ENTRE A HISTÓRIA E A LITERATURA: DOS SERTÕES DO RIO DOCE DE
CECILIANO ABEL DE ALMEIDA AO GRANDE SERTÃO: VEREDAS DE
GUIMARÃES ROSA.
Maria Alayde Alcantara Salim1
Jair Miranda de Paiva2
RESUMO:
Este texto apresenta convergências e afastamentos entre duas obras e dois autores que, a
princípio, nada teriam em comum: Ceciliano Abel de Almeida (engenheiro, professor e
escritor capixaba) e João Guimarães Rosa (o grande escritor mineiro), exceto o fato de terem
compartilhado ‘o breve século XX’, no dizer de Hobsbawm. Tomamos como hipótese que os
dois autores possibilitam-nos pensar um passado recente do país, que deixou suas marcas na
configuração do presente, sobretudo nas duas regiões consideradas – norte do Espírito Santo e
norte/sertão das Minas Gerais, Goiás e Bahia, ambiente natural do Grande sertão: veredas.
Fazendo uso de pesquisa bibliográfica, ressaltamos em ambas as obras o signo da memória e
da narrativa, tomando a memória não como algo cristalizado, mas em constante movimento
de reelaboração e de reconfiguração no tempo presente (LE GOFF) e a narrativa como a
possibilidade de promover a circulação de diversas formas de experiências, pois a narração é
fundada na experiência: na experiência de quem narra ou a relatada pelos outros e incorpora
as coisas narradas à experiência de seus ouvintes e leitores (BENJAMIN). Ambos os autores,
malgrado em registros distintos e com diferentes objetivos (memórias em Almeida, criação
ficcional em Rosa), são pródigos em descrições do homem, da fauna e da flora das selvas e do
sertão, oferecendo-nos o confronto atraso-modernização, civilização-barbárie, na passagem da
República Velha para a primeira metade do séc. XX (SANTOS; STARLING; BOLLE).
PALAVRAS-CHAVE: história . literatura . ficção . memória . narrativa
Considerações iniciais
Por que tentar estabelecer confluências, relações, semelhanças e afastamentos entre duas
obras e dois autores que, a princípio, nada teriam em comum, exceto o fato de serem
brasileiros e terem compartilhado o ‘breve século XX’, no dizer de Hobsbawn? Um tal
exercício denota apenas diletantismo acadêmico ou pode apontar para uma provocação, como
possibilidade de pensar um passado recente do país, que deixou suas marcas na configuração
do presente, sobretudo nas duas regiões consideradas neste artigo – norte do Espírito Santo e
1 Professora do Departamento de Educação e Ciências Humanas e do Programa de Mestrado em Ensino na
educação Básica do Centro Universitário Norte do Espírito Santo – Universidade Federal do Espírito Santo-
DECH/PPGEEB/CEUNES/UFES) [email protected]
2 Professor do Departamento de Educação e Ciências Humanas e do Programa de Mestrado em Ensino na
educação Básica do Centro Universitário Norte do Espírito Santo – Universidade Federal do Espírito Santo-
DECH/PPGEEB/CEUNES/UFES) [email protected]
norte/sertão das Minas Gerais? Nossa aposta é pela segunda alternativa, mesmo sabendo de
seus riscos3.
Assim, de um lado, expõe o paradoxal estranhamento com relação ao norte do Espírito Santo,
região distante cerca de 200 km da Capital, para a qual ambos se mudaram para lecionar na
Universidade Federal do Espírito Santo (campus de São Mateus), em 2010-2011; de outro, a
possibilidade de pensar tal diferença como emblema de nossa própria história (a
modernização do país com manutenção do atraso de amplas regiões, a ‘civilização’
coexistindo com a barbárie), lançando mão de saberes da formação dos autores (história e
filosofia), mediada por uma paixão compartilhada: a literatura.
Oralidade e escrita se equilibram, assim, numa tensão criadora da memória dos homens:
vivacidade e fugacidade da transmissão oral, inscrição permanente da escrita, nenhuma delas
obtendo para os homens a imortalidade, pois sabemos que “ambas, aliás, nem mesmo
garantem a certeza da duração, apenas testemunham o esplendor e a fragilidade da existência,
e do esforço de dizê-la” (GAGNEBIN, 2006, p. 11).
Também como a filósofa suíça radicada no Brasil, acreditamos que escrever sobre o passado,
num exercício de rememoração e elaboração se, por um lado significa, com Benjamin,
recuperar das ruínas os vencidos e humilhados e sua redenção final pela escrita, por outro, nos
aponta o desafio do atual (e, por que não dizer, com Nietzsche, do intempestivo?) e do futuro,
isto é, um apelo à construção da felicidade presente – a vida bela dos antigos gregos – pela
sua transformação. Assim, esse escrito, de modesto e despretensioso exercício, pode se
transformar num convite a repensarmos nosso tempo e espaço, criando novas e significativas
possibilidades de existir.
Num primeiro momento, contextualizaremos Ceciliano Abel de Almeida e sua importância no
conhecimento histórico-cultural do Espírito Santo para, num segundo momento, articularmos
a realidade sertão-cidade na literatura de João Guimarães Rosa.
Ceciliano Abel de Almeida: História e Memória no “Desbravamento das Selvas do Rio
Doce”
3 Este texto tem origem numa intervenção oral dos autores no evento Elisama – Encontro Literário de São
Mateus, ocorrido em 2011, na cidade de São Mateus, norte do Espírito Santo. De um lado, guarda o aspecto da
exposição oral daquela ocasião, revista e ampliada, por outro, reelabora pressupostos dos autores quando se
puseram o desafio de aproximar as obras Grande sertão: veredas, publicada em 1956 e O Desbravamento das
Selvas do Rio Doce, de 1959.
