RAQUEL RITTER LONGHI
ESCRITURA EM HIPERTEXTO:UMA ABORDAGEM DO STORYSPACE
Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica
PUC/SP
São Paulo2004
RAQUEL RITTER LONGHI
ESCRITURA EM HIPERTEXTO:UMA ABORDAGEM DO STORYSPACE
Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica
PUC/SP
Tese apresentada à Banca Examinadora daPontifícia Universidade Católica de São Paulo,como exigência parcial para obtenção do título deDoutor em Comunicação e Semiótica – Signo eSignificação nas Mídias – sob a orientação do Prof.Dr. Arlindo Ribeiro Machado Neto.
São Paulo2004
FOLHA DE APROVAÇÃO
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Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a
reprodução total ou parcial desta Tese por processos de fotocopiadoras ou
eletrônicos.
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Raquel Ritter Longhi
São Paulo, outubro de 2004
RESUMO
Este trabalho tem o objetivo de analisar a escrita em hipertexto
através de um programa de computador, o Storyspace, e de duas obras
com ele criadas: Afternoon, a story (Michael Joyce, 1992) e Patchwork Girl
(Shelley Jackson, 1995). Entendemos que, como tecnologia de escrita, o
hipertexto deve ser estudado do ponto de vista de suas características
técnicas e de como elas influenciam as escritas nos meios digitais e as
novas poéticas desses meios.
O primeiro capítulo apresenta o programa Storyspace, discorrendo
sobre suas características no sentido de como elas interferem na criação.
O segundo capítulo procura definir poéticas digitais, levantando
especificidades, tais como a intermídia ou fusão conceitual, a materialidade
da escrita e a metalinguagem.
O terceiro capítulo faz uma análise de Afternoon, a story, de Michael
Joyce, observando particularidades como seu pioneirismo na criação de
ficção em hipertexto.
O quarto e último capítulo traz Patchwork Girl, de Shelley Jackson,
examinando algumas de suas características, como a obra que interroga
sua própria tecnologia de inscrição.
ABSTRACT
This work aims to analyse hypertext writing through the software
Storyspace, as well as two works in that application, Michael Joyce’s
Afternoon, a story (1992), and Shelley Jackson’s Patchwork Girl (1995). We
think that since hypertext is a writing technology, it must be understood from
this technical aspects, and the new poetics that it is able to produce.
The first chapter presents Storyspace, the software, talking about its
technical aspects, and how that collaborates in the literary creation.
Second chapter intends to define digital poetics, bringing up some
aspects, like intermedia, or conceptual fusion and the materiality of writing.
Third chapter makes an analysis of Michael Joyce's Afternoon, a
story, observing some aspects, like its originality.
Fourth chapter brings Shelley Jackson's Patchwork Girl, and
examines some features, like hypertext which talk about hypertext, or, in
other words, the work which asks for its own inscription technology.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................... 10
1 STORYSPACE, UM PROGRAMA DE ESCRITA ................................ 161.1 Onde está a qualidade? .............................................................. 231.2 Características do programa de escrita ....................................... 251.3 Código fechado ........................................................................... 34
2 HIPERTEXTO E CRIAÇÃO – POÉTICAS DIGITAIS .......................... 382.1 Estruturas circulares .................................................................... 472.2 O círculo e a criação .................................................................... 492.3 Tela do computador, espaço de escrita ...................................... 532.4 Atualização e não-linearidade ..................................................... 542.5 Meio, mensagem, técnica ............................................................ 552.6 Intermídia, fusão conceitual ......................................................... 592.7 Antecedentes e referências ......................................................... 642.8 Poesia virtual, pattern poetry ....................................................... 662.9 Poesia total .................................................................................. 672.10 Remediation ................................................................................ 692.11 O Hipertexto que fala sobre o Hipertexto .................................... 732.12 Interrogando a materialidade da escrita ...................................... 74
3 AFTERNOON, PIONEIRO .................................................................. 773.1 A leitura produz um original ......................................................... 793.2 Paralelismo, associação, não-linearidade ................................... 833.3 Estranhamento e desorientação .................................................. 913.4 Anti-narrativa ............................................................................... 933.5 O leitor e a materialidade do texto ............................................... 953.6 Um jogo de leituras ...................................................................... 96
4 PATCHWORK GIRL – O HIPERTEXTO COMO METÁFORA ............ 1014.1 Engajamento total ........................................................................ 1064.2 Navegação intermídia .................................................................. 107
CONCLUSÃO ........................................................................................... 114
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................ 116
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 O Storyspace em Remediation ...................................... 18
FIGURA 2 Página inicial de Afternoon, a story ............................... 20
FIGURA 3 Uma das formas de organização dentro do Storyspace:espaços de escrita e suas conexões por links e espaçode edição textual ............................................................ 26
FIGURA 4 A lista de links do Storyspace, em Afternoon, a story ... 27
FIGURA 5 Storyspace Map View .................................................... 31
FIGURA 6 Chart View ..................................................................... 32
FIGURA 7 Outline View ................................................................... 33
FIGURA 8 As possibilidades combinatórias no livro de RaymondQuèneau, que se dão pela seleção e combinação das“tiras” de texto ................................................................ 46
FIGURA 9 As páginas inovadoras de Sterne .................................. 58
FIGURA 10 Ilustração de Higgins sobre intermídia (HIGGINS,1984) .............................................................................. 62
FIGURA 11 A consciência do meio em Patchwork Girl, através dasimagens dos mapas de visualização, e ilustrações etextos da hiperficção ...................................................... 70
9
FIGURA 12 Espaço de escrita de Afternoon, a story. Na parteinferior, os “botões” de navegação – Y, N, e as opções:Links (para verificar os links), History (para ver ohistórico dos espaços percorridos na atual leitura;Bookmark (na forma de clips), adicionar notas(representado por uma folha escrita) e back,representado por uma seta ............................................ 86
FIGURA 13 O espaço de escrita [midwife], no qual Joyce fazreferência direta e Laurence Sterne .............................. 90
FIGURA 14 A lista de links que partem do espaço [I want to say],de Afternoon, a story, inclusive os guard-fields ............. 100
FIGURA 15 Imagem de um mapa de visualização de PatchworkGirl, com os pequenos retângulos que inspiraramShelley Jackson ............................................................. 102
FIGURA 16 O espaço [her], mostrando o corpo marcado com suassegmentações, em Patchwork Girl ....................... 107
FIGURA 17 Neste espaço, a ilustração do cérebro tem subdivisõesclicáveis, que levarão a outros espaços de escrita emPatchwork Girl ............................................................... 108
INTRODUÇÃO
Há uma transformação gradativa das técnicas de escrita. Isto pode
ser verificado pela evolução da criação literária. Pode-se afirmar que há
uma transformação na cultura e nas artes que é geral, refletida na literatura.
O impresso rompeu com um modelo anterior de escrita, o manual. O digital
rompe com o modelo impresso.
O fato de a literatura estar encontrando nos meios digitais um
espaço de criação tem sido objeto de estudo de vários autores. Ligado ao
concomitante aparecimento do hipertexto, o tema literatura eletrônica tem
sido analisado em duas linhas de pensamento: aquela que aproxima a
teoria literária – e, junto com ela, o pós-estruturalismo – da criação literária
em hipertexto, e aquela que intenta criar conceitos novos para dar conta do
que pode ser um novo fazer criador da literatura. Em suma, uma
aproximação ao tema utiliza-se de conceitos ligados ao universo da cultura
impressa, enquanto outra vertente busca criar novos conceitos para forjar a
teoria da criação literária em meios digitais.
Na primeira ponta, estão autores como G. P. Landow, David Bolter e
Michael Joyce. Eles procuram explicar a criação literária em hipertexto
através de conceitos estabelecidos pela cultura do livro impresso, o que dá
margem a críticas, às vezes contundentes, sobre a efetividade da utilização
de tais paradigmas na análise da criação em hipertexto, já que um meio
novo e uma linguagem nova exigiriam, também, conceitos novos e novos
modelos de referência para serem analisados.
11
A outra parte, que tem à frente autores como Aarseth, Hayles,
Glazier, procura analisar a criação poética digital nos novos meios a partir
da materialidade própria do meio, ou seja, reconhecendo as características
específicas do meio digital e assim as nomeando.
Nós iremos, neste trabalho, estudar o hipertexto através de um
programa de computador, o Storyspace, e duas obras com ele criadas:
Afternoon, a story (de Michael Joyce, 1992) e Patchwork Girl (de Shelley
Jackson, 1995). Inicialmente, procuraremos definir as “poéticas digitais”,
que fazem parte deste campo da criação que aparece com o surgimento
dos novos suportes tecnológicos de final do século XX. No Brasil, ainda são
poucos os estudos na área, e esta obra pretende ser uma contribuição ao
tema. Além disso, o Storyspace é um aplicativo para a criação em
hipertexto distribuído comercialmente, e dono de um mercado importante e
consagrado.
A ênfase no programa está sendo dada, porque entendemos que o
Storyspace tem uma participação fundamental na criação literária em
hipertexto. Além disso, no mundo digital, marcado por uma ampla gama de
software de criação, torna-se necessário conhecer o código para melhor
compreender as obras. Isso vem de encontro, na verdade, a uma
indagação do fazer artístico, que predominou na arte do século XX: aquela
relação epistemológica do autor com sua obra, e que, nos meios digitais,
amplia-se para uma conexão entre o autor, a obra e as características
técnicas desta última.
No caso de hiperficções, este tipo de escrita criativa que encontrou
no hipertexto um suporte original, trata-se de reconhecer a materialidade de
que é feita, ou seja, entrar a fundo no próprio texto hipertextual através da
verificação das características de um software como o Storyspace, para
entender mais profundamente e claramente este tipo de obra. Glazier diz
que “ser capaz de ao menos ler o código, pode ser imensamente útil, se
12
não, essencial” (GLAZIER, 2003: 26). Para este autor, o código é a cena da
poiesis (idem, p.116) e, neste sentido, nossa exploração do Storyspace
vem colaborar com o estudo da escrita criativa em hipertexto.
Alguns autores, como o já citado Glazier (2003), fazem distinção
entre poesia e prosa no que concerne ao lugar que tais criações ocupariam
nos meios digitais – a primeira tendo prevalência sobre a segunda, pelas
suas características. Diz ele que o texto digital é altamente sensitivo em
cada grão de sua superfície, e isso é o que define a poesia inventiva: a
habilidade para qualquer palavra ou caractere ser parte da ação do texto.
Ele conclui, dizendo que é a poesia que deve ser qualificada unicamente
para servir de lugar para a emergência de novas formas de textualidade
digital (GLAZIER, 2003: 95).
É justamente por levar em conta características que definem as
chamadas poéticas digitais, dentre elas, a redefinição dos limites entre as
formas da poesia e da prosa, que entendemos não ser correto, como
Glazier sustenta, colocar a poesia no lugar principal da criação poética nos
meios digitais. Isso porque, em primeiro lugar, e antes de tudo, as formas
da poesia e da prosa estão convergindo nestes meios, assim como há uma
imbricação dos conteúdos com seus aparatos técnicos.
Se, na cultura impressa, o limite entre a prosa e a poesia são claros,
isso não acontece no digital, onde uma profusão de novas textualidades
emerge a partir de plataformas (software) diferentes e de distintas maneiras
de se apropriar destas ferramentas. Devemos definir uma forma textual na
tela do computador, que lembra a poesia, como poesia? Devemos enfaixar
a prosa do hipertexto criativo na categoria da prosa literária? Ou quem sabe
deveríamos buscar novas definições para estas categorias, levando em
conta as características desses meios?
Conforme Glazier, a materialidade é importante porque a escrita não
é um evento isolado de seu meio, mas é, em vários graus, um engajamento
13
com este meio. Esta preocupação com o material tem sido um elemento
constante na literatura moderna e contemporânea, e altamente relevante
para a poesia nos meios digitais (GLAZIER, 2003: 23). Mas estamos
falando em suportes digitais, e, portanto, necessitamos de novos conceitos
para dar conta de características que são, certamente, diferentes, se não
opostas, ao suporte impresso, ou físico. No mundo dos bits, falar em
materialidade pode soar estranho, e assim é.
Optamos, então, por utilizar outras denominações para o que seria a
materialidade do meio impresso, que, para o virtual, emprestamos de Bolter
e Grusin (1999), que analisam as formas como os meios digitais se
apropriam dos seus anteriores, através de um jogo entre o apagamento da
presença do meio, que definem como immediacy, e a consciência da
presença do meio na forma de representação, a qual os autores chamam
de hypermediacy. Tal lógica seria constatada no modo como o próprio meio
se dá a conhecer, ou seja, à medida que torna visíveis suas características
específicas, ou as esconde, segundo os autores. O que Glazier e Hayles
denominam materialidade, portanto, para nós pode ser definido como as
características técnicas dos meios, termo que também utilizaremos neste
trabalho.
Para ficarmos dentro de parâmetros mais atualizados de reflexão e
análise da cultura digital, portanto, vamos examinar Afternoon, a story e
Patchwork Girl do ponto de vista da influência do hipertexto, enquanto
suporte de escrita, na narrativa destas obras.
A busca pela consciência da presença do meio podia ser constatada
na literatura do final do século XVIII nos escritos de Laurence Sterne, por
exemplo, nos quais a utilização criativa da tipografia constituía o diferencial
de obras como A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy (1760-
67); no campo da poesia, Mallarmé instituiu a preocupação com a
14
materialidade, esta, da página impressa, ao jogar com os elementos verbais
e os espaços do suporte da página, no seu Lance de Dados (1897).
A poesia nos meios digitais estende, agora, as investigações acerca
das práticas inovadoras como elas ocorreram nos meios impressos,
tornando possível a continuação de linhas de pesquisa e questionamento
que não podiam ser contempladas naquele meio (GLAZIER, 2003).
Na poesia, o exemplo de Mallarmé é fundador, enquanto que, na
prosa, as obras de Edgar Alan Poe, Jorge Luis Borges, Laurence Sterne e
Alain Robbe-Grillet servem como referências para se pensar o hipertexto e
as suas características, especialmente a multiplicidade e a narrativa
labiríntica. A relação entre a palavra e a imagem que faz Apollinaire em
seus Calligramas, no início do século XX, mostra este tipo de continuidade.
Esta relação é sublinhada porque as letras do poema são arranjadas na
forma dos objetos que evocam. E mais, as letras combinadas a formar
aquelas figuras, interrogam as conotações de cada objeto.
Como tecnologia de escrita, o hipertexto deve ser estudado do
ponto de vista de suas características técnicas e de como elas influenciam
as escritas nos meios digitais e as novas poéticas.
O primeiro capítulo deste trabalho apresenta o programa
Storyspace, discorrendo sobre suas características no sentido de como elas
interferem na criação, especialmente através de obras como Afternoon, a
story e Patchwork Girl.
O segundo capítulo procura definir poéticas digitais, levantando
especificidades, tais como a intermídia, ou fusão conceitual, a materialidade
da escrita, a metalinguagem e as formas das estruturas sígnicas das obras
em contextos digitais.
O terceiro capítulo faz uma análise de Afternoon, a story, de Michael
Joyce, observando particularidades como seu pioneirismo na criação de
15
ficção em hipertexto, na sua origem, a partir de uma idéia que necessitava
também de uma ferramenta para lhe dar forma. A origem da obra se dá
com a criação do programa Storyspace.
O quarto e último capítulo traz a estimulante Patchwork Girl, de
Shelley Jackson, examinando algumas de suas características mais
instigantes, como o hipertexto que fala do hipertexto, ou, em outras
palavras, a obra que interroga sua própria tecnologia de inscrição.
1 STORYSPACE, UM PROGRAMA DE ESCRITA
Acabei de me dar de presente uma máquina elétrica.Todos os dias exercito-me em bater durante meia hora, naesperança de me converter a uma escrita mais datilográfica.
O que me levou a esta decisão foi primeiro um exercíciopessoal. Tendo múltiplas tarefas a realizar, às vezes fui obrigado[...] a entregar textos a datilógrafas. Quando refleti sobre isso,fiquei muito incomodado. Sem fazer nenhuma espécie dedemagogia, isso me representou a alienação dessa relação social,em que um ser, o copista, fica confinado perante o mestre a umaatividade eu diria quase escravagista, quando o espaço da escritaé justamente o da liberdade e do desejo. Em suma, penseicomigo: ‘Só há uma solução. Tenho realmente de aprender aescrever à máquina’1.
No mundo da cultura digital, não é muito comum discorrer sobre a
perenidade da obra; obras digitais são criadas e disponibilizadas para
serem usufruídas num determinado período, dentro do qual a evolução
própria do meio e do software prenunciam seu futuro – tão logo surgem as
atualizações nas ferramentas, as obras estão fadadas a serem colocadas
no museu da artemídia.
Uma das peculiaridades quando se fala de obras criadas com o
software Storyspace (Ssp) é justamente sua perenidade. Obras como
Afternoon, a story, da qual falaremos posteriormente, com mais de 15 anos,
se mantêm objeto de fruição e de estudos, especialmente por sua
qualidade e pioneirismo. Diferentemente do que ocorre com a maioria dos
software de criação, as obras em Storyspace retêm um valioso interesse
1 BARTHES, Roland, 2004a: 254.
17
além de seis meses ou um ano de seu lançamento. Trata-se de um
programa único em suas peculiaridades, com atributos que, usados na
criação e na experimentação das formas literárias em contextos digitais,
foram – e ainda são – responsáveis por criações de qualidade marcante.
Recentemente, Afternoon, a story, e I have said nothing, de J.
Yellowlees Douglas, foram incluídas na antologia Postmodern American
Fiction: A Norton Anthology, um termômetro que afere e consagra obras
literárias nos Estados Unidos. Pela primeira vez, foram colocadas, naquela
importante antologia, obras produzidas em hipertexto, ao lado de nomes
como William S. Borroughs, Norman Mailer, Thomas Pynchon, dentre
outros, numa coleção que reúne autores inovadores de 1945 a 19972.
A inclusão de obras em Storyspace na antologia citada acima são
sinais de que tal tipo de criação, embora tenha surgido dentro da categoria
de experimentalismo, a está ultrapassando, e entrando para a lista das
obras mais importantes da literatura contemporânea.
Escritores inventivos como Mark Amerika utilizam esse programa
como ferramenta auxiliar na criação. Autor de Grammatron, obra escrita
para a WWW, o autor utilizou o Storyspace para elaborar mapas de
visualização da história e, assim, evitar “perder-se” durante o processo
criativo, como explicou:
Criar estruturas hipertextuais complexas para a WWW éum pesadelo, porque, depois de um certo ponto, não se podevisualizar um mapa cognitivo da obra, que tem milhares de telas elinks. Com o Ssp, pude criar um roadmap com o qual foi possívelvisualizar o conteúdo e os links3.
O guia teórico para Grammatron, Hypertextual Consciousness foi
quase exclusivamente composto em Storyspace, com apenas alguns
adendos específicos da WWW para efeitos.
2 Cf. DOUGLAS, 2000.3 “Storyspace and the making of Grammatron”, in:http://www.eastgate.com/storyspace/writing/Amerika.html
18
O Storyspace também foi utilizado por Jay David Bolter e Richard
Grusin na organização do livro Remediation (1999). Embora este fato não
seja citado no livro, Bolter, um dos autores do programa, faz uso do
aplicativo para conceber o livro, como se vê à página 32. Os autores
colocam uma figura que representa o estilo de múltiplas janelas da interface
de computador, servindo para exemplificar o que os autores definem como
a lógica da hypermediacy (que veremos mais adiante), o Storyspace
aparece com um pequeno "mapa de visualização" e também com a divisão dos
conteúdos da obra, logo abaixo, em uma outra janela, esta, de texto (Fig. 1).
FIGURA 1 O Storyspace em Remediation.
19
A mesma evolução tecnológica que é responsável por tirar de
circulação software e obras de caráter digital, no entanto, foi a responsável
pela adoção do Storyspace por pesquisadores e escritores, no começo da
década de 90. Este é o caso testemunhado por George Landow,
pesquisador e professor da Brown University. Segundo este autor, o
Storyspace veio preencher uma lacuna deixada pelo desaparecimento do
Intermedia, uma ferramenta desenvolvida pela Apple Computers: o fim do
programa Intermedia foi anunciado quando a Apple alterou a A/UX, sua
versão do Unix, e fez novos modelos de Machintosh incompatíveis com as
primeiras versões de A/UX, ou seja, impossibilitando então o uso do
Intermedia, que era a ferramenta utilizada na Brown para o estudo e a
criação em hipertexto4. Mesmo assim, Intermedia ainda ficou sendo usado
na Brown University por cerca de dois anos, enquanto os pesquisadores
buscavam outro programa que contemplasse algumas de suas
possibilidades de criação em hipertexto. Landow recorda que o Storyspace
podia rodar em qualquer máquina, PC ou Machintosh, e imediatamente
todas as obras produzidas pelos pesquisadores e seus alunos na Brown
foram transferidas para o programa da Eastgate.
O Storyspace foi demonstrado ao público pela primeira vez em
1987, num workshop da ACM – Association for Computing Machinery –,
pelos seus criadores, Michael Joyce, John B. Smith e J. David Bolter. Em
1989, aparece Afternoon, a story, de Michael Joyce, cuja origem está
estreitamente ligada ao desenvolvimento da própria ferramenta, e em 1991
é lançado pela Eastgate o Storyspace5.
4 Dickens Web, um amplo estudo sobre a obra de Charles Dickens, foi uma das primeiras obras autilizar o hipertexto para organizar a informação com fins educativos, com a participação depesquisadores e estudantes da Brown University. A obra foi criada em Intermedia. Com odesaparecimento deste software, foi transferida para o Storyspace, como observa Landow noartigo “The Death of Intermedia and the Migration to Storyspace”, in:http://www.cyberartsweb.org/cpace/ht/jhup/int2.html5 Conforme Mark Bernstein, em comunicação sobre o Storyspace (2002).
