UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIEcircNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA
Max Rogeacuterio Vicentini
O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA COSMOLOGIA DE CHARLES
SANDERS PEIRCE
Satildeo Paulo
2011
MAX ROGEacuteRIO VICENTINI
O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA COSMOLOGIA DE CHARLES
SANDERS PEIRCE
Tese apresentada ao programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Filosofia do Departamento de
Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e
Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo
Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em
Filosofia sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr
Pablo Rubeacuten Mariconda
Satildeo Paulo
2011
Autorizo a reproduccedilatildeo e divulgaccedilatildeo total ou parcial deste trabalho por
qualquer meio convencional ou eletrocircnico para fins de estudo e
pesquisa desde que citada a fonte
Vicentini Max Rogeacuterio
O papel da causalidade final na cosmologia de Charles Sanders
Peirce Max Rogeacuterio Vicentini - 2011-
182 f
Tese (Doutorado) Universidade de Satildeo Paulo 2011 Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo
Orient Prof Dr Pablo Rubeacuten Mariconda
1 Cosmologia
Nome VICENTINI Max Rogeacuterio
Tiacutetulo O papel da causalidade final na cosmologia de Charles Sanders Peirce
Tese apresentada agrave Faculdade de Filosofia Letras
e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo
Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em
Filosofia
Aprovado em
Banca Examinadora
Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________
Julgamento ___________ Assinatura ______________
Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________
Julgamento ___________ Assinatura ______________
Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________
Julgamento ___________ Assinatura ______________
Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________
Julgamento ___________ Assinatura ______________
Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________
Julgamento ___________ Assinatura ______________
DEDICATOacuteRIA
Ao meu pai Armando Vicentini in memoriam
agrave minha matildee Aparecida Giraldeli Vicentini
e aos amigos presentes e ausentes
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo ao Professor Dr Pablo Rubeacuten Mariconda pelo tempo dedicado a minha
orientaccedilatildeo e ao professor Dr Michel Paty cujos cursos e conversas expandiram a minha
compreensatildeo sobre o tema desta tese e suas relaccedilotildees com problemas mais amplos e atuais bem
como por sua disposiccedilatildeo em me orientar no periacuteodo de pesquisa junto agrave Universiteacute Paris VII ndash
Denis Diderot e agrave equipe Sphere
Agrave CAPES pela bolsa que me permitiu passar um ano pesquisando em Paris
Aos membros da banca de qualificaccedilatildeo pela disponibilidade leitura atenta e boas sugestotildees
Ao setor de capacitaccedilatildeo docente da Proacute-Reitora de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo e aos
professores do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Maringaacute que apoiaram e
aceitaram meu pedido de afastamento para a realizaccedilatildeo desta tese
Aos meus antigos professores Lauro Nice e Betty cujas influecircncias foram decisivas para a
realizaccedilatildeo deste trabalho
Aos meus amigos pelo incentivo leitura e discussotildees do texto aqui apresentado Aos
integrantes do Grupo de Pesquisa coordenado pelo Prof Pablo especialmente a Adriana
Belmonte
Agrave minha matildee Aparecida e minhas irmatildes pela alegria que sempre acontece quando estamos
juntos
Quero agradecer especialmente ao Douglas Ameacutelia Sandro Liacutegia Bima Wagner Nei
Ivan Ernane e Rosacircngela que tornaram esses anos de pesquisas mais leves ou mais intensos ou
ambos
RESUMO
VICENTINI M R O papel da causalidade final na cosmologia de Charles Sanders Peirce
2011 182 f Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas
Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2011
Trata-se de uma proposta de investigaccedilatildeo das ideias cosmoloacutegicas de Charles S Peirce
particularmente das que dizem respeito agrave pertinecircncia da inclusatildeo de esquemas de explicaccedilatildeo que
faccedilam uso da causalidade final como instacircncia determinante do desenvolvimento dos fenocircmenos
naturais Anterior agrave avaliaccedilatildeo desse tipo de explicaccedilatildeo cabe uma investigaccedilatildeo sobre as
caracteriacutesticas mais relevantes de seu pensamento que o proacuteprio autor julgava construiacutedo
arquitetonicamente Com esse objetivo centramos a anaacutelise no conceito de continuum que pode
ser visto como fundamental para o desenvolvimento da obra de Peirce Eacute o estudo do continuum
que permitiraacute e conduziraacute a investigaccedilatildeo das categorias ontoloacutegicas peirceanas acaso existente e
lei A passagem do acaso agrave lei isto eacute a proacutepria origem do cosmos se daacute por um processo
evolutivo que tem na lei da mente seu principal motor A lei da mente por sua vez atua de modo
finaliacutestico tornando mais provaacutevel o desenvolvimento dos fenocircmenos em certas direccedilotildees
restringindo assim o horizonte das possibilidades sem contudo esgotaacute-lo
Palavras-chave cosmologia sinequismo abduccedilatildeo teleologia
ABSTRACT
VICENTINI M R The role of final causality in the cosmology of Charles Sanders Peirce
2011 182 f Thesis (PhD) - Faculty of Philosophy Letters and Sciences University of Sao
Paulo Sao Paulo 2011
This thesis is about the cosmological ideas of Charles S Peirce particularly those concerning the
relevance of the inclusion of explanatory schemes that make use of final causality as an instance
determinant of the development of natural phenomena Before the evaluation of this type of
explanation it is important to perform an investigation into the most relevant features of his
thought which the author believed was architecturally built With this aim we focus on the
concept of the continuum which can be seen as fundamental to the development of the work of
Peirce It is the study of the continuum that will lead to investigation of Peirces ontological
categories chance existent and law The passage of chance to law that is the very origin of the
cosmos is given by an evolutionary process in which the law of the mind is its main engine The
law of the mind in turn acts in a finalistic way making more probable the development of
phenomena in certain directions thus restricting the horizon of possibilities without however
exhausting it
Keywords cosmology synechism abduction teleology
LISTA DE ABREVIACcedilOtildeES
CP x sect y - CCollected Papers of Charles Sanders Peirce volume x paraacutegrafo y ano de composiccedilatildeo
W x p y - Writings of Charles S Peirce A Chronological Edition volume x p y ano de
composiccedilatildeo
CN x p y
MS x
-
-
Contributions to The Nation volume x p y (Alguns estudiosos usam N)
Manuscritos nuacutemero do manuscrito
EP x p y - The Essential Peirce Selected Philosophical Writings volume x p y
HP x py - Historical Perspectives on Peirces Logic of Science A History of Science volume x
p y
NEM x p y - The New Elements of Mathematics by Charles S Peirce volume x p y (Alguns
estudiosos usam NE)
CD p x Century Dictionary p x (Alguns estudiosos usam C)
Sumaacuterio
INTRODUCcedilAtildeO 11
CAPIacuteTULO 1 - A HIPOacuteTESE COSMOLOacuteGICA 28
11 NAtildeO BLOQUEAR O CAMINHO DA INVESTIGACcedilAtildeO 29
12 UMA ESTOacuteRIA BIZARRA 38
121 O NADA 41
122 O ACASO 50
123 A DOUTRINA DA NECESSIDADE 54
13 A LEI 64
131 O IDEALISMO OBJETIVO 65
132 A LEI DA MENTE 66
CAPIacuteTULO 2 - O SINEQUISMO 68
21 O CONTINUUM E A EPISTEMOLOGIA 71
211 OS INFINITESIMAIS E O CONTINUUM 74
22 OS QUATRO ESTAacuteGIOS DO DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE CONTINUUM 78
221 O PERIacuteODO PREacute-CANTORIANO 81
222 PERIacuteODO CANTORIANO 83
223 PERIacuteODO KANTIANO 86
CAPIacuteTULO 3 - A EVOLUCcedilAtildeO 89
31 ASPECTOS EPISTEMOLOacuteGICOS DA HIPOacuteTESE EVOLUCIONAacuteRIA 90
32 AS RAIacuteZES NA CIEcircNCIA DO SEacuteCULO XIX 94
33 OS TREcircS TIPOS DE EVOLUCcedilAtildeO 104
34 OS TREcircS MODELOS DE EXPLICACcedilAtildeO 106
35 A EVOLUCcedilAtildeO E A COSMOLOGIA 107
36 O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA EVOLUCcedilAtildeO 109
37 EVOLUCcedilAtildeO E AUTOCONTROLE 111
CAPIacuteTULO 4 - A ABDUCcedilAtildeO 115
41 ABDUCcedilAtildeO E CRIACcedilAtildeO DE HIPOacuteTESES EXPLICATIVAS 116
42 OS TREcircS TIPOS DE RACIOCIacuteNIO 128
CAPIacuteTULO 5 - A CAUSALIDADE FINAL 140
51 O MODO DE ATUACcedilAtildeO DA CAUSALIDADE FINAL 143
52 CAUSALIDADE FINAL E CAUSALIDADE EFICIENTE 151
53 CAUSA FINAL E EVOLUCcedilAtildeO ndash AacuteGAPE OU O AMOR CRIATIVO 159
54 A ORIGINALIDADE DA CAUSA FINAL PEIRCEANA 163
55 CAUSA FINAL E CLASSIFICACcedilAtildeO NATURAL 167
CONCLUSAtildeO 169
REFEREcircNCIAS 175
11
INTRODUCcedilAtildeO
Hume whose cogitations led up to the recognition of Association as the one law of
mind most judiciously remarks This uniting principle among ideas is not to be
considered as an inseparable connexion for that has been already excluded from the
imagination Nor yet are we to conclude that without it the mind cannot join two
ideas for nothing is more free than that faculty but we are only to regard it as a gentle
force which commonly prevailsrdquo That phrase a gentle force which commonly
prevails describes the phenomenon to perfection (CP 7 sect 389 1893)
12
A obra de Charles Sanders Peirce (1839 ndash 1914) eacute admiraacutevel pela complexidade rigor e
abrangecircncia Peirce eacute considerado um dos maiores senatildeo o maior dos filoacutesofos americanos e
poucos foram os campos que permaneceram fora de seu interesse Mesmo tendo se formado em
Quiacutemica e trabalhado durante muitos anos na United States Coast and Geodetic Survey1 Peirce
foi uma dessas mentes inquietas que sobre tudo investigou e que sobre quase tudo escreveu
fazendo contribuiccedilotildees originais e relevantes para vaacuterias aacutereas do saber
Como intelectual Peirce considerava-se um loacutegico tido pelos historiadores como um dos
pais da loacutegica moderna desenvolveu a loacutegica das relaccedilotildees e formulou a loacutegica dos grafos
existenciais mas destacou-se tambeacutem nos estudos da matemaacutetica (teoria da probabilidade) e
sobretudo na filosofia das ciecircncias para a qual contribuiu com uma nova teoria dos argumentos
dedutivos indutivos e abdutivos Fundador do pragmatismo norte-americano sua grande
contribuiccedilatildeo agrave filosofia foi a criaccedilatildeo da semioacutetica ou a loacutegica segundo seu entendimento
