprestam, sem dvida, o carter de comunidade, mesmo quando estes
traos encontrem-se situados sob outras estruturas sociais.
Podemos considerar que um indivduo no membro de uma comunidade
apenas por viver nela, mas por participar da vida comum da comunidade (PARK;
BURGESS, 1973 p. 149).
Para definir comunidade Fichter (1973, p. 154) usa a seguinte descrio:
Uma palavra que rodeada de significados mltiplos e imprecisos
requer, naturalmente, uma cuidadosa definio tcnica: comunidade
um grupo territorial de indivduos com relaes recprocas, que se
servem de meios comuns para lograr fins comuns.
Uma comunidade essencialmente ligada ao solo, no sentido de que
os indivduos vivem permanentemente numa dada rea, tm conscincia
de pertencer tanto ao grupo como ao lugar e funcionam conjuntamente
nos principais assuntos da vida. A comunidade considerada sempre
em relao ao meio fsico. A comunidade , essencialmente, uma
agrupao ou uma rede de pequenos grupos, porm, em sua totalidade,
pode-se distingui-la em muitos aspectos como um grande grupo social.
25
Os membros da comunidade tm conscincia das necessidades dos
indivduos dentro e fora de seu grupo imediato e tendem a cooperar
estreitamente.
Cabe ressaltar a importncia do pensamento dos autores citados, para entender
as comunidades quilombolas. O fator de ligao ao solo (territrio) a caracterstica
principal. Vemos isso enfatizado pelos autores, fundamentalmente no tocante ao local.
Porm, deve-se considerar a importncia dos laos de sangue, a lngua e o consequente
sentimento de pertena classificados por Bourdin (2001); os fundamentos afetivos,
emotivos e tradicionais classificados por Weber (1973); os sentimentos de conforto to
bem assinalados por Bauman (2003); sentimento de pertena que consequentemente
define uma identidade cultural como afirmou Castells (1999); o conjunto de regras
comuns vividas por seus membros e expressos na religio, na cultura, e na etnia
identificados por Peruzzo e Volpato (2009) que geram fortes laos de cooperao,
interao, participao ativa, interesses coletivos acima dos individuais, confiana e
conjugao de interesses em comum (PERUZZO, 2003 p. 55-56); a base territorial, vida
em conjunto, interdependncia econmica citados por Wirth (1973); o sentimento de
comunidade [sentimento de pertena] e de localidade de MacIver e Page (1973); a vida
estruturada no grupo e no focada s no indivduo, a comunidade pensada como um
grande ns apontado por Freyer (1973); a necessidade de vida em comum ou o viver a
comunidade, no bastando apenas ingresso na comunidade para dela ser membro,
tambm comum nas comunidades remanescentes de quilombo assinalado por Park e
Burgess (1973); a necessidade de seus membros quanto ligao ao solo, a conscincia
das necessidades dos indivduos e do grupo reconhecida por Fichter (1973).
Cicilia Peruzzo em Comunidades em tempo de rede, (2002, p. 280) considera
que:
A existncia de uma comunidade, a partir da viso dos clssicos,
pressupe a existncia de determinadas condies bsicas, tais como: a)
um processo de vida em comum atravs de relacionamentos e interao
intenso entre os seus membros; b) auto-suficincia (as relaes sociais
podem ser satisfeitas dentro da comunidade); c) cultura comum; d)
objetivos comuns; e) identidade natural e espontnea entre os interesses
de seus membros; f) conscincia de suas singularidades significativas;
g) sentimento de pertencimento; h) participao ativa de seus membros
na vida da comunidade; i) locus territorial especfico; j) linguagem
comum.
Peruzzo (2002, p. 280-281) salienta que caso no se encontre todas as
caractersticas acima, podemos considerar a existncia de comunidade caso algumas
26
dessas caractersticas sejam encontradas, notadamente as de interao, participao,
interesses comuns, identidade, carter cooperativo, so imprescindveis para sua
existncia, e para que essas condies se satisfaam e seus membros se relacionem entre
si necessrio que essas caractersticas de comunidade se faam atravs da
comunicao entre os membros da comunidade.
Dentre as caractersticas apontadas por Peruzzo (2002, p. 280-281) identificamos
na comunidade do Quilombo da Fazenda a predominncia das caractersticas de
processo de vida em comum; cultura e objetivos comuns; identidade natural entre seus
membros; interesse e carter cooperativo; entre outras.