No ano de 1956, aos 75 anos de idade, o engenheiro e professor Ceciliano Abel de Almeida
finalizou o livro O desbravamento das selvas do Rio Doce. Publicado pela Editora José
Olympio, o livro conta com o prefácio de Luís da Câmara Cascudo, que assim descreveu o
autor:
Uma vida como a do Engenheiro e Professor Ceciliano Abel de Almeida
dignifica a espécie humana de maneira geral e a brasileira no particular.
Atravessou setenta anos de batalha com toda ciência das escolas técnicas e
toda pureza da alma luminosa. O exemplo que ilumina vários aspectos e é
uma alegria sabermo-lo nosso contemporâneo (1959, p. 3).
Na obra o autor narra sua experiência de trabalho como engenheiro no processo de construção
da Ferrovia Vitória-Minas no período de 1903 a 1905 na região do Rio Doce. Muito mais que
descrever aspectos técnicos relativos à construção da ferrovia, apresenta na sua narrativa a
experiência que compartilhou com a escassa população que naquele período habitava o
interior do Espírito Santo e de Minas Gerais. Na memória dessa experiência Ceciliano traz a
cena uma população de grande diversidade cultural, formada por índios (Aymorés), caboclos,
canoeiros do Rio Doce, trabalhadores da ferrovia, imigrantes italianos, pescadores e tropeiros.
Além disso, apresenta uma série de estudos sobre os aspectos que marcaram a ocupação da
região do Rio Doce no século XIX produzidos por historiadores, viajantes e cronistas.
Apesar de algumas referências a obras históricas sobre o Espírito Santo e a ocupação humana
da região do Rio Doce, O desbravamento as selvas do Rio Doce, é essencialmente um livro de
memórias. A memória das vivências do passado foi exatamente o principal estímulo e
inspiração para a escrita do texto, conforme o próprio autor esclarece para seus leitores logo
no início da obra: estas são as reminiscências de minha infância e estou certo de que são
razões, além de outras menos antigas, que me decidiram a escrever este livro depois de
setenta e cinco anos de idade (ALMEIDA, 1959, p. 4). A memória individual desta forma
apresenta-se, como observou Vernant (apud LE GOFF, 2003) como a conquista, a
representação de um passado, como a história constitui para o grupo social a conquista do seu
passado coletivo.
A memória passada que não é algo cristalizado, mas em constante movimento de reelaboração
e de reconfiguração no tempo presente. Essa dimensão da memória como atualização do
passado foi ressaltada por LE GOFF (2003, p. 419):
A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos
em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o
homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele
representa como passado.
O livro também traz a força do texto narrativo, pois em uma época marcada pela degradação
da experiência coletiva, como sinalizou Benjamin (1994), a narrativa apresenta a
possibilidade de promover a circulação de diversas formas de experiências:
O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a
relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência de seus ouvintes.
A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte que recorrem todos os
narradores (p. 198).
Inicialmente destacaremos as potencialidadades do livro O Desbravamento das Selvas do Rio
Doce como fonte de estudo de temas específicos relativos à História do Espírito Santo nos
primeiros anos do século XX. Considerando Ceciliano Abel de Almeida como uma
personalidade emblemática de seu tempo, procuramos a partir das suas idéias expressas no
texto, identificar os traços que configuravam a mentalidade do grupo de dirigentes políticos e
de intelectuais que dominou o cenário político, econômico e cultural no Espírito Santo
durante a Primeira República. O trabalho com o texto nos permitiu ainda, focalizar
importantes temas sobre esse período histórico, como: as formas de ocupação e a degradação
ambiental da região do Rio Doce, a exploração dos trabalhadores da ferrovia, o conflito com
os povos indígenas e as aproximações culturais estabelecidas entre diferentes grupos que
habitam a região.
Ceciliano Abel de Almeida: o homem e seu tempo
O momento histórico do Espírito Santo focalizado por Ceciliano Abel de Almeida na
narrativa do Desbravamento das Selvas do Rio Doce corresponde ao final do século XIX e
primeira década do século XX. O contato com discursos produzidos durante esse período da
História do Espírito Santo por nomes relacionados com as áreas da política e da cultura
evidencia a preocupação com o atraso do Estado, principalmente quando comparado com os
vizinhos da Região Sudeste, e o firme propósito de romper com a inércia econômica e cultural
dos tempos da colônia e do império. Em termos políticos e ideológicos, segundo Santos
(2002), a transição do século XIX para o século XX marcou o desenvolvimento de uma
consciência do atraso regional indicada por personalidades como Moniz Freire e Afonso
Cláudio. Essa consciência do atraso regional e a confiança nas promessas de transformação da
República ficam claramente explicitadas no discurso proferido por Moniz Freire no
encerramento de seu mandato de presidente de Estado no ano 1896.
O Espírito Santo era reputado uma das províncias mais atrazadas e das
menos importantes do Brazil até o advento da República [...] a sua posição
sempre foi subalterna e humilde, apezar da sua situação geographica entre
três províncias ricas e poderosas, e da proximidade com a Capital do Império
(ESPÍRITO SANTO, presidente M. Freire, 1896, p.11).