Como aponta Silveira (1982 p 78) Peirce foi antes de tudo um cientista Um cientista
entretanto com algumas peculiaridades proacuteprias inclusive na formaccedilatildeo que se recebia a sua
eacutepoca Antes da universidade recebera o ensino claacutessico e como era comum as atividades em
casa sobrepujavam as desenvolvidas na escola Filho de um professor de Matemaacutetica de Harvard
desde cedo habituou-se agrave investigaccedilatildeo e agrave reflexatildeo sob a orientaccedilatildeo de seu proacuteprio pai que via
nele o potencial de um gecircnio
Peirce foi nomeado professor da entatildeo receacutem-fundada Universidade John Hopkins em 1879
mas em 1884 teve seu contrato de trabalho sumariamente cancelado em circunstacircncias obscuras
Natildeo tendo mais conseguido manter qualquer posto acadecircmico isso em prejuiacutezo segundo Nagel
(1982) do desenvolvimento da Filosofia posterior e de sua proacutepria Filosofia Peirce tinha entatildeo
quarenta e quatro anos
1 Eacute uma agecircncia federal dos Estados Unidos que define e gerencia um sistema de coordenadas nacional fornecendo a
base para o transporte e a comunicaccedilatildeo elaborando mapas e graacuteficos e um grande nuacutemero de aplicaccedilotildees da ciecircncia e
da engenharia Nela Peirce trabalhou de 1859 a 1891
13
O conjunto de suas ideias jaacute foi algumas vezes comparado a um labirinto com muitas
entradas cujo fio de Ariadne que pode conduzir o leitor a salvo por entre suas diferentes
estruturas foi indicado pelo proacuteprio autor como sendo o sinequismo2 a teoria que identifica a
continuidade como uma hipoacutetese fundamental para toda investigaccedilatildeo nas palavras de Peirce
ldquo() a chave mestra que dizem-nos os adeptos destranca os misteacuterios da filosofiardquo (CP 1 sect 163
1897)3
Nesta introduccedilatildeo faremos um esboccedilo do mapa que nos conduziu durante essa investigaccedilatildeo
O alvo determinado desde o iniacutecio foi o de compreender o papel que a causalidade final
desempenha na cosmologia de Peirce A aproximaccedilatildeo natildeo se deu de modo direto se o alvo estava
determinado o mesmo natildeo se poderia dizer do caminho que foi sendo construiacutedo aos poucos
sedimentando-se ao longo dos anos da pesquisa A eleiccedilatildeo dos temas a proacutepria investigaccedilatildeo e a
sua apresentaccedilatildeo foram objeto de longa reflexatildeo O caminho mostrou-se cheio de surpresas e de
natildeo raros momentos de indecisotildees O resultado que agora apresento nesta tese traz a marca da
falibilidade que Peirce considerava caracteriacutestica tanto dos nossos processos de pensamento
quanto daqueles que deram origem e permanecem atuando na constituiccedilatildeo dos mais diferentes
aspectos do cosmos e que eacute intriacutenseco agrave proacutepria maneira de atuaccedilatildeo da causalidade final como
veremos agrave frente O processo de criaccedilatildeo de empatia com a obra de Peirce constituiu-se
lentamente e as boas hipoacuteteses de interpretaccedilatildeo ndash ao menos eacute nossa esperanccedila de que as que aqui
lanccedilamos o sejam ndash surgiram aos poucos
Eacute possiacutevel extrair das ideias de Peirce importantes indicaccedilotildees sobre a maneira pela qual
uma investigaccedilatildeo deve ser conduzida Natildeo podemos esquecer que sua grande realizaccedilatildeo consiste
na elaboraccedilatildeo de um meacutetodo adequado para orientar a conduta dos investigadores nos mais
variados campos incluindo aiacute o da pesquisa acadecircmica Essa caracterizaccedilatildeo parece ser de grande
auxiacutelio para compreendermos o desenvolvimento de sua proacutepria obra bem como para lanccedilar
alguma luz sobre o proacuteprio processo de elaboraccedilatildeo deste trabalho Toda investigaccedilatildeo eacute marcada
2 Sinequismo do grego synecheacutes eacute o nome que Peirce daacute agrave sua teoria da continuidade bem como ao seu sistema
filosoacutefico 3 () it is the master key which adepts tell us unlocks the arcana of philosophy
14
pelo objetivo que pode ou natildeo estar determinado de maneira clara A determinaccedilatildeo preacutevia natildeo
significa que o caminho e o resultado especiacutefico possam ser traccedilados e previstos nos miacutenimos
detalhes As surpresas que podem produzir desvios da rota eacute tambeacutem condiccedilatildeo para o crescimento
da compreensatildeo do tema ou das ideias do autor Natildeo se fechar ao inesperado eacute condiccedilatildeo para a
realizaccedilatildeo da pesquisa
Estar disposto a abrir matildeo de suas conclusotildees e ideias tatildeo logo a experiecircncia mostre que satildeo
inadequadas eacute a atitude mais honesta do verdadeiro cientista aquele que investiga por um
ldquoardente amor agrave verdaderdquo como diria Peirce (CP 8 notas 1900) Eacute desse modo que a
compreensatildeo aqui apresentada das ideias peirceanas sobre a causalidade final foi sendo formada
natildeo sem surpresas e desvios O mesmo movimento pode ser visto na obra do autor que natildeo se
nega a dialogar com as evidecircncias ainda que contraacuterias e em redefinir suas ideias com fins agrave
determinaccedilatildeo de um meio mais adequado ao fim almejado Na interpretaccedilatildeo aqui defendida o
fim maior de obra de Peirce eacute a defesa da possibilidade de uma ciecircncia feita a partir da
experiecircncia com todas as dificuldades envolvidas nas duas ideias
Embora se definisse como um loacutegico e tenha tido formaccedilatildeo em Quiacutemica poucas aacutereas do
saber entre as jaacute estabelecidas em seu tempo ou em processo de constituiccedilatildeo ficaram fora do
escopo de seu interesse e investigaccedilatildeo Essa caracteriacutestica estaacute em conformidade com a maacutexima
que anima seu pensamento ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo (CP 6 sect 64 1892 sect 273
1893) Podemos indicar dois traccedilos caracteriacutesticos de sua produccedilatildeo de um lado percebemos que
para Peirce nada pode ser aceito como um dado (cf CP 6 sectsect 35-65 1892) resistente portanto a
toda investigaccedilatildeo ou seja isso equivale a dizer que a pesquisa natildeo conhece limites e que para
tudo que possa ser problematizado deve haver um processo adequado de investigaccedilatildeo por meio
do qual uma resposta possa ser obtida Naturalmente uma consequecircncia desta tese eacute a de que seu
alcance ultrapassa o puramente epistemoloacutegico e indica que a ontologia dos processos naturais
possua em si mesma um aspecto noeacutetico De outro lado a busca do meacutetodo adequado (cf CP 5
sectsect 358-87 1877) e sua aplicaccedilatildeo aos diferentes campos do saber em estreita relaccedilatildeo com a tese
sinequista ao lado de sua inesgotaacutevel curiosidade sugerem uma hipoacutetese explicativa para a
abrangecircncia dos objetos estudados pelo autor
15
O rigor necessaacuterio ao meacutetodo que deve garantir a possibilidade de realizaccedilatildeo da ciecircncia
parece-nos ser o propoacutesito primaacuterio e sempre presente no desenvolvimento do pensamento
peirceano Em funccedilatildeo dessa preocupaccedilatildeo que eacute uma caracteriacutestica recorrente em muitos de seus
escritos e em consonacircncia com o juiacutezo que o proacuteprio autor fazia de sua obra discordamos
daqueles inteacuterpretes que encontram dificuldade em atribuir-lhe uma unidade (cf GOUDGE
1950 GALLIE 1952 MOORE and ROBIN 1964 WIENER 1964 entre outros) Natildeo haacute duacutevida
de que o seu pensamento evoluiu de que suas teorias sofreram alteraccedilotildees e de que suas hipoacuteteses
amadureceram no periacuteodo que compreende sua intensa produccedilatildeo e que se estende por mais de
cinquenta anos Natildeo obstante a unidade que lhe pode ser atribuiacuteda natildeo eacute a de um sistema cujos
axiomas encontram-se presentes desde os primeiros escritos e cujas implicaccedilotildees satildeo apenas
apresentadas de maneira mais clara agrave medida que sua obra vai se constituindo Como descrito
acima na atividade do cientista que natildeo se furta ao embate com a experiecircncia quando submete
suas ideias agrave prova dos experimentos agraves vezes se depara com resultados que a princiacutepio natildeo
haviam sido cogitados Peirce natildeo os ignora e ao elaborar novos instrumentos para trataacute-los vecirc-se
na situaccedilatildeo em que tem de abrir matildeo de certos aspectos de seu pensamento inicial com o objetivo
de tornar seu sistema coerente Assim a unidade que se encontra eacute decorrente da atitude frente
aos objetos do conhecimento mais do que daquela referente aos conteuacutedos de suas teorias que
como reconhece o autor como um homem de ciecircncia satildeo sempre provisoacuterios e hipoteacuteticos
Em alguns momentos do periacuteodo que compreende sua longa e extensa produccedilatildeo o meacutetodo
eacute diretamente tematizado e em outros parece estar ausente de suas preocupaccedilotildees mais imediatas
para depois de alguns anos surgir novamente Quanto a este aspecto Peirce parece retomar o
projeto da filosofia moderna Como veremos em seus primeiros textos debate diretamente com
Descartes a quem critica principalmente o estabelecimento da intuiccedilatildeo imediata clara e distinta
dos objetos como criteacuterio de distinccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso e como fundamento de toda
atividade cognitiva (cf CP 5 sectsect 264-5 1868 CP 5 sectsect 389-92 1878) Um de seus primeiros
passos em direccedilatildeo agrave compreensatildeo do pensamento cientiacutefico eacute a elaboraccedilatildeo de uma nova teoria da
accedilatildeo mental baseada na ideia de que toda cogniccedilatildeo eacute mediada (cf CP 5 sect 4 1868) Como natildeo
temos acesso imediato aos objetos nosso conhecimento traraacute a marca do provisoacuterio e do faliacutevel
fruto de uma seacuteria infinita de interpretaccedilotildees e ao mesmo tempo implicando que o objeto natildeo
16
pode ser absolutamente conhecido jaacute que o seu modo de ser eacute vago (cf CHAUVIREacute 1995 e
TIERCELIN 1993a e 1993b) As teorias produzidas pelo ser humano seratildeo deste modo faliacuteveis
e construiacutedas a partir de sua proacutepria experiecircncia do mundo tanto o externo que se lhe impotildee e
resiste como o interno cujos processos de constituiccedilatildeo natildeo satildeo de maneira alguma heterogecircneos
Aqui a hipoacutetese do continuum requer a coerecircncia do autor Natildeo haacute descontinuidade entre o
mundo do pensamento e o mundo real Ateacute mesmo esta distinccedilatildeo soa artificial e inadequada O
elemento central na perspectiva peirceana eacute o pensamento (cf CN 1 p 200 1893) A fim de fazer
avanccedilar sua compreensatildeo dos processos naturais e confirmar suas hipoacuteteses acerca do
