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Leia este conto, de Mário de Andrade.
O Peru de Natal
O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida
cinco meses antes, foi de consequências decisivas para a felicidade familiar. Nós
sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade:
gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades
econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser
desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no
medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas
felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira,
coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos
desmancha-prazeres.
Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades
do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente
do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança
dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu
sugerira à mamãe a ideia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram
lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada
pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais
por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer
o bom do morto.
Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a ideia de
fazer uma das minhas chamadas “loucuras”. Essa fora aliás, e desde muito cedo, a
minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os
tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação todos os anos;
desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha,
uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei,
de uma criada de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta
parentagem, a fama conciliatória de “louco”. “É doido, coitado!” falavam. Meus pais
falavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando
exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem
de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me
salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se
O Conto COMPREENDENDO O GÊNERO
CONTO 1
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realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado.
Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um
nada.
Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina:
ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo.
Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa
dos quebra-nozes...), empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se
abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas
“loucuras”:
— Bom, no Natal, quero comer peru.
Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia
solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar
ninguém por causa do luto.
— Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania... Quando é que a
gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda
essa parentada do diabo...
— Meu filho, não fale assim...
— Pois falo, pronto!
E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita, diz-
que vinda de bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o momento pra
desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi a ocasião. Me deu de supetão
uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas duas mães, três com minha irmã,
as três mães que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha
aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de
festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a casa por
causa do peru, das empadinhas e dos doces. Minhas três mães, três dias antes já
não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios
finíssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos
pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do
peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia ainda
provavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo
era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém
sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa.
Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E
havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com
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bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que
havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como aprendera na
casa da Rose, muito minha companheira. [...]
Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num
desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era
loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando
muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a... culpa de seus
desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até
que minha irmã resolveu o consentimento geral:
— É louco mesmo!...
Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem
mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado: assim que me
lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não fizera outra coisa
aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada.
E meus manos também, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos
dominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De modo
que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo
o peito do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da
ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido
numa quase pobreza sem razão.
— Não senhora, corte inteiro! Só eu como tudo isso!
Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em mim,
que até era capaz de comer pouco, só pra que os outros quatro comessem demais.
E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru comido a sós, redescobria em
cada um o que a cotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão
de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus... Naquela casa de
burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um
Deus. O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas.
— Eu que sirvo!
"É louco, mesmo!" pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira
naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e
principiei uma distribuição heroica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja.
Tomei conta logo de um pedaço admirável da “casca”, cheio de gordura e pus no
prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada da mamãe cortou o espaço
angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru:
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— Se lembre de seus manos, Juca!
Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da
Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que
eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime.
— Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não!
Foi quando ela não pode mais com tanta comoção e principiou chorando.
Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou
no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem abrir a
torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo muitos
desaforos pra não chorar também, tinha dezenove anos... Diabo de família besta
que via peru e chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é
que a alegria se tornara impossível. É que o pranto evocara por associação a
imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra
sempre estragar nosso Natal, fiquei danado.
Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A
carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das
farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela
intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de
noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma
incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era
manjar mesmo digno do Jesusinho nascido.
Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que
gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o
partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de
vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa,
insuportavelmente obstruidora.
— Só falta seu pai...
Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que me
interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que
inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que
hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu
pai. Fingi, triste:
— É mesmo... Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de
tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente... (hesitei, mas resolvi
não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em família.
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E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi
diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos
comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se
sacrificara tanto por nós, fora um santo que “vocês, meus filhos, nunca poderão
pagar o que devem a seu pai”, um santo. Papai virara santo, uma contemplação
agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém,
puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador,
completamente vitorioso.
Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever
“felicidade gustativa”, mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um
amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do grande
amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da família,
o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo,
mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra
nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa
que a nossa me é impossível conceber.
Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe fazer
mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos que
uma vez na vida coma peru de verdade!
A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor... Depois
vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra levam o nome de
“bem-casados”. Mas nem mesmo este nome perigoso se associou à lembrança de
meu pai, que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa, em culto puro de
contemplação.
Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas
garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa,
porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica antes de ser Rose,
prometera me esperar com uma champanha. Pra poder sair, menti, falei que ia a
uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia
e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora,
Rose!...
(Mario de Andrade. In: Herberto Sales, org. Antologia escolar de contos
brasileiros. Rio de Janeiro: Ediouro. p. 69-76.)
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Agora, responda.
1. O conto é um texto curto que pertence ao grupo dos gêneros narrativos
ficcionais, como a crônica, a fábula, o relato pessoal. Sua principal característica é ser
condensado, ou seja, apresentar poucas personagens, poucas ações e tempo e espaço
reduzidos.
a) Quais são as personagens envolvidas nessa história?
b) Onde acontecem os fatos narrados?
c) Há, no conto, expressões que indicam o tempo em que se desenrolam as
ações. Que expressões são essas?
d) O tempo de duração dessa história se caracteriza por apresentar fatos
marcados cronologicamente – a ceia de Natal, depois a Missa do Galo – e fatos
rememorados pelo narrador‐personagem. Qual dos dois tempos é decisivo para o
restabelecimento das relações familiares?
2. Do mesmo modo que a crônica, o conto pode ter tanto narrador‐observador
quanto narrador‐personagem. O conto “O peru de Natal” apresenta narrador‐
personagem. Justifique essa afirmação.
3. Enquanto na crônica as personagens são, em geral, mostradas de forma
superficial, no conto elas apresentam maior profundidade de tratamento, o que lhes
confere características psicológicas mais complexas.
a) O conto lido apresenta uma personagem coletiva. Quem é ela e como se
caracteriza?
b) Embora a família vivesse aparentemente feliz, faltavam‐lhe outras coisas.
Quem era responsável por essa “meia” felicidade familiar?
c) Com que expressão, Juca, o narrador‐personagem, resume o caráter do pai?
4. Nos gêneros narrativos, a sequência de fatos que mantêm entre si uma
relação de causa e efeito constitui o enredo. Um dos mais importantes elementos que
compõem o enredo é o conflito. Após ler o quadro abaixo, identifique o conflito do
conto “O peru de Natal”.
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Enredo e conflito Enredo é o conjunto, ou melhor, a sucessão de acontecimentos de uma narrativa de
ficção ou mesmo de um simples fato. É conhecido por muitos nomes: intriga, ação,
trama, história.
Ele é construído obedecendo às leis da causalidade e temporalidade, isto é, cada fato
da história tem uma causa que desencadeia novos fatos, em termos práticos, um fato
anterior causa o que vem depois. Observe a sequência de fatos desta narrativa:
1 – Um homem caminha à noite por uma estrada escura,
2 – seus olhos estão atentos ao menor movimento,
3 – seus ouvidos ao menor ruído,
4 – ele está a muitos quilômetros de sua casa e só conseguirá chegar até lá
caminhando.
5 – A qualquer momento ele poderá ser assaltado.
6 – Na rua não há mais ninguém. Caminha sozinho, tendo por testemunha a luz
da Lua e das estrelas.
7 – Ele tem que chegar a sua casa.
Os fatos 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7 nos dão o enredo da história: um homem (personagem)
que precisa chegar a sua casa. Nesse exemplo, podemos notar com facilidade o
elemento estruturador do enredo: o conflito. No caso, o conflito do homem com o
ambiente.
Sem o conflito não há a história. E mesmo se houvesse uma história, sem conflito,
não despertaria interesse nenhum. Teríamos histórias sem graça porque faltaria a
elas o que lhes dá vida e movimento. O conflito possibilita ao leitor criar expectativa
frente aos fatos do enredo.
Além do conflito que mencionamos (entre o personagem e o ambiente), podemos
encontrar nas narrativas, os conflitos morais, religiosos, econômicos e psicológicos;
este último seria o conflito interior de uma personagem que vive uma crise
emocional.
