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Elementos da Filosofia Moral - James Rachels

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  1. 1. James Rachels | Stuart Rachels os elementos da filosofia moral 7a edio 2013 Verso impressa desta obra: 2013 Traduo e reviso tcnica desta obra: Delamar Jos Volpato Dutra Professor de Filosofia do Direito do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). AMGH Editora Ltda.
  2. 2. Sobre os autores James Rachels (19412003) escreveu The End of Life: Euthanasia and Morality (1986), Created from Animals: The Moral Implications of Darwinism (1990), Can Ethics Provide Answers? And Other Essays in Moral Philosophy (1997), Problems from Philosophy (primeira edio, 2005) e The Legacy of Socrates: Essays in Moral Philosophy (2007). Seu website http://www.jamesrachels.org/. Stuart Rachels professor associado de Filosofia na University of Alabama. Ele tem revisado vrios dos livros de James Rachels, incluindo Problems from Philo- sophy (terceira edio, 2012) e The Right Thing to Do (sexta edio, 2012). Stuart ganhou o Campeonato de Xadrez dos Estados Unidos em 1989, aos 20 anos. Atual mente ele um Bronze Life Master no jogo de bridge. Seu website http://www. jamesrachels.org/stuart/.
  3. 3. Sumrio Prefcio ......................................................................................................9 1 O que a moralidade? ...........................................................................13 2 O desafio do relativismo cultural .............................................................. 26 3 Subjetivismo na tica ........................................................................... 44 4 A moralidade depende da religio? ............................................................61 5 Egosmo tico .................................................................................... 75 6 A Teoria do Contrato Social .................................................................... 93 7 A abordagem utilitarista .......................................................................109 8 O debate sobre o utilitarismo ................................................................120 9 H regras morais absolutas? ..................................................................135 10 Kant e o respeito pelas pessoas .............................................................146 11 Feminismo e a tica do cuidado .............................................................156 12 tica da virtude ..................................................................................167 13 Como seria uma teoria moral satisfatria? .................................................183 Notas sobre as fontes ..................................................................................193 ndice ..................................................................................................... 205
  4. 4. Prefcio Scrates, um dos primeiros e maiores filsofos morais, disse que a moralidade no sobre uma questo menor, mas como ns devemos viver. Este livro uma introduo filosofia moral, concebida em sentido amplo. Ao escrever este livro, fui guiado pelos seguintes pensamentos: suponha que algum nunca tenha estudado tica, mas queira agora fazer isso. Quais so as primeiras coisas que ele ou ela deveria aprender? Meu livro uma resposta a esta questo. No tento cobrir todos os tpicos da rea, nem completo o tratamento que fao de qualquer tpico. Em vez disso, tento discutir as ideias que um nefito deveria enfrentar primeiro. Os captulos foram escritos de tal forma que eles podem ser lidos inde- pendentemente um do outro. Com efeito, eles so ensaios separados. Assim, se algum estiver interessado em egosmo tico, pode ir direto ao Captulo 5 e encontrar uma introduo autnoma a tal teoria. Quando lidos na sua ordem, porm, os captulos trazem, mais ou menos, uma histria com continuidade. O primeiro apresenta uma concepo mnima do que moralidade. Os captulos intermedirios cobrem as teorias ticas mais importantes. O ltimo captulo apresenta como eu penso que deveria ser uma teoria moral satisfatria. O objetivo deste livro no providenciar uma rede, um tratamento unifi- cado da verdade sobre tica. Esse seria um modo empobrecido de introduzir a matria. A filosofia no como a fsica. Na fsica, h um amplo corpo de verdades estabelecidas que os iniciantes tm que pacientemente dominar. (Professores de fsica raramente convidam seus estudantes a terem suas prprias ideias sobre as leis da termodinmica.) Certamente h controvrsias no resolvidas na fsica, mas isso tem lugar em face do pano de fundo de um acordo amplo. Na filosofia, em contraste, tudo controverso ou quase tudo. Algumas das questes funda- mentais ainda esto em disputa. Uma boa introduo no tentar esconder esse fato um tanto embaraoso.
  5. 5. 10 James Rachels & Stuart Rachels Voc encontrar aqui, ento, um exame das ideias, teorias e argumentos em contenda. Acho algumas dessas propostas mais atraentes do que outras, e um filsofo que fizesse uma avaliao diferente sem dvida escreveria um livro diferente. Assim, meu prprio ponto de vista colore a apresentao. Mas ten- to mostrar as ideias em disputa de forma equitativa e, quando fao julgamento sobre um argumento, fao o melhor para explicar o porqu. A filosofia, como a moralidade, do incio ao fim um exerccio de razo. Ns devemos abraar as ideias que so mais bem apoiadas pelos argumentos. Se este livro tiver sucesso, ento o leitor poder comear a avaliar no que repousa o peso da razo. SOBRE A NOVA EDIO A stima edio no inclui maiores mudanas, porm muitas partes do livro foram melhoradas. No Captulo 1, O que a moralidade?, adicionei detalhes em relao pretenso de que o nosso conceito de morte mudou nos ltimos 50 anos (Seo Primeiro exemplo: o Beb Theresa). No Captulo 2, O desafio do relativismo cultural, expandi a discusso sobre a monogamia (Seo O que ns podemos aprender do relativismo cultural). No Captulo 3, Subjetivismo na tica, substitu a citao de Jerry Falwell por uma de Michele Bachmann (Seo A ideia bsica do subjetivismo tico). Corrigi alguma terminologia sobre crenas e atitudes advindas do livro de Charles L. Stevenson (Seo O segundo estgio: emotivismo) e expandi nossa discusso da homossexualidade (Seo A questo da homossexualidade). No Captulo 4, A moralidade depende da religio?, corrigi o nosso tra- tamento da histria do pensamento catlico sobre o aborto. Em edies prvias,nsdissemos,erroneamente,queoalegadopontodehomunculi sobre o microscpio primitivo teve um efeito profundo na posio da Igreja a respeito do assunto. No Captulo 5, Egosmo tico, o princpio do igual tratamento foi refor- mulado para dizer: ns devemos tratar as pessoas igualmente, a menos que haja uma boa razo para no faz-lo. O Captulo 6 agora se chama A Teoria do Contrato Social (no lugar de A ideia do contrato social).
  6. 6. Os elementos da filosofia moral 11 No Captulo 8, O debate sobre o utilitarismo, reformulei o tratamento do utilitarismo clssico que abre o captulo. O novo tratamento explica o que igual considerao. Ademais, agora menciono a acusao de que o utilitarismo poderia apoiar a tirania da maioria em razo do seu atropelo dos direitos individuais (Seo As consequncias so tudo o que importa?). Finalmente, a primeira defesa do utilitarismo foi renomeada como Contestando as consequncias (no lugar de Negando que as consequncias possam ser boas) (Seo A defesa do utilitarismo). No final do Captulo 10, Kant e o respeito pelas pessoas, agora explano por que o debate entre retributivistas e utilitaristas pode se converter no debate sobre a vontade livre. O Captulo 12 chama-se agora tica da virtude (em vez de As ticas da virtude). Reescrevi a subseo sobre a honestidade (Seo As virtudes). Outras mudanas so muito pequenas para mencionar. AGRADECIMENTOS Eu agradeo pela ajuda de Keith Augustine, Thomas Avery, Luke Barber, Matthew Brophy, Michael Huemer, Kaave Lajevardi, Sean McAleer, Cayce Moore, Filimon Peonidis, Howard Pospesel, Brian Schimpf, Stephen J. Sullivan, Steve Sverdlik e aos marcantes revisores annimos da McGraw-Hill. Meus dbitos maiores so para meu assistente de pesquisa Daniel Hollingshead; para minha esposa, Profes- sora Heather Elliott; e para minha me, Carol Rachels, cujo conselho novamente se provou de uma ajuda enorme. Ns todos sentimos falta de James Rachels, o qual foi o nico autor deste livro em suas quatro primeiras edies. Para saber mais sobre ele, visite www.jamesrachels.org. Diga-me os seus pensamentos sobre o livro: [email protected]. Stuart Rachels
  7. 7. 1 O que a moralidade? Ns no estamos discutindo uma questo menor, mas como ns devemos viver. Scrates, na Repblica de Plato (390 a.C., aproximadamente) O PROBLEMA DA DEFINIO A filosofia moral o estudo do que a moralidade e do que ela requer de ns. Como Scrates disse, sobre como ns devemos viver e por qu. Seria til se pudssemos comear com uma definio simples, incontroversa, do que a mo- ralidade , mas isso se mostra impossvel. H muitas teorias rivais, cada uma expondo uma concepo diferente do que significa viver moralmente, sendo que qualquer definio que v alm da formulao simples de Scrates est fadada a ofender ao menos uma dessas concepes. Isso deve nos tornar cautelosos, mas no nos paralisar. Neste captulo irei descrever a concepo mnima de moralidade. Como o nome sugere, a concep- o mnima um ncleo que toda teoria moral deve aceitar, ao menos como um ponto de partida. Porm, primeiramente, iremos analisar algumas controvrsias que tm a ver com crianas portadoras de deficincia.* Nossa discusso trar luz os traos da concepo mnima. PRIMEIRO EXEMPLO: O BEB THERESA Theresa Ann Campo Pearson, uma criana conhecida do pblico como Beb Theresa, nasceu na Flrida em 1992. O Beb Theresa tinha anencefalia, uma das * N. de T.: A palavra handicapped ser traduzida por deficiente porque esta a terminologia legal adotada no Decreto N. 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Conveno Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficincia e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de maro de 2007.
  8. 8. 14 James Rachels & Stuart Rachels principais doenas genticas. Crianas anencfalas so muitas vezes nominadas de bebs sem crebro, porm isso no bem acurado. Faltam partes importantes do crebro o crtex cerebral (cerebrum) e o cerebelo , assim como o topo do crnio. Contudo, o tronco cerebral ainda est l, e assim o beb pode ainda respi- rar e ter batimentos cardacos. Nos Estados Unidos, a maioria dos casos de anen- cefalia so detectados durante a gestao, sendo os fetos, em geral, abortados. Em torno de 350 nascem vivos a cada ano e eles morrem em alguns dias. A histria do Beb Theresa notvel somente porque seus pais fizeram um requerimento no usual. Sabendo que o seu beb morreria cedo e nunca poderia ser consciente, os pais de Theresa doaram seus rgos para transplante imediato. Eles pensaram que seus rins, fgado, corao, pulmes e olhos poderiam ir para outras crianas que poderiam se beneficiar deles. Seus mdicos concordaram. Milhares de crianas necessitam de transplante a cada ano, e nunca h rgos suficientes disponveis. Contudo, os rgos de Theresa no foram usados porque a lei da Flrida probe a remoo de rgos at a morte do doador. Quando o Beb Theresa morreu, oito dias depois, j foi tarde demais seus rgos tinham se deteriorado muito para serem retirados e transplantados. O caso do Beb Theresa foi amplamente debatido. Deveria ela ter sido mor- ta, de tal forma que seus rgos poderiam ter sido usados para salvar outras crianas? Vrios eticistas profissionais pessoas empregadas por universidades, hospitais e faculdades de direito que so pagas para pensar sobre essas coisas foram entrevistados pela imprensa para comentar o caso. A maioria deles dis- cordou dos pais e dos mdicos. Como alternativa, eles apelaram para princpios filosficos venerveis para se opor retirada dos rgos. Parece simplesmente horrvel usar pessoas como meios para os fins de outras pessoas, disse um dos especialistas. Um outro explicou: antitico matar uma pessoa A para salvar uma pessoa B. Um terceiro acrescentou: O que os pais esto pedindo realmente para matar esse beb que est morrendo, de tal forma que seus rgos possam ser usados por alguma outra pessoa. Bem, esta realmente uma proposta hor- renda. ela horrenda? As opinies foram divididas. Esses eticistas pensaram assim, ao passo que os pais e os mdicos no. Mas ns estamos interessados em mais do que as pessoas pensam. Queremos saber o que verdadeiro. Estavam os pais certos ou errados em doarem para transplante os rgos de seu beb? Para responder a essa questo, devemos perguntar quais razes ou argumentos podem ser ofertados por cada lado. O que pode ser dito para justificar o pedido dos pais ou justificar a oposio a tal pedido?
