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Ficha de Leitura
O mundo ardente de Siri Hustvedt
Data de publicação: 2014
Grupo de Leitores da Biblioteca Municipal de Carnaxide
Dinamização: Josefina Melo
8 de abril 2019
SINOPSE
Harriet Burden, artista plástica de meia-idade, talentosa e pouco reconhecida, vive
atormentada com a falta de visibilidade do seu trabalho que atribui a ter nascido
mulher. Após a morte do marido, galerista nova-iorquino, inicia um projeto ambicioso
em torno da perceção da sua obra através do uso de três artistas a quem propõem que
exponham as suas peças tornando-se os seus heterónimos vivos, as suas máscaras ou
personas. A história de Harry é-nos contada (a vinte vozes) após a sua morte em 2004,
através dos seus diários e cartas e também de ensaios, textos críticos e entrevistas de
quem com ela conviveu. Cada capítulo funciona como uma peça do puzzle através do
qual vamos construindo e reconstruindo a artista, uma personalidade complexa e
inconformada que têm como referências Kierkegaard, Freud, Sterne Vermeer,
Velásquez, Milton, Emily Dickinson e Pessoa cuja estátua beija, numa visita a Lisboa.
No final fica a pergunta: quem usou quem?
PALAVRAS-CHAVE
ARTE, IDENTIDADE, MISOGENIA, PERCEÇÃO, AMBIGUIDADE, FILOSOFIA,
NEUROCIÊNCIAS
TEMPO E ESPAÇO
1970-2012, Nova Iorque
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PERSONAGENS
HARRIET BURDEN
Alta, olhos grandes e escuros, pescoço largo, ombros quadrados e braços musculados,
guerreira feminista, artista e intelectual cuja obra reflete a sua vasta cultura.
Aos 26 anos casa com Felix que tem quase o dobro da sua idade e dedica as três
décadas seguintes a ele e aos dois filhos.
Após a morte do marido e perseguida pelos fantasmas dele e do seu pai que não a
viram e não a desejaram - começa a trabalhar no projeto Máscaras: o mundo das artes
irá finalmente ver a sua obra e reconhecer o seu talento.
Tal como aconteceu com o seu alter-ego Margaret Cavendish, duquesa de Newcastle,
escritora e pensadora do século XVII, cuja obra tal como a dela foi incompreendida e
desprezada.
FELIX LORD
Dono de uma bela voz, ligeiramente rouca por causa dos cigarros e astuto marchand
de arte e colecionador, o marido e amor da vida de Harry, embora nunca a tenha
amado como ela desejava. A par das obras de arte coleciona amantes de ambos os
sexos. Continua a aparecer à mulher depois de morto em sonhos que a aterrorizam.
MAISIE
A filha de Harry é a mais equilibrada da família. Estudou cinema na NYU e faz
documentários, o último deles sobre a sua mãe. Casou com Oscar que não liga nada à
arte. Têm uma filha, Aven, que tal como a avó em criança, tem um amigo imaginário, a
Rabanete. Partilha com a mãe a obsessão por Ethan, filho e irmão que não conseguem
descortinar.
ETHAN
Olhos grandes, caracóis e desprezo pelas formas convencionais de dividir o mundo
como a mãe, Harry que em criança passava noites em branco com ele a cantar
estranhas canções de Philip Glass enquanto lhe segurava na mão, para acalmar a sua
hipersensibilidade. O Ethan adulto escreve contos e Harry anseia pelos seus sinais de
afeto e por transpor o abismo que os separa.
RACHEL BRIEFMAN
Psiquiatra e psicanalista, amiga de infância de Harry, com quem discutia o projeto dela
durante os chás que tomavam semanalmente.
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ANTON TISCH
Alto e de grandes e inquietos olhos castanhos a primeira das personas utilizadas por
Harry, causou furor na Galeria Clarck, em 1998, com a instalação A história da arte
ocidental. Sofre um processo de despersonalização após a exposição e não se
reconhecendo quando se olha ao espelho e acusa-a de ter perdido a sua pureza
durante a experiência. Desaparece de cena depois desta exposição única.