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A estrutura do enredo
Introdução ou apresentação: geralmente coincide com o começo da história; é o momento em que o narrador apresenta os fatos iniciais, as personagens e, às vezes, o tempo e o espaço. Complicação (ou desenvolvimento): é a parte do enredo em que é desenvolvido o conflito. Clímax é o momento culminante da história, ou seja, aquele de maior tensão, no qual o conflito atinge o seu ponto máximo. Desfecho (ou conclusão): é a solução do conflito, que pode ser surpreendente, trágica, cômica, etc. e corresponde ao final da história.
5. A estrutura do enredo do conto
tradicional convencionalmente apresenta as
seguintes partes: apresentação, complicação,
clímax e desfecho. Leia o boxe lateral para obter
mais informações sobre isso. No conto em estudo,
na ceia de Natal, com o peru completamente
fatiado, Juca toma o lugar da mãe para servi‐lo.
Nesse momento, todos estão tão emocionados
que as mulheres choram.
a) Por que, nesse momento, a tensão
aumenta?
b) Juca queria que a família esquecesse a
figura do pai. Contudo, na luta entre os mortos – o
pai e o peru –, por que Juca toma o partido do pai?
c) Quem vence a “luta”: o pai ou o peru?
6. No desfecho do conto geralmente ocorre a solução do conflito ou uma
revelação para a personagem. A revelação acontece quando um fato ou uma situação
muda o modo de pensar ou agir de uma personagem, levando‐a a romper com
determinados valores, a questionar seu modo de vida, etc. O desfecho do conto lido
apresenta a solução do conflito ou uma revelação? Justifique.
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Os gêneros narrativos ficcionais apresentam, em comum, dois elementos
essenciais: o tempo e o espaço. O tratamento que esses elementos recebem, porém,
varia de um gênero para outro. No romance, por exemplo, tais elementos costumam
ser mais detalhados, tratados com profundidade. No conto, geralmente, são
apresentados de forma mais contida, reduzidos ao essencial.
O padre, o estudante e o caboclo
Há muitos anos, o acaso uniu, na rabeira de uma tropa de mulas que
percorria o interior de Minas Gerais, um padre, um estudante e, a transportar as
malas e os livros dos dois, um caboclo observador. No lento trotar das mulas, sob o
sol do sertão, padre e estudante debatiam sem chegar a qualquer conclusão.
No fim da tarde, estacionaram ao lado de um casebre e pediram licença à
mulher que os atendeu para pernoitar ali, oferecendo poucas moedas em troca de
água, lugar para pendurar as redes e algum alimento. A pobre mulher concordou,
enfiou as moedas rapidamente no bolso da saia e, um minuto depois, trazia aos
hóspedes uma jarra de água e o único alimento existente no casebre: um miserável
pedaço de queijo, que não dava para alimentar um quarto de homem.
Sem saber como dividir o queijo entre os três, o padre, certo de que, com
sua oratória, poderia enganar os outros dois, propôs o seguinte: que dormissem e,
ao amanhecer, aquele que contasse o sonho mais bonito, certamente inspirado por
Deus, ganharia o direito de comer o queijo. Todos concordaram e, cobertos pela
poeira da estrada, foram dormir.
No meio da noite, contudo, ouvindo o padre e o estudante roncarem, o
caboclo levantou da rede, aproximou-se do armarinho em que a mulher guardara o
queijo e o engoliu.
Quando amanheceu, enquanto tomavam o café ralo que a mulher lhes
ofereceu, o padre, que sonhara a noite toda com o queijo, foi o primeiro a relatar
seu sonho. Disse que, auxiliado por anjos, subira por uma escada cheia de enfeites
dourados até o céu. O estudante, por sua vez, contou que, mal havia dormido, já
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CONTO 2
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se encontrou em pleno Paraíso, aguardando pelo padre que, tinha certeza, chegaria
em poucos minutos.
Era a vez do caboclo falar. Com os olhos presos ao chão, numa voz mansa,
ele disse: “Sonhei que via o senhor padre e o moço lá no céu, rodeados dos anjos e
dos santos. E que eu tinha ficado aqui, sozinho e morto de fome. Então, subi no
telhado e gritei com toda força pra vosmecês: ‘E o queijo?! Não vão comer o queijo
pra mó da gente seguir viagem?!’. E vosmecês responderam, felizes da vida: ‘Pode
comê o queijo, caboclo! É todo seu! Aqui no céu não precisamos de queijo!’. Fiquei
tão feliz, e tudo pareceu tão de verdade, que levantei da rede e comi o queijo...”.
Luís da Câmara Cascudo Fonte: http://educacao.uol.com.br/cultura-brasileira/padre-estudante-caboclo.jhtm
Os fatos de uma narrativa relacionam‐se com o tempo em três níveis:
Época em que se passa a história
A época em que se passa a história constitui o pano de fundo para o
enredo. No conto “O padre, o estudante e o caboclo”, a época é a segunda
metade do século passado. Nem sempre a época da história narrada coincide
com o tempo real em que ela foi publicada.
Tempo cronológico
É o tempo que transcorre na ordem natural dos fatos no enredo. É o
tempo ligado ao enredo linear, ou seja, à ordem em que os fatos ocorrem.
Chama‐se cronológico porque pode ser medido em horas, meses, anos,
séculos. No conto “O padre, o estudante e o caboclo”, os fatos acontecem
aproximadamente em dois dias.
Tempo psicológico
É o tempo que transcorre numa ordem determinada pela vontade, pela
memória ou pela imaginação do narrador ou de uma personagem. De acordo
com esse tempo, os fatos podem ou não aparecer em uma ordem linear, isto é,
coincidente com o tempo cronológico.
O TEMPO
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A TÉCNICA DO FLASH‐BACK
Nas narrativas que empregam o tempo psicológico, é muito comum o narrador
lançar mão dessa técnica, que consiste em voltar no tempo. Um célebre exemplo de
flash‐back, em nossa literatura ocorre no romance Memórias Póstumas de Brás Cubas,
de Machado de Assis, em que o tempo presente para o narrador‐personagem Brás
Cubas tem como referência a sua condição de morto. Essa condição lhe permite voltar
ao passado recente – contar como morreu, por exemplo –, e voltar ao passado mais
distante e contar fatos de sua infância e juventude. Veja um trecho:
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo
princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu
nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar
pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar método
diferente: a primeira é que não sou um autor defunto, mas um
defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que
o escrito ficaria assim mais galante e mais novo [...}
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta‐feira
do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi.
Tinha uns sessenta e quatro anos...
(São Paulo: Ática, 1992. p. 17.)
Os fatos de uma narrativa relacionam‐se com o espaço em dois níveis:
O espaço físico ou geográfico
É o lugar onde acontecem os fatos que envolvem as personagens: uma
rua movimentada, uma cidade, um cinema, uma escola, um cômodo de uma
casa etc. O espaço pode ser descrito detalhadamente ou suas características
podem aparecer diluídas na narração. No conto acima, o espaço físico são as
montanhas de Minas e o casebre em que pernoitam.
O ESPAÇO
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O espaço social (ambiente)
É o espaço relativo às condições socioeconômicas, morais e psicológicas
que dizem respeito às personagens. O espaço social situa as personagens na
época, no grupo social e nas condições em que se passa a história. Ele pode,
ainda, refletir os conflitos vividos por elas ou ainda fornecer pistas para o
desfecho. No conto “O padre, o estudante e o caboclo”, o espaço social é
determinante: a condição da mulher que os recebe, a qual, a troco de poucas
moedas, oferece apenas água e um único pedaço minúsculo de queijo.
Leiamos agora este conto de Moacyr Scliar. Procure observar a construção do espaço e do tempo nesta história.
Piquenique
Agora é como um piquenique: estamos no Morro da Viúva, homens, mulheres e
crianças, comemos sanduíches e tomamos água da fonte, límpida e fria. Alguns estão
com os rifles, embora isto seja totalmente dispensável – temos certeza de que nada
nos acontecerá. Já são cinco da tarde, logo anoitecerá e voltaremos às nossas casas.