Juan E. Diaz Bordenave em O que comunicao, (2006, p. 36) acredita que a
comunicao serve para que as pessoas se relacionem entre si, transformando a
realidade que as cerca, e conceitua que:
Sem a comunicao cada pessoa seria um mundo fechado em si mesmo.
Pela comunicao as pessoas compartilham experincias, ideias e
sentimentos. Ao se relacionarem como seres interdependentes,
influenciam-se mutuamente e, juntas, modificam a realidade onde esto
inseridas.
Para Bordenave (2006, p.17) a comunicao o canal pelo qual os padres de
vida so transmitidos, muito antes da idade escolar, pela comunicao que se aprende
a ser membro de uma comunidade ou sociedade. por meio da comunicao que se
obtm as crenas, valores, hbitos e tabus, no ocorrendo por instruo formal e sim
indiretamente, por pequenos eventos, s vezes insignificantes em si mesmos, atravs das
relaes com outras pessoas, aprendendo-se naturalmente e assimilando-se a cultura.
Bordenave (2006, p.19) salienta ainda: A comunicao confunde-se, assim, com a
prpria vida. Temos tanta conscincia de que comunicamos como de que respiramos e
andamos.
Dominique Wolton em preciso salvar a comunicao (2006, p. 14-15)
salienta que a comunicao um direito de pessoal, ligada a relao entre eu e o outro, e
entre eu e o mundo. Sendo o ideal da comunicao: informar, dialogar, compartilhar,
compreender-se.
Wolton (2006, p. 15) destaca que:
A comunicao uma espcie de servio pblico da vida, com duas
dimenses complementares. Comunicar antes de tudo expressar-se:
tenho algo a dizer, tenho o direito de diz-lo.... Todo mundo tem algo a dizer e o direito de se expressar. Mas expressar-se no basta para
garantir a comunicao, pois deixa de lado a segunda condio da
27
comunicao: saber se o outro est ouvindo e se est interessado no que
digo. (grifos do autor)
Pelos conceitos de comunidade discutidos observamos que, para validao da
vida em comunidade, ressalta-se a importncia da comunicao para que possam existir
relaes humanas, interaes das praticas cotidianas, dos valores, das crenas,
manuteno dos direitos e deveres individuais e coletivos de seus moradores. Cabe
salientar ainda que a comunicao na comunidade a propulsora da sedimentao da
cultura prpria do povo que nela reside e se identifica e que a comunidade existe
essencialmente em funo se seu povo (QUESADA, 1980, p. 14).
Para os autores referenciados acima, sobretudo, para Peruzzo (2002), Bordenave
(2006), Wolton (2006) e Quesada (1980), a comunicao uma necessidade bsica da
vida em comunidade; pelos processos comunicativos que se estabelecem as trocas de
experincias, saberes, fazeres e aes culturais com os membros da comunidade.
Na comunidade do Quilombo da Fazenda Picinguaba identificamos nitidamente
que as trocas de experincias, as transmisses dos saberes e dos fazeres, a manuteno
da cultura e das tradies se baseiam na comunicao oral, por meio das aes
familiares cotidianas e tambm por intermdio de pequenos eventos, conforme descritos
pelos autores acima.
2. Cultura, identidade e comunicao
No incio da segunda metade do sculo XX, surge na Inglaterra o CCCS
Centre for Contemporary Cultural Studies tendo como pais fundadores Richard
Hoggart, Raymond Williams e E. P. Thompson. Ligado ao English Departament da
Universidade de Birmingham, o foco de observao do CCCS a relao entre a cultura
contempornea e a sociedade, suas formas culturais, instituies e prticas culturais,
bem como suas relaes com a sociedade e as mudanas sociais (ESCOSTEGUY, 2002,
p. 152).
A autora (2002, p.152) considera os seguintes textos como fontes dos Estudos
Culturais Britnicos:
Richard Hoggart com The Uses of Literacy (1957), Raymond Williams
com Culture and Society (1958) e E. P. Thompsom com The Making of
the English Working-class (1963). O primeiro em parte autobiogrfico
e em parte histria cultural do meio do sculo XX. O segundo constri
28
um histrico do conceito de cultura, culminando com a ideia de que a
cultura comum ou ordinria pode ser vista como um modo de vida em condies de igualdade de existncia com o mundo das artes, literatura
e msica. E o terceiro reconstri uma parte da histria da sociedade
inglesa de um ponto de vista particular a histria dos de baixo.
Ainda para Escosteguy (2002, p. 156) a singularidade do projeto de estudos culturais do
CCCS gerada por uma concepo particular de cultura.