funcionamento dos processos de constituiccedilatildeo de nossas teorias Peirce encontra no haacutebito ou
tendecircncia agrave aquisiccedilatildeo de haacutebitos um elemento unificador fundamental e que elimina a
descontinuidade entre as leis do pensamento e as leis da natureza que segundo essa perspectiva
natildeo diferem senatildeo pelos diferentes graus de rigidez do haacutebito que ambas em uacuteltima instacircncia
satildeo diante da unicidade existente entre homem e mundo a construccedilatildeo da ciecircncia eacute o
desenvolvimento de uma capacidade que nos eacute natural Em um texto de 1893 Peirce diz que ldquo()
minha longa investigaccedilatildeo dos processos do raciociacutenio cientiacutefico conduziu-me muitos anos atraacutes
agrave conclusatildeo de que a ciecircncia natildeo eacute nada mais do que o desenvolvimento de nossos instintos
naturaisrdquo (CP 6 sect 604 1893)4
Muitas ideias propostas ou retomadas por Peirce tecircm o dom de surpreender o leitor que se
aproxima de sua obra pela primeira vez e mesmo agravequeles que dela tecircm um conhecimento parcial
Entre essas ideias julgamos apropriado incluir a de causalidade final (cf CP 1 sect 211 sect 250 sect
269 1902 CP 6 sect 66 sect 101 1898) O espanto ao ler em seus textos uma defesa da necessidade
da causalidade final natildeo apenas no acircmbito das explicaccedilotildees mas tambeacutem como princiacutepio atuante
nos processos naturais eacute decorrente de certa imagem fixada na tradiccedilatildeo ocidental ao menos
desde Bacon5 de julgaacute-la obscurantista e contraacuteria ao empirismo Andrew Woodfield (1976 p 3)
4 () my long investigation of the logical process of scientific reasoning led me many years ago to the conclusion
that science is nothing but a development of our natural instincts 5 Como aponta Bacon a investigaccedilatildeo sobre causas finais eacute esteacuteril e como uma virgem consagrada a Deus nada
produz (cf SPEDDING 1989 p 571)
17
afirma que ldquoA ciecircncia moderna eacute no seu todo hostil agraves explicaccedilotildees teleoloacutegicasrdquo6 Se
considerarmos que Peirce foi educado desde muito jovem como loacutegico e cientista e que desse
modo estava familiarizado com o meacutetodo cientiacutefico que vigorava em seu tempo sua insistecircncia
na realidade da causalidade final pode parece fora de lugar
Se o juiacutezo de Aristoacuteteles sobre a causalidade final era de que ela consistia em um aspecto
inerente ao mundo (cf CP 1 sect 211 1902) o mesmo natildeo se pode dizer do juiacutezo de um cientista
do seacuteculo XIX Para os cientistas do seacuteculo XIX como para os cientistas do nosso tempo a
causalidade final parece envolver ao menos trecircs aspectos que lhe dificultam a concessatildeo da
cidadania cientiacutefica parece que ela envolve a ideia de (1) que existem eventos individuais no
futuro (2) que exercem algum tipo de influecircncia causal sobre o presente e (3) que tecircm o poder de
determinar um curso preciso de accedilatildeo a fim de que possam ser realizados (cf HULSWIT 1996 p
200-2) em outras palavras pode-se notar que os aspectos aqui levantados sinalizam para a
concepccedilatildeo de causalidade final como causalidade eficiente invertida
Segundo a compreensatildeo de Peirce (cf EP 2 p 315-6 1904 CP 1 sect 211 1902) as causas
podem ser divididas em dois grandes grupos como afirma jaacute havia sido indicado por
Aristoacuteteles aquele que compreende as eficientes ou eneacutergicas e aquele que compreende as ideais
ou finais A insuficiecircncia da utilizaccedilatildeo de esquemas explicativos que faccedilam uso de apenas um dos
dois grupos eacute claramente apontada por Peirce Em 1902 no texto ldquoA detailed classification of the
Sciencerdquo afirma que ldquoA causa final sem a causa eficiente eacute inoacutecua () A causa eficiente sem a
causa final entretanto eacute pior do que inoacutecua em muito eacute mero caos e o caos natildeo eacute nem mesmo
caos sem a causa final eacute um nada vaziordquo (CP 1 sect 211 1902)7
Ao tratar da causa final reconhece sua diacutevida com Aristoacuteteles e julga modestamente ser um
seguidor do grande filoacutesofo Poreacutem o juiacutezo que faz da filiaccedilatildeo de suas ideias natildeo parece ser
6 Modern Science is on the whole hostile to teleological explanation
7 Final causation without efficient causation is helpless () Efficient causation without final causation however is
worse than helpless by far it is mere chaos and chaos is not even so much as chaos without final causation is blank
nothing
18
totalmente correto Sob alguns aspectos podemos afirmar que Peirce construiu uma concepccedilatildeo
original de causalidade final A apresentaccedilatildeo da originalidade de seu conceito e do papel que
desempenha no interior de sua cosmologia eacute o objetivo desta tese e que espero ter conseguido
realizar na exposiccedilatildeo que se segue Mostro neste trabalho que a causalidade final desempenha um
papel duplo ao mesmo tempo em que eacute uma exigecircncia da teoria da explicaccedilatildeo cientiacutefica tambeacutem
eacute um agente real do crescimento do universo pois atuante na determinaccedilatildeo de vaacuterios processos
naturais Dessa forma a investigaccedilatildeo tem a pretensatildeo de abarcar suas implicaccedilotildees tanto para a
epistemologia peirceana quanto para sua cosmologia
O objetivo do primeiro capiacutetulo eacute apresentar a hipoacutetese cosmoloacutegica peirceana considerada
por alguns comentadores como a ovelha negra ou o elefante branco do seu sistema (cf GALLIE
1952 p 215) localizaacute-la no interior de sua obra e selecionar os aspectos que melhor ilustram a
atuaccedilatildeo da causalidade final na constituiccedilatildeo do cosmo Jaacute nesse capiacutetulo apresentamos a hipoacutetese
que identifica a causalidade final como elemento necessaacuterio para a possibilidade de constituiccedilatildeo
de procedimentos cientiacuteficos que nos permitam conhecer a natureza e ao mesmo tempo moldar
uma conduta adequada para o futuro por meio da nossa capacidade de autocontrole (cf CP 5 sect
538 1902)
O imperativo que manda ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo sintetiza um aspecto
central do projeto de Peirce A primeira lei da loacutegica8 como o autor costuma denominaacute-la
expressa sua insatisfaccedilatildeo com relaccedilatildeo ao posicionamento da ciecircncia de seu tempo frente a alguns
princiacutepios isto eacute as leis naturais que eram entatildeo tomados como dados portanto
inquestionaacuteveis e alheios agrave investigaccedilatildeo Peirce reclama principalmente uma abordagem racional
para o estatuto das leis cientiacuteficas tomadas entatildeo como princiacutepios a partir dos quais as ciecircncias
satildeo construiacutedas mas que permaneciam de fora desse processo Ora para fornecer uma explicaccedilatildeo
racional do porquecirc de tais e tais leis atuarem no nosso universo ou seja para que a sua
8 Nota-se que o termo bdquoloacutegica‟ na obra peirceana tem um sentido bem mais amplo do que aquele hoje vigente Peirce
incluiacutea em seus estudos trecircs diferentes ramos por ele denominados de Gramaacutetica Filosoacutefica Loacutegica Criacutetica e
Metodecircutica (cf CP 2 sect 93 1902)
19
postulaccedilatildeo pura e simples natildeo bloqueie o caminho da investigaccedilatildeo o filoacutesofo expande o conceito
de evoluccedilatildeo9 e o utiliza como um princiacutepio loacutegico constituinte de sua hipoacutetese cosmoloacutegica A
hipoacutetese de um cosmo que evolui a partir do puro acaso do nada inicial ndash um continuum de
possibilidades infinitas ndash eacute a que permite explicar as caracteriacutesticas do universo atual sem a
necessidade de tomar seus constituintes como dados como eacute o caso das leis que passam a ser
explicadas como fruto do processo de aquisiccedilatildeo de haacutebitos a que todo universo estaacute submetido
Veremos entatildeo como a hipoacutetese cosmoloacutegica eacute uma consequecircncia da teoria da explicaccedilatildeo e qual
dentro dessa perspectiva eacute seu papel natildeo soacute como um subsiacutedio para o projeto de tornar a ciecircncia
possiacutevel mas tambeacutem como hipoacutetese que torna compreensiacutevel certos fenocircmenos como as accedilotildees
natildeo conservativas de difiacutecil explicaccedilatildeo para a ciecircncia mecanicista (cf CP 7 sect 471-83 1898)
como veremos no capiacutetulo sobre evoluccedilatildeo
A hipoacutetese cosmoloacutegica que eacute apresentada na forma de uma cosmogonia descreve a
passagem de um continuum de possibilidades absolutamente indeterminadas para outro
continuum o do geral Aqui entra em cena o elemento da continuidade que receberaacute nesse
capiacutetulo uma primeira descriccedilatildeo
No segundo capiacutetulo trataremos especificamente da hipoacutetese do continuum que assim
como havia acontecido com a hipoacutetese evolutiva eacute tomada como um princiacutepio da loacutegica (cf CP
6 sect 173 1902) Essa hipoacutetese estaacute desse modo a subsumida agrave tarefa de garantir a
inteligibilidade da natureza A esta doutrina metafiacutesica Peirce daacute o nome de sinequismo Como
aponta Hausman ldquoo sinequismo de Peirce eacute inseparaacutevel da ideia de Peirce de que a condiccedilatildeo
fundamental de inteligibilidade eacute mediaccedilatildeo generalidade e continuidaderdquo (HAUSMAN 1998 p
630) Considerar todas as coisas como sendo contiacutenuas umas agraves outras tem como uma de suas
consequecircncias a de que a individualidade absoluta eacute apenas uma ilusatildeo Desta forma nenhuma
quantidade absoluta pode ser apurada tudo estaacute mergulhado em um mar de indeterminaccedilatildeo cujo
princiacutepio constituinte eacute diz-nos Peirce o acaso (cf CP 1 sectsect 163-75 1897) Assim duas das
9 Veremos adiante (capiacutetulo III desta tese) que embora a leitura da Origem das espeacutecies de Charles Darwin tenha
exercido uma grande influecircncia sobre o jovem Peirce sua concepccedilatildeo de evoluccedilatildeo era muito mais ampla podendo ser
classificada em trecircs tipos ticaacutestica anancaacutestica e agapaacutestica
20
principais teorias da obra peirceana satildeo relacionadas o tiquismo10
e o sinequismo O problema eacute
colocado de maneira bastante clara por Esposito (1973 p 65) na forma de um dilema ldquoou o
crescimento era real e a filosofia mecacircnica insuficiente ou era uma ilusatildeo e a filosofia
cosmogocircnica ndash o sinequismo ndash desnecessaacuteriardquo
A principal justificativa do sinequismo encontra-se no fato de que fornece uma boa
explicaccedilatildeo para os fenocircmenos serem como satildeo As descontinuidades satildeo vistas por Peirce como
inexplicaacuteveis A hipoacutetese do continuum ajuda entatildeo a evitar a postulaccedilatildeo do incompreensiacutevel no