Esse novo direcionamento da política estadual estava atrelado ao incremento da economia
verificado desde meados do século XIX, impulsionado pela produção cafeeira4 no sul do
Estado, especialmente no município de Cachoeiro do Itapemirim. O café integrou a economia
local ao mercado nacional e, em termos políticos, pode-se afirmar que representou um dos
pilares fundamentais do movimento republicano no Espírito Santo, na medida em que
promoveu a formação e o fortalecimento de uma elite política local responsável pela difusão
dos ideais republicanos no Estado.
Ceciliano Abel de Almeida, diferentemente de outras personalidades que se destacaram no
cenário político e cultural da época, não era originário da região sul do estado. Nasceu na Vila
de São Mateus, região norte, a 25 de novembro de 1878. Filho de pequenos agricultores
aparentados do Barão de Aymorés, que nesse momento, já não desfrutava do poder
econômico e político de tempos passados. Ceciliano cursou o ensino secundário e superior no
Estado do Rio de Janeiro: o primeiro no Colégio São Vicente de Paulo, em Petrópolis, e o
segundo na afamada Escola Politécnica de Engenharia. Especialista no setor ferroviário,
atuava na Estrada de Ferro Central do Brasil, no Rio de Janeiro, quando em 1905 a chamado
do engenheiro Pedro Nolasco voltou ao Espírito Santo para trabalhar na construção da Estrada
de Ferro Vitória a Minas, onde permaneceu até o ano de 1908. A decisão de abandonar o
trabalho em uma importante empresa na capital da República causou perplexidade entre os
colegas de profissão, como relatou Ceciliano (1959, p. 89):
A deliberação adotada aceitando o convite causou admiração. Deixar o Rio,
o convívio dos colegas, a chefia do depósito de maior importância da
Central, para engajar-se com a Vitória-Minas, companhia pobre, com o fito
4 O café não foi um fenômeno econômico restrito ao Espírito Santo. Durante a República Velha manteve o
primeiro lugar na pauta das exportações brasileiras, com uma média de 60% do valor total. No final do período,
esse número subiu para 72,5 das exportações. A força da produção cafeeira fez que em termos políticos, esse
período fosse identificado pela historiografia tradicional como um simples clube dos fazendeiros de café. Para
Fausto (1996), tal visão é muito simplista por desconsiderar que, mesmo frágil, o Estado se definiu como
articulador da integração nacional, conciliando interesses e garantindo certa estabilidade do País. Ver:
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.
de explorar, locar e construir trechos de uma ferrovias nas matas do Espírito
Santo, nas brenhas do Rio Doce – não se encontra, por certo, explicação
justificável que acaricie tal resolução – diziam os companheiros de trabalho.
Ceciliano Abel de Almeida, bem como os demais representantes das classes política e cultural
que comandaram o processo de instauração do Governo Republicano no Estado do Espírito
Santo, formadas no seio dos ideais positivistas, defendia em seus discursos, que o Estado
buscasse o progresso e ingressasse na idealizada Modernidade. Assim o desejo de integrar
esse processo e trazer para o Espírito Santo recursos matérias necessários para o
desenvolvimento econômico da região, certamente foi uma das motivações para deixar o
cargo que ocupava no Rio de Janeiro. Depois da temporada de trabalho na Ferrovia Vitória-
Minas, Ceciliano participou do Governo de Jerônimo Monteiro (1908-1912) na direção do
setor de obras pública e com a criação da Prefeitura de Vitória tornou-se o primeiro prefeito
da capital.
O Desbravamento das Selvas do Rio Doce: uma fonte de estudo para a História do
Espírito Santo
Fig. 1 – Alojamento – Ceciliano (centro de terno claro) com família e trabalhadores – 1905.
Apresentaremos agora alguns aspectos da História do Espírito Santo que podemos focalizar
no estudo da narrativa produzida por Ceciliano. A primeira questão refere-se à ocupação do
território capixaba, especificamente, a região norte do Estado. O autor oferece uma descrição
detalhada do cenário social, econômico e ambiental das localidades por onde passou. A região
do Rio Doce, que no século XIX, foi descrita por viajantes como Maximiliano (1989, p. 380):
A estada no rio Doce foi, sem dúvida, uma das etapas mais interessantes das
minhas viagens pelo Brasil; porque, à margem desse rio de cenários tão
soberbos e tão notável do ponto de vista das riquezas naturais, tem o
naturalista muito com que se ocupar e experimentar as mais variadas e
agradáveis emoções.
E Hartt (1989, p.87): em parte alguma do Brasil, nem mesmo no Pará, vi uma floresta mais
exuberante do que a do Rio Doce. Ceciliano, como os dois naturalistas, também chamou a
atenção para a exuberância das matas do rio Doce:
Catorze anos decorridos chegamos ao rio Doce como Engenheiro da E. de F.
Vitória a Minas. A região das matas desconhecidas continuava indevassável.
Pouco se havia transformado em confronto com as informações do Príncipe
Maximiliano, Saint-Hilaire, Hartt e outros (ALMEIDA, 1959, p. 105)
O texto oferece também uma detalhada descrição da flora da região (ALMEIDA, 1959,
p.127):
Não faz exceção a flora da beira-mar, próxima a foz do Rio Doce. Lá estão
sucessivamente, as salsas da praia, os guriris, o emaranhado de uma
vegetação rasteira, castigada pelos ventos marinhos, depois as castanheiras,
as grumixameiras, as pitangueiras, as almesqueiras, as aroeiras, as ingás-
mirins que sombreiam os gravatazais. E a capoeira rala vai-se modificando
para oeste até se apresentar de caules volumosos, troncos seculares: são as
afamadas matas virgens do Rio Doce
Observou que para a direção norte do Rio Doce o território do Estado permanecia
praticamente despovoado:
Vimos que o Rio Doce, em 1905, exibia a margem esquerda, a partir de
Linhares, deserta de gente civilizada. Do Rio Doce para o norte a mata
gigantesca estendia-se até à Bahia, exceto em São Mateus, onde houve
penetração no braço sul do Rio Cricaré (ALMEIDA, 1959, p. 114).