O grupo do CCCS amplia o conceito de cultura para que sejam
includos dois temas adicionais. Primeiro: A cultura no uma entidade
monoltica ou homognea, mas, ao contrrio, manifesta-se de maneira
diferenciada em qualquer formao social ou poca histrica. Segundo:
a cultura no significa simplesmente sabedoria recebida ou experincia
passiva, mas um grande nmero de intervenes ativas expressas mais notadamente atravs do discurso e da representao que podem tanto mudar a histria quanto transmitir o passado. Por acentuar a natureza
diferenciada da cultura, a perspectiva dos estudos culturais britnicos
pode relacionar a produo, distribuio e recepo culturais a prticas
econmicas que esto, por sua vez, intimamente relacionadas
constituio do sentido cultural. (AGGER, 1992, p.89 apud
ESCOSTEGUY)
O termo cultura para Raymond Willians (2000, p. 10) comea com o nome de
um processo, cultura (cultivo) de vegetais ou cultura (criao de animais) e por extenso
como cultura (cultivo ativo) da mente humana, tornando-se em fins do sculo XVIII ...
configurao ou generalizao do esprito que informava o modo de vida global de
determinado povo..
Willians em Cultura (2000, p. 11) esclarece que:
No uso mais geral, houve grande desenvolvimento do sentido cultura como cultivo ativo da mente. Podemos distinguir uma gama de
significados desde (I) um estado mental desenvolvido como em pessoa de cultura, pessoa culta, passando por (II) os processos desse desenvolvimento como interesses culturais, atividades culturais, at (III) os meios desses processos como cultura considerada como as artes e o trabalho intelectual do homem Em nossa poca, (III) o sentido mais comum, embora todos eles sejam
usuais. Ele coexiste, muitas vezes desconfortavelmente, com o uso
antropolgico e o amplo uso sociolgico para indicar modo de vida global de determinado povo ou de algum outro grupo social. (grifos do autor).
Interessam-nos nesse estudo, apoiados nos conceitos de Williams, o uso do
termo cultura como modo de vida de determinado povo, ou de grupo social,
produzida em estreita relao com a estrutura social Gonzlez (1990, p. 13), como
resultado, a cultura est em toda parte e atua em todos os nveis sociais.
29
Gonzlez (1990, p.27) baseado nas teorias de Taylor, sintetiza que a cultura se
define como o conjunto de produtos intelectuais e materiais da sociedade
(conhecimento, crenas, arte, moral, direito, costumes e outros hbitos e capacidades
adquiridas pelo homem enquanto membro da sociedade). O autor seguindo ainda sobre
a teoria tayloriana nos traz o pensamento de Franz Boas: A cultura inclui todas as
manifestaes de hbitos sociais de uma comunidade, as reaes do indivduo, na
medida em que so afetados pelos costumes do grupo em que vive, e os produtos das
atividades humanas na medida em que eles so determinados por tais costumes
(GONZLEZ 1990, p. 29).
O estudo de uma cultura no pode ser feito apenas atravs da descrio de seus
produtos, estes so resultados dos padres culturais assimilados e compartilhadas pelo
mesmo grupo social.
A cultura, como modelo social de comportamento, assimilada pelos membros
de um grupo social, atravs de diversos processos de socializao contnua. O efeito
sobre o grupo se reflete na personalidade bsica. Tal processo de assimilao
incorporado em funes que envolvem necessariamente relaes intersubjetivas. a
partir dessa assimilao, que os produtos intelectuais ou materiais adquirem
inteligibilidade, e se pode entender as semelhanas e personalidade distinta de um povo
(GONZLEZ 1990, p. 29).
Para Martino (2002, 23), quando falamos de cultura, trabalhamos um conceito
que implica num processo de comunicao:
A cultura implica a transmisso de um patrimnio atravs das geraes.
Observao que tambm vlida no que diz respeito aos prprios
elementos que se encontram em relao, pois a noo de homem
essencialmente da ordem do simblico, em oposio noo de animal homem, que remete apenas para o ser biolgico... Em outras palavras, o ser humano um ser da comunicao: consigo e com o mundo, ambos
entendidos como o produto da comunicao com outrem (grifos do
autor).
Conforme Wolton (2006, p. 22) os povos e as culturas querem ser respeitadas.
No h informao nem comunicao sem o respeito do outro, Wolton (2006, p.43)
salienta ainda que a cultura e a comunicao se tornaram um desafio to importante
quanto o meio ambiente, a sade, a educao.