seio da natureza que algo deva ser considerado como um dado ou um fato uacuteltimo e
consequentemente que a investigaccedilatildeo deva ser suspensa (cf CP 1 sect 175 1897) Aleacutem disso
indica o filoacutesofo ela promove o progresso da ciecircncia na medida em que encoraja os
pesquisadores a natildeo desesperarem diante dos misteacuterios da natureza facultando uma nova maneira
de tratar os fenocircmenos ou seja a aplicaccedilatildeo dos meacutetodos e conceitos de uma ciecircncia a outras Da
mesma forma que vimos no primeiro capiacutetulo Peirce fazer ao empregar conceitos da biologia e
matemaacutetica como princiacutepios da loacutegica
O sinequismo eacute tido por Peirce como uma esperanccedila reguladora (regulative hope) isto eacute
algo cuja existecircncia ainda que natildeo possa ser provada eacute necessaacuteria para a possibilidade da
atividade cientiacutefica Enquanto um princiacutepio da loacutegica ele estabelece um criteacuterio para o tipo de
hipoacutetese que deve ser selecionado para o teste Ele estaacute diretamente relacionado com o princiacutepio
metodoloacutegico que diz que eacute sempre melhor escolher hipoacuteteses que abram espaccedilo para o maior
nuacutemero de possibilidades (cf CP 7 sect 221 1901) Natildeo se trata portanto de uma doutrina
metafiacutesica uacuteltima mas uma hipoacutetese eleita por razotildees metodoloacutegicas e que poderaacute vir a ser
substituiacuteda por alguma formulaccedilatildeo mais fraca caso a experiecircncia assim o exija Ainda assim seria
preferiacutevel diz Peirce uma hipoacutetese que afirme que ldquo() um continuum eacute meramente uma seacuterie
descontiacutenua com possibilidades adicionaisrdquo (CP 1 sect 170 1893)11
agravequela que afirma a existecircncia
de descontinuidades radicais
10 Tiquismo do grego Tycheacute eacute o nome que Peirce daacute agrave sua teoria do acaso como um princiacutepio operante na natureza
(tal como seraacute apresentado no primeiro capiacutetulo desta tese) 11
() a continuum is merely a discontinuous series with additional possibilities
21
A necessidade de introduzir a hipoacutetese do sinequismo indica Esposito (1973) natildeo decorre
da defesa de qualquer tese holista como se poderia pensar antes sua funccedilatildeo primordial eacute
permitir uma abordagem coerente do fenocircmeno do crescimento presente nas mais variadas
expressotildees do que chamamos de universo O crescimento eacute apenas uma outra palavra para
designar a evoluccedilatildeo Se por um lado Peirce exige a continuidade como condiccedilatildeo para a
inteligibilidade por outro funda sua ontologia sobre uma matriz indeterminista que tem no
acaso entendido como vera causa seu princiacutepio de constituiccedilatildeo necessaacuterio agrave abordagem dos
fenocircmenos evolutivos A intromissatildeo do acaso no continuum processo criativo espontacircneo
responsaacutevel pela introduccedilatildeo de novidade no universo produz descontinuidades
A maneira de conciliar esses dois aspectos aparentemente conflitantes mas necessaacuterios agrave
abordagem peirceana parece ser realizada por meio da noccedilatildeo de infinitesimal (cf CP 6 sect 86
1898) Como aponta Hausman (1998) o papel desempenhado pelos infinitesimais na origem da
evoluccedilatildeo tem sido subestimado pelos comentadores de Peirce Ele afirma ldquoO que eacute
imediatamente importante eacute que a noccedilatildeo de infinitesimal parece ser necessaacuteria para tratar dos
componentes constitutivos dos continua que podem evoluir de acordo com uma teleologia
evolucionaacuteriardquo (HAUSMAN 1998 p 630) O problema portanto que devemos tratar eacute o de
conciliar o continuum fonte de inteligibilidade com a presenccedila do acaso introdutora de
novidades o que implica em descontinuidades Uma vez que o continuum eacute sempre geral ou
seja seus componentes natildeo podem ser individuais uma soluccedilatildeo parece ser a de consideraacute-los
como sendo infinitesimais que se tornam dessa maneira portadores da espontaneidade e da
liberdade do acaso Esse processo envolve uma antiga e difiacutecil questatildeo a saber como o geral
produz os particulares ou melhor dizendo como universal e particular se relacionam Sob este
aspecto concordamos com Hausman que faz uma siacutentese do processo ao dizer que
A sugestatildeo de Peirce que indica a maneira pela qual os dois princiacutepios
aparentemente contraacuterios podem ser mantidos eacute propor que os contiacutenuos satildeo
compostos de infinitesimais que satildeo possibilidades (Primeiros) que podem
tornar-se potencialidades ndash que podem tornar-se pontos que podem fugir da
identidade do continuum ao qual eles pertencem antes de tornarem-se
22
potencialidades (HAUSMAN 1998 p 631)
Esta sugestatildeo envolve a distinccedilatildeo natildeo muito frequente entre possiacutevel e potencial que seraacute
elaborada com mais detalhes nesse capiacutetulo Ela parece-nos eacute fundamental para compreender a
relaccedilatildeo entre a continuidade e a causalidade final o objeto de nossa investigaccedilatildeo A discussatildeo do
princiacutepio de individuaccedilatildeo que estaacute aiacute envolvido parece necessitar da consideraccedilatildeo de outro
ingrediente presente na cosmologia peirceana o amor criativo ou aacutegape como eacute denominado por
Peirce (cf CP 6 sect 287 1893)
Chegamos assim ao tema do terceiro capiacutetulo desta tese que trata da evoluccedilatildeo A hipoacutetese
evolucionaacuteria atende em primeiro lugar a uma necessidade de barrar a regressatildeo infinita das
explicaccedilotildees e de alargar tanto quanto possiacutevel o horizonte da inteligibilidade humana portanto
subsumida agrave maacutexima que ordena natildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeo A estrateacutegia de
produzir explicaccedilatildeo com base em conhecimentos jaacute garantidos gera um regresso ao infinito na
medida em que tais conhecimentos tambeacutem devem ser explicados em funccedilatildeo de outros
conhecimentos preacutevios e assim sucessivamente se natildeo se quiser postular arbitrariamente um
fundamento que seria ele proacuteprio carente de explicaccedilatildeo e desse modo refrataacuterio agrave
inteligibilidade A alternativa sugerida por Peirce eacute de considerar os elementos formadores das
explicaccedilotildees como objetos histoacutericos e dessa maneira a hipoacutetese da cosmologia evolutiva eacute
utilizada para garantir a inteligibilidade dos elementos ao propor uma explicaccedilatildeo de sua
formaccedilatildeo isto eacute uma explicaccedilatildeo geneacutetica Especialmente as leis e suas similaridades diz Peirce
soacute podem ser explicadas a partir de uma perspectiva evolutiva (cf CP 6 sect 13 1891)
A evoluccedilatildeo eacute o modo pelo qual o universo cresce fato que se impotildee agrave experiecircncia e
segundo Peirce as explicaccedilotildees que tecircm por base apenas a atuaccedilatildeo da causalidade eficiente satildeo
incapazes de abarcaacute-lo (CP 1 sect 220 1902) O modo de efetivaccedilatildeo da evoluccedilatildeo confunde-se
assim com a proacutepria maneira da causalidade final atuar Compreendendo o processo de evoluccedilatildeo
seja do cosmo ou de qualquer outro fenocircmeno irreversiacutevel compreenderemos a concepccedilatildeo
23
original de causalidade final empregada pelo filoacutesofo Eacute nos fenocircmenos irreversiacuteveis e no
tratamento insatisfatoacuterio que o mecanicismo (cf CP 6 sect 555 1887 CP 6 sect 614 1893)12
lhes
dispensava que vamos encontrar outra motivaccedilatildeo para a proposiccedilatildeo de uma filosofia evolutiva
aliado ao ideal de ciecircncia que procura natildeo deixar sem explicaccedilatildeo aquilo que pode ser
compreendido por uma hipoacutetese mais abrangente (cf CP 6 sect 60 1892)
Levando-se em conta o sinequismo (cf CP 6 sectsect 169-73 1902)e o evolucionismo (cf CP
1 sectsect 103-9 1896) propostos por Peirce chegamos ao tema do quarto capiacutetulo desta tese o
raciociacutenio abdutivo Jaacute que uma das consequecircncias do sinequismo eacute a de que entre o homem e o
cosmo natildeo haacute qualquer descontinuidade radical que ambos satildeo expressotildees de um mesmo
processo expressotildees que possuem apenas diferenccedila de graus e de que o princiacutepio constituinte das
transformaccedilotildees que ambos sofrem eacute a evoluccedilatildeo temos assim os elementos necessaacuterios para a
compreensatildeo do modo de crescimento do proacuteprio conhecimento humano isto eacute temos condiccedilotildees
de entender porque para Peirce a ciecircncia eacute um projeto realizaacutevel uma vez desconsideradas as
questotildees sobre o tempo que o empreendimento possa tomar para se realizar (cf CP 5 sect409
1878)
O projeto peirceano inicial era o de fundar o meacutetodo de investigaccedilatildeo cientiacutefica na induccedilatildeo
entendida como processo de verificaccedilatildeo empiacuterica de hipoacuteteses Vejamos uma declaraccedilatildeo na qual
Peirce expressa sua esperanccedila na capacidade autocorretiva da induccedilatildeo
Tambeacutem natildeo devemos perder de vista a tendecircncia constante do processo
indutivo para corrigir a si mesmo Isso eacute da sua essecircncia Esta eacute a sua maravilha
A probabilidade de sua conclusatildeo soacute consiste no fato de que se o valor
verdadeiro da relaccedilatildeo procurada natildeo tiver sido alcanccedilado uma extensatildeo do
processo indutivo levaraacute a uma maior aproximaccedilatildeo (CP 2 sect 729 1883)13
12 O objetivo aqui eacute indicar a maneira que Peirce se referia ao mecanicismo e como pretendeu superaacute-lo natildeo entrarei
na discussatildeo sobre a pertinecircncia histoacuterica de suas criacuteticas 13
Nor must we lose sight of the constant tendency of the inductive process to correct itself This is of its essence
This is the marvel of it The probability of its conclusion only consists in the fact that if the true value of the ratio
sought has not been reached an extension of the inductive process will lead to a closer approximation
24
Nessa perspectiva Peirce esperava confirmar a tese de que as correccedilotildees que o processo
indutivo ocasionaria nas hipoacuteteses por meio do confronto com a experiecircncia levariam a um
refinamento das teorias conduzindo a um niacutevel de precisatildeo e seguranccedila que facultaria a
qualificaccedilatildeo das mesmas como verdadeiras No entanto apoacutes uma profunda anaacutelise o filoacutesofo
constatou que a esperanccedila de que esse processo de raciociacutenio pudesse ser autocorretivo e assim
levasse por si soacute a um desenvolvimento contiacutenuo do conhecimento mostrou-se irrealizaacutevel (cf
SKAGESTAD 1981)