20
Desde então, o programa tem sido utilizado no ensino da escrita em
hipertexto, em obras de não-ficção, como The Dickens Web, de George P.
Landow, e Socrates In The Labyrinth, de David Kolb, além de na criação,
estudo e análise de obras literárias em hipertexto. Obras em hipertexto
escritas neste programa continuam a ser lidas e discutidas hoje como há
dez anos, conforme salienta Mark Bernstein (2002: 174), responsável pela
Eastgate. Não é de se estranhar que, na história deste programa, ele tenha
sido visto, muitas vezes, como sinônimo de hipertexto.
FIGURA 2 Página inicial de Afternoon, a story
Refletir sobre um programa de computador e obras com ele
originadas traz uma questão que nos parece ser central, e que diz respeito
ao estatuto do programa de computador em relação ao objeto estético. O
exemplo de Michael Joyce e a criação de Afternoon parece ilustrar muito
21
bem a afirmação de Weizenbaum (em Computer Power and Human
Reason, cit. por RISÉRIO, p.123): “o ato criativo na ciência é equivalente ao
ato criativo na arte”.
No que concerne às criações que se utilizam de programas de
computador, isso parece paradigmático. Em primeiro lugar, é importante a
indagação: até que ponto aquele que cria um programa de computador que
traz em si o gene da sua própria transformação em produtos estéticos,
como é o caso do Storyspace, não estaria dando origem a um objeto
estético? Nesse sentido, o programa de computador, dada a apropriação
potencial que dele pode ser feita, que resultará em objetos estéticos,
poderia ser considerado, também ele, um objeto estético?
A utilização do meio digital traz novas formas de conceber o ato
criativo, como lembra Barbosa (1996: 109). A relação do artista com a obra
inclui, de forma definitiva, a máquina. Às duas fases complementares do
processo criador citadas por Barbosa (1996: 110) – a da concepção e a da
realização – adicionamos uma terceira: a criação da ferramenta necessária
para concretizar a idéia inicial, que é o caso da criação do Ssp.
Temos aí pelos menos duas visões da origem do programa
Storyspace como objeto estético, que é a sua criação enquanto ferramenta
para colocar em prática uma idéia de obra, e a sua própria potencialidade
criativa, a ser explorada por outros artistas. Barbosa ainda salienta, a esse
respeito, que: “Sucede então que a relação artística, que era uma relação
comunicativa direta entre um autor e um receptor, apenas mediados pela
obra, passa a ser uma relação comunicativa indireta onde um mecanismo
cibernético se interpõe [...]” (1996: 110). A interferência do suporte é de tal
forma definitiva, no caso do Ssp, que cada obra neste programa trará junto
consigo um arquivo de leitura, que permite sua fruição em qualquer
computador. O leitor pode não só ler, como também fazer anotações,
22
utilizando a obra como uma espécie de “modelo”, um original que pode ser
alterado.
O artista que, para dar forma a uma necessidade criativa, concebe
um programa, como é o caso de Joyce, é também um técnico. Como
técnico, Joyce cria um objeto tecno-estético, poderíamos afirmar, e como
artista, da mesma forma. Joyce não é um técnico, porém, no sentido estrito
da palavra, mas pode ser, de longe, considerado um artista criador.
Concluindo: não seria este ato, que envolve desde a criação do programa
até a criação da obra, um ato artístico?
“O ato criativo na ciência é equivalente ao ato criativo na arte”,
voltamos a mencionar. A partir do momento em que criou o objeto técnico
para dar forma a sua idéia, Michael Joyce está nas duas pontas do
processo criativo, que podem ser unificadas numa só instância.
Notemos que o ato criativo, neste caso, envolveu um antes e um
depois da criação da ferramenta. É como se Van Gogh tivesse criado a tela,
as tintas e os pincéis com o único objetivo de concretizar seus quadros.
Voltando a este processo, não é demasiado afirmar que ele sintetiza a
trajetória da arte que reflete sobre si mesma, como uma metáfora para a
relação da arte com a técnica responsável pela sua criação, em forma de
metalinguagem, como veremos no capítulo quatro.
É quando refletirmos mais profundamente sobre Patchwork Girl, no
capítulo quatro, que veremos uma obra interrogando a tecnologia de
inscrição que a produz. Esse questionamento se dá de várias formas, por
exemplo, através de interrogações sobre a própria natureza da “monstra”,
que é a metáfora para a “criatura”: ela está em permanente questionamento
em relação ao seu autor, um ente que se divide em, pelo menos, três
partes: é, ao mesmo tempo, o autor da obra, o criador do monstro e o
próprio programa de computador.
23
Veremos, em Patchwork Girl, um processo criativo que se auto-
referencia, ao mesmo tempo em que interroga seu suporte; a monstra que
reivindica a atenção do leitor inquirindo sobre sua própria natureza, e assim
trazendo para si o papel de sujeito da narrativa, não é mais do que a
personificação do objeto estético criado a partir de um programa de
computador.
1.1 Onde está a qualidade?
Um dos objetivos deste trabalho é mostrar a qualidade literária das
obras produzidas em Storyspace, a partir da análise da obra e do
programa. Ao longo deste processo de pesquisa, entretanto, ficou claro,
para nós, que a qualidade de uma criação está estreitamente ligada à
ferramenta que lhe deu origem. Por isso, o foco também no programa
Storyspace. Temos clareza de que as características desta ferramenta
estão integradas aos produtos e são definitivamente responsáveis pelos
resultados obtidos no processo de criação.
Não fossem tais estratégias criativas, nossa análise poderia ver-se
empobrecida pelo fato de deter-se exclusivamente no resultado, e não na
“causa”. Por isso, é tão profundamente instigante o que Melo e Castro nos
recorda:
Criar será incidir, pesquisando e investigando, sobre aprópria natureza do material pesquisado e investigado. Umaligação entre o produto criado e o método criador se formaindissoluvelmente, estruturando-se na mesma malha de relaçõesrecíprocas. Malha essa cujas relações Jakobson diz tambémdeixarem de ser as da seleção (ou exclusão) para serem as dacombinatória e da reciprocidade (1976: 58).
Trabalhar na análise de obras literárias a partir de sua ferramenta de
criação, no nosso entender, implica fazer a ligação conceitual de duas
instâncias, quais sejam, a idéia (obra) e o objeto de que é feita (o programa,
24
ou, em outras palavras, suas características técnicas, ou, conforme alguns
autores, “materialidade”). Tal imbricação entre conteúdo e materialidade
não é mais do que uma tendência da criação contemporânea, que aparece
já a partir das criações da vanguarda literária do século XIX, com Mallarmé
e sua constelação de escrita, ou com a prosa de Laurence Sterne, em A
Vida e as opiniões do Cavaheiro Tristram Shandy, escrita entre 1760 e
1767, e que viria a influenciar autores como Virgínia Woolf, James Joyce e
Samuel Becket6, e da qual falaremos no capítulo três.
É a partir dessas reflexões e do andamento das próprias leituras das
obras, que estabelecemos critérios para servir à nossa exploração relativa à
qualidade das hiperficções e do programa que são objetos deste estudo.
Entretanto, para se verificar qualidades em qualquer tipo de produto,
é necessário estabelecer critérios. Na literatura tradicional, pode-se afirmar
que já existe um corpo teórico consistente de análise e, assim, critérios
mais facilmente identificáveis. No caso dessa pesquisa, em que padrões de
análise ainda estão sendo construídos, com poucas referências já
instituídas, a construção de quadros de referência foi baseada nas
características materiais do texto hipertextual e nas características
“literárias” das obras, em especial, sua construção textual. Desta forma,
contemplamos as duas instâncias discutidas neste tipo de criação literária:
a da literatura tradicional, presente no próprio texto verbo-visual destas
obras, e a da literatura eletrônica, cuja materialidade parece ser um dos
pontos-chave da pesquisa contemporânea na escrita criativa, basta ver
autores como Hayles (2002) e Glazier (2003), por exemplo.
Alguns teóricos ressaltam a necessidade de se ater às
características proporcionadas pelos suportes digitais para a análise crítica
destes produtos. Na nossa opinião, entretanto, tal sugestão não é capaz de
6 De acordo com José Paulo Paes, no prefácio à edição da obra de Sterne para a Companhia dasLetras (vide Bibliografia).
25
abranger a totalidade dos elementos que fazem das escritas criativas no
suporte digital algo surpreendente. Como Bolter e Grusin atestam no seu
estudo Remediation (1999), o novo é a construção que se aproveita do
anterior, remodelando e reajustando formas, e isso não é exceção nas
obras de ficção em hipertexto produzidas em Storyspace.
Se há qualidades a serem detectadas e analisadas, elas estão tanto
no que concerne à escrita em hipertexto, que se aproveita das
características técnicas do seu próprio suporte, como na construção textual,
verbal e, por vezes, visual, que aflora em cada espaço de escrita formado
pela hiperficção.
1.2 Características do programa de escrita
O Storyspace é composto por espaços de escrita que podem ser
conectados por links. O texto de cada espaço de escrita é disponibilizado
na sua própria janela e o programa é capaz de mostrar o conjunto desses
espaços na tela do computador, organizados de acordo com opções do
usuário (Fig. 3). Estas visões podem ser em forma de árvore, sublinhados
ou mapas – este último o preferido dos usuários. O mapa mostra cada
espaço de escrita com os respectivos títulos e cada um dos seus links, o
que permite ao autor adicionar, fazer conexões (outros links) e reorganizar
o todo, movendo os espaços de escrita dentro do mapa de visualização.
Nesse sentido, pode-se dizer que a ferramenta está mais centrada no
processo de escrita do que na apresentação visual, embora os mapas de
visualização sejam, ao mesmo tempo, uma forma de visualizar a narrativa e
uma forma visual de organização do hipertexto.
26
FIGURA 3 Uma das formas de organização dentro do Storyspace:espaços de escrita e suas conexões por links e espaço deedição textual
O Storyspace enfatiza assim a escrita, a conexão entre os espaços
de escrita, os quais podem conter textos, imagens ou outras formas de
representação, e a organização do seu conjunto. Para ligar dois espaços,
basta desenhar uma linha entre eles. Para trabalhar com estrutura
hierárquica, pode-se desenhar espaços dentro de outros espaços e assim
organizar e reorganizar a escrita.
Porém, o que chama a atenção no sistema hipertextual desse
programa é, sem dúvida, o chamado link condicional, ou guard field, que
possibilita links multi-direcionais, ao contrário dos links unidirecionais,
característicos da plataforma hipertextual da WWW, por exemplo. Este é
um atributo que ainda não foi atingido pela plataforma da WWW. O guard
27
field pode levar a vários espaços de informação diferentes entre si. Para a
criação literária em hipertexto, tal característica provou ser fundamental e,
mais ainda, mostrou sua capacidade de fugir das típicas navegações
hierárquicas da WWW.
FIGURA 4 A lista de links do Storyspace, em Afternoon, a story
Guard fields são expressões boleanas baseadas na seleção do
leitor e na sua trajetória prévia de leitura. Tratam-se de comandos que
determinam certas condições para que um link seja ou não acessado
durante a leitura. Eles são possibilitados apenas para a criação e leitura off-
line, ou seja, fora do ambiente da WWW. Alguns exemplos destas
condições garantidas pelos guard fields, são:
28
a) um link somente poderá ser aberto se um outro determinado link
(também chamado “espaço de escrita”) já tiver sido acessado
pelo leitor;
b) um link poderá ser acessado randomicamente. Por exemplo,
uma em cinco vezes: a cada cinco leituras, tal link será aberto
apenas uma vez;
c) um link poderá ser acessado apenas se um outro determinado
link ainda não tiver sido acessado durante a leitura.
Como salienta Bernstein (2002: 173), neste último caso, o guard
field provou ser inestimável para quebrar ciclos de leitura e colaborar em
situar os ciclos e contrapontos no coração da narrativa hipertextual
contemporânea.
Assim, o leitor dispõe de uma estratégia de leitura que vai se
desvelando ao longo de seu contato com o hipertexto. Mais ainda, os links
condicionais, tão logo acessados, mostram que esse leitor se encontra em
um ambiente capaz de permitir maiores possibilidades de ramificações da
narrativa, já que as seqüências dadas pelo mesmo link podem levar a
diferentes espaços de escrita. Isso será um diferencial na construção da
narrativa, é inegável. Quando baseado na trajetória de leitura prévia através
do hipertexto, o guard field oferece links dinâmicos, cujo comportamento
muda conforme o curso da leitura, e isso marca a multi-seqüencialidade da
narrativa.
O que está em questão, porém, não é somente o percurso de leitura
– embora seja interessante especular nesse sentido, já que a estratégia de
leitura faz parte do processo narrativo –, mas a presença potencial de uma
leitura como um processo não-linear, no qual são oferecidas alternativas de
progressão que não são únicas, nem, tampouco, podem ser definidas como
“estáticas”. Neste sentido, o centro de uma discussão sobre o hipertexto
29
enquanto sistema de escrita, ou técnica de escrita, no que concerne à não-
linearidade, tem que ser pensado levando-se em conta esta potencialidade.
Ao leitor, é oferecido um conjunto de alternativas multi-seqüenciais de
leitura, em um espaço descontínuo. Tais opções serão acionadas conforme
suas decisões a respeito dos links a serem seguidos, ou, ainda, no caso
dos guard fields, conforme os trajetos que perfizer na ação de leitura.
Podemos ter, assim, pelo menos duas instâncias narrativas de
importância crucial no processo de escrita em hipertexto, ainda que todas
elas sejam criadas por um autor: aquela que o leitor escolhe e aquela que
ele é levado a perfazer, já que é dada por condições estabelecidas pelo
autor da obra. Para exemplificar, numa obra como Patchwork Girl, que
veremos mais detalhadamente no capítulo quatro, o leitor poderá escolher
entre seguir um link aberto quando clicar no texto ou na imagem, ou seguir
um link listado quando aciona o botão “links”. Por outro lado, este mesmo
leitor, neste mesmo processo de leitura, pode optar por clicar em qualquer
link que seja acionável dentro do espaço de escrita ou da imagem e ser
levado a um espaço de escrita criado por uma condição estabelecida pelo
autor da obra.
O link é o motor do hipertexto. Define a ação do leitor e as
estratégias do autor da obra. No Storyspace, o link é fundamental; a ele são
dados atributos, como os já citados guard fields. Ao autor são fornecidas
facilidades para a criação do link, que incluem toda uma gama de
características, que tendem a enriquecer a narrativa. Uma destas
possibilidades, é a caixa de diálogo do link. Ela mostra todos os links que
se originam do respectivo espaço de escrita, com sua destinação e guard
field, se houver. Também mostra o tipo de link, ou seja, se ele é um link de
texto, gráfico (que parte de uma imagem) ou, ainda, se o guard field pode
ser ativado naquele momento da leitura.
30
Ao criar uma obra com o programa Storyspace, o autor decide quais
os atributos de leitura que permitirá ao leitor. A forma como será lida é
estabelecida pelo autor nas configurações específicas relativas ao arquivo.
Em uma versão do aplicativo, o Storyspace Reader, que acompanha
cada obra em Ssp, estão as especificidades que o autor estabeleceu para
sua obra – e as condições para a visualização dos mapas, por exemplo. O
Storyspace Reader é necessário para que o leitor usufrua a obra neste
programa, mas não permite que o hipertexto seja modificado na sua
origem. Ou seja, enquanto em Afternoon, a story, não é permitida a visão
dos mapas de visualização, Patchwork Girl garante esta possibilidade.
Estes mapas (view windows) mostram como está estruturado o hipertexto
em relação a cada espaço de escrita, seus links e destinações, podendo
ainda mostrar os seus nomes e os textos de cada espaço.
Tal possibilidade vai além da narrativa, podendo ser tomada, antes,
como a estratégia hipermediacy (BOLTER; GRUSIN, 1999), que permite ao
leitor a consciência da presença do meio, através de representações
verbais e visuais. Isso não é nada mais do que mostrar a matéria de que é
feita o hipertexto, ou seja, sua natureza mais fundamental, sua estrutura de
ligações e conexões entre links e seus espaços de escrita. Enfim, trata-se
da materialidade do texto, tornada presente ao seu leitor e usuário.
A fascinação com o meio, conforme os mesmos autores, que tem
uma história como prática representacional e lógica cultural (BOLTER;
GRUSIN, 1999: 31), é evidente nos meios digitais contemporâneos, com
suas características de múltiplas janelas (windowed style) e conteúdos. Tal
multiplicidade leva o usuário repetidamente a ter contato com a interface, e
o leitor oscila entre manipular as janelas e/ou examinar seus conteúdos,
conforme os autores (BOLTER; GRUSIN, 1999: 33).
No Storyspace, as janelas de visualização podem ser
disponibilizadas de quatro maneiras, sendo três delas muito úteis para a
31
navegação: o Storyspace map (Fig. 5) mostra os espaços de escrita como
caixas retangulares, podendo exibir ainda a ligação entre eles, os nomes
dos links e os seus textos; o chart view (Fig. 6) mostra a estrutura sem as
informações sobre os links e o outline view (Fig. 7) mostra resumidamente a
lista de espaços de escrita.
FIGURA 5 Storyspace Map View
33
FIGURA 7 Outline View
Para o leitor, trata-se de mais informação sobre o hipertexto. Ao
clicar sobre as setas que ligam dois espaços de escrita no Storyspace Map
View, por exemplo, pode-se ver uma janela com informações sobre aquele
determinado link, como seu nome e destinação.
Ao possibilitar que se possa ver o mapa do hipertexto e vê-lo de
várias formas – dispostas na mesma tela, em pequenos espaços de escrita,
alinhados em uma lista, ou ainda como um diagrama –, o programa mostra
uma estrutura em sua própria construção. Mostra as ligações, os links entre
espaços de texto. Isso possibilita, ao mesmo tempo, uma visão geral da
escritura como um todo, que não era percebida, pelo menos de imediato.
Tal visão de conjunto deixa clara a presença do texto, ou seja, apesar da
consciência de que se trata de um texto virtual, que toma existência
34
concreta somente quando acessado, pode-se vê-lo, disponível junto a um
conjunto de outros textos. O mapa do hipertexto em Storyspace mostra que
o virtual pode ser real, mas é, principalmente, o que se pode ver, o atual. E
assim se efetiva a obra que se mostra, que se interroga a si mesma,
fazendo do jogo materialidade versus significação, uma mistura do objeto
do qual se fala com o objeto pelo qual se fala.
1.3 Código fechado
O Storyspace nasceu da necessidade de um autor em criar uma
ferramenta que lhe permitisse construir uma narrativa baseada
especificamente na multi-seqüencialidade.
Quando Michael Joyce participa da criação do Storyspace, junto
com J. David Bolter e John B. Smith, ele está preocupado em dar forma a
uma obra literária, talvez mais do que a um programa de computador.
Afternoon, a story surge desta preocupação e concomitante com a criação
da própria ferramenta que lhe dá origem concreta. A obra é publicada em
disquetes antes mesmo que o Storyspace tenha sido lançado. Enquanto um
programa de criação em hipertexto, Storyspace surge depois do
lançamento da hiperficção de Michael Joyce. Neste sentido, é possível
vislumbrar a gênese do Storyspace como programa de código aberto, ainda
que somente na sua origem. Para criar Afternoon, a story, Joyce manipulou
todas as possibilidades de um programa de computador em construção.
Desta forma, a hiperficção Afternoon, a story não é apenas uma das
mais exemplares obras do gênero, mas também a manipulação do código
de um aplicativo no momento de sua própria gênese – uma obra-prima fruto
da originalidade na produção e no uso da ferramenta. Esta questão pode
servir para uma discussão sobre a relação do artista com a técnica que lhe
proporciona a criação, como vimos anteriormente. Mas também mostra, de
35
forma exemplar, a relação do artista criador com a liberdade na invenção, a
partir de sua própria relação criativa com a ferramenta. O que Joyce faz não
é somente dominar a técnica narrativa literária, mas a própria ferramenta,
além de ter um controle do hipertexto, tanto do ponto de vista conceitual
quanto técnico.
O Storyspace tem algumas limitações, entretanto, que, se não são
suficientes para o excluírem do rol de criações históricas na literatura em
hipertexto, atestam, por si só, um momento da criação literária experimental
em hipertexto. Ou seja, ainda que sejam consideradas importantes para a
criação, tais características tornam o aplicativo apto a um enquadramento
específico dentro do panorama das ferramentas para a criação com os
meios digitais.
Talvez a principal destas limitações seja o código “fechado”, o que
permite pouca interferência do autor a favor de um resultado que vai além
do que a ferramenta oferece.
Uma interação maior com o aplicativo, entretanto, que se detém
muito mais no seu código do que nas possibilidades que ele oferece de
antemão, é uma tendência emergente da criação na chamada software-art,
ou “arte-programa”, segundo Beigelmann (2003: 41).
Programas de código fechado como o Storyspace estão localizados
em uma determinada fase do desenvolvimento da criação, em que a
interferência do artista se dá em muito maior medida na forma de utilização
do programa, do que na manipulação do seu próprio código de
programação.
Mas, que dizer daquele que criou o programa? Trata-se, também,
de um artista?
Neste sentido, pode-se entender uma ferramenta como o
Storyspace como um objeto estético? Na opinião de Terry Winograd, um
36
programa de computador é uma criação artística. Este autor observa o
fascínio em comparar os diversos programas de inteligência artificial com a
personalidade de seu criador, “que se reflete no seu robô como a do
romancista em sua obra” (WINOGRAD, apud RISÉRIO, 1998: 120).