As crianças brincaram, as mulheres colheram flores, os homens conversaram e
apenas eu – o distraído – fico aqui a rabiscar coisas neste pedaço de papel. Alguns
me olham com um sorriso irônico, outros com ar respeitoso; pouco me importa.
Encostado a uma pedra, um talo de capim entre os dentes, e revólver jogado a um
lado, divirto-me pensando naquilo que os outros evitam pensar: o que terá
acontecido em nossa cidade neste belo dia de abril, que começou de maneira
normal: as lojas abriram às oito, os cachorros latiam na rua principal, as crianças iam
à escola. De repente – eram nove horas – o sino da igreja começou a soar de
maneira insistente: em nossa pequena cidade este é o sinal de alarme, geralmente
usado para incêndios. Em poucos minutos estávamos todos concentrados frente à
igreja e lá estava o delegado – alto, forte, a espingarda na mão.
Ele era novo em nossa cidade; na verdade, nunca tivéramos delegado.
Vivíamos em boa paz, plantando e colhendo nossa soja, as crianças brincando, nós
fazendo piqueniques no campo, eu tendo os meus ataques epilépticos. Um belo dia
acordamos e lá estava ele, parado no meio da rua principal, a espingarda na mão;
esperou que uma pequena multidão se formasse a seu redor, e então anunciou que
fora designado para representante da lei na região. Nós o aceitamos bem; a seu
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pedido, fizemos uma cadeia – uma cadeia pequena mas resistente. Construímo-la
num domingo, todos os cidadãos, num só domingo, e antes que o sol se pusesse
tínhamos colocado o telhado, comemos os sanduíches feitos por nossas mulheres e
bebemos a boa cerveja da terra.
Às seis horas da tarde olhei para o delegado, de pé diante da cadeia, o rosto
avermelhado pelo crepúsculo; naquele momento, tive a certeza de que já o vira
antes, e ia dizer a todos, mas em vez disto soltei um grito, antes que o ar passasse
por minha garganta eu já sabia que seria um grito espantoso e que depois cairia de
boca na rua poeirenta, me debatendo; que as pessoas se afastariam, temerosas de
me tocarem e se contaminarem com minha baba viscosa, e que depois acordaria
sem me recordar de nada. Permaneceria a confusa impressão de já ter visto o
homem alto em algum lugar e isto eu diria ao doutor e o doutor me responderia
que não, que não o vira, que isto era uma sensação comum a epilépticos. Restaria
um dolorimento pelo corpo, um entorpecimento da mente. Então eu sairia ao
campo, e recostado numa pedra, um talo de capim entre os dentes, escreveria ou
rabiscaria coisas várias. Dizem – as pessoas supersticiosas – que tenho o dom da
premonição e que tudo quanto escrevo após uma convulsão é profético; mas
ninguém jamais conseguiu confirmá-lo, pois escrevo e rasgo, rabisco e rasgo. Os
pedacinhos de papel são levados pelo vento, depois caem na terra úmida e
apodrecem.
Agora mesmo, sentado aqui, neste dia de abril, fixo os olhos num pedacinho
de papel amarelado que ficou preso entre as pedras e onde se lê “... no jornal”. É
minha letra, eu sei, mas quando o escrevi? E que queria dizer? Foi há muito tempo,
é certo, mas antes da chegada do delegado? Hoje pela manhã ELE NOS REUNIU
FRENTE À IGREJA: um homem alto, espingarda na mão, falou-nos; lembrou o dia
em que chegara, não há muito tempo. “Aqui cheguei para proteger vocês...” Todos
de pé, imóveis, silenciosos. Mas eu estava sentado; numa cadeira, na calçada do
café, que fica fronteira à igreja. E entregava-me ao meu passatempo: lápis e papel.
Mas não escrevia: desenhava, o que também faço muito bem. Do meu lápis surgiu
o rosto impassível do homem alto. Fui informado há pouco que um grupo de
bandidos se dirige à nossa cidade. Devem chegar aqui dentro de uma hora. Sabem
que a agência bancária está com muito dinheiro... Era verdade: a soja fora
vendida, os colonos haviam feito grandes depósitos durante a semana.
É minha obrigação defendê-los. Entretanto, conto com a ajuda de todos os
cidadãos válidos... Naturalmente, anotei algumas destas frases: senti nelas o peso
do histórico. As pessoas cochichavam entre si, assustadas.
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Vão para casa – concluiu o homem alto. Armem-se e voltem. Espero-os aqui
dentro de meia hora. As pessoas se dispersaram e eu vi rostos apreensivos,
crianças chorosas, as mulheres murmurando aos ouvidos dos maridos.
A praça ficou deserta. Apenas o homem alto parado na praça, o rosto
iluminado de frente pelo sol forte, e eu oculto na sombra projetada pelo toldo do
café. Cinco minutos depois, chegou o primeiro cidadão; era o barbeiro; quando
surgiu na praça eu já sabia o que ele diria; que o delegado o perdoasse, mas que
era chefe de família, tinha muitos filhos; e eu já sabia que o delegado ia desculpá-
lo, recomendando que fosse para o Morro da Viúva com sua família onde estaria
seguro. Mal o barbeiro se fora, e o farmacêutico aparecia, gordo, os olhos
esbugalhados, a testa molhada de suor; que o delegado compreendesse... O
delegado compreendia e também ao dono do bar e ao lojista que surgiram depois.
O último foi o gerente do banco; este tentou levar o delegado consigo, mas foi
repelido brandamente; antes de sair correndo, gritou: Delegado, o cofre está aberto;
se não conseguir atemorizar os ladrões, pelo amor de Deus, entregue o dinheiro e
salve a sua vida! O delegado fez que sim com a cabeça e o homem partiu.
Foi então que o delegado me viu. Creio que só nós dois estávamos na cidade,
à exceção dos cães que farejavam a sarjeta.
O homem alto ficou a me olhar por uns instantes. Depois atravessou a rua a
passos lentos. Postou-se diante de mim, o homem com a espingarda na mão.
— O senhor não tem ajudante — eu disse — sem parar de rabiscar.
— É verdade — ele me respondeu. — Nunca precisei.
— Mas precisa agora.
— Também é verdade.
— Aqui me tem.
Tênue sorriso.
— Tu és doente, meu filho.
— Por isso mesmo — digo-lhe. — Quero provar que sirvo para alguma coisa.
É então que ele vê o retrato em minhas mãos; seu rosto se contrai, ele
avança para mim, arranca-me o papel: — Me dá isto, rapaz, não quero que se
lembrem de mim depois — ele diz, e eu vou protestar, vou dizer que ele não faça
isto, mas aí o seu rosto está diante de mim — onde? onde? — e sinto o grito fugir
do meu peito, e nada mais vejo.
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Quando acordo, estou amarrado a um cavalo que sobe lentamente o morro.
Lá em cima, entre as pedras, toda a população da cidade: desmontaram-me,
espantados, me desamarram; alguns me olham de maneira irônica, outros me
fazem perguntas. Por fim me deixam em paz.
Fico sentado a ouvir o que dizem: o telegrafista está explicando que tentou
mandar um telegrama à guarnição, sem resultado, porém. Na certa, eles cortaram
os fios.
Foi então que os cinco tiros ecoaram nos morros. Levantamo-nos todos,
ficamos inteiriçados, à escuta, um grande silêncio caiu sobre a região.
— Vamos até lá — ouvi a voz, com grande surpresa, pois era a minha própria.
Todos se voltaram para mim. Eu continuava sentado, um talo de capim entre os
dentes.
O gerente do banco se aproximou.
— Está louco? Prometemos voltar quando soassem os sinos ou às seis da tarde!
Não respondo. Fico quieto a rabiscar. O sol vai se pondo agora, e os sinos não
soaram. Estão todos alegres, pois é melhor ficar pobre do que morrer. Breve
desceremos e todos não cabem em si de ansiedade: o que encontraremos em
nossa cidade? Divirto-me pensando no que encontraremos; sei que quando
chegarmos será como se eu já tivesse visto tudo (o que, segundo o doutor, é
comum em minha doença): a rua vazia, as portas do banco escancaradas, o cofre
vazio. Acho também que na estrada, muito longe, vai um homem alto a cavalo,
com os alforjes cheios de notas. Talvez sejam três ou quatro, mas é certo que o
homem alto vai rindo.
