Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis
“Territórios Negros” em Florianópolis na primeira metade do século XX1
Karla Leandro Rascke2
Resumo: Este artigo procura compreender aspectos formativos e organizacionais de agremiações de
origem africana em Florianópolis na primeira metade do século XX. Jornais, documentos de
associações formadas por afrodescendentes e entrevistas com antigos membros destas entidades
indicam uma reconfiguração política da cidade e novas formas de vivenciar o público por parte das
culturas de matriz africana. Além disso, percebemos o esforço de diferentes associações (Clubes
Recreativos, Escolas de Samba, Terreiros de Umbanda, Grupos de Cacumbi, Irmandades Católicas,
Clubes de Futebol, Comunidades Negras) para a alfabetização de seus membros ou de grupos
populares empobrecidos, ressaltando que neste período emergiram, no espaço das instâncias
políticas, muitos homens e mulheres de origem africana. Deste modo, busca-se entender como estas
agremiações articulavam solidariedades e sociabilidades das populações afrodescendentes em meio
a nova conjuntura política e cultural de Florianópolis, pautada na reformulação das elites políticas e
nas mudanças de configuração da República, em especial com o Estado Novo.
Palavras-chave: História, Territórios, afrodescendente, agremiações.
Florianópolis e os “territórios negros”
A região central de Florianópolis, localizada nas proximidades do porto, movimentava
grande concentração de trabalhadores do mar que compunham a paisagem daquela área, além
de inúmeros homens e mulheres em diferentes afazeres necessários ao cotidiano citadino.
Centenas de marinheiros, praças da Marinha de Guerra, estivadores, quitandeiras e tantos
outros populares, indicavam um cenário espantoso para as elites do período, visto agrupar
muitos populares de origem africana (CARDOSO; RASCKE, 2014). Tais personagens
constituíam, nos dizeres de Cardoso (2008), grupos sem vínculo com as elites locais, sendo
que “soldados de diferentes corpos militares, imperiais marinheiros, homens do mar de todo o
tipo, estivadores e outros trabalhadores urbanos viviam a protagonizar inúmeras rusgas nas
áreas centrais da cidade” (p. 202), especialmente na região do bairro da Figueira.
Esta região, assim como a Tronqueira e a Toca, eram territórios formados por
populações de origem africana, que compreendiam, nos dizeres de Cardoso e Mortari (1999),
“territórios negros”. Para os autores, com a instalação de serviços de bondes, água e esgoto,
1 O presente trabalho apresenta considerações iniciais relativas ao estudo em andamento desenvolvido em meu doutorado,
sendo o projeto intitulado “Enredos de Agremiações Afrodescendentes em Florianópolis (SC) – 1920 a 1950”, sob a
orientação da profa. Dra. Maria Antonieta Martines Antonacci. 2 Doutoranda em História Social pela PUC-SP, mestrado em História pela PUC-SP, graduação em História pela UDESC.
Atualmente é bolsista CAPES, tutora no curso de Pedagogia EaD da UDESC, professora formadora e coordenadora de
tutoria no curso de Formação de Professores do NEAB-UDESC e atua na secretaria executiva e da Revista da ABPN.
Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis
2
aterros e demolições, foram sendo destruídos estes antigos territórios negros. Lugares como a
Tronqueira (atual Artista Bitencourt, por ironia da história, um dos poucos abolicionistas
populares), a Figueira (na Conselheiro Mafra), Toca (rua São Martinho), Beco do Sujo
(Hercílio Luz), foram sendo eliminados, “a bem da tranquilidade pública”.
Florianópolis era capital administrativa do estado de Santa Catarina, desde os tempos
coloniais, possuindo uma população que, segundo o recenseamento realizado em 1920, era de
41.338 mil habitantes, a sua parte central era habitada por aproximadamente 19.574 mil
habitantes (FELIPPE, 2001, p. 12). Neste período os recenseamentos não destacavam cor/raça
em suas pesquisas, mas a pensar pela quantidade de africanos/as e seus descendentes no
século XIX, estas primeiras décadas do século XX não indicavam uma condição muito
diferente, apesar das muitas expulsões para as regiões mais periféricas, por conta das obras
higienizadoras e modernizadoras.