Pois agora, nos fins do século XX, temos a criação de aplicativos
com o objetivo da criação estética, como é o caso do Storyspace. Há uma
via de duas mãos na relação do programa com suas obras, como se vê
numa leitura mais atenta de obras como Patchwork Girl e Afternoon, a
story. Na primeira, por exemplo, esta relação é personificada intimamente
entre o objeto e seu criador, a “monstra” e o autor, conexão que
poderíamos estender para a obra e o programa que lhe dá origem, porque
o tratamento metafórico dessas instâncias constitui a principal característica
da obra, como poderemos ver mais amplamente no capítulo quatro. O
criador está conectado com sua criatura, através das alusões a sua própria
materialidade, ou seja, o hipertexto.
Pode-se ver esta obra em Storyspace como um objeto estético
segundo, porque originado de um primeiro, o programa ou ferramenta. Tal
como numa relação dialética, na qual uma instância produz outra seguinte,
ou, ainda, uma linha de evolução da criação técnica, embora não implique,
necessariamente, no surgimento de um objeto “melhor” do que o anterior,
mas tão interessante quanto, só que diferente.
O fato de os artistas subverterem os códigos dos programas de
computador para criar obras estéticas não seria um intervenção em vias de
transformar a ferramenta em objeto estético? Ou, por outra, o fato de um
programa de computador permitir uma interfer6encia criadora, como a que
estamos vendo acontecer nos mais recentes experimentos em arte e
tecnologia, não será um sinal de que tais programas são, de saída, objetos
estéticos?
37
Veja-se, por exemplo, a origem da videoarte, com o trabalho de
Nam June paik: quando o artista coreano distorce a imagem do tubo
iconoscópico com ímãs, circuitos alterados e processadores de imagem
(MACHADO, 1996) ele não estaria desvendando, naquele objeto (TV) uma
sua potencialidade para o exercício criativo? Desta forma, não estaria aí a
presença em potencial do objeto estético no aparato técnico?
É certo que a criação do objeto estético vai ocorrer com a
interferência do artista, seja utilizando o programa dentro de suas
possibilidades dadas, seja subvertendo alguma dessas características.
Mas, o que dizer no caso do Storyspace, quando vemos que um de seus
criadores, Michael Joyce, concomitante com a criação da ferramenta, dá
origem a uma obra como Afternoon, a story? Se vislumbramos o ato
criativo, veremos que se trata de um impulso similar, seja na criação da
obra, seja na criação da ferramenta. Ainda que se possa estabelecer
diferenças de timing entre essas duas instâncias, a essência do ato criativo
permanece intocável e insubstituível.
Enfim, a relação da ferramenta com a origem da obra de arte
merece ser analisada mais amplamente, o que pretendemos fazer neste
trabalho, não esquecendo que as características técnicas do programa
terão profunda influência na obra criativa.
2 HIPERTEXTO E CRIAÇÃO – POÉTICAS DIGITAIS
A literatura só pode viver se se propõe a objetivosdesmesurados, até mesmo para além de suas possibilidades derealização. Só se poetas e escritores se lançarem a empresas queninguém mais ousaria imaginar é que a literatura continuará a teruma função7.
O signo verbal que compõe as criações poéticas nos meios digitais
pode ser definido como um “signo em profundidade”: vertical, espesso, cuja
espessura resulta de camadas de signos embutidos em palimpsesto,
gerando simultaneidade de informação e tendendo a ou sendo um
ideograma – um ícone (PIGNATARI, 1987: 102-103).
A característica do palimpsesto já foi verificada em obras
hipertextuais, por exemplo, por Michael Joyce, que observa que o texto
ocupa cada tela apagando sua anterior, como num palimpsesto, no qual o
que se escreve num dado momento apaga o que foi escrito anteriormente.
Tais signos geram uma explosão de informação, tendem a ser ícones e,
ainda, têm a característica da multiplicidade – expandindo-se em várias
alternativas de significação; da transgressão – fornecem outros sentidos às
atividades de leitura e de escrita; da auto-referenciação, ou de uma relação
epistemológica consigo mesmos – como o hipertexto que se utiliza da
metalinguagem, entre outros elementos que discutiremos neste capítulo.
7 CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio, p.127.
39
Como lembrou Genette, o estudo estrutural da “linguagem poética” e
das formas de expressão literária em geral não pode prescindir da análise
das relações entre o código e a mensagem (GENETTE, 1972: 150-51).
Entretanto, sendo estreitamente imbricados nos meios digitais, e em
especial nas hiperficções que analisaremos neste trabalho, código e
mensagem tornam-se uma só entidade, cujas relações orgânicas de
significado virão a enriquecer o estudo das obras literárias de hipertexto de
ficção. Tornam-se, assim, um tipo de mensagem que, como disse Roman
Jakobson (s.d.), toma a sua própria forma por objeto, ultrapassando
conteúdos. Para este autor, é isso que vai definir o literário como “poético”.
No meio digital, a leitura se dará como feixe de possibilidades,
potencializações de opções latentes, atualizadas pelo ato de ler. Mas não é
somente no que concerne à estrutura orgânica do texto que veremos uma
função definidora da leitura nas poéticas digitais. Obras como Patchwork
Girl, por exemplo, retomam um caracter de erotização conferido à leitura
por Roland Barthes. Inspirado em Lacan, o autor francês escreveu que, na
leitura, há um erotismo relacionado ao desejo – “na leitura, o desejo está
presente junto com o seu objeto, que é a definição do erotismo”
(BARTHES, 2004: 36). A obra de Shelley Jackson torna aparente uma
relação erótica entre seu objeto, a escrita, e a própria história do
personagem principal, especialmente porque a “monstra” se refere, na
maioria das vezes, em primeira pessoa, como se estivesse querendo forçar
um contato íntimo com o leitor, através da escritura.
Também se pode constatar, na leitura desta hiperficção, algo que
Barthes classificou como “tipos de prazer de ler” (2004: 38). Primeiro, o
leitor tem, com o texto lido, uma relação fetichista: tira prazer das palavras,
de certas palavras, de certos arranjos de palavras; o que seria um tipo de
leitura metafórica ou poética; o segundo modo é o extremo oposto, e diz
respeito ao prazer metonímico da narração, que “puxa” o leitor para a
frente, faz com que o mesmo não suporte esperar pelos desfechos, que
40
não agüente o suspense da narrativa; e, finalmente, a terceira aventura de
leitura, que é a da própria Escritura (sic): “a leitura é condutora do Desejo
(sic) de escrever” (2004: 39). Ele continua: “Desejamos o desejo que o
autor teve de escrever, ou ainda: desejamos o desejo que o autor teve do
leitor enquanto escrevia, desejamos o ame-me que está em toda escritura”
(2004: 39).
Numa leitura de Patchwork Girl, a relação do leitor com a obra será
tanto mais erótica quanto maior for se percorrendo as diversas lexias. Uma
relação produtiva, portanto, que suscitará sempre o desejo de também
escrever, o que se faz através da leitura que “escreve” seu trajeto, como se
estivesse tecendo uma outra obra.
Buscar compreender o signo poético nos contextos digitais é o
primeiro passo para entender a criação literária nesses meios, marcadas
por uma explosão de novas roupagens para a palavra, a imagem e o som.
Tudo isso vai influir no que se define como "poética digital" e, mais ainda, a
forma como estes signos – verbais, imagéticos, sonoros – vão se relacionar
nos novos meios. Esta relação inclui características como a intermídia, que
discutiremos neste capítulo.
O que se entende por “poéticas digitais”, ou “poéticas tecnológicas”
diz respeito, em primeiro lugar, à linguagem como tecnologia, talvez a mais
avançada de todas, segundo Machado (1996). Abraham Moles (1990)
ressaltou a importância da estética informacional, relacionada com as artes
ótica, cinematográfica e à arte por computador, derivados, todos, da
combinatória e do que ele definiu como Arte Permutacional (1990: 36). Na
criação literária, o texto visto como um “campo de possibilidades”, marcado
pela vertente da combinatória, consagra-se a partir da década de 50,
embora tal potencialidade expressiva sempre tenha feito parte da poesia de
todos os tempos, como salientou Machado:
41
Num certo sentido, podemos dizer que toda literaturaplenamente realizada é uma literatura potencial, e cabe àsgerações sucessivas ir revelando essas possibilidades latentesque os próprios contemporâneos de cada obra muitas vezes nãopuderam perceber. [...] A diferença introduzida pelos textospermutativos é que neles a pluralidade significante é dada comodispositivo material: o leitor não apenas os interpreta mais oumenos livremente, como também os organiza e estrutura, ao nívelmesmo da produção (1996: 180).
As poéticas digitais, portanto, têm na sua gênese a característica da
combinatória entre seus elementos, onde a ação da troca é significativa, e
caracteriza um texto poético que não é apenas a criação de um sujeito, mas
a atualização de um campo de possíveis (MACHADO, 1996: 180) por um
leitor, ou usuário, pois a obra vai se realizar no ato de leitura, diz o autor.
Em cada um desses atos, assumirá uma forma diferente, e, no caso dos
contextos digitais, estará “inscrita no potencial dado pelo algoritmo” (1996:
180).
Para Roland Barthes,
... a leitura, [...] (esse texto que escrevemos em nós quandolemos), dispersa, dissemina; ou, pelo menos, diante de umahistória (como a do escultor Sarrasine), vemos bem que certaimposição do prosseguimento (do “suspense”) luta continuamenteem nós com a força explosiva do texto, sua energia digressiva: àlógica da razão (que faz com que esta história seja legível)entremeia-se uma lógica do símbolo. Essa lógica não é dedutiva,mas associativa: associa ao texto material (a cada uma de suasfrases) outras idéias, outras imagens, outras significações (2004b:28).
A leitura de um hipertexto é um campo de possibilidades, tornadas
concretas pela potencialidade própria do texto na tela. Pedro Barbosa
observa que
o texto virtual é imaterial: o que existe no suporte físico de umcomputador não é um texto, não é um sentido, não tem umsignificado – é apenas o “motor” de uma pluralidade derealizações textuais por materializar signicamente (1996: 118).
42
Neste campo de criação, é necessário, ainda, conforme o mesmo
autor, distinguir o trabalho do verdadeiro criador com o trabalho do técnico,
ou funcionário8. Nesta atividade está a natureza do ato criativo originado
com as tecnologias. Segundo Machado, “as máquinas têm ‘possibilidades’
que já vêm inscritas no seu dispositivo técnico” (1996: 14). Caberia às
poéticas tecnológicas resgatá-las, em todas as suas conseqüências, diz
ele, observando que este relacionamento criativo inclui uma redefinição da
maneira de entender e de lidar com os meios técnológicos: “É como se
cada obra reinventasse a maneira de se apropriar de uma máquina
enunciadora” (1996: 15).
Não seria demasiado incluir, nesta reflexão, a importância do
programa de computador na origem da obra de arte tecnológica. Neste
caso, a função do artista criador está presente a partir da própria criação da
ferramenta, como é o exemplo de Michael Joyce, que cria o programa
Storyspace para dar forma a uma idéia: a ficção em hipertexto Afternoon, a
story, como mencionamos no primeiro capítulo.
As poéticas digitais, portanto, devem levar em conta, além de
características sígnicas, também os aspectos técnicos da criação e a
relação criativa do artista com a máquina, ou o programa de computador.
Além disso, é fundamental verificar as “escritas criativas”, base para as
poéticas digitais ao longo de todo um contexto histórico que anuncia e dá
forma tais criações.
O que entendemos por escritas criativas sempre fez parte dos
modos de inscrição, desde os primeiros exemplos de visualidade
comunicativa, como os poemas visuais, ou simples informações inscritas
em pedra, momentos recuperados de muitos séculos antes de Cristo, como
o Disco de Festus (HIGGINS, 1987). Estamos entendendo como escritas
8 Em Máquina e Imaginário, Arlindo Machado sustenta que “só um verdadeiro criador (seja eleartista, engenheiro ou cientista) pode dar forma sensível às mutações que a sociedade industrialavançada está produzindo [...]” (1996: 14).
43
criativas todas as escrituras que buscam – e logram –, de modo inventivo,
romper padrões estabelecidos. Na história da literatura, sua presença é
ancestral: desde o Simmias egg, no século III a.C., passando pelas
invenções do simbolista francês Mallarmé, por Ezra Pound, pelos poetas
concretos... a transgressão inventiva das regras de escrita, seja buscando a
visualidade através da utilização dos espaços em branco, seja pelo trabalho
criativo tipográfico, é uma constante.
O exemplo de Mallarmé é interessante. O poeta tinha um objetivo
quase impossível de atingir, em sua época, ao qual dedicou toda sua vida:
fazer com a linguagem da poesia algo que jamais havia sido feito antes. Ele
estava empenhado na “abertura” do poema, para dar ao leitor a
possibilidade do exercício da imaginação. Sobre isso, chegou a escrever
que: “(os parnasianos) são faltos de mistério; privam a mente do delicioso
prazer de acreditar que está criando” (MALLARMÉ, apud WILSON, 2004:
44). Seu Un coup des dés mostrou que isso era possível, com o tratamento
espacial do signo gráfico e do espaço em branco da página, numa explosão
dos limites até então existentes para a criação poética.
Posteriormente, na antiga União Soviética, poetas como Maiakóvski
e El Lissístzki preocupam-se com o objeto “livro” enquanto suporte para a
criação poética. Em seu artigo “O futuro do livro”, El Lissítzki estabelece a
necessidade de superação do livro, tal como é conhecido e a incorporação
a este dos progressos da técnica, “enquanto ele não for substituído pelas
representações audiovisuais” (cf. RISÉRIO, 1998: 96).
Estritamente relacionada à busca de novos suportes, portanto, a
escrita criativa também foi anunciada em um outro momento do século XX,
dessa vez, pela mente sábia do filósofo alemão Walter Benjamin, que a vê
sendo transportada do livro às ruas dos centros urbanos, antevendo a
emergência de novos sistemas, como formas de escritura mais variáveis.
Benjamim previu, assim, a riqueza da atividade poética que viria a surgir
44
num futuro não muito distante, anunciada por novos suportes e técnicas
para a inscrição. Sua preocupação era também com a explosão de
informação na forma de letras, palavras, textos, algo que se observaria num
crescendo que começa com os luminosos noturnos com de seu tempo e
que hoje atinge o apogeu com a explosão de informações trazida pela
onipresença dos meios digitais e eletrônicos. Escreveu Walter Benjamin,
que:
Antes que um contemporâneo chegue a abrir um livro,caiu sobre seus olhos um tão denso turbilhão de letrascambiantes, coloridas, conflitantes, que as chances de suapenetração na arcaica quietude do livro se tornaram mínimas(1993b: 28).
Foi nesse contexto que o filósofo alemão refletiu sobre o lugar da
criação poética. Ao poeta, dentro daquela sociedade da escrita em ebulição
de formas e suportes, de leituras que se transformavam na sua geometria
de horizontalidades e verticalidades, caberia a exploração dos domínios de
sua ferramenta.
Apesar de tantos exemplos, que incluem a “morte do livro”,
entretanto, pode-se perceber que a preocupação era mais um anúncio de
mudanças nos suportes do que, propriamente, a extinção do impresso. Isso
veio a se confirmar, nos dias de hoje, quando o livro permanece estável na
sua imutabilidade, e ainda um objeto de fruição. Foi Jacques Derrida (1973)
quem observou que a morte do livro era o anúncio, na verdade, do fim da
escrita linear, abrindo caminho para a emergência de outros modelos de
inscrição.
Concomitante com os vários anúncios sobre o fim do livro, que eram
nada mais do que reflexões sobre a característica física da inscrição, como
dissemos acima, surgem estratégias e propostas estéticas que visavam à
expansão dos limites daquele suporte. As décadas de 50 e 60 do século XX
são marcadas por dois acontecimentos paradigmáticos, nesse sentido: a
Poesia Concreta e a Literatura Combinatória.
45
Os poetas concretos, por exemplo, inspirados por Mallarmé, Ezra
Pound. E. e. Cummings e James Joyce, dentre outros, fazem o poema
tomar forma em um novo conceito de composição, onde noções tradicionais
como princípio-meio-fim e verso, tendem a desaparecer e ser superados
por uma “organização poético-gestaltiana, poético-musical, poético-
ideogrâmica da estrutura: Poesia concreta”, como proclamou Augusto de
Campos9. Em Poetamenos (1953), o autor buscava, na espacialização do
signo tipográfico e na cor, os elementos para compor sentidos múltiplos,
num texto “previsto para duas vozes-cores, masculina e feminina”
(CAMPOS et al., 1975: 16).
Dentro do experimentalismo com a linguagem, que também era a
experimentação com os suportes, Raymond Quèneau e seus Cent mille
milliards de poèmes (1961) afiguram-se como peças-chave da literatura
combinatória. Tratava-se de inventar novas possibilidades para o livro, que
incluíam o seu desdobramento em possibilidades potenciais de
concretização de um longo poema, a partir da combinatória de suas partes,
divididas nas páginas em forma de pequenas “tiras de texto”, passíveis de
diversas combinações (Fig. 8).
9 No artigo “Pontos-Periferia-Poesia Concreta” (1956), in: CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI,Décio; CAMPOS, Haroldo de (1975).
46
FIGURA 8 As possibilidades combinatórias no livro de RaymondQuèneau, que se dão pela seleção e combinação das “tiras” detexto
A literatura combinatória, que foi ainda a grande presença do
movimento Oulipo (Ouvroir de Litèrature Potentiel – Oficina de Literatura
Potencial) francês, e o movimento concreto, tanto na poesia como na
música, são duas grandes referências para a criação poética que anuncia a
literatura do ano 2000 e do século XXI, associada aos meios eletrônico-
digitais. A poesia concreta fez a crítica da linearidade discursiva a partir da
explosão da frase, baseando-se no ideograma, ao mesmo tempo em que o
reconstituía na forma de palavras-signo e, ainda, justapondo significados na
associação dos signos que incluíam, além da palavra, a imagem formada
pela posição tipográfica no espaço da página. A literatura combinatória
apropria-se da página impressa, subvertendo sua característica mais
fundamental: sua integridade, uma vez que transforma sua própria
47
materialidade, a página, em fragmentos que servirão para as quase infinitas
combinatórias.
No campo da prosa, o escritor Julio Cortázar ofereceu ao leitor
possibilidades de leitura multiseqüenciais, em O jogo da Amarelinha
(Rayuela, escrito em 1963) e sua continuação em 62: Modelo para armar
(escrito em 1968). Se, no primeiro, coloca ao leitor três possibilidades
diferentes de fazer as seqüências de leitura – a primeira, conforme o
estabelecido na ordem das páginas, a segunda, uma seqüência oferecida
pelo próprio autor, e a terceira, que se expande potencialmente em muitas
combinações, a ordem que o próprio leitor preferir –, no segundo livro ele
faz uma espécie de “continuação” do capítulo 62 de O jogo da amarelinha.
O objetivo do autor, como ele mesmo diz, é realizar as intenções contidas
naquele capítulo. A respeito da possibilidade latente de interferência na
ordem narrativa, Cortázar deixa claro que quem deverá armar este modelo
será o leitor, e isso se dará tanto no nível da forma, quanto do sentido:
... a armação a que se alude é de outra natureza, sensível já nonível da escrita, onde recorrências e deslocamentos procurameliminar qualquer fixidez causal, mas sobretudo no nível dosentido, onde a abertura para um ajustamento é mais insistente eimperiosa. A opção do leitor, sua montagem pessoal doselementos da narrativa serão, em cada caso, o livro que resolveuler (2000: 5).
O autor, assim, separa uma parte da obra anterior, para dar origem
a outra obra, sempre lembrando que o leitor fará a combinatória desta
narrativa, e, segundo o desejo do autor, escapando da sua fixidez causal.
2.1 Estruturas circulares
Há no ambiente digital uma espécie de hibridação: as formas
poéticas abarcam poesia e prosa, assim como abrangem um universo de
representações que vão desde a palavra até o som, passando por toda
48
espécie de imagem, em movimento ou não. Além disso, a estrutura destas
narrativas apresenta-se sob formas inovadoras. Neste sentido, a não-
linearidade aparece como um de seus grandes diferenciais.
Contrapondo-se à idéia de seqüências lógicas estabelecidas pelo princípio
aristotélico da trama, com começo, meio e fim, aparece a ausência total
destas instâncias. Ao invés de seqüência, repetições; ao invés de
temporalidade, utilização do espaço virtual da tela do computador; ao invés
de linha, círculo.
O poeta Octavio Paz (1996) estabeleceu uma diferença entre poesia
e prosa que inspira nossas reflexões acerca destas criações. Ele observou
que a figura geométrica que simboliza a prosa é uma linha: "reta, sinuosa,
espiralada, ziguezagueante, mas sempre para diante e com uma meta
precisa" (1996: 12). Já o poema, continua o poeta, apresenta-se como um
círculo, ou esfera, algo que se fecha sobre si mesmo. Ainda que este autor
observe um paradoxo entre as duas formas, nas narrativas que têm lugar
nos meios digitais, vemos uma hibridação entre elas. À idéia de linha reta,
com uma meta definida, que o autor confere à prosa, contrapõe-se a
narrativa em hipertexto e hipermídia, por exemplo: não-linear ou multi-
linear, com vários objetivos ao mesmo tempo, aberta a várias
possibilidades, e que retoma o sentido de espaço-tempo, anteriormente
discutida pelo poeta Haroldo de Campos (1986), que também discorria
sobre a característica híbrida do Finnegans Wake, de James Joyce,
definindo-o como prosapoesia (1986: 23).
É precisamente quando Octavio Paz acentua a característica de
poesia em obras como Alice no País das Maravilhas, de Lewis Caroll, ou O
Jardim dos Caminhos que se Bifurcam, de Jorge Luis Borges, que podemos
compreender mais claramente a relação de mistura destas formas e
trazê-las para o contexto das narrativas digitais. Paz observa que, nas
obras citadas, a prosa se nega a si mesma: “as frases não se sucedem
obedecendo a uma ordem conceitual ou narrativa, mas são presididas
49
pelas leis da imagem e do ritmo. Há um fluxo e refluxo de imagens, acentos
e pausas, sinal inequívoco de poesia" (1996: 15).
