1. James Rachels | Stuart Rachels os elementos da filosofia
moral 7a edio 2013 Verso impressa desta obra: 2013 Traduo e reviso
tcnica desta obra: Delamar Jos Volpato Dutra Professor de Filosofia
do Direito do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC). Doutor em Filosofia pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). AMGH Editora Ltda.
2. Sobre os autores James Rachels (19412003) escreveu The End
of Life: Euthanasia and Morality (1986), Created from Animals: The
Moral Implications of Darwinism (1990), Can Ethics Provide Answers?
And Other Essays in Moral Philosophy (1997), Problems from
Philosophy (primeira edio, 2005) e The Legacy of Socrates: Essays
in Moral Philosophy (2007). Seu website
http://www.jamesrachels.org/. Stuart Rachels professor associado de
Filosofia na University of Alabama. Ele tem revisado vrios dos
livros de James Rachels, incluindo Problems from Philo- sophy
(terceira edio, 2012) e The Right Thing to Do (sexta edio, 2012).
Stuart ganhou o Campeonato de Xadrez dos Estados Unidos em 1989,
aos 20 anos. Atual mente ele um Bronze Life Master no jogo de
bridge. Seu website http://www. jamesrachels.org/stuart/.
3. Sumrio Prefcio
......................................................................................................9
1 O que a moralidade?
...........................................................................13
2 O desafio do relativismo cultural
.............................................................. 26 3
Subjetivismo na tica
...........................................................................
44 4 A moralidade depende da religio?
............................................................61 5
Egosmo tico
....................................................................................
75 6 A Teoria do Contrato Social
....................................................................
93 7 A abordagem utilitarista
.......................................................................109
8 O debate sobre o utilitarismo
................................................................120
9 H regras morais absolutas?
..................................................................135
10 Kant e o respeito pelas pessoas
.............................................................146 11
Feminismo e a tica do cuidado
.............................................................156 12
tica da virtude
..................................................................................167
13 Como seria uma teoria moral satisfatria?
.................................................183 Notas sobre as
fontes
..................................................................................193
ndice
.....................................................................................................
205
4. Prefcio Scrates, um dos primeiros e maiores filsofos morais,
disse que a moralidade no sobre uma questo menor, mas como ns
devemos viver. Este livro uma introduo filosofia moral, concebida
em sentido amplo. Ao escrever este livro, fui guiado pelos
seguintes pensamentos: suponha que algum nunca tenha estudado tica,
mas queira agora fazer isso. Quais so as primeiras coisas que ele
ou ela deveria aprender? Meu livro uma resposta a esta questo. No
tento cobrir todos os tpicos da rea, nem completo o tratamento que
fao de qualquer tpico. Em vez disso, tento discutir as ideias que
um nefito deveria enfrentar primeiro. Os captulos foram escritos de
tal forma que eles podem ser lidos inde- pendentemente um do outro.
Com efeito, eles so ensaios separados. Assim, se algum estiver
interessado em egosmo tico, pode ir direto ao Captulo 5 e encontrar
uma introduo autnoma a tal teoria. Quando lidos na sua ordem, porm,
os captulos trazem, mais ou menos, uma histria com continuidade. O
primeiro apresenta uma concepo mnima do que moralidade. Os captulos
intermedirios cobrem as teorias ticas mais importantes. O ltimo
captulo apresenta como eu penso que deveria ser uma teoria moral
satisfatria. O objetivo deste livro no providenciar uma rede, um
tratamento unifi- cado da verdade sobre tica. Esse seria um modo
empobrecido de introduzir a matria. A filosofia no como a fsica. Na
fsica, h um amplo corpo de verdades estabelecidas que os iniciantes
tm que pacientemente dominar. (Professores de fsica raramente
convidam seus estudantes a terem suas prprias ideias sobre as leis
da termodinmica.) Certamente h controvrsias no resolvidas na fsica,
mas isso tem lugar em face do pano de fundo de um acordo amplo. Na
filosofia, em contraste, tudo controverso ou quase tudo. Algumas
das questes funda- mentais ainda esto em disputa. Uma boa introduo
no tentar esconder esse fato um tanto embaraoso.
5. 10 James Rachels & Stuart Rachels Voc encontrar aqui,
ento, um exame das ideias, teorias e argumentos em contenda. Acho
algumas dessas propostas mais atraentes do que outras, e um filsofo
que fizesse uma avaliao diferente sem dvida escreveria um livro
diferente. Assim, meu prprio ponto de vista colore a apresentao.
Mas ten- to mostrar as ideias em disputa de forma equitativa e,
quando fao julgamento sobre um argumento, fao o melhor para
explicar o porqu. A filosofia, como a moralidade, do incio ao fim
um exerccio de razo. Ns devemos abraar as ideias que so mais bem
apoiadas pelos argumentos. Se este livro tiver sucesso, ento o
leitor poder comear a avaliar no que repousa o peso da razo. SOBRE
A NOVA EDIO A stima edio no inclui maiores mudanas, porm muitas
partes do livro foram melhoradas. No Captulo 1, O que a
moralidade?, adicionei detalhes em relao pretenso de que o nosso
conceito de morte mudou nos ltimos 50 anos (Seo Primeiro exemplo: o
Beb Theresa). No Captulo 2, O desafio do relativismo cultural,
expandi a discusso sobre a monogamia (Seo O que ns podemos aprender
do relativismo cultural). No Captulo 3, Subjetivismo na tica,
substitu a citao de Jerry Falwell por uma de Michele Bachmann (Seo
A ideia bsica do subjetivismo tico). Corrigi alguma terminologia
sobre crenas e atitudes advindas do livro de Charles L. Stevenson
(Seo O segundo estgio: emotivismo) e expandi nossa discusso da
homossexualidade (Seo A questo da homossexualidade). No Captulo 4,
A moralidade depende da religio?, corrigi o nosso tra- tamento da
histria do pensamento catlico sobre o aborto. Em edies
prvias,nsdissemos,erroneamente,queoalegadopontodehomunculi sobre o
microscpio primitivo teve um efeito profundo na posio da Igreja a
respeito do assunto. No Captulo 5, Egosmo tico, o princpio do igual
tratamento foi refor- mulado para dizer: ns devemos tratar as
pessoas igualmente, a menos que haja uma boa razo para no faz-lo. O
Captulo 6 agora se chama A Teoria do Contrato Social (no lugar de A
ideia do contrato social).
6. Os elementos da filosofia moral 11 No Captulo 8, O debate
sobre o utilitarismo, reformulei o tratamento do utilitarismo
clssico que abre o captulo. O novo tratamento explica o que igual
considerao. Ademais, agora menciono a acusao de que o utilitarismo
poderia apoiar a tirania da maioria em razo do seu atropelo dos
direitos individuais (Seo As consequncias so tudo o que importa?).
Finalmente, a primeira defesa do utilitarismo foi renomeada como
Contestando as consequncias (no lugar de Negando que as
consequncias possam ser boas) (Seo A defesa do utilitarismo). No
final do Captulo 10, Kant e o respeito pelas pessoas, agora explano
por que o debate entre retributivistas e utilitaristas pode se
converter no debate sobre a vontade livre. O Captulo 12 chama-se
agora tica da virtude (em vez de As ticas da virtude). Reescrevi a
subseo sobre a honestidade (Seo As virtudes). Outras mudanas so
muito pequenas para mencionar. AGRADECIMENTOS Eu agradeo pela ajuda
de Keith Augustine, Thomas Avery, Luke Barber, Matthew Brophy,
Michael Huemer, Kaave Lajevardi, Sean McAleer, Cayce Moore, Filimon
Peonidis, Howard Pospesel, Brian Schimpf, Stephen J. Sullivan,
Steve Sverdlik e aos marcantes revisores annimos da McGraw-Hill.
Meus dbitos maiores so para meu assistente de pesquisa Daniel
Hollingshead; para minha esposa, Profes- sora Heather Elliott; e
para minha me, Carol Rachels, cujo conselho novamente se provou de
uma ajuda enorme. Ns todos sentimos falta de James Rachels, o qual
foi o nico autor deste livro em suas quatro primeiras edies. Para
saber mais sobre ele, visite www.jamesrachels.org. Diga-me os seus
pensamentos sobre o livro: [email protected]. Stuart
Rachels
7. 1 O que a moralidade? Ns no estamos discutindo uma questo
menor, mas como ns devemos viver. Scrates, na Repblica de Plato
(390 a.C., aproximadamente) O PROBLEMA DA DEFINIO A filosofia moral
o estudo do que a moralidade e do que ela requer de ns. Como
Scrates disse, sobre como ns devemos viver e por qu. Seria til se
pudssemos comear com uma definio simples, incontroversa, do que a
mo- ralidade , mas isso se mostra impossvel. H muitas teorias
rivais, cada uma expondo uma concepo diferente do que significa
viver moralmente, sendo que qualquer definio que v alm da formulao
simples de Scrates est fadada a ofender ao menos uma dessas
concepes. Isso deve nos tornar cautelosos, mas no nos paralisar.
Neste captulo irei descrever a concepo mnima de moralidade. Como o
nome sugere, a concep- o mnima um ncleo que toda teoria moral deve
aceitar, ao menos como um ponto de partida. Porm, primeiramente,
iremos analisar algumas controvrsias que tm a ver com crianas
portadoras de deficincia.* Nossa discusso trar luz os traos da
concepo mnima. PRIMEIRO EXEMPLO: O BEB THERESA Theresa Ann Campo
Pearson, uma criana conhecida do pblico como Beb Theresa, nasceu na
Flrida em 1992. O Beb Theresa tinha anencefalia, uma das * N. de
T.: A palavra handicapped ser traduzida por deficiente porque esta
a terminologia legal adotada no Decreto N. 6.949, de 25 de agosto
de 2009. Promulga a Conveno Internacional sobre os Direitos das
Pessoas com Deficincia e seu Protocolo Facultativo, assinados em
Nova York, em 30 de maro de 2007.
8. 14 James Rachels & Stuart Rachels principais doenas
genticas. Crianas anencfalas so muitas vezes nominadas de bebs sem
crebro, porm isso no bem acurado. Faltam partes importantes do
crebro o crtex cerebral (cerebrum) e o cerebelo , assim como o topo
do crnio. Contudo, o tronco cerebral ainda est l, e assim o beb
pode ainda respi- rar e ter batimentos cardacos. Nos Estados
Unidos, a maioria dos casos de anen- cefalia so detectados durante
a gestao, sendo os fetos, em geral, abortados. Em torno de 350
nascem vivos a cada ano e eles morrem em alguns dias. A histria do
Beb Theresa notvel somente porque seus pais fizeram um requerimento
no usual. Sabendo que o seu beb morreria cedo e nunca poderia ser
consciente, os pais de Theresa doaram seus rgos para transplante
imediato. Eles pensaram que seus rins, fgado, corao, pulmes e olhos
poderiam ir para outras crianas que poderiam se beneficiar deles.
Seus mdicos concordaram. Milhares de crianas necessitam de
transplante a cada ano, e nunca h rgos suficientes disponveis.