No século XIX, dados enfatizados por Fernando Henrique Cardoso3, em relação aos
quantitativos populacionais, explicitam a presença das populações de origem africana,
depreendendo-se, destes números, por exemplo, que em 1866 a freguesia de Desterro tinha
4.361 brancos, 1.275 pretos e 838 pardos; em 1872, havia 5.884 brancos, 1.910 pretos e 1.296
pardos. Tais números permitem considerar que a população afrodescendente, nos dois
períodos, chegava, respectivamente, a 32,64% e 35,27% (CARDOSO, 2000, p. 136).
Nas décadas seguintes estes números também foram elevados, considerando-se a
constituição de famílias e a geração de descendentes, bem como, após a Abolição, um
significativo número de descendentes de africanos adentraram em Florianópolis a procura de
melhores opções de vida, constituindo não tanto a região central, mas principalmente seus
entornos, as costas dos morros (MARIA, 1997).
Fazia-se marcante nas ruas e suas esquinas a presença de mulheres e homens
marinheiros, quitandeiras, pombeiros, lavadeiras, carroceiros, aguadeiros, carregadores,
parecendo “tornar escura a face pública da capital catarinense. Estas ruas, mais do que
qualquer outro lugar, deveriam configurar um grande território africano.” (CARDOSO, 2008,
p. 124-125).
3 A obra de Fernando Henrique Cardoso, embora importante no rompimento com uma historiografia catarinense que incluía
as populações de origem africana apenas da perspectiva economicista e, mesmo assim, com participação irrelevante, o
trabalho do autor merece nota. Os dados e as bibliografias utilizadas são extremamente importantes e permitiram novos
estudos e discussões sobre relações raciais e história de africanos/as e seus descendentes em Florianópolis, em especial. No
entanto, Fernando Henrique Cardoso não conseguiu perceber táticas, estratégias e visões de mundo destas populações nos
documentos e informações que analisou. Sua visão prendeu-se aos limites da discussão sobre relações raciais, sem, no
entanto, aprofundar como “os oprimidos” neste processo, atuaram, lutaram e tentaram se impor enquanto sujeitos. (RASCKE,
2013).
Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis
3
Figura 1 – Imagem aproximativa de alguns “territórios negros”
Mapa de Desterro - Localidades de Florianópolis (região central), com destaque para os antigos bairros.
Fonte: Mapa elaborado sob a organização de André Luiz Santos. Disponível em: SANTOS, André Luiz. Do Mar
ao Morro: a geografia histórica da pobreza urbana em Florianópolis. Tese (Doutorado em Geografia) –
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis, 2009, p. 517.
Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis
4
Cosmologia e cosmogonia presente nas populações de origem africana, que ao
entrarem no “novo mundo” a partir do tráfico, trouxeram consigo experiências, expectativas,
visões de mundo que se recriaram e ressignificaram nestes espaços diaspóricos. Percebemos,
no caso dos sujeitos históricos de nossa pesquisa nas agremiações, que o passado e o presente
estão inter-relacionados no pós-Abolição e as mobilizações em torno de educação, a
organização do samba, seus blocos e escolas, além dos movimentos e enlaces dos clubes
recreativos, possuem propostas políticas nas suas dinâmicas, sugerindo emblemas políticos
em suas falas, versos e ritmos.
Estas formas de associações pautaram suas preocupações em diferentes âmbitos,
dentre os quais a educação e os processos de escolarização compunham repertório importante
para a mudança na situação de exclusão das populações de origem africana no pós-Abolição,
importando neste sentido, um distanciamento com a antiga condição cativa, vínculo com a
escravidão passada.
Em se tratando da instalação e legitimação da República e, especialmente, do Governo
Vargas e seus ideais de construção da identidade nacional, ritmos e músicas oriundas de
matrizes culturais africanas foram comprometidas pela ideia de mestiçagem numa proposta de
constituição da nacionalidade4. A cultura vive oscilações, perturbações e a questão
multicultural, no entendimento de Stuart Hall, está no centro do debate sobre identidade
nacional. Cultura, na perspectiva que Stuart Hall propõe nos estudos culturais, é um modo de
vida: “a cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar” (HALL, 2003, p.