(SCLIAR, Moacyr. Histórias Divertidas – Para Gostar de Ler – vol. 13. São Paulo: Ática, 2005)
Agora, responda.
1. A narrativa começa com a frase: “Agora é como um piquenique: estamos no
Morro da Viúva...”
a) A quem se refere o sujeito oculto nós?
b) Quem é o personagem‐narrador incluído neste nós?
c) Com que expressão apositiva ele se define?
2. No conto “Piquenique”, podemos perceber um conflito, ou seja, um fato que
desestabilizou a rotina dos moradores da pequena cidade na manhã do dia em que o
conto está sendo narrado.
a) Qual é este fato?
b) Qual a reação dos moradores a ele?
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3. No segundo parágrafo, o personagem‐narrador apresenta a cidade onde
ocorre a narrativa:
a) Como ele a apresenta?
b) Como ele se apresenta neste contexto?
c) Considerando a descrição da cidadezinha, podemos dizer que há também um
segundo momento de desestabilização da rotina da cidade: qual é?
4. Releia o terceiro parágrafo e responda:
a) “Às seis horas da tarde...” – refere‐se às 18 horas do dia do piquenique do
primeiro parágrafo? Justifique.
b) “naquele momento, tive a certeza de que já o vira antes...” – especifique a
referência do pronome o.
5. Ainda no terceiro parágrafo, há um longo trecho em que há uma descrição
de um ataque epiléptico e da reação das pessoas a ele:
a) O trecho fala de um ataque epiléptico específico, ou seja, que estava
acontecendo naquele momento da narrativa ou dos ataques que o personagem
costumava ter?
b) Que recurso linguístico foi usado para que o leitor fizesse essa interpretação
do ataque?
c) Como as pessoas reagiam a estes ataques?
d) Em relação ao delegado, qual a impressão que o narrador tinha sobre o
home alto e como o médico a interpretava?
e) Após o ataque epiléptico, como o personagem‐narrador se sentia e qual
atitude tomava habitualmente?
6. Volte ao quarto parágrafo:
a) Explicite a referência das palavras destacadas em:
“Agora mesmo, sentado aqui, neste dia de abril, fixo os olhos num
pedacinho de papel amarelado...” e
“Hoje pela manhã ELE NOS REUNIU FRENTE À IGREJA:”
b) Relacione o fato de o papel estar amarelado com a resposta dada na questão
5 letra e acima.
c) No momento em que o delegado discursava para o povo na praça, onde
estava e o que fazia o protagonista do conto?
7. Releia o sétimo e o oitavo parágrafos e conclua como reagiram as pessoas
da cidade à notícia dada pelo delegado e como o delegado reagiu à atitude delas.
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8. Do nono ao décimo nono parágrafos, apresenta‐se a cena do diálogo entre o
protagonista do conto e o antagonista. Releia‐os e responda:
a) O que irritou o delegado?
b) O que há em comum entre esta cena e aquela descrita no início do terceiro
parágrafo?
9. Releia do 20º ao 26º parágrafo:
a) Levante uma hipótese sobre o que aconteceu com o personagem‐narrador
entre o ataque epiléptico iniciado no 19º parágrafo e a sua chegada ao morro.
b) Explicite a interpretação ingênua que a população deu ao fato contrapondo‐
a àquela feita pelo protagonista do conto.
c) O que possibilitou ao protagonista esta interpretação mais realista?
10. Retire de cada parágrafo abaixo um exemplo de que o autor deixou pistas
que antecipavam o final:
a) 3º parágrafo:
b) 4º parágrafo:
c) 7º parágrafo:
d) 21º parágrafo:
11. Discuta a afirmação: no conto lido, além do conflito estabelecido pela
notícia dada pelo delegado, podemos dizer que há outro interno ao personagem‐
narrador.
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Apresentamos, a seguir, o início de dois contos. Escolha um deles e dê continuidade à narrativa.
Trecho 1
As mil injustiças de Fortunato, suportei o melhor que pude; mas quando
ele se aventurou ao insulto, jurei vingança. Os senhores, que tão bem conhecem a
natureza de minha alma, não irão supor, entretanto, que dei vazão a alguma
ameaça. No fim eu teria minha vingança; quanto a isso, decididamente nenhuma
dúvida – mas o próprio caráter decidido da resolução obstava a ideia de risco. Eu
devia não apenas punir, mas também punir com impunidade. Um agravo
permanece sem ser reparado quando a desforra recai sobre o autor da reparação.
Permanece igualmente não reparado quando aquele que se vinga fracassa em se
fazer ver como tal ao que cometeu o agravo.
Fique bem entendido que nem por palavras, nem por atos dei a Fortunato
motivo para duvidar de minhas boas intenções. Continuei, como de costume, a
sorrir em sua presença, e ele não percebeu que meu sorriso agora era como o
pensamento de sua imolação. [...]
(POE, Edgar Allan. Contos de imaginação e mistério. Trad. De
Cássio de A. Leite. São Paulo: Tordesilhas, 2012. p. 133.)
Trecho 2
Entrou às pressas na sala com o vistoso pacote seguro embaixo do braço,
firme e precavidamente afastado do suor. Foi direto ao seu quarto atravessando o
corredor sem mesmo olhar para os lados, subiu na cadeira de escritório que usava
para estudar e escondeu o embrulho em meio ao edredom no alto do armário. Era
verão e este seria utilizado não antes que dali a uns dois meses pelo menos. Seu
coração palpitava e pululavam ideias na sua cabeça, uma ducha de água fria
acalmaria os ânimos. Dirigiu-se ao banheiro social e só saiu de lá com o chamado
para o almoço, era sábado e tinha dezessete anos. Teria uma semana dura pela
frente tramando os últimos detalhes, o mais difícil seria conter a excitação e a
vontade sobre-humana de compartilhar segredos. Ainda bem que era de poucos
amigos. [...]
(CONTE, Naomi. A livraria da esquina e outros contos de
mulheres. São Paulo: Summus Editorial, 2007. p. 35.)
Conto PROPOSTA DE PRODUÇÃO TEXTUAL 1
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Ao produzir seu texto, siga estas orientações: a) Tenha em mente que seu conto será lido por colegas, professores, familiares e
amigos;
b) Antes de escrever, imagine o conflito, ou seja, a situação problemática que as
personagens viverão, e como ocorrerá sua superação. Além disso, planeje a
organização dos fatos, estruturando o enredo em partes (introdução, complicação,
clímax e desfecho) ou encontrando uma maneira de subverter essa estrutura.
Aproveite que a introdução já está feita e capriche nos demais elementos.
c) Ao redigir, empregue a variedade padrão da língua ou outra, dependendo de quem
é o narrador. Faça inicialmente um projeto e, antes de passar seu conto a limpo,
revise‐o cuidadosamente. Refaça o texto quantas vezes achar necessário.
Instruções
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Referência: CEREJA, W. R. , MAGALHAES, T.C. Todos os textos, 8ª série. 2ª Ed. reform. São Paulo: Atual, 2003.
A moça rica
A madrugada era escura nas moitas de mangue, e eu avançava no batelão
velho; remava cansado, com um resto de sono. De longe veio um rincho de cavalo;
depois, numa choça de pescador, junto do morro, tremulou a luz de uma
lamparina.
Aquele rincho de cavalo me fez lembrar a moça que eu encontrara
galopando na praia. Ela era corada, forte. Viera do Rio, sabíamos que era muito
rica, filha de um irmão de um homem de nossa terra. A princípio a olhei com
espanto, quase desgosto: ela usava calças compridas, fazia caçadas, dava tiros,
saía de barco com os pescadores. Mas na segunda noite, quando nos juntamos
todos na casa de Joaquim Pescador, ela cantou; tinha bebido cachaça, como todos
nós, e cantou primeiro uma coisa em inglês, depois o Luar do Sertão e uma canção
antiga que dizia assim: “Esse alguém que logo encanta deve ser alguma santa”. Era
uma canção triste.