A hipoacutetese desencadeadora do processo de investigaccedilatildeo deveria ela proacutepria colocar o
cientista na boa direccedilatildeo caso isso natildeo se verificasse o processo de autocorreccedilatildeo natildeo garantiria o
ecircxito da empresa como afirma o filoacutesofo ldquoUma abduccedilatildeo () eacute a uacutenica esperanccedila possiacutevel de
regulaccedilatildeo racional de nossa conduta futura ()rdquo (CP 2 sect 270 1897)14
Peirce afirma que a
atividade de lanccedilar hipoacuteteses embora faliacutevel e perfeitamente descrito como adivinhaccedilatildeo ou
palpite eacute um processo de inferecircncia loacutegica Seu significado praacutetico eacute o de que devemos agir
animados pela esperanccedila de que o homem adivinha naturalmente as melhores hipoacuteteses para
testar embora como veremos isso natildeo queira dizer que acerte sempre ou que acerte na maioria
das vezes e nem que criteacuterios para a seleccedilatildeo das hipoacuteteses a serem testadas sejam dispensaacuteveis
(cf CP 7 sect 219 1901) Essa sintonia natural entre o homem e o cosmo pode ser vista com o
resultado de um processo de seleccedilatildeo natural que concedeu aos homens essa vantagem evolutiva
para a sobrevivecircncia e da continuidade da mente mas isso natildeo explica tudo pois o alcance da
inteligibilidade humana eacute muito mais amplo do que o acircmbito restrito daqueles conhecimentos que
poderiam ter relevacircncia para a sua sobrevivecircncia (cf 6 sect 307 1893)
Explicar como a abduccedilatildeo funciona para aleacutem das circunstacircncias imediatas e cotidianas
requer a abordagem de outra importante ideia desenvolvida por Peirce de maneira original a sua
concepccedilatildeo de causalidade final o que nos leva ao tema do uacuteltimo capiacutetulo desta tese no qual se
14 An Abduction is (hellip) the only possible hope of regulating our future conduct rationally (hellip)
25
trata especificamente da causalidade final ressaltando a originalidade da concepccedilatildeo peirceana
Para tanto discutiremos em um primeiro momento a insuficiecircncia da utilizaccedilatildeo exclusiva da
causalidade eficiente nos esquemas explicativos dos processos naturais ressaltando segundo a
concepccedilatildeo de Peirce a complementariedade entre causalidade final e causalidade eficiente (cf
CP 1 sectsect 211-2 1902) Aqui se verifica que a causalidade final cumpre um duplo papel a
necessidade de sua inclusatildeo pode ser verificada tanto por razotildees epistemoloacutegicas quanto
ontoloacutegicas Seraacute realizada uma anaacutelise da hostilidade com que tal tipo de causalidade eacute tratado
pela ciecircncia moderna cujas principais objeccedilotildees jaacute foram indicadas acima (cf p 17)15
Uma vez que natildeo podemos ter acesso aos objetos externos agrave nossa experiecircncia cuja
realidade natildeo eacute mais que uma hipoacutetese que torna explicaacutevel o como e o porquecirc de termos do
mundo a experiecircncia que temos dadas as caracteriacutesticas de variaccedilatildeo e regularidade da natureza
a causalidade final eacute uma outra hipoacutetese necessaacuteria na medida em que torna o empreendimento
cientiacutefico possiacutevel isto eacute uma esperanccedila de que possamos produzir expectativas para o futuro e
comportamentos adequados moldados pelo autocontrole (cf CP 2 sect 270 1897)
Para que a ciecircncia seja possiacutevel torna-se fundamental a tarefa de bem classificar os objetos
da experiecircncia Mas qual criteacuterio adotar A escolha injustificada do criteacuterio tornaria ciecircncia uma
espeacutecie de ficccedilatildeo ou ilusatildeo A classificaccedilatildeo natural diraacute Peirce soacute pode ser obtida se
considerarmos a causa final de cada fenocircmeno ainda que isso seja um tanto vago (cf CP 1 sect
204 216 1902) Eacute a causalidade final o criteacuterio correto para a constituiccedilatildeo das diferentes classes
da experiecircncia Ora entretanto natildeo eacute no objeto externo ao homem que o criteacuterio deve ser
buscado mas na proacutepria tendecircncia de desenvolvimento dos fenocircmenos que se observa na
experiecircncia Desse modo a uacutenica ciecircncia possiacutevel eacute uma aposta que se faz um palpite que
enquanto tal eacute eminentemente faliacutevel (cf CP 1 sect 14 sect171 1897)
Como jaacute foi dito Peirce considera a ciecircncia um empreendimento eminentemente faliacutevel
15 Embora natildeo desconheccedilamos a existecircncia de uma grande bibliografia sobre o tratamento das questotildees referentes agrave
causalidade final em outros acircmbitos notadamente na biologia concentramos nossa atenccedilatildeo nesta tese somente na
discussatildeo do conceito no interior da cosmologia peirceana
26
mas ao mesmo tempo absolutamente abrangente O que nos deve guiar na elaboraccedilatildeo de nossas
teorias cientiacuteficas eacute o rigor e a completude com que explicamos o mundo da experiecircncia
A hipoacutetese que encontra na causalidade final uma importante noccedilatildeo para a possibilidade da
realizaccedilatildeo da ciecircncia que eacute marcada pela falibilidade mas ao mesmo tempo em que visa total
abrangecircncia explicativa pode ser vista como uma das etapas das tentativas realizadas por Peirce
para tornar compreensiacutevel a proacutepria existecircncia das leis isto eacute a maneira que percebemos o
mundo e um princiacutepio que nos permite controlar adequadamente a nossa conduta Concordamos
com Short quando afirma que ldquoa intenccedilatildeo da cosmologia era ser uma abordagem evolucionaacuteria
fundamental da lei per serdquo (2011 p 535)
Eacute como aponta Short (cf 2011 p 532) no periacuteodo cosmoloacutegico que Peirce desenvolve a
doutrina do idealismo objetivo (ver TIERCELIN 1998) que afirma que a mente isto eacute o
sentimento eacute anterior agrave mateacuteria Peirce indica que ldquoa uacutenica teoria inteligiacutevel do universo eacute o
idealismo objetivo que a mateacuteria eacute mente empedernida haacutebitos inveterados tornam-se leis
fiacutesicasrdquo (EP 1 p 293 1891)16
O universo desse modo eacute o resultado de um processo que tendo
se originado espontaneamente de uma neacutebula de possibilidades no iniacutecio infinitamente remoto
desenvolveu-se por meio da atuaccedilatildeo de um princiacutepio que Peirce inicialmente denominou de lei da
mente e que posteriormente natildeo sem alteraccedilotildees denominou de causalidade final ou teleologia
Retomemos as palavras do proacuteprio autor
A hipoacutetese sugerida pelo presente escritor eacute a de que todas as leis satildeo resultadas
da evoluccedilatildeo que subjacente a todas as outras leis estaacute a uacutenica tendecircncia que
pode crescer por sua proacutepria virtude a tendecircncia de todas as coisas a adquir
haacutebitos Uma vez que essa mesma tendecircncia eacute a uacutenica lei fundamental da mente
segue-se que a evoluccedilatildeo fiacutesica trabalha segundo fins da mesma forma que a accedilatildeo
mental trabalha segundo fins e portanto em um aspecto da questatildeo seria
perfeitamente correto dizer que causaccedilatildeo final eacute a uacutenica primaacuteria No entanto
por outro lado a lei de haacutebito eacute uma simples lei formal uma lei da causalidade
eficiente de modo que uma ou outra maneira de considerar o assunto eacute
16 The one intelligible theory of the universe is that of objective idealism that matter is effete mind inveterate habits
becoming physical laws
27
igualmente verdadeira embora a primeira seja mais plenamente inteligente (CP
6 sect 101 1902)17
As hipoacuteteses do caos original da lei da mente e da causalidade final podem ser vistas como
etapas em um processo de investigaccedilatildeo realizado com a finalidade de tornar compreensiacutevel o
processo pelo qual o universo se desenvolveu ateacute o momento atual e de constituir-se em um
instrumento heuriacutestico para descoberta futura de leis
17 The hypothesis suggested by the present writer is that all laws are results of evolution that underlying all other
laws is the only tendency which can grow by its own virtue the tendency of all things to take habits Now since this
same tendency is the one sole fundamental law of mind it follows that the physical evolution works towards ends in
the same way that mental action works towards ends and thus in one aspect of the matter it would be perfectly true
to say that final causation is alone primary Yet on the other hand the law of habit is a simple formal law a law of
efficient causation so that either way of regarding the matter is equally true although the former is more fully
intelligent
28
CAPIacuteTULO 01
A HIPOacuteTESE COSMOLOacuteGICA
The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in
the year 4004 BC but is going on today and never will be done is this very
development of Reason (CP 1 sect 615 1903)
29
Neste capiacutetulo seraacute feita uma apresentaccedilatildeo da hipoacutetese cosmoloacutegica peirceana e uma
discussatildeo inicial dos elementos que a constituem Partiremos da apresentaccedilatildeo da teoria da
explicaccedilatildeo desenvolvida por Charles S Peirce na qual a hipoacutetese evolucionaacuteria possui um papel
central e mostraremos como o empreendimento cristalizado na forma da hipoacutetese cosmoloacutegica
poder ser visto como um fruto tardio e necessaacuterio do seu grande projeto de garantir a realizaccedilatildeo
do empreendimento cientiacutefico e de expansatildeo do horizonte da inteligibilidade humana Esse
projeto tem sua mais importante sustentaccedilatildeo como indica o proacuteprio autor na ideia de
continuidade a qual tambeacutem receberaacute aqui uma primeira caracterizaccedilatildeo O conceito de
continuum assume no estudo de sua obra o papel de um fio condutor por meio do qual nos
moveremos entre as estruturas que datildeo sustentaccedilatildeo e encontram-se na origem do cosmo
peirceano cuja pretensatildeo eacute a de ser uma hipoacutetese explicativa do modo de ser atual do universo
Por meio da hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce apresenta os elementos principais de sua
metafiacutesica ou dito de maneira mais direta a metafiacutesica peirceana assume a forma de uma
cosmologia e mais particularmente de uma cosmogonia Eacute a maneira de pensar moldada pela
evoluccedilatildeo que daacute origem agrave apresentaccedilatildeo sob a forma de cosmogonia dos elementos de sua
hipoacutetese cosmoloacutegica
1 NAtildeO BLOQUEAR O CAMINHO DA INVESTIGACcedilAtildeO
Encontra-se presente na obra de Peirce desde seus escritos de juventude uma preocupaccedilatildeo
com a elaboraccedilatildeo de um meacutetodo adequado que nos possa conduzir com ecircxito agrave obtenccedilatildeo da
verdade nos mais variados campos da investigaccedilatildeo humana em particular no cientiacutefico (cf CP