44). Para ele, a diáspora produz novas identidades culturais e a intenção é perceber como estas
acontecem, se transformam.
A República, bem como os processos de urbanização e modernização da cidade
também incidiram sobre a preocupação com a educação formal. Neste sentido, para além de
reformar ruas e calçadas, construir uma cidade mais digna de uma capital, constituía tarefa
importante educar, não apenas os filhos das elites, mas os das classes trabalhadoras também.
Neste sentido, de acordo com Dallabrida (2003), os grupos escolares São José e Padre
Anchieta, localizados em regiões periféricas em relação ao centro da cidade, tornaram-se
fundamentais para educar filhos de operários, artesãos, domésticas, estivadores e tantos outros
trabalhadores. Situados no bairro da Figueira e na Agronômica, respectivamente, estes dois
Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis
5
espaços formais de educação indicam que havia uma preocupação com a formação dos mais
pobres (DALLABRIDA, 2003, p. 303-306).
As agremiações pautaram suas preocupações em diferentes âmbitos, dentre os quais a
educação e os processos de escolarização compunham repertório importante para a mudança
na situação de exclusão das populações de origem africana no pós-Abolição, importando
neste sentido, um distanciamento com a antiga condição cativa, vínculo com a escravidão
passada. Assim, não apenas “homens brancos” teriam poder de registro escrito em atas e
prestações de contas de irmandades, associações e clubes, mas homens e mulheres
afrodescendentes, sujeitos atuantes quotidianamente na vida da cidade de Florianópolis,
poderiam expressar pontos de vista e argumentações a partir da escrita, de uma linguagem
formal. Uma linguagem combatente diante das tensões e rearranjos republicanos, neste
período de reformas urbanas, cujos hábitos e marcas nos corpos permeados por códigos
culturais africanos expressavam um passado escravista não condizente com os objetivos da
República.
Irmandades Católicas, Clubes Recreativos, Escolas de Samba, terreiros de Umbanda e
dança do Cacumbi estabeleceram-se enquanto territórios que “ao se constituírem além da
presença dos cidadãos negros também foram resultado das impressões simbólicas deixadas
por aqueles sujeitos históricos de descendência africana” (MARIA, 1997, p. 125),
compartilhando festas, celebrações e encontros comunitários demonstrando que a vida em
comunidade permanecia latente nas vivências destas populações.
Clubes Recreativos e Associação dos Homens de Cor
Os clubes recreativos ou sociedades recreativas eram associações organizadas por
“homens de cor”, uma “elite negra” bem trajada e com propostas de educação, moral e
visibilidade das pessoas que delas participassem. Foram comuns em Florianópolis e em tantos
outros municípios catarinenses com presença de origem africana. Além destes espaços, havia
a circulação de diferentes “homens de letras” de origem africana, como Cruz e Sousa5,
4 Estas ideias foram discutidas pela professora Dra. Martha Abreu na conferência “O legado das canções escravas: histórias
musicais e conflitos raciais no pós-abolição”. In: VI Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional.
Florianópolis: UFSC, 15 a 18 de maio de 2013. 5 Filho dos libertos Guilherme da Cruz, mestre pedreiro, e Carolina Eva da Conceição, João da Cruz. “Em 1881, dirigiu o
jornal Tribuna Popular (...). Em 1883, foi recusado como promotor de Laguna por ser negro. Em 1885 lançou o primeiro
livro, Tropos e Fantasias em parceria com Virgílio Várzea. Cinco anos depois foi para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como
arquivista na Estrada de Ferro Central do Brasil, colaborando também com o jornal Folha Popular. Em fevereiro de 1893,
publica Missal (prosa poética baudelairiana) e em agosto, Broquéis (poesia), dando início ao Simbolismo no Brasil que se
Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis
6
Ildefonso Juvenal6 e Trajano Margarida7, por exemplo, ou de mulheres que se consolidaram
na carreira política e intelectual da época, como Antonieta de Barros8. Juvenal e Margarida,
em 1915, organizaram uma associação para compartilhar “seus sonhos e esperanças”, além de
“vislumbrar o levantamento social, cultural, intelectual e moral dos homens negros”
(DOMINGUES, 2011, p. 118-119). Em comemoração à Abolição, fundaram a Associação dos
Homens de Cor e organizaram um evento no Teatro Álvaro de Carvalho, “reunindo negros e
brancos, homens e mulheres, autoridades públicas, representantes da imprensa e de outras
associações da sociedade civil de Florianópolis” (DOMINGUES, 2011, p. 120).