Cantando, ela parou de me assustar; cantando, ela deixou que eu a
adorasse com essa adoração súbita, mas tímida, esse fervor confuso da
adolescência – adoração sem esperança, ela devia ter dois anos mais do que eu. E
amaria o rapaz de suéter e sapado de basquete, que costuma ir ao Rio, ou
(murmurava-se) o homem casado, que já tinha ido até à Europa e tinha um
automóvel e uma coleção de espingardas magníficas. Não a mim, com minha pobre
flaubert, não a mim, de calça e camisa, descalço, não a mim, que não sabia lidar
nem com motor de popa, apenas tocar um batelão com meu remo.
Duas semanas depois que ela chegou é que a encontrei na praia solitária; eu
viajava a pé, ela veio galopando a cavalo; vi-a de longe, meu coração bateu
adivinhando quem poderia estar galopando sozinha a cavalo, ao longo da praia, na
manhã fria. Pensei que ela fosse passar me dando apenas um adeus, esse “bom-
dia” que no interior a gente dá a quem encontra; mas parou, o animal resfolegando
e ela respirando forte, com os seios agitados dentro da blusa fina, branca. São as
duas imagens que se gravaram na minha memória, desse encontro: a pela escura e
suada do cavalo e a seda branca da blusa; aquela dupla respiração animal no ar
fino da manhã.
ContoEXEMPLO COMPLEMENTAR
Conto 4
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E saltou, me chamando pelo nome, conversou comigo. Séria, como se eu
fosse um rapaz mais velho do que ela, um homem como os de sua roda, com
calças de “palm-beach”, relógio de pulso. Perguntou coisas sobre peixes; fiquei com
vergonha de não saber quase nada, não sabia os nomes dos peixes que ela dizia,
deviam ser peixes de outros lugares mais importantes, com certeza mais bonitos.
Perguntou se a gente comia aqueles cocos dos coqueirinhos junto da praia – e falou
da minha irmã, que conhecera, quis saber se era verdade que eu nadara desde a
ponta do Boi até perto da lagoa.
De repente me fulminou: “Por que você não gosta de mim? Você me trata
sempre de um modo esquisito...” Respondi, estúpido, com a voz rouca: “Eu não”.
Ela então riu, disse que eu confessara que não gostava mesmo dela, e eu
disse: “Não é isso”. Montou o cavalo, perguntou se eu não queria ir na garupa.
Inventei que precisava passar na casa dos Lisboa. Não insistiu, me deu um adeus
muito alegre; no dia seguinte, foi-se embora.
Agora eu estava ali remando no batelão, para ir no Severone apanhar uns
camarões vivos para isca; e o relincho diante de um cavalo me fez lembrar a moça
bonita e rica. Eu disse comigo – rema, bobalhão! – e fui remando com força, sem
ligar para os respingos de água fria, cada vez com mais força, como se isto
adiantasse alguma coisa.
(BRAGA, Rubem. Os melhores Contos de Rubem Braga. São Paulo: Global, 1985, p. 39-40)
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O texto abaixo é o primeiro capítulo da obra Memórias Póstumas de Brás
Cubas, de Machado de Assis. Leia‐o atentamente:
Memórias Póstumas de Brás Cubas
Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas Memórias Póstumas
Ao leitor
Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores,
coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente
consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem
cinquenta, nem vinte e, quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na
verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um
Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de
pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da
melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a
gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a
gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima
dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.
Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio
é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos
coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito
contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias,
trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás
desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te
agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um
piparote, e adeus. Brás Cubas.
CAPÍTULO 1 Óbito do autor
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo
fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte.
Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me
levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um
autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a
Roteiro de cinema COMPREENDENDO O GÊNERO
Língua Portuguesa – Redação – 1º bimestre
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segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que
também contou a sua morte, não a pôs no introito, mas no cabo: diferença radical
entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de
agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro
anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui
acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não
houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia — peneirava — uma chuvinha
miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da
última hora a intercalar esta engenhosa ideia no discurso que proferiu à beira de
minha cova: — “Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo
que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos
caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu,
aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a
dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um
sublime louvor ao nosso ilustre finado.”
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei.
E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei
para o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço
príncipe, mas pausado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e
aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras,
minha irmã Sabina, casada com o Cotrim, — a filha, um lírio-do-vale, — e...
Tenham paciência! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora.
Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais
do que as parentas. É verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo
que se deixasse rolar pelo chão, convulsa. Nem o meu óbito era coisa altamente
dramática... Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não parece que
reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o que menos
convinha a essa anônima era aparentá-lo. De pé, à cabeceira da cama, com os
olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha
extinção.
— Morto! morto! dizia consigo.
É a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu
desferirem o voo desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos
tempos, — a imaginação dessa senhora também voou por sobre os destroços
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presentes até às ribas de uma África juvenil... Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá
iremos quando eu me restituir aos primeiros anos. Agora, quero morrer
tranquilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos
homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som
estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um
correeiro. Juro-lhes que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que
podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida
estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a
consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e
pedra, e lodo, e coisa nenhuma.
Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do
que uma ideia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me
não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si
mesmo. (Assis, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Fonte: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000167.pdf)
Agora, abaixo você encontrará a primeira parte do roteiro baseado na obra de Machado de Assis. Leia‐o, comparando com o texto original.
Memórias póstumas roteiro de André Klotzel diálogos de José Roberto Torero baseado no livro de Machado de Assis Versão: setembro de 98/II
Todos os Letreiros Iniciais menos o Título.
Termina com o letreiro:
Este filme é dedicado, com saudade, ao verme que primeiro roeu as frias carnes de meu cadáver.
Sequência 1 – int/dia – Fundo Neutro.
O FANTASMA DE BRÁS, num fundo neutro.
FANTASMA: Antes de começarmos a história, é importante prestarmos um esclarecimento ao público. Este não é um filme tradicional. É uma história que comporta alguma liberdade. Foi filmada com o espírito da piada, mas o sentimento da tristeza. O filme não tem um mocinho contra um vilão, nem monstros ou maremotos. Também não é um filme de grande profundidade intelectual e quem quiser alguma
Roteiro de cinema 1
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teoria filosófica poderá ficar frustrado. Assim corro o risco de não agradar ao espectador que só deseja diversão nem ao que deseja pensamentos profundos. Mas se ainda tenho a chance de conquistar a você espectador, a melhor maneira é não explicar muita coisa. Por isso mesmo não importa como eu, um morto, estou contando esta história aqui do outro mundo: a explicação seria muito longa e desnecessária ao entendimento da história. O que importa é que você, espectador, já está assistindo ao filme e agora é tarde para se arrepender.
Letreiro: MEMÓRIAS PÓSTUMAS
Sequência 2 – int/dia – Cemitério. (1869)
Dia chuvoso. Brás Cubas dentro de um caixão.
Fecham o caixão e começa a sair o féretro com umas 10 pessoas acompanhando, guarda‐chuvas abertos. Vemos o rosto de Brás dentro do caixão (câmera dentro do caixão).
FANTASMA: (Off) Algum tempo pensei se a história deveria começar pelo começo ou pelo fim, isto é, se eu contaria antes o meu nascimento ou a minha morte.
O caixão percorre o cemitério e chega a uma cova aberta. VIRGÍLIA em especial destaque durante o percurso.
FANTASMA: (Off) Normalmente se começa a contar uma história pelo nascimento, mas eu resolvi fazer o contrário por dois motivos.
O caixão é posto no solo. Num corte para plano geral, vemos a cena do enterro ao fundo, enquanto o Fantasma de Brás, pálido, fala em primeiro plano.