PHINEAS ELDRIDGE
A segunda persona de Harriet trouxe o seu próprio charme para instalação Os quartos
da asfixia. Pitosga, mulato e queer, ao contrário de Anton adorou ter participado no
projeto. Nasceu John Whittier magricela, frágil e sardento e até aos 13 anos sofreu de
ataques de epilepsia. Filho de mãe negra e pai branco encontra Deus na adolescência e
Harry alguns anos depois e juntos criam a cumplicidade perfeita.
RUNE
A última das personas e a principal, ao contrário das outras duas, já era uma
celebridade das artes e as suas cruzes eram vendidas por milhões de dólares.
Inicialmente Harry vê nele alguém que a compreende e reconhece. Um metro e
noventa, louro, olhos de um azul-claro e feições finas e belas herdadas da mãe, Miss
Quinta do Iowa, e bêbeda sentimental de vodka, que morre com uma combinação letal
de álcool e comprimidos para dormir.
Provocante e irónico reivindicou como sua a instalação Debaixo, feita por Harry para
ele.
BRUNO KLEIFELD
Judeu temperamental, poeta do Bronx, três casamentos, três filhas e um poema
colossal que escreve há 25 anos. A caminho dos sessenta já com grandes entradas e
bochechas descaídas entra na vida de Harry numa tarde de luminosidade fatídica e
nela permanecerá até ao final, amando-a como ninguém a tinha amado. Tinha o dom
de saber como a amar.
OSWALD CASE
Autor da biografia de Rune Martirizado pela arte. Conhecido por Traça, devido às
técnicas astutas a que recorria para conseguir descobrir os podres dos ricos e famosos,
dedica-se mais tarde ao jornalismo de investigação.
ALAN DUDEK, O BARÓMETRO
Artista psicótico e paranoico, passou muito tempo em hospitais psiquiátricos até ser
acolhido por Harry em sua casa, a estalagem de Red Hook. A mãe morreu esmagada
dentro duma caravana por um tornado e pouco mais de uma década depois Alan,
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transforma-se no Barómetro, o homem que sente os movimentos do clima através do
seu sistema nervoso extraordinário e tremendamente frágil.
DOCE OUTONO PINKNEY
Amiga de Anton, com o dom de ler auras, chega a Red Hook com um cão rafeiro e um
saco cheio de pedras e conchas curandeiras, quando Harry está próxima da morte.
KIRSTEN LARSEN SMITH
Sombra da infância de Rune, o irmão quatro anos mais velho. Sofre um acidente grave
acidente de automóvel que lhe desfigura o rosto e determina a sua profissão: técnica
craniofacial. Inspirado nas seis operações plásticas que lhe devolveram um rosto, Rune
cria a instalação A banalidade do Glamour.
Excertos
Durante anos, mordi tanto a língua para não falar que quase a engoli. (p. 24)
E a seguir, depois dos boas noites e dos olhares sobre a ementa de cartolina e do
pedido do empregado que diz que se chama Roy ou Ramon, em suma depois de todas
as banalidades constrangidas que têm lugar quando dois desconhecidos embarquem
nessa viagem conhecida como «ir jantar fora», os deuses ou os anjos ou as fadas ou as
estrelas de cinema - uns quaisquer desses seres divinos irreais em que todos
acreditamos mais ou menos quando nos convém - bafejaram-nos enquanto
passávamos suavemente de saladas de folhas tenras para um prato de galinha que
ambos pedimos, um pouco seco, com cogumelos. Mas enquanto estávamos a ingerir a
ave de capoeira ressequida, aconteceu outra vez: o Bruno oficial apareceu novamente
de rompante, triunfal, para seduzir a Senhora dos Casacos, que o seduziu por sua vez,
porque era divertida, e inteligente e oblíqua, também, fazendo comentários arcanos
que nem o Bruno verdadeiro e autêntico conseguia deslindar, mas que o deixavam
terrivelmente curioso e, quando a senhora respirava, os seios respiravam com ela, e ele
teve de fechar os olhos umas poucas de vezes para manter a cabeça no lugar.