Kellner, em A cultura da mdia (2001, p. 52-53) acredita que cultura como
produto superior ou como modo de vida est intimamente ligada com a comunicao.
Toda cultura para se tornar produto social, serve de mediadora da comunicao e
30
mediada por esta, portanto comunicacional por natureza. No h comunicao seu
cultura e no h cultura sem comunicao.
J Geertz (1989, p. 33) considera que a cultura, no apenas um ornamento da
existncia humana, mas uma condio essencial para ela a principal base de sua
especificidade. O autor (1989, p.35) sugere no existir o que chamamos de natureza
humana independente da cultura.
Os homens sem cultura no seriam os selvagens inteligentes de Lord of
the Flies, de Golding, atirados sabedoria cruel dos seus instintos
animais; nem seriam eles os bons selvagens do primitivismo iluminista,
ou at mesmo, como a antropologia insinua, os macacos
intrinsecamente talentosos que, por algum motivo, deixaram de se
encontrar. Eles seriam monstruosidades incontrolveis, com muito
poucos instintos teis, menos sentimentos reconhecveis e nenhum
intelecto: verdadeiros casos psiquitricos. Como nosso sistema nervoso
central e principalmente a maldio e glria que o coroam, o neocrtex cresceu, em sua maior parte, em interao com a cultura, ele incapaz de dirigir nosso comportamento ou organizar nossa
experincia sem a orientao fornecida por sistemas de smbolos
significantes.
Dentro desse contexto, ressaltamos que a comunicao relaciona-se com a
cultura, notadamente no campo das prticas cotidianas, nos modos de vida que as
pessoas desenvolvem para viver, nos costumes e nas tradies dos grupos ou
comunidades. A integrao comunicao e cultura acontece na transmisso dos saberes
e fazeres, via de regra pela oralidade, independentemente do tipo de comunidade.
2.1. Cultura e identidade
Para se compreender os aspectos culturais da vida cotidiana da populao
quilombola do Serto da Fazenda, assim como de que maneira construda a identidade
quilombola, lanaremos mo primeiramente de fundamentao terica elaborada por
estudiosos de cultura e identidade.
Para Denys Cuche em A noo da cultura nas cincias sociais (1999, p. 176),
as noes de cultura e identidade, embora tenham uma grande ligao, no podem ser
confundidas. A cultura pode existir sem conscincia de identidade. A cultura depende
em grande parte de processos inconscientes. A identidade remete a uma norma de
vinculao, necessariamente consciente, baseada em oposies simblicas.
31
Kellner (2001, p. 295) aponta que nas sociedades tradicionais, conforme o
folclore antropolgico e sociolgico, a identidade era fixa, slida e estvel. Existiam
papis sociais predeterminados por um sistema de tradies, mitos e sanses religiosas
que definiam o lugar de cada um no mundo:
O indivduo nascia e morria como membro do mesmo cl, de um
sistema fixo de parentesco, de uma mesma tribo ou grupo, com a
trajetria de vida fixada de antemo. Nas sociedades pr-modernas, a
identidade no era uma questo problemtica e no estava sujeita
reflexo ou discusso. Os indivduos no passavam por crises de
identidade, e esta no era nunca radicalmente modificada. Algum era
caador e membro da tribo, e por meio desse papel e dessas funes
obtinha sua identidade.
J a identidade na modernidade para Kellner (2001, p. 297) est ligada
individualidade, ao eu individual nico. Contrapondo a identidade nas sociedades
tradicionais estava ligada tribo, grupo era algo coletivo, na modernidade a identidade
funo da criao de individualidade particular.
De acordo com Stuart Hall, em A identidade cultural na ps-modernidade
(2003, p.85) O fortalecimento de identidades locais pode ser visto na forte relao
defensiva daqueles membros dos grupos tnicos dominantes que se sentem ameaados
pela presena de outras culturas. Hall (2003, p.38) considera que a identidade algo
formado ao longo do tempo. A identidade incompleta e est sempre em processo de
formao. Para Hall (2003, p.48-49) no nascemos com a identidade j estabelecida,
porm esta formada pela sua representao cultural gerando um sentimento de
pertencimento e de identidade.
Paul Gilroy, em Los estdios culturales britnicos y las trampas de la
identidad (1998, p. 66) acredita que a natureza infinitamente mutvel da humanidade
so marcas histricas e culturalmente diferentes vividas pela humanidade. Trabalho,
lngua e cultura vivida de forma interativa, foram identificados como o principal meio
para avaliar essa transformao social. Gilroy (1998, p. 69) acrescenta ainda que a
identidade pode ser usada para marcar dvidas sobre a qualidade das relaes
estabelecidas entre as semelhanas superficiais e profundas dos seres humanos, e
tambm entre as interioridades parecidas e exterioridades diferentes.