Os clubes sociais negros ou chamadas sociedades recreativas surgiram no contexto da
vida urbana do início do século XX, momento em que se alteravam as relações que
compunham o tecido social de diversas cidades brasileiras em sua transmutação para
metrópoles (de tipo europeu), sob a influência de discursos urbano-higienistas, em resposta a
situações de exclusão profissional e marginalização social e cultural reforçada após a
Abolição e mantidas nas décadas seguintes.
Social, recreativo, cultural, literário, esportivo, as denominações que secundavam a
razão social dessas instituições variavam de acordo com o propósito da agremiação, não
sendo raro, porém, que uma mesma organização reunisse duas, três ou mesmo todas as
designações acima referidas, condizentes, em muitos casos, com a gama de atividades que
promoviam, variando de piqueniques intermunicipais a chás dançantes, passando pela
organização de recitais literários, concursos de beleza e apresentação de grupos teatrais e
bandas musicais, além dos bailes.
No entendimento de Maria das Graças Maria, pensando os clubes recreativos
organizados em Florianópolis (“Brinca Quem Pode”, Flor da Mocidade e 25 de Dezembro),
estes territórios permitiram a construção de laços de solidariedade e sociabilidades pautadas
estende até 1922.” Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Cruz_e_Sousa; Sobre a inserção de Cruz e Sousa no universo da
escolarização, consultar: SEBRÃO, 2010. 6 Ildefonso Juvenal (1894-1965) era “oficial da Força Pública, farmacêutico, jornalista, teatrólogo, participando de entidades
cívicas e literárias, sendo autor de dezesseis livros”. Consultar: GARCIA, Fábio. Intelectuais negros no pós-abolição:
associativismo negro em Florianópolis (1915-1925). Anais Eletrônicos ANPUH. Fortaleza, 2011. Disponível em:
http://www.snh2011.anpuh.org/site/anaiscomplementares. p. 01. 7 Trajano Margarida (1889- 1946), “amanuense da Secretaria do Interior do Estado de Santa Catarina, professor, jornalista,
educador, autor de diversas obras literárias e membro fundador de entidades cívicas e literárias”. Consultar: GARCIA, 2011,
p. 01. 8 Antonieta de Barros nasceu em Florianópolis em 17 de julho de 1901, exercendo papel político e intelectual importante na
cidade e no estado, tendo sido a primeira mulher a participar da Assembleia Legislativa de Santa Catarina. Foi deputada à
Assembleia Legislativa de Santa Catarina na 1ª legislatura (1935 — 1937), como suplente convocada. Era filiada ao Partido
Liberal Catarinense (PLC), partido criado por um grupo das elites serranas catarinenses, da qual fazia parte Vidal Ramos e
Nereu Ramos. Antonieta também atuou como deputada estadual na 1ª legislatura (1947 — 1951), como suplente convocada,
afiliada ao Partido Social Democrático (PSD), partido nascido em 1945 com apoio de Getúlio Vargas.
Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis
7
na constituição de uma visibilidade positivada, lutas políticas, conquista de prestígio social
das populações de origem africana.
Escolas de Samba: Protegidos da Princesa e Embaixada Copa Lord
A fundação das Escolas de Samba Protegidos da Princesa (1948) e Embaixada Copa
Lord (1955) possibilitou uma nova realidade para as populações de origem africana. Nos anos
1940 e 1950, os espaços de inserção destas populações voltavam-se mais ao mundo do samba
e do carnaval. Se, anteriormente, muitos afrodescendentes tinham sua imagem vinculada aos
casos de polícia, a emergência das escolas de samba permitiu uma visibilidade positiva,
baseada na cultura. No entendimento de Esiaba Irobi, trata-se de pensar as práticas culturais
trazidas por estas populações em suas bagagens, as chamadas “escritas performativas”
(IROBI, 2012). Importa compreender como o corpo constitui “local de múltiplos discursos
para esculpir história, memória, identidade e cultura” (IROBI, 2012, p. 277).