Penso que ela levava diamantes nas orelhas e sei que havia perfume no ambiente geral
da mesa a pairar no ar e a entrar-me pelas narinas dentro, um aroma que ela disse ter
sido criado por Napoleão, zé-ninguém conquistador da Europa, para uma das suas
mulheres, Josephine. Ele teve duas, uma a menos do que eu. O sacana arrogante disse
uma vez: «Eu sou a revolução». Pois naquela noite, teve início a revolução de Bruno
Kleinfeld e eu sabia que tinha de a levar até ao fim, senão viveria para todo o sempre
como um Estado dividido.
Escutei-a. Não estou a ser cínico, quando digo que esta é primeira regra da sedução.
Não existe sedução sem uns grandes ouvidos atentos. (p. 105)
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Apesar dos seus medos do exterior, a Harry era livre por dentro. Acreditava na sua
raiva e fúria e expelia a arte de dentro de si como recém-nascidos molhados e
ensanguentados. (p. 211)
O que Harry queria dizer era o seguinte: éramos nós uma só pessoa ou seríamos, todos
nós, várias? Não inventavam os atores e autores personagens para ganharem o seu
sustento? De onde vinham essas pessoas? (p. 313)
Apetecia-me morder o mundo até fazer sangue, mas mordi a mim própria, fiz a minha
própria tragediazinha da vida. (p. 421)
NOTA BIOGRÁFICA SOBRE A AUTORA
Com ascendência norueguesa, a escritora e ensaísta Siri Hustvedt, nasceu e cresceu
nos Estados Unidos e vive em Brooklyn, Nova Iorque, com o escritor Paul Auster:
celebram 38 anos de casamento, em junho.
Doutorou-se em Literatura Inglesa, na universidade de Columbia, e experimentou
vários ofícios, desde empregada de bar a assistente de investigação médica. Decidiu
ser escritora aos 13 anos. Aos 64, é uma best seller premiada, na ficção e não ficção,
com ensaios, palestras e artigos sobre filosofia, arte e neuropsicanálise.
Esta área levou a envolver-se ativamente em grupos de investigação académica e a
participar em conferências sobre a consciência, como a realizada em 2011, em Berlim,
ao lado do neurocientista António Damásio.
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OUTROS TÍTULOS NAS BIBLIOTECAS DE OEIRAS
Elegia para um americano (2009)
Aquilo que eu amava (2005)
Fantasias de uma mulher (1999)
De olhos vendados (1995)
ENTREVISTAS E RECENSÕES
Isabel Lucas no Ípsilon
https://www.publico.pt/2014/09/12/culturaipsilon/critica/o-sexo-da-arte-1669245
CRÍTICA LIVROS
O sexo da arte
Em O Mundo Ardente, Siri Hustvedt cria um universo ambicioso num livro que cruza
ensaio e intriga de forma eficaz
O Mundo Ardente 4,0 estrelas
Isabel Lucas 12 de Setembro de 2014, 2:19
“Os começos são enigmas”, lê-se já o livro vai com umas dezenas de páginas. E, pelo
começo, mesmo sabendo do enigma, esta podia ser uma obra de histeria. Uma mulher
zangada com o modo como a sua condição feminina a minimiza no mundo das artes e
que decide criar um embuste para provar que tem talento. Mais do que isso: que a
ideia de talento não está isenta de uma avaliação de género. “A celebridade não é o
que fazemos. É estarmos em cena, é sermos a cena…” E, em cena, a identidade é a do
performer num jogo que pouco tem que ver com verdade. A verdade é a da obra onde
o autor se pode esconder se for capaz de manter o jogo. “E se eu inventasse um artista
que fosse todo ele crítica de arte, texto de catálogo, e nenhuma obra?”, desafia-se a
mulher que se quer vingar num mundo onde até à meia idade não foi capaz de ser a
celebridade em palco por questões que, acredita, têm menos que ver com a qualidade
do que faz do que com o facto de ser mulher. A primeira frase poderia sustentar esse
sentimento de histeria a comadar o resto: “Todo o trabalho intelectual e artístico,
incluindo as piadas, ironias e sátiras, tem mais sucesso na mente da multidão, quando
a multidão sabe que, algures por detrás da grande obra, ou do grande embuste, se
encontra uma pila e um par de tomates.” É uma frase-grito de Harriet Burden, mulher,
artista plástica, antes de se decidir pela máscara para ser “a cena” e começar a
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apresentar as suas obras com a assinatura de três homens, três artistas plásticos com
biografias distintas que lhe permitem desenvolver a sua visão da arte e da identidade,
dentro e fora desse universo.