  9. 9. Os elementos da filosofia moral 15 O argumento do benefcio Os pais acreditavam que os rgos de Theresa no estavam lhe proporcionando bem algum, porque ela no tinha conscincia e iria de todo modo morrer cedo. As outras crianas, no entanto, poderiam se beneficiar com eles. Desse modo, os pais parecem ter raciocinado do modo seguinte: se ns podemos beneficiar algum sem causar dano a ningum mais, ns devemos fazer isso. Transplantar os rgos poderia beneficiar outras crianas sem causar dano ao Beb Theresa. Portanto, ns devemos transplantar os seus rgos. isso correto? Nem todo argumento perfeito. Em acrscimo ao conhecimento de quais argumentos podem ser ofertados para um ponto de vista, ns tambm queremos conhecer se tais argumentos so bons. Falando em ge- ral, um argumento bom se seus pressupostos so verdadeiros e se a concluso segue logicamente deles. Nesse caso, podemos pensar sobre a assero de que no se causaria dano a Theresa. Afinal, ela iria morrer. No melhor estar vivo do que estar morto? Porm, refletindo, parece claro que nessas circunstncias trgicas, os pais estavam certos. Estar vivo um benefcio somente se permite a voc continuar com atividades e ter pensamentos, sentimentos e relaes com outras pessoas em outras palavras, se permite a voc ter uma vida. Sem tais coisas, a existncia biolgica no tem valor. Portanto, ainda que Theresa pudesse continuar viva por mais alguns dias, isso no lhe traria qualquer bem. O argumento do benefcio, portanto, fornece uma razo poderosa para o transplante dos rgos. Quais argumentos existem do outro lado? O argumento de que ns no devemos usar as pessoas como meios Os eticistas que se opuseram ao transplante ofereceram dois argumentos. O primeiro foi baseado na ideia de que errado usar as pessoas como meios para os fins de outras pessoas. Retirar os rgos de Theresa seria us-la para beneficiar outras crianas, portanto, no deveria ser feito. esse um bom argumento? A ideia de que no devemos usar as pessoas , obviamente, atraente, porm uma noo vaga que precisa ser esclarecida. O que exatamente ela significa? Usar pessoas envolve tipicamente violar a sua autonomia a sua habilidade de decidir por si mesmas como viver as suas vi- das, de acordo com seus prprios desejos e valores. A autonomia de uma pessoa pode ser violada atravs de manipulao, fraude e engano. Por exemplo, eu posso
  10. 10. 16 James Rachels & Stuart Rachels fingir ser seu amigo quando na verdade estou s interessado em sair com sua irm ou posso mentir s para voc me dar dinheiro ou posso convenc-lo de que voc apreciar ir ao cinema quando na verdade o que quero s que voc me d uma carona. Em todos os casos, estou manipulando voc a fim de obter alguma coisa para mim mesmo. A autonomia tambm violada quando as pessoas so foradas a fazer alguma coisa contra a sua vontade. Isso explica por que usar as pessoas errado. errado porque frustra a autonomia das pessoas. Porm, retirar os rgos do Beb Theresa no frustraria a sua autonomia, porque ela no tem autonomia ela no pode tomar decises, no tem desejos e no pode valorar qualquer coisa. Seria a retirada de seus rgos us-la em qualquer sentido moralmente relevante? Ns poderamos, obviamente, usar seus rgos para o benefcio de alguma outra pessoa. Ora, fazemos isso a cada vez que um transplante feito. Poderamos tambm estar usando os seus rgos sem permisso. Isso tornaria o ato errado? Se ns estivssemos usando-os contra os seus desejos, ento, essa poderia ser uma razo para objetar, pois violaria a sua autonomia. Mas o Beb Theresa no tem desejos. Quando as pessoas so incapazes de tomar decises por si mesmas e outros tm que fazer isso por elas, h duas diretivas razoveis que podem ser adotadas. Primeira, ns podemos perguntar: O que seria no seu melhor interesse?. Se aplicamos esse padro ao Beb Theresa, no haveria objeo em retirar os seus rgos, pois, como j notamos, os seus interesses no seriam afetados. Ela no consciente e morrer logo no interessando o que for feito. A segunda diretiva apela s preferncias prprias da pessoa: ns devemos perguntar: Se ela pudesse nos dizer o que ela quer, o que ela diria?. Essa espcie de pensamento til quando estamos tratando com pessoas que tm prefern- cias (ou uma vez as tiveram), mas no as podem expressar por exemplo, um pa- ciente comatoso que fez um testamento vital antes de cair no coma. Mas, lamen- tavelmente, o Beb Theresa no tem preferncia sobre coisa alguma, nem nunca teve. Portanto, no podemos obter qualquer diretiva dela, mesmo em nossa ima- ginao. A concluso que ns temos que fazer o que achamos ser o melhor. O argumento a partir da incorreo de matar Os eticistas tambm apelaram ao princpio de que errado matar uma pessoa para salvar uma outra. Retirar os rgos de Theresa seria mat-la para salvar outros, disseram eles. Desse modo, retirar os seus rgos seria errado. esse um bom argumento? A proibio de matar est, certamente, entre as regras morais mais importantes. No entanto, poucas pessoas acreditam que
  11. 11. Os elementos da filosofia moral 17 seja sempre errado matar a maioria das pessoas pensa que h excees, como a de matar em autodefesa. A questo, ento, se a retirada dos rgos de Theresa deve ser vista como uma exceo regra. H muitas razes para pensar assim: o Beb Theresa no consciente, nunca ter uma vida, ir morrer logo e a reti- rada de seus rgos ir ajudar outros bebs. Qualquer um que aceita isso ver o argumento como sendo falho. Em geral, errado matar uma pessoa para salvar outra, mas no sempre. H uma outra possibilidade. Qui devssemos olhar o Beb Theresa como j estando morto. Se isso parecer loucura, tenha em mente que a nossa concep- o de morte mudou ao longo dos anos. Em 1967, o mdico sul-africano Chris- tiaan Barnard realizou o primeiro transplante de corao em seres humanos. Esse foi um avano excitante; o transplante de corao poderia, potencialmente, salvar muitas vidas. No era claro, contudo, se alguma vida poderia ser salva nos Estados Unidos. Naquela poca, a lei americana entendia que a morte ocorria quando o corao parava de bater. Porm, uma vez que um corao para de bater, ele se degrada rapidamente e se torna imprprio para transplante. Desse modo, a lei americana mudou. Ns agora entendemos que a morte ocorre no quando o corao para de bater, mas quando o crebro para de funcionar: morte cerebral o nosso novo padro do fim da vida. Isso resolveu o problema sobre os trans- plantes porque um paciente com morte cerebral pode ainda ter um corao sa- dio, adequado para o transplante. Anencfalos no se adquam aos requisitos tcnicos da morte cerebral como ela correntemente definida; porm, talvez, a definio deva ser revisada para inclu-los. Ao final, no lhes resta qualquer esperana de uma vida cons- ciente porque eles no tm o crtex superior e o cerebelo. Se a definio da mor- te cerebral fosse reformulada para incluir os anencfalos, ns nos tornaramos acostumados com a ideia segundo a qual essas crianas desafortunadas nascem mortas, e, portanto, a retirada de seus rgos no envolveria mat-los. Ento, o argumento a partir da incorreo de matar seria desafiado. Em uma viso geral, portanto, os argumentos a favor do transplante dos rgos do Beb Theresa parecem mais fortes do que os argumentos contra. SEGUNDO EXEMPLO: JODIE E MARY Em agosto de 2000, uma jovem mulher de Gozo, uma ilha ao sul da Itlia, des- cobriu que estava gestando gmeas siamesas. Sabedora de que as facilidades do sistema de sade de Gozo eram inadequadas para tratar de tal nascimento, ela e seu marido foram ao St. Marys Hospital em Manchester, Inglaterra. As crianas,
  12. 12. 18 James Rachels & Stuart Rachels conhecidas como Mary e Jodie, estavam unidas pelo abdmen inferior. Suas co- lunas eram unidas, tinham um s corao e um par de pulmes entre elas. Jodie, a mais forte, estava provendo sangue para a sua irm. Ningum sabe quantos conjuntos de gmeos siameses nascem a cada ano, porm o nmero foi estimado em 200. A maioria morre logo depois do nasci- mento, mas alguns sobrevivem. Eles chegam at a maturidade, casam e tm seus prprios filhos. Porm o prognstico para Mary e Jodie era cruel. Os mdicos disseram que sem interveno as meninas morreriam em seis meses. A nica es- perana seria uma operao para separ-las. Isso salvaria Jodie, mas Mary mor- reria imediatamente. Os pais, que eram catlicos devotos, se recusaram a dar permisso para a operao sob o fundamento de que apressaria a morte de Mary. Ns acredita- mos que a natureza deve seguir o seu curso, disseram eles. Ns acreditamos que se for a vontade de Deus que nossas duas crianas no sobrevivam, ento, que seja assim. O hospital, na esperana de salvar Jodie, ajuizou ao pedindo permisso para fazer a operao de qualquer maneira. A corte concordou e a operao foi realizada. Como o esperado, Jodie viveu e Mary morreu. Pensando sobre esse caso, devemos distinguir a questo de quem deveria tomar a deciso da questo de qual a deciso que deveria ser tomada. Voc pode- ria pensar, por exemplo, que a deciso deveria ser deixada para os pais e que a corte no deveria ter se intrometido. Porm permanece a questo distinta de qual deveria ser a deciso mais sbia para os pais (ou para qualquer outro) toma- rem. Focaremos nesta questo: seria certo ou errado separar as gmeas? O argumento de que ns deveramos salvar tanto quanto podemos O argumento para separar as gmeas que ns temos uma escolha entre salvar uma das crianas ou deixar ambas morrerem. No absolutamente melhor sal- var uma? Esse argumento to forte que muitas pessoas iro concluir, sem mais, que as gmeas deveriam ser separadas. No pice da controvrsia, o Ladies Home Journal encomendou uma enquete para descobrir o que os americanos pensa- vam. A enquete mostrou que 78% aprovavam a operao. As pessoas estavam persuadidas, obviamente, pela ideia de que ns deveramos salvar tantos quantos podemos. Os pais de Jodie e Mary, no entanto, acreditavam que havia um argu- mento ainda mais forte do lado oposto.