Mas esse cenário natural começava a sofrer o impacto da devastação decorrente da construção
da ferrovia (ALMEIDA, 1959, p. 123):
Vimos o fogo carbonizar gigantes troncos de árvores seculares, labaredas
nelas se enroscarem, como serpentes endoidecidas, subirem e projetarem
além de suas grimpas. Estarrecemo-nos, diante da queda do velho jequitibá
devorado pelo incêndio, que lhe destruiu a base, ou ante a peroba oca, cujo o
âmago carcomido vomitava ao céu, como conduto vulcânico, gases
incandescente.
Outra questão que ganhou grande espaço na narrativa diz respeito à exploração e as péssimas
condições de vida dos trabalhadores da ferrovia. Devido à escassez da oferta de mão de obra
local, era necessário recrutar trabalhadores de outras regiões do país (ALMEIDA, 1959,
p181):
A falta de trabalhadores na região em que vai ser construída a ferrovia
acarreta à Companhia sérias dificuldades. Vale-se ela de braçais, que se
apresentam procedentes da E. de F. Leopoldina ou da Central do Brasil, mas
como o número deles é deficiente, não há outro recurso senão o de recrutar
nos Estados da Bahia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco, gente capaz de
enfrentar o trabalho, a pobreza da Companhia e a malária.
E com relação às relações de trabalho observou (ALMEIDA, 1959, p.182)
No país, até aquela época, só havia existido um arremedo de organização do
trabalho que se desejava esquecer porque, adotado pelos senhores de
escravos, não mais condizia com a época; entretanto, é o resquício desse
método impiedoso, em que o cativo não tinha direito, que parece ainda
subsistir.
Além de todos esses problemas a malária assolava centenas de trabalhadores (ALMEIDA,
1959, p.183):
Dia a dia se multiplicavam os acessos de sezões que avassalam aqueles
infelizes da turma renovada. Havia noites em que o delírio simbolizava o
paroxismo em seus sofrimentos e, quando a aurora rasgava, embora
trôpegos, até a barranca do Cuieté se deslocavam alguns, que encorajados
aguardavam os raios do sol
O texto de Ceciliano também é rico na descrição das tradições e das práticas culturais das
populações que habitavam as margens do Rio Doce. Por exemplo, estava atento à prece
proferida pela Benzedeira de Povoação (ALMEIDA, 1959, p. 54):
Reza para dores de cabeça:
Jesus, espinho de rosa
Coração de Serafim
Ajuntai esses miolos
Que andam fora de mim.
E ao saber da experiência do canoeiro do Rio Doce que previa a chegada dos tempos de
chuva:
porque a saracura na véspera, ao anoitecer, cantou no morro; porque o sol,
na hora do ocaso, se encobriu muito vermelho; porque a cerração, depois de
nascer o sol invadiu o rio; e, ainda porque os quero-queros, à noite,
reclamaram ....
Mas sem dúvida os relatos mais instigantes do autor são aqueles relacionados ao contato com
as populações indígenas do norte do Estado do Espírito Santo. No decorrer de todo o século
XIX ocorreram violentos conflitos envolvendo os povos indígenas que habitavam o interior
da província, denominados de Botocudos, os moradores das vilas e o governo provincial,
intensificados com a ocupação da região verificada a partir do início do século XIX. Enquanto
as tribos indígenas resistiam à invasão de suas terras o governo português declarava a “guerra
justa” contra esses povos. Esse ambiente de uma verdadeira guerra era vivenciado em todo
território da província. Maximiliano (1989) ofereceu uma detalhada descrição de um dos
episódios desse conflito no norte da província:
A tribo dos Botocudos vagueia nas florestas, à beira do Rio Doce, até as
nascentes deste na capitania de Minas Gerais. Esses selvagens têm oferecido
até agora obstinada resistência aos portugueses. Se algumas vezes se
mostraram amigáveis em certo lugar, cometeram excessos e hostilidades em
outro; daí nunca ter havido um entendimento duradouro entre eles. Muitos
anos atrás havia um posto militar de sete soldados a oito léguas Rio Doce
acima, no local onde hoje se ergue a população de Linhares; esse posto
estava guarnecido com uma peça de canhão para proteger a projetada estrada
nova para Minas. A peça, a princípio, manteve os selvagens à distância, mas,
à proporção que foram conhecendo melhor os europeus e suas armas, os
temores desapareceram. De uma feita assaltaram repentinamente o quartel,
mataram um dos soldados, e teriam também massacrado os outros, se estes
não tivessem fugido e escapado pelo rio, tomando uma canoa, que aconteceu
justamente vir chegando com a salvação. Não podendo alcançá-los, os
selvagens encheram o canhão de pedras e retiraram-se para as selvas. Depois
desse fato, o último ministro de Estado, conde Linhares, declarou-lhes guerra
formal, numa proclamação bem conhecida; ordenou que os postos militares
já estabelecidos à margem do rio Doce fossem reforçados e que se
instalassem outros, a fim de proteger os estabelecimentos dos europeus e as
comunicações com Minas através do rio. Desde então não se deu trégua
aos Botocudos, que passaram a ser exterminados onde quer que se
encontrassem, sem olhar idade ou sexo; e só de vez em quando, em
determinadas ocasiões, crianças muito pequenas foram poupadas e
criadas (1989, p.153, grifo nosso)
No momento que relata suas reminiscências da infância, Ceciliano conta sobre a convivência
em São Mateus com as crianças indígenas órfãs em decorrência dos conflitos dos colonos
com os povos indígenas (ALMEIDA, 1959, p.3):
João e Luís, rapazes esquisitos, frequentavam o tugúrio. Eram “os caboclos”.