De forma simplista, é este o conceito de partida de O Mundo Ardente, sexto romance
da norte-americana de origem norueguesa Siri Hustvedt (n. 1955), um livro que
atravessa os interesses da escritora: a literatura, a arte, a filosofia, as neuro-ciências
trabalhados enquanto fundamento dessa ideia de máscara, num universo, que, sabe
ela, a sinceridade pode ser um problema para a afirmação pessoal.
O retrato de Harriet Burden é apresentado depois da morte da artista, em 2004,
através de diários e cartas da própria Harriet, com ensaios, textos críticos, entrevistas e
testemunhos recolhidos junto de quem conviveu com ela. O romance nasce desta
conjugação de discursos, múltiplas vozes, que a escritora gere de forma eficaz. A
começar pela do editor desse texto maior, alguém com o nome de I.V. Hess, um
professor de estética que é informado do grande projecto de vida de Harriet através
de uma carta. O objectivo dela, soube ele, era não só expor o preconceito contra as
mulheres que existia no mundo das artes, mas também desvendar os complexos
mecanismos da percepção humana e o modo como ideias inconscientes sobre o sexo,
a raça e a celebridade de um indivíduo influenciam a forma como um espectador
compreende uma determinada obra de arte”.
O projecto é ambicioso. O de Harriet, a personagem, e o de Siri, a escritora. O romance
poderia resultar numa chusma de ideias feitas e boas frases para citar sobre um tema
nada original à volta de um equilibrismo ou paródia de identidades. Mas, na tragédia
de Harriet, Siri consegue superar-se naquele que é o seu melhor livro, um exercício
onde conjuga emoção e ensaio numa intriga onde não falta suspense e a dimensão
humana — conferida por boas doses de ironia e pathos — capaz de transformar uma
personagem de ficção em “alguém” tridimensional que se ama, ou odeia. E Harriet não
é fácil de ser amada pelo leitor.
Fisicamente, ela está próxima da caricatura. Um metro e 88, mamas grandes, uma
“omnívora movida por uma fome infinita, o desejo de devorar o máximo de
conhecimentos que lhe fosse possível”, uma rapariga que queria ser artista e se casou
aos 24 anos com um poderoso negociante de arte de Nova Iorque e se tornou a sua
mulher extremada, anfitriã de festas na casa de Park Avenue, e mãe de duas crianças,
que se dedicou à casa e cujo trabalho artístico passou a ser olhado como o hobby
caprichoso da mulher de um caçador de artistas. Foi quando ele morreu que Harriet
decidiu entrar em cena criando heterónimos para os seus trabalhos. Três homens
passaram a assinar as suas peças. Entre 1998 e 2003 organizou exposições e em todas
surgia atrás de um nome masculino. Anton Tish, o jovem bem-parecido e cobiçado
pelas câmaras; o gay mulato Phineas Q. Eldridge, e o Rune, o representante do que se
pode chamar a essência masculina. “Cada artista-máscara tornava-se para Burden uma
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‘personalidade poetizada’, que não pertencia nem a ela nem à máscara e sim a ‘uma
realidade mista criada entre ambos’”, escreve Richard Brickman, o autor da carta que
seduz o professor Hess para o projecto de Burden. Um projecto que cruza ate e ciência
e serve a Siri Hustvedt para esgrimir ideias e referências que vem coleccionado. Soren
Kierkgaard e Fernando Pessoa enquanto testemunhos de bons executantes de “vozes
múltiplas”, mas também há Freud, Sterne Vermeer ou Velázquez, Milton ou Emily
Dickinson como figuras formadoras de uma personalidade inconformada e em luta
contra o tempo.