Discussões como esta são agora trazidas à luz do debate sobre as
narrativas em hipertexto, em autores como George Landow, J. David Bolter
ou Janet Murray, numa tentativa de retomar criticamente tais obras, para
com isso avaliar a importância das rupturas trazidas pelo ambiente de
escrita digital. Quando Paz afirma que Alice... e O jardim... têm
características do poema, porque concebidos à luz das imagens e do ritmo,
isto nada mais é do que resgatar, nestas obras, uma sua qualidade que não
era reconhecida, pelo menos, não de imediato. Acentuando a forma do
poema na prosa, o poeta anuncia uma mescla entre estes dois conceitos.
Tal mistura aparece claramente nas escrituras digitais, cuja hibridação de
formas parece ser um elemento fundador.
2.2 O círculo e a criação
Voltando mais precisamente ao círculo, vemos que esta imagem
não parece estar fora de contexto quando o assunto é narrativa literária.
Mais especificamente, ao círculo podem-se remeter, ainda, algumas das
atuais formas narrativas contemporâneas, muitas delas, criações que se
dão no computador.
À luz desta forma geométrica, pode-se associar repetições, além de
algo mais distintivo das atuais narrativas: o deslocamento e redefinição das
instâncias de começo, meio e final. Na figura geométrica do círculo, não há
começo nem final. Estas instâncias inscrevem-se em todos os pontos
formadores da linha do círculo, podendo ser designados como tal
aleatoriamente, sem qualquer ordenação prévia.
50
Nas narrativas chamadas "não-lineares", começos e finais podem
existir, mas não se encontram claramente definidos, ou definidos a priori.
Em Afternoon, a story, o escritor Michael Joyce avisa aos navegadores que
os começos e finais não estão dados de antemão naquela narrativa. O
escritor chega a esclarecer que o término da história pode estar
simplesmente no momento em que o leitor se cansa e resolve "sair" ou
"abandonar" aquela leitura. Se o leitor decidir por terminar a sua leitura em
um determinado ponto, segundo Joyce, aí estaria o "final" da história. Estas
instâncias, então, perdem sua natureza definidora especialmente em
relação ao tempo da narrativa para fazer surgir uma outra estrutura,
circular, em que os acontecimentos podem repetir-se, o leitor pode passar
várias vezes por um determinado espaço de escrita, e assim "revisitar"
partes da história. Dá-se, assim, uma estrutura cujo espaço narrativo supõe
mais do que uma seqüência, uma relação entre suas partes.
O poeta Augusto de Campos nos remete a esta rede de relações
com a idéia do ideograma, e também ao círculo, quando reflete sobre a
presença fundadora da prosa de James Joyce e do poema Un coup de dés,
de Mallarmé, para a gênese da Poesia Concreta. Nestas estruturas, diz o
poeta, "o contraponto é moto-perpétuo, o ideograma é obtido através de
superposições de palavras, verdadeiras 'montagens' léxicas. A infra-
estrutura geral é um desenho circular, onde "cada parte é começo, meio e
fim”10.
Pensar na forma do poema como um espaço de associações foi um
dos principais fundamentos da poesia concreta. Uma das chaves mais
importantes para se entender esta valorização da estrutura visual do
poema, sem dúvida, parece estar no ideograma chinês, inspirador dos
poetas concretos, tanto no sentido de sintaxe espacial ou visual, até o de
método de compor baseado na justaposição direta, inspirado pelos estudos
10 Conforme a leitura de Campos (1986) do artigo “A skeleton key to Finnegans Wake”, de JosephCampbell e Henry Morton Robinson. Faber & faber, London, 1947.
51
de Fenollosa e de Pound. Em tais associações, as seqüências lógicas são
abolidas, em nome de "uma organização poético-gestaltiana, poético-
musical, poético-ideogrâmica da estrutura" (CAMPOS, 1975: 25).
A comprovar a existência de uma estrutura circular, ainda, estão as
próprias palavras textuais de algumas obras: em Finnegans Wake, lembra
Augusto de Campos, a frase inicial é a continuação da última frase, e várias
outras ligam-se a sentenças anteriores ou posteriores neste sentido: “...
Joyce começa seu livro no meio de uma frase e o termina no meio de outra
que pode reportar à primeira, o conjunto formando, assim, um círculo”
CAMPOS; CAMPOS, 1986: 23).
No poema fundador de Mallarmé, Un coup de dés, objeto de
comparação com o Finnegans Wake, no estudo de Augusto de Campos
(1986), o poema e o romance, "chegaram a uma concepção de obra
'circular', onde o princípio, o meio e o fim adquirem relatividade perene"
(CAMPOS; CAMPOS, 1986: 121). Os autores continuam:
E se no caso de Mallarmé a “subdivisão prismática daIdéia”, a técnica de fazer reverberar em cada idéia principalconstelações de idéias subsidiárias, leva a uma espécie de “motoperpétuo”, sem limites, no caso de Joyce a obra inteira pode estarcontida em cada uma de suas partes, de tal sorte que é possíveliniciar a leitura de qualquer ponto (CAMPOS; CAMPOS, 1986:121).
Esta estrutura "circular", no que concerne ao Finnegans Wake, já
havia sido apontada também por Haroldo de Campos. Em seu artigo “A
Obra de Arte Aberta” (1975), o autor sustentava que "o Finnegans retinha a
propriedade do círculo, da eqüidistância de todos os pontos em relação ao
centro: a obra é porosa à leitura, por qualquer das partes através das quais
se procure assediá-la..." (1975: 31).
Estes começos e finais que se imbricam num todo também estão
presentes em outras formas narrativas: aqueles que assistiram a Antes da
52
Chuva11, por exemplo, não poderão esquecer da circularidade daquela
narrativa episódica. Nesta bela história, o primeiro capítulo parece tomar
um outro significado ao término do último fotograma, no último capítulo,
portanto, quando percebe-se sua estreita ligação – ademais, marcada pela
existência de referências temporais – com o capítulo final. É neste
surpreendente final que fecha-se o círculo; é aí que o espectador parece
voltar ao começo da história, interconectando-se nesta linha circular e ao
mesmo tempo eliminando qualquer seqüência temporal até então
experimentada. O sentido, aí sim, parece tomar forma neste "fechamento"
do círculo, que não é mais do que a abertura para a ausência de seqüência
lógica.
Se Joyce, Pound e Mallarmé foram inspiradores para os
concretistas, hoje a Poesia Concreta é uma referência para se pensar na
criação poética que se dá nos ambientes digitais. Ainda mais, levando-se
em conta as características deste suporte, especialmente a possibilidade de
disponibilização criativa de forma não-linear. Depreende-se disto, e ainda
utilizando as referências da teoria da poesia concreta, que a não-
linearidade, enfim, possa ser pensada em termos de relações entre blocos
de informação, ou fragmentos. Levando em consideração que a estrutura
não-linear do meio digital é onipresente, devido mesmo à sua natureza,
talvez seja interessante refletir sobre o que ela representa para a criação
poética em computador.
11 Filme do diretor Milcho Manchevski, Macedônia, 1994.
53
2.3 Tela do computador, espaço de escrita
Em primeiro lugar, pensemos neste espaço de escrita que é a tela, e
nas possibilidades de disponibilização do texto poético. Estamos nos
referindo a um espaço capaz de abrigar a palavra em diversas formas, que
podem incluir inclusive seu movimento, sua animação. Dentre esta
multiplicidade de manejos da palavra, ainda encontra-se sua própria
combinação com os espaços em branco, ou com outros espaços
(acionáveis com o clique do mouse, muitas vezes, ou espaços que
simplesmente surgem do nada, vindos de alguma reserva virtual de
informação digitalizada) dentro deste espaço maior, que é a tela.
A não-linearidade parece implicar necessariamente uma abolição do
sentido de tempo, pelo menos, daquela temporalidade explícita existente na
seqüência lógica aristotélica das narrativas com começo-meio-fim. No
espaço da hipermídia, a temporalidade assume um outro estatuto. O tempo
da técnica, como disse Octavio Paz (1996), é a abolição do tempo
cronométrico moderno. No que concerne à Poesia Concreta, por exemplo,
a utilização das categorias espaço e tempo veio introduzir uma outra
relação com a criação poética, uma estrutura espaço-temporal, uma
“tensão de palavras-coisas no espaço-tempo” (PIGNATARI, 1975: 41).
A referência à temporalidade, quando se fala em não-linearidade, é,
portanto, fundamental. Se tomarmos as criações poéticas ao longo da
história da literatura, veremos que não é diferente: a ruptura com as formas
lineares de disponibilização do poema vem marcada pela organização
espaço-temporal e valorização da forma.
54
2.4 Atualização e não-linearidade
Começos, meios e finais podem estar muito mais relacionados com
a narrativa em prosa do que, especialmente, com a poesia. Mas, quando se
pensa em criação poética no computador, duas questões aparecem: a
primeira, refere-se à hibridação entre estas duas formas, como já foi citado
anteriormente. Em segundo lugar, a idéia de inter-relação entre as partes.
Os elementos (textuais, imagéticos, sonoros, etc.) são dados e
disponibilizados de forma simultânea e atualizados pela ação do leitor. As
possibilidades do hipertexto e da hipermídia, então, passam a fazer
diferença para a criação poética. Arlindo Machado atenta para o que define
como “arquitetura não-linear” da hipermídia. Ele diz que:
A idéia básica da hipermídia é aproveitar a arquiteturanão-linear das memórias de computador para viabilizar “obras”tridimensionais, dotadas de uma estrutura dinâmica que as tornemanipuláveis interativamente (1996: 63).
O dado fundamental a respeito da "arquitetura não-linear" talvez
resida no fato de que, não importa a forma – prosa ou poesia –, a
possibilidade de atualização de suas partes e, assim, de sua inter-relação,
é um dos diferenciais deste tipo de criação.
Ao refletir sobre o hibridismo das formas e a estrutura circular,
podemos vislumbrar pelo menos três pontos importantes para a
compreensão da criação poética no computador: o primeiro diz respeito a
uma rede de relações entre as partes, sendo estas, letras, espaços, frases,
conjuntos de palavras e mesmo conteúdos. O segundo refere-se à
existência da não-linearidade como princípio gerativo da criação, pois
aquela inscreve-se dentro das próprias características físicas, ou
“materiais”, do meio digital, ou seja, elementos com que o poeta pode
contar quando cria com o computador. Colocada ainda no âmbito das
possibilidades do poema, a não-linearidade pode ser definidora de uma
55
estrutura espacial em que são possíveis as relações entre as partes, ou
seja, as diversas associações potencializadas pela disposição das partes o
poema no espaço virtual do computador. Em terceiro lugar, as realocações
das instâncias de começos, meios e finais, que embaralham-se, tornam-se
indefinidas e assim sugerem uma estrutura em círculo.
2.5 Meio, mensagem, técnica
As poéticas digitais são uma decorrência natural das mutações dos
modos de inscrição ao longo da história, originadas em função do
desenvolvimento das escritas criativas que, ao mesmo tempo, anunciam e
são precursoras de alguns padrões inovadores trazidos pelo hipertexto e
pela hipermídia. Com o surgimento dos meios digitais, as escritas criativas
evoluem para o suporte tecnológico, ao qual se associam de forma singular:
novas técnicas permitem novas conformações para a escrita.
Na verdade, o discurso poético está tanto mais identificado com o
discurso criativo quanto maiores sejam as utilizações que faz do meio,
como pode-se perceber da afirmação de Melo e Castro (1976):
... verificamos que quando o discurso se centra tonicamentesobre o meio da comunicação [...], ou seja, sobre a próprialinguagem, então é possível um alto teor de criatividade, que semanifesta na investigação, na dúvida, na crítica, sobre as própriaspossibilidades para se estruturar e realizar a comunicação. Umaprofunda preocupação e um por em causa os seus própriosrecursos comunicativos é característica definitiva do discursopoético (1976: 46).
É justamente pela presença marcante da relação da criação poética
com seu suporte, o que se vê no percurso que a criação vai executando ao
longo dos séculos XIX e XX, que se pode caracterizar as poéticas digitais,
ou seja, a estreita relação criativa que se estabelece com suas próprias
características tecnológicas. No século XIX, isso também decorre das
56
mudanças trazidas pela Revolução Industrial. A influência (e confluência)
dos códigos gerados pelas técnicas de reprodução da Idade Industrial,
particularmente o tipográfico, é percebida claramente na literatura
(PIGNATARI, 1987: 73). A conexão criativa dos escritores com as técnicas,
não só da escrita, mas aquelas que preenchiam o cenário industrial e
cultural de suas épocas, é acentuada por uma estreita vinculação das obras
com as afinidades de seus autores aos aparatos técnicos de suas épocas:
Não se pode ir muito fundo no estudo da escrituramachadiana, se não se compreendem as suas vinculações com atipografia e o jornalismo; Raul Pompéia era escritor e cartunista-desenhista; Bandeira e Mário de Andrade conheciam o códigomusical; Augusto dos Anjos é uma poesia-trauma que nasce dasciências naturais e do Positivismo; sem telégrafo, cinema e cubo-Dadá, o melhor da obra de Oswald não vem à tona dodesvendamento; sem arquitetura e pintura, a poesia de JoãoCabral não abre mão de suas sutiliezas (PIGNATARI, 1987: 98).
Não somente na literatura, mas transformações e evoluções dos
aparatos técnicos marcaram avanços também nas artes visuais. A invenção
da fotografia provocou um grande impacto na pintura clássica, que passou
a interrogar-se acerca da reprodução da realidade, abrindo caminho para a
pintura abstrata: “Libertada pela fotografia, da cansativa faina da
representação fiel – diz Susan Sontag –, a pintura pôde partir no encalço de
uma tarefa mais elevada: a abstração” (2004: 160).
Para autores como Glazier (2003), as características técnicas da
escrita, que influem decisivamente na sua poética (que ele define como
“materialidade”), já vinham sendo anunciadas há muito, através de vários
tipos de intervenções poéticas e literárias. A poesia experimental, a poesia
visual, a poesia sonora, a poesia concreta, por exemplo, são momentos de
invenção nos quais a materialidade da escrita era parte do processo criativo
e de seu resultado:
As condições que caracterizaram a feitura de poesiainovadora no século XX têm uma poderosa relevância nestasobras do século XXI. Isto é, poetas estão fazendo poesia com omesmo foco no método, na dinâmica visual e na materialidade; o
57
que foi expandido, foram os materiais com os quais se podetrabalhar. Tais materiais não somente fazem possível múltiplasformas de escrita, como também, no meio digital, contribuem paraa re-definição da própria escrita (GLAZIER, 2003: 1).
Para este autor, é no reconhecimento destas condições inovadoras
na forma de fazer poesia, e da apreciação das qualidades materiais dos
novos meios, que nós definimos como características técnicas, que será
possível identificar a nova poesia do século XXI. Por isso, o esforço em
conhecer mais profundamente os programas de computador faz parte desta
tentativa de identificar a poesia nos meios digitais. Na verdade, o que o
autor denomina materialidade do texto no meio digital tem relação com o
código de programação deste texto. Assim, a “leitura” não será somente
aquela do texto em si, mas do seu código intrínseco (GLAZIER, 2003).
Se o suporte material para a escrita pode induzir ao tipo de
experimentação artística que se opera – e isso é visto em vários autores,
como Laurence Sterne, que escreve seu A Vida e as Opiniões do
cavalheiro Tristram Shandy como se estivesse refletindo sobre a própria
matéria da página impressa e, em especial, da tipografia. Nesta obra de
Sterne, há páginas completamente negras, onde o que seria a impressão
de vários caracteres, palavras ou frases se torna um todo, como se o
conjunto de caracteres que deveriam ocupar a página com um determinado
sentido, para continuar com a história, por exemplo, se fundisse em um
objeto único, formado pela fusão dos pretos sobre o branco da página (Fig.
9). Além disso, o autor enfeita seu texto com caracteres especiais, como se
quisesse, apenas, criar uma variante da escritura através da tipografia.
58
FIGURA 9 As páginas inovadoras de Sterne
Em outros momentos, a própria noção de utilização dos sinais
tipográficos é subvertida: onde haveria que escrever frases, com um
sentido usual, para dar significado à história, o autor utiliza sinais como o
ponto, o travessão, o traço, repetitivamente, numa alternativa visual que
invoca muito mais a imagem desses caracteres do que, propriamente, a
palavra e as frases. É dessa forma que Sterne utiliza a tipografia e os
espaços em branco para refletir sobre seu próprio processo criativo, a partir
do material utilizado, ou seja, a escrita no impresso.
Exibindo parte de sua estrutura de navegação, que é também
leitura, como os já citados lista de links e mapas de visualização, que estão
além do texto narrativo verbal, estas obras impõem ao conteúdo da ficção o
campo semântico do fazer, da elaboração da obra. Junto com isso, a
discussão sobre a escrita em hipertexto: trata-se de uma tecnologia de
59
inscrição feita para um leitor que lê muito além das linhas; ele captura a
estrutura, lê nas entranhas do texto, e constrói, junto com a leitura, a escrita
de sua materialidade.
Glazier (2003) sustenta que a materialidade é importante porque a
escrita não é um evento isolado do seu meio, mas é, em vários graus, um
engajamento com este meio.
2.6 Intermídia, fusão conceitual
Uma vez imbricada com seu suporte a ponto de transformar-se em
um novo meio, diferenciado pelas características técnicas que lhe conferem
outros significados, como a palavra em movimento a dançar pelas telas de
computador, possibilitada pela codificação hipermidiática do software; ou o
texto que se substitui a si mesmo, em telas cujas palavras se acendem e se
apagam, a escrita caracterizada pelo hipertexto traz em si a característica
da fusão conceitual, em outras palavras, intermídia.
A idéia de intermídia remonta a Dick Higgins (1984), que traçou uma
análise das criações de vanguarda das décadas de 50 e 60, a partir da
utilização e conjugação de vários meios de representação na criação de
obras de arte, no que ele definiu como fusão conceitual. Em 1966, o poeta
Dick Higgins concebeu o termo intermedia, uma categoria formal para
definir uma inter-relação entre diferentes formas de representação que se
fundem em um novo meio.
Quando dois ou mais meios discretos se fundemconceitualmente, eles se tornam intermídia. Diferem de meiosmistos, sendo inseparáveis na essência da obra de arte (1984:138).
60
Higgins nomeou um fenômeno nas artes e definiu um quadro de
referência para que tais manifestações artísticas fossem compreendidas e
categorizadas.
Na década de 90, alguns autores retomaram o conceito para a
criação poética que começava a se dar com a utilização dos meios
eletrônicos desde os anos 70, como painéis eletrônicos, vídeo, laser e o
próprio computador, definindo-a como poesia intermídia (MENEZES, 1992;
CAMPOS, 1999). Fora estas referências, por um longo tempo não se
encontrou maiores alusões ao termo intermídia. Em 2002, apresentamos
um artigo (“Intermidia, ou, Para entender as poéticas digitais”)12, no qual
retomávamos o termo, para incluí-lo como característica importante e
definidora das criações em meios digitais. Entendíamos, então, e ainda
pensamos assim, que as criações poéticas nos meios digitais são
classificadas superficialmente, em geral, com base apenas no seu meio,
sem levar em consideração o nível mais profundo de seu significado, que
inclui a fusão conceitual de meios. O conceito de intermídia serve para
atentarmos mais especificamente para o fato desta fusão conceitual.
Em seu livro Digital Poetics (2003), Loss Pequeño Glazier retomou o
termo, num capítulo em que examina a configuração dos novos meios
digitais a partir do conceito de intermídia. O autor sustenta que a World
Wide Web oferece possibilidades diretas para misturar meios ou escritas
intermediais, lembrando que investigações quanto à escrita experimental do
século XX incluíram o conceito de intermídia, e que não é surpresa, hoje,
que tais investigações também sejam relevantes a uma teoria da WWW
(2003: 78).
12 Artigo apresentado no Núcleo de Pesquisa Comunicação Audiovisual, do XXV CongressoBrasileiro de Ciências da Comunicação – Intercom).
61
As experimentações no sentido de levar o poema do impresso para
novos suportes e que convergiram, quase todas, para o computador, a
partir da década de 8013, mostraram aos poetas que o meio digital, enfim,
seria a resposta a tendências que já vinham se notando na área criativa. A
palavra queria ir além do papel, fundir-se com a imagem, o som, e criar
movimento. Na opinião de Machado (2000), o desafio central da poesia
contemporânea é justamente colocar em operação a ambigüidade básica
da palavra escrita, que é o fato de ter uma função icônica e simbólica ao
mesmo tempo.
Como “intermídia”, as criações nos meios digitais remodelam meios
anteriores ao surgimento do computador, no que Bolter e Grusin definem
como remediation (1999), um jogo entre o antigo e o novo, uma fusão de
técnicas e significados. Nas páginas que se seguem, utilizamos esta teoria
como um apoio para entender o processo criativo nos meios digitais,
relacionando-a com a idéia de intermídia.
O que chamou a atenção de Higgins para a intermídia foi o advento
do happening, no final dos anos 50 e começo dos 60. O happening tem
origem na idéia de “colagem”: em meados da década de 50, pintores nos
Estados Unidos e na Alemanha começaram a se voltar para trabalhos em
que criavam adicionando ou removendo, substituindo ou alterando
componentes da obra visual. Começaram incluindo objetos em suas obras,
em seguida realizaram colagens que envolviam o espectador, e
classificaram-nas como “ambientes”. Em 1958, inseriram pessoas como
parte de suas colagens, o que foi definido como happening. O happening,
para Higgins, era um intermeio, pois era um terreno desconhecido que
ficava entre a música, a colagem e o teatro (1984: 22).
13 Experiências na criação artística em computador, entretanto, começam a partir da década de60, quando Max Bense, na Universidade de Stuttgart, desenvolve trabalhos gráficos emcomputador (BENSE, 1971) e criação de modelos textuais neste meio (ARAÚJO, 2000).