Foram criados pela minha avó. E os de casa diziam-me: são órfãos.
Perderam pai e mãe, que usavam botoques, e morreram quando a maloca
investiu contra uma fazenda, situada rio acima.
Em outro momento também em São Mateus no ano de 1901, narra mais uma nova experiência
com grupos indígenas. Desta vez em uma excursão no braço norte do Rio Cricaré para caçar e
pescar, o grupo foi cercado por indígenas e detido por cerca de três dias. Ceciliano observou
que os índios apesar de não falarem o português, faziam o sinal da cruz em alguns momentos
do dia, sinal que seriam originários de um aldeamento religioso. O encontro transcorreu sem
nenhuma violência, os índios queriam apenas estabelecer contato e conseguir algumas armas,
e, afirmavam que eram de paz: a todo momento protestavam que eram de paz eram amigos:
“jac-geme-nuc”. Ulisses, o língua, confirmava que também éramos amigos: “jac-geme-nuc” e,
por fim, todos nós repetíamos a frase da amizade: “jac-geme-nuc” (ALMEIDA, 1959, p. 175).
No período que trabalhou na construção da ferrovia, 1903 a 1905, novamente entrou em
contato com povos indígenas. Na primeira vez na região de Pancas, acompanhado de outros
trabalhadores da ferrovia que tentavam a aproximação com um grupo que estava próximo ao
acampamento de trabalho. Os índios rejeitaram o contato e expulsaram o grupo de invasores
(ALMEIDA, 1959, p. 190)
O ataque, de instante em instante, intensificava-se. As flechas coalham o rio
e já estaríamos ensanguentados, e quiçá mortos, se os agressores se
houvessem postado na ribanceira. Receavam, por certo, a nossa resistência e
detrás afastados se escondiam e, porque a embarcação estava muito próxima
da barranca, o campo de visão lhes era duplamente desfavorável.
O novo contato com os botocudos ocorreu pouco tempo depois já próximo do território de
Minas Gerais. No relato do autor é possível perceber o estado de aniquilamento e fragilidade
dos indígenas que já não ofereciam a brava resistência registrada pelos viajantes no início do
século XIX (CECILIANO, 1959, p.197):
Seis ou oitos bugres com seus curumins, sem cerimônias, penetraram a casa,
devassaram-na, assenhoravam-se daquilo de que se agradaram... após nossa
chegada surgem os homens indígenas que com as mulheres, num linguajar
desconhecido, parecem repetirem os mesmos pensamentos, ressaltados por
abundante gesticulação. No meio da confusão, despontam palavras em um
português estropiado: dineo e fome, e sem ênfase, esmorecidos, famintos, os
pobres tristes e vencidos.
A imagem da foto de Walter Garber, apresentada a seguir, transparece o estado de aniquilação
desses povos descrito por Ceciliano no início do século XX.
Fig. 2 – Botocudos – Pancas – 1912 – APES.
O livro o Desbravamento das Selvas do Rio Doce de Ceciliano Abel de Almeida, apesar da
sua grande importância para a pesquisa da História do Espírito Santo, ainda é relativamente
pouco conhecido do público em geral e também do público acadêmico. Assim, antes de tudo,
esse artigo teve por objetivo fazer circular informações sobre essa obra e demonstrar sua
potencialidade para a pesquisa em diversas áreas do conhecimento, como a História,
Sociologia, Biologia, entre outras.
Por fim, a descrição minuciosa dos costumes e das práticas culturais da população que
habitava a Região do Rio Doce oferece enormes possibilidades para as pesquisas norteadas
pelos pressupostos da História Cultural, na medida em que essa perspectiva historiográfica
centraliza sua atenção nas formas como os homens em sociedade incorporam e traduzem os
padrões culturais, ou seja, nas práticas e produções de significados de determinados grupos
sociais ou indivíduos.
2. Guimarães Rosa: da alquimia da palavra
Marco em nossa literatura, Grande sertão: veredas (1994) continua a nos seduzir por sua
monumentalidade, sua potência de significar e de abrir mundos a cada nova leitura5. Por isso,
escrever sobre tal obra implica sempre um desafio, mas, seguindo Riobaldo, reconhecemos
que é difícil viver (e escrever) sem tais riscos, pois “viver é muito perigoso”, como repete o
jagunço-narrador.
A obra de João Guimarães Rosa (1908-1967) já possui uma considerável fortuna crítica entre
nós (COUTINHO), dialogando com a literatura e o pensamento universal e confiná-la em
qualquer categoria de análise ou perspectiva trairia sua multiplicidade linguística, sua
enciclopédica apresentação de seres viventes, bem como sua submissão e domínio da
artesania da palavra, da qual o escritor se julgava um sacerdote.