Contudo, os rgos de Theresa no foram usados porque a lei da Flrida
probe a remoo de rgos at a morte do doador. Quando o Beb Theresa
morreu, oito dias depois, j foi tarde demais seus rgos tinham se
deteriorado muito para serem retirados e transplantados. O caso do
Beb Theresa foi amplamente debatido. Deveria ela ter sido mor- ta,
de tal forma que seus rgos poderiam ter sido usados para salvar
outras crianas? Vrios eticistas profissionais pessoas empregadas
por universidades, hospitais e faculdades de direito que so pagas
para pensar sobre essas coisas foram entrevistados pela imprensa
para comentar o caso. A maioria deles dis- cordou dos pais e dos
mdicos. Como alternativa, eles apelaram para princpios filosficos
venerveis para se opor retirada dos rgos. Parece simplesmente
horrvel usar pessoas como meios para os fins de outras pessoas,
disse um dos especialistas. Um outro explicou: antitico matar uma
pessoa A para salvar uma pessoa B. Um terceiro acrescentou: O que
os pais esto pedindo realmente para matar esse beb que est
morrendo, de tal forma que seus rgos possam ser usados por alguma
outra pessoa. Bem, esta realmente uma proposta hor- renda. ela
horrenda? As opinies foram divididas. Esses eticistas pensaram
assim, ao passo que os pais e os mdicos no. Mas ns estamos
interessados em mais do que as pessoas pensam. Queremos saber o que
verdadeiro. Estavam os pais certos ou errados em doarem para
transplante os rgos de seu beb? Para responder a essa questo,
devemos perguntar quais razes ou argumentos podem ser ofertados por
cada lado. O que pode ser dito para justificar o pedido dos pais ou
justificar a oposio a tal pedido?
9. Os elementos da filosofia moral 15 O argumento do benefcio
Os pais acreditavam que os rgos de Theresa no estavam lhe
proporcionando bem algum, porque ela no tinha conscincia e iria de
todo modo morrer cedo. As outras crianas, no entanto, poderiam se
beneficiar com eles. Desse modo, os pais parecem ter raciocinado do
modo seguinte: se ns podemos beneficiar algum sem causar dano a
ningum mais, ns devemos fazer isso. Transplantar os rgos poderia
beneficiar outras crianas sem causar dano ao Beb Theresa. Portanto,
ns devemos transplantar os seus rgos. isso correto? Nem todo
argumento perfeito. Em acrscimo ao conhecimento de quais argumentos
podem ser ofertados para um ponto de vista, ns tambm queremos
conhecer se tais argumentos so bons. Falando em ge- ral, um
argumento bom se seus pressupostos so verdadeiros e se a concluso
segue logicamente deles. Nesse caso, podemos pensar sobre a assero
de que no se causaria dano a Theresa. Afinal, ela iria morrer. No
melhor estar vivo do que estar morto? Porm, refletindo, parece
claro que nessas circunstncias trgicas, os pais estavam certos.
Estar vivo um benefcio somente se permite a voc continuar com
atividades e ter pensamentos, sentimentos e relaes com outras
pessoas em outras palavras, se permite a voc ter uma vida. Sem tais
coisas, a existncia biolgica no tem valor. Portanto, ainda que
Theresa pudesse continuar viva por mais alguns dias, isso no lhe
traria qualquer bem. O argumento do benefcio, portanto, fornece uma
razo poderosa para o transplante dos rgos. Quais argumentos existem
do outro lado? O argumento de que ns no devemos usar as pessoas
como meios Os eticistas que se opuseram ao transplante ofereceram
dois argumentos. O primeiro foi baseado na ideia de que errado usar
as pessoas como meios para os fins de outras pessoas. Retirar os
rgos de Theresa seria us-la para beneficiar outras crianas,
portanto, no deveria ser feito. esse um bom argumento? A ideia de
que no devemos usar as pessoas , obviamente, atraente, porm uma noo
vaga que precisa ser esclarecida. O que exatamente ela significa?
Usar pessoas envolve tipicamente violar a sua autonomia a sua
habilidade de decidir por si mesmas como viver as suas vi- das, de
acordo com seus prprios desejos e valores. A autonomia de uma
pessoa pode ser violada atravs de manipulao, fraude e engano. Por
exemplo, eu posso
10. 16 James Rachels & Stuart Rachels fingir ser seu amigo
quando na verdade estou s interessado em sair com sua irm ou posso
mentir s para voc me dar dinheiro ou posso convenc-lo de que voc
apreciar ir ao cinema quando na verdade o que quero s que voc me d
uma carona. Em todos os casos, estou manipulando voc a fim de obter
alguma coisa para mim mesmo. A autonomia tambm violada quando as
pessoas so foradas a fazer alguma coisa contra a sua vontade. Isso
explica por que usar as pessoas errado. errado porque frustra a
autonomia das pessoas. Porm, retirar os rgos do Beb Theresa no
frustraria a sua autonomia, porque ela no tem autonomia ela no pode
tomar decises, no tem desejos e no pode valorar qualquer coisa.
Seria a retirada de seus rgos us-la em qualquer sentido moralmente
relevante? Ns poderamos, obviamente, usar seus rgos para o benefcio
de alguma outra pessoa. Ora, fazemos isso a cada vez que um
transplante feito. Poderamos tambm estar usando os seus rgos sem
permisso. Isso tornaria o ato errado? Se ns estivssemos usando-os
contra os seus desejos, ento, essa poderia ser uma razo para
objetar, pois violaria a sua autonomia. Mas o Beb Theresa no tem
desejos. Quando as pessoas so incapazes de tomar decises por si
mesmas e outros tm que fazer isso por elas, h duas diretivas
razoveis que podem ser adotadas. Primeira, ns podemos perguntar: O
que seria no seu melhor interesse?. Se aplicamos esse padro ao Beb
Theresa, no haveria objeo em retirar os seus rgos, pois, como j
notamos, os seus interesses no seriam afetados. Ela no consciente e
morrer logo no interessando o que for feito. A segunda diretiva
apela s preferncias prprias da pessoa: ns devemos perguntar: Se ela
pudesse nos dizer o que ela quer, o que ela diria?. Essa espcie de
pensamento til quando estamos tratando com pessoas que tm prefern-
cias (ou uma vez as tiveram), mas no as podem expressar por
exemplo, um pa- ciente comatoso que fez um testamento vital antes
de cair no coma. Mas, lamen- tavelmente, o Beb Theresa no tem
preferncia sobre coisa alguma, nem nunca teve. Portanto, no podemos
obter qualquer diretiva dela, mesmo em nossa ima- ginao. A concluso
que ns temos que fazer o que achamos ser o melhor. O argumento a
partir da incorreo de matar Os eticistas tambm apelaram ao princpio
de que errado matar uma pessoa para salvar uma outra. Retirar os
rgos de Theresa seria mat-la para salvar outros, disseram eles.
Desse modo, retirar os seus rgos seria errado. esse um bom
argumento? A proibio de matar est, certamente, entre as regras
morais mais importantes. No entanto, poucas pessoas acreditam
que
11. Os elementos da filosofia moral 17 seja sempre errado matar
a maioria das pessoas pensa que h excees, como a de matar em
autodefesa. A questo, ento, se a retirada dos rgos de Theresa deve
ser vista como uma exceo regra. H muitas razes para pensar assim: o
Beb Theresa no consciente, nunca ter uma vida, ir morrer logo e a
reti- rada de seus rgos ir ajudar outros bebs. Qualquer um que
aceita isso ver o argumento como sendo falho. Em geral, errado
matar uma pessoa para salvar outra, mas no sempre. H uma outra
possibilidade. Qui devssemos olhar o Beb Theresa como j estando
morto. Se isso parecer loucura, tenha em mente que a nossa concep-
o de morte mudou ao longo dos anos. Em 1967, o mdico sul-africano
Chris- tiaan Barnard realizou o primeiro transplante de corao em
seres humanos. Esse foi um avano excitante; o transplante de corao
poderia, potencialmente, salvar muitas vidas. No era claro,
contudo, se alguma vida poderia ser salva nos Estados Unidos.
Naquela poca, a lei americana entendia que a morte ocorria quando o
corao parava de bater. Porm, uma vez que um corao para de bater,
ele se degrada rapidamente e se torna imprprio para transplante.
Desse modo, a lei americana mudou. Ns agora entendemos que a morte
ocorre no quando o corao para de bater, mas quando o crebro para de
funcionar: morte cerebral o nosso novo padro do fim da vida. Isso
resolveu o problema sobre os trans- plantes porque um paciente com
morte cerebral pode ainda ter um corao sa- dio, adequado para o
transplante. Anencfalos no se adquam aos requisitos tcnicos da
morte cerebral como ela correntemente definida; porm, talvez, a
definio deva ser revisada para inclu-los. Ao final, no lhes resta
qualquer esperana de uma vida cons- ciente porque eles no tm o
crtex superior e o cerebelo. Se a definio da mor- te cerebral fosse
reformulada para incluir os anencfalos, ns nos tornaramos
acostumados com a ideia segundo a qual essas crianas desafortunadas
nascem mortas, e, portanto, a retirada de seus rgos no envolveria
mat-los. Ento, o argumento a partir da incorreo de matar seria
desafiado. Em uma viso geral, portanto, os argumentos a favor do
transplante dos rgos do Beb Theresa parecem mais fortes do que os
argumentos contra. SEGUNDO EXEMPLO: JODIE E MARY Em agosto de 2000,
uma jovem mulher de Gozo, uma ilha ao sul da Itlia, des- cobriu que
estava gestando gmeas siamesas. Sabedora de que as facilidades do
sistema de sade de Gozo eram inadequadas para tratar de tal
nascimento, ela e seu marido foram ao St. Marys Hospital em
Manchester, Inglaterra. As crianas,
12. 18 James Rachels & Stuart Rachels conhecidas como Mary
e Jodie, estavam unidas pelo abdmen inferior. Suas co- lunas eram
unidas, tinham um s corao e um par de pulmes entre elas. Jodie, a
mais forte, estava provendo sangue para a sua irm. Ningum sabe
quantos conjuntos de gmeos siameses nascem a cada ano, porm o nmero
foi estimado em 200. A maioria morre logo depois do nasci- mento,
mas alguns sobrevivem. Eles chegam at a maturidade, casam e tm seus
prprios filhos. Porm o prognstico para Mary e Jodie era cruel. Os
mdicos disseram que sem interveno as meninas morreriam em seis
meses. A nica es- perana seria uma operao para separ-las. Isso
salvaria Jodie, mas Mary mor- reria imediatamente. Os pais, que
eram catlicos devotos, se recusaram a dar permisso para a operao
sob o fundamento de que apressaria a morte de Mary. Ns acredita-
mos que a natureza deve seguir o seu curso, disseram eles. Ns
acreditamos que se for a vontade de Deus que nossas duas crianas no
sobrevivam, ento, que seja assim. O hospital, na esperana de salvar
Jodie, ajuizou ao pedindo permisso para fazer a operao de qualquer
maneira. A corte concordou e a operao foi realizada. Como o
esperado, Jodie viveu e Mary morreu. Pensando sobre esse caso,
devemos distinguir a questo de quem deveria tomar a deciso da
questo de qual a deciso que deveria ser tomada. Voc pode- ria
pensar, por exemplo, que a deciso deveria ser deixada para os pais
e que a corte no deveria ter se intrometido. Porm permanece a
questo distinta de qual deveria ser a deciso mais sbia para os pais
(ou para qualquer outro) toma- rem. Focaremos nesta questo: seria
certo ou errado separar as gmeas? O argumento de que ns deveramos
salvar tanto quanto podemos O argumento para separar as gmeas que
ns temos uma escolha entre salvar uma das crianas ou deixar ambas
morrerem. No absolutamente melhor sal- var uma? Esse argumento to
forte que muitas pessoas iro concluir, sem mais, que as gmeas
deveriam ser separadas. No pice da controvrsia, o Ladies Home
Journal encomendou uma enquete para descobrir o que os americanos
pensa- vam. A enquete mostrou que 78% aprovavam a operao. As
pessoas estavam persuadidas, obviamente, pela ideia de que ns
deveramos salvar tantos quantos podemos. Os pais de Jodie e Mary,
no entanto, acreditavam que havia um argu- mento ainda mais forte
do lado oposto.