Cuche (1999, p. 176) entende que a identidade cultural um componente da
identidade social, onde a identidade social de um indivduo caracterizada pelo
conjunto de sua vinculaes em um sistema social: vinculao a uma classe sexual, a
uma classe de idade, a uma classe social, a uma nao, etc. A identidade permite que o
32
indivduo se localize em um sistema e seja localizado socialmente.. Mas a identidade
social no diz respeito somente ao indivduo, mas tambm aos grupos, tendo ainda os
aspectos da incluso ou da excluso, baseados na diferena cultural.
Entre as teorias elencadas por Cuche (1999, p. 178-180) sobre identidade
cultural destacamos a abordagem culturalista, onde a nfase est na herana cultural,
ligada socializao do indivduo dentro do seu grupo cultural, identificando-se com
seu grupo de origem; j a teoria primordialista considera a identidade etno-cultural, pois
no grupo tnico que se partilham as emoes e solidariedades mais profundas.
Assim, a concepo de identidade cultural das teorias elencadas por Denys
Cuche (1999) acima mostram que em ambos os casos existem critrios determinantes
como a lngua, a cultura, a religio, o vnculo com o territrio etc. Dessa forma Cuche
(1999, p. 180) destaca que: ... um grupo sem lngua prpria, sem cultura prpria, sem
territrio prprio, e mesmo, sem fentipo prprio, no pode pretender constituir um
grupo etno-cultural. No pode reivindicar uma identidade cultural autntica..
Bauman, (2005, p. 17) pondera que o pertencimento e a identidade no possuem
solidez como uma rocha, no so garantidos por toda uma vida, so negociveis e at
revogveis, deixando essas decises para o prprio indivduo. Contrape dessa forma
com as identidades ao estilo antigo, rgidas e inegociveis que simplesmente no
funcionam (BAUMAN, 2005, P. 33).
O conceito de identidade para Ulpiano Bezerra de Meneses (1999, p.182)
implica em semelhana a si prprio, formulado como condio de vida psquica e
social. Nessa linha, est muito mais prximo dos processos de re-conhecimento do que
conhecimento. A busca de identidade se relaciona muito melhor com o tradicional do
que com o novo, pois o novo representa a ameaa.
Ortiz (2012, p. 8) conceitua que toda identidade uma construo simblica, ou
seja, no existe uma identidade autntica, mas uma pluralidade de identidades,
construdas por diferentes grupos sociais em diferentes momentos histricos.
2.2. Cultura popular
Jorge Gonzlez em Sociologia de las culturas subalternas (1990, p. 13-15)
considera que toda cultura tem uma ntima relao com as estruturas sociais e focaliza a
discusso sobre os termos cultura e popular.
33
Gonzlez (1990, p. 66) afirma que a cultura popular, deve ser entendida no s
pelo seu contedo, prticas e desempenhos, porm como uma competncia cultural,
como uma srie de modos de produo e percepes simblicas prprias do povo.
A definio de cultura, no entendimento de Franz Boas, (apud GONZLEZ,
1990, p. 27-28):
A cultura, inclui todas as manifestaes e hbitos sociais de uma
comunidade, as reaes do indivduo, na medida em que forem afetados
pelos costumes do grupo em que vive e dos produtos das atividades
humanas, na medida em que so determinadas por esses costumes.
Popular na viso de (GONZLEZ, 1990, p. 78)
no um conceito abstrato, popular, subalterno, dominado constituem relaes histricas e sociais da condio de subordinao e
de dominao dos grupos marginalizados, tendo em vista que a
subordinao historicamente produzida carter central do popular.
Gonzlez (1990, P.79) afirma que para um estudo da sociologia das culturas
populares no est restrito s particularidades das culturas marginalizadas, folclricas
ou tradicionais, mas constituem processos de estruturao, consolidao e
desestruturao ou crise da hegemonia de um bloco histrico...
Hall, em A dispora (2011, p.232) entende que a cultura popular est
associada s questes da tradio e s formas tradicionais de vida. A cultura popular o
terreno onde as transformaes so operadas. Por cultura entende-se o terreno das
prticas, representaes, linguagens e costumes concretos de qualquer sociedade
historicamente especfica (HALL, 2011, p.313).