Múltiplo e provocador desde que veio a lume, hermético para alguns, fonte de (in)sondáveis
mistérios para outros, o texto rosiano ainda está à porta da cidade e ao termo das leituras a nos
interpelar: “decifra-me ou te devoro”; qual esfinge, enigma ou palimpsesto, continua
desafiando décadas, possibilitando falar de fases de estudos de sua obra, conforme NUNES
(1998). Numa primeira fase, destaca-se sua análise filológica, linguística e histórico-literária e
sociologicamente interpretada, passando por uma análise estruturalista nos anos 1970; a
segunda, de índole hermenêutica, de enfoque antropológico e psicanalítico. Acrescentaríamos,
ainda, uma terceira fase, representada por Bolle (1997-8), Starling (1999) e Roncari (2006),
entre outros, na qual lemos o Grande sertão: veredas como emblema de nossa história, na
contracorrente das interpretações esotéricas e metafísicos.
Nesse sentido, Bolle (1997-8) propõe “uma interpretação que tenta extrair dos signos
esotéricos-metafísicos uma compreensão histórica” de nossa modernidade incompleta;
Starling (1999), por sua vez, lê a gesta de Riobaldo no sertão como uma alegoria política do
Brasil, em suas grandes mudanças sociais e políticas, de fundação e refundação da ordem
social, no período que se estende de 1880-1930, conforme apresentação de José Murilo de
Carvalho à STARLING (1999).
5 Algumas ideias expostas neste tópico são reelaboradas a partir de PAIVA, Jair Miranda de. Os tempos
Impossíveis: Perigo e Palavra no sertão. Nova Friburgo, RJ: Imagem Virtual, 2001, publicação originada de
dissertação de mestrado do autor, apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras (Estudos Literários), da
Universidade Federal do Espírito Santo, em 2000.
Mas, como um clássico, sua obra põe a pique as mais experimentadas leituras, de diversos
matizes teóricos, ensejando gradientes tão amplos que somente encontram paralelo em sua
verve criadora.
Pode-se pensar na fruição do texto de Rosa como a incursão por grutas e cavernas, como as de
sua Cordisburgo natal e cercanias, cujas galerias se bifurcam em múltiplas saídas, que se
tornam outras entradas para novas galerias que, por sua vez, se abrem para outras
saídas/entradas, num movimento circular potencialmente infinito e barroco, em que cada
imagem envia a outra, desdobra-se, redobra-se, numa proliferação de sentidos, jogo de
espelhos, potência máxima da literatura. O colorido de tais galerias, textos e palavras, toma o
leitor por todos os poros, misturando imagens, sensações, conceitos, como num redemoinho
de criação e sugestões: “levantante”, “maravilhal”, “brisbrisa”, “cavalanços”, “ferrabrir dos
olhos”, “a brumalva do amanhecer”, “a bala beijaflorou”, “os passarinhos que bem-me-viam”,
“os cavalos aiando gritos”, “rebebe o encharcar dos brejos, verde a verde, veredas”...
A obra de Rosa nos põe no âmago do conceito de literatura como criação de mundos e novas
realidades. Como sustenta Viegas (1985), na tradição ocidental a palavra teve o privilégio de
ser a tradução racional da verdade (o fiat do Gênesis, o logos grego, o verbum de João, o
evangelista). No entanto, a partir do séc. XIX haverá uma descrença no conceito racional de
verdade, com o imergir da consciência trágica da existência com Nietzsche, para quem a
verdade se resume a nada mais que metáforas. Vários pensadores evocarão a força do
silêncio, do absurdo e da incomunicabilidade: Mallarmé, Kierkegäard, Kafka, Foucault. O
tema central da arte e da filosofia passa a ser a indigência do discurso racional em face dos
fenômenos extremos, com o predomínio da palavra poética sobre o discurso da razão:
Um amadurecimento de séculos mostrava, afinal, que sua linguagem não o aproxima
do mundo, mas, ao contrário, instaura um mundo, e nesse domínio instaurado na e
pela palavra humana as dobras do sentido não se contam nem se traduzem (VIEGAS,
1985, p. 12).
Retoma-se a cumplicidade inicial da especulação em que filosofia e poesia estão unidas: a
aurora da filosofia grega dos pensadores originários filósofos-poetas, posteriormente
catalogados como pré-socráticos. Busca-se a força da palavra “pela palavra e na palavra”,
para além de seu uso empírico e funcional, indispensável para a comunicação humana, porém,
tornado indevidamente critério e métron de toda linguagem: “o que há, portanto, de
primordial na linguagem é o que nela recupera poeticamente o vínculo com o vivido; apenas
secundariamente se propõe sua natureza funcional, denotativa” (VIEGAS, 1985, p. 16). Na
expressão de Heidegger (1967, p. 88), “há um pensamento mais rigoroso que o conceitual”.
O texto literário é potência de múltiplas significações, não tem um sentido unívoco (NUNES,
1998), é inesgotável porque, lato sensu, é texto poético. Na mão do artista, a palavra não é
materialidade inerte, “pois as palavras e a linguagem não constituem cápsulas, em que as
coisas se empacotam para o comércio de quem fala e escreve” (HEIDEGGER, 1978, p. 26);
ao contrário, têm peso ontológico, pois é na palavra que as coisas vem a ser e são.