62
FIGURA 10 Ilustração de Higgins sobre intermídia (HIGGINS, 1984)
O autor reconheceu intermídia no teatro e nas artes visuais das
décadas de 50 e 60, e viu paralelos do happening na música, por exemplo,
no trabalho de John Cage, que explorava a fusão conceitual entre música e
filosofia, e, ainda, nos poemas construtivistas de Emmett Williams
(1984:23). Os então recentes experimentos em poesia sonora e poesia
concreta também logo foram categorizados como obras intermídia. Para
Higgins, tais exemplos de criação eram intermediais, no sentido que
ficavam entre a literatura e as artes visuais. A obra, então, era colocada em
ambas as categorias: arte visual e literatura, exatamente pela fusão
63
operada no nível de sua significação. Estando em duas categorias, na
verdade, abria-se para uma terceira: a obra intermídia.
O embasamento da intermídia está na fusão conceitual de meios
distintos entre si que, conjugados no nível do seu significado, formam um
terceiro meio, este, diferente dos anteriores e, por isso mesmo, apto a uma
nova classificação e denominação. Tal “fusão conceitual” é mais do que
uma mistura. É uma inter-relação orgânica entre diferentes formas artísticas
e seus significados estéticos, reunidos em um mesmo modo de
representação. O termo, porém, não é datado a um momento histórico,
como seria fácil de se supor. Pode-se dizer, segundo o autor, que “existe a
obra intermídia; esta é uma possibilidade sempre que há o desejo de fundir
dois ou mais meios existentes que formem um terceiro” (HIGGINS, 1984:
25). Intermídia é uma possibilidade, sempre existiu e sempre existirá.
Na época em que Higgins desenvolveu sua teoria, computadores
existiam apenas como mainframes que ocupavam salas inteiras nas
universidades e organismos de pesquisa governamentais. Iniciavam os
primeiros passos para seu uso como rede de comunicação e informação.
Na Alemanha, em 1959, apareciam os primeiros programas de computador
geradores de texto (BOOTZ, 1996). Em meados da década de 50, o
hipertexto era apenas uma idéia14, que só seria nomeada na década de 60
por Theodor Nelson (1987).
Hoje, o volume da criação poética nos meios digitais parece trazer
de volta o apelo por sua classificação: é poesia o que vemos desenrolar-se
na tela do computador, onde as palavras transformam-se em imagem e os
resultados vão além das noções tradicionais de “poema” ou “verso”? Esta é
apenas uma das questões que aparecem no universo dos meios digitais e
14 No seu artigo “As we may think” (1945), o cientista americano Vannevar Bush propôs umsistema de arquivamento e disponibilização da informação, o Memex, que funcionaria em rede deassociações, diferente da forma hierárquica até então dominante. Este é considerado o embriãoda idéia de hipertexto.
64
das novas formas artísticas que ele encarna. Intermídia vem de encontro a
designar este tipo de obra.
2.7 Antecedentes e referências
A arte chinesa, nos séculos VIII, IX, X e XI, era calcada na idéia das
“três perfeições”, que reunia a caligrafia, a pintura e a poesia. O mais
criativo e o melhor artista deveria trafegar harmonicamente por estas três
categorias. Este exemplo não representa propriamente a “fusão” conceitual
que se opera hoje nos meios digitais, já que basta olhar a obra para
perceber claramente o que, nela, é poesia, o que é caligrafia e o que é
pintura. Entretanto, trata-se de uma referência importante no que concerne
à harmonização entre formas de representação em um único suporte. Não
se trata da palavra escrita, mas da palavra pintada (RISÉRIO, 1998: 59). A
arte chinesa compreendia a cultura de forma holística e para isso buscava
harmonizar o culto à caligrafia, à pintura e à poesia. A idéia era que esses
eram meios intercambiáveis de expressão e que o artista podia facilmente
transpor seu impulso criativo de uma forma a outra.
O próprio ideograma chinês, que representa um conceito através da
junção de duas ou mais imagens, poderia traduzir a idéia de fusão
conceitual, no caso, ligada essencialmente à letra, à palavra e à escrita. O
ideograma é uma das mais antigas formas de representação e comprova
que a busca pela expressão teve seu ponto alto na preocupação com a
forma imagética. Ernest Fenollosa foi o primeiro, no ocidente, talvez, a
reconhecer a importância da maneira como os chineses viam o mundo e
nele se expressavam para a criação poética de sua época. O cineasta
russo Serguei Eisenstein foi também importante neste sentido15, ao
15 Artigos de Fenollosa e Eisenstein, neste sentido, foram reunidos por Haroldo de Campos nolivro Ideograma. Lógica, Poesia, Linguagem, publicado pela EDUSP, São Paulo, em 2000.
65
relacionar o princípio da montagem cinematográfica à escrita figurativa
japonesa e chinesa. Conscientes desta importância, os poetas concretos
retomaram a idéia de ideograma na fundamentação de seu movimento. Da
mesma forma que Fenollosa viria a sugerir, Eisenstein também aponta o
princípio ideográfico como fundamental para a criação:
A questão é que a combinação de dois hieróglifos dasérie mais simples não deve ser considerada como uma somadeles e sim como seu produto, isto é, como um valor de outradimensão, de outro grau; cada um deles, separadamente,corresponde a um objeto, a um fato, mas sua combinaçãocorresponde a um conceito (2000: 151).
Se Eisenstein inspirou-se no ideograma para elaborar sua teoria da
montagem cinematográfica, Fenollosa investigava em que sentido os
versos escritos sob a forma de hieróglifos visíveis – os ideogramas –
podiam ser tidos por verdadeira poesia. Este último estava investigando a
propriedade imagética da poesia na escrita figurativa chinesa, ou seja, a
imagem. Para resolver esta questão, buscou nas raízes do ideograma o
conceito fundamental. Fenollosa concluiu que um grande número das
raízes ideográficas carrega consigo uma idéia verbal de ação. O verbo
concreto, como o autor assim define, daria forma visível à ação. Esta
qualidade concreta do verbo, segundo ele, torna-se muito mais
impressionante quando passamos das imagens simples e ordinárias para
as compostas. No processo de composição ideográfico, duas coisas que se
somam não produzem uma terceira, mas sugerem uma relação
fundamental entre ambas (2000: 116).
As explorações de Fenollosa e Eisenstein em torno do ideograma e
da escrita figurativa, se transpostos para a teoria intermídia, são
referenciais e mostram o papel fundamental desta forma de escrita, da
imagem e das suas relações conceituais na criação poética
contemporânea.
66
2.8 Poesia visual, pattern poetry
Tão antigas como na milenar cultura chinesa, também na cultura
ocidental encontram-se investigações sobre as inter-relações conceituais
que servem de referência para a criação poética contemporânea. No campo
da teoria, o estudo de Giordano Bruno De imaginum, signorum et idearum
compositione, datado de 1591, dava conta de aprofundar-se nas
proximidades entre as artes, propondo sua unidade e antecipando a idéia
de sinestesia e de intermídia. Só para se ter uma idéia do pensamento de
Bruno, vejamos o que ele colocava sobre as funções dos artistas e da arte:
“... em certa medida, filósofos são pintores; poetas são pintores e filósofos;
pintores são filósofos e poetas” (BRUNO, apud HIGGINS, 1984: 31).
No campo da criação, a poesia visual é antecedente de muitas
obras criativas de hoje, assim como a poesia concreta e seus poemas
verbivocovisuais, além de todos os experimentalismos poéticos dos anos
60 e 70 e as pós-vanguardas artísticas do começo do século XX. Antes de
tudo isso, porém, houve a pattern poetry, uma espécie de poesia visual dos
primórdios, uma forma particular de literatura, segundo Higgins (1987), na
qual texto e forma visual interagem. O autor considera pattern poetry
aquelas obras surgidas até o ano 1900, quando esta entra em uma espécie
de obscuridade e inicia-se uma segunda fase da poesia visual. Higgins
(1987) descreveu mais de três mil anos de poesia visual encontrada em
várias culturas, tanto no lado ocidental como oriental, ligadas à Igreja, à
cabala, em poemas, inscrições, etc.
A primeira forma de pattern poetry, segundo Higgins, data de 1.700
a.C. Trata-se do Disco de Festus, encontrado em Creta, mas de origem
desconhecida. É um disco de argila cinza, com inscrições em ambos os
lados, mais tarde decifradas como uma mensagem entre lavradores. Para
67
Melo e Castro16, esta é uma das matrizes da poesia visual. Outros
exemplos deste tipo de poesia datam dos anos 300 a.C. São constituídos
pelo conjunto de trabalhos de Simmias de Rhodes, compostos por poemas
em três formatos: o primeiro, em forma de eixo, o segundo, em forma de
asas, e o terceiro e talvez o mais conhecido antecedente da poesia visual,
em forma de ovo, o Ovo de Simmias.
2.9 Poesia total
No século XX, que inicia com a criação limítrofe de Mallarmé, Un
coup des dés, e as vanguardas literárias, a história da criação poética é
feita de uma procura por novos códigos e formas de expressão. No
decorrer do século, a idéia de fundir não só códigos mas também meios de
representação em direção a uma poesia total é um momento da criação
que sucede as vanguardas poéticas. Aparece como a poesia experimental
das décadas de 60 e 70. Na análise de Philadelfo Menezes, a busca de
uma poesia total surgiu como tentativa simultaneísta integradora dos
sentidos que pudesse revitalizar o experimentalismo pós-moderno
(MENEZES, 1992).
Os meios técnicos de expressão – e por conseguinte, de criação –
neste campo surgem a partir de meados da década de 50 e isso marca
uma nova fase da criação poética, imediatamente sucessora das
vanguardas, mas obviamente influenciada por todos os movimentos
daquelas. Resultado disso são várias formas de poesia experimental, que
têm como características, entre outras, a postura mais ativa do poeta, a
utilização de voz, do sopro e de outras atividades biológicas do autor ou do
performer, entre outros (MELO E CASTRO, 1993). A poesia sonora é um
dos resultados desse momento, uma forma de criação poética que se
16 No curso “Que olhos vêem que mundo? Infopoesia”. Itaucultural, São Paulo, agosto de 2000.
68
utiliza, então, dos meios técnicos eletromagnéticos (de gravação da voz),
faz um cruzamento com as poesias visuais e performáticas num exercício
intermidiático (MENEZES, 1992). Também conseqüência disso é a poesia
visual, que busca a fusão conceitual da imagem com a palavra, amparada
por meios de criação como o vídeo e o computador.
A classificação proposta por Melo e Castro (1993), neste sentido, é
útil para um breve recorrido pelas formas expressivas pelas quais passou a
criação poética:
1. Poesia visual – Caligramas de Apollinaire; experiênciasgráficas do futurismo; concretismo (brasileiro e internacional).Visopoemas (Lisboa);
2. Poesia auditiva – Experiências com a voz humana tratada ounão com o magnetofone; poesia rítmica ou poesia melódicacom palavras, sílabas ou sons puros. Algumas experiênciasdadaístas e letristas. Composição direta na trilha sonora.
3. Poesia tátil – O poema é um objeto. Todas as formas decolaboração com artistas plásticos. Ready-mades. Objetopoema e poema objeto. Todos os processos de construçãoque dão ao poema um corpo material.
4. Poesia respiratória – Experiência de Pierre Garnier com osopro humano.
5. Poesia lingüística – e.e. cummings, James Joyce, Ezra Pounde muitos outros. Tentativas de criação de palavras e línguasnovas. Poesia poliglota.
6. Poesia conceitual e matemática – Cibernética. Métodospermutacionais e combinatórios. Estrutura numérica da obrade arte. Experiência de Raymond Queneau.
7. Poesia sinestésica – desenvolvimento das sinestesias.Produtos híbridos dos tipos de poesia já referidos.
8. Poesia espacial – Mallarmé: Um coup de dés. De um modogeral, o sentimento espacial manifesta-se como denominadorcomum de todas as formas atuais do experimentalismopoético (1993: 35-36).
69
2.10 Remediation
A remodelação de meios anteriores ao surgimento do computador
nos ambientes digitais define a lógica da remediation, de acordo com Bolter
e Grusin (1999)17, que opera em dois sentidos: de tornar o usuário
consciente da presença do meio (o que os autores definem como
hypermediacy) ou tornar o meio transparente ao usuário, o que é definido
como immediacy, ou seja, o usuário não tem consciência da presença do
meio. Esta teoria serve para tornar mais explícita a fusão conceitual de
meios que se opera nos ambientes digitais. Remediation, segundo os
autores, é a chave para entender como um meio remodela seus
predecessores e outros meios contemporâneos.
Enquanto Higgins, na teoria intermídia, fala da fusão de meios,
Bolter e Grusin atestam que a criação (em hipermídia) é o ato de reajustar
formas:
Na colagem e na fotomontagem, assim como emhipermídia, criar é reajustar formas existentes. Em fotomontagemas formas pré-existentes são as fotografias; no hipertexto literáriosão os parágrafos da prosa; e na hipermídia elas podem serprosa, gráficos, animações, vídeos e sons (1999: 39).
Para analisar a comunicação, informação e a expressão poética nos
meios digitais, estes autores sustentam que há uma lógica que oscila entre
a immediacy e a hypermediacy. A primeira torna o meio imperceptível aos
olhos do observador/usuário, enquanto a segunda possibilita ao observador
a consciência da presença do meio. Remediation acontece, então, pela
substituição de um meio por outro todo o tempo, em alguns casos na forma
de hypermediacy, ou seja, em que a presença do meio é percebida, e em
outros, como immediacy, quando a presença do meio não é percebida.
17 Não há palavra na língua portuguesa adequada para traduzir remediation, immediacy ehypermediacy, por isso, utilizamos estes termos no seu original, em ingês.
70
Como exemplo de hypermediacy, os autores observam o estilo das
janelas (windowed style) da World Wide Web, em que é possível abrir-se
vários tipos de informação em espaços diferentes. Devido à multiplicidade
das janelas e à heterogeneidade dos seus conteúdos, o usuário é
freqüentemente trazido ao contato com a interface, oscilando entre
manipular as janelas ou examinar os seus conteúdos. Isso torna o meio
perceptível ao usuário, já que ele acessa as diferentes formas de
representação existentes nesse espaço heterogêneo (BOLTER; GRUSIN,
1999: 33).
FIGURA 11 A consciência do meio em Patchwork Girl, através dasimagens dos mapas de visualização, e ilustrações e textos dahiperficção
71
O segundo exemplo, immediacy, leva como que a uma
naturalização do meio. Veja-se o caso da metáfora da “área de trabalho”
(desktop metaphor): o computador assimilou instrumentos de trabalho do
mundo real, por assim dizer, como a lixeira, os arquivos, pastas, etc., e o
mouse possibilitou ao usuário tocar, mover e manipular estes signos visuais
instantaneamente. Tal “transparência”, segundo os autores, possibilita à
interface como que “apagar-se” a si mesma, a tal ponto que o usuário não
fica consciente de sua presença, mas apenas do conteúdo (BOLTER;
GRUSIN, 1999: 24).
A lógica da remediation dá uma idéia das formas pelas quais ocorre
a fusão de meios. A presença marcante do meio resultante é algo que
sempre fascinou o artista e o técnico, na verdade: o meio como referencial,
como algo que se mostra na sua especificidade e nas suas características.
Por outro lado, a ilusão de transparência do meio também tem sua
importância, já que com isso privilegia-se o conteúdo, que, desta forma,
adquire mais força e poder de significação.
A fusão conceitual, como propõe Higgins, resulta em um novo meio,
formado por partes significantes de meios anteriores. Como dizem Bolter e
Grusin (1999), o que é novo nos novos meios é também velho e familiar:
eles prometem o novo pela remodelação do que os precederam.
A teoria da remediation, neste sentido, vem corroborar a tese de
Higgins: o meio resultante do reajustamento das formas significantes que
se dão nos meios digitais é um intermeio. Apesar de o estudo de Bolter e
Grusin não se deter nas criações poéticas, o que é uma pequena parte de
suas preocupações, retomamos a lógica da remediation por parecer ideal
para colaborar com o entendimento do que Higgins propõe como obra
intermídia.
Assim como Higgins, Bolter e Grusin estão preocupados em
identificar, na criação artística contemporânea, traços de sua herança
72
histórica. Ainda que exista uma lacuna de quase 50 anos em relação a um
e outro, os estudos de ambos parecem estar relacionados. Eles buscam um
entendimento dos novos meios a partir da presença, neles, dos meios
anteriores.
Tendo a fusão da imagem e da palavra como referência, a literatura,
nestes ambientes, é de mixagem, uma mistura não só de meios
perceptíveis, o que fica no plano da chamada multimídia, mas de meios que
não se destacam dos demais, que estão fundidos com o objetivo de
multiplicar os significados da obra criativa. Para Higgins, a intermedialidade
é apenas uma parte de como a obra era e é; reconhecer isso faz a obra
fácil de ser classificada, já que se pode entendê-la melhor e a seus
significados.
Como Fenollosa preocupava-se com a presença imagética do
ideograma na poesia chinesa no sentido da forma poética, hoje uma
preocupação recorrente com relação à criação poética nos meios digitais é
se estas podem ser consideradas “poesia”, uma vez que trazem formas
distintas de representação. O conceito de Higgins poderia bem dar conta
desta fusão. Este tipo de poesia não é só uma quantidade de versos,
imagens e sons, mas também um momento para a criação espacial destas
formas, tudo convergindo em um novo tipo de representação poética,
inclusive o passado e o presente da criação literária: intermídia.
A idéia de retomar um conceito como o de intermídia vem de
encontro a fazer uma ponte com o passado para chegar ao entendimento
da criação do presente. Este exercício só vem a comprovar que o novo
sempre opera com as referências do antigo, seja na fusão conceitual, seja
na remodelação de significados.
73
2.11 O Hipertexto que fala sobre o Hipertexto
Seguindo a tendência epistemológica do fazer artístico do século
XX, as poéticas digitais vão refletir sobre si mesmas, o que é ressaltado por
obras como Patchwork Girl e Afternoon a Story, como veremos nos
capítulos três e quatro. A metalinguagem da obra em hipertexto está
profundamente ligada com a materialidade deste tipo de escrita: as
referências são feitas na direção da característica técnica do suporte, por
exemplo, em relação à forma do texto (as “partes” da monstra, em
Patchwork Girl, são também os fragmentos de que é feita a escrita
hipertextual, como veremos no capítulo quatro).
Lev Manovich (2000) observou que, nos meios digitais, o conteúdo
e sua interface, pelo nível de integração que alcançam, não podem ser
pensados como entidades independentes. Isso parece encaixar-se
perfeitamente numa hiperficção em Storyspace, especialmente, Patchwork
Girl, que faz da conexão do conteúdo da ficção com a tecnicidade do texto
digital sua base criativa. Isso transparece na interface, que mostra um texto
em pedaços, ao mesmo tempo em que a personagem se refere a si própria
como uma criação cujas cicatrizes marcam sua dispersão.
“Modo de usar” é como se definem as instruções de utilização de
um produto que ainda não conhecemos, geralmente, instruções contidas
em um manual que acompanha o respectivo produto. Algumas obras
literárias, como O Jogo da Amarelinha, de Júlio Cortázar, instituíram uma
espécie de “modo de usar” da própria obra. No caso, um modo de ler.
Cortázar advertia o leitor de seu romance de que poderia fazer uma leitura
da obra a partir de diferentes seqüências propostas. Raymond Queneau, no
também já citado Cent mille milliards de poèmes, introduz sua obra ao leitor
com um “Mode d’emploi”, no qual explica como fazer a leitura, efetuando
percursos de combinatórias.
74
As ficções em hipertexto apropriaram-se do modo de usar. Em
Afternoon, a story, Michael Joyce dá coordenadas ao leitor sobre como
iniciar ou terminar de ler sua história – “quando a história não progride, ou
quando o leitor se cansou dela, a experiência de leitura termina”, diz o
autor, no espaço [work in progress]. O hipertexto talvez necessite de
instruções pelo fato de se constituir em um tipo de escrita realizado em um
suporte que ainda não está plenamente integrado aos modos culturalmente
aprendidos de empreender a leitura.
Em alguns casos, as instruções são colocadas em um manual à
parte, como em Patchwork Girl, um arquivo em PDF, separado da obra
ficcional. Neste manual, a autora explica como instalar a obra e qual é a
sua composição – espaços de escrita, links, janelas e mapas e
funcionamento do ato de leitura, entre outros aspectos.
Mas o modo de usar também pode estar dentro do corpo da obra
ficcional e isso é tão fundamental na obra de Jackson, que se tornou
também objeto de sua ficção, num exercício metafórico no qual a autora
amiúde vai mesclar o teor de sua história ficcional com as características
físicas que compõem o próprio hipertexto. Isso é metalinguagem. É o
hipertexto que fala do hipertexto.
2.12 Interrogando a materialidade da escrita
Em Patchwork Girl, a conexão da obra com sua técnica é definidora,
uma intenção latente da obra. O hipertexto serve como metáfora para a
história, sendo parte do próprio corpo da obra, tal é sua relação com o
conteúdo da ficção. Nesta obra, o hipertexto discorre sobre sua própria
natureza, em uma história que fala de um corpo separado em partes e sua
auto-referencialidade em busca de si mesmo, num caminho para fazer
sentido a si próprio, dentro de suas marcas, cicatrizes e deformações.