  13. 13. Os elementos da filosofia moral 19 O argumento a partir da santidade da vida humana Os pais amavam ambas as suas crianas e eles acreditavam que seria errado ma- tar uma delas para salvar a outra. Naturalmente, eles no estavam sozinhos nesse pensamento. A ideia de que toda vida humana preciosa, a despeito da idade, raa, classe social ou deficincia, est no corao da tradio moral ocidental. Ela especialmente enfatizada nos escritos religiosos. Na tica tradicional, a proi- bio de matar seres humanos inocentes absoluta. No interessa se a morte poderia servir para algum bom propsito; isso simplesmente no pode ser feito. Mary um ser humano inocente, portanto, ela no deve ser morta. este um bom argumento? Os juzes que julgaram o caso no pensaram assim por uma razo surpreendente. Eles negaram que a operao iria matar Mary. O juiz Robert Walker disse que a cirurgia meramente separaria Mary de sua irm e, ento, ela morreria, no porque ela seria morta intencionalmente, mas porque o seu prprio corpo no poderia sustentar a sua vida. Em outras palavras, a operao no a mataria; a fraqueza de seu corpo que poderia mat- -la. Assim, a moralidade sobre matar seria irrelevante. O juiz, no entanto, errou o ponto. No interessa se dizemos que a morte de Mary causada pela operao ou pela fraqueza de seu corpo. De qualquer modo, ela morreria, e ns anteciparamos intencionalmente a sua morte. Essa a ideia por trs da proibio tradicional de matar o inocente. H, porm, uma objeo mais natural ao argumento a partir da santida- de da vida. Qui no seja sempre errado matar seres humanos inocentes. Por exemplo, matar poderia ser correto quando trs condies fossem preenchidas: a) o humano inocente no tem futuro porque, de qualquer modo, ele ir morrer logo; b) o humano inocente no tem escolha de continuar vivendo, talvez porque ele simplesmente no tenha desejos; e c) essa morte salvar outros, os quais podero levar uma vida completa. Nessas raras circunstncias, a morte de um inocente poderia ser justificada. TERCEIRO EXEMPLO: TRACY LATIMER Tracy Latimer, uma vtima de 12 anos que sofria de paralisia cerebral, foi morta por seu pai em 1993. Tracy viveu com sua famlia em uma fazenda no campo em
  14. 14. 20 James Rachels & Stuart Rachels Saskatchewan, Canad. Num domingo de manh, enquanto a sua esposa e outras crianas foram para a igreja, Robert Latimer colocou Tracy na cabine de sua pi- cape e conectou a cabine com os gases do cano de descarga at que ela morresse. Quando morreu, Tracy pesava menos de 18 quilos e foi descrita como tendo o nvel mental de um beb de trs meses. A Senhora Latimer disse que ficou alivia- da ao encontrar Tracy morta quando ela chegou em casa, e acrescentou que ela no teve a coragem de fazer isso. Robert Latimer foi processado por homicdio, mas o juiz e o jri no qui- seram trat-lo com rigor. O jri o considerou culpado somente de homicdio em segundo grau e recomendou que o juiz ignorasse a pena de dez anos para o caso. O juiz concordou e o sentenciou a um ano de priso, seguido por um ano de confinamento em sua fazenda. Mas a Suprema Corte do Canad entrou em cena e decidiu que a pena prevista para o caso deveria ser imposta. Robert Latimer entrou na priso em 2001 e teve livramento condicional em 2008. Questes legais parte, o Senhor Latimer fez alguma coisa de errado? Este caso envolve muitas das questes que ns vimos nos outros casos. Um argu- mento contra o Senhor Latimer que a vida de Tracy era moralmente preciosa de tal modo que ele no tinha o direito de mat-la. Em sua defesa, poderia ser dito que a condio de Tracy era to catastrfica que ela no tinha prospectos de uma vida seno em um sentido biolgico. A sua existncia tinha sido reduzida a um sofrimento sem sentido, de modo que mat-la era um ato de misericrdia. Considerando esses argumentos, pareceria que Robert Latimer agira de forma defensvel. Houve, porm, outros pontos levantados pelos seus crticos. O argumento da incorreo da discriminao contra os deficientes Quando Robert Latimer recebeu uma sentena branda pela corte de julgamento, muitas pessoas deficientes se sentiram insultadas. O presidente da Saskatoon Voi- ce of People with Disabilities, portador de esclerose mltipla, disse: Ningum tem o direito de decidir que a minha vida menos valiosa do que a de qualquer um. Essa a linha fundamental. Tracy foi morta porque ela era deficiente, ele disse, e isso inescrupuloso. Deve-se dar o mesmo respeito e os mesmos direitos para pessoas deficientes como se d para todo mundo. O que ns podemos fazer a respeito? A discriminao sempre uma questo sria porque ela envolve tratar algumas pessoas de forma pior do que outras e no com boas razes. Suponha, por exemplo, que seja recusado um emprego para uma pessoa cega simplesmente porque o empregador no gosta da ideia de empregar algum que no pode ver. Isso no diferente de recusar
  15. 15. Os elementos da filosofia moral 21 empregar algum porque ele hispnico, judeu ou mulher. Por que essa pessoa est sendo tratada diferentemente? ela menos hbil para fazer o trabalho? ela menos inteligente ou menos diligente? Ela merece menos o emprego? ela menos hbil para se beneficiar do emprego? Se no h boas razes para exclu-la, ento arbitrrio faz-lo. Devemos pensar que a morte de Tracy Latimer foi um caso de discrimina- o contra os deficientes? Robert Latimer argumentou que a paralisia do crebro de Tracy no foi a questo: As pessoas esto dizendo que essa uma questo de deficincia, mas elas esto erradas. Essa uma questo de tortura. Era sobre mutilao e tortura para Tracy. Um pouco antes de sua morte, Tracy sofrera uma cirurgia grande em suas costas, quadris, pernas, e mais cirurgias estavam plane- jadas. Com uma combinao de um tubo de alimentao, placas em suas costas, a perna cortada, desajeitada, com escaras, disse o seu pai, como podem as pes- soas dizerem que ela era uma menina feliz?. No julgamento, trs dos mdicos de Tracy testemunharam sobre a dificuldade de controlar a sua dor. Portanto, o Senhor Latimer negou que Tracy tinha sido morta porque ela era deficiente; ela fora morta porque ela estava sofrendo e porque no havia esperana para ela. O argumento da ladeira escorregadia Quando a Suprema Corte do Canad manteve a sentena de Robert Latimer, a diretora da Canadian Association of Independent Living Centres disse que es- tava agradavelmente surpresa. Teria sido realmente uma ladeira escorregadia e abertura das porteiras para outras pessoas decidirem quem deve viver e quem deve morrer, ela disse. Outros defensores dos deficientes repetiram essa ideia. Ns podemos sentir simpatia por Robert Latimer, foi dito; podemos mesmo pensar que Tracy Lati- mer est melhor morta. No entanto, perigoso pensar desse modo. Se aceitamos qualquer espcie de morte por compaixo, iremos deslizar por uma ladeira es- corregadia, e na parte inferior da ladeira toda a vida se tornar barata. Onde ns devemos pr a linha para parar? Se a vida de Tracy sem valor para que seja protegida, que tal a vida de outros deficientes? Que tal a vida dos idosos, dos enfermos e outros membros inteis da sociedade? Nesse contexto, o programa de Hitler de purificao racial frequentemente mencionado, implicando que ns terminaremos como os nazistas, se damos o primeiro passo. Argumentos da ladeira escorregadia tm sido usados em outros assuntos. Tem havido oposio ao aborto, fertilizao in vitro (FIV) e clonagem huma- na em razo daquilo a que podem conduzir. Muitas vezes, em retrospectiva,
  16. 16. 22 James Rachels & Stuart Rachels evidente que as preocupaes foram infundadas. Isso aconteceu com o FIV, uma tcnica para criar embries em laboratrio. Quando Louise Brown, o primeiro teste de beb de proveta, nasceu em 1978, houve previses terrveis sobre o que poderia acontecer para ela e para a sociedade como um todo. Porm, nenhuma de tais previses se tornaram verdadeiras, e o FIV se tornou rotina. Desde o nas- cimento de Louise Brown, mais de 100 mil casais americanos usaram FIV para ter crianas. Contudo, sem o benefcio da imprevisibilidade, difcil acessar o argumen- to da ladeira escorregadia; como sustenta o velho ditado, difcil fazer previses, especialmente sobre o futuro. Pessoas razoveis podem discordar sobre o que aconteceria se matar por compaixo fosse permitido em casos como o de Tracy Latimer. Aqueles que esto inclinados a defender o Senhor Latimer podem achar as previses terrveis no realistas, ao passo que aqueles que querem conden-lo podem insistir que as previses so sensatas. Essa espcie de discordncia pode ser difcil de resolver. digno de nota, contudo, que fcil abusar dos argumentos da ladeira escorregadia. Se voc se ope a alguma coisa, mas no tem um bom argumento contra, voc pode sempre fazer uma previso sobre o que poderia ocorrer e, no importa o quo implausvel for a sua previso, ningum pode provar que voc est errado. Esse o porqu de tais argumentos terem que ser acessados com cuidado. RAZO E IMPARCIALIDADE O que ns podemos aprender de tudo isso em relao natureza da moralidade? Como um comeo, podemos notar dois pontos mais importantes: primeiro, jul- gamentos morais devem ser apoiados por boas razes; e, segundo, a moralidade requer a considerao imparcial dos interesses individuais de cada um. Raciocnio moral Os casos do Beb Theresa, Jodie e Mary e Tracy Latimer so capazes de des- pertar sentimentos fortes. Tais sentimentos so, em geral, um sinal da seriedade moral e devem ser admirados. Mas eles podem ficar no caminho da descoberta da verdade: quando temos sentimentos fortes em relao a uma questo, tenta- dor simplesmente assumir que conhecemos o que a verdade, sem mesmo ter que considerar os argumentos do outro lado. Infelizmente, porm, ns no podemos confiar em nossos sentimentos, no importando o quo fortes eles possam ser.