Harriet Burden é uma muito boa ideia de Siri Hustvedt. Talvez uma protagonista à
medida da ambição da escritora, com muito de autobiografia nos interesses e
motivações num livro extenso (463 páginas) na edição portuguesa onde há a apontar,
por vezes, um excesso de zelo para que tudo funcione quase de forma científica.
Mesmo o erro, num jogo onde, adivinha-se à partida, o corpo nunca é alheio à obra
que cria.
Entrevista na Visão
http://visao.sapo.pt/actualidade/sociedade/a-cultura-ocidental-insiste-em-associar-a-
masculinidade-a-mente-e-a-feminilidade-ao-corpo=f783630
A escritora e ensaísta americana Siri Hustvedt desafia-nos a mergulhar no fascinante
mundo da complexidade humana, ambígua por natureza, sem medos nem barreiras,
incluindo as de género.
Todo o trabalho intelectual e artístico tem mais sucesso na mente da multidão, quando
a multidão sabe que, algures por detrás da grande obra, ou do grande embuste, se
encontra uma pila e um par de tomates." Palavras de Harriet Burden, a personagem
central de Mundo Ardente (ed. Dom Quixote, 463 págs., €22,90). O sexto romance de
Siri Hustvedt conduz os leitores ao universo de uma artista plástica que, menosprezada
no meio intelectual nova-iorquino, põe em marcha um plano arrojado: oculta a
identidade e esconde-se por detrás de três homens que assinam e expõem o seu
trabalho, com o intuito de desmontar preconceitos vigentes.
Deixemos agora o alter ego da autora e passemos à própria, com quem a VISÃO
conversou no Bairro Alto Hotel, em Lisboa. As calças de fazenda, os sapatos de salto
raso e a ausência de acessórios conferem-lhe um estilo casual chic e realçam o seu
porte alto, magro e, aparentemente, frágil. "Não quero que isto soe como banal, mas
gosto muito de cá estar", admitiu, no final da entrevista.
Quando vem a Portugal, sente-se em casa (a última vez foi em novembro, para o
Lisbon & Estoril Festival, acompanhada pelo marido, o escritor Paul Auster, e a filha, a
cantora Sophie Auster): "Os portugueses têm bom coração, não são nervosos,
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desagradáveis e competitivos." Ao longo de 40 minutos e sem papas na língua, contou-
nos o que pensa de mundos que conhece bem.
Arte. Escrita. Neurociência. Psicanálise.
Temas recorrentes nos seus livros, onde coabitam múltiplas vozes, de forma tão fluida
quanto ambígua, por ser assim, acrescenta, "que tocamos a profundidade das coisas".
Por trás de um grande homem está sempre uma grande mulher. É este o seu lema?
Quando escrevo, mergulho nas personagens e torno-me nos seus múltiplos eus.
Associar um nome masculino a uma criação artística, realça-a. Se a autoria for
feminina, denigre-a. Não tenho dúvidas de que isto existe e está longe de acabar.
Numa assinatura, as iniciais são uma maneira de esbater o género.
As suas heroínas, ou alter egos, refletem isso?
Escrevi duas vezes como homem. No primeiro romance, Iris (anagrama de Siri) veste-
se de homem, é a armadura dela. Em Elegia para um americano, Burton veste-se de
mulher e o narrador descreve-o como um homem que está a voltar a si. Os meus livros
estão cheios de transformismo (vestir-se como sendo do sexo oposto). Esta é a
primeira vez que a história é contada através de vinte vozes.
As heroínas submissas continuam em alta. Basta lembrar o estrondoso sucesso de As
Cinquenta Sombras de Grey.