FANTASMA: O primeiro é que como eu ressuscitei para ser o autor destas memórias, eu não sou um autor defunto, mas um defunto autor. Para mim a sepultura foi outro berço. O segundo é que a história fica renovada e moderna. Moisés, que também contou a sua morte na bíblia, começou pelo nascimento e não pela morte. Aliás, esta é uma diferença radical entre a minha história e a bíblia.
GONÇALVES dá um passo à frente e começa um discurso.
GONÇALVES: A natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo...
FANTASMA (Off) Eu tinha 64 anos bem vividos, era solteiro e tinha dinheiro. Ao bom amigo, que vocês podem ver fazendo o discurso, eu deixei uma bela quantia. Não me arrependo.
GONÇALVES: ...tudo isso é a dor crua e má que lhe rói a natureza as mais íntimas entranhas. Tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.
Sequência 3 – int/dia – Quarto de Brás.
Brás agoniza na cama. Virgília, vestida de preto, com o rosto semi‐encoberto, se destaca em volta do leito, no amplo quarto, onde Brás Cubas vive os últimos momentos.
FANTASMA: (Off) Assistiram a minha partida umas quatro ou cinco pessoas, entre elas uma senhora.
Vemos o médico, o amigo e por fim Virgília.
FANTASMA: (Off) Estavam lá o médico da família, o amigo que viram falando no meu enterro e uma senhora... Daqui a pouco vou dizer quem era a tal senhora, que simplesmente não podia acreditar na minha extinção.
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Brás dá o último suspiro.
VIRGÍLIA: (Suspirando) Morto, morto.
Sequência 4 – int/dia – Várias.
Imagens do Rio de Janeiro de 1870.
FANTASMA: (Off) Morri há mais de cem anos, mais precisamente em 1869, no Rio de Janeiro. Pode‐se dizer que eu morri das ideias, porque minha morte foi decorrência de uma pneumonia que peguei quando ia refrescar as ideias: abri a janela em vez de uma brisa, bateu um vento encanado.
Brás abre a janela da casa. Um forte vento entra. Brás espirra.
Sequência 5 – int/dia – Quarto de Brás.
Leito de morte de Brás. Estamos no momento em que Virgília chega e vai entrar no quarto.
GONÇALVES: A colonização do país precisa de vias férreas. Estamos no momento de dar um grande passo. Um passo custoso, mas firme, em direção ao nosso futuro.
Percebendo a chegada da senhora, Gonçalves, que se encontra à beira do leito, vai terminando a conversa e se afasta.
FANTASMA: (Off) Lembro como se fosse hoje. Ela entrando pela porta, pálida, comovida, vestida de preto. Ficou ali parada, sem ânimo de entrar.
O Fantasma entra em cena e se aproxima de Virgília. Ele é invisível para as pessoas.
FANTASMA: Virgília… Sim, chamava‐se Virgília. Imagine que nos amamos, ela e eu, muitos anos antes. Quem diria, dois grandes namorados, duas paixões sem limites acabam desse jeito: nada mais existia entre nós, ali, vinte anos depois.
Virgília está à beira do leito. Um feixe de luz entra pela janela e a ilumina de maneira quase mágica. Brás na cama reconhece a visita e cumprimenta ligeiramente.
BRÁS: Anda visitando defuntos?
VIRGÍLIA: Ora, defuntos… Ando ver se ponho os vadios para a rua.
O Fantasma de Brás se dirige a nós.
FANTASMA: Mais adiante vou contar a história de Virgília. Antes quero relatar uma coisa inédita. Que eu saiba ninguém descreveu o próprio delírio de morte. Vou fazer isto agora. Sei que a ciência me agradecerá a grande contribuição ao conhecimento humano. Você, espectador, que já se remexe na poltrona, tenha calma. Logo vamos entrar na história propriamente dita.
Brás agonizante na cama.
FANTASMA: (Off) Eu tenho certeza que também você vai achar interessante saber o que aconteceu na minha cabeça durante uns minutos.
Uma senhora que está à beira do leito de morte de Brás, tem uma bíblia na mão.
Brás agonizante, olha a bíblia e faz o sinal da cruz.
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Sequência 6 ‐ Várias.
Num fundo neutro, vemos Brás transformado no livro religioso. Ele faz parte da capa do livro: o rosto e a mão do Santo são suas.
FANTASMA: (Off) Primeiro me senti transformado em suma teológica de São Tomás.
Sequência 7 – int/dia – Casa de Brás.
Brás está de costas deitado com as mãos cruzadas sobre o peito como se fosse um defunto. Virgília se senta na cama e descruza as mãos.
Sequência 8 – Várias.
Brás cavalga um hipopótamo.
FANTASMA: (Off) Depois me vi cavalgando um hipopótamo.
BRÁS: (Com medo, para o hipopótamo) Esta viagem me parece meio boba. Sem destino.
HIPOPÓTAMO: Engana‐se, meu amigo. Nós vamos à origem dos tempos.
BRÁS: Ah! Deve ser muito longe.
O hipopótamo não responde. Brás, visivelmente preocupado, tenta ser delicado.
BRÁS: E vale a pena?
Como o hipopótamo não responde, Brás fecha os olhos, enjoado do galope. Ele sente frio.
O hipopótamo para. O ambiente é todo branco e artificial. Brás começa a caminhar.
O frio intenso. Brás esbarra em volumes que se tornam visíveis à medida que a neve os descobre.
Subitamente percebemos que os volumes são parte de uma fabulosa mulher, a NATUREZA, cujo rosto é uma montanha. Reconhecemos na Natureza as feições de Virgília.
BRÁS: Muito prazer. Como se chama a senhora?
NATUREZA: Por que quer saber?
BRÁS: (Intimidado): Por nada. Curiosidade.
NATUREZA: Pode me chamar de Natureza. Sou tua mãe. E tua inimiga.
Natureza dá uma gargalhada que se transforma em uma imensa ventania.
NATUREZA: Não se assuste; minha inimizade não mata. Você está vivo e eu não quero outra tortura.
BRÁS: (Incrédulo) Vivo? Eu?
NATUREZA: Sim verme, vives. E se voltar a ter consciência um instante, dirás que queres viver ainda mais.
Natureza segura Brás pelos cabelos e ergue‐o à altura de seu rosto. Os pés de Brás batem sem tocar em nada.
NATUREZA: Entendeste?
BRÁS: Não. Nem quero entender. A senhora é absurda. É uma fábula.
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NATUREZA: Tem certeza?
BRÁS: Tenho. A natureza que eu conheço é mãe e não inimiga.
NATUREZA: Não sou boa nem má.
BRÁS: Tu não és vida?
NATUREZA: Sou. Mas também sou a morte. E você está prestes a me devolver o que te emprestei.
Um forte trovão ecoa na paisagem branca.
BRÁS: Dona Natureza, me dá mais alguns anos?
NATUREZA: Você ainda não está enjoado dessa luta toda? O que queres ainda?
BRÁS: Viver, mais nada.
NATUREZA: Não preciso mais de ti.
BRÁS: Acabando com a vida não golpeias a ti mesma?
NATUREZA: Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. Eis o estatuto universal. Sobe e olha.
Natureza atira Brás num morro de neve. No fundo no meio da névoa, uma projeção de filmes antigos (de arquivo ou reconstituição): homem das cavernas, romanos, cavaleiros medievais, etc.
BRÁS: Tem razão. A coisa é divertida e vale a pena. Um pouco monótona talvez, mas vale a pena.
Os filmes continuam: descobrimento do Brasil, época da invenção do cinema, o futuro visto numa simulação de seriado de Flash Gordon ou dos filmes de Meliès.
Uma forte névoa encobre tudo. Brás se vira, mas só pode ver o hipopótamo. Ele mira o hipopótamo que vai diminuindo de tamanho, diminuindo, até ficar do tamanho de um gato. O hipopótamo solta um miado.
Sequência 9 – int/dia – Quarto de Brás.
O gato de Brás mia num canto do quarto. Brás desperta do delírio. Virgília a sua frente.
FANTASMA: (Off) E Virgília estava ali, preocupada ao lado do meu leito de morte, assistindo o meu delírio.