13. Os elementos da filosofia moral 19 O argumento a partir da
santidade da vida humana Os pais amavam ambas as suas crianas e
eles acreditavam que seria errado ma- tar uma delas para salvar a
outra. Naturalmente, eles no estavam sozinhos nesse pensamento. A
ideia de que toda vida humana preciosa, a despeito da idade, raa,
classe social ou deficincia, est no corao da tradio moral
ocidental. Ela especialmente enfatizada nos escritos religiosos. Na
tica tradicional, a proi- bio de matar seres humanos inocentes
absoluta. No interessa se a morte poderia servir para algum bom
propsito; isso simplesmente no pode ser feito. Mary um ser humano
inocente, portanto, ela no deve ser morta. este um bom argumento?
Os juzes que julgaram o caso no pensaram assim por uma razo
surpreendente. Eles negaram que a operao iria matar Mary. O juiz
Robert Walker disse que a cirurgia meramente separaria Mary de sua
irm e, ento, ela morreria, no porque ela seria morta
intencionalmente, mas porque o seu prprio corpo no poderia
sustentar a sua vida. Em outras palavras, a operao no a mataria; a
fraqueza de seu corpo que poderia mat- -la. Assim, a moralidade
sobre matar seria irrelevante. O juiz, no entanto, errou o ponto.
No interessa se dizemos que a morte de Mary causada pela operao ou
pela fraqueza de seu corpo. De qualquer modo, ela morreria, e ns
anteciparamos intencionalmente a sua morte. Essa a ideia por trs da
proibio tradicional de matar o inocente. H, porm, uma objeo mais
natural ao argumento a partir da santida- de da vida. Qui no seja
sempre errado matar seres humanos inocentes. Por exemplo, matar
poderia ser correto quando trs condies fossem preenchidas: a) o
humano inocente no tem futuro porque, de qualquer modo, ele ir
morrer logo; b) o humano inocente no tem escolha de continuar
vivendo, talvez porque ele simplesmente no tenha desejos; e c) essa
morte salvar outros, os quais podero levar uma vida completa.
Nessas raras circunstncias, a morte de um inocente poderia ser
justificada. TERCEIRO EXEMPLO: TRACY LATIMER Tracy Latimer, uma
vtima de 12 anos que sofria de paralisia cerebral, foi morta por
seu pai em 1993. Tracy viveu com sua famlia em uma fazenda no campo
em
14. 20 James Rachels & Stuart Rachels Saskatchewan, Canad.
Num domingo de manh, enquanto a sua esposa e outras crianas foram
para a igreja, Robert Latimer colocou Tracy na cabine de sua pi-
cape e conectou a cabine com os gases do cano de descarga at que
ela morresse. Quando morreu, Tracy pesava menos de 18 quilos e foi
descrita como tendo o nvel mental de um beb de trs meses. A Senhora
Latimer disse que ficou alivia- da ao encontrar Tracy morta quando
ela chegou em casa, e acrescentou que ela no teve a coragem de
fazer isso. Robert Latimer foi processado por homicdio, mas o juiz
e o jri no qui- seram trat-lo com rigor. O jri o considerou culpado
somente de homicdio em segundo grau e recomendou que o juiz
ignorasse a pena de dez anos para o caso. O juiz concordou e o
sentenciou a um ano de priso, seguido por um ano de confinamento em
sua fazenda. Mas a Suprema Corte do Canad entrou em cena e decidiu
que a pena prevista para o caso deveria ser imposta. Robert Latimer
entrou na priso em 2001 e teve livramento condicional em 2008.
Questes legais parte, o Senhor Latimer fez alguma coisa de errado?
Este caso envolve muitas das questes que ns vimos nos outros casos.
Um argu- mento contra o Senhor Latimer que a vida de Tracy era
moralmente preciosa de tal modo que ele no tinha o direito de
mat-la. Em sua defesa, poderia ser dito que a condio de Tracy era
to catastrfica que ela no tinha prospectos de uma vida seno em um
sentido biolgico. A sua existncia tinha sido reduzida a um
sofrimento sem sentido, de modo que mat-la era um ato de
misericrdia. Considerando esses argumentos, pareceria que Robert
Latimer agira de forma defensvel. Houve, porm, outros pontos
levantados pelos seus crticos. O argumento da incorreo da
discriminao contra os deficientes Quando Robert Latimer recebeu uma
sentena branda pela corte de julgamento, muitas pessoas deficientes
se sentiram insultadas. O presidente da Saskatoon Voi- ce of People
with Disabilities, portador de esclerose mltipla, disse: Ningum tem
o direito de decidir que a minha vida menos valiosa do que a de
qualquer um. Essa a linha fundamental. Tracy foi morta porque ela
era deficiente, ele disse, e isso inescrupuloso. Deve-se dar o
mesmo respeito e os mesmos direitos para pessoas deficientes como
se d para todo mundo. O que ns podemos fazer a respeito? A
discriminao sempre uma questo sria porque ela envolve tratar
algumas pessoas de forma pior do que outras e no com boas razes.
Suponha, por exemplo, que seja recusado um emprego para uma pessoa
cega simplesmente porque o empregador no gosta da ideia de empregar
algum que no pode ver. Isso no diferente de recusar
15. Os elementos da filosofia moral 21 empregar algum porque
ele hispnico, judeu ou mulher. Por que essa pessoa est sendo
tratada diferentemente? ela menos hbil para fazer o trabalho? ela
menos inteligente ou menos diligente? Ela merece menos o emprego?
ela menos hbil para se beneficiar do emprego? Se no h boas razes
para exclu-la, ento arbitrrio faz-lo. Devemos pensar que a morte de
Tracy Latimer foi um caso de discrimina- o contra os deficientes?
Robert Latimer argumentou que a paralisia do crebro de Tracy no foi
a questo: As pessoas esto dizendo que essa uma questo de
deficincia, mas elas esto erradas. Essa uma questo de tortura. Era
sobre mutilao e tortura para Tracy. Um pouco antes de sua morte,
Tracy sofrera uma cirurgia grande em suas costas, quadris, pernas,
e mais cirurgias estavam plane- jadas. Com uma combinao de um tubo
de alimentao, placas em suas costas, a perna cortada, desajeitada,
com escaras, disse o seu pai, como podem as pes- soas dizerem que
ela era uma menina feliz?. No julgamento, trs dos mdicos de Tracy
testemunharam sobre a dificuldade de controlar a sua dor. Portanto,
o Senhor Latimer negou que Tracy tinha sido morta porque ela era
deficiente; ela fora morta porque ela estava sofrendo e porque no
havia esperana para ela. O argumento da ladeira escorregadia Quando
a Suprema Corte do Canad manteve a sentena de Robert Latimer, a
diretora da Canadian Association of Independent Living Centres
disse que es- tava agradavelmente surpresa. Teria sido realmente
uma ladeira escorregadia e abertura das porteiras para outras
pessoas decidirem quem deve viver e quem deve morrer, ela disse.
Outros defensores dos deficientes repetiram essa ideia. Ns podemos
sentir simpatia por Robert Latimer, foi dito; podemos mesmo pensar
que Tracy Lati- mer est melhor morta. No entanto, perigoso pensar
desse modo. Se aceitamos qualquer espcie de morte por compaixo,
iremos deslizar por uma ladeira es- corregadia, e na parte inferior
da ladeira toda a vida se tornar barata. Onde ns devemos pr a linha
para parar? Se a vida de Tracy sem valor para que seja protegida,
que tal a vida de outros deficientes? Que tal a vida dos idosos,
dos enfermos e outros membros inteis da sociedade? Nesse contexto,
o programa de Hitler de purificao racial frequentemente mencionado,
implicando que ns terminaremos como os nazistas, se damos o
primeiro passo. Argumentos da ladeira escorregadia tm sido usados
em outros assuntos. Tem havido oposio ao aborto, fertilizao in
vitro (FIV) e clonagem huma- na em razo daquilo a que podem
conduzir. Muitas vezes, em retrospectiva,
16. 22 James Rachels & Stuart Rachels evidente que as
preocupaes foram infundadas. Isso aconteceu com o FIV, uma tcnica
para criar embries em laboratrio. Quando Louise Brown, o primeiro
teste de beb de proveta, nasceu em 1978, houve previses terrveis
sobre o que poderia acontecer para ela e para a sociedade como um
todo. Porm, nenhuma de tais previses se tornaram verdadeiras, e o
FIV se tornou rotina. Desde o nas- cimento de Louise Brown, mais de
100 mil casais americanos usaram FIV para ter crianas. Contudo, sem
o benefcio da imprevisibilidade, difcil acessar o argumen- to da
ladeira escorregadia; como sustenta o velho ditado, difcil fazer
previses, especialmente sobre o futuro. Pessoas razoveis podem
discordar sobre o que aconteceria se matar por compaixo fosse
permitido em casos como o de Tracy Latimer. Aqueles que esto
inclinados a defender o Senhor Latimer podem achar as previses
terrveis no realistas, ao passo que aqueles que querem conden-lo
podem insistir que as previses so sensatas. Essa espcie de
discordncia pode ser difcil de resolver. digno de nota, contudo,
que fcil abusar dos argumentos da ladeira escorregadia. Se voc se
ope a alguma coisa, mas no tem um bom argumento contra, voc pode
sempre fazer uma previso sobre o que poderia ocorrer e, no importa
o quo implausvel for a sua previso, ningum pode provar que voc est
errado. Esse o porqu de tais argumentos terem que ser acessados com
cuidado. RAZO E IMPARCIALIDADE O que ns podemos aprender de tudo
isso em relao natureza da moralidade? Como um comeo, podemos notar
dois pontos mais importantes: primeiro, jul- gamentos morais devem
ser apoiados por boas razes; e, segundo, a moralidade requer a
considerao imparcial dos interesses individuais de cada um.
Raciocnio moral Os casos do Beb Theresa, Jodie e Mary e Tracy
Latimer so capazes de des- pertar sentimentos fortes. Tais
sentimentos so, em geral, um sinal da seriedade moral e devem ser
admirados. Mas eles podem ficar no caminho da descoberta da
verdade: quando temos sentimentos fortes em relao a uma questo,
tenta- dor simplesmente assumir que conhecemos o que a verdade, sem
mesmo ter que considerar os argumentos do outro lado. Infelizmente,
porm, ns no podemos confiar em nossos sentimentos, no importando o
quo fortes eles possam ser.