Segundo Cristiana Tramonte, a escola de samba “é uma ação cultural que processa e
organiza as relações sociais, econômicas e políticas da parcela que aí convive no que
convencionamos denominar o ‘Mundo do Samba’” (TRAMONTE, 2001, p. 08). Para a
autora, o samba constituiu e constitui tema de interesse de inúmeros estudiosos na questão da
identidade nacional, “na configuração do que se convencionou denominar cultura nacional”
(TRAMONTE, 2001, p. 13). Discutindo o samba desde sua formação, a autora aponta as
modificações do movimento ao longo do tempo, enquanto era entrudo, depois sua
pomposidade elitista e a mobilização das classes populares em torno do ritmo que as
representava, em especial nas regiões periféricas dos centros urbanos.
Pensando o universo da cultura, as artes africanas e afro-diaspóricas necessitam de um
olhar atencioso. Nas palavras de Muniz Sodré (1998), existe na música africana a chamada
síncopa9, dita como a “batida que falta” e que, necessariamente, produz uma incitação ao
preenchimento dessa espécie de “espaço” temporal existente entre uma marcação e outra.
Segundo o autor, “tanto no jazz quanto no samba, atua de modo especial a síncopa, incitando
o ouvinte a preencher o tempo vazio com a marcação corporal – palmas, meneios, balanços,
dança” (SODRÉ, 1998, p. 11).
9 “Síncopa, sabe-se, é a ausência no compasso da marcação de um tempo (fraco) que, no entanto, repercute noutro mais
forte”; “A síncopa garantia a recriação ou reinvenção dos efeitos específicos dos instrumentos de percussão dos negros”.
SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. 2ª. ed., p. 11; 31.
Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis
8
A síncopa brasileira é rítmico-melódica. Através dela, o escravo – não podendo
manter integralmente a música africana – infiltrou a sua concepção temporal-
cósmico-rítmica nas formas musicais brancas. Era uma tática de falsa submissão: o
negro acatava o sistema tonal europeu, mas ao mesmo tempo o desestabilizava,
ritmicamente, através da síncopa – uma solução de compromisso. (...) A síncopa
garantia a recriação ou reinvenção dos efeitos específicos dos instrumentos de
percussão negros. (SODRÉ, 1998, p. 25; 31)
O corpo, o ouvir, o falar, o cantar, produz movimento e, quando celebrado com vários
corpos, mãos, falares, cantares, recria experiências, reatualiza vivências culturais. Mobilizar o
corpo, a performance, movimenta saberes, modos de vida alterados e ressignificados na
diáspora. Era na festa que grupos culturais ressignificavam suas vidas. A música, as danças,
práticas instrumentais renovavam seus modos de vida, reatualizavam sua energia vital para a
continuação das atividades do restante dos meses. O samba já era primeiras décadas do século
XX um instrumento efetivo de luta para as populações de origem africana no quadro da vida
urbana brasileira.
O Figueirense Futebol Clube
O futebol já era prática em Florianópolis nos anos 1920, e no começo da década
ocorreu a fundação de um clube ainda presente e muito marcante na história da cidade, o
Figueirense. Trajano Margarida, Jorge Albino Ramos [barbeiro], João Savas Siridakis e
Domingos Joaquim Veloso, junto a outros amigos idealizaram a fundação de um clube de
futebol. Ulisses Carlos Tolentino, envolvido com as expectativas do grupo, cedeu “sua
residência que ficava ali próximo da barbearia, exatamente na rua Padre Roma, número 27
para fazer a tão anunciada reunião”. (FELIPPE, 2001, p. 20).
A barbearia de Jorge, situada no bairro da Figueira, era ponto de encontro para
conversas e aspirações sobre futebol e a criação de um clube, sendo ambiente de organização
da reunião a ser celebrada para fundação da agremiação esportiva. Agendou-se então, para 12
de junho de 1921, o encontro decisivo de fundação da agremiação esportiva.