75
É nesse sentido que Patchwork Girl encarna a conexão da obra com
seu suporte: isso “emerge de interações entre as propriedades físicas e as
estratégias artísticas da obra” (HAYLES, 2003: 33). A autora sustenta que a
forma física do artefato literário sempre afeta o que as palavras – e outros
componentes semióticos – significam (2003: 19). A obra interroga a
tecnologia de inscrição que a produz, mobilizando saltos reflexivos entre
seu mundo imaginativo e o aparato material incorporado naquela criação
como presença física, diz Hayles (2003: 25), e isso parece definir
Patchwork Girl. Esta hiperficção, escrita por Shelley Jackson e baseada em
Frankenstein, de Mary Shelley, ao mesclar a história de Frankenstein com a
digressão teórica sobre o hipertexto, está auto-refletindo sobre sua própria
materialidade, ou seja, sobre a forma de escrita hipertextual.
A obra de arte contemporânea se transforma, hoje, numa
epistemologia de si própria, como observou Arlindo Machado:
... o artista pode, em circunstâncias nada excepcionais, exibir-secomo aquele para quem fazer arte é o equivalente a falar sobre aarte. [...] uma porcentagem esmagadoramente grande das obrasartísticas produzidas em nossa civilização ocidental já traz,implícita, a sua própria teoria, a crítica ou a reflexão sobre simesma (1974 – primeira parte: 4).
Não é difícil perceber como Patchwork Girl utiliza-se de sua própria
materialidade com o objetivo de cativar o leitor. Isso pode ser lido em cada
espaço de escrita, onde o hipertexto é a metáfora para a história do próprio
monstro mulher que é o Frankenstein de Shelley Jackson. Vejamos alguns
exemplos, constantes em alguns dos espaços de escrita desta obra:
... But my real skeleton is made of scars: a web that traverses mein three-dimensions. What holds me together is what marks mydispersal. I am most myself in the gaps between my parts, thoughif they sailed away in all directions in a grisly regatta then would benothing left here in my place.
[…]
I am made up of a multiplicity of anonymous particles, and have noabsolute boundaries. I am a swarm. ‘Scraps? Did you call mescraps? Is that my name?’
76
[…]
I hop from stone to stone and an electronic river washes out myscent in the intervals. I am a discontinuous trace, a dotted line.
[…]
… a dotted line demonstrates: even what is discontinuous and inpieces can blaze a trail (excertos de Patchwork Girl, S. Jackson,1995).
Impossível deixar de relacionar a metáfora ao suporte tecnológico
hipertextual: partículas, ausência de limites absolutos, descontinuidade...
A frase “What holds me together is what marks my dispersal” (“O
que me mantém unido é o que marca minha dispersão”) é uma alusão à
própria essência do hipertexto, representada pelo link: ao mesmo tempo
que aglutina o todo hipertextual pela conexão, o link marca a dispersão da
informação em uma rede multiforme. Tais alusões à sua materialidade não
são mais do que a pontuação de uma questão que sempre acompanhou o
processo artístico: o paradoxo criação/teoria, como recorda Machado
(1974), que encontra sua mais plena expressão justamente na literatura
contemporânea, e a hiperficção não fica à margem desta preocupação,
como se percebe no exemplo de Jackson.
O questionamento de sua própria materialidade não é mais do que a
busca da opacidade da matéria artística, como podemos inferir da
observação de Machado:
As artes contemporâneas têm buscado com relutadoesforço essa opacidade da matéria artística, esse estado deesvaziamento dos conteúdos semânticos e pragmáticos, apretexto de uma brancura essencial, onde o espelho dasconstruções sintáticas não deixe de refletir senão o própriomaterial, os meios de estruturação da obra (1974: 4).
Esse é o caso, também da possibilidade de visualização dos mapas
do Storyspace, proporcionada por Patchwork Girl, que permite a plena
consciência da estrutura da obra, o que dá ao leitor a consciência da
materialidade da escrita naquele tipo de sistema hipertextual.
3 AFTERNOON, PIONEIRO
The apparent autonomy of the computer is simply a newmanifestation of the apparent autonomy of the book; thecomputer’s voice is the voice of the prose that has addressed usfor centuries from the pages of books. Our ambivalent reaction tothe voice of any book (is it the author? is it simply the voice of thereader? is it somehow independent of either?) is the source of boththe interest and the fear that the computer inspires18.
Quando Michael Joyce participa da criação do Storyspace, junto
com J. David Bolter e John B. Smith, ele está preocupado em dar forma a
uma obra literária, talvez mais do que a um software. Em seu livro Of two
Minds, Joyce lembra:
Eu queria, simplesmente, escrever um romance quemudasse conforme sucessivas leituras, e que estas versõesfossem feitas de acordo com conexões que eu tivesse descobertono processo de escrita, e queria que meus leitorescompartilhassem disso (1995: 31).
Esta poderia ser, em rápidas linhas, a definição de Afternoon, a
story. Esta hiperficção surge desta preocupação: romances que pudessem
mudar a cada vez que alguém os lesse e, ainda, aparece concomitante com
a criação da própria ferramenta que lhe dá origem concreta. Embora tenha
sido criada juntamente com o programa Storyspace, Afternoon, a story foi
publicada antes mesmo do lançamento do software. Talvez este fato sirva
para definir esta obra como pioneira e precursora da literatura em
hipertexto. E, também, explique por que Afternoon é a mais citada dentre as
18 BOLTER, Jay David, 1991: 188.
78
obras em ficção hipertextual. Além de ter sido a primeira publicada em um
sistema de hipertexto como o Storyspace, o fato de Afternoon, a story ser
exemplar no uso do hipertexto é um dos motivos pelos quais é reconhecida
sua originalidade.
Escrita por Michael Joyce, em 1989, Afternoon é distribuída pela
Eastgate Systems, responsável também pelo Storyspace, e é
disponibilizada em sistemas Windows ou Machintosh, hoje, em 2004, da
mesma forma que rodava em um computador há 15 anos. O interesse por
Afternoon, a story, atestado por pesquisadores, leitores e escritores, não se
perdeu no tempo da evolução dos software, e isso pode indicar um sinal de
sua importância na criação literária em hipertexto19.
Pode-se indagar que tipo de influência teve Michael Joyce em
Afternoon, a story? Por certo, do ponto de vista da técnica, nenhuma, já que
seu trabalho pioneiro introduziu o hipertexto na ficção. Esta é a
originalidade da obra, que aparece em um contexto de transformações,
com os meios digitais, mas também de dúvidas e incertezas devido à pouca
familiaridade com esses meios.
Pode-se dizer, por outro lado, que Afternoon, a story incorpora
influências da literatura como um todo, e isso, desde o texto em sua
fragmentação, até sua multiplicidade, fatores que já foram analisados por
autores como o próprio Joyce (1995), Landow (1997), Bolter (1991), dentre
outros.
19 J. Yellowlees Douglas (2000), Espen Aarseth (1997), Ilana Snyder (1997) e J. D. Bolter (1991)são alguns autores que verificam as características do hipertexto ficcional criado neste programa;George Landow utilizou o Storyspace em sala de aula (1997).
79
3.1 A leitura produz um original
Mas a originalidade é conferida à obra também através da soma
entre sua produção e fruição. Há um momento que, conforme Joyce bem
definiu (1995: 177), o leitor torna-se um leitor como escritor (“reader as
writer”). Nesse sentido, obras em Storyspace como Afternoon são originais
também do ponto de vista da leitura. Na primeira leitura que realizamos de
Afternoon, a story, há quatro anos, verificamos que a obra continha uma
espécie de aura, no sentido benjaminiano do termo, que se traduz pela
sensação do aqui e agora. Lendo Aarseth (1997), a questão da aura em
relação às obras digitais vem novamente à tona. Para o autor, obras
disponibilizadas na World Wide Web nos trazem a uma nova era na história
da arte, a qual podemos chamar “Age of Post-reproduction”. Aqui, a obra de
arte recupera parte de sua aura, seu “aqui e agora”, através da sensação
de que ela não poderá ser plenamente copiada e reproduzida, de vez que
tem um espaço singular na rede e uma dimensão temporal, um tempo de
vida dinâmico. Isso se deve, em grande parte, às diferentes possibilidades
e variações de leitura que ela oferece. Ainda podemos especular se, como
diz Beigelmann (2003), pode ser definida como “original de segunda
geração”. Para a autora:
A informática em si é tecnologia de replicação, clonagem.Ao mesmo tempo em que permite a produção de “idênticos”múltiplos pela cópia do código, engendra o fenômeno cultural eestético do “original de segunda geração” (2003: 59).
Argumentávamos que, cada leitura de Afternoon, a story sendo uma
leitura única, daria uma aura à obra, que a tornaria um produto especial,
único, presente no aqui e no agora do ato de leitura que a conforma
enquanto obra literária, e que varia de leitor a leitor. Pode-se dizer que cada
leitura realizada desta obra é única. Isto a coloca num patamar específico –
mais alto, certamente, do que a posição anterior da obra em si, ou seja,
antes da apreciação. Após uma leitura que a retira do limbo a que estava
80
relegada, presa ao disquete, esperando por um leitor, a obra parece
adquirir ao redor de si um halo de originalidade.
A hiperficção, portanto, ao receber uma leitura que é única, porque
feita de acordo com uma determinada combinatória entre seus elementos,
será transformada, também ela, em um objeto incomum. Tal singularidade,
entretanto, não se constitui apenas na instância da produção do objeto,
mas obedece a uma outra ponta, aquela da fruição da obra: no contexto
digital, não só o autor terá importância sobre o resultado de sua obra, mas
também, e principalmente, o leitor e o uso que dela realizar. Este mix de
funções já foi objeto de teóricos da Escola de Constanza, como Wolfgang
Iser, e, posteriormente, de outros pesquisadores, como Umberto Eco e
Roland Barthes, que sustentavam que os atos de leitura pressupunham
interpretações diferenciadas. Porém, é somente com as possibilidades do
hipertexto que isto realmente se amplia.
Varia também, neste caso, o tempo necessário para efetivar-se sua
leitura, já que o tempo será determinado pelo leitor, que, a exemplo do que
acontece com Finnegans Wake, de James Joyce, ou Galáxias, de Haroldo
de Campos, pode “visitá-las” e “revisitá-las”, em momentos distintos. Tais
obras não oferecem uma organização de leitura pré-definida. Isso vem a
reforçar a análise referente à leitura única. A obra será irreproduzível no
momento que se oferecer em vários tipos de conformação, originadas pelas
leituras que dela se fizer. Executar a leitura em tempos diferentes a cada
vez que se lhes efetua se torna, portanto, um diferencial deste tipo de obra,
que não é um produto acabado, pronto para o consumo, mas um produto
para ser apreciado sob diversos ângulos e de diferentes formas.
A narrativa de ficção em hipertexto, porque possibilita leituras
únicas, torna-se, ela mesma, um original. Para Bolter, por exemplo, na
hiperficção não há uma história, mas várias leituras. A história será a soma
destas leituras (1991: 124-125). Nas palavras de Michael Joyce, “a história
81
existe em vários níveis, e muda conforme as decisões que você (leitor)
faz”20.
Para efetuarmos uma análise de uma obra como Afternoon, a story,
no entanto, deveremos levar em conta quadros de referência distintos
daqueles utilizados na crítica literária tradicional. Se algo nos trouxe a
cultura digital, foi lentes para vermos o mundo com outros olhos. De acordo
com Hayles (2002), os meios digitais nos deram uma oportunidade de ver o
impresso com outros olhos e, com isso, a possibilidade de entender quão
profundamente a teoria e a crítica literária têm sido saturadas com
premissas específicas do impresso.
Que a literatura eletrônica opera de forma diferente do impresso,
devido ao seu suporte, e por isso requer novos quadros de referência, é
óbvio. Vários autores têm se debruçado em buscar estes quadros teóricos
para analisar as práticas de escrita e de leitura trazidas pelos meios digitais,
como Moulthrop, Aarseth, Douglas, Hayles, Glazier. Desses autores
encontramos novos referenciais teóricos que podem dar conta da análise
da literatura em hipertexto, especialmente naquilo que concerne à sua
materialidade, relativa ao suporte digital que influi decisivamente na escrita
em hipertexto. Levar em conta o meio digital na sua materialidade implica
ainda, segundo Hayles, ter consciência de que as “funções textuais não
devem ser baseadas apenas nas marcas que aparecem na tela, mas
também levar em conta o que está acontecendo dentro da máquina” (2002:
40). Nesse sentido, a leitura deve orientar-se não apenas para o sentido do
texto, mas, numa perspectiva integrada, para todos os componentes do
suporte, que se tornam práticas significantes, como salientou essa autora.
A questão principal relativa a este tipo de poética conformar obras
em hiperficção, talvez seja a inversão daquilo que o lingüista Roman
Jakobson (s.d.) definiu como a própria função poética da linguagem, ou
20 Esta é uma das “orientações” que autor faz ao leitor, em Afternoon, a story.
82
seja, a projeção do eixo do paradigma sobre o eixo do sintagma. Na poesia,
por exemplo, o uso figurativo das palavras é que confere seu significado, ou
seja, as seleções de combinação (paradigma) prevalecem sobre a
contigüidade (sintagma). Isso seria, em grande parte, o que diferenciava a
poesia da prosa, sendo a poesia o campo por excelência da metáfora,
enquanto que a prosa seria mais baseada na metonímia.
No contexto associativo das narrativas em hipertexto, tal asserção
encontra uma outra acepção, ou seja, trata-se de se projetar o eixo do
sintagma sobre o eixo do paradigma, uma vez que as operações de
seleção e combinação devem se dar de forma inversa no sentido de se
obter da obra sua significação. Ou seja, as alternativas de combinatória, na
prosa hipertextual, são dadas de modo simultâneo; cabe ao leitor
atualizá-las, através da sua leitura, que é uma busca incessante de
conexões, nem sempre óbvias, mas freqüentemente desafiadoras, entre
palavras, sons e imagens. Como definiu Michael Joyce: “O significado na
narrativa é uma re-alocação ordenada mas contínua de estruturas
significativas através do texto” (1995: 191). Ele continua, mais adiante,
ratificando que “o sentido da narrativa é sempre estreitamente
potencializado – externa e em certa medida anterior ao texto” (1995: 192).
Da mesma forma, trata-se de um texto que tem a característica da
multiplicidade, muito bem observada por Ítalo Calvino (1997) e que
Machado interpreta a partir da crítica literária que busca na gênese da
escritura a investigação. Para o autor, esta crítica tem demonstrado que:
A escritura, no seu momento genético, é sempre plural;ela se dá como feixe de possibilidades e a grandeza do resultadofinal está menos em escolher a melhor alternativa do que em darforma orgânica à multiplicidade (1997: 148).
Se observarmos a já citada lembrança de Michael Joyce quanto à
origem de Afternoon, veremos que tal afirmação é mais do que teoria, está
baseada na realidade da criação, como exemplifica a história de Joyce.
83
Com o computador e a possibilidade de armazenamento da
informação de forma virtual, as estratégias de fruição da obra artística
também vão ganhar, no caso da literatura, por exemplo, em obras que
permitem a construção de trajetos de leitura formados pelo acesso aleatório
a um campo de possibilidades. As obras digitais que tratam de devolver ao
leitor esta prerrogativa, e assim de efetuar a multiplicidade, nada mais são
do que a concretização de um conjunto de possibilidades previstas
anteriormente na história da criação literária. Mas, como bem nos lembra
Machado (1997), embora os atos de leitura e recepção, por pressuporem
interpretações diferenciadas, fossem tidos como “atos de criação e
expressões de uma certa liberdade, a verdade é que apenas a partir dos
anos 1960 tais atos ganharam autonomia suficiente, a ponto de
converterem, muitas vezes, o receptor em co-criador da obra” (1997: 145).
3.2 Paralelismo, associação, não-linearidade
A atualização de informações existentes em estado latente é o
motor do discurso de leitura de Afternoon e das obras hipertextuais,
marcado por elementos como o paralelismo das tramas, como se vê em
Afternoon, pelas associações mentais e pela não-linearidade no discurso
narrativo hipertextual. O leitor faz assim um percurso que inclui atualização
e recuperação de informações, a fim de consolidar a narrativa e assim obter
significados dela. Em Afternoon..., em particular, fazemos um percurso no
qual podemos, ao mesmo tempo, atualizar uma informação que existia em
estado latente, potencial e, ainda, recuperar uma informação que já
havíamos obtido, mas que havia sido apagada pela sua própria atualização
posterior.
A partir das instruções do autor, o leitor pode escolher uma forma de
leitura, que poderá mudar conforme o seu trajeto. Por exemplo, uma leitura
84
que inicia tendo como alternativa de continuação somente a tecla enter, vai
efetuar um percurso definido pelo autor como default. Mas se, em dado
momento, o leitor decidir por modificar esta estratégia, o que pode
acontecer com a narrativa? Optamos por perfazer uma leitura a partir deste
exemplo, ou seja, começar com a tecla enter e seguir, a partir do terceiro
espaço visitado, com a alternativa Y, que, no caso desta hiperficção, se
refere à palavra yes. O sentido que foi se construindo dizia respeito às
reflexões do narrador sobre sua dúvida em ter visto seu filho e sua mulher
vitimados por um acidente de automóvel, seguida de pensamentos sobre
algum lugar do passado de sua história pessoal, e a volta à dúvida sobre o
acidente, no espaço [die], que diz: “I felt certain it was them, I recognize her
car from that distance, not more than a hundred yards off along the road to
the left where she would turn if she were taking him to the Country Day
School. [...]. [die]”.
Parece mais o fluxo do pensamento, colocado em janelas distintas,
em espaços próprios, em fragmentos que não fazem mais do que reforçar o
modo de funcionamento de sua mente. Como observou Vannevar Bush
(1945), num outro contexto, a respeito do que mais tarde seria reconhecido
como a origem teórica para o surgimento do hipertexto, são os trilhos do
nosso pensamento, que atua de forma não-linear.
Mais uma vez, vê-se aqui a metáfora: em espaços de escrita e
fragmentos, a reflexão do narrador vai por pedaços, assuntos dispersos,
momentos de sua experiência de vida, e por sentimentos diferentes com
relação a cada um desses momentos.
O fluxo de pensamentos do narrador parece ir por dois caminhos em
paralelo, que se tangenciam em alguns momentos: a dúvida sobre o
acidente ter vitimado seu filho e sua mulher, e a conversa com Werther e a
(outra) dúvida sobre a relação deste último com a ex-mulher do narrador.
85
Ao mesmo tempo em que narra o diálogo com Werther, o narrador
parece conversar com sua própria consciência, com seus medos, como se
vê no espaço [whom]:
(whom) he says, (A writer should know that whom are youconcerned about? Her or him?)
The lady or the tiger.
(why didn’t you just turn your car around and see if it was them,instead of worrying yourself to death?)
(I was afraid to see.)
(You can never be afraid of that. Not in this business.)
Insurance or poetry? [whom]
Note-se que aí também está presente a menção ao ofício do
escritor, a à própria função poética: nas palavras e frases da ficção,
imbricam-se as palavras que levam além do conteúdo da história. O autor
debate-se não somente em uma dúvida, mas reflete sobre sua própria ação
– “insurance or poetry”?
Várias histórias correm em paralelo ao percorrer os caminhos de
Afternoon, a story. Conforme o leitor atuar sobre as opções dadas,
(utilizando a tecla enter/return do teclado, ou simplesmente clicar sobre
qualquer das palavras do texto, ou ainda, clicar sobre Y (yes) ou N (no),
abrir-se-á um fio de história) (Fig. 12). Assim, as estórias se desenvolvem
tal como em uma montagem paralela, no cinema. É desta forma que a
leitura pode começar com um texto em que o autor diz, sem ter certeza,
que pode ter visto seu filho morto em um acidente de automóvel. Seções
(espaços de escrita) diferentes se abrem, para dar a conhecer tanto sua
dúvida quando fala sobre o acidente na estrada que teria presenciado, ou
suas relações com a esposa, a amante e o funcionário, por exemplo, como
se fossem pensamentos desconexos na rede associativa da mente.
Afternoon, a story dá forma a estas associações mentais.
86
FIGURA 12 Espaço de escrita de Afternoon, a story. Na parte inferior, os“botões” de navegação – Y, N, e as opções: Links (paraverificar os links), History (para ver o histórico dos espaçospercorridos na atual leitura; Bookmark (na forma de clips),adicionar notas (representado por uma folha escrita) e back,representado por uma seta
Se a leitura de fato, como diz Liestol (1997)21, articula um eixo do
discurso, temos aí uma linearidade pela atividade de dar seqüência a um
texto potencialmente dado como série de possibilidades, e portanto, de
seqüências distintas. Acontece então a linearidade, porque ela surge a
partir de uma seqüencialidade inerente à leitura realizada. Se for assim,
21 Para este autor, o hipertexto inclui um terceiro nível à história-discurso, que pode ser definidocomo o nível do “discurso discorrido”. Isto se refere à criação de um caminho baseado na seleçãoe combinação de elementos já existentes numa ordem espacial de nós e ligações. Então, a linhado discurso, para este autor, dividir-se-á em dois níveis diferentes: o discurso como texto não-linear armazenado no espaço (virtual), e o discurso discorrido, tal e como foi lido de fato. Haveráuma história possível ou potencial, aquela que está armazenada, e outra história de fato, que odiscurso discorrido articula.
87
chegamos à conclusão de que a não-linearidade, no hipertexto, dá-se única
e exclusivamente no eixo do paradigma, ou seja, da forma como é disposta
a informação.
“Recuperar”, visto sob outro ângulo, significa uma volta atrás, no
sentido de buscar algo que ficou. Ora, este processo implica um ir e vir, um
fluxo e refluxo, onde dá-se, essencialmente, a não-linearidade. Ao ler uma
ficção em hipertexto como Afternoon, a story, por exemplo, fazemos estes
saltos a partir de diversas opções de continuidade da história.
Já em relação ao paralelismo, vemos que está estreitamente
associado às associações mentais. As situações dramáticas colocadas em
paralelo podem ser vistas como a mesma passagem, pois, ao mesmo
tempo em que Peter, o narrador, diz que provavelmente viu seu filho morto
em um acidente de carro, em suas divagações, aparece seu
relacionamento com o empregado, Werther, ou ainda, com a esposa, ou
com a amante, Nausicaa. A narração de Afternoon, sempre na primeira
pessoa, passa, ainda, pela dúvida de Peter desde o momento em que
pensa ter visto seu filho morto, passando pelo pavor de procurá-lo nos
hospitais.