O fantasma novamente em primeiro plano.
FANTASMA: Vou contar a história de Virgília, mas tenham calma, cada coisa a seu tempo. Agora ajeitem‐se em sua poltrona que eu vou começar pelo começo. E vejam com que agilidade, com que arte faço eu a grande passagem de tempo desta estória. Vejam: meu delírio começou na presença de Virgília...
Vemos o rosto de Virgília…
FANTASMA: (Off) Virgília foi o meu grande pecado da juventude; eu disse juventude, e não existe juventude sem infância; com infância já se imagina nascimento.
…o rosto de Brás agonizante…
Fonte: http://www.roteirodecinema.com.br/, acesso em 7/3/2013
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Agora, responda: 1. O texto lido acima é a primeira parte de um roteiro de cinema. Para que
serve um roteiro de cinema?
2. O roteiro é um gênero narrativo, porque conta uma história. Ele apresenta
alguns elementos básicos como enredo, tempo, personagens e espaço. O roteiro
também apresenta, como qualquer gênero específico, uma estrutura própria. O texto
lido está organizado em sequências e há instruções para cada uma delas.
a) Uma filmagem pode ocorrer em um lugar fechado (um estúdio de filmagens,
uma casa real etc.) ou ao ar livre. Quais marcas indicam onde as filmagens ocorrerão?
O que significa cada uma?
b) Além de nomear qual é a sequência e como será a filmagem, quais outras
informações o roteirista indica no título de cada sequência?
3. Quando leu o roteiro acima, você deve ter se lembrado dos textos teatrais
que já leu, como o livro Hamlet, de Shakespeare, ou os textos da apostila do 7º ano.
Esta associação é bastante comum, já que o texto teatral e o roteiro de cinema se
parecem. Ambos não nascem para ser objeto final de leitura do público, mas são
direcionados aos atores e a outros profissionais que trabalham para produzir a peça de
teatro ou o filme.
a) Observe agora que, no roteiro lido, há indicações em letras maiúsculas para
os nomes dos personagens e, em seguida, sua fala. Que tipo de discurso é usado para
reproduzir estas falas (direto, indireto, indireto‐livre)?
b) Entre os trechos em que há falas, há outros (em cor preta) como este:
Brás está de costas deitado com as mãos cruzadas sobre o peito como se fosse um defunto. Virgília se senta na cama e descruza as mãos.
Qual a finalidade destes trechos?
4. Reúna‐se com um colega e, juntos, pensem sobre quais são as
características do roteiro de cinema. Agora, respondam, abaixo.
a) Qual a principal finalidade do gênero?
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b) Quem são os interlocutores, ou seja, quem escreve e para quem se escreve
um roteiro?
c) Apesar de ser escrito para um seleto grupo de pessoas, há um interlocutor
mais importante que não lerá este texto, mas para o qual ele é produzido. Quem é
esse interlocutor?
d) Em que suporte se encontra este texto? E em que suporte sua produção se
dará?
e) Quais os temas dos roteiros?
f) Como é a estrutura deste gênero?
g) Qual a linguagem utilizada?
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Escolha uma das três propostas abaixo:
1ª – Leia o conto a seguir. Depois, transforme o texto lido em um roteiro de
cinema, seguindo as INSTRUÇÕES abaixo.
Natal na barca
Lygia Fagundes Telles
Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só
sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão.
Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna
nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu.
O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira
palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada
entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher
jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto
de uma figura antiga.
Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase
no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra.
Nem combinava mesmo com uma barca tão despojada, tão sem artifícios, a
ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada,
não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio.
Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali
estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos
deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.
A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o. rio.
Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me
mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.
— Tão gelada — estranhei, enxugando a mão.
— Mas de manhã é quente.
Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com um
meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros,
extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas roupas (pobres roupas puídas)
tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade.
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— De manhã esse rio é quente — insistiu ela, me encarando.
— Quente?
— Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de
roupa pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem por
estas bandas?
Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma
outra pergunta:
— Mas a senhora mora aqui perto?
— Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava
que justamente hoje...
A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito.
Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de
cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o
rosto era sereno.
— Seu filho?
— É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu
devia ver um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem mas piorou de
repente. Uma febre, só febre... Mas Deus não vai me abandonar.
— É o caçula?
Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo mas o olhar tinha
a expressão doce.
— É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava
brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A queda não
foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito... Tinha pouco mais de quatro
anos.
Joguei o cigarro na direção do rio e o toco bateu na grade, voltou e veio
rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo
devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente,
embora. Mas vivo.
— E esse? Que idade tem?
— Vai completar um ano. — E, noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro
— Era um menino tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não
saía nada, mas era muito engraçado... A última mágica que fez foi perfeita, vou
voar! disse abrindo os braços. E voou.
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Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade.
Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira
evitá-los até aquele instante. E agora não tinha forças para rompê-los.
— Seu marido está à sua espera?
— Meu marido me abandonou.
Sentei-me e tive vontade de rir. Incrível. Fora uma loucura fazer a primeira
pergunta por que agora não podia mais parar, ah! aquele sistema dos vasos
comunicantes.
— Há muito tempo? Que seu marido...
— Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas tão bem. Foi quando ele
encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou nela fazendo uma brincadeira,
a Bila enfeiou, sabe que de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito? Não
tocou mais no assunto. Uma manhã ele se levantou como todas as manhãs, tomou
café, leu o jornal, brincou com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez
assim com a mão, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus
através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não
gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela no meio... Mas eu estava com a
mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com
minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.
Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível.
Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata
fatos sem ter realmente participado deles. Como se não bastasse a pobreza que
espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, via pairar uma
sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor
revolta, confiante. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos
vivíssimos, aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma certa irritação me fez
andar.
— A senhora é conformada.
— Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.
— Deus — repeti vagamente.
— A senhora não acredita em Deus?
— Acredito — murmurei. E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem
saber por que, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela
segurança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas...
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Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o
esquerdo. E começou com voz quente de paixão:
— Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão
desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando
feito louca, chamando por ele! Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia
brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto
de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava
ficar, se mostrasse só um instante, ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando
fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então
sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha
mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no
jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu
encontro e me beijou tanto, tanto... Era tamanha sua alegria que acordei rindo
também, com o sol batendo em mim.
Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto e em seguida, apenas para
fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei
cair o xale novamente e voltei-me para o rio. O menino estava morto. Entrelacei as
mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a
niná-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto.
Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se
estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou
atrás de mim.
— Estamos chegando — anunciou.
Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que
ela descobrisse, correr para longe daquele horror. Diminuindo a marcha, a barca
fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o
velho que dormia:
— Chegamos!... Ei! chegamos!
Aproximei-me evitando encará-la.
— Acho melhor nos despedirmos aqui — disse atropeladamente, estendendo a
mão.
Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento como se
fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe
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estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a
cabeça do filho.
— Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre.
— Acordou?!
Ela sorriu:
— Veja...
Inclinei-me. A criança abrira os olhos — aqueles olhos que eu vira cerrados
tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei
olhando sem conseguir falar.
— Então, bom Natal! — disse ela, enfiando a sacola no braço.
Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto
resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a com o olhar até que ela
desapareceu na noite.
Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim retomando seu afetuoso
diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda
para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente.
Verde e quente. Texto extraído do livro “Para gostar de ler – Volume 9 – Contos”, Editora Ática – São Paulo, 1984, pág. 67.
2ª – Escolha um dos contos presentes nesta lista. (Peru de Natal; ou O Piquenique; ou O padre, o estudante e o cabloco; ou Moça Rica) e transforme‐o em um roteiro de cinema, seguindo as INSTRUÇÕES abaixo.
Obs.: Escreva no alto da folha qual a proposta escolhida e qual o conto.