  17. 17. Os elementos da filosofia moral 23 Nossos sentimentos podem ser irracionais: eles podem ser nada mais do que produtos do prejuzo, egosmo ou condicionamento cultural. Em um momento, por exemplo, os sentimentos das pessoas lhes disseram que os membros de ou- tras raas eram inferiores e que a escravido era o plano de Deus. Ademais, os sentimentos das pessoas podem ser muito diferentes. No caso de Tracy Latimer, algumas pessoas sentiram fortemente que seu pai merecia um tempo de priso longo, ao passo que outras sentiram de maneira igualmente for- te que ele nunca deveria ter sido processado. Contudo, ambos os sentimentos no podem estar corretos. Portanto, se queremos descobrir a verdade, devemos deixar os nossos sentimentos serem tanto quanto possvel guiados pela razo. Essa a essncia da moralidade. A coisa moralmente certa a se fazer sempre a coisa melhor funda- mentada por argumentos. Esse no um ponto de vista estreito sobre um pequeno mbito dos pontos de vista morais; uma exigncia geral da lgica que tem de ser aceita por todos, independentemente de suas posies em uma questo particular. O ponto fun- damental pode ser estabelecido de forma simples. Suponha que algum lhe diga que voc deve fazer tal e tal coisa. Voc pode legitimamente perguntar por que deve fazer isso e, se uma boa razo no puder ser dada, voc pode rejeitar o con- selho como arbitrrio ou infundado. Desse modo, julgamentos morais so diferentes de expresses de gosto pes- soal. Se algum diz: Eu gosto de caf, ele no precisa ter uma razo ele est simplesmente expressando um fato sobre suas preferncias e nada mais. No h uma coisa tal como defender racionalmente seu gostar ou no gostar de caf. Se ela estiver dizendo com acurcia o seu gosto, o que ela diz tem de ser verda- deiro. Por outro lado, se algum diz que alguma coisa moralmente errada, ele necessita de razes, e, se suas razes so legtimas, ento as outras pessoas devem reconhecer a sua fora. Pela mesma lgica, se ele no tem boas razes para o que diz, ento ele est simplesmente fazendo barulho e ns podemos ignor-lo. Naturalmente, nem toda razo apresentada uma boa razo. H bons e maus argumentos, sendo que muito da habilidade de raciocinar moralmente consiste em discernir a diferena entre eles. Porm, como tornar evidente a di- ferena? Como avaliamos os argumentos? Os exemplos que ns consideramos apontam para algumas respostas. A primeira coisa destacar os fatos em questo. Em geral, isso no to fcil quanto parece. Muitas vezes, fatos-chave so desconhecidos. Outras vezes, as questes so to complexas que mesmo os especialistas discordam. Ainda um outro problema so os prejuzos humanos. Frequentemente, ns queremos acre- ditar em alguma coisa porque isso apoia nossas pr-concepes. Por exemplo,
  18. 18. 24 James Rachels & Stuart Rachels os que desaprovam as aes de Robert Latimer, querero acreditar nas previ- ses horrveis do argumento da ladeira escorregadia; aqueles que aprovam as suas aes querero rejeit-las. fcil pensar em outros exemplos: as pessoas que no querem contribuir com a caridade frequentemente dizem que a caridade ineficiente e corrupta, mesmo quando elas no tm boas evidncias para tal; e pessoas que no gostam de homossexuais podem dizer que os homens gays so todos pedfilos, mesmo quando muito poucos so. Porm, os fatos existem inde- pendentemente de nossas vontades, sendo que o pensamento moral responsvel comea quando tentamos ver as coisas como elas so. Em seguida, podemos trazer os princpios morais para o jogo. Nos nossos trs exemplos, um certo nmero de princpios esteve envolvido: que ns no devemos usar as pessoas; que ns no devemos matar uma pessoa para salvar outra; que ns devemos fazer o que beneficiar as pessoas afetadas por nossas aes; que toda vida humana sagrada; e que errado discriminar deficientes. A maioria dos argumentos morais consiste na aplicao de princpios a casos particulares. Assim, temos de perguntar se os princpios so justificados e se eles esto sendo aplicados corretamente. Seria timo se houvesse uma receita simples para construir bons argu- mentos e evitar os maus. Infelizmente, no h. Argumentos podem dar erra- do de vrios modos, e ns temos sempre que estar alertas para a possibilidade de novas complicaes e novos tipos de erros. Porm, isso no uma surpresa. As aplicaes habituais dos mtodos de rotina nunca so um substituto para o pensamento crtico, em qualquer rea. A moralidade no uma exceo. O requerimento de imparcialidade Quase toda teoria moral importante inclui a ideia de imparcialidade. Esta a ideia de que os interesses individuais de cada um so igualmente importantes: ningum deve receber tratamento especial. Ao mesmo tempo, a imparcialidade requer que no tratemos os membros de grupos particulares como inferiores, desse modo, ela condena formas de discriminao em razo do sexo ou racismo. Imparcialidade muito conectada com a ideia de que julgamentos morais tm que ser fundamentados por boas razes. Considere-se o racista que pensa que pessoas brancas merecem todos os bons empregos. Ele gostaria que todos os mdicos, advogados, executivos e assim por diante fossem brancos. Agora, ns podemos perguntar pelas razes. Podemos perguntar por que isso pensado como correto. H alguma coisa especial a respeito das pessoas brancas que as tornam mais adequadas para as posies mais prestigiadas e melhor pagas? So
  19. 19. Os elementos da filosofia moral 25 elas mais diligentes ou brilhantes? Elas se preocupam mais consigo mesmas e com suas famlias? Elas se beneficiariam mais com tais empregos? Em cada uma das perguntas, a resposta no. E se no h boas razes para tratar as pessoas diferentemente, ento a discriminao inaceitavelmente arbitrria. O requerimento de imparcialidade, ento, , em seu fundamento, nada mais do que uma regra contra tratar as pessoas arbitrariamente. Ela probe tratar uma pessoa pior do que outra quando no h uma boa razo para fazer isso. Porm, se isso explica o que errado no racismo, tambm explica por que, em alguns casos, no racismo tratar as pessoas diferentemente. Suponha que um diretor de cinema estivesse fazendo um filme sobre Fred Shuttlesworth (1922- -2011), o heri sul-africano lder dos direitos civis. Esse diretor teria uma boa razo para no pr Christian Bale no papel de estrela. Tal discriminao no seria arbitrria ou objetvel. A CONCEPO MNIMA DE MORALIDADE Ns podemos agora estabelecer a concepo mnima: a moralidade , pelo menos, o esforo de guiar a prpria conduta por razes isto , fazer aquilo que se tem as melhores razes para fazer ao mesmo tempo dando um peso igual aos interesses de cada indivduo afetado pela sua deciso. Isso nos d uma imagem do que significa ser um agente moral consciente. O agente moral consciente algum imparcialmente preocupado com os interesses de cada um afetado pelo que ele ou ela faz; algum que examina minuciosamente os fatos e as suas implicaes; algum que aceita princpios de conduta somente depois de escrutin-los para se assegurar de que eles so justificados; algum que est disposto a ouvir a razo mesmo quando signifique rever convices prvias; e algum que, finalmente, est disposto a agir com base nos resultados de sua deliberao. Como se pode esperar, nem toda teoria tica aceita esse mnimo. Essa imagem do agente moral foi criticada de vrios modos. Porm, as teorias que rejeitam a concepo mnima encontram dificuldades srias. A maioria dos fil- sofos a aceitam; assim, a maior parte das teorias da moralidade incorporam, de uma forma ou outra, a concepo mnima.
  20. 20. 2 O desafio do relativismo cultural A moralidade difere em cada sociedade e um termo conveniente para hbitos aprovados socialmente. Ruth Benedict, Patterns of Culture (1934) CULTURAS DIFERENTES TM CDIGOS MORAIS DIFERENTES Dario, o rei da Prsia antiga, ficou intrigado com a variedade de culturas que ele encontrou em suas viagens. Ele descobriu, por exemplo, que os galatianos, que viviam na ndia, comiam os corpos de seus pais mortos. Os gregos, natu- ralmente, no faziam isso eles praticavam a cremao e viam o funeral da pira como a maneira natural e adequada de dispor dos mortos. Dario pensava que uma viso sofisticada poderia prezar as diferenas entre as culturas. Um dia, para ensinar a sua lio, ele convocou alguns gregos que estavam em sua corte e lhes perguntou o que seria necessrio para eles comerem os corpos de seus pais mortos. Eles ficaram chocados, como Dario sabia que eles ficariam, e res- ponderam que nenhuma quantidade de dinheiro poderia persuadi-los a fazer tal coisa. Ento, Dario chamou alguns galatianos e, enquanto os gregos ouviam, perguntou-lhes o que seria necessrio para eles queimarem os corpos de seus pais mortos. Os galatianos ficaram horrorizados e disseram a Dario para no falar de tais coisas. Essa estria, recontada por Herdoto em sua Histria, ilustra um tema re- corrente na literatura das cincias sociais: culturas diferentes tm cdigos morais diferentes. O que pensado como correto por um grupo pode horrorizar os mem- bros de um outro grupo e vice-versa. Devemos ns comer os corpos dos mortos ou queim-los? Se voc fosse grego, uma resposta poderia ser obviamente correta, mas, se voc fosse galatiano, a outra resposta poderia ser igualmente certa. H muitos exemplos disso. Considere os esquims do incio e meados do sculo XX. Os esquims so as pessoas nativas do Alaska, do norte do Canad, da Groelndia e do nordeste da Sibria na Rssia asitica. Atualmente, nenhum
  21. 21. Os elementos da filosofia moral 27 desses grupos se autointitula esquims, mas o termo foi historicamente referi- do quela populao dispersa do rtico. Antes do sculo XX, o mundo exterior conhecia muito pouco sobre eles. Ento, os exploradores comearam a trazer lendas estranhas. Os esquims viviam em pequenos assentamentos, separados por grandes distncias, e seus costumes se tornaram muito diferentes dos nossos. Os homens geralmente tinham mais de uma esposa e eles compartilhavam as suas esposas com os convidados, emprestando-as durante a noite como um sinal de hospi- talidade. No entanto, dentro da comunidade, um homem dominante podia de- mandar e conseguir acesso sexual regular s esposas dos outros homens. As mulheres, porm, eram livres para romper esses arranjos simplesmente deixando seus maridos e tomando novos parceiros livremente, quer dizer, contanto que seus ex-maridos no escolhessem causar muitos problemas. Tudo somado, o cos- tume esquim do casamento era uma prtica voltil que tem pouca semelhana com nossos costumes. Mas no eram diferentes somente os seus casamentos e prticas sexuais. Os esquims tambm pareciam pouco se importar com a vida humana. O infanti- cdio, por exemplo, era comum. Knud Rasmussen, um dos primeiros explorado- res, informou ter encontrado uma mulher que tinha dado luz 20 crianas, mas tinha matado 10 delas no nascimento. Meninas, ele notou, eram especialmente suscetveis de serem mortas, e isso era permitido discrio dos pais, no haven- do conexo com estigma social. Ademais, quando membros da famlia idosos se tornavam muito fracos, eles eram deixados fora na neve para morrerem. Na sociedade esquim parecia haver, notavelmente, pouco respeito pela vida. A maior parte de ns acharia esses costumes esquims completamente ina- ceitveis. Nosso prprio modo de viver parece to natural e correto para ns que dificilmente podemos conceber pessoas que vivam to diferentemente. Quando ouvimos falar de tais pessoas, podemos dizer que elas so atrasadas ou primi- tivas. Mas, para os antroplogos, os esquims no parecem incomuns. Desde o tempo de Herdoto, observadores esclarecidos observaram que concepes do certo e do errado diferem de cultura para cultura. Se assumimos que nossas ideias ticas sero partilhadas por todas as culturas, ns somos ingnuos, meramente. RELATIVISMO CULTURAL Para muitas pessoas esta observao culturas diferentes tm cdigos morais diferentes parece ser a chave para entender a moralidade. No h verdades morais universais, dizem eles. Os costumes de sociedades diferentes so tudo o