Em A Identidade Cultural na Ps-Modernidade (2003, p.50), Hall considera
que as culturas nacionais so compostas pelas instituies culturais, smbolos e
representaes, a construo de sentidos que esto contidos nas estrias que so
contadas sobre a nao, suas memrias que conectam seu presente com seu passado.
Renato Ortiz em A moderna tradio brasileira (2006, p. 38) nos lembra que
pela Escola de Frankfurt que o tema sociedade e cultura de massa ganha destaque nesse
momento de fortalecimento da indstria cultural no Brasil, atravs de revistas como
Tempo Brasileiro com um nmero especial sobre comunicao e cultura de massa, e a
Revista de Civilizao Brasileira.
Renato Ortiz (2006, p. 15) considera que na dcada de 1940 j h a presena de
atividades vinculadas a cultura popular de massa no Brasil, porm esse tipo de cultura
passa a ser objeto de maior ateno nos idos dos anos 1960.
34
somente em 1966 que vamos encontrar um primeiro artigo de Ferreira
Gullar sobre a esttica na sociedade de massa. Seguindo as reflexes da
Escola de Frankfurt, o autor busca ampliar o quadro de compreenso da
problemtica cultural entre ns.
Ainda para Ortiz (2012, p.127-128) a temtica do popular e do nacional
sempre presente quando se fala de cultura brasileira. O autor caracteriza o brasileiro
como homem sincrtico, produto do cruzamento de culturas distintas (branca, negra e
amerndia); o brasileiro (no sentido de povo) seria constitudo por um elemento popular
originrio da miscigenao cultural, considera ainda:
Identidade nacional e cultura popular se associam ainda aos
movimentos polticos e intelectuais nos anos 1950 e 1960 e que se
propem redefinir a problemtica brasileira em termos de oposio ao
colonialismo. [...] O movimento modernista, que busca nos anos 1920
uma identidade brasileira, se prolonga em Mrio de Andrade em seus
estudos sobre o folclore, e na sua tentativa de criar um Departamento de
Cultura, que entre outros aspectos se volta para a cultura popular.
Roberto DaMatta em O que faz o Brasil, Brasil? (1986, p.17) diz que:
A construo de uma identidade social, ento, como a construo de
uma sociedade, feita de afirmativas e de negativas diante de certas
questes. Tome uma lista de tudo o que voc considera importante leis, ideias relativas famlia, casamento e sexualidade; dinheiro; poder
poltico; religio; artes; comida e prazer em geral e com ela voc poder saber quem quem. [...] Descobrindo como as pessoas se
posicionam e atualizam as coisas desta lista, voc far um inventrio de identidades sociais e de sociedades. [...] Porque, para mim, a palavra cultura exprime precisamente um estilo, um modo e um
jeito, repito, de fazer coisas.
A cultura popular e o folclore, no entender de Ortiz (2012, p. 105) devem ser
preservados considerando-se que a cultura a tradio e a identidade e o folclore deve
ser protegido da contaminao profana do mundo moderno. O popular concebido
como beaut du mort, ele reificado e objetivado enquanto memria nacional. [...]
Popular cultura, a massa tcnica.
Alceu Maynard de Arajo, em Cultura popular brasileira (1973a, p. 9)
delimita as reas culturais considerando os padres culturais tipificadores relacionados
aos fatos folclricos. Dessa forma, o fato folclrico como fenmeno cultural, traz em
seu bojo caractersticas do popular, do annimo e do tradicional, transmitindo, via de
regra pela oralidade, as suas variadas manifestaes.
Para Maynard (1973b, p. 14) rea cultural o espao geogrfico onde grupos
apresentam condies semelhantes de cultura, com valores comuns e constantes, onde
35
h caractersticas prprias de uma determinada cultura, mesmo que diferente de outra
cultura mesmo que vizinha.
Nstor Garcia Canclini, em Culturas Hbridas (2011, p. 22) considera que o
popular corre menor risco de inteno do que de transformao. Para o autor nunca
houve tantos artesos, ou artistas populares; seus produtos tm caractersticas
tradicionais e modernas, atraindo turistas e consumidores urbanos que veem nesses bens
folclricos caractersticas nicas e personalizadas, no encontradas nos bens
industrializados.