5 sectsect 358-87 1877 5 sectsect 388-410 1878) Neste sentido a agenda de problemas com a qual se
ocupa apresenta uma motivaccedilatildeo inicial que natildeo difere muito daquela proposta e desenvolvida
pelos filoacutesofos modernos em particular por Descartes As diferenccedilas e particularidades do projeto
30
peirceano de elaboraccedilatildeo metodoloacutegica entretanto natildeo tardaratildeo a aparecer
Na seacuterie de textos de 1868-69 conhecida como ldquoseacuterie sobre cogniccedilatildeordquo vemos Peirce
analisar e criticar de maneira bastante contundente os pressupostos da filosofia cartesiana O
principal alvo da criacutetica ali desenvolvida eacute a noccedilatildeo de conhecimento intuitivo ou seja da
afirmaccedilatildeo de que temos a possibilidade de apreender de forma imediata certos tipos de ideias
Sua criacutetica consiste em mostrar que mesmo se tiveacutessemos tal tipo de apreensatildeo natildeo teriacuteamos
condiccedilatildeo de distingui-lo em meio agraves demais cogniccedilotildees que satildeo frutos da mediaccedilatildeo
representacional e desse modo da experiecircncia (cf CP 5 sectsect 283-309 1868) Em outras palavras
enquanto Descartes julgava possiacutevel a obtenccedilatildeo de conhecimento certo e seguro por meio de
premissas que natildeo eram elas proacuteprias conclusotildees Peirce afirma uma nova concepccedilatildeo da accedilatildeo
mental na qual toda premissa eacute ao mesmo tempo conclusatildeo (cf CP 5 sect 213 1868) Jaacute nesses
textos Peirce afirmava a necessidade de se pensar a cogniccedilatildeo como um processo contiacutenuo e
faliacutevel pois ainda que pudessem existir cogniccedilotildees intuitivas natildeo teriacuteamos como reconhececirc-las
(cf CP 5 sectsect 238-43 1868) O resultado de sua anaacutelise foi sintetizado que ele denominou de as
quatro incapacidades humanas
1 Natildeo temos poder de Introspecccedilatildeo todo conhecimento do mundo interno eacute
derivado do nosso conhecimento de fatos externos por raciociacutenio hipoteacutetico
2 Natildeo temos poder de Intuiccedilatildeo mas toda cogniccedilatildeo eacute determinada logicamente
por cogniccedilotildees preacutevias
3 Natildeo temos poder de pensar sem signos
4 Natildeo temos concepccedilatildeo do absolutamente incognosciacutevel (CP 5 sect 4 1868)18
18 1 We have no power of Introspection but all knowledge of the internal world is derived by hypothetical
reasoning from our knowledge of external facts
2 We have no power of Intuition but every cognition is determined logically by previous cognitions
3 We have no power of thinking without signs
4 We have no conception of the absolutely incognizable
31
Obviamente levando-se em conta essas incapacidades a afirmaccedilatildeo do conhecimento
intuitivo implica uma contradiccedilatildeo em termos que Peirce indica da seguinte maneira
() todas as faculdades cognitivas que conhecemos satildeo relativas e
consequentemente os seus produtos satildeo relaccedilotildees Mas a cogniccedilatildeo de uma relaccedilatildeo
eacute determinada por cogniccedilotildees preacutevias Nenhuma cogniccedilatildeo natildeo determinada por
uma cogniccedilatildeo preacutevia portanto pode ser conhecida Ela natildeo existe portanto em
primeiro lugar porque eacute absolutamente incognosciacutevel em segundo porque a
cogniccedilatildeo existe unicamente na medida em que eacute conhecida (EP 1 p 26
1868)19
Do ponto de vista peirceano o projeto de Descartes embora vigoroso e respeitaacutevel20
natildeo
parte de uma visatildeo realista do que eacute o homem enquanto sujeito do conhecimento para Peirce a
caracteriacutestica mais geral daqueles para os quais seu meacutetodo eacute adequado eacute o fato de serem
inteligecircncias que aprendem com a experiecircncia (cf CP 3 sect 428 1896) Eacute a partir da criacutetica a
Descartes que Peirce abre o caminho para a constituiccedilatildeo do seu proacuteprio meacutetodo de investigaccedilatildeo
tarefa que nunca abandonou Mesmo em seus escritos mais tardios podemos encontrar novas
tentativas de elaboraccedilatildeo de provas para o que veio a chamar ldquopragmatismordquo e posteriormente
ldquopragmaticismordquo
Na tentativa de escapar ao regresso das explicaccedilotildees ou da postulaccedilatildeo infundada de um
primeiro ponto de partida para a cogniccedilatildeo Peirce busca no conceito de evoluccedilatildeo presente de
maneira muito pronunciada na ciecircncia da segunda metade do seacuteculo XIX21
um outro caminho
para a fundamentaccedilatildeo do conhecimento Tal conceito assume em sua obra o caraacuteter de ldquoum
postulado da loacutegicardquo (EP 1 p 218 1884) e apenas indica que deve haver uma explicaccedilatildeo simples
19 () all the cognitive faculties we know of are relative and consequently their products are relations But the
cognition of a relation is determined by previous cognitions No cognition not determined by a previous cognition
then can be known It does not exist then first because it is absolutely incognizable and second because a
cognition only exists so far as it is known 20
Veremos posteriormente p 119 desta tese que ao classificar os tipos de meacutetodos de investigaccedilatildeo Peirce expressa
respeito com relaccedilatildeo ao meacutetodo a priori seguido por Descartes 21
Principalmente por meio do trabalho de Charles Darwin
32
para um estado de coisas complexo (cf W 4 p 547) Como um postulado22 o princiacutepio
evolucionista indica um ponto de vista sobre as coisas que se escolhe com a finalidade de
fornecer uma explicaccedilatildeo geral De uma maneira mais simples podemos dizer que a evoluccedilatildeo
representa a escolha de uma perspectiva que atende agrave necessidade de natildeo admitir que fatos
uacuteltimos sejam inexplicaacuteveis (cf CP 6 sect 604 1893) Sua funccedilatildeo enquanto princiacutepio regulador eacute
a de indicar que tipo de hipoacuteteses deve ser escolhido para satisfazer agrave necessidade expressa
acima Como afirma Rosa (2003 p 268) ldquo() eacute enquanto exigecircncia de explicabilidade que a
evoluccedilatildeo eacute um postulado da loacutegicardquo
O objeto a ser explicado por esse princiacutepio regulador natildeo eacute o contingente mas o geral
Dessa maneira o fim buscado eacute a explicaccedilatildeo do universo como uma entidade global Ele tem por
objetivo a explicaccedilatildeo das regularidades do universo ou seja busca uma explicaccedilatildeo para a
existecircncia e para a homogeneidade das leis naturais Eacute em funccedilatildeo dessa caracteriacutestica que
podemos dizer que existe uma cosmologia peirceana Peirce natildeo estava satisfeito com a
incapacidade das teorias aceitas na eacutepoca em fornecer uma explicaccedilatildeo para as leis naturais que
eram tratadas como dados aceitos sem qualquer questionamento A lei como disse em um texto
de 1891 eacute justamente aquilo que necessita de uma razatildeo (cf CP 6 sect 12 1891 1 sect 406 1890)
Na medida em que as leis naturais demonstram regularidades na sua forma de atuar colocam-se
como objeto de uma investigaccedilatildeo cuja finalidade eacute apurar por que razatildeo elas se constituiacuteram
daquela maneira As regularidades satildeo reconhece Peirce em consonacircncia com os cientistas da sua
eacutepoca o objeto de explicaccedilatildeo da ciecircncia aquele entretanto que esperasse o mesmo tratamento
para as leis teria suas expectativas frustradas de modo surpreendente
Toda investigaccedilatildeo afirma Peirce parte de uma surpresa da quebra de uma expectativa real
Em 1877 afirma ainda em oposiccedilatildeo a Descartes
Alguns filoacutesofos imaginaram que para comeccedilar uma investigaccedilatildeo soacute era
necessaacuterio proferir uma questatildeo seja oralmente ou colocando-a em uma folha de
22 Peirce afirma que os grandes avanccedilos cientiacuteficos que ainda estavam por vir seriam frutos da aplicaccedilatildeo de teorias
meacutetodos ou conceitos de uma determinada aacuterea do saber a outras Podemos ver que eacute exatamente o que estaacute fazendo
aqui ao tomar um conceito posto em evidecircncia pela teoria darwiniana como um postulado da loacutegica Esta afirmaccedilatildeo
pode ser vista como uma consequecircncia da tese sinequista
33
papel e ateacute mesmo recomendaram-nos a comeccedilar nossos estudos duvidando de
tudo Mas a mera colocaccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo na forma interrogativa natildeo
estimula a mente a batalhar pela crenccedila Deve existir uma duacutevida real e viacutevida e
sem isso toda discussatildeo eacute vatilde (CP 5 sect 376 1877)23
Esse fato conduz agrave elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses explicativas que se verdadeiras eliminariam a
surpresa do evento Esse processo como indica o filoacutesofo parte do consequente e procura
encontrar um antecedente que o explique O antecedente generaliza os dados dispersos no
consequente Ao tipo de raciociacutenio que nos possibilita criar hipoacuteteses Peirce daacute o nome de
abduccedilatildeo Conforme Rosa (2003 p 269) ldquo() o raciociacutenio abdutivo consiste no processo
imaginativo que parte do particular e procura o universal que o subsume de forma a poder
deduzir o particular a partir do universal dadordquo
A caracteriacutestica mais marcante da generalidade segundo Peirce eacute a continuidade que seraacute
investigada mais detidamente no capiacutetulo dois desta tese (cf CP 4 sect 642 1908) As ideias do
filoacutesofo acerca deste toacutepico estatildeo concentradas na doutrina chamada por ele de doutrina do
sinequismo (cf CP 6 sect 103 1892) Eacute a continuidade que daraacute sustentaccedilatildeo agrave tese evolucionista e
por meio dela agrave hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce trata o sinequismo como um princiacutepio regulador da
loacutegica da mesma maneira que havia feito com a evoluccedilatildeo
O sinequismo natildeo eacute uma doutrina metafiacutesica uacuteltima e absoluta eacute um princiacutepio
regulador da loacutegica prescrevendo que tipo de hipoacutetese eacute adequado agrave
consideraccedilatildeo e ao exame () Em resumo o sinequismo soma ao princiacutepio
segundo o qual as inexplicabilidades natildeo podem ser consideradas como
explicaccedilotildees possiacuteveis (CP 6 sect 173 1902)24
23 Some philosophers have imagined that to start an inquiry it was only necessary to utter a question or set in down
upon paper and have even recommended us to begin our studies with questioning everything But the mere putting
of a proposition into the interrogative form does not stimulate the mind to any struggle after belief There must be a
real and living doubt and without this all discussion is idle 24