Ao produzir seu texto, siga estas orientações: a) Use as indicações, por meio das rubricas, para situar o leitor no espaço, tempo e de
forma a deixar claro quem é o personagem principal. Em seguida, indique como deve
ser representado o fato que desencadeia o conflito. Procure criar uma cena que
prenda a atenção dos leitores/espectadores, afinal trata‐se da primeira cena.
b) Ao escrever os diálogos, indique, através das rubricas, como os personagens devem
agir, falar e quais sensações devem sentir nesses momentos. Você pode usar as falas já
presentes no conto e ainda outras que criar e julgar necessárias. Lembre‐se: no
roteiro, geralmente, não há narrador, ou seja, as informações descritivas serão dadas
Instruções
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pelas imagens ao espectador e as ações, pelas falas e atuações dos personagens
(atores).
c) Informe se a cena é interna ou externa.
d) Não se esqueça de quem é o interlocutor (o espectador, no caso). Tenha‐o sempre
em mente ao produzir um roteiro para um filme.
e) Lembre‐se de que as rubricas devem estar destacadas, além disso, escreva o roteiro
de modo que as informações fiquem destacadas visualmente.
f) Seu texto deve ter, no mínimo, 40 linhas.
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As Melhores Coisas do Mundo
Sequência 09 – dia / ext. / rua – bicicleta mano
Mano vai de bicicleta pela rua em alta velocidade. Leva um violão nas costas. Passa no meio dos carros e ônibus perigosamente. Ele é um virtuose. Pedala desafiando o perigo. Breca num farol vermelho muito perto de um ônibus que passa em velocidade. Close de Mano parado, ofegante (em tele com mancha de veículos passando em velocidade entre ele e câmera).
V.O. MANO: Quando descobri que não existia coelhinho da páscoa nem papai Noel, me senti traído. Mas descobrir que a minha família não existe mais é a pior coisa do mundo.
Mano breca. Ônibus cruza o quadro, quase atropelando sua bicicleta.
Sequência 10 – dia / ext. / rua – ladeira + escadaria do professor de violão
Mano sobe uma ladeira e depois carrega a bicicleta numa escadaria da cidade com violão nas costas.
Sequência 11 – dia / int. / apartamento do professor de violão
Mano toca campainha em frente à porta de apartamento.
Marcelo, professor de violão, abre a porta com cara um pouco azeda.
MARCELO: Você tá atrasado de novo.
Marcelo entra, deixando a porta aberta. Mano entra atrás.
Corta.
Mano faz exercício de violão. Dedilha com raiva.
Professor (Marcelo, 28 anos) olha com fisionomia visivelmente irritada. Marcelo tira o violão da mão de Mano.
MARCELO: Você tá agredindo o violão.
Marcelo encara Mano analisando-o. Mano estranha o olhar dele.
Marcelo pega o próprio violão, que está ao lado, e coloca no colo.
MARCELO: Que tá rolando?
MANO: Nada.
MARCELO: Não quer falar, não fala. (começa a dedilhar uma canção triste)
Marcelo toca um trecho de uma canção triste.
Dá o violão de Mano de volta para ele.
MARCELO: Trata bem. É teu melhor amigo.
Roteiro de cinemaEXEMPLOS COMPLEMENTARES
Roteiro de cinema 2
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Volta a tocar e fala:
MARCELO: Pro teu violão você pode contar o que não conta pra mais ninguém.
Mano olha para o próprio violão, ouvindo o professor tocar, dedilha as cordas sem raiva.
Se eu fosse você
OBS: ESTAS PRIMEIRAS CENAS SERÃO
INTERCALADAS COM AS CARTELAS DE CRÉDITO.
Sequência 1 – dia / int. / quarto
O despertador toca, na mesinha de cabeceira. A
mão de uma mulher aciona a trava. Esta ação é repetida
três ou quatro vezes numa montagem rápida, vista em
ângulos ligeiramente diferentes. O despertador silencia.
HELENA senta-se na cama. Fica alguns segundos com os
braços cruzados, o corpo dobrado sobre os joelhos. Em
seguida, balança a cabeça, espantando o sono e olha para o lado.
CLÁUDIO continua dormindo. Ela tira as cobertas de Cláudio e dá um
cutucão em seu ombro. Cláudio abre o olho com esforço. Helena não diz nada,
apenas vira o despertador para ele e sai do quarto. Reação de Cláudio.
Sequência 2 – dia / int. / quarto de Beatriz
Helena entra. A televisão está ligada. Helena desliga o aparelho e olha um
tempo a filha dormindo. Em seguida se aproxima, senta-se na cama e sopra
levemente no rosto dela. BEATRIZ reage, mas não acorda. Helena sopra
novamente. Beatriz acorda, olha para a mãe com um profundo mau humor e puxa
as cobertas sobre a cabeça.
Sequência 3 – dia / ext. / frente da casa
Cláudio está saindo para o trabalho, apressadíssimo. Na porta de casa,
Helena está colocando mochila em Beatriz. Beatriz está usando um par de rollers.
Cláudio se aproxima delas e as duas viram-se para se despedirem dele, mas
Cláudio estanca, faz um gesto e corre novamente para dentro de casa. Helena
termina de colocar a mochila e Beatriz, começa a patinar, mas Helena a segura pela
mão.
Roteiro de cinema 3
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Com o impulso, Beatriz dá um giro, fazendo uma meia volta e vai parar nos
braços de Helena, que lhe dá um beijo estalado. Beatriz reage negativamente.
Cláudio está saindo outra vez e passa batido pelas duas. Tanto Helena quanto
Beatriz chegam a acenar para ele, mas Cláudio já está de costas, correndo em
direção ao carro. Beatriz, decepcionada, olha o pai se afastar e, num movimento
brusco, coloca os patins em movimento. Helena vê a filha se afastando, por sua
vez. Na calçada, Beatriz passa pelo carro no mesmo momento que Cláudio arranca,
cantando pneus. Beatriz imprime velocidade e desce a rua, as rodas rolando pelo
cimento.
Sequência 4 – dia / int. / agência/corredor
Câmera baixa. Pessoas caminham pelo corredor da agência. Burburinho. Pés
de um casal, que caminha apressado. Começamos a ouvir parte do diálogo. A
câmera corrige, mostrando Cláudio e LÚCIA. Cláudio vai andando com passos
rápidos. Lúcia, sua secretária, tenta acompanhá-lo. A moça está carregada de
papéis e vai esbarrando em outras pessoas no corredor. Cláudio segue impassível.
CLÁUDIO: E o contrato?
LÚCIA: Nenhuma resposta, por enquanto.
CLÁUDIO: Droga! O Dr. Macedo, vem amanhã para a reunião?
LÚCIA: Parece que sim.
CLÁUDIO: Menos mal.
De uma sala, sai um fotógrafo completamente paramentado. Atrás dele um
bando de modelos, lindíssimas. Cláudio passa pelo meio delas, enquanto fala com
Lúcia.
Alguns passos adiante, todas as modelos se voltam para olhar Cláudio. Ele
nem nota e continua seu caminho. Lúcia nota e olha feio para as modelos.
Sequência 5 – dia / int. / agência/sala de Nestor
NESTOR está sentado à sua mesa. Cláudio, agitado, anda de um lado para
outro. MAURÍCIO sentado em uma das cadeiras em frente à mesa de Nestor.
CLÁUDIO: Está tudo certo, Nestor. Não tem problema.
NESTOR: Mas a campanha ainda não foi liberada.
CLÁUDIO: Vai ser. O Macedo está indeciso, porque cliente foi feito pra ficar
indeciso. Mas ele vai acabar se resolvendo.
NESTOR: O que você acha, Maurício?
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MAURÍCIO: (reticente) O Cláudio tem experiência nessas coisas. Se ele
está dizendo...
A resposta de Maurício não chega a entusiasmar Nestor. Cláudio fica meio
sem prumo.
NESTOR: Olha, Cláudio, a gente não pode perder essa campanha. Amanhã
na reunião vê se joga uma conversa no Macedo, explica tudo, faz aquele circo.
CLÁUDIO: Deixa comigo. Eu sou bom de conversa.
Reação de Nestor, pouco convencido. Cláudio olha enviesado para Maurício,
que finge não perceber.