  22. 22. 28 James Rachels & Stuart Rachels que existe. Chamar um costume de correto ou incorreto implicaria poder- mos julgar tal costume por algum padro independente do que certo e errado. Mas no existe tal padro. Todo padro limitado culturalmente. O socilo- go William Graham Summer (1840-1910) apresentou o assunto nos seguintes termos: O modo correto o modo que os ancestrais utilizavam e que foi transmitido. [...] A noo de correto est nos modos de pensar de um povo. No exterior a eles, de uma origem independente, trazido para test-los. Nos modos de pensar de um povo, qualquer que seja esse pensar, ele correto. Isso ocorre porque eles so tradicionais e, portanto, contm em si mesmos a autoridade dos espritos ancestrais. Quando ns chegamos nos modos de pensar do povo, estamos no final de nossas anlises. Essa linha de pensamento, mais do que qualquer outra, tem persuadido as pessoas a serem cticas a respeito da tica. Com efeito, o relativismo cultural afir- ma que no h tal coisa como verdade universal na tica. H somente os vrios cdigos culturais e nada mais. O relativismo cultural desafia a nossa crena na objetividade e na universalidade da verdade moral. Todas as pretenses seguintes foram feitas pelos relativistas culturais: 1. Sociedades diferentes tm cdigos morais diferentes. 2. O cdigo moral de uma sociedade determina o que certo dentro daquela sociedade, isto , se o cdigo moral de uma sociedade diz que uma certa ao correta, ento aquela ao correta, ao menos dentro daquela sociedade. 3. No h padro objetivo que pode ser usado para julgar o cdigo de uma sociedade como melhor do que o de outra sociedade. No h verdades morais que valham para todas as pessoas em todos os tempos. 4. O cdigo moral de nossa prpria sociedade no tem um status especial. Ele somente mais um cdigo entre muitos. 5. arrogante de nossa parte julgar outras culturas. Devemos sempre ser tolerantes em relao a elas. Estas cinco proposies parecem caminhar em conjunto, mas elas so inde- pendentes umas das outras, o que pode significar que algumas delas podem ser verdadeiras mesmo que outras sejam falsas. Realmente, duas das proposies parecem ser inconsistentes entre si. A segunda diz que o certo e o errado so
  23. 23. Os elementos da filosofia moral 29 determinados pelas normas de cada sociedade. A quinta diz que se deve sempre ser tolerante em relao a outras culturas. Mas e se as normas de uma sociedade favorecem a intolerncia? Por exemplo, quando o exrcito nazista invadiu a Pol- nia em 1o de setembro de 1939, iniciando, com isso, a Segunda Guerra Mundial, essa foi uma ao intolerante de primeira ordem. Mas e se ela se conformasse aos ideais nazistas? Um relativista cultural, parece, no poderia criticar os nazistas por serem intolerantes, se tudo o que eles esto fazendo seguir o seu prprio cdigo moral. Dado que os relativistas culturais tm orgulho de sua tolerncia, seria ir- nico se sua teoria realmente apoiasse a intolerncia de sociedades blicas. Porm, a sua teoria no precisa ser assim. Entendido com propriedade, o relativismo cultural sustenta que as normas de uma cultura reinam supremas dentro dos li- mites da cultura. Assim, uma vez que os soldados alemes entraram na sociedade polonesa, eles se tornaram sujeitos s normas da sociedade polonesa normas que, obviamente, excluam a carnificina de poloneses inocentes. Como afirma o velho ditado, em Roma, como os romanos. Relativistas culturais concordam. O ARGUMENTO DA DIFERENA CULTURAL Os relativistas culturais frequentemente empregam uma certa forma de ar- gumento. Eles comeam com fatos sobre as culturas e terminam extraindo uma concluso sobre a moralidade. Assim, eles nos convidam a aceitar este raciocnio: 1. Os gregos acreditavam que era errado comer os mortos, ao passo que os galatianos acreditavam que era correto comer os mortos. 2. Portanto, comer os mortos no nem objetivamente certo nem obje- tivamente errado. meramente uma questo de opinio que varia de uma cultura para outra. Ou: 1. Os esquims no viam nada de errado com o infanticdio, ao passo que os americanos acreditam que ele imoral. 2. Portanto, o infanticdio no nem objetivamente certo nem objetiva- mente errado. meramente uma questo de opinio que varia de uma cultura para outra.
  24. 24. 30 James Rachels & Stuart Rachels Claramente, esses argumentos so variaes de uma ideia fundamental. Eles so exemplos de um argumento mais geral que diz: 1. Culturas diferentes tm cdigos morais diferentes. 2. Portanto, no h verdade objetiva na moralidade. Certo e errado so somente questes de opinio, e opinies variam de uma cultura para outra. Podemos chamar isso de argumento da diferena cultural. Para muitas pes- soas ele persuasivo. Mas ele um bom argumento slido? Ele no . Para um argumento ser slido, as suas premissas tm de ser ver- dadeiras e a concluso tem que se seguir logicamente delas. Aqui, o problema que a concluso no se segue das premissas isto , mesmo que a premissa seja verdadeira, a concluso ainda assim pode ser falsa. A premissa concerne quilo em que as pessoas acreditam em algumas sociedades as pessoas acreditam em uma coisa; em outras sociedades as pessoas acreditam em outra coisa. A con- cluso, portanto, concerne ao que realmente o caso. Esse tipo de concluso no se segue logicamente daquele tipo de premissa. Na terminologia filosfica, isso significa que o argumento invlido. Considere novamente o exemplo dos gregos e dos galatianos. Os gregos acreditavam que era errado comer os mortos; os galatianos acreditavam que era certo. Do mero fato de que eles discordavam, segue-se que no h verdade objetiva em relao quela matria? No, no se segue; poderia ser que a prtica fosse objetivamente certa (ou errada) e que um deles estivesse simplesmente enga nado. Para tornar o ponto claro, considere uma questo diferente. Em algumas sociedades, as pessoas acreditam que a terra plana. Em outras sociedades, como na nossa, as pessoas acreditam que a terra esfrica. Do mero fato de as pessoas discordarem, segue-se que no h verdade objetiva na geografia? Claro que no; ns nunca tiraramos tal concluso, isso porque entendemos que os mem- bros de uma sociedade podem simplesmente estar errados. No h razo para pensar que, se o mundo redondo, todo mundo tenha que conhecer isso. Simi- larmente, no h razo para pensar que, se h verdade moral, todo mundo tenha que conhec-la. O argumento da diferena cultural tenta derivar uma concluso substantiva sobre um assunto a partir do mero fato de que as pessoas discordam. Mas isso impossvel. Esse ponto no deve ser mal compreendido. No estamos dizendo que a concluso do argumento falsa. Depois de tudo o que dissemos, o relativismo cultural pode ainda ser verdadeiro. O ponto que a concluso no se segue das
  25. 25. Os elementos da filosofia moral 31 premissas. Isso significa que o argumento das diferenas culturais invlido. Portanto, o argumento falha. O QUE SE SEGUE DO RELATIVISMO CULTURAL Mesmo que o argumento das diferenas culturais no seja slido, o relativismo cultural pode ainda ser verdadeiro. O que se seguiria se ele fosse verdadeiro? Na passagem citada h pouco, William Graham Summer estabeleceu a es- sncia do relativismo cultural. Ele diz que a nica medida do certo e do errado so os padres da prpria sociedade: A noo de correto est nos modos de pensar de um povo. No exterior a eles, de uma origem independente, trazido para test-los. Nos modos de pensar de um povo, qualquer que seja esse pensar, ele correto. Suponha que levemos isso a srio. Quais poderiam ser algumas das consequncias? 1. Ns no poderamos mais dizer que os costumes das outras sociedades so moral- mente inferiores aos nossos. Isso, naturalmente, um dos pontos mais importantes salientados pelo relativismo cultural. Nunca devemos condenar uma sociedade meramente porque ela diferente. Essa atitude parece esclarecida na medida em que nos concentramos em exemplos como as prticas funerrias dos gregos e galatianos. Porm, ns tambm estaremos impedidos de criticar outras prticas menos benignas. Por exemplo, o governo chins tem uma longa histria de represso dos dissidentes polticos dentro de suas fronteiras. Em qualquer poca que se considere, na China, milhares de prisioneiros polticos fizeram trabalho fora- do. Ainda, no episdio da Praa da Paz Celestial de 1989, as tropas chinesas abateram centenas seno milhares de manifestantes pacficos. O relativismo cul- tural nos precluiria de dizer que as polticas de opresso do governo chins so erradas. Ns nem mesmo poderamos dizer que uma sociedade que respeita a liberdade de expresso melhor do que a sociedade chinesa, pois isso tambm implicaria um padro universal de comparao. A falha em condenar essas pr- ticas no parece esclarecida; ao contrrio, a opresso poltica parece errada onde quer que ela ocorra. No entanto, se aceitamos o relativismo cultural, temos que olhar tais prticas como imunes crtica. 2. Ns no poderamos mais criticar o cdigo de nossa prpria sociedade. O rela- tivismo cultural sugere um teste simples para determinar o que certo e o que errado: tudo o que precisamos fazer perguntar se a ao est de acordo com o cdigo da sociedade em questo. Suponha que um habitante da ndia queira saber se o sistema de castas de seu pas um sistema de hierarquia social rgida
  26. 26. 32 James Rachels & Stuart Rachels moralmente correto. Tudo o que ele tem que fazer perguntar se o sistema se conforma ao cdigo moral de sua sociedade. Se ele concordar, no h nada com que se preocupar, ao menos de um ponto de vista moral. Essa implicao do relativismo cultural perturbadora porque poucos de ns pensam que o cdigo de nossa sociedade seja perfeito podemos pensar em modos nos quais ele pode ser melhorado. Acima de tudo, podemos pensar em modos nos quais podemos aprender de outras culturas. Ainda assim, o relativis- mo cultural nos impede de criticar o cdigo de nossa prpria sociedade e nos impede de ver modos nos quais outras culturas podem ser melhores. Ao final, se o certo e o errado so relativos cultura, isso tem que ser verdade para a nossa prpria cultura, assim como ele para as outras culturas. 3. A ideia do progresso moral posta em dvida. Ns pensamos que ao menos algumas mudanas sociais so para o melhor. Atravs de toda a histria ociden- tal, o lugar das mulheres na sociedade foi estritamente definido. Mulheres no podiam ter propriedade, elas no podiam votar ou ocupar cargos polticos e esta- vam sob o controle quase absoluto de seus maridos ou pais. Recentemente, muito disso mudou e a maioria das pessoas pensam que isso um progresso. Mas, se o relativismo cultural correto, podemos ns legitimamente ver isso como um progresso? Progresso significa substituir os velhos modos por novos e melhores modos. Mas por meio de quais padres podemos julgar como melhores os modos novos? Se os velhos modos se conformavam aos padres do seu tempo, ento o relativismo cultural no poderia julg-los pelos nossos padres. A sociedade do sculo XIX que discriminava pelo sexo era uma socie- dade diferente daquela que ns agora habitamos. Dizer que fizemos progresso implica que a sociedade atual melhor exatamente o tipo de julgamento trans- cultural que o relativismo cultural probe. Nossas ideias sobre reforma social tambm teriam que ser reconsideradas. Reformadores como Martin Luther King Jr. souberam mudar as suas sociedades para o melhor. Mas, de acordo com o relativismo cultural, h somente um modo de melhorar a sociedade: faz-la pertencer melhor aos seus prprios ideais. Afi- nal, os ideais da sociedade so os padres pelos quais a reforma acessada. Nin- gum, porm, pode desafiar os ideais, pois eles so, por definio, corretos. De acordo com o relativismo cultural, ento, a ideia de reforma social faz sentido somente nesta ltima forma limitada. Essas trs consequncias do relativismo cultural tm levado muitas pesso- as a rejeit-lo. Ns podemos dizer que a escravido errada onde quer que ela ocorra e que a nossa prpria sociedade pode fazer progresso moral importante. O relativismo cultural no pode ser correto porque, de acordo com ele, esses julgamentos so sem sentido.