[Altera a expressão e faz uma pausa, antes de responder] O sucesso dessa obra está
além da minha compreensão! Neste livro quis criar uma personagem colossal. Um
monstro, não no sentido de Frankenstein, antes alguém que não cabe em nenhuma
categoria. Harriet (ou Harry) foi antecedida por Margaret Cavendish, a poetisa,
encenadora e filósofa naturalista do século XVII, com quem a personagem se identifica,
e que foi praticamente rejeitada no seu tempo.
Se vivesse noutro tempo, seria não um monstro mas uma bruxa destinada à fogueira.
No ensaio O Meu Pai/Eu Mesma menciono a relação entre a Bruxa e Joana d'Arc, feita
pela antropóloga Mary Douglas. Há um momento [em O Mundo Ardente] em que
Harriet diz: "Na vizinhança chamam-me bruxa. Eu aceito."
Lançou a sua obra no atelier de Joana Vasconcelos, o que vê na obra dela?
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Gosto particularmente das peças em que usa o croché, muito feminino. Há muita
coragem no que ela faz.
Teve um irmão imaginário e fantasiava ser rapaz. Ser mulher ainda é como usar
corpete?
[Sorriso enigmático] Surpreende-me como é que a cultura ocidental insiste em associar
a masculinidade à mente e a feminilidade ao corpo, na vida pública, doméstica,
emocional e pessoal. Não acredito na visão cartesiana, que separa corpo e mente.
Como lidou com isso, durante o longo processo de tratamento da enxaqueca e das
convulsões com causa indefinida, após a morte do seu pai?
É um problema crónico que controlo relativamente bem. Aprendi exercícios de
relaxamento profundo, para aliviar a dor. As auras são interessantes e não me importo
de tê-las. Creio que o envelhecimento e as mudanças hormonais tiveram um efeito
positivo nas dores de cabeça. Durante muito tempo eu fui controlada por convulsões,
tive uns cinco episódios. A minha neurologista leu A Mulher Trémula ou Uma História
dos Meus Nervos (não ficção, 2010), concorda comigo: os diagnósticos foram sempre
ambíguos.
Ambiguidade é um termo presente em todas as suas obras. Que valor tem para si?
É o meu chamamento estético e intelectual. Acredito que a complexidade da natureza
humana não cabe num único modelo teórico e situa-se em zonas focadas de
ambiguidade. O mesmo problema é visto de múltiplas perspetivas e não há uma só
resposta, é fascinante.
A psicanálise e a neurociência marcam presença constante no seu trabalho. Porquê?
Sempre me interessei por descobrir como é que as pessoas se tornam, a cada
momento, naquilo que são e estes campos lidam com a expressão do Eu.
E consegue dar conta de tudo o que lê e investiga, sem se esgotar?
A memória guarda o que é emocionalmente significativo, por isso não esqueço.
Consigo assimilar muita coisa e aprender bastante, porque tenho a sorte de poder
passar a maior parte do meu tempo a escrever e a ler em casa. Faço-o durante seis
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horas e, depois de uma pausa, leio quatro horas à noite. Exercito o corpo quatro vezes
por semana com um profissional, vou às compras, faço jardinagem.
"Só vemos a arte quando ela nos altera emocionalmente." Quer explicar?
Não existe uma definição consensual do que é a arte. Ela força o espetador, o leitor ou
o ouvinte a reconhecer qualidades maravilhosas na existência mundana. É o caso da
pintura de Vermeer, Leitora à Janela: sinto-me transportada. Ele tem a capacidade de
tornar uma coisa banal numa realidade transcendente.
A arte é sempre uma dádiva e um diálogo.
Esse diálogo acontece na ficção? Ou fora dela?
Como não há soluções finais para as respostas que procuro, a melhor forma de fazê-lo
é na ficção. Posso apresentar ideias, a várias vozes, encenar argumentos que não estão
resolvidos. A Mulher Trémula, por exemplo, foi o veículo perfeito para expor a minha
obsessão com o fisiológico e o mental. Começa por ser um alienígena e acaba como
algo que me pertence, Os Meus Nervos. A jornada faz-se do distanciamento para a
proximidade, pela biologia e ritmos do corpo, que se conjugam com a narrativa acerca
deles.