Um almoço, conversas sobre a esposa de Peter ou Nausicaa, e o
papel de Werther em relação a este triângulo, acompanham a trama. O que
muda, então? Se algo muda, é o contexto. Uma vez que a leitura se dá por
caminhos diferentes, ainda que passem por pontos cuja história parece
estar em paralelo, cada um destes espaços de estória terá um sentido na
medida em que o próprio contexto narrativo for se efetuando. Ou seja, o
mesmo texto “eu acho que vi meu filho morto esta manhã”, ao ser aberto
pela primeira vez, poderá ter um impacto, e mesmo um significado; já ao
passarmos por este espaço posteriormente, e conforme os links lidos
anteriormente, poderá ter um outro significado. Sobre isso, e mais uma vez,
o autor explica ao leitor:
88
Uma palavra que não tem um seguimento (que não levaa um espaço de escrita) na primeira vez que você lê a seção,pode levá-lo a outro lugar se você a escolher quando encontrarnovamente a seção; e algumas vezes, o que parece ser um salto,como a memória, leva para outra direção22.
Um exemplo de o que se pode encontrar ao clicar em palavras “que
convidem”, como o próprio Joyce instrui na sua obra. No espaço [no], ao
clicar em [hours], abre-se o espaço [The Garden], com o seguinte texto:
In contrast to Newton and Schopenhauer, your ancestor did not believein a uniform, absolute time. He believed in an infinite series of times, in agrowing, dizzing net of divergent, convergent, and paralell times.
(Borges) [The Garden].
Elementar que a assinatura de Borges, abaixo da citação do autor,
vai remeter o leitor, em suas associações mentais, ao conto “O jardim dos
caminhos que se bifurcam”, do escritor argentino. Da mesma forma,
também remete a Borges o título do espaço de escrita: The Garden. Nesta
lexia, o autor Joyce faz uma homenagem ao autor Borges, que é, ao
mesmo tempo, uma citação seminal para a gênese e definição do
hipertexto.
Note-se que Afternoon, story é pioneira no uso do hipertexto para a
criação literária, e sua alusão a Borges parece ter sido também um ato
original. Muitos autores que tratam do hipertexto e do hipertexto literário
fazem a alusão ao conto de Borges como um dos precursores do hipertexto
(Moulthrop, Landow, Bolter, etc.). Isto nos leva a crer que, além de ter sido
anunciador da hiperficção, Afternoon, a story também instituiu referências
fundamentais para analisar esta escrita do ponto de vista conceitual.
Interessante também notar que esta é uma auto-referência no corpo
da obra, a algo que teria sido um precursor da escrita hipertextual, um
proto-hipertexto, como definiu Landow (1997), a respeito de obras como o
conto de Borges. Pode-se ver, aqui, o hipertexto que fala do hipertexto, o
22 Idem.
89
meta-hipertexto, que fala de si mesmo através da auto-referenciação, que
ao mesmo tempo é uma auto-alimentação de conteúdo.
Da mesma forma – e pode-se afirmar que trata-se de outro
elemento a lhe conferir originalidade –, está a citação de um outro autor
considerado importante para as referências ao hipertexto, que é Laurence
Sterne. Ele aparece no espaço [midwife]: a própria forma de disposição das
frases no espaço da tela parece ser um excerto da obra A Vida e as
Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy:
CHAP. XIII
It is so long since the reader of this rhapsodical work has beenpanted from the midwife, that it is high time to mention her again tohim, merely to put him in the mind that there is such a body still inthis world, and whom, upon the best judgement I can form uponmy own plan at present, -- I am going to...
But …
Which may require …
-- ‘twas right
in the mean time, --- because ---
(Sterne) [midwife]
Se o suporte material para a escrita pode induzir ao tipo de
experimentação artística que se opera, a referência a Sterne, neste caso, é
fundamental. Em pleno século XVIII, esse autor escreve um romance como
se estivesse refletindo sobre a própria matéria da página impressa e, em
especial, da tipografia. Em Tristram Shandy, há páginas completamente
negras, onde o que seria a impressão de vários caracteres, palavras ou
frases se torna um todo, como se o conjunto de caracteres que devessem
ocupar a página com um determinado sentido, para continuar com a
história, por exemplo, se fundissem em um único objeto, formado pela
fusão dos pretos sobre o branco da página.
Em outros momentos, a própria noção de utilização dos sinais
tipográficos é subvertida: onde haveria que escrever frases, com um
sentido usual, para dar significado à história, o autor utiliza de modo
90
repetitivo sinais como o ponto, o travessão, o traço, numa alternativa visual
que invoca muito mais a imagem desses caracteres do que, propriamente,
a palavra e as frases. É dessa forma que Sterne utiliza os sinais gráficos,
os espaços em branco, para refletir sobre seu próprio processo criativo, a
partir do material utilizado, ou seja, a escrita na página impressa e a própria
tipografia.
FIGURA 13 O espaço de escrita [midwife], no qual Joyce faz referênciadireta e Laurence Sterne
A citação a Sterne, em Afternoon, a story, recupera algumas das
características da escritura do autor, como a disposição dos elementos
tipográficos na página (Fig. 13). Agora transportados para o espaço da tela
do computador, eles estão a dizer: “aqui está parte do material que me
serviu de molde; aqui aparece uma das influências da escrita hipertextual,
da valorização da forma, do jogo com os espaços e sinais tipográficos”.
91
3.3 Estranhamento e desorientação
Referências à parte, a leitura de um hipertexto como Afternoon, a
story causa uma sensação de estranhamento. Contrariamente ao que se
possa pensar, entretanto, este estranhamento é algo estimulante. Ao
navegar pela história, podendo escolher dentre diferentes continuações
disponibilizadas nos espaços de escrita, em dado momento ocorre a
sensação de perder-se e encontrar-se ao mesmo tempo. Estando à deriva
num mar de possibilidades, escolhe-se uma delas e o que se descortina
naquele espaço de escrita que é a tela do computador, é o encontro. É a
consciência, afinal, de se estar frente a uma verdadeira obra. Uma obra de
arte. Passados quase quinze anos de sua publicação, esta obra é
atualíssima; por isso, clássica.
É desta forma que o leitor pode escolher de que maneira
empreenderá sua leitura23. Na nossa primeira leitura, ocorreu uma
sensação de desorientação (outra das características das narrativas em
hipertexto): ao mesmo tempo em que foi escolhido um caminho, por uma
destas formas apresentadas acima, e que abriu-se mais uma lexia da
história, apareceu a curiosidade sobre para onde levariam os outros
caminhos oferecidos anteriormente. Ao lado da curiosidade, a indecisão:
não teria sido melhor escolher outro link? Para onde levaria? Qual lexia
seria aberta, com que título, com que assunto? E ainda, o desejo de “estar”
em todas as lexias ao mesmo tempo, numa necessidade de deixar-se
envolver pela rede de páginas entrelaçadas que formam este hipertexto.
23 Além da tecla “return”, ou do clique do mouse, a leitura pode se dar através de uma barra dequatro “botões” existente ao pé de cada página. O primeiro é para o retorno, representado poruma flecha; o segundo, o ícone de um livro, é um browser, que aponta uma lista de possíveis linksa serem acionados a partir da página em questão; o terceiro é composto pelas letras Y” e “N”, querepresentam, obviamente, dentro deste contexto, as palavras “yes” e “no”, e que, quandoacionados, levam a páginas diferentes entre si; o último botão é usado para imprimir a página quese está lendo no momento.
92
Há uma espécie de “poder” de escolha conferido ao leitor. De um
lado, o leitor toma decisões que vão produzir um significado; é um pouco
autor, na medida em que, movendo-se entre blocos de informação, cria. De
outro lado, o autor, que é um leitor antes, porque todos somos leitores, mas
também um autor depois, porque possivelmente não previu todas as
combinatórias possíveis dentre os links e caminhos da história. Assim, a
cada leitura que fizer de sua própria obra, ele mesmo, o autor, também
criará uma leitura única, um texto com significado diferente do lido
anteriormente.
Como todo autor, que conhece o programa que manipula, o fato de
poder ver aquela lista de comandos traz ao leitor uma sensação de autoria.
Em geral, é muito mais o autor que tem consciência da estrutura de
funcionamento do meio do que o usuário, leitor ou espectador. Numa
narrativa, por exemplo, seja um romance num livro, um filme ou mesmo
uma hiperficção, ao leitor/espectador cabe a fruição da obra. Há mesmo um
“abandono”, um deixar-se levar. Isto é chamado de imersão por alguns
autores, como Turkle (1997), um momento em que ocorre a concentração
de todos os sentidos, quando se perde a noção da presença dos objetos e
equipamentos pelos quais é transmitida a narrativa. A imersão é a rendição
total à obra.
Estando imerso em uma história, elegendo caminhos, entrando em
seqüências espaciais de texto narrativo, e, ao mesmo tempo, tendo sinais
fornecidos pelo programa que mostram um pedaço do seu, por assim dizer,
“esqueleto”, o leitor captura parte da estrutura interna da obra. Ela concede,
então, ao leitor, parte de sua “intimidade”. Agora, o leitor confunde-se com o
outro, o autor, através do elo que é a obra. O leitor apreende a narrativa,
torna-se cúmplice do autor.
A leitura única, que concede um halo de originalidade para a
hiperficção e a sua construção como objeto original é o que, finalmente,
93
constrói o leitor como um autor. Não só isto, este leitor, executando sua
leitura, realiza o texto enquanto um todo de significado. Neste percurso, em
que seu “discurso discorrido” (LIESTOL, 1997) conformará um trajeto único,
apesar das múltiplas linearidades possíveis, o leitor vai tomando
consciência da ampliação de suas funções.
3.4 Anti-narrativa
Preocupado em construir uma terminologia crítica apropriada para
entender o hipertexto literário, Aarseth (1997) procura verificar, em
Afternoon, a story, sua relação com o modernismo na literatura, e de que
forma os aspectos modernistas dominam este texto, mais do que suas
características pós-modernistas. É assim que especula ainda sua eficiência
como narrativa, ou anti-narrativa (1997: 94). Conclui que Afternoon, a story
é, antes de tudo, um texto-limite, na fronteira entre a narrativa e a ergódica
– forma teórica proposta pelo autor para a crítica literária do hipertexto – e,
principalmente, no nosso entender, um texto que pode “ajudar a entender
os limites de categorias do hipertexto e da narrativa, mesmo que através da
sua subversão” (1997: 95).
Contudo, é justamente onde o autor destaca a diferença entre
Afternoon, a story e outros textos modernistas, que está a fragilidade de
seu argumento. Para Aarseth, esta diferença se apóia no fato de o
hipertexto alienar o leitor, mais do que ser utilizado para um efeito
lingüístico.
A principal diferença entre Afternoon e outros textosmodernistas reside no mecanismo hipertextual para alienar oleitor, mais do que para um efeito lingüístico. O hipertextoconvidativo rapidamente se transforma num labirinto denso emulticursivo, e o leitor se torna não apenas muito perdido comopreso pela repetição, caminhos circulares e suas própriasescolhas impotentes. O que nós identificamos como fragmentos (oque parecem ser fragmentos de narrativa), ou ainda, o ato da sua
94
(falsa) identificação, nos faz procurar pelo todo, mesmo que nãohaja evidências que tais fragmentos possam constituir um todo.Este tipo de impasse é o principal tropo da máquina literáriaAfternoon: uma aforia no sentido literal (AARSETH, 1997: 91).
Há que levar em conta, entretanto, que a materialidade deste texto
digitalizado é constituída por fragmentos, que terão efeitos consideráveis
sobre a leitura, fato atestado por vários autores. Para Hayles, por exemplo,
O texto anuncia suas diferenças com o corpo humanoatravés de sua ilegibilidade, lembrando-nos que o computador étambém um escritor, como também um escritor cujas operaçõesnós não podemos alcançar em toda a sua complexidadesemiótica. Ilegibilidade não é simplesmente uma ausência designificado, mas um anunciador de processos cognitivos queconstróem a leitura como uma produção ativa de um circuitocibernético e não meramente uma atividade interna da mentehumana (2002: 50).
A questão da ilegibilidade, posta pela autora como anunciadora de
processos cognitivos da obra digital, implica em uma “reciclagem do
conhecimento”, no dizer de Beigelmann, para quem trata-se de “um texto
que [...] agencia um processo de reciclagem do conhecimento em uma
escala sem precedentes, confundindo as práticas da escritura e da leitura”
(2003: 18).
Tal qual as preocupações com a desorientação, com a interrupção
do fluxo narrativo, a ilegibilidade também é colocada, então, como um
instrumento a mais de enriquecimento da narrativa do hipertexto,
ocasionando exercícios de conhecimento e de superação dos desafios da
leitura que se empreende neste tipo de ambiente tridimensional que é a tela
do computador.
95
3.5 O leitor e a materialidade do texto
Aarseth define o esquema aristotélico autor – narrador – narrado
(narratee) e leitor como um modelo de comunicação, com o objetivo de
verificar as relações estruturais entre Afternoon, a story e um texto do
códex tipicamente modernista. Na hiperficção, no entanto, as relações entre
estas figuras são subvertidas: o autor tem uma estreita relação com o
narrador, e o leitor, com o narrado (narratee). Esta ligação com o narrado,
entretanto, não é mais do que a familiaridade com a materialidade do texto,
ou seja, aquelas características técnicas do programa de escrita
perceptíveis na leitura, e que proporcionam a consciência da presença do
meio, tornando o leitor ciente de sua presença e intermediação.
O leitor sente-se à vontade, por exemplo, para buscar estratégias
diferentes de leitura, no momento em que encontra um espaço de escrita
que não tem continuidade, como quando, após efetuar sua leitura somente
através de cliques com o mouse, ou a tecla enter, definida pelo autor como
default, alcança um espaço de escrita – [call] – que interrompe a
continuidade da leitura, pelo menos, com a estratégia do clique do mouse.
É como se, ao ler um livro no formato impresso, o ato de virar as páginas
para dar seguimento à leitura fosse de repente inócuo. Ao virar a página,
não haveria mais continuidade, não haveria mais história. O que fazer,
então, frente a tal interrupção? O leitor de Afternoon, a story, avisado que
foi pelo autor da obra, de que há outras estratégias de leitura disponíveis,
poderá procurar por outras ações de leitura, modificando as táticas
empreendidas até então.
Obviamente que chegar a esta conclusão depende de quanto o
leitor tenha se inteirado das estratégias de leitura, o quanto tem
consciência, por exemplo, de possibilidades como a lista de links que
podem ser acionados a partir dos espaços de escrita, ou de conhecer as
perspectivas abertas através das teclas yes ou no, por exemplo. Ou seja:
96
no momento em que a leitura parece estar interrompida por alguma
misteriosa estratégia de autoria, o leitor pode, por si mesmo, buscar outras
possibilidades.
Ainda que, para o autor, esta seja uma “força opositora”, “uma
desfiguração desestabilizadora que esgota a paciência do leitor e o senso
de progressão” (AARSETH, 1997: 93), a nós parece, porém, que tal
interrupção seria, antes, um elemento a mais para enriquecer a narrativa
hipertextual, uma característica que imprime à obra outros movimentos,
assim como a desorientação, a ausência de começos ou finais, a não-
linearidade do texto.
Como já foi falado anteriormente, Michael Joyce afirma, em
Afternoon, a story, que o final da história se dá quando o leitor se cansa da
leitura. E isso define, de certa forma, o que seriam estas novas
configurações trazidas pela literatura em hipertexto. Cansar-se da leitura,
interrompê-la por algum motivo, então, pode ser um momento de pausa
para um momento de reflexão sobre o próprio percurso de leitura, um
momento de constatação, enfim, de que a obra em hipertexto é um produto
criativo que envolve um desafio ao leitor. A partir daí, a tomada de
consciência é um dos motores da leitura, e assim é tratada pelo autor da
obra.
3.6 Um jogo de leituras
Num primeiro momento, Afternoon mostra ao leitor várias
“advertências” referentes ao processo de leitura. Ao explicar as possíveis
estratégias de leitura, avisando que as palavras podem convidar – ou não –
o leitor a clicar sobre elas e assim dar seqüência (s) à narrativa, o autor
adverte seu leitor de que: “The lack of clear signals isn´t an attempt to vex
97
you, rather an invitation to read either inquisitively or playfully and also at
depth. Click on words that interest or invite you” [read at depth].
O fato de as palavras no texto que podem levar a outros
seguimentos não estarem marcadas como links, ao menos como
convencionalmente se conhece – sublinhadas, por exemplo – exige uma
maior atividade do leitor. Ele deve descobrir onde clicar para seguir sua
leitura. Isto, se optar por fazer seu percurso apenas dentro do espaço
textual, já que a interface do hipertexto apresenta a lista de links de cada
espaço de escrita, além de botões de navegação, como back, yes ou no.
O conselho do autor, entretanto, “clique em palavras que o
convidem” é um chamado à leitura “criativa”. Tais palavras (words that yeld)
levam a espaços de escrita associados significativamente aos próprios
vocábulos, como em: “I want to say I may have seen my son die this
morning” [I want to say].
Se clicarmos na palavra die, abre-se um segmento [die?], no qual o
narrador reflete sobre a cena que viu, e sua dúvida em relação a serem do
filho e da mulher os corpos estendidos no asfalto.
O leitor estará exercitando sua sensibilidade na escolha de clicar na
palavra que mais o estimular a isto. Trata-se de uma fragmentação do ato
de leitura, além do fracionamento da disposição dos espaços de escrita, ou
seja, uma vez que o leitor escolhe clicar ou não em “palavras que
convidem”, ele pode clicá-las antes mesmo de concluir a leitura do
respectivo espaço de escrita. Isso acontece, por exemplo, naquela leitura
em que a curiosidade a respeito dos links é maior do que a curiosidade
pelos seguimentos da narrativa. O link, desta forma, mais do que em
qualquer outro momento, é o motor da leitura, sendo sua ativação o que
permite o andamento e o movimento da obra.
98
O fato de procurar concretizar continuações não é mais importante
do que conferir as (diversas) possibilidades para tais eventuais conexões. É
justamente nestas ações de “checagem” do destino dos links, que o leitor
incorpora-se como sujeito, que não recebe a informação passivamente,
mas busca o sentido pelas suas próprias escolhas, mesmo que para isso
seja necessário sacrificar nexos causais (ou conexões de significados) num
primeiro momento.
Pode-se questionar, a partir do exposto acima, a eficácia – ou não –
da leitura, entendida como formadora de sentidos, uma vez que não houve
a “conclusão da leitura” do referido espaço de escrita. Barthes escreveu
que “a escrita cria um sentido que as palavras não têm de início” (2004:
8-9), e poderíamos especular de que maneira a leitura de uma hiperficção a
partir do exemplo visto acima, poderia, por sua vez, conferir às palavras um
sentido que vai além daquele colocado pela escritura. Por isso é
fundamental atentar para a leitura como um trajeto de escolhas.
Lembramos de Roland Barthes mais uma vez, quando escreveu:
Nunca lhe aconteceu, ao ler um livro, interromper comfreqüência a leitura, não por desinteresse, mas, ao contrário, porafluxo de idéias, excitações, associações? Numa palavra, nuncalhe aconteceu ler levantando a cabeça? (2004b: 26).
Desrespeitosa e apaixonada, como observava o autor francês, a
leitura que “levanta a cabeça do livro” é também uma leitura de criação. No
caso da leitura que especula sobre o caminho dos links de uma obra de
ficção em hipertexto, clicando em palavras que convidem, e interrompendo
a leitura de determinados espaços de escrita, temos aí não um
impedimento para a concretização do significado do texto, mas a abertura
para a exploração do espaço textual criado pelo autor. Uma vez que as
repetições, no hipertexto de ficção, são constantes, pode-se vislumbrar que
a exclusão da informação de determinado espaço de escrita, num
determinado momento, não determinará a extinção daquele espaço, das
possibilidades de leitura, uma vez que o mesmo poderá repetir-se
99
posteriormente na leitura, já que a volta àquela lexia também é permitida ao
leitor a partir da lista de links.
Também sobre começos e finais, o autor adverte o leitor,
destacando a liberdade em escolher o momento de terminar sua leitura:
“Closure is, as in any fiction, a suspect quality, although here it is made
manifest. When it cycles, or when you tire of the paths, the experience of
reading it ends” [work in progress].
Interessante notar que é do próprio autor a referência ao fluxo da
história poder tornar-se desinteressante. Assim, é estabelecida com o leitor
uma relação de total liberdade – “a leitura termina quando você se cansa
dela”. Sendo assim, a sensação de estar deixando uma leitura incompleta
é, de saída, rechaçada. Cabe ao leitor o total controle sobre o ato de ler.
Ao contrário de fazer uma relação entre história e leitura, entretanto,
o autor ressalta que a história continua, independente da leitura ter sido
interrompida:
Even so, there are likely to be more opportunities thanyou think there are at first. A word which doesn´t yeld the first timeyou read a section may take you elsewhere if you choose it whenyou encounter the section again; and sometimes what seems aloop, like memory, heads off again in another direction [work inprogress].
100
FIGURA 14 A lista de links que partem do espaço [I want to say], deAfternoon, a story, inclusive os guard-fields
E é aqui que o autor alerta para as variadas continuações que
poderão ocorrer conforme a leitura se dê pelos links condicionais (guard-
fields). Os links condicionais, tão logo acessados, mostram ao leitor que ele
se encontra em um ambiente capaz de permitir mais possibilidades de
ramificações da narrativa, já que os seguimentos dados pelo mesmo link
podem levar a diferentes espaços de escrita. Isso será um diferencial na
construção da narrativa e, em Afternoon, a story, encontra sua origem, ao
mesmo tempo que seu apogeu.