17. Os elementos da filosofia moral 23 Nossos sentimentos podem
ser irracionais: eles podem ser nada mais do que produtos do
prejuzo, egosmo ou condicionamento cultural. Em um momento, por
exemplo, os sentimentos das pessoas lhes disseram que os membros de
ou- tras raas eram inferiores e que a escravido era o plano de
Deus. Ademais, os sentimentos das pessoas podem ser muito
diferentes. No caso de Tracy Latimer, algumas pessoas sentiram
fortemente que seu pai merecia um tempo de priso longo, ao passo
que outras sentiram de maneira igualmente for- te que ele nunca
deveria ter sido processado. Contudo, ambos os sentimentos no podem
estar corretos. Portanto, se queremos descobrir a verdade, devemos
deixar os nossos sentimentos serem tanto quanto possvel guiados
pela razo. Essa a essncia da moralidade. A coisa moralmente certa a
se fazer sempre a coisa melhor funda- mentada por argumentos. Esse
no um ponto de vista estreito sobre um pequeno mbito dos pontos de
vista morais; uma exigncia geral da lgica que tem de ser aceita por
todos, independentemente de suas posies em uma questo particular. O
ponto fun- damental pode ser estabelecido de forma simples. Suponha
que algum lhe diga que voc deve fazer tal e tal coisa. Voc pode
legitimamente perguntar por que deve fazer isso e, se uma boa razo
no puder ser dada, voc pode rejeitar o con- selho como arbitrrio ou
infundado. Desse modo, julgamentos morais so diferentes de
expresses de gosto pes- soal. Se algum diz: Eu gosto de caf, ele no
precisa ter uma razo ele est simplesmente expressando um fato sobre
suas preferncias e nada mais. No h uma coisa tal como defender
racionalmente seu gostar ou no gostar de caf. Se ela estiver
dizendo com acurcia o seu gosto, o que ela diz tem de ser verda-
deiro. Por outro lado, se algum diz que alguma coisa moralmente
errada, ele necessita de razes, e, se suas razes so legtimas, ento
as outras pessoas devem reconhecer a sua fora. Pela mesma lgica, se
ele no tem boas razes para o que diz, ento ele est simplesmente
fazendo barulho e ns podemos ignor-lo. Naturalmente, nem toda razo
apresentada uma boa razo. H bons e maus argumentos, sendo que muito
da habilidade de raciocinar moralmente consiste em discernir a
diferena entre eles. Porm, como tornar evidente a di- ferena? Como
avaliamos os argumentos? Os exemplos que ns consideramos apontam
para algumas respostas. A primeira coisa destacar os fatos em
questo. Em geral, isso no to fcil quanto parece. Muitas vezes,
fatos-chave so desconhecidos. Outras vezes, as questes so to
complexas que mesmo os especialistas discordam. Ainda um outro
problema so os prejuzos humanos. Frequentemente, ns queremos acre-
ditar em alguma coisa porque isso apoia nossas pr-concepes. Por
exemplo,
18. 24 James Rachels & Stuart Rachels os que desaprovam as
aes de Robert Latimer, querero acreditar nas previ- ses horrveis do
argumento da ladeira escorregadia; aqueles que aprovam as suas aes
querero rejeit-las. fcil pensar em outros exemplos: as pessoas que
no querem contribuir com a caridade frequentemente dizem que a
caridade ineficiente e corrupta, mesmo quando elas no tm boas
evidncias para tal; e pessoas que no gostam de homossexuais podem
dizer que os homens gays so todos pedfilos, mesmo quando muito
poucos so. Porm, os fatos existem inde- pendentemente de nossas
vontades, sendo que o pensamento moral responsvel comea quando
tentamos ver as coisas como elas so. Em seguida, podemos trazer os
princpios morais para o jogo. Nos nossos trs exemplos, um certo
nmero de princpios esteve envolvido: que ns no devemos usar as
pessoas; que ns no devemos matar uma pessoa para salvar outra; que
ns devemos fazer o que beneficiar as pessoas afetadas por nossas
aes; que toda vida humana sagrada; e que errado discriminar
deficientes. A maioria dos argumentos morais consiste na aplicao de
princpios a casos particulares. Assim, temos de perguntar se os
princpios so justificados e se eles esto sendo aplicados
corretamente. Seria timo se houvesse uma receita simples para
construir bons argu- mentos e evitar os maus. Infelizmente, no h.
Argumentos podem dar erra- do de vrios modos, e ns temos sempre que
estar alertas para a possibilidade de novas complicaes e novos
tipos de erros. Porm, isso no uma surpresa. As aplicaes habituais
dos mtodos de rotina nunca so um substituto para o pensamento
crtico, em qualquer rea. A moralidade no uma exceo. O requerimento
de imparcialidade Quase toda teoria moral importante inclui a ideia
de imparcialidade. Esta a ideia de que os interesses individuais de
cada um so igualmente importantes: ningum deve receber tratamento
especial. Ao mesmo tempo, a imparcialidade requer que no tratemos
os membros de grupos particulares como inferiores, desse modo, ela
condena formas de discriminao em razo do sexo ou racismo.
Imparcialidade muito conectada com a ideia de que julgamentos
morais tm que ser fundamentados por boas razes. Considere-se o
racista que pensa que pessoas brancas merecem todos os bons
empregos. Ele gostaria que todos os mdicos, advogados, executivos e
assim por diante fossem brancos. Agora, ns podemos perguntar pelas
razes. Podemos perguntar por que isso pensado como correto. H
alguma coisa especial a respeito das pessoas brancas que as tornam
mais adequadas para as posies mais prestigiadas e melhor pagas?
So
19. Os elementos da filosofia moral 25 elas mais diligentes ou
brilhantes? Elas se preocupam mais consigo mesmas e com suas
famlias? Elas se beneficiariam mais com tais empregos? Em cada uma
das perguntas, a resposta no. E se no h boas razes para tratar as
pessoas diferentemente, ento a discriminao inaceitavelmente
arbitrria. O requerimento de imparcialidade, ento, , em seu
fundamento, nada mais do que uma regra contra tratar as pessoas
arbitrariamente. Ela probe tratar uma pessoa pior do que outra
quando no h uma boa razo para fazer isso. Porm, se isso explica o
que errado no racismo, tambm explica por que, em alguns casos, no
racismo tratar as pessoas diferentemente. Suponha que um diretor de
cinema estivesse fazendo um filme sobre Fred Shuttlesworth (1922-
-2011), o heri sul-africano lder dos direitos civis. Esse diretor
teria uma boa razo para no pr Christian Bale no papel de estrela.
Tal discriminao no seria arbitrria ou objetvel. A CONCEPO MNIMA DE
MORALIDADE Ns podemos agora estabelecer a concepo mnima: a
moralidade , pelo menos, o esforo de guiar a prpria conduta por
razes isto , fazer aquilo que se tem as melhores razes para fazer
ao mesmo tempo dando um peso igual aos interesses de cada indivduo
afetado pela sua deciso. Isso nos d uma imagem do que significa ser
um agente moral consciente. O agente moral consciente algum
imparcialmente preocupado com os interesses de cada um afetado pelo
que ele ou ela faz; algum que examina minuciosamente os fatos e as
suas implicaes; algum que aceita princpios de conduta somente
depois de escrutin-los para se assegurar de que eles so
justificados; algum que est disposto a ouvir a razo mesmo quando
signifique rever convices prvias; e algum que, finalmente, est
disposto a agir com base nos resultados de sua deliberao. Como se
pode esperar, nem toda teoria tica aceita esse mnimo. Essa imagem
do agente moral foi criticada de vrios modos. Porm, as teorias que
rejeitam a concepo mnima encontram dificuldades srias. A maioria
dos fil- sofos a aceitam; assim, a maior parte das teorias da
moralidade incorporam, de uma forma ou outra, a concepo mnima.
20. 2 O desafio do relativismo cultural A moralidade difere em
cada sociedade e um termo conveniente para hbitos aprovados
socialmente. Ruth Benedict, Patterns of Culture (1934) CULTURAS
DIFERENTES TM CDIGOS MORAIS DIFERENTES Dario, o rei da Prsia
antiga, ficou intrigado com a variedade de culturas que ele
encontrou em suas viagens. Ele descobriu, por exemplo, que os
galatianos, que viviam na ndia, comiam os corpos de seus pais
mortos. Os gregos, natu- ralmente, no faziam isso eles praticavam a
cremao e viam o funeral da pira como a maneira natural e adequada
de dispor dos mortos. Dario pensava que uma viso sofisticada
poderia prezar as diferenas entre as culturas. Um dia, para ensinar
a sua lio, ele convocou alguns gregos que estavam em sua corte e
lhes perguntou o que seria necessrio para eles comerem os corpos de
seus pais mortos. Eles ficaram chocados, como Dario sabia que eles
ficariam, e res- ponderam que nenhuma quantidade de dinheiro
poderia persuadi-los a fazer tal coisa. Ento, Dario chamou alguns
galatianos e, enquanto os gregos ouviam, perguntou-lhes o que seria
necessrio para eles queimarem os corpos de seus pais mortos. Os
galatianos ficaram horrorizados e disseram a Dario para no falar de
tais coisas. Essa estria, recontada por Herdoto em sua Histria,
ilustra um tema re- corrente na literatura das cincias sociais:
culturas diferentes tm cdigos morais diferentes. O que pensado como
correto por um grupo pode horrorizar os mem- bros de um outro grupo
e vice-versa. Devemos ns comer os corpos dos mortos ou queim-los?
Se voc fosse grego, uma resposta poderia ser obviamente correta,
mas, se voc fosse galatiano, a outra resposta poderia ser
igualmente certa. H muitos exemplos disso. Considere os esquims do
incio e meados do sculo XX. Os esquims so as pessoas nativas do
Alaska, do norte do Canad, da Groelndia e do nordeste da Sibria na
Rssia asitica. Atualmente, nenhum
21. Os elementos da filosofia moral 27 desses grupos se
autointitula esquims, mas o termo foi historicamente referi- do
quela populao dispersa do rtico. Antes do sculo XX, o mundo
exterior conhecia muito pouco sobre eles. Ento, os exploradores
comearam a trazer lendas estranhas. Os esquims viviam em pequenos
assentamentos, separados por grandes distncias, e seus costumes se
tornaram muito diferentes dos nossos. Os homens geralmente tinham
mais de uma esposa e eles compartilhavam as suas esposas com os
convidados, emprestando-as durante a noite como um sinal de hospi-
talidade. No entanto, dentro da comunidade, um homem dominante
podia de- mandar e conseguir acesso sexual regular s esposas dos
outros homens. As mulheres, porm, eram livres para romper esses
arranjos simplesmente deixando seus maridos e tomando novos
parceiros livremente, quer dizer, contanto que seus ex-maridos no
escolhessem causar muitos problemas. Tudo somado, o cos- tume
esquim do casamento era uma prtica voltil que tem pouca semelhana
com nossos costumes. Mas no eram diferentes somente os seus
casamentos e prticas sexuais. Os esquims tambm pareciam pouco se
importar com a vida humana. O infanti- cdio, por exemplo, era
comum. Knud Rasmussen, um dos primeiros explorado- res, informou
ter encontrado uma mulher que tinha dado luz 20 crianas, mas tinha
matado 10 delas no nascimento. Meninas, ele notou, eram
especialmente suscetveis de serem mortas, e isso era permitido
discrio dos pais, no haven- do conexo com estigma social. Ademais,
quando membros da famlia idosos se tornavam muito fracos, eles eram
deixados fora na neve para morrerem. Na sociedade esquim parecia
haver, notavelmente, pouco respeito pela vida. A maior parte de ns
acharia esses costumes esquims completamente ina- ceitveis. Nosso
prprio modo de viver parece to natural e correto para ns que
dificilmente podemos conceber pessoas que vivam to diferentemente.
Quando ouvimos falar de tais pessoas, podemos dizer que elas so
atrasadas ou primi- tivas. Mas, para os antroplogos, os esquims no
parecem incomuns. Desde o tempo de Herdoto, observadores
esclarecidos observaram que concepes do certo e do errado diferem
de cultura para cultura. Se assumimos que nossas ideias ticas sero
partilhadas por todas as culturas, ns somos ingnuos, meramente.
RELATIVISMO CULTURAL Para muitas pessoas esta observao culturas
diferentes tm cdigos morais diferentes parece ser a chave para
entender a moralidade. No h verdades morais universais, dizem eles.