Synechism is not an ultimate and absolute metaphysical doctrine it is a regulative principle of logic prescribing
what sort of hypothesis is fit to be entertained and examined () In short synechism amounts to the principle that
inexplicabilities are not to be considered as possible explanations
34
Outra formulaccedilatildeo da hipoacutetese do continuum ou uma de suas consequecircncias eacute aquela
encontrada na afirmaccedilatildeo de que os processos da natureza e os processos da mente humana satildeo
similares (cf 6 sect 289 1893) por esta razatildeo veremos o conceito de haacutebito assumir grande
importacircncia na elaboraccedilatildeo peirceana
Como ficaraacute evidente na proacutexima seccedilatildeo a exposiccedilatildeo dos elementos constituintes e dos
processos de desenvolvimento do cosmo bem como a identificaccedilatildeo do seu princiacutepio geral de
constituiccedilatildeo na lei de aquisiccedilatildeo de haacutebito ou lei da mente assume a forma de uma cosmogonia
que descreve o cosmo em termos antropomoacuterficos Ventimiglia eacute bastante direto ao afirmar que o
caraacuteter antropomoacuterfico da cosmologia peirceana a desqualifica como hipoacutetese cientiacutefica ele
afirma que ldquoa cosmologia de Charles Peirce tem tradicionalmente estado entre os menos
celebrados aspectos de seu pensamento Eacute tipicamente considerada excessivamente
antropomoacuterfica para ser uma seacuteria contribuiccedilatildeo a nossa compreensatildeo da evoluccedilatildeo da realidadeldquo
(VENTIMIGLIA 2008 p 661) Natildeo podemos portanto prosseguir sem antes considerarmos
ainda que brevemente o problema colocado por essa abordagem A dificuldade consiste em
justificar a atribuiccedilatildeo de caracteres humanos a seres ou coisas que natildeo satildeo humanos Em primeiro
lugar eacute preciso notar que Peirce estava consciente dessa dificuldade e respondeu aos seus criacuteticos
nos seguintes termos
Ouccedilo vocecirc dizer bdquoIsto cheira demais a uma concepccedilatildeo antropomoacuterfica‟
Respondo que cada explicaccedilatildeo cientiacutefica de um fenocircmeno natural eacute uma
hipoacutetese de que haacute algo na natureza ao qual a razatildeo humana eacute anaacuteloga e que
realmente eacute assim todos os sucessos da ciecircncia em suas aplicaccedilotildees agrave
conveniecircncia humanas satildeo testemunhas (CP 1 sect 316 1903)25
25 I hear you say This smacks too much of an anthropomorphic conception I reply that every scientific
explanation of a natural phenomenon is a hypothesis that there is something in nature to which the human reason is
analogous and that it really is so all the successes of science in its applications to human convenience are witnesses
35
Como inteligecircncias que aprendem com a experiecircncia e que natildeo possuem outra fonte da qual
retirar o material de seus pensamentos os humanos soacute podem compreender aquilo que tem a
forma da experiecircncia humana A proacutepria ideia de que os acontecimentos naturais se processam
segundo leis pode ser visto como uma projeccedilatildeo do modo pelo qual raciocinamos Diz Peirce
Costumamos conceber a Natureza como estando perpetuamente realizando
deduccedilotildees em Barbara Esta eacute a nossa metafiacutesica natural e antropomoacuterfica
Concebemos que haacute Leis da Natureza que satildeo as suas Regras ou premissas
maiores Concebemos que Casos surgem sob estas leis estes casos consistem na
predicaccedilatildeo ou ocorrecircncia de causas que satildeo os termos meacutedios dos silogismos
E finalmente concebemos que a ocorrecircncia destas causas em virtude das leis
da Natureza resulta em efeitos que satildeo as conclusotildees dos silogismos Conceber
a natureza dessa maneira leva-nos naturalmente a conceber a ciecircncia como tendo
trecircs tarefas - (1) a descoberta de Leis que eacute realizada por induccedilatildeo (2) a
descoberta de Causas que eacute realizado por inferecircncia hipoteacutetica e (3) a prediccedilatildeo
dos Efeitos que eacute realizada por deduccedilatildeo Parece-me ser muito uacutetil selecionar um
sistema de loacutegica que preserve todas essas concepccedilotildees natural (CP 2 sect 713
1883)26
Peirce sugere que a tarefa da ciecircncia eacute definida em funccedilatildeo daquilo que nos eacute mais familiar e
mais sistematizado ou seja o modo de realizar inferecircncia descrito por Aristoacuteteles Essa descriccedilatildeo
prescreve aquilo que se espera seja a tarefa da ciecircncia projetando sobre o mundo categorias que
satildeo proacuteprias do pensamento O que anima a realizaccedilatildeo da ciecircncia como descrita acima eacute a
esperanccedilas de que a natureza proceda de forma loacutegica e isso natildeo eacute nada mais do que uma
concepccedilatildeo antropomoacuterfica
26 We usually conceive Nature to be perpetually making deductions in Barbara This is our natural and
anthropomorphic metaphysics We conceive that there are Laws of Nature which are her Rules or major premisses
We conceive that Cases arise under these laws these cases consist in the predication or occurrence of causes which
are the middle terms of the syllogisms And finally we conceive that the occurrence of these causes by virtue of the
laws of Nature results in effects which are the conclusions of the syllogisms Conceiving of nature in this way we
naturally conceive of science as having three tasks--(1) the discovery of Laws which is accomplished by induction
(2) the discovery of Causes which is accomplished by hypothetic inference and (3) the predictio of Effects which is
accomplished by deduction It appears to me to be highly useful to select a system of logic which shall preserve all
these natural conceptions
36
A criacutetica de antropomorfismo tambeacutem foi endereccedilada agrave teoria darwinista em particular ao
seu conceito de luta (struggle) o qual informa Peirce foi acusado de ser muito antropomoacuterfico
para ser cientiacutefico (cf CP 5 sect 46 1903) Sua resposta foi dada nos seguintes termos
Mas quanto a sua natildeo cientificidade porque eacute antropomoacuterfico eacute uma objeccedilatildeo de
um tipo muito superficial que surge a partir de preconceitos com base em
consideraccedilotildees demasiado estreitas Antropomoacuterfico eacute o que praticamente todas
as concepccedilotildees satildeo na base caso contraacuterio outras raiacutezes para as palavras com as
quais satildeo expressas diferentes das velhas raiacutezes arianas teriam que ser
encontradas E com relaccedilatildeo a qualquer preferecircncia por um tipo de teoria sobre
outro eacute bom lembrar que cada verdade da ciecircncia eacute devida agrave afinidade da alma
humana com a alma do universo imperfeita como tal afinidade sem duacutevida eacute
Dizer portanto que uma concepccedilatildeo eacute natural ao homem eacute praticamente a
mesma coisa que dizer que eacute antropomoacuterfica essa eacute mais elevada das
recomendaccedilotildees que se poderia lhe dar aos olhos de um Loacutegico Exato (CP 5 sect
47 1903)27
Peirce natildeo somente estaacute consciente do aspecto antropomoacuterfico de sua teoria mas tambeacutem
elabora uma defesa das teorias que apresentam esta caracteriacutestica O antropomorfismo eacute uma
decorrecircncia da maneira como entende a possibilidade dos homens adquirirem conhecimento ou
em outras palavras da sua concepccedilatildeo de que a natureza primaacuteria do universo eacute a mente
concepccedilatildeo que pode ser sintetizada sob o roacutetulo que Peirce agraves vezes atribui ao sistema filosoacutefico
de idealismo objetivo (cf CP 6 sectsect 24-5 1891) A relaccedilatildeo entre antropomorfismo experiecircncia e
possibilidade de conhecimento eacute estabelecida nos seguintes termos
27 But as to its being unscientific because anthropomorphic that is an objection of a very shallow kind that arises
from prejudices based upon much too narrow considerations Anthropomorphic is what pretty much all
conceptions are at bottom otherwise other roots for the words in which to express them than the old Aryan roots
would have to be found And in regard to any preference for one kind of theory over another it is well to remember
that every single truth of science is due to the affinity of the human soul to the soul of the universe imperfect as that
affinity no doubt is To say therefore that a conception is one natural to man which comes to just about the same
thing as to say that it is anthropomorphic is as high a recommendation as one could give to it in the eyes of an Exact
Logician
37
() se vocecirc tivesse dito antropomorfismo eu deveria ter respondido que eu
sinceramente abraccedilo a maioria das claacuteusulas dessa doutrina se algum direito a
uma interpretaccedilatildeo particular me for permitido Eu defendo por exemplo que o
homem eacute tatildeo completamente envolvido pelos limites de sua experiecircncia praacutetica
possiacutevel sua mente eacute tatildeo restrita a ser o instrumento de suas necessidades que
ele natildeo pode nem remotamente compreender algo que transcenda aqueles
limites A consequecircncia estrita disto eacute a de que eacute absurdo dizer-lhe que natildeo deve
pensar desta ou daquela forma porque fazecirc-lo seria transcender os limites de
uma experiecircncia possiacutevel Deixe-o tentar empenhadamente pensar qualquer
coisa que esteja aleacutem desse limite isso simplesmente natildeo pode ser feito Assim
como vocecirc pode aprovar uma lei de que nenhum homem deve saltar sobre a lua
isso natildeo lhe proibiria de saltar tatildeo alto quanto possivelmente pudesse (CP 5 536
1905)28
O filoacutesofo chega a afirmar que entre duas concepccedilotildees quaisquer uma com caraacuteter
antropomoacuterfico e outra natildeo preferiria a primeira pois ldquo() outras coisas permanecendo iguais
uma concepccedilatildeo antropomoacuterfica quer faccedila o melhor nuacutecleo para uma hipoacutetese de trabalho
cientiacutefico ou natildeo eacute muito mais provaacutevel que seja aproximadamente verdadeira do que aquela que
natildeo eacute antropomoacuterficaldquo (CP 5 notas 1903)29
Os elementos de todo conceito diz o autor entram
no pensamento loacutegico pela percepccedilatildeo e saem na forma de uma accedilatildeo propositada aqueles que
ldquo() natildeo podem apresentar seus passaportes nos dois portotildees devem ser detidos como natildeo
autorizados pela razatildeoldquo (CP 5 sect 212 1903)30
A exigecircncia de compreensibilidade eacute a principal
caracteriacutestica de toda hipoacutetese desse modo eacute natural que o aspecto antropomoacuterfico confira-lhes
de saiacuteda uma maior recomendaccedilatildeo Diz Peirce ldquo() que a uacutenica justificaccedilatildeo possiacutevel para uma
hipoacutetese eacute que ela torna os fatos compreensiacuteveis e que supocirc-los absolutamente incompreensiacuteveis