4 PATCHWORK GIRL – O HIPERTEXTOCOMO METÁFORA
O importante sobre a metáfora, eu diria, é ser sentidapelo leitor ou pelo ouvinte como uma metáfora24.
Em 1993, aluna de George Landow, Shelley Jackson começou a
escrever Patchwork Girl, em forma de notas soltas no seu computador
portátil. O professor falava de hipertexto e teoria crítica, que já era então
objeto de um livro básico no campo do hipertexto25, e Jackson planejava
escrever um hipertexto, embora sua Patchwork Girl ainda não tivesse
qualquer quadro conceitual definido. O que ela tinha em mente era apenas
uma desordem de idéias, pedaços de narrativa, citações e desenhos, tudo
interconectado, como contou a Mark Amerika, em entrevista à revista
eletrônica alemã Telópolis (maio, 2004). A origem do processo de criação
da autora é significativo: a estrutura da hiperficção surgiu quando encontrou
semelhanças entre as partes e as agrupou. Lugares do texto onde ela via
se contradizer, ou se encontrava indo em duas direções, deram lugar à
formação de estruturas paralelas.
Um dos fatores que serviu de modelo para pelo menos duas partes
de sua história, está no design do programa Storyspace. A autora conta
(idem) que, ao ver as estruturas retangulares dos mapas de visualização,
associava as imagens daqueles pequenos retângulos (Fig. 15) a túmulos
24 BORGES, 2000: 31.25 Hypertext: The convergence of contemporary critical theory and technology, de George P.Landow teve sua primeira edição em 1992.
102
dispostos em um cemitério e, assim, estruturou uma das seções como um
cemitério [graveyard], onde estão enterrados os corpos e suas histórias. Da
mesma forma, os retângulos dentro de retângulos também inspiraram a
autora a construir sua estrutura de colcha de retalhos [quilt], outra parte da
obra.
FIGURA 15 Imagem de um mapa de visualização de Patchwork Girl, comos pequenos retângulos que inspiraram Shelley Jackson
A partir da utilização do hipertexto, de acordo com Jackson, é que
foi possível escrever relacionando fragmentos, erguendo uma estrutura a
partir das próprias características técnicas daquele tipo de texto. O
reconhecimento feito pela autora da influência da materialidade da escrita
na obra, torna patente a importância de se deter neste tipo de característica
para a análise da criação literária em hipertexto. “O hipertexto facilita a
103
colocação das coisas lado a lado, mais do que uma após a outra”
(Telópolis, 2004).
O que a autora define como materialidade, como vimos
anteriormente, diz respeito a características do programa que influem
decisivamente na forma da escrita, tais como a estrutura de links e os
mapas de visualização. Patchwork Girl mostra como estes elementos
específicos do meio hipertextual operam na sua concepção.
Esta obra, como salienta Hayles (2002), anuncia a transição da
primeira para a segunda geração da literatura em hipertexto, tendo o
programa Storyspace como protagonista.
Escrito numa versão diferente do software Storyspaceque Joyce usou para Afternoon, Patchwork emprega a ferramentade formas significativamente diferentes. ... faz conexões entre otexto eletrônico e o corpo fragmentado da monstra. [...] anavegação é visualizada como tomando parte não apenas entrelexias, mas entre imagens e palavras, e mais profundamente entreo texto e o computador que o produz (2002: 37).
Para a autora, Patchwork Girl foi a primeira indicação de como a
literatura pode mudar significativamente, se o corpo literário não é um livro,
mas um computador. Esta hiperficção, escrita por Shelley Jackson e
baseada em Frankenstein, The Modern Prometeus de Mary Shelley, escrita
em 1818, ao mesclar a história de Frankenstein com a digressão teórica
sobre o hipertexto, está auto-refletindo sobre sua própria materialidade, ou
seja, sobre a forma de escrita hipertextual que, em última instância, é o
objeto de que é feita.
Não se pode deixar de levar em conta que a história de
Frankenstein é uma parábola para a era do computador, como lembrou
Bolter (1991: 187), porque ela mantém a ambivalência em relação ao
monstro. Na história de Mary Shelley, observa o autor, o monstro pode ou
não estar além do controle humano, mas certamente ele não é autônomo.
Mais precisamente, o monstro é o alter ego do seu mestre (1991: 187). Aqui
104
está a relação mais profunda e primeira da obra de arte que é Patchwork
Girl com suas características técnicas, oriundas do computador e da escrita
eletrônica que é produzida de e a partir desta máquina. Uma relação que é
a própria metáfora do conteúdo com sua materialidade, ou, por outra, do
sentido com a forma que lhe origina. Patchwork Girl é a metáfora do
hipertexto e do computador, acentuada pela relação do mestre com a
criatura; que também pode-se ver como a ligação da história com sua
estrutura concreto-virtual, dada pelo hipertexto.
Esta hiperficção parece exemplificar bastante bem o que Arlindo
Machado já anunciava, a respeito da obra de arte contemporânea ser uma
epistemologia de si própria: “... o artista pode [...], em circunstâncias nada
excepcionais, exibir-se como aquele para quem fazer arte é o equivalente a
falar sobre a arte” (1974: 4).
A obra se refere à história de Mary Shelley e a histórias de várias
mulheres, construindo uma colcha de retalhos de muitas faces, procurando
ao mesmo tempo construir-se a si mesma, como uma mulher. Melhor seria
dizer, quem sabe, uma criatura-mulher. Como seria esta mulher feita de
fragmentos? Numa série de espaços de escrita denominados [beauty
patches], a autora explica algumas questões que dizem respeito, de saída,
às características técnicas da obra, tais como: “One of the first proposals for
using computer graphics was to assemble a composite of the best features
of various actresses – Garbo’s eyes, Bardot’s mouth, Welch’s breasts...”
[beauty patches].
Nesta mistura de personagens com materialidades, cabe espaço
para as alusões ao mundo feminino, sejam os seus ícones, sejam as partes
de beleza que compõem o todo perfeito buscado pelo feminino, como em:
The Frauenzimmerlexicon listed ‘thirty components of completebeauty, including:
3. a gracious smile
14. small redish ears not standing too far away from the read
105
21. a delicate skin, underlaid with tiny blue veins
22. a long, alabaster neck
[...] [beauty patches].
As metanarrativas são presenças quase constantes, a fazer par com
a história da criatura-monstro-mulher-fragmentada, que reflete sobre sua
própria constituição feita de marcas e cicatrizes, ou ainda, pedaços de ser.
No espaço de escrita denominado [seam’d], aparece:
You may emphasize the presence of the text links byusing a special style, color ou typeface. Or, if you prefer, you canleave needles sticking in the wounds – in the manner of tailors –with thread wrapped around them. Being seam’d with scars wasboth a fact of eighteenth-century life and a metaphor for dissonantinterferences ruining any finely adjusted composition [...] [seam’d].
Não é difícil perceber como Patchwork utiliza-se de sua própria
materialidade com o objetivo de cativar o leitor. Isso pode ser lido em cada
espaço de escrita, onde o hipertexto é a metáfora para a história do próprio
monstro mulher que é o Frankenstein de Shelley Jackson. Vejamos alguns
exemplos:
... But my real skeleton is made of scars: a web that traverses mein three-dimensions. What holds me together is what marks mydispersal. I am most myself in the gaps between my parts, thoughif they sailed away in all directions in a grisly regatta then would benothing left here in my place.
ou
I am made up of a multiplicity of anonymous particles, and have noabsolute boundaries. I am a swarm. ‘Scraps? Did you call mescraps? Is that my name? [self swarm]
ou
I hop from stone to stone and an electronic river washes out myscent in the intervals. I am a discontinuous trace, a dotted line[hop]
ou
… a dotted line demonstrates: even what is discontinuous and inpieces can blaze a trail (excertos de Patchwork Girl, ShelleyJackson, 1992).
106
Impossível deixar de relacionar a metáfora ao suporte material de
escrita que é o hipertexto: partículas, ausência de limites absolutos,
descontinuidade...
A frase “What holds me together is what marks my dispersal” (“O
que me mantém unido é o que marca minha dispersão”) é claramente uma
alusão à própria essência do hipertexto, representada pelo link: ao mesmo
tempo em que aglutina o todo hipertextual pela conexão, o link marca a
dispersão da informação em uma rede multiforme. Tais alusões às
características técnicas como essa, não são mais do que a confirmação de
uma questão que sempre acompanhou o processo artístico: o paradoxo
criação/teoria, como recorda Machado (1974), que encontra sua mais plena
expressão justamente na literatura contemporânea, e a hiperficção não fica
à margem desta preocupação, como se percebe no exemplo de Jackson.
4.1 Engajamento total
Patchwork Girl abre com três janelas sobrepostas, e o espaço
intitulado [her], que pode dar origem a uma leitura, é ilustrado com um
corpo feminino com marcas de divisões, que aparecerá em partes, na
continuação da leitura (Fig. 16). Isso remete o leitor, de saída, ao
personagem principal da obra: uma garota em pedaços.
O convite à leitura é também uma chamada à ligação do leitor com a
obra, como pode se ler no espaço [graveyard]: “I am buried here. You can
ressurect me, but only piecemeal. If you want to see the hole, you will have
to sew me together yourself”.
Vê-se, aqui, a imposição ao aliciamento total na narrativa: se o leitor
quer ver o todo, deverá incorporar a obra junto ao seu próprio corpo. A voz
107
subjetiva que narra a história é a própria idéia de hipertexto, como se verá
nas várias metáforas presentes na obra.
FIGURA 16 O espaço [her], mostrando o corpo marcado com suassegmentações, em Patchwork Girl
4.2 Navegação intermídia
Navegar pela hiperficção Patchwork Girl é um exercício de
exploração de diferentes linguagens dispostas nas várias telas que se
abrem ao leitor. Por exemplo, sob os chamados espaços de escrita, estão
disponíveis mapas de visualização, que também são navegáveis. Assim,
pode-se executar a leitura tanto a partir de espaços textuais, como de
espaços imagéticos, como o espaço [phrenology] (Fig. 17):
108
FIGURA 17 Neste espaço, a ilustração do cérebro tem subdivisõesclicáveis, que levarão a outros espaços de escrita emPatchwork Girl
Aqui, a ilustração de um cérebro, cortado longitudinalmente e
dividido em várias partes, todas com um “nome” específico, convidam o
leitor a escolher trajetos diferentes, a partir de palavras dispostas como
partes do cérebro, como swarm, fog, hopscotch, they, quotes, secrets. Nas
palavras de Hayles (2003), “a navegação se dá, desta forma, não somente
entre lexias, mas entre imagens e palavras, e mais profundamente, entre o
texto e o computador que o produz” (2003: 38). Trata-se de um exemplo
contundente de fusão conceitual entre formas diferentes de representação,
diríamos nós, próprio do que Higgins (1984) definiu como intermídia, que
parece ser uma característica marcante das criações digitais, como vimos
no capítulo dois.
109
Ao mesmo tempo que é um cérebro, dividido em várias partes
navegáveis, a figura denota uma espécie de “mapa”, da mesma forma que
o mapa de visualização. Tal imagem cumpre uma função narrativa, já que
por ela elege-se seguimentos para a leitura, ao optar por algum dos
“pedaços” daquele cérebro, que irão levar a novas leituras da obra.
Narrativa, ela também, intermídia.
Seria esta imagem do cérebro uma metalinguagem? Uma alusão ao
mapa de navegação pela estrutura da hiperficção, neste caso
“personificada” ou configurada na imagem do cérebro? Seria a estrutura da
obra, o seu cérebro? As associações mentais que se dão no cérebro, como
Vannevar Bush um dia exemplificou26, seriam o modelo para os sistemas
de informação que atuam de forma não-hierárquica, como o hipertexto. Se
o mapa de visão do Storyspace mostra os espaços de escrita pelos quais
são compostos e suas destinações, o mapa do cérebro mostra as
seqüências de leitura a partir de palavras e imagens da mesma forma
“clicáveis”.
Ao clicar em sleep, abre-se o espaço [this writing], no qual se lê:
Assembling these patched words in na electronic space, Ifeel half-blind, as if the entire text is within reach, but because mymyopic condition I am only familiar with from dreams, I can seeonly that part most immediately before me, and have no sense ofhow that part relates to the rest. When I open a book I know whereI am, which is restfull. My reading is spatial and even volumetric. Itell myself, I am a third of the way down through a rectangularsolid, I am a quarter of the way down the page, I am here, on thepage, here on this line, here, here, here. But where I am now? Iam in a here and a present momento that has no history and noexpectations for the future.
Aqui, é o próprio autor que se mescla com personagem, e o
personagem, mais uma vez, parece fundir-se com a própria história e ainda,
com a materialidade do que é feito, mais uma vez, e ainda, o hipertexto.
26 No seminal artigo “As we may think”, de 1945 (vide Bibliografia).
110
Vejamos a segunda parte deste espaço de escrita, onde se percebe
claramente tal imbricação entre autor, obra e conteúdo:
Or, rather, history is only a haphazard hopscotch, throughother present moments. How i got from one to the other is unclear.Though I could list my past moments, they would remain discrete(and recombinant in potential if not in fact), hence without shape,without story or with as many stories as I care to put together.
As referências à narrativa são constantes, como em: “We live in the
expectation of traditional narrative progression; we read the first chapter and
begin already to figure out wheter our lives are romantic comedies or high
tragedy, mystery or adventure [...]”.
A história também procura envolver o leitor (ou o interlocutor)
inteiramente, como já havíamos observado, e mesmo comprometê-lo, como
se percebe neste espaço:
Likewise I shall fill the universe to bursting with flesh,flesh, flesh, if I want to. You will all be part of me. You already are;your bodies are already claimed by future generations, auctionedoff piecemeal to the authors of further monsters. These monstersmove among you already, buried in your flesh: sluggishly workingtheir buried limbs, testing their strenght, drawing you together inpremonitions of birth. Your fingers twitch in your sleep. Your heartjumps: na unfammiliar beat. Many monsters, or one: if I am madeof some of you, I could be made of more. If I am large, I could belarger. If it is hard to tell when I was born, I will be born again andagain; if it is hard to tell where I end, I shall continue.
I shall build a palace, a city, a planet of meat.
Uma clara alusão ao leitor, dirigindo-se a ele e à raça humana: o
monstro é feito de partes de cada um e pode também ser engrandecido
pelas partes de todos... há uma relação potencial entre o monstro,
construído de pedaços e as origens desses fragmentos que o compõem.
Cada espaço de escrita é um universo em si mesmo; a narrativa
toma forma de um todo a cada espaço que se abre; sua continuidade, desta
forma, não parece ser tão necessária para a concretização de uma idéia
que se possa atingir pela soma de suas partes; pelo contrário, cada parte
111
não parece ser necessária para que a seguinte se efetive, como se a
navegação não precisasse de, necessariamente, ser realizada dentro para
buscar “sentido”. A história parece fazer sentido a cada espaço; a cada nó.
Como estrelas numa galáxia, cada link tem seu próprio brilho.
A autora assume claramente a metáfora, no link [metaphor me]:
I am a mixed metaphor. Metaphor, meaning somethinglike “bearing across”, is itself a fine metaphor for my condition.Every part of me is linked to other territories alien to it but equallymine. Shin bone connected to the thight bone, thigh boneconnected to the hip bone: borrowed parts, annexed territories. Icannot be reduced, my metaphors are not tautologies, yet I amequally present in both poles of a pair, each end of the wire istethered to one of my limbs.
The metaphorical principle is my true skeleton.
Ler um hipertexto não se constitui em uma leitura no singular, mas
em várias leituras, que irão marcar diferentes momentos da obra. Há
momentos, porém, em que a leitura pára. Não há qualquer possibilidade de
um continuação diferente dos espaços até então percorridos, nem a opção
de clicar no texto, nem a de ir para a lista de links ou clicar no botão back.
Mas o leitor poderá agir buscando outras formas de seguir a
narrativa, não necessariamente a partir dos espaços textuais, mas dos
espaços disponibilizados pela lista de links, pelo botão back, ou pelo mapa
de visualização. Através do mapa, o leitor ativa o espaço [conception] e o
texto continua a mostrar o processo criativo da autora. Este tipo de “acaso”
é o que melhor pode exemplificar a não-linearidade. O leitor estava
seguindo um determinado “padrão” de leitura, clicando e escolhendo
caminhos – de, pelo menos, três maneiras: o clique dentro do espaço
textual; o clique no botão links ou o clique no botão back. Quando, num
jogo de descobrir, o leitor resolve buscar uma outra forma de empreender
sua leitura, através do mapa, sempre disponível na obra, encontra uma
continuidade que parecia esquecida pelo autor da obra.
112
É pelo mapa que leitor descobre uma nova continuação. Ou seja, a
não-linearidade se deu pelas diferentes formas de acessar os espaços de
escrita. No ambiente do hipertexto, essas diferentes maneiras são
marcadamente acentuadas, pois o espaço é fragmentado em várias
janelas, várias opções de seqüência, várias idas e vindas.
Pode-se concluir que tais idas e vindas constatadas na leitura de
Patchwork mostram que há uma não-linearidade em potencial, que pode
ser caracterizada pelas diversas e diferentes ações feitas pelo leitor. Talvez
um termo mais correto seja “multiplicidade”, que pode tipificar uma
mutiplicidade de leituras que seriam potencialmente diferentes entre si, mas
que são possíveis e que, juntas, formam a colcha de retalhos à qual se
refere a autora, uma técnica de “mosaico” da imaginação material. Neste
mesmo espaço, a autora termina com uma pergunta: “não são vocês os
demônios verdadeiros da multiplicidade?”
É no espaço [a single space] que a autora continua a falar sobre seu
processo criativo, desta vez observando a respeito de uma outra
característica do software Storyspace: a opção “explode”. Essa
possibilidade permite que se fragmente um espaço de escrita em múltiplos
pedaços, a critério do autor. Ela não está disponível na hiperficção, apenas
no programa. A autora, porém, observa este aspecto do programa e conta
de que forma ele serviu para o seu processo criativo:
While a single space can contain a large amount of text,most authors will want to split large spaces into more manageableparts. Just add an unusual character where you want each writingspace to end, and choose EXPLODE from the menu. I cut up thequilt, creating a new copy of each paragraph in its own writingspace. The exploded spaces are all created inside a new writingspace, a very-well-shaped girl, which I stuffed with cotton-wadding[a single space].
Não seria demais afirmarmos, após estas leituras, que Patchwork
Girl e a ficção em hipertexto foram feitos um para o outro. Toda a reflexão
da autora, ladeada pela trama ficcional em torno do Franskentein como
113
tema e objeto, apresenta-se perfeitamente em harmonia. Trata-se do
conteúdo perfeito para a forma. Ou seria o contrário?
Patchwork Girl, na sua estratégia de trazer a materialidade para
dentro da narrativa, é um exemplo concreto de que a obra sempre traz a
marca do seu criador; assim como em Frankenstein, a criatura trazia em si
aquele que lhe deu origem. Patchwork mostra que, em hipertexto, o autor e
a obra podem confundir-se a tal ponto, pelo uso das características técnicas
do meio, que ambas as instâncias tornam-se um só ente. Um modelo de
explosão de criatividade.
CONCLUSÃO
O aplicativo Storyspace foi demonstrado pela primeira vez ao
público na primeira conferência da ACM – Association for Computing
Machinery, em novembro de 1987. Apesar desse 17 anos que nos separam
de seu surgimento, no entanto, podemos verificar uma presença
extraordinária deste programa no decorrer do desenvolvimento da pesquisa
e da criação em hipertexto.
Mais do que isso, o Storyspace ainda é objeto de fruição, através de
obras em hipertexto que se transformaram em paradigmas deste tipo de
escrita, e ferramenta auxiliar na pesquisa teórica, como atestam os
exemplos de Mark Amerika e Jay David Bolter, que recentemente
comprovaram sua utilização, como verificamos neste trabalho. Isso acentua
a atualidade e pertinência desta ferramenta no campo da pequisa teórica.
Já no que diz respeito à criação literária, o suporte de uma casa
editorial como a Eastgate Systems, responsável pela sua divulgação e
comercialização, é fundamental para este aplicativo, que conquistou e
ainda ocupa um lugar importante neste campo, sendo objeto de pesquisa e
criação de muitos autores.
A partir deste trabalho, verificamos que o programa Storyspace
apresenta peculiaridades para as narrativas nos meios digitais que podem
ampliar o espectro de utilização desta ferramenta para outros campos da
criação e da produção artística. É nossa intenção, nesse sentido, estender
115
nosso trabalho num futuro próximo, verificando de que forma o Storyspace
pode ser utilizado na criação de roteiros interativos.
Ao longo do deste trabalho, ao mesmo tempo em que examinamos
o aplicativo e as obras objeto desta tese, e em cada contato profissional e
acadêmico que realizamos, que nos propiciaram trocar idéias sobre esta
pesquisa, concluímos que há uma demanda relativa à criação com os
meios digitais que vão além da área da literatura. Estamos falando do que
parece ser uma necessidade premente de encontrar ferramentas que dêem
conta da criação nos chamados meios “interativos”, ou seja, aqueles meios
tradicionais que começam a buscar nos ambientes digitais outras
perspectivas de executabilidade.
Há um interesse crescente do cinema, por exemplo, em estender
sua narrativa tradicional, expandindo-a com as possibilidades da
hipermídia. Neste sentido, nos parece que um aplicativo como o Storyspace
vem ao encontro de preencher esta lacuna. Entendemos que ele pode ser
utilizado na criação de roteiros interativos, cuja ênfase se encontra no leitor
como sujeito executante do trajeto narrativo, e nas bifurcações possíveis
deste trajeto. Da mesma forma, o Storyspace pode ser utilizado
criativamente no roteiro de videogames. Este último, um campo em
expansão tanto em nível criativo, como em nível comercial.
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