Os costumes de sociedades diferentes so tudo o
22. 28 James Rachels & Stuart Rachels que existe. Chamar um
costume de correto ou incorreto implicaria poder- mos julgar tal
costume por algum padro independente do que certo e errado. Mas no
existe tal padro. Todo padro limitado culturalmente. O socilo- go
William Graham Summer (1840-1910) apresentou o assunto nos
seguintes termos: O modo correto o modo que os ancestrais
utilizavam e que foi transmitido. [...] A noo de correto est nos
modos de pensar de um povo. No exterior a eles, de uma origem
independente, trazido para test-los. Nos modos de pensar de um
povo, qualquer que seja esse pensar, ele correto. Isso ocorre
porque eles so tradicionais e, portanto, contm em si mesmos a
autoridade dos espritos ancestrais. Quando ns chegamos nos modos de
pensar do povo, estamos no final de nossas anlises. Essa linha de
pensamento, mais do que qualquer outra, tem persuadido as pessoas a
serem cticas a respeito da tica. Com efeito, o relativismo cultural
afir- ma que no h tal coisa como verdade universal na tica. H
somente os vrios cdigos culturais e nada mais. O relativismo
cultural desafia a nossa crena na objetividade e na universalidade
da verdade moral. Todas as pretenses seguintes foram feitas pelos
relativistas culturais: 1. Sociedades diferentes tm cdigos morais
diferentes. 2. O cdigo moral de uma sociedade determina o que certo
dentro daquela sociedade, isto , se o cdigo moral de uma sociedade
diz que uma certa ao correta, ento aquela ao correta, ao menos
dentro daquela sociedade. 3. No h padro objetivo que pode ser usado
para julgar o cdigo de uma sociedade como melhor do que o de outra
sociedade. No h verdades morais que valham para todas as pessoas em
todos os tempos. 4. O cdigo moral de nossa prpria sociedade no tem
um status especial. Ele somente mais um cdigo entre muitos. 5.
arrogante de nossa parte julgar outras culturas. Devemos sempre ser
tolerantes em relao a elas. Estas cinco proposies parecem caminhar
em conjunto, mas elas so inde- pendentes umas das outras, o que
pode significar que algumas delas podem ser verdadeiras mesmo que
outras sejam falsas. Realmente, duas das proposies parecem ser
inconsistentes entre si. A segunda diz que o certo e o errado
so
23. Os elementos da filosofia moral 29 determinados pelas
normas de cada sociedade. A quinta diz que se deve sempre ser
tolerante em relao a outras culturas. Mas e se as normas de uma
sociedade favorecem a intolerncia? Por exemplo, quando o exrcito
nazista invadiu a Pol- nia em 1o de setembro de 1939, iniciando,
com isso, a Segunda Guerra Mundial, essa foi uma ao intolerante de
primeira ordem. Mas e se ela se conformasse aos ideais nazistas? Um
relativista cultural, parece, no poderia criticar os nazistas por
serem intolerantes, se tudo o que eles esto fazendo seguir o seu
prprio cdigo moral. Dado que os relativistas culturais tm orgulho
de sua tolerncia, seria ir- nico se sua teoria realmente apoiasse a
intolerncia de sociedades blicas. Porm, a sua teoria no precisa ser
assim. Entendido com propriedade, o relativismo cultural sustenta
que as normas de uma cultura reinam supremas dentro dos li- mites
da cultura. Assim, uma vez que os soldados alemes entraram na
sociedade polonesa, eles se tornaram sujeitos s normas da sociedade
polonesa normas que, obviamente, excluam a carnificina de poloneses
inocentes. Como afirma o velho ditado, em Roma, como os romanos.
Relativistas culturais concordam. O ARGUMENTO DA DIFERENA CULTURAL
Os relativistas culturais frequentemente empregam uma certa forma
de ar- gumento. Eles comeam com fatos sobre as culturas e terminam
extraindo uma concluso sobre a moralidade. Assim, eles nos convidam
a aceitar este raciocnio: 1. Os gregos acreditavam que era errado
comer os mortos, ao passo que os galatianos acreditavam que era
correto comer os mortos. 2. Portanto, comer os mortos no nem
objetivamente certo nem obje- tivamente errado. meramente uma
questo de opinio que varia de uma cultura para outra. Ou: 1. Os
esquims no viam nada de errado com o infanticdio, ao passo que os
americanos acreditam que ele imoral. 2. Portanto, o infanticdio no
nem objetivamente certo nem objetiva- mente errado. meramente uma
questo de opinio que varia de uma cultura para outra.
24. 30 James Rachels & Stuart Rachels Claramente, esses
argumentos so variaes de uma ideia fundamental. Eles so exemplos de
um argumento mais geral que diz: 1. Culturas diferentes tm cdigos
morais diferentes. 2. Portanto, no h verdade objetiva na
moralidade. Certo e errado so somente questes de opinio, e opinies
variam de uma cultura para outra. Podemos chamar isso de argumento
da diferena cultural. Para muitas pes- soas ele persuasivo. Mas ele
um bom argumento slido? Ele no . Para um argumento ser slido, as
suas premissas tm de ser ver- dadeiras e a concluso tem que se
seguir logicamente delas. Aqui, o problema que a concluso no se
segue das premissas isto , mesmo que a premissa seja verdadeira, a
concluso ainda assim pode ser falsa. A premissa concerne quilo em
que as pessoas acreditam em algumas sociedades as pessoas acreditam
em uma coisa; em outras sociedades as pessoas acreditam em outra
coisa. A con- cluso, portanto, concerne ao que realmente o caso.
Esse tipo de concluso no se segue logicamente daquele tipo de
premissa. Na terminologia filosfica, isso significa que o argumento
invlido. Considere novamente o exemplo dos gregos e dos galatianos.
Os gregos acreditavam que era errado comer os mortos; os galatianos
acreditavam que era certo. Do mero fato de que eles discordavam,
segue-se que no h verdade objetiva em relao quela matria? No, no se
segue; poderia ser que a prtica fosse objetivamente certa (ou
errada) e que um deles estivesse simplesmente enga nado. Para
tornar o ponto claro, considere uma questo diferente. Em algumas
sociedades, as pessoas acreditam que a terra plana. Em outras
sociedades, como na nossa, as pessoas acreditam que a terra
esfrica. Do mero fato de as pessoas discordarem, segue-se que no h
verdade objetiva na geografia? Claro que no; ns nunca tiraramos tal
concluso, isso porque entendemos que os mem- bros de uma sociedade
podem simplesmente estar errados. No h razo para pensar que, se o
mundo redondo, todo mundo tenha que conhecer isso. Simi- larmente,
no h razo para pensar que, se h verdade moral, todo mundo tenha que
conhec-la. O argumento da diferena cultural tenta derivar uma
concluso substantiva sobre um assunto a partir do mero fato de que
as pessoas discordam. Mas isso impossvel. Esse ponto no deve ser
mal compreendido. No estamos dizendo que a concluso do argumento
falsa. Depois de tudo o que dissemos, o relativismo cultural pode
ainda ser verdadeiro. O ponto que a concluso no se segue das
25. Os elementos da filosofia moral 31 premissas. Isso
significa que o argumento das diferenas culturais invlido.
Portanto, o argumento falha. O QUE SE SEGUE DO RELATIVISMO CULTURAL
Mesmo que o argumento das diferenas culturais no seja slido, o
relativismo cultural pode ainda ser verdadeiro. O que se seguiria
se ele fosse verdadeiro? Na passagem citada h pouco, William Graham
Summer estabeleceu a es- sncia do relativismo cultural. Ele diz que
a nica medida do certo e do errado so os padres da prpria
sociedade: A noo de correto est nos modos de pensar de um povo. No
exterior a eles, de uma origem independente, trazido para test-los.
Nos modos de pensar de um povo, qualquer que seja esse pensar, ele
correto. Suponha que levemos isso a srio. Quais poderiam ser
algumas das consequncias? 1. Ns no poderamos mais dizer que os
costumes das outras sociedades so moral- mente inferiores aos
nossos. Isso, naturalmente, um dos pontos mais importantes
salientados pelo relativismo cultural. Nunca devemos condenar uma
sociedade meramente porque ela diferente. Essa atitude parece
esclarecida na medida em que nos concentramos em exemplos como as
prticas funerrias dos gregos e galatianos. Porm, ns tambm estaremos
impedidos de criticar outras prticas menos benignas. Por exemplo, o
governo chins tem uma longa histria de represso dos dissidentes
polticos dentro de suas fronteiras. Em qualquer poca que se
considere, na China, milhares de prisioneiros polticos fizeram
trabalho fora- do. Ainda, no episdio da Praa da Paz Celestial de
1989, as tropas chinesas abateram centenas seno milhares de
manifestantes pacficos. O relativismo cul- tural nos precluiria de
dizer que as polticas de opresso do governo chins so erradas. Ns
nem mesmo poderamos dizer que uma sociedade que respeita a
liberdade de expresso melhor do que a sociedade chinesa, pois isso
tambm implicaria um padro universal de comparao. A falha em
condenar essas pr- ticas no parece esclarecida; ao contrrio, a
opresso poltica parece errada onde quer que ela ocorra. No entanto,
se aceitamos o relativismo cultural, temos que olhar tais prticas
como imunes crtica. 2. Ns no poderamos mais criticar o cdigo de
nossa prpria sociedade. O rela- tivismo cultural sugere um teste
simples para determinar o que certo e o que errado: tudo o que
precisamos fazer perguntar se a ao est de acordo com o cdigo da
sociedade em questo. Suponha que um habitante da ndia queira saber
se o sistema de castas de seu pas um sistema de hierarquia social
rgida
26. 32 James Rachels & Stuart Rachels moralmente correto.
Tudo o que ele tem que fazer perguntar se o sistema se conforma ao
cdigo moral de sua sociedade. Se ele concordar, no h nada com que
se preocupar, ao menos de um ponto de vista moral. Essa implicao do
relativismo cultural perturbadora porque poucos de ns pensam que o
cdigo de nossa sociedade seja perfeito podemos pensar em modos nos
quais ele pode ser melhorado. Acima de tudo, podemos pensar em
modos nos quais podemos aprender de outras culturas. Ainda assim, o
relativis- mo cultural nos impede de criticar o cdigo de nossa
prpria sociedade e nos impede de ver modos nos quais outras
culturas podem ser melhores. Ao final, se o certo e o errado so
relativos cultura, isso tem que ser verdade para a nossa prpria
cultura, assim como ele para as outras culturas. 3. A ideia do
progresso moral posta em dvida. Ns pensamos que ao menos algumas
mudanas sociais so para o melhor. Atravs de toda a histria ociden-
tal, o lugar das mulheres na sociedade foi estritamente definido.
Mulheres no podiam ter propriedade, elas no podiam votar ou ocupar
cargos polticos e esta- vam sob o controle quase absoluto de seus
maridos ou pais. Recentemente, muito disso mudou e a maioria das
pessoas pensam que isso um progresso. Mas, se o relativismo
cultural correto, podemos ns legitimamente ver isso como um
progresso? Progresso significa substituir os velhos modos por novos
e melhores modos. Mas por meio de quais padres podemos julgar como
melhores os modos novos? Se os velhos modos se conformavam aos
padres do seu tempo, ento o relativismo cultural no poderia
julg-los pelos nossos padres. A sociedade do sculo XIX que
discriminava pelo sexo era uma socie- dade diferente daquela que ns
agora habitamos. Dizer que fizemos progresso implica que a
sociedade atual melhor exatamente o tipo de julgamento trans-
cultural que o relativismo cultural probe. Nossas ideias sobre
reforma social tambm teriam que ser reconsideradas. Reformadores
como Martin Luther King Jr. souberam mudar as suas sociedades para
o melhor. Mas, de acordo com o relativismo cultural, h somente um
modo de melhorar a sociedade: faz-la pertencer melhor aos seus
prprios ideais. Afi- nal, os ideais da sociedade so os padres pelos
quais a reforma acessada. Nin- gum, porm, pode desafiar os ideais,
pois eles so, por definio, corretos. De acordo com o relativismo
cultural, ento, a ideia de reforma social faz sentido somente nesta
ltima forma limitada. Essas trs consequncias do relativismo
cultural tm levado muitas pesso- as a rejeit-lo. Ns podemos dizer
que a escravido errada onde quer que ela ocorra e que a nossa
prpria sociedade pode fazer progresso moral importante. O
relativismo cultural no pode ser correto porque, de acordo com ele,
esses julgamentos so sem sentido.