A região da Figueira positivou olhares ao criar um clube de futebol. Bairro depreciado
e sob constantes suspeitas, era espaço de trabalho de “decaídas”10, marinheiros, estivadores e
tantos outros trabalhadores do mar. O Figueirense Foot-Ball Club levantou a autoestima do
“bairro da Figueira, tão depreciado pelas reformas urbanas e pelos discursos dos higienistas
que olhavam aquela localidade com arrogância.” (FELIPPE, 2001, p. 9). A região tão malvista
10 Como eram nomeadas mulheres prostituídas. Consultar: PEREIRA, 2004.
Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis
9
pelas autoridades republicanas e higienistas tornou-se símbolo de um clube de futebol,
agremiação fundada por estivadores, trabalhadores do mar e tantos outros labutadores da
redondeza.
Considerações Finais
Associações, clubes ou grupos possuíam interesses, expectativas e formas diversas de
autodenominação, como de inserção de seus/suas afiliados/as. Em 1948, foi fundada
oficialmente, por afrodescendentes, a Escola de Samba Protegidos da Princesa, existente
ainda hoje em Florianópolis11. Assim como a Irmandade do Rosário, a Escola de Samba
Embaixada Copa Lord, o Clube “Brinca Quem Pode”, o Flor da Mocidade e o 25 de
Dezembro, o Figueirense Futebol Clube constituíam territórios marcados pela presença e
atuação de populações de origem africana em Florianópolis no pós-abolição. Territórios
marcados por códigos culturais de matriz africana e cujos traços envoltos no samba, na
religiosidade e nas expectativas de vida possibilitaram a criação e a consolidação de espaços
múltiplos de vivências, memórias e histórias.
Nossa proposta, nestas breves palavras que foram possíveis expressar na abordagem
aqui evidenciada, remontam a perspectivas pós-coloniais e a produção de saberes que
visibilizem sujeitos e histórias nem sempre presentes em nossos manuais didáticos, em nossas
memórias institucionais... Enfatizamos visualizar homens e mulheres afrodescendentes
enquanto pessoas, sujeitos históricos detentores de sonhos, projetos de vida, experiências e
anseios, muito além do que as elites os rotulavam, para além da ideia de ex-escravos. Deste
modo, nosso papel político, intelectual e ativo pauta-se num mundo “descoberto em outros
céus, outros horizontes”, onde a cultura nunca pode ser simplificada (BHABHA, 2013, p.
258).
Franz Fanon chama atenção ao papel do intelectual na construção de narrativas na
contramão, a partir de restos/resíduos que constituem sinais das existências dos sujeitos
colonizados. É preciso observar o fato de que as vítimas coloniais possuem signos e símbolos
representativos de seus próprios universos culturais. Assim sendo, nosso olhar enquanto
produtores de conhecimento, portanto, intelectuais, deve atentar para a realidade das colônias
(ou antigas colônias) e não se pautar nos desmandos coloniais, ou, “manter-se com a cabeça
11 Para maiores informações, acessar:
http://www.protegidos.com.br/index.php?action=megamod_01&icon=HISTORIA.png&sec=HIST%D3RIA
Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis
10
na metrópole”, pois o “intelectual seduzido pela metrópole” jamais poderá compreender sua
tarefa e seu papel de mudança, de libertação (FANON, 2005).
Necessitamos de novas epistemologias, novos potenciais éticos que cada
conhecimento produz, buscando ouvir as vozes que se pronunciam e que não estamos
habituados a ouvir, pois nossos ouvidos ocidentais não se adaptaram a reconhecer os códigos
culturais enunciados pelos sujeitos históricos ditos como “outros”, refletir sobre sentidos,
expectativas e visões de mundo para além do universo eurocêntrico.
REFERÊNCIAS
ANTONACCI, Antonieta Martines. Memórias Ancoradas em Corpos Negros. São Paulo:
EDUC, 2013.
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. In: Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
CARDOSO, Fernando Henrique & IANNI, Octávio. Cor e Mobilidade Social em
Florianópolis. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1960.
CARDOSO, Fernando Henrique. Negros em Florianópolis: Relações sociais e econômicas.
Florianópolis: Editora Insular, 2000.
CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco. Negros em Desterro: experiências das populações
de origem africana em Florianópolis na segunda metade do século XIX. Itajaí: Casa Aberta,
2008.