  27. 27. Os elementos da filosofia moral 33 POR QUE H MENOS DESACORDO DO QUE PARECE O relativismo cultural comea pela observao de que as culturas diferem dra- maticamente em suas vises sobre o certo e o errado. Mas quanto elas realmente diferem? verdade que h diferenas, mas fcil exager-las. Muitas vezes, o que em um primeiro momento parece ser uma grande diferena, termina simples- mente no sendo uma diferena. Considere uma cultura na qual as pessoas acreditam que errado comer carne de vaca. Pode mesmo ser uma cultura pobre, na qual no h comida suficiente. Ainda assim, as vacas no so tocadas. Uma tal sociedade parece ter valores muito diferentes dos nossos. Mas tem ela valores diferentes? Ns ainda no perguntamos por que essas pessoas no querem comer vacas. Suponha que elas acreditem que depois da morte as almas dos humanos habitam os corpos dos animais, especialmente as vacas, de tal forma que uma vaca poderia ser a av de algum. Diramos ns que seus valores diferem dos nossos? No, a diferena re- side alhures. A diferena est em nosso sistema de crenas, no em nosso sistema de valores. Ns concordamos que no devemos comer a vov; ns discordamos se as vacas podem ser a vov. O ponto que muitos fatores trabalham em conjunto para produzir os cos- tumes de uma sociedade. No somente so importantes os valores da sociedade, mas tambm o so as suas crenas religiosas, as suas crenas fatuais, e seu meio ambiente fsico. Assim, no podemos concluir que duas sociedades diferem em valores justamente porque elas diferem em costumes. Afinal, costumes podem variar por diferentes razes. Portanto, pode haver menos desacordo moral do que parecer haver. Considere de novo os esquims que matavam crianas perfeitamente sau- dveis, especialmente meninas. Ns no aprovamos tais coisas. Em nossa so- ciedade, um pai que mata um beb preso. Assim, parece haver uma grande diferena de valores em nossas duas culturas. Mas suponha que perguntemos por que os esquims faziam isso. A explicao no que lhes faltava respeito pela vida humana ou que no amavam as suas crianas. Uma famlia esquim sempre iria proteger os seus bebs se as condies permitissem. Mas os esquims viviam em um ambiente difcil, onde alimento era escasso. Para citar um velho dito esquim, a vida difcil e a margem de segurana pequena. Uma famlia pode querer alimentar seus bebs, mas ser incapaz de fazer isso. Como em muitas sociedades tradicionais, as mes esquims tinham que cuidar de suas crianas por um perodo maior de tempo do que as mes em nossa cultura por quatro anos e, talvez, por um tempo maior. Assim, mesmo nas melhores pocas, uma me podia sustentar muito poucas crianas. Acima de
  28. 28. 34 James Rachels & Stuart Rachels tudo, os esquims eram nmades, incapazes de cultivar no clima severo do norte. Eles tinham que continuar a se movimentar para encontrar comida. Crianas tinham que ser carregadas, e uma me podia carregar somente um beb em sua parca, enquanto ela viajava e fazia os seus trabalhos fora de casa. Finalmente, os esquims no tinham controle de natalidade, de tal forma que gravidezes inde- sejadas eram comuns. Crianas meninas eram mais propensas a serem mortas por duas razes. Primeira, na sociedade esquim, os homens eram os provedores primrios de comida eles eram os caadores , e comida era escassa. Os homens eram, assim, de mais valor para a comunidade. Segundo, os caadores sofriam um alto ndice de acidentes, desse modo, os homens que morriam prematuramente eram em nmero maior do que as mulheres que morriam jovens. Se crianas meninos e meninas sobrevivessem em igual nmero, ento, a populao de mulheres adul- tas seria bem maior do que a populao dos homens adultos. Examinando as estatsticas disponveis, um escritor concluiu que se no fosse pelo infanticdio das meninas [...] haveria aproximadamente uma vez e meia mais mulheres, na mdia de esquims do grupo local, do que homens provedores de comida. Portanto, o infanticdio esquim no era devido a um desrespeito funda- mental por crianas. Em vez disso, ele adveio do reconhecimento de que medidas drsticas eram necessrias para assegurar a sobrevivncia do grupo. Mesmo assim, porm, matar o beb poderia no ser a primeira opo considerada. A adoo era comum. Casais sem crianas ficavam especialmente felizes de tomar o excedente dos casais frteis. Matar era o ltimo recurso. Enfatizo isso para mostrar que os dados crus da antropologia podem ser enganosos. Eles podem fazer as diferenas de valores entre as culturas parecerem maior do que so. Os valores dos esquims no eram to diferentes dos nossos. A vida somente forou escolhas para eles que ns no temos de tomar. ALGUNS VALORES SO PARTILHADOS POR TODAS AS CULTURAS No deveria nos surpreender que os esquims fossem protetores de suas crian- as. Como eles no poderiam ser? Bebs so indefesos e no podem sobrevi- ver sem um cuidado amplo. Se um grupo no protege os seus jovens, eles no iro sobreviver e os membros velhos do grupo no sero substitudos. Por fim, o grupo pode extinguir-se. Isso significa que qualquer cultura que continue a exis- tir tem que cuidar de seus jovens. Crianas negligenciadas tm que ser a exceo, no a regra.
  29. 29. Os elementos da filosofia moral 35 Raciocnio similar mostra que outros valores tm que ser mais ou menos universais entre as sociedades humanas. Imagine como seria uma sociedade que no desse valor ao dizer a verdade. Quando uma pessoa falasse com a outra, no haveria presuno de que ela estaria dizendo a verdade, pois ela poderia facilmente estar mentindo. Em uma tal sociedade, no haveria razo para prestar ateno a qualquer coisa que algum dissesse. Se eu quisesse saber que horas so, por que eu deveria me preocupar em perguntar para algum, se mentir seria um lugar-comum? A comunicao em uma tal sociedade seria extremamente difcil, seno impossvel. E porque sociedades no podem existir sem comunicao entre seus membros, a sociedade se tornaria impossvel. Segue-se que toda so- ciedade tem de valorizar a veracidade. Naturalmente, pode haver situaes em que mentir considerado no problemtico, mas a sociedade ainda valorizaria a honestidade na maior parte das situaes. Considere um outro exemplo. Poderia existir uma sociedade na qual no houvesse a proibio do homicdio? Como ela seria? Suponha que as pessoas fos- sem livres para se matarem entre si vontade e que ningum desaprovasse isso. Em uma tal sociedade ningum poderia se sentir livre. Todo mundo deveria estar constantemente em guarda e todo mundo tentaria evitar as outras pessoas todos homicidas potenciais tanto quanto possvel. Isso resultaria na tentativa dos indivduos se tornarem autossuficientes. A sociedade em qualquer escala ampla colapsaria. Naturalmente, as pessoas poderiam se agrupar em pequenos grupos onde poderiam se sentir seguras. Mas veja o que isso significa: elas forma- riam pequenas sociedades que no reconheceriam regras contra o homicdio. A proibio do homicdio , ento, um aspecto necessrio da sociedade. H um ponto geral aqui, a saber, que existem algumas regras morais que todas as sociedades tm que adotar porque tais regras so necessrias para que a sociedade exista. As regras contra mentir e matar so dois exemplos. De fato, encontramos essas regras vigentes em todas as culturas. As culturas podem di- ferir em relao ao que elas consideram excees legtimas s regras, mas esse desacordo existe em face de uma grande plataforma de acordo. Portanto, ns no devemos superestimar a extenso em que as culturas diferem. Nem toda regra moral pode variar de sociedade para sociedade. JULGANDO UMA PRTICA CULTURAL COMO INDESEJVEL Em 1996, Fauziya Kassindja, de 17 anos de idade, chegou ao Newark Internatio- nal Airport em New Jersey e pediu asilo. Ela tinha voado do seu pas nativo, o
  30. 30. 36 James Rachels & Stuart Rachels Congo, no oeste da frica, para escapar do que as pessoas l chamavam de ex- ciso. Exciso um procedimento que desfigura permanentemente. A exciso , algumas vezes, chamada de circunciso feminina, mas porta pouca semelhana com a circunciso masculina. Na mdia ocidental isso referido como mutila- o genital feminina. De acordo com a Organizao Mundial da Sade, a exciso praticada em 28 naes africanas, e em torno de 136 milhes de mulheres foram dolorosamen- te mutiladas. Algumas vezes, a exciso parte de um elaborado ritual tribal feito em pequenas vilas; as meninas veem isso como a sua entrada no mundo adulto. Outras vezes, a prtica feita em cidades, em mulheres que resistem desespera- damente. Fauziya Kassindja era a mais nova de cinco filhas. Seu pai, que possua um comrcio de caminhes de sucesso, se ops exciso. Ele foi capaz de desafiar a tradio por causa de sua riqueza. Assim, suas quatro primeiras filhas casaram sem serem mutiladas. Mas, quando Fauziya tinha 16, ele morreu repentinamen- te. Fauziya, ento, ficou sob a autoridade de seu tio, que arranjou um casamento para ela e preparou para que fosse feita a exciso. Fauziya ficou aterrorizada. A sua me e a irm mais velha ajudaram-na a escapar. Nos Estados Unidos, Fauziya foi presa por quase 18 meses, enquanto as autoridades decidiam o que fazer com ela. Durante esse tempo, ela foi submetida a humilhantes revistas nuas, foi-lhe negado tratamento para a sua asma e ela foi, em geral, tratada como uma criminosa. Finalmente, lhe foi dado asilo, mas no antes de seu caso ter incitado uma grande controvrsia. A controvrsia no foi sobre como ela foi tratada nos Estados Unidos, mas como ns devemos olhar os costumes de outras culturas. Uma srie de artigos no The New York Times enco- rajou a ideia de que a exciso brbara e deve ser condenada. Outros observado- res foram relutantes em serem to julgadores. Viva e deixe viver, eles disseram, afinal, nossa cultura provavelmente parecer simplesmente estranha para os que so de fora. Suponha que digamos que a exciso errada. Estamos ns meramente im- pondo o padro de nossa prpria cultura? Se o relativismo cultural for correto, isso tudo o que podemos fazer, pois no h padro moral independente da cultura ao qual apelar. Mas isso verdade? H um padro do certo e do errado independente da cultura? A exciso m de muitos modos. Ela dolorosa e resulta em uma perda perma- nente do prazer sexual. Seus efeitos de curto prazo podem incluir hemorragia,