27. Os elementos da filosofia moral 33 POR QUE H MENOS
DESACORDO DO QUE PARECE O relativismo cultural comea pela observao
de que as culturas diferem dra- maticamente em suas vises sobre o
certo e o errado. Mas quanto elas realmente diferem? verdade que h
diferenas, mas fcil exager-las. Muitas vezes, o que em um primeiro
momento parece ser uma grande diferena, termina simples- mente no
sendo uma diferena. Considere uma cultura na qual as pessoas
acreditam que errado comer carne de vaca. Pode mesmo ser uma
cultura pobre, na qual no h comida suficiente. Ainda assim, as
vacas no so tocadas. Uma tal sociedade parece ter valores muito
diferentes dos nossos. Mas tem ela valores diferentes? Ns ainda no
perguntamos por que essas pessoas no querem comer vacas. Suponha
que elas acreditem que depois da morte as almas dos humanos habitam
os corpos dos animais, especialmente as vacas, de tal forma que uma
vaca poderia ser a av de algum. Diramos ns que seus valores diferem
dos nossos? No, a diferena re- side alhures. A diferena est em
nosso sistema de crenas, no em nosso sistema de valores. Ns
concordamos que no devemos comer a vov; ns discordamos se as vacas
podem ser a vov. O ponto que muitos fatores trabalham em conjunto
para produzir os cos- tumes de uma sociedade. No somente so
importantes os valores da sociedade, mas tambm o so as suas crenas
religiosas, as suas crenas fatuais, e seu meio ambiente fsico.
Assim, no podemos concluir que duas sociedades diferem em valores
justamente porque elas diferem em costumes. Afinal, costumes podem
variar por diferentes razes. Portanto, pode haver menos desacordo
moral do que parecer haver. Considere de novo os esquims que
matavam crianas perfeitamente sau- dveis, especialmente meninas. Ns
no aprovamos tais coisas. Em nossa so- ciedade, um pai que mata um
beb preso. Assim, parece haver uma grande diferena de valores em
nossas duas culturas. Mas suponha que perguntemos por que os
esquims faziam isso. A explicao no que lhes faltava respeito pela
vida humana ou que no amavam as suas crianas. Uma famlia esquim
sempre iria proteger os seus bebs se as condies permitissem. Mas os
esquims viviam em um ambiente difcil, onde alimento era escasso.
Para citar um velho dito esquim, a vida difcil e a margem de
segurana pequena. Uma famlia pode querer alimentar seus bebs, mas
ser incapaz de fazer isso. Como em muitas sociedades tradicionais,
as mes esquims tinham que cuidar de suas crianas por um perodo
maior de tempo do que as mes em nossa cultura por quatro anos e,
talvez, por um tempo maior. Assim, mesmo nas melhores pocas, uma me
podia sustentar muito poucas crianas. Acima de
28. 34 James Rachels & Stuart Rachels tudo, os esquims eram
nmades, incapazes de cultivar no clima severo do norte. Eles tinham
que continuar a se movimentar para encontrar comida. Crianas tinham
que ser carregadas, e uma me podia carregar somente um beb em sua
parca, enquanto ela viajava e fazia os seus trabalhos fora de casa.
Finalmente, os esquims no tinham controle de natalidade, de tal
forma que gravidezes inde- sejadas eram comuns. Crianas meninas
eram mais propensas a serem mortas por duas razes. Primeira, na
sociedade esquim, os homens eram os provedores primrios de comida
eles eram os caadores , e comida era escassa. Os homens eram,
assim, de mais valor para a comunidade. Segundo, os caadores
sofriam um alto ndice de acidentes, desse modo, os homens que
morriam prematuramente eram em nmero maior do que as mulheres que
morriam jovens. Se crianas meninos e meninas sobrevivessem em igual
nmero, ento, a populao de mulheres adul- tas seria bem maior do que
a populao dos homens adultos. Examinando as estatsticas disponveis,
um escritor concluiu que se no fosse pelo infanticdio das meninas
[...] haveria aproximadamente uma vez e meia mais mulheres, na mdia
de esquims do grupo local, do que homens provedores de comida.
Portanto, o infanticdio esquim no era devido a um desrespeito
funda- mental por crianas. Em vez disso, ele adveio do
reconhecimento de que medidas drsticas eram necessrias para
assegurar a sobrevivncia do grupo. Mesmo assim, porm, matar o beb
poderia no ser a primeira opo considerada. A adoo era comum. Casais
sem crianas ficavam especialmente felizes de tomar o excedente dos
casais frteis. Matar era o ltimo recurso. Enfatizo isso para
mostrar que os dados crus da antropologia podem ser enganosos. Eles
podem fazer as diferenas de valores entre as culturas parecerem
maior do que so. Os valores dos esquims no eram to diferentes dos
nossos. A vida somente forou escolhas para eles que ns no temos de
tomar. ALGUNS VALORES SO PARTILHADOS POR TODAS AS CULTURAS No
deveria nos surpreender que os esquims fossem protetores de suas
crian- as. Como eles no poderiam ser? Bebs so indefesos e no podem
sobrevi- ver sem um cuidado amplo. Se um grupo no protege os seus
jovens, eles no iro sobreviver e os membros velhos do grupo no sero
substitudos. Por fim, o grupo pode extinguir-se. Isso significa que
qualquer cultura que continue a exis- tir tem que cuidar de seus
jovens. Crianas negligenciadas tm que ser a exceo, no a regra.
29. Os elementos da filosofia moral 35 Raciocnio similar mostra
que outros valores tm que ser mais ou menos universais entre as
sociedades humanas. Imagine como seria uma sociedade que no desse
valor ao dizer a verdade. Quando uma pessoa falasse com a outra, no
haveria presuno de que ela estaria dizendo a verdade, pois ela
poderia facilmente estar mentindo. Em uma tal sociedade, no haveria
razo para prestar ateno a qualquer coisa que algum dissesse. Se eu
quisesse saber que horas so, por que eu deveria me preocupar em
perguntar para algum, se mentir seria um lugar-comum? A comunicao
em uma tal sociedade seria extremamente difcil, seno impossvel. E
porque sociedades no podem existir sem comunicao entre seus
membros, a sociedade se tornaria impossvel. Segue-se que toda so-
ciedade tem de valorizar a veracidade. Naturalmente, pode haver
situaes em que mentir considerado no problemtico, mas a sociedade
ainda valorizaria a honestidade na maior parte das situaes.
Considere um outro exemplo. Poderia existir uma sociedade na qual
no houvesse a proibio do homicdio? Como ela seria? Suponha que as
pessoas fos- sem livres para se matarem entre si vontade e que
ningum desaprovasse isso. Em uma tal sociedade ningum poderia se
sentir livre. Todo mundo deveria estar constantemente em guarda e
todo mundo tentaria evitar as outras pessoas todos homicidas
potenciais tanto quanto possvel. Isso resultaria na tentativa dos
indivduos se tornarem autossuficientes. A sociedade em qualquer
escala ampla colapsaria. Naturalmente, as pessoas poderiam se
agrupar em pequenos grupos onde poderiam se sentir seguras. Mas
veja o que isso significa: elas forma- riam pequenas sociedades que
no reconheceriam regras contra o homicdio. A proibio do homicdio ,
ento, um aspecto necessrio da sociedade. H um ponto geral aqui, a
saber, que existem algumas regras morais que todas as sociedades tm
que adotar porque tais regras so necessrias para que a sociedade
exista. As regras contra mentir e matar so dois exemplos. De fato,
encontramos essas regras vigentes em todas as culturas. As culturas
podem di- ferir em relao ao que elas consideram excees legtimas s
regras, mas esse desacordo existe em face de uma grande plataforma
de acordo. Portanto, ns no devemos superestimar a extenso em que as
culturas diferem. Nem toda regra moral pode variar de sociedade
para sociedade. JULGANDO UMA PRTICA CULTURAL COMO INDESEJVEL Em
1996, Fauziya Kassindja, de 17 anos de idade, chegou ao Newark
Internatio- nal Airport em New Jersey e pediu asilo. Ela tinha
voado do seu pas nativo, o
30. 36 James Rachels & Stuart Rachels Congo, no oeste da
frica, para escapar do que as pessoas l chamavam de ex- ciso.
Exciso um procedimento que desfigura permanentemente. A exciso ,
algumas vezes, chamada de circunciso feminina, mas porta pouca
semelhana com a circunciso masculina. Na mdia ocidental isso
referido como mutila- o genital feminina. De acordo com a Organizao
Mundial da Sade, a exciso praticada em 28 naes africanas, e em
torno de 136 milhes de mulheres foram dolorosamen- te mutiladas.
Algumas vezes, a exciso parte de um elaborado ritual tribal feito
em pequenas vilas; as meninas veem isso como a sua entrada no mundo
adulto. Outras vezes, a prtica feita em cidades, em mulheres que
resistem desespera- damente. Fauziya Kassindja era a mais nova de
cinco filhas. Seu pai, que possua um comrcio de caminhes de
sucesso, se ops exciso. Ele foi capaz de desafiar a tradio por
causa de sua riqueza. Assim, suas quatro primeiras filhas casaram
sem serem mutiladas. Mas, quando Fauziya tinha 16, ele morreu
repentinamen- te. Fauziya, ento, ficou sob a autoridade de seu tio,
que arranjou um casamento para ela e preparou para que fosse feita
a exciso. Fauziya ficou aterrorizada. A sua me e a irm mais velha
ajudaram-na a escapar. Nos Estados Unidos, Fauziya foi presa por
quase 18 meses, enquanto as autoridades decidiam o que fazer com
ela. Durante esse tempo, ela foi submetida a humilhantes revistas
nuas, foi-lhe negado tratamento para a sua asma e ela foi, em
geral, tratada como uma criminosa. Finalmente, lhe foi dado asilo,
mas no antes de seu caso ter incitado uma grande controvrsia. A
controvrsia no foi sobre como ela foi tratada nos Estados Unidos,
mas como ns devemos olhar os costumes de outras culturas. Uma srie
de artigos no The New York Times enco- rajou a ideia de que a
exciso brbara e deve ser condenada. Outros observado- res foram
relutantes em serem to julgadores. Viva e deixe viver, eles
disseram, afinal, nossa cultura provavelmente parecer simplesmente
estranha para os que so de fora. Suponha que digamos que a exciso
errada. Estamos ns meramente im- pondo o padro de nossa prpria
cultura? Se o relativismo cultural for correto, isso tudo o que
podemos fazer, pois no h padro moral independente da cultura ao
qual apelar. Mas isso verdade? H um padro do certo e do errado
independente da cultura? A exciso m de muitos modos. Ela dolorosa e
resulta em uma perda perma- nente do prazer sexual. Seus efeitos de
curto prazo podem incluir hemorragia,
31. Os elementos da filosofia moral 37 ttano e septicemia.
Algumas vezes, causa a morte. Os efeitos de longo prazo po- dem
incluir infeco crnica, cicatrizes que machucam ao andar e dor
contnua. Por que, ento, isso se tornou uma prtica social
disseminada? No f- cil de dizer. A prtica no tem um benefcio social
bvio. Diferentemente do infanticdio esquim, ela no necessria para a
sobrevivncia do grupo. Nem uma questo de religio. A exciso
praticada por grupos de vrias religies, incluindo o islamismo e o
cristianismo. No obstante, uma srie de argumentos feita em sua
defesa. Mulheres que so incapazes de prazer sexual so menos
suscetveis promiscuidade; assim, haveria menos gravidezes
indesejadas em mulheres no casadas. Acima de tudo, esposas para
quem sexo somente um dever so menos suscetveis de engana- rem os
seus maridos e, porque elas no esto pensando sobre sexo, ficaro
mais atentas s necessidades de seus maridos e crianas. Os maridos,
de sua parte, di- zem que gostam mais de sexo com esposas que
sofreram exciso. Os homens tm a impresso de que as mulheres que no
sofreram exciso so sujas e imaturas. Seria fcil, e talvez um pouco
arrogante, ridicularizar esses argumentos. Mas observe um aspecto
importante neles: eles tentam justificar a exciso mediante a
indicao de que ela benfica afirma-se que homens, mulheres e suas
famlias ficariam melhor quando as mulheres so submetidas exciso.