Guimarães Rosa tem em conta esse poder criador da palavra ao afirmar que “linguagem e vida
são uma coisa só” (LORENZ, 1994, p. 47). Na sua concepção, a técnica literária é uma
alquimia que se serve do coração e não da pura lógica, pois o trabalho cerebral do escrito
assenta-se num outro quadrante, distinto da lógica fria dos “escritores intelectuais”, que se
destituem do cuidado com a palavra e sangue e nervos, correndo o perigo de se
transformarem em computadores, produtores de papel e não em sacerdotes da palavra. Para
Rosa, em entrevista a seu tradutor alemão, a lógica deve recuperar sua conotação essencial de
sapientia, pois “um gênio é um homem que não sabe pensar com a lógica, mas apenas com a
prudência” (LORENZ, 1994, p. 57). E acrescentemos: a lógica deve recuperar o sentido de
ouvir o lógos, consoante o dito de Heráclito (1991, p. 56): “não de mim, mas do logos tendo
ouvido é sábio homologar tudo é um”.
Dessa concepção de cuidado com a língua compreende-se o engajamento proposto pelo
escritor, no contexto do debate, na década de 1960, em que autores como Sartre propunham
uma literatura engajada, a serviço da revolução sócio-política: diferentemente, para Rosa
renovar a língua é renovar o mundo. O escritor é o criador, pela moldagem e soldagem dos
elementos da língua, de um projeto revolucionário de renovação da língua e do mundo.
Podemos afirmar que Rosa plasma o mundo, no sertão, tornando-o kosmos (ordem,
ornamento e, por extensão, beleza) universal, cosmopolita e existencial, para além do sertão
geográfico, distante da tecnificação fria da razão objetiva, chamada por ele mesmo de
“megera cartesiana”.
Fig. 3. Mapa de Poty para a obra Grande sertão: veredas.
Disponível em: http://makelyka.com.br/cavalo-motor/ acesso 10.set 2014-09-12
Os procedimentos requintados de Rosa, a construção dos personagens, como mostra Ana
Maria Machado em seu O recado do nome (1991), a presença da natureza em toda sua
exuberância, possibilitando que Grande sertão: veredas possa ser chamado por um de seus
primeiros críticos (PROENÇA, 1958) de “romance telúrico”, no qual “o vento é personagem
importante” – toda essa poesia pode ser vista a serviço da expressão da ambiguidade do
mundo-sertão: “sertão é isto: o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo” (ROSA, 1994, p. 104).
Os procedimentos formais colocam-se a serviço das múltiplas dimensões das linhas de
existência dos personagens, conforme ensinou Benedito Nunes (1995).
No pórtico do sertão rosiano, podemos lembrar, também, Cortázar, para quem a literatura é
uma conquista verbal da realidade. Para o escritor argentino, o romance é “o instrumento
verbal necessário para a posse do homem como pessoa, do homem vivendo e sentindo-se
viver” (CORTÁZAR, 1993, p. 67). Sertão conquistado pelo jagunço Riobaldo Tatarana,
reconquistado pela palavra criadora de Riobaldo-narrador, que transformou cada detalhe do
sertão real num sertão transfigurado – o que se torna possível porque o “romance supõe e
procura com seu impuro sistema verbal o impuro sistema do homem” (CORTÁZAR, 1993, p.
68), e, em seguida, porque Diadorim ensina a Riobaldo os detalhes da natureza, sendo peça
fundamental em sua decisão de adentrar o sertão. Finalmente, se as linhas de existência dos
personagens do romance do escritor mineiro não se definem, antes pertencem ao tecido-texto
intrincado que é o próprio real, o romance como escrita laboral e artesanal, na conclusão de
Cortázar (1993, p. 71), é um dos instrumentos privilegiados desse real, visto que o romance é
ação, “transação, aliança de elementos díspares que permitem a submissão de um mundo
igualmente transacional, heterogêneo e ativo”.
E é esse ‘real’ que nos propomos destacar, ainda que em linha provisórias, a seguir,
assentando a obra de Rosa na história político-social do Brasil.
Às veredas da história: “cidade acaba com o sertão. Acaba?”
A motivação desse trabalho, como já descrito, nasceu de um estranhamento e de um
deslocamento, diríamos, não sem certa audácia, de uma experiência de desenraizamento dos
autores, quando se transferiram para o norte do Espírito Santo, parte do Estado que, até a
década de 30 do séc. XX, aparecia na cartografia como “terras desconhecidas”.
Estranhamento em parte derivado do contato com a diversidade cultural da região, presente na
culinária, nas danças e nos tipos humanos negro e indígena vivos em seus descendentes, bem
como o italiano, que também a povoa. Mas, sobretudo, deslocamento pela distância que
sentimos, do ponto de vista cultural, antropológico e social, pois a região assemelhou-se-nos
mais à Bahia ou norte de Minas do que propriamente ao Espírito Santo que conhecíamos, o da
região metropolitana da Grande Vitória, sul ou serrana.
Acresce-se a isso o fato de na região percebermos certa permanência da sociedade pré-urbana
ou pré-industrial, com sua cota de relativo isolamento entre as etnias descritas, na desigual
repartição dessas pela economia, poder e cultura (em outras palavras: muitos negros e
indígenas estão confinados em ocupações subalternas – dizemos negros e indígenas e não seus
descendentes, pois tal foi a percepção de um dos autores, que se sentiu, num primeiro
momento, de volta ao Brasil pré-abolição, tal a distância entre as pessoas mediadas pela cor
de sua pele). Destacaríamos a permanência, nessa região distante da capital como, de resto,
em nosso país, resquícios do patrimonialismo nas relações pessoais, superpondo-se às
relações cidadãs e políticas mediadas por instituições modernas, laicas e estatais6.