Ecla Bosi (1977, p. 53-55) Considera que a definio de cultura popular no
uma tarefa simples, fundamentada em autores como Gramsci; Oswaldo Elias Xidieh e
Florestan Fernandes, a autora conclui que:
o folclore consiste em uma educao informal que se d ao lado da sistemtica; uma educao que orienta e revigora comportamentos, faz
participar de crenas e valores, perpetua um universo simblico. Se as condies da vida social que garantem a sua persistncia so
ameaadas, tambm o folclore entra em crise. Mas, ainda assim, pode
oferecer amparo cultural e emocional populao que vem da roa e
deve integrar-se no meio urbano.
Quando a cultura popular entra em crise, quando se empobrece e
desagrega, os prejuzos que da advm afetam a segurana subjetiva do homem que se reduz de seu papel de criador e renovador da cultura para
o de consumidor. Na cultura popular, novo e arcaico se entrelaam: os elementos mais
abstratos do folclore podem persistir atravs dos tempos e muito alm
da situao em que se formaram.
Percebe-se bem a situao descrita por Bosi quando nos deparamos na metrpole
com elementos vindos de comunidades tradicionais, onde na comunidade de origem
esse integrante representava algumas vezes uma autoridade em determinada
manifestao folclrica. Na cidade grande fica deslocado, voltado exclusivamente
atividade para seu sustento, devido dificuldade de comunicao, no encontrando
ressonncia para sua prpria cultura, gerando falta de integrao com o novo meio,
comprometendo a identidade, provocando o esquecimento da cultura e de suas tradies
e valores ancestrais.
No entanto, na medida em que existe a oportunidade de exercer algum tipo de
manifestao com utilizao de elementos folclricos, esses representantes de
comunidades tradicionais despontam demonstrando seus valores e sua cultura.
36
2.3. Cultura caiara
As manifestaes culturais das regies litorneas do sudeste do Brasil, chamadas
de cultura caiara significam para Antonio Carlos Diegues (2004, v.1, p.22-23) um
conjunto de valores, vises de mundo, prticas e smbolos que orientam os indivduos
em suas relaes com a natureza e com os membros da sociedade, e que se expressam
em produtos materiais como moradia, instrumentos de trabalho e tambm no materiais
como a dana, a linguagem, a msica e os rituais religiosos. So relaes sociais
marcadas pela reciprocidade, de tecnologias patrimoniais, de saberes associados ao
tempo da natureza, periodicidade das atividades da terra e do mar. Essa tradio,
herdada dos antepassados, constantemente reatualizada e transmitida s novas
geraes pela oralidade. por meio da tradio que so usadas as categorias de tempo e
espao e, por meio dessas ltimas, que so interpretados os fenmenos naturais.
Diegues segue considerando que usado tambm o conceito de modo de vida caiara,
ou seja, a maneira como as comunidades litorneas organizam a produo material, as
relaes sociais e simblicas dentro de um contexto sociocultural.
Os caiaras, assim como os quilombolas e outras comunidades tradicionais,
receberam de ndios e negros os saberes e fazeres, herana lingustica, tcnicas
patrimoniais, mitos e lendas (DIEGUES, 2004, v.1, p. 23).
As comunidades quilombolas so grupos tnicos predominantemente
constitudos pela populao negra rural ou urbana , que se autodefinem a partir das
relaes com a terra, o parentesco, o territrio, a ancestralidade, as tradies e prticas
culturais prprias. Estima-se que em todo o Pas existam mais de trs mil comunidades
quilombolas (QUILOMBOLAS, s.d.).
Os caiaras, fruto da miscigenao formou uma populao mestia que se
espraiou por toda a orla martima. Essa populao mestia, com o passar do tempo
espalhou-se pelo litoral, adentrou pelo serto construindo um Brasil rural, uma cultura
rstica brasileira. Esse modo de vida fruto das caractersticas de vida dos portugueses
aqui chegados, do indgena que aqui estava e do negro trazido da frica. Nessa cultura,
em que a agricultura de subexistncia baseada principalmente no manejo da mandioca,
fabricao de farinha, da prtica da pesca. O espao ocupado pelo caiara no litoral
paulista est limitado aos confrontos com a Serra do Mar. O mar e a serra na luta pela
37
sobrevivncia. Esse modelo de ocupao do espao e as caractersticas geogrficas
marcam a forma de ocupao diferenciada desse litoral (DIEGUES, 2005, v.2 p.22-23).