Assim, podemos abordar a questo perguntando se a exciso, no seu
todo, ajuda ou prejudica. Isso aponta para um padro que poderia ser
razoavelmente usado para pensar sobre qualquer prtica social: a
prtica promove ou impede o bem-estar das pessoas afetadas por ela?
Porm, esse parece o tipo de padro moral indepen- dente que o
relativismo cultural probe. um padro nico que pode ser trazido para
ajudar no julgamento das prticas de qualquer cultura, em qualquer
tempo, incluindo a nossa. Naturalmente, as pessoas, de praxe, no
vero esse princpio como sendo trazido de fora para julg-los, porque
todas as culturas valorizam a felicidade humana. Por que, apesar
disso tudo, pessoas conscienciosas podem ficar relutantes em
criticar outras culturas Muitas pessoas que ficam horrorizadas com
a exciso, no obstante, relutam em conden-la, por trs razes.
Primeira, h um nervosismo compreensvel quando se trata de
interferir nos costumes sociais de outras pessoas. Os europeus e os
seus descendentes nos Estados Unidos tm uma histria vergonhosa de
destruio de culturas nativas em nome da cristandade e do
esclarecimento. Por causa disso, algumas pessoas se recusam a
criticar outras culturas, especialmente culturas que
32. 38 James Rachels & Stuart Rachels se parecem com
aquelas que foram feridas no passado. H, porm, uma dife- rena entre
(a) julgar uma prtica cultural como deficiente e (b) pensar que ns
devemos anunciar tal fato, fazer presso diplomtica e enviar tropas.
O primeiro aspecto somente uma questo de tentar ver o mundo
claramente de um ponto de vista moral. O segundo uma outra coisa
inteiramente diferente. Algumas vezes pode ser correto fazer alguma
coisa a respeito, mas frequentemente no . Segunda razo, as pessoas
podem sentir, com razo, que devemos ser tole- rantes em relao a
outras culturas. A tolerncia , sem dvida, uma virtude uma pessoa
tolerante pode viver em paz com aqueles que veem as coisas diferen-
temente. Mas nada que concirna tolerncia requer de ns sustentar que
todas as crenas, todas as religies e todas as prticas sociais so
igualmente admirveis. Pelo contrrio, se ns no pensssemos que
algumas coisas so melhores do que outras, ento no haveria nada para
tolerarmos. Finalmente, as pessoas podem relutar em julgar por que
elas no querem expressar desrespeito pela sociedade que criticada.
Mas, de novo, isso engano- so: condenar uma prtica particular no
dizer que a cultura no seu todo des- prezvel. Afinal, a cultura
pode ainda ter muitos aspectos admirveis. Realmente, devemos
esperar que isso seja verdade da maioria das sociedades humanas
elas so misturas de prticas boas e ruins. A exciso parece ser uma
das ruins. DE VOLTA S CINCO PRETENSES Vamos retornar agora aos
cinco princpios do relativismo cultural que listamos acima. Como
eles se saram em nossa discusso? 1. Sociedades diferentes tm cdigos
morais diferentes. Isso, certamente, verdadeiro. No entanto, h
alguns valores que todas as culturas partilham, como o valor de
dizer a verdade, a importncia de cuidar dos jovens e a proibio
contra o homicdio. Ademais, quando os costumes diferem, as razes de
fundo tero, frequentemente, mais a ver com crenas fatuais das
culturas do que com seus valores. 2. O cdigo moral de uma sociedade
determina o que certo dentro daquela sociedade, isto , se o cdigo
moral de uma sociedade diz que uma certa ao correta, ento aquela ao
correta, ao menos dentro daquela sociedade.
33. Os elementos da filosofia moral 39 Aqui ns devemos ter em
mente a diferena entre o que a sociedade acredita sobre a moral e o
que realmente verdadeiro. O cdigo moral de uma sociedade
intimamente ligado ao que as pessoas naquela sociedade acreditam
ser correto. Porm, tal cdigo e aquelas pessoas podem estar errados.
Antes, ns considera- mos o exemplo da exciso a prtica brbara
endossada por muitas sociedades. Considere trs exemplos a mais,
todos eles envolvendo o mau tratamento das mulheres: Em 2002, uma
me solteira da Nigria foi sentenciada a ser apedrejada at a morte
por ter tido sexo fora do casamento. No claro se os valores
nigerianos, no seu todo, aprovaram esse veredicto, dado que mais
tarde a pena foi cassada por um tribunal superior. Porm, ela foi
cassada em parte para apaziguar a comunidade internacional. Quando
os prprios nigerianos ouviram o veredicto sendo lido no tribunal, a
multido gritou em aprovao. Em 2005, uma mulher da Austrlia foi
condenada por tentar contraban- dear quatro quilos de maconha para
a Indonsia. Por tal crime, ela foi sentenciada a 20 anos de priso
uma punio excessiva. Sob as leis da Indonsia, ela poderia mesmo ter
recebido a pena de morte. Em 2007, uma mulher foi estuprada por uma
gangue na Arbia Saudita. Quando ela informou polcia, esta, no curso
da investigao, descobriu que ela tinha recentemente estado com um
homem que no era seu pa- rente. Por tal crime, ela foi sentenciada
a 90 aoites. Quando ela apelou de sua condenao, isso irritou os
juzes, ento eles aumentaram a sua sentena para 200 aoites e mais
seis meses de priso. Finalmente, o rei saudita a perdoou, ainda que
ele tenha dito que apoiava a sentena que ela tinha recebido. Com
efeito, o relativismo cultural sustenta que as sociedades so moral-
mente infalveis em outras palavras, que a moral de uma cultura
nunca pode estar errada. Mas, quando vemos que as sociedades podem
e endossam graves injustias, percebemos que sociedades, como os
seus membros, podem necessi- tar de aperfeioamento. 3. No h padro
objetivo que pode ser usado para julgar o cdigo de uma sociedade
como melhor do que o de outra sociedade. No h verdades morais que
valham para todas as pessoas em todos os tempos.
34. 40 James Rachels & Stuart Rachels difcil pensar em
princpios ticos que valham para todas as pessoas em todos os
tempos. Porm, se formos criticar a prtica da escravido, apedreja-
mento ou mutilao genital, e se tais prticas so verdadeiramente
erradas, ento temos que apelar a princpios que no esto vinculados a
qualquer sociedade particular. Acima, sugeri um de tais princpios:
de que sempre interessa se uma prtica promove ou impede o bem-estar
das pessoas afetadas por ela. 4. O cdigo moral de nossa prpria
sociedade no tem um status especial. Ele somente mais um cdigo
entre muitos. verdade que o cdigo moral de nossa sociedade no tem
um status es- pecial. Afinal, a nossa sociedade no tem uma aurola
celeste nas suas bordas. Nossos valores no tm um direito especial
pela simples razo de serem os nos- sos valores. Porm, dizer que o
cdigo moral de nossa prpria sociedade me- ramente um entre muitos
parece implicar que todos os cdigos so iguais que eles so, mais ou
menos, igualmente bons. De fato, uma questo aberta se um dado cdigo
meramente um entre muitos. Tal cdigo pode estar entre os melhores e
pode estar entre os piores. 5. arrogante de nossa parte julgar
outras culturas. Devemos sempre ser tolerantes em relao a elas. H
muita verdade nisso, mas o ponto exagerado. Frequentemente, somos
arrogantes quando criticamos outras culturas, e a tolerncia , em
geral, uma coisa boa. Porm, no devemos tolerar tudo. As sociedades
humanas tm feito coisas terrveis. uma marca de progresso quando ns
podemos dizer que tais coisas so do passado. O QUE NS PODEMOS
APRENDER DO RELATIVISMO CULTURAL At aqui, discutindo o relativismo
cultural, me detive mais nos seus defeitos. Eu disse que ele se
baseia em um argumento falho, que tem consequncias implau- sveis e
que sugere mais desacordo moral do que realmente existe. Tudo isso
con- tribui para uma rejeio da teoria. No entanto, voc pode ter a
sensao de que isso um pouco injusto. A teoria tem que ter alguma
coisa em sua defesa por que outra razo ela teria sido to influente?
De fato, penso que h alguma coisa correta sobre o relativismo
cultural. H duas lies que devemos aprender dele.
35. Os elementos da filosofia moral 41 Primeira, o relativismo
cultural nos adverte, de forma absolutamente cor- reta, sobre o
perigo de assumir que todas as nossas prticas so baseadas em um
padro racional absoluto. Elas no so. Alguns de nossos costumes so
mera- mente convencionais meramente peculiares de nossa cultura , e
fcil perder de vista esse fato. Relembrando-nos disso, a teoria nos
presta um servio. Prticas funerrias so um exemplo. Os galatianos,
de acordo com Her- doto, eram homens que comiam os seus pais uma
ideia chocante, ao menos para ns. Mas comer a carne dos mortos pode
ser entendido como um sinal de respeito. Pode ser visto como um ato
simblico que diz: ns queremos que o esprito dessa pessoa habite
dentro de ns. Talvez seja desse modo que os gala- tianos viam tal
ato. Segundo esse modo de pensar, enterrar os mortos poderia ser
visto como um ato de rejeio, e queimar o corpo, como positivamente
des- denhoso. Naturalmente, a ideia de comer carne humana pode ser
repulsiva para ns. Mas e ento? Nossa repulsa pode ser somente o
reflexo de nossa sociedade. O relativismo cultural comea com o
insight de que muitas de nossas prticas so assim somente produtos
culturais. Porm, h alguma coisa errada com a teoria quando ela
infere que, do fato de algumas prticas serem como essa, ento todas
elas tm que ser assim. Considere a modstia no vestir. Nos Estados
Unidos, no se supe que uma mulher v mostrar os seus seios em
pblico. Por exemplo, durante o intervalo do 2004 Super Bowl, Justin
Timberlake rasgou parte da roupa de Janet Jackson, expondo um dos
seus seios para o pblico. A CBS rapidamente mudou para uma tomada
area do estdio, mas j era tarde demais. Meio milho de telespecta-
dores reclamaram, e o governo federal multou a CBS em 550 mil
dlares. Em algumas culturas, porm, no considerado problema uma
mulher mostrar o torso inferior em pblico. Objetivamente falando,
tais ostentaes no so nem certas nem erradas. Finalmente, considere
um caso ainda mais complexo e controverso: aquele do casamento
monogmico. Na nossa sociedade, o ideal se apaixonar e se ca- sar
com uma pessoa. Ento, espera-se que a pessoa permanea fiel para
sempre. Mas no h outros modos de buscar a felicidade? O colunista
Dan Savage lista algumas das desvantagens possveis da monogamia:
tdio, desespero, falta de variedade, morte sexual e dar por
garantido. Por essas razes, muitas pessoas veem a monogamia como um
ideal no realista e como um objetivo cuja busca poderia no lhes
fazer feliz. Quais so as alternativas a esse ideal? Alguns casais
rejeitam a monoga- mia pela permisso recproca de casos
extraconjugais ocasionais. Permitir que o
36. 42 James Rachels & Stuart Rachels prprio cnjuge tenha
um caso arriscado o cnjuge pode no voltar mais , mas uma maior
abertura no casamento poderia funcionar melhor do que o nosso
sistema corrente, no qual muitas pessoas se sentem sexualmente
aprisionadas e, acima de tudo, culpadas por terem esses
sentimentos. Outras pessoas se desviam da monogamia de forma mais
radical pela prtica do poliamor (polyamory), que consiste em ter
mais de um companheiro fixo, com o consentimento de todos os
envolvidos. Poliamor inclui casamentos em grupo como as trades,
envolvendo trs pessoas, ou quadras, envolvendo quatro pessoas.