  31. 31. Os elementos da filosofia moral 37 ttano e septicemia. Algumas vezes, causa a morte. Os efeitos de longo prazo po- dem incluir infeco crnica, cicatrizes que machucam ao andar e dor contnua. Por que, ento, isso se tornou uma prtica social disseminada? No f- cil de dizer. A prtica no tem um benefcio social bvio. Diferentemente do infanticdio esquim, ela no necessria para a sobrevivncia do grupo. Nem uma questo de religio. A exciso praticada por grupos de vrias religies, incluindo o islamismo e o cristianismo. No obstante, uma srie de argumentos feita em sua defesa. Mulheres que so incapazes de prazer sexual so menos suscetveis promiscuidade; assim, haveria menos gravidezes indesejadas em mulheres no casadas. Acima de tudo, esposas para quem sexo somente um dever so menos suscetveis de engana- rem os seus maridos e, porque elas no esto pensando sobre sexo, ficaro mais atentas s necessidades de seus maridos e crianas. Os maridos, de sua parte, di- zem que gostam mais de sexo com esposas que sofreram exciso. Os homens tm a impresso de que as mulheres que no sofreram exciso so sujas e imaturas. Seria fcil, e talvez um pouco arrogante, ridicularizar esses argumentos. Mas observe um aspecto importante neles: eles tentam justificar a exciso mediante a indicao de que ela benfica afirma-se que homens, mulheres e suas famlias ficariam melhor quando as mulheres so submetidas exciso. Assim, podemos abordar a questo perguntando se a exciso, no seu todo, ajuda ou prejudica. Isso aponta para um padro que poderia ser razoavelmente usado para pensar sobre qualquer prtica social: a prtica promove ou impede o bem-estar das pessoas afetadas por ela? Porm, esse parece o tipo de padro moral indepen- dente que o relativismo cultural probe. um padro nico que pode ser trazido para ajudar no julgamento das prticas de qualquer cultura, em qualquer tempo, incluindo a nossa. Naturalmente, as pessoas, de praxe, no vero esse princpio como sendo trazido de fora para julg-los, porque todas as culturas valorizam a felicidade humana. Por que, apesar disso tudo, pessoas conscienciosas podem ficar relutantes em criticar outras culturas Muitas pessoas que ficam horrorizadas com a exciso, no obstante, relutam em conden-la, por trs razes. Primeira, h um nervosismo compreensvel quando se trata de interferir nos costumes sociais de outras pessoas. Os europeus e os seus descendentes nos Estados Unidos tm uma histria vergonhosa de destruio de culturas nativas em nome da cristandade e do esclarecimento. Por causa disso, algumas pessoas se recusam a criticar outras culturas, especialmente culturas que
  32. 32. 38 James Rachels & Stuart Rachels se parecem com aquelas que foram feridas no passado. H, porm, uma dife- rena entre (a) julgar uma prtica cultural como deficiente e (b) pensar que ns devemos anunciar tal fato, fazer presso diplomtica e enviar tropas. O primeiro aspecto somente uma questo de tentar ver o mundo claramente de um ponto de vista moral. O segundo uma outra coisa inteiramente diferente. Algumas vezes pode ser correto fazer alguma coisa a respeito, mas frequentemente no . Segunda razo, as pessoas podem sentir, com razo, que devemos ser tole- rantes em relao a outras culturas. A tolerncia , sem dvida, uma virtude uma pessoa tolerante pode viver em paz com aqueles que veem as coisas diferen- temente. Mas nada que concirna tolerncia requer de ns sustentar que todas as crenas, todas as religies e todas as prticas sociais so igualmente admirveis. Pelo contrrio, se ns no pensssemos que algumas coisas so melhores do que outras, ento no haveria nada para tolerarmos. Finalmente, as pessoas podem relutar em julgar por que elas no querem expressar desrespeito pela sociedade que criticada. Mas, de novo, isso engano- so: condenar uma prtica particular no dizer que a cultura no seu todo des- prezvel. Afinal, a cultura pode ainda ter muitos aspectos admirveis. Realmente, devemos esperar que isso seja verdade da maioria das sociedades humanas elas so misturas de prticas boas e ruins. A exciso parece ser uma das ruins. DE VOLTA S CINCO PRETENSES Vamos retornar agora aos cinco princpios do relativismo cultural que listamos acima. Como eles se saram em nossa discusso? 1. Sociedades diferentes tm cdigos morais diferentes. Isso, certamente, verdadeiro. No entanto, h alguns valores que todas as culturas partilham, como o valor de dizer a verdade, a importncia de cuidar dos jovens e a proibio contra o homicdio. Ademais, quando os costumes diferem, as razes de fundo tero, frequentemente, mais a ver com crenas fatuais das culturas do que com seus valores. 2. O cdigo moral de uma sociedade determina o que certo dentro daquela sociedade, isto , se o cdigo moral de uma sociedade diz que uma certa ao correta, ento aquela ao correta, ao menos dentro daquela sociedade.
  33. 33. Os elementos da filosofia moral 39 Aqui ns devemos ter em mente a diferena entre o que a sociedade acredita sobre a moral e o que realmente verdadeiro. O cdigo moral de uma sociedade intimamente ligado ao que as pessoas naquela sociedade acreditam ser correto. Porm, tal cdigo e aquelas pessoas podem estar errados. Antes, ns considera- mos o exemplo da exciso a prtica brbara endossada por muitas sociedades. Considere trs exemplos a mais, todos eles envolvendo o mau tratamento das mulheres: Em 2002, uma me solteira da Nigria foi sentenciada a ser apedrejada at a morte por ter tido sexo fora do casamento. No claro se os valores nigerianos, no seu todo, aprovaram esse veredicto, dado que mais tarde a pena foi cassada por um tribunal superior. Porm, ela foi cassada em parte para apaziguar a comunidade internacional. Quando os prprios nigerianos ouviram o veredicto sendo lido no tribunal, a multido gritou em aprovao. Em 2005, uma mulher da Austrlia foi condenada por tentar contraban- dear quatro quilos de maconha para a Indonsia. Por tal crime, ela foi sentenciada a 20 anos de priso uma punio excessiva. Sob as leis da Indonsia, ela poderia mesmo ter recebido a pena de morte. Em 2007, uma mulher foi estuprada por uma gangue na Arbia Saudita. Quando ela informou polcia, esta, no curso da investigao, descobriu que ela tinha recentemente estado com um homem que no era seu pa- rente. Por tal crime, ela foi sentenciada a 90 aoites. Quando ela apelou de sua condenao, isso irritou os juzes, ento eles aumentaram a sua sentena para 200 aoites e mais seis meses de priso. Finalmente, o rei saudita a perdoou, ainda que ele tenha dito que apoiava a sentena que ela tinha recebido. Com efeito, o relativismo cultural sustenta que as sociedades so moral- mente infalveis em outras palavras, que a moral de uma cultura nunca pode estar errada. Mas, quando vemos que as sociedades podem e endossam graves injustias, percebemos que sociedades, como os seus membros, podem necessi- tar de aperfeioamento. 3. No h padro objetivo que pode ser usado para julgar o cdigo de uma sociedade como melhor do que o de outra sociedade. No h verdades morais que valham para todas as pessoas em todos os tempos.
  34. 34. 40 James Rachels & Stuart Rachels difcil pensar em princpios ticos que valham para todas as pessoas em todos os tempos. Porm, se formos criticar a prtica da escravido, apedreja- mento ou mutilao genital, e se tais prticas so verdadeiramente erradas, ento temos que apelar a princpios que no esto vinculados a qualquer sociedade particular. Acima, sugeri um de tais princpios: de que sempre interessa se uma prtica promove ou impede o bem-estar das pessoas afetadas por ela. 4. O cdigo moral de nossa prpria sociedade no tem um status especial. Ele somente mais um cdigo entre muitos. verdade que o cdigo moral de nossa sociedade no tem um status es- pecial. Afinal, a nossa sociedade no tem uma aurola celeste nas suas bordas. Nossos valores no tm um direito especial pela simples razo de serem os nos- sos valores. Porm, dizer que o cdigo moral de nossa prpria sociedade me- ramente um entre muitos parece implicar que todos os cdigos so iguais que eles so, mais ou menos, igualmente bons. De fato, uma questo aberta se um dado cdigo meramente um entre muitos. Tal cdigo pode estar entre os melhores e pode estar entre os piores. 5. arrogante de nossa parte julgar outras culturas. Devemos sempre ser tolerantes em relao a elas. H muita verdade nisso, mas o ponto exagerado. Frequentemente, somos arrogantes quando criticamos outras culturas, e a tolerncia , em geral, uma coisa boa. Porm, no devemos tolerar tudo. As sociedades humanas tm feito coisas terrveis. uma marca de progresso quando ns podemos dizer que tais coisas so do passado. O QUE NS PODEMOS APRENDER DO RELATIVISMO CULTURAL At aqui, discutindo o relativismo cultural, me detive mais nos seus defeitos. Eu disse que ele se baseia em um argumento falho, que tem consequncias implau- sveis e que sugere mais desacordo moral do que realmente existe. Tudo isso con- tribui para uma rejeio da teoria. No entanto, voc pode ter a sensao de que isso um pouco injusto. A teoria tem que ter alguma coisa em sua defesa por que outra razo ela teria sido to influente? De fato, penso que h alguma coisa correta sobre o relativismo cultural. H duas lies que devemos aprender dele.