6 Pensamos na análise fundamental de Sérgio Buarque de Hollanda, em seu clássico Raízes do Brasil: “No
Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo de família patriarcal, o desenvolvimento da
urbanização [...] ia acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje” [1936/1947:
primeira e segunda edição de Raízes do Brasil, respectivamente]. Nesse contexto, continua: “Não era fácil aos
detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção
fundamental entre os domínios público e privado. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o
Tal estranhamento, por sua vez, mediado pela literatura e pelo convite da Diretora de uma
das primeiras bibliotecas públicas do Espírito Santo, a Biblioteca Pública Municipal
"Clementino Rocha" de São Mateus (fundada na década de 1940) nos levou ao risco da
aproximação da obra de Almeida e de Rosa. Além de próximos no tempo, ambos mostravam
o processo de adentramento pelo interior do Brasil, com suas sagas, desafios, massacres,
destruição e criação. Ambos mostrarão, em níveis, contextos e estilos diversos (ficção e
memória) o encontro selva-urbanização, sertão-cidade, progresso-atraso, modernização-
violência, numa dialética da colonização (BOSI, 1992), que ainda pode oferecer uma chave
interpretativa para nossa história, construção de identidade(s) e projeto(s) de nação.
Pensamos que se justifica, assim, o título da obra de memórias de Ceciliano Abel de Almeida
“O desbravamento das selvas do Rio Doce” (1959), que narra sua presença no vale do Rio
Doce, entre Espírito Santo e Minas Gerais, na construção de uma ferrovia, nos inícios do
século. Também Guimarães Rosa esteve em outros sertões desvalidos de Minas Gerais, como
médico, onde, segundo suas próprias palavras, conheceu o sofrimento dos homens.
Se, por um lado, reconhecemos que, nos meandros do monólogo cerrado de Riobaldo, torna-
se difícil perseguir uma linearidade temporal, bem como impossível a busca do
esclarecimento racional da vida de Riobaldo através de seu relato (PAIVA, 2001), por outro,
sutis marcações temporais nos inserem na história do Brasil, descortinando a obra como uma
alegoria do processo violento de implantação de nossa República e modernização levada cabo
na República Velha da primeira metade do século XX. Desfilam, assim, no sertão e nas
veredas rosianas os fenômenos do coronelismo e da jagunçagem, imortalizada em nossa
tradição oral, bem como uma multidão de famintos, explorados, mendigos (como o cego
Guirigó), com sua religiosidade, saberes, lendas e sonhos. Nesse sentido, o clássico de Rosa é
um romance de formação de nossa brasilidade (BOLLE, 2004), ao lado de outros clássicos
funcionário ‘patrimonial’ do puro burocrata conforme a definição de Max Weber” (HOLLANDA, 2002, p.
1048). Como corolário de nossa formação histórica, “no Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos
um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados
nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das
vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma
ordenação impessoal. Dentre esses círculos, foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força
e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos defeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do
núcleo familiar – a esfera, por excelência dos chamados “contatos primários”, dos laços de sangue e de coração –
está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer
composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios
neutros e abstratos, pretendam assentar a sociedade em normas antiparticularistas (HOLLANDA, 2002, p. 1049).
como Darcy Ribeiro, Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda, Euclides da Cunha, entre
outros.
Fig. 4. Guimarães Rosa (à dir.) na viagem pelo Sertão, em 1952. Fotografado por Eugenio Silva para a revista
“O Cruzeiro” [Acervo Fundo Guimarães Rosa no Arquivo IEB/USP]. Disponível em:
http://www.elfikurten.com.br/2011/02/guimaraes-rosa-e-o-magma.html Acesso 10.set 2014.
Na obra vemos a referência à passagem da Coluna Prestes, que certamente deixou marcas
fortes nas localidades pelas quais passou, demonstrando como Rosa despista a história,
porém, deixando sinais na narrativa e nas veredas do sertão ficcional:
Os revoltosos passaram por aqui, soldados de Prestes, vinham de Goiás, reclamavam
posse de todos animais de sela. Sei que deram fogo, na barra do Urucuia, em São
Romão, aonde aportou um vapor do Governo, cheio de tropas da Bahia. Muitos anos
mais tarde, um roceiro vai lavrar um pau, encontra balas cravadas (ROSA, 1994, p.
67-68).
Como nos sugere Starling (1999), o grande sertão de Rosa é a narrativa de nossa formação
histórica e político-social. O personagem Zé-bebelo personifica o projeto de índole
racionalista e civilizatório visando modernizar o sertão, instalando “um novo corpo político
coletivo, necessariamente popular, comum, centralizador, homogêneo e totalizante – o projeto
de construção de um ‘sertão nacional’, como ele sempre fez questão de afirmar”
(STARLING, 199, p. 134). Fica patente nas palavras do fazendeiro, jagunço e candidato a
deputado a aproximação e repulsa da gente do sertão, que queria ‘reformar’: “Considerava o
progresso de todos – como se mais esse todo Brasil, territórios – e falava, horas, horas – ‘Vim
de vez!’ – disse, quando retornou de Goiás. O passado, para ele, era mesmo passado, não
vogava” (ROSA, 1994, p. 54). Ruptura com o passado, projeto de um novo tempo, encimado
na lei: “Acabando um combate, saía esgalopado, revólver ainda em mão, perseguir quem
achasse, só aos brados: - ‘Viva a lei! Viva a lei!...’ – e era o pipoco-paco. Ou: - ‘Paz! Paz!”
(id., ib.).
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