Alguns desses arranjos podem funcionar melhor do que outros, mas
essa realmente no uma questo de moralidade. Se a esposa de um homem
lhe d permisso para ter um caso, en- to ele no a est enganando ele
no est traindo a sua confiana, porque ela consentiu com o caso. Ou,
se quatro pessoas querem viver juntas e funcionarem como uma nica
famlia, com amor fluindo reciprocamente, ento no h nada moralmente
errado com isso. Porm, a maioria das pessoas em nossa sociedade
desaprovaria qualquer desvio do ideal cultural da monogamia. A
segunda lio tem a ver com manter uma mente aberta. medida que ns
crescemos, desenvolvemos sentimentos fortes em relao s coisas:
apren- demos a ver alguns tipos de comportamento como aceitveis e
outros como ultrajantes. Ocasionalmente, podemos achar tais
sentimentos desafiadores. Por exemplo, ns podemos ter aprendido que
a homossexualidade imoral e nos sentir desconfortveis perto de
pessoas gays. Mas, ento, algum sugere que isso pode ser um
preconceito, que no h nada de errado em ser gay e que as pesso- as
gays so somente pessoas, como qualquer outra, que tm a
peculiaridade de serem atradas por membros do mesmo sexo. Porque
temos sentimentos fortes em relao a isso, podemos achar difcil
levar a srio essa linha de raciocnio. O relativismo cultural
fornece um antdoto para essa espcie de dogmatis- mo. Quando Herdoto
narrou a histria dos gregos e dos galatianos, ele acres- centou:
Pois, se a cada um, no importa quem, fosse dada a oportunidade de
esco- lher entre todas as naes do mundo o conjunto de crenas que
pensa ser o melhor, ele, inevitavelmente, depois de uma considerao
cuidadosa dos seus relativos mritos, escolheria aquele do seu pas.
Todo mundo, sem exceo, acredita que seus prprios costumes nativos e
a religio na qual foi criado so os melhores. Dar-se conta disso
pode auxiliar a ampliar as nossas mentes. Podemos ver que nossos
sentimentos no so necessariamente percepes da verdade que eles
podem ser devidos a condicionamentos culturais e nada mais.
Portanto, quando ouvimos a sugesto de que alguns elementos de nosso
cdigo social no
37. Os elementos da filosofia moral 43 so realmente o melhor e
nos vemos resistindo a essa sugesto, podemos parar e lembrar o que
foi dito. Desse modo, seremos mais abertos para descobrir a
verdade, qualquer que ela possa ser. Ento podemos entender o apelo
do relativismo cultural, apesar dos seus defeitos. uma teoria
atrativa porque baseada em um insight genuno: que muitas de nossas
prticas e atitudes que achamos naturais so na verdade somente
produtos culturais. Acima de tudo, manter esse pensamento na mente
importante se quisermos evitar a arrogncia e permanecer abertos a
novas ideias. Esses so pontos importantes que no devem ser
considerados com leviandade. Porm, ns podemos aceit-los sem aceitar
toda a teoria.
38. 3 Subjetivismo na tica Tome qualquer ao [viciosa] [...] Por
exemplo, assassinato premeditado. Examine ele na melhor luz e veja
se pode encontrar uma questo de fato ou existncia real que voc
possa chamar vcio [...] Voc nunca o encontrar, a menos que voc
dirija a reflexo para o seu prprio peito e encontre um sentimento
de [desaprovao], que ocorre em voc, em relao a essa ao. Eis uma
questo de fato; mas um objeto de sentimento, no de razo. David
Hume, A Treatise of Human Nature (1740) A IDEIA BSICA DO
SUBJETIVISMO TICO Em 2001, houve uma eleio para prefeito em Nova
York, e, quando chegou o dia para a passeata Gay Pride Day, cada
candidato democrata e republicano se fez presente marcha. Matt
Foreman, o diretor de uma organizao para os di- reitos dos gays,
descreveu a presena de todos os candidatos marcha como boa para as
nossas causas. Ele disse: Em outras partes do pas, os
posicionamentos tomados aqui poderiam parecer extremamente
impopulares, seno fatais para as urnas. O partido republicano
nacional aparentemente concordou; por dcadas, ele tinha se oposto
ao movimento pelos direitos dos gays. O que as pessoas por todo o
pas realmente pensam? Desde 2001, o Gallup Poll pergunta aos
americanos em que eles pessoalmente acreditam: as relaes gays so
moralmente aceitveis ou moralmente erradas. Em 2001, 53% dos ame-
ricanos consideraram as relaes gays moralmente erradas, com somente
40% chamando-as de moralmente aceitveis. Em 2011, esse nmero mudou
drasti- camente: 56% chamaram as relaes gays de moralmente
aceitveis e somente 39% julgaram-nas moralmente erradas. As pessoas
de ambos os lados tm sentimentos fortes. Michele Bachmann, uma
deputada republicana de Minnesota, disse uma vez para uma plateia
conser- vadora: Se voc est envolvido em um estilo de vida gay ou
lsbico, isso servido. uma servido pessoal, desespero pessoal e
escravido pessoal. Bachmann e seu marido oferecem para gays com
problemas um modo de quebrar as suas alegadas
39. Os elementos da filosofia moral 45 cadeias: eles dirigem um
Christian Counseling Center em Minnesota que ofere- ce a seus
clientes terapia reparativa como uma cura para a homossexualidade.
A Senhora Bachmann uma evanglica luterana. O ponto de vista catlico
pode ter mais nuances, mas concorda que sexo gay errado. De acordo
com o Cate- cismo da Igreja Catlica, os homossexuais no escolhem a
sua condio homos- sexual e devem ser aceitos com respeito, compaixo
e sensibilidade. Qualquer sinal de discriminao injusta a seu
respeito deve ser evitado. No entanto, atos homossexuais so
intrinsecamente desordenados e sob nenhuma circunstncia devem ser
aprovados. Portanto, se as pessoas gays querem ser virtuosas, ento
elas devem resistir ao seu desejo. Qual atitude ns devemos tomar?
Podemos dizer que a homossexualidade imoral ou que ela
absolutamente correta. Porm, h uma terceira alternativa. Ns podemos
dizer: As pessoas tm opinies diferentes, mas, no que diz respeito
moral, no h fatos e ningum est correto. As pessoas apenas sentem de
maneira diferente e isso tudo o que h para dizer. Esse o pensamento
bsico por trs do subjetivismo tico. O subjetivismo tico a ideia
segundo a qual as nossas opinies morais so baseadas em nossos
sentimentos e nada mais. Sob esse ponto de vista, no h uma tal
coisa como o objetivamente certo ou errado. um fato que algumas
pessoas so homosse- xuais e algumas so heterossexuais, mas no um
fato que um seja bom e outro mau. Portanto, quando algum como
Bachmann diz que a homossexualidade errada, ela no est
estabelecendo um fato sobre a homossexualidade. Em vez disso, ela
est meramente dizendo alguma coisa sobre seus sentimentos.
Naturalmente, o subjetivismo tico no apenas uma ideia sobre a
avaliao da homossexualidade. Ele se aplica a todas as questes
morais. Para tomar um exemplo diferente, um fato que os nazistas
exterminaram milhares de pessoas inocentes, mas, de acordo com o
subjetivismo tico, no um fato que aquilo que eles fizeram foi
errado. Quando chamamos as suas aes de erradas, somente estamos
dizendo que temos sentimentos negativos em relao a elas. O mesmo se
aplica a qualquer julgamento moral que seja. A EVOLUO DA TEORIA Uma
teoria filosfica pode avanar por vrios estgios. Primeiramente, ela
for- mulada em termos simples, o que muitas pessoas acham atrativo.
Essa formula- o simples, contudo, examinada e julgada defeituosa.
Nesse ponto, algumas
40. 46 James Rachels & Stuart Rachels pessoas ficam to
impressionadas com as objees que elas abandonam a teo- ria. Outras,
contudo, mantm a confiana na ideia bsica e a refinam. Por um
momento, parece como se elas pudessem salvar a teoria. Mas, ento,
novos ar- gumentos levantam dvidas sobre a nova verso. Essas novas
objees, como as antigas, levam algumas pessoas a abandonarem a
ideia, enquanto outras mantm a f e propem uma outra verso
melhorada. Ento todo o processo de reviso e crtica comea de novo. A
teoria do subjetivismo tico se desenvolveu exatamente desse modo.
Ela comeou como uma ideia simples nas palavras de David Hume, de
que a mora- lidade uma questo de sentimento e no de fato. Mas, ao
mesmo tempo em que objees foram levantadas contra a teoria e seus
defensores tentaram responder a elas, ela se tornou mais
sofisticada. O PRIMEIRO ESTGIO: O SUBJETIVISMO SIMPLES A forma mais
simples da teoria esta: quando uma pessoa diz que alguma coisa
moralmente boa ou ruim, isso significa que ela aprova tal coisa ou
a desaprova e nada mais que isso. Em outras palavras: X moralmente
aceitvel X correto Todas significam: X bom } Eu (o falante) aprovo
X X deve ser feito Similarmente: X moralmente inaceitvel X errado
Todas significam: X mau } Eu (o falante) desaprovo X X no deve ser
feito Ns podemos chamar essa verso da teoria de subjetivismo
simples. Ele expressa a ideia bsica do subjetivismo tico de uma
forma plena, no compli- cada, e muitas pessoas acharam-na atrativa.
Contudo, ela est aberta a algumas objees srias.
41. Os elementos da filosofia moral 47 O subjetivismo simples
no pode dar conta das discordncias O defensor dos direitos dos
gays, Matt Foreman, no acredita que a homossexu- alidade seja
imoral. A deputada Michele Bachmann, contudo, acredita que seja.
Desse modo, Foreman e Bachmann parecem discordar. Considere o que
implica o subjetivismo simples sobre essa situao. De acordo com o
subjetivismo simples, quando Foreman afirma que a ho-
mossexualidade no imoral, ele est meramente fazendo uma afirmao
sobre suas atitudes ele est a dizer: Eu, Matt Foreman, no desaprovo
a homossexua lidade. Poderia Bachmann discordar disso? No, Bachmann
poderia concordar que Foreman no desaprova a homossexualidade. Ao
mesmo tempo, quando Bachmann diz que a homossexualidade imoral, ela
est somente a dizer: Eu, Michele Bachmann, desaprovo a
homossexualidade. Como poderia algum dis- cordar disso? Assim, de
acordo com o subjetivismo simples, no h desacordo entre eles. Cada
um deles deveria reconhecer a verdade do que o outro est a dizer.
Porm, certamente, isso incorreto, pois Bachmann e Foreman realmente
discordam sobre a homossexualidade. H uma espcie de frustrao eterna
implicada no subjetivismo simples: Bachmann e Foreman so
profundamente opostos um ao outro, ainda assim, eles no podem nem
mesmo expressar as suas posies de um modo que a questo seja posta.
Foreman pode tentar negar o que Bachmann diz, mas, de acordo com o
subjetivismo simples, ele apenas consegue falar sobre ele mesmo. O
argumento pode ser resumido assim: quando uma pessoa diz X mo-
ralmente aceitvel e uma outra pessoa diz X moralmente inaceitvel,
elas discordam. Contudo, se o subjetivismo simples for correto, no
pode ha