___________________. A luta contra a apatia. Estudo sobre a instituição do Movimento
Negro Antirracista Na Cidade De São Paulo (1915-1931). Itajaí: Casa Aberta, 2013.
CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco; RASCKE, Karla Leandro. Figueirense: o Bairro da
Figueira e o nascimento de um Clube. 2014. Texto não-publicado.
CARVALHO, Andréa Cândido De Moraes De. Negros Em Lages: Memória E experiência
de afrodescendentes no planalto catarinense. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso) -
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópolis: UFSC, 2001.
DALLABRIDA, Norberto. A fabricação Escolar das Elites: o Ginásio Catarinense na
Primeira República. Florianópolis: Cidade Futura, 2001.
_____________________. Colméia de virtudes: o Grupo Escolar Arquidiocesano São José e
a (re)produção das classes populares. In: DALLABRIDA, Norberto (Org.). Mosaico de
Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis
11
Escolas: modos de educação em Santa Catarina na Primeira República. Florianópolis: Cidade
Futura, 2003, 281-308.
DOMINGUES, Petrônio. Uma história não contada: negro, racismo e branqueamento em
São Paulo no pós-abolição. São Paulo: Ed. Senac, 2004.
FANON, Franz. Os Condenados da Terra. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2005.
FELIPPE, Fábio. “No coração da torcida”: a fundação do figueirense Foot-Ball Club na
década de 1920. 2001. 50 f. Trabalho de conclusão de Curso (graduação) - Universidade do
Estado de Santa Catarina.
FILHO, Walter Fraga. Encruzilhadas da Liberdade: histórias de escravos e libertos na
Bahia (1870-1910). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006.
GARCIA, Fábio. Negras pretensões: a presença de intelectuais, músicos e poetas negros nos
jornais de Florianópolis e Tijucas no início do século XX. Florianópolis: Umbutu, 2007.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. da
UFMG, 2003.
IROBI, Esiaba. O que eles trouxeram consigo: carnaval e persistência da performance estética
africana na diáspora. Revista Projeto História. São Paulo, n. 44, p. 273-293, jun. 2012, p.
2012.
LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais.
BH/SP, CLACSO, 2005.
MACEDO, Lisandra Barbosa. Ginga, Catarina! Manifestações do samba em Florianópolis
na década de 1930. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade do Estado de Santa
Catarina (UDESC). Florianópolis, 2011.
MARIA, Maria das Graças. “Imagens Invisíveis de Áfricas Presentes”: experiências das
populações negras no cotidiano da cidade de Florianópolis – 1930 a 1940. Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis:
UFSC, 1997.
MARIA, Maria das Graças. “Memória subterrânea: construção das representações de
identidade do negro em Florianópolis”. Esboços, Revista do Programa de Pós-Graduação em
História da UFSC, Florianópolis, vol. 2, n. 2, 1995, pp. 58-69.
MATTOS, Hebe Maria; RIOS, Ana Maria. O pós-abolição como problema histórico:
balanços e perspectivas. Revista TOPOI, v. 5, n. 8, jan-jun. 2004, pp. 170-198.
MATTOS, Regiane Augusto de. História e cultura afro-brasileira. São Paulo: Contexto,
2007.
MORTARI, Claudia; CARDOSO, Paulino de Jesus. Territórios negros em Florianópolis no
século XX. In: BRANCHER, Ana (org.). História de Santa Catarina: estudos
contemporâneos. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1999, p. 83-101.
Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,
11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis
12
MIGNOLO, Walter. Histórias Locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos,
pensamento liminar. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
PEDRO, Joana Maria et al. Negro em terra de branco: escravidão e preconceito em Santa
Catarina no século XIX. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. (Série Documenta – SC; 2).
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Cia das
Letras, 2003.
SANTOS, André Luiz. Do Mar ao Morro: a geografia histórica da pobreza urbana em
Florianópolis. Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Florianópolis, 2009.
SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. 2ª. ed.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010.
THOMPSON, E. P. Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial. In: Costumes em
comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
____________________. O termo ausente: experiência. In: A Miséria da Teoria ou um
planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1981.