Conforme Diegues (2005, v.2, p.26-27), os conhecimentos dos caiaras foram
acumulados pelos sculos de convivncia e dependncia em relao natureza e da
observao atenta das ocorrncias, e transmitido oralmente de gerao em gerao. O
conhecimento fundamentado na tradio e as prticas culturais tm uma fora
significativa que comandam as atividades dos caiaras, sendo seu ponto de referncia a
localizao da comunidade. Embora cada comunidade caiara apresente configurao
particular e diferenciada existem componentes gerais que as unificam enquanto
pertencentes a um universo comum e singular. Observa-se nesses agrupamentos
litorneos, uma noo de espao ou territorialidade prpria que compreende os
domnios da terra e das guas, do mar e do rio. H, em cada um, espaos internos com
microambientes prprios que demarcam formas de ocupao econmica e social, de
acordo com suas peculiaridades, como se pode verificar:
Mata: o espao tomado pela floresta, com um grande nmero de
espcies vegetais. A se pratica a caa, busca-se a matria-prima para o
artesanato, ervas medicinais e faz-se a roa, aps a derrubada.
Terra: o espao de moradia e lazer das vizinhanas e dos povoados,
onde se desenvolve grande parte da vida comunitria. constituda, em
geral, pelas margens dos rios, do esturio e das praias. Muitas casas
caiaras so construdas atrs do jandu, vegetao de restinga, e so
ligadas gua pelos portinhos onde so guardadas as canoas.
Mar/Rio: alm de serem o locus de atividades pesqueiras e extrativas,
constituem espao de circulao (passeio e transporte).
Terra/gua: constituem, simultaneamente, domnios materiais e sociais
em torno dos quais as comunidades locais vm produzindo no tempo e no espao um modo de vida prprio, extraindo do mangue, do mar, do rio e da terra, as fontes bsicas de sua reproduo econmica e social.
Isso se d de acordo com as especificidades de cada um desses
ambientes e atividades que lhes so correspondentes, ainda que com
variaes no tempo. A pesca, a coleta de frutos estuarinos e terrestres e
a lavoura de subsistncia (alm da caa, no passado) so os modos
produtivos por meio dos quais as populaes locais vm, secularmente,
relacionando-se com os ecossistemas especficos de que fazem parte.
Espaos produtivos explorados pelas comunidades locais em sua
tradio histrica (DIEGUES, 2005, v.2, p.26-27).
A agricultura tradicional caiara guarda influncia marcante da tradio
indgena. Suas roas se enquadram no sistema de rotatividade do cultivo da terra
destinada plantao, por vrios anos. Os terrenos so classificados pelos caiaras
como terra braba e terra mansa. Terra braba a terra ocupada pelo avano progressivo
da mata. Terra mansa a rea de cultivo onde a rotatividade da lavoura tornou o manejo
38
do solo mais fcil. Nos terreiros dos caiaras existe sempre um espao reservado ao
pomar, podendo-se encontrar laranja, limo, banana, carambola, mamo, pitanga e
outras rvores frutferas, alm, dos temperos para uso no preparo do peixe e da carne,
como cheiro-verde, salsinha, cebolinha, coentro, alfavaca e muitas espcies de pimenta.
So encontradas ainda plantas consideradas medicinais como a abuta (fortificante),
alecrim, aroeira, arruda, boldo, camomila e outras mais (DIEGUES, 2005, v.2 p.28-31).
As dificuldades geradas pelo isolamento, a precariedade das condies
econmicas e a dificuldade de acesso aos bens de consumo, contriburam para o hbito
de se fazer em casa objetos de utilidade domstica. Esse trabalho artesanal acabou
ganhando interesse dos moradores da cidade e gerando complementao da renda
familiar aos caiaras. Os materiais mais comuns utilizados na confeco dos artesanatos
normalmente utilizados so a argila, caxeta (espcie de madeira branca utilizada na
fabricao de brinquedos), cip, piaaba, madeiras de lei, taboa, junco, taquara, ub,
sementes e macela (para confeco de travesseiros) (DIEGUES, 2005, v.2 p.39-44).
Na comunidade do Serto da Fazenda pudemos constatar essas particularidades
descritas por Diegues. A comunidade se autorreconhece como Remanescente de
Quilombo, est bem prxima ao litoral, cerca de 5 (cinco) quilmetros, conservando
dessa forma caractersticas de populao caiara, alm da quilombola.
O espao ocupado pelo caiara, ou seja, sua casa e seu terreiro tm um valor
sagrado. simples, porm acolhedora e funcional. A comunicao entre as casas, o
caminho, de uso coletivo, porm o controle do proprietrio do terreno. O terreiro,
ptio ou quintal da casa exclusivo de seu usufruto e a zona de sua jurisdio moral.
A casa e o terreiro fazem pa