  35. 35. Os elementos da filosofia moral 41 Primeira, o relativismo cultural nos adverte, de forma absolutamente cor- reta, sobre o perigo de assumir que todas as nossas prticas so baseadas em um padro racional absoluto. Elas no so. Alguns de nossos costumes so mera- mente convencionais meramente peculiares de nossa cultura , e fcil perder de vista esse fato. Relembrando-nos disso, a teoria nos presta um servio. Prticas funerrias so um exemplo. Os galatianos, de acordo com Her- doto, eram homens que comiam os seus pais uma ideia chocante, ao menos para ns. Mas comer a carne dos mortos pode ser entendido como um sinal de respeito. Pode ser visto como um ato simblico que diz: ns queremos que o esprito dessa pessoa habite dentro de ns. Talvez seja desse modo que os gala- tianos viam tal ato. Segundo esse modo de pensar, enterrar os mortos poderia ser visto como um ato de rejeio, e queimar o corpo, como positivamente des- denhoso. Naturalmente, a ideia de comer carne humana pode ser repulsiva para ns. Mas e ento? Nossa repulsa pode ser somente o reflexo de nossa sociedade. O relativismo cultural comea com o insight de que muitas de nossas prticas so assim somente produtos culturais. Porm, h alguma coisa errada com a teoria quando ela infere que, do fato de algumas prticas serem como essa, ento todas elas tm que ser assim. Considere a modstia no vestir. Nos Estados Unidos, no se supe que uma mulher v mostrar os seus seios em pblico. Por exemplo, durante o intervalo do 2004 Super Bowl, Justin Timberlake rasgou parte da roupa de Janet Jackson, expondo um dos seus seios para o pblico. A CBS rapidamente mudou para uma tomada area do estdio, mas j era tarde demais. Meio milho de telespecta- dores reclamaram, e o governo federal multou a CBS em 550 mil dlares. Em algumas culturas, porm, no considerado problema uma mulher mostrar o torso inferior em pblico. Objetivamente falando, tais ostentaes no so nem certas nem erradas. Finalmente, considere um caso ainda mais complexo e controverso: aquele do casamento monogmico. Na nossa sociedade, o ideal se apaixonar e se ca- sar com uma pessoa. Ento, espera-se que a pessoa permanea fiel para sempre. Mas no h outros modos de buscar a felicidade? O colunista Dan Savage lista algumas das desvantagens possveis da monogamia: tdio, desespero, falta de variedade, morte sexual e dar por garantido. Por essas razes, muitas pessoas veem a monogamia como um ideal no realista e como um objetivo cuja busca poderia no lhes fazer feliz. Quais so as alternativas a esse ideal? Alguns casais rejeitam a monoga- mia pela permisso recproca de casos extraconjugais ocasionais. Permitir que o
  36. 36. 42 James Rachels & Stuart Rachels prprio cnjuge tenha um caso arriscado o cnjuge pode no voltar mais , mas uma maior abertura no casamento poderia funcionar melhor do que o nosso sistema corrente, no qual muitas pessoas se sentem sexualmente aprisionadas e, acima de tudo, culpadas por terem esses sentimentos. Outras pessoas se desviam da monogamia de forma mais radical pela prtica do poliamor (polyamory), que consiste em ter mais de um companheiro fixo, com o consentimento de todos os envolvidos. Poliamor inclui casamentos em grupo como as trades, envolvendo trs pessoas, ou quadras, envolvendo quatro pessoas. Alguns desses arranjos podem funcionar melhor do que outros, mas essa realmente no uma questo de moralidade. Se a esposa de um homem lhe d permisso para ter um caso, en- to ele no a est enganando ele no est traindo a sua confiana, porque ela consentiu com o caso. Ou, se quatro pessoas querem viver juntas e funcionarem como uma nica famlia, com amor fluindo reciprocamente, ento no h nada moralmente errado com isso. Porm, a maioria das pessoas em nossa sociedade desaprovaria qualquer desvio do ideal cultural da monogamia. A segunda lio tem a ver com manter uma mente aberta. medida que ns crescemos, desenvolvemos sentimentos fortes em relao s coisas: apren- demos a ver alguns tipos de comportamento como aceitveis e outros como ultrajantes. Ocasionalmente, podemos achar tais sentimentos desafiadores. Por exemplo, ns podemos ter aprendido que a homossexualidade imoral e nos sentir desconfortveis perto de pessoas gays. Mas, ento, algum sugere que isso pode ser um preconceito, que no h nada de errado em ser gay e que as pesso- as gays so somente pessoas, como qualquer outra, que tm a peculiaridade de serem atradas por membros do mesmo sexo. Porque temos sentimentos fortes em relao a isso, podemos achar difcil levar a srio essa linha de raciocnio. O relativismo cultural fornece um antdoto para essa espcie de dogmatis- mo. Quando Herdoto narrou a histria dos gregos e dos galatianos, ele acres- centou: Pois, se a cada um, no importa quem, fosse dada a oportunidade de esco- lher entre todas as naes do mundo o conjunto de crenas que pensa ser o melhor, ele, inevitavelmente, depois de uma considerao cuidadosa dos seus relativos mritos, escolheria aquele do seu pas. Todo mundo, sem exceo, acredita que seus prprios costumes nativos e a religio na qual foi criado so os melhores. Dar-se conta disso pode auxiliar a ampliar as nossas mentes. Podemos ver que nossos sentimentos no so necessariamente percepes da verdade que eles podem ser devidos a condicionamentos culturais e nada mais. Portanto, quando ouvimos a sugesto de que alguns elementos de nosso cdigo social no
  37. 37. Os elementos da filosofia moral 43 so realmente o melhor e nos vemos resistindo a essa sugesto, podemos parar e lembrar o que foi dito. Desse modo, seremos mais abertos para descobrir a verdade, qualquer que ela possa ser. Ento podemos entender o apelo do relativismo cultural, apesar dos seus defeitos. uma teoria atrativa porque baseada em um insight genuno: que muitas de nossas prticas e atitudes que achamos naturais so na verdade somente produtos culturais. Acima de tudo, manter esse pensamento na mente importante se quisermos evitar a arrogncia e permanecer abertos a novas ideias. Esses so pontos importantes que no devem ser considerados com leviandade. Porm, ns podemos aceit-los sem aceitar toda a teoria.
  38. 38. 3 Subjetivismo na tica Tome qualquer ao [viciosa] [...] Por exemplo, assassinato premeditado. Examine ele na melhor luz e veja se pode encontrar uma questo de fato ou existncia real que voc possa chamar vcio [...] Voc nunca o encontrar, a menos que voc dirija a reflexo para o seu prprio peito e encontre um sentimento de [desaprovao], que ocorre em voc, em relao a essa ao. Eis uma questo de fato; mas um objeto de sentimento, no de razo. David Hume, A Treatise of Human Nature (1740) A IDEIA BSICA DO SUBJETIVISMO TICO Em 2001, houve uma eleio para prefeito em Nova York, e, quando chegou o dia para a passeata Gay Pride Day, cada candidato democrata e republicano se fez presente marcha. Matt Foreman, o diretor de uma organizao para os di- reitos dos gays, descreveu a presena de todos os candidatos marcha como boa para as nossas causas. Ele disse: Em outras partes do pas, os posicionamentos tomados aqui poderiam parecer extremamente impopulares, seno fatais para as urnas. O partido republicano nacional aparentemente concordou; por dcadas, ele tinha se oposto ao movimento pelos direitos dos gays. O que as pessoas por todo o pas realmente pensam? Desde 2001, o Gallup Poll pergunta aos americanos em que eles pessoalmente acreditam: as relaes gays so moralmente aceitveis ou moralmente erradas. Em 2001, 53% dos ame- ricanos consideraram as relaes gays moralmente erradas, com somente 40% chamando-as de moralmente aceitveis. Em 2011, esse nmero mudou drasti- camente: 56% chamaram as relaes gays de moralmente aceitveis e somente 39% julgaram-nas moralmente erradas. As pessoas de ambos os lados tm sentimentos fortes. Michele Bachmann, uma deputada republicana de Minnesota, disse uma vez para uma plateia conser- vadora: Se voc est envolvido em um estilo de vida gay ou lsbico, isso servido. uma servido pessoal, desespero pessoal e escravido pessoal. Bachmann e seu marido oferecem para gays com problemas um modo de quebrar as suas alegadas
  39. 39. Os elementos da filosofia moral 45 cadeias: eles dirigem um Christian Counseling Center em Minnesota que ofere- ce a seus clientes terapia reparativa como uma cura para a homossexualidade. A Senhora Bachmann uma evanglica luterana. O ponto de vista catlico pode ter mais nuances, mas concorda que sexo gay errado. De acordo com o Cate- cismo da Igreja Catlica, os homossexuais no escolhem a sua condio homos- sexual e devem ser aceitos com respeito, compaixo e sensibilidade. Qualquer sinal de discriminao injusta a seu respeito deve ser evitado. No entanto, atos homossexuais so intrinsecamente desordenados e sob nenhuma circunstncia devem ser aprovados. Portanto, se as pessoas gays querem ser virtuosas, ento elas devem resistir ao seu desejo. Qual atitude ns devemos tomar? Podemos dizer que a homossexualidade imoral ou que ela absolutamente correta. Porm, h uma terceira alternativa. Ns podemos dizer: As pessoas tm opinies diferentes, mas, no que diz respeito moral, no h fatos e ningum est correto. As pessoas apenas sentem de maneira diferente e isso tudo o que h para dizer. Esse o pensamento bsico por trs do subjetivismo tico. O subjetivismo tico a ideia segundo a qual as nossas opinies morais so baseadas em nossos sentimentos e nada mais. Sob esse ponto de vista, no h uma tal coisa como o objetivamente certo ou errado. um fato que algumas pessoas so homosse- xuais e algumas so heterossexuais, mas no um fato que um seja bom e outro mau. Portanto, quando algum como Bachmann diz que a homossexualidade errada, ela no est estabelecendo um fato sobre a homossexualidade. Em vez disso, ela est meramente dizendo alguma coisa sobre seus sentimentos. Naturalmente, o subjetivismo tico no apenas uma ideia sobre a avaliao da homossexualidade. Ele se aplica a todas as questes morais. Para tomar um exemplo diferente, um fato que os nazistas exterminaram milhares de pessoas inocentes, mas, de acordo com o subjetivismo tico, no um fato que aquilo que eles fizeram foi errado. Quando chamamos as suas aes de erradas, somente estamos dizendo que temos sentimentos negativos em relao a elas. O mesmo se aplica a qualquer julgamento moral que seja. A EVOLUO DA TEORIA Uma teoria filosfica pode avanar por vrios estgios. Primeiramente, ela for- mulada em termos simples, o que muitas pessoas acham atrativo. Essa formula- o simples, contudo, examinada e julgada defeituosa. Nesse ponto, algumas
  40. 40. 46 James Rachels & Stuart Rachels pessoas ficam to impressionadas com as objees que elas abandonam a teo- ria. Outras, contudo, mantm a confiana na ideia bsica e a refinam. Por um momento, parece como se elas pudessem salvar a teoria. Mas, ento, novos ar- gumentos levantam dvidas sobre a nova verso. Essas novas objees, como as antigas, levam algumas pessoas a abandonarem a ideia, enquanto outras mantm a f e propem uma outra verso melhorada. Ento todo o processo de reviso e crtica comea de novo. A teoria do subjetivismo tico se desenvolveu exatamente desse modo. Ela comeou como uma ideia simples nas palavras de David Hume, de que a mora- lidade uma questo de sentimento e no de fato. Mas, ao mesmo tempo em que objees foram levantadas contra a teoria e seus defensores tentaram responder a elas, ela se tornou mais sofisticada. O PRIMEIRO ESTGIO: O SUBJETIVISMO SIMPLES A forma mais simples da teoria esta: quando uma pessoa diz que alguma coisa moralmente boa ou ruim, isso significa que ela aprova tal coisa ou a desaprova e nada mais que isso. Em outras palavras: X moralmente aceitvel X correto Todas significam: X bom } Eu (o falante) aprovo X X deve ser feito Similarmente: X moralmente inaceitvel X errado Todas significam: X mau } Eu (o falante) desaprovo X X no deve ser feito Ns podemos chamar essa verso da teoria de subjetivismo simples. Ele expressa a ideia bsica do subjetivismo tico de uma forma plena, no compli- cada, e muitas pessoas acharam-na atrativa. Contudo, ela est aberta a algumas objees srias.
  41. 41. Os elementos da filosofia moral 47 O subjetivismo simples no pode dar conta das discordncias O defensor dos direitos dos gays, Matt Foreman, no acredita que a homossexu- alidade seja imoral. A deputada Michele Bachmann, contudo, acredita que seja. Desse modo, Foreman e Bachmann parecem discordar. Considere o que implica o subjetivismo simples sobre essa situao. De acordo com o subjetivismo simples, quando Foreman afirma que a ho- mossexualidade no imoral, ele est meramente fazendo uma afirmao sobre suas atitudes ele est a dizer: Eu, Matt Foreman, no desaprovo a homossexua lidade. Poderia Bachmann discordar disso? No, Bachmann poderia concordar que Foreman no desaprova a homossexualidade. Ao mesmo tempo, quando Bachmann diz que a homossexualidade imoral, ela est somente a dizer: Eu, Michele Bachmann, desaprovo a homossexualidade. Como poderia algum dis- cordar disso? Assim, de acordo com o subjetivismo simples, no h desacordo entre eles. Cada um deles deveria reconhecer a verdade do que o outro est a dizer. Porm, certamente, isso incorreto, pois Bachmann e Foreman realmente discordam sobre a homossexualidade. H uma espcie de frustrao eterna implicada no subjetivismo simples: Bachmann e Foreman so profundamente opostos um ao outro, ainda assim, eles no podem nem mesmo expressar as suas posies de um modo que a questo seja posta. Foreman pode tentar negar o que Bachmann diz, mas, de acordo com o subjetivismo simples, ele apenas consegue falar sobre ele mesmo. O argumento pode ser resumido assim: quando uma pessoa diz X mo- ralmente aceitvel e uma outra pessoa diz X moralmente inaceitvel, elas discordam. Contudo, se o subjetivismo simples for correto, no pode ha