Freud estava certo, pelo menos em parte, no seu Projeto [Para uma Psicologia
Científica, 1895] da mente?
A teoria da mente que ele não conseguiu validar é hoje confirmada pela neurociência,
mas a divisão entre o fisiológico e psicológico não é uma solução satisfatória. Os
modelos da psiquiatria biológica têm um problema: não são dinâmicos, os sintomas
são tratados com fármacos, sem terem em conta outras abordagens.
Dá aulas de escrita criativa e já o fez com doentes psiquiátricos. O que pode dizer
sobre isso?
Fui professora voluntária durante quatro anos e agora, a convite de um amigo,
psiquiatra e psicanalista, estou a fazer palestras em Mainz, na Alemanha, sobre o Eu
escritor e o doente psiquiátrico. Os pacientes psicóticos têm dificuldades com a
narrativa e, sem ter a pretensão de convertê-los em escritores, a ideia é codificar o uso
da escrita com fins terapêuticos.
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Como vivem dois escritores na mesma casa, com as personagens de ambos?
Temos esta família de seres ficcionais que partilham vidas. Eu e o Paul [Auster]
sabemos o que se passa com cada um durante o dia. "Eu escrevi uma página hoje, tive
um dia terrível." O outro diz: "Quando é assim, no dia seguinte é melhor." Fazemos
isto há décadas e estamos a envelhecer juntos, agora que a nossa filha já tem o
apartamento dela.
Mudou alguma coisa com a saída?
Não houve propriamente um luto. Ela está bem e eu nunca fui mãe-galinha. A minha
mãe também não era. Talvez tenha a ver com as nossas raízes escandinavas, a reserva
e o respeito pela privacidade do outro.
O que significa a palavra "casa", para si?
É uma boa pergunta. Continuo a viver em Brooklyn, pelo menos enquanto conseguir
subir e descer escadas. É o lugar onde vivo, trabalho e tenciono escrever os romances
que tenho em mim.
E não se cansa desse processo?
A única coisa que me cansa e entedia é quando estou no aeroporto à espera das
malas, porque não posso ler. Nunca me entedio com as minhas vozes.
Como Fernando Pessoa.
Sim, ele também as tinha, embora um pouco loucas! [Solta uma gargalhada]. Ele e
Kierkegaard são exemplos dos múltiplos eus que temos e nos tornam outros.
Para muitos, isso é assustador.
Sim, é verdade, mas também é emocionante! Sem isso, e alguma fluidez interna,
raramente se consegue tocar a profundidade das coisas.
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BI. ESCRITORA E ENSAÍSTA
Com ascendência norueguesa, nasceu e cresceu nos Estados Unidos e vive em
Brooklyn, Nova Iorque, com o escritor Paul Auster: celebram 33 anos de casamento,
em junho.
Doutorou-se em Literatura Inglesa, na universidade de Columbia, e experimentou
vários ofícios, desde empregada de bar a assistente de investigação médica. Decidiu
ser escritora aos 13 anos. Aos 59, é uma best seller premiada, na ficção e não ficção,
com ensaios, palestras e artigos sobre filosofia, arte e neuropsicanálise.
Esta área levou a envolver-se ativamente em grupos de investigação académica e a
participar em conferências sobre a consciência, como a realizada há três anos, em
Berlim, ao lado do neurocientista António Damásio.
O livro do dia na TSF
https://www.tsf.pt/programa/o-livro-do-dia/emissao/o-mundo-ardente-de-siri-
hustvedt-4147659.html
Apresentação do livro O mundo ardente
https://sicnoticias.pt/cultura/2014-05-26-Livro-O-Mundo-Ardente-apresentado-no-
atelier-de-Joana-Vasconcelos-em-Lisboa
Site da escritora
http://sirihustvedt.net/