28 () if you had said Anthropomorphism I should have replied that I heartily embrace most of the clauses of that
doctrine if some right of private interpretation be allowed me I hold for instance that man is so completely
hemmed in by the bounds of his possible practical experience his mind is so restricted to being the instrument of his
needs that he cannot in the least mean anything that transcends those limits The strict consequence of this is that it
is all nonsense to tell him that he must not think in this or that way because to do so would be to transcend the limits
of a possible experience For let him try ever so hard to think anything about what is beyond that limit it simply
cannot be done You might as well pass a law that no man shall jump over the moon it wouldnt forbid him to jump
just as high as he possibly could 29
() other things being equal an anthropomorphic conception whether it makes the best nucleus for a scientific
working hypothesis or not is far more likely to be approximately true than one that is not anthropomorphic 30
() and whatever cannot show its passports at both those two gates is to be arrested as unauthorized by reason
38
(que eacute o que a doutrina do incognosciacutevel faz) eacute natildeo os tornar compreensiacuteveisldquo (CP 1 sect 316
1903)31
A fim de natildeo introduzir o inexplicaacutevel na natureza Peirce reconhece a necessidade de se
perguntar sobre a proacutepria origem das leis naturais que nas teorias necessitaristas32
entatildeo aceitas
como dissemos satildeo consideradas como dados inquestionaacuteveis
2 UMA ESTOacuteRIA BIZARRA
A centralidade do conceito de haacutebito na filosofia de Charles S Peirce eacute amplamente
reconhecida da mesma forma que o significado peculiar que este lhe atribui A partir de 1890
tendo conseguido vaacuterios avanccedilos no estabelecimento das categorias da experiecircncia Peirce
oferece uma interpretaccedilatildeo da noccedilatildeo de haacutebito por meio da qual lhe eacute conferida um estatuto
ontoloacutegico distanciando-a dessa maneira tanto da noccedilatildeo humeana como daquela utilizada pelos
psicoacutelogos do iniacutecio do seacuteculo XX Como afirma Bortolotti (2003 p 1) ldquo() o haacutebito passa a ser
a categoria universal da lei dotado de objetividaderdquo Como uma lei geral o haacutebito se entranha na
proacutepria constituiccedilatildeo do cosmo Eacute por meio do estabelecimento crescente do haacutebito tanto nos
homens quanto na natureza que se explica a diminuiccedilatildeo das variaccedilotildees e o aumento das
regularidades tanto quanto o incremento do poder humano de compreender o mundo e produzir
um comportamento autocontrolado
Por meio dos haacutebitos a capacidade humana de criar expectativas eacute desenvolvida e pelo
mesmo movimento produz-se um incremento no controle de suas proacuteprias experiecircncias Em um
texto de 1902 Peirce traccedila um quadro no qual eacute definida a noccedilatildeo de haacutebito e sua relaccedilatildeo com
31 () that the only possible justification for a hypothesis is that it renders the facts comprehensible and that to
suppose them absolutely incomprehensible (which is what the doctrine of the Unknowable comes to) is not rendering
them comprehensible 32
Necessitaristas eacute o adjetivo que Peirce utiliza para se referir aos adeptos do mecanicismo cuja principal
caracteriacutestica na opiniatildeo do autor eacute a afirmaccedilatildeo de que cada fato singular do universo eacute precisamente determinado
por lei (cf CP 6 sect 36 1892)
39
uma seacuterie de conceitos que lhe satildeo proacuteximos nele o autor declara
Uma expectativa eacute um haacutebito de imaginaccedilatildeo Um haacutebito natildeo eacute uma afecccedilatildeo da
consciecircncia eacute uma lei geral de accedilatildeo de tal forma que em certo tipo geral de
ocasiatildeo um homem estaraacute mais ou menos apto a agir de certo modo geral Uma
imaginaccedilatildeo eacute uma afecccedilatildeo da consciecircncia que pode ser diretamente comparada
com um percepto com respeito a alguma caracteriacutestica especial e ser
considerada em acordo ou desacordo com ele () Naturalmente cada
expectativa eacute uma questatildeo de inferecircncia () Para nosso objetivo presente eacute
suficiente dizer que um processo inferencial envolve a formaccedilatildeo de um haacutebito
Pois ele produz uma crenccedila ou opiniatildeo e uma crenccedila ou opiniatildeo genuiacutena eacute
algo sobre cujo conteuacutedo o homem estaacute preparado para agir e eacute portanto em um
sentido geral um haacutebito () Pois cada haacutebito tem ou eacute uma lei geral Tudo o
que eacute verdadeiramente geral refere-se ao futuro indefinido pois o passado
conteacutem unicamente uma certa coleccedilatildeo daqueles casos que ocorreram O passado
eacute fato real Mas o (fato) geral natildeo pode ser completamente realizado Eacute uma
potencialidade e o seu modo de ser eacute esse in futuro (CP 2 sect 148 1902)33
Percebemos na longa citaccedilatildeo acima que Peirce deixa claro que a noccedilatildeo de haacutebito estaacute
estreitamente ligada agrave noccedilatildeo de geral que por sua vez eacute outra maneira de fazer referecircncia agraves leis
Toda lei eacute geral e desse modo um haacutebito A noccedilatildeo de haacutebito ultrapassa o aspecto psicoloacutegico
para tornar-se uma categoria ontoloacutegica a de lei
Segundo a teoria do sinequismo reconhecida como a pedra fundamental da arquitetocircnica
peirceana todo geral eacute um continuum Peirce afirma que ldquo() continuidade e generalidade satildeo
dois nomes para a mesma falta de distinccedilatildeo de indiviacuteduosrdquo (CP 4 sect 172 1897)34
Assim ao
falarmos de haacutebitos gerais e em suas constituiccedilotildees estamos referindo agrave proacutepria origem e
33 An expectation is a habit of imagining A habit is not an affection of consciousness it is a general law of action
such that on a certain general kind of occasion a man will be more or less apt to act in a certain general way An
imagination is an affection of consciousness which can be directly compared with a percept in some special feature
and be pronounced to accord or disaccord with it () Of course every expectation is a matter of inference () For
our present purpose it is sufficient to say that the inferential process involves the formation of a habit For it produces
a belief or opinion and a genuine belief or opinion is something on which a man is prepared to act and is
therefore in a general sense a habit () For every habit has or is a general law Whatever is truly general refers to
the indefinite future for the past contains only a certain collection of such cases that have occurred The past is
actual fact But a general (fact) cannot be fully realized It is a potentiality and its mode of being is esse in futuro 34
() continuity and generality are two names for the same absence of distinction of individuals
40
constituiccedilatildeo das leis em particular e para os interesses deste texto das leis naturais ou seja
deslocamo-nos para o campo das discussotildees cosmoloacutegicas e cosmogocircnicas Coerente com sua
determinaccedilatildeo de banir o inexplicaacutevel do reino da ciecircncia Peirce ataca o problema da origem do
universo que usualmente era deixado sem explicaccedilatildeo Para aleacutem da origem a maacutexima que
ordena expandir o horizonte da inteligibilidade cientiacutefica requer uma explicaccedilatildeo da proacutepria
passagem da natildeo-existecircncia para a existecircncia
A maneira como o haacutebito se instaura e cresce eacute propriamente o modo por meio do qual a
cosmogonia peirceana explica o surgimento do cosmo A estrutura mais geral de cosmologia
peirceana eacute indicada pelo filoacutesofo na seguinte passagem
() no iniacutecio - infinitamente remoto - havia um caos de sentimentos impessoais
o qual sem conexatildeo ou regularidade seria propriamente carente de existecircncia
Esse sentimento variando aqui e ali na pura arbitrariedade teria iniciado o
germe da tendecircncia generalizante Suas outras variaccedilotildees poderiam ser
evanescentes mas esta teria uma virtude de crescimento Assim a tendecircncia ao
haacutebito teria comeccedilado e a partir daiacute com os outros princiacutepios de evoluccedilatildeo todas
as regularidades do universo teriam se desenvolvido Em qualquer tempo
entretanto um elemento de puro acaso sobrevive e permaneceraacute ateacute que o
mundo se torne um sistema absolutamente perfeito racional e simeacutetrico no qual
a mente eacute por fim cristalizada em um futuro infinitamente distante (CP 6 sect 33
1891)35
Esta citaccedilatildeo apresenta de forma condensada a narraccedilatildeo do iniacutecio do universo O trabalho
deste capiacutetulo eacute o de compreender os elementos aqui apresentados e as teorias que sustentam esta
abordagem Nota-se que uma vez iniciado o processo de crescimento do universo tanto a accedilatildeo do
acaso como a atuaccedilatildeo das regularidades e ateacute mesmo os eventos catastroacuteficos atuaratildeo para
35 () in the beginning -- infinitely remote -- there was a chaos of unpersonalized feeling which being without
connection or regularity would properly be without existence This feeling sporting here and there in pure
arbitrariness would have started the germ of a generalizing tendency Its other sportings would be evanescent but
this would have a growing virtue Thus the tendency to habit would be started and from this with the other
principles of evolution all the regularities of the universe would be evolved At any time however an element of
pure chance survives and will remain until the world becomes an absolutely perfect rational and symmetrical
system in which mind is at last crystallized in the infinitely distant future
41
formar o universo que conhecemos por meio da experiecircncia
21 O NADA
Peirce como indica Rosa identifica um processo que ocorre antes da proacutepria existecircncia do
universo Um processo de diferenciaccedilatildeo que ocorre no interior do nada e o distingue em dois
tipos um nada caoacutetico e um nada ainda mais primitivo Nas palavras de Rosa
O nada primitivo eacute um estado em que o ldquouniverso natildeo existiardquo um ldquoabsoluto
nadardquo Contudo esse Nada absoluto tem propriedades notaacuteveis na medida em
que a totalidade do universo atual jaacute se encontrava nele em germe com efeito
ele representa a totalidade das possibilidades (ROSA 2003 p 291)
Esse nada pode ser entendido como uma entidade loacutegica constituiacuteda por predicados que
sejam compatiacuteveis Nesse nada portanto encontram-se fundidas todas as possibilidades
consistentes do universo Ele eacute como Peirce indicou o mundo platocircnico (cf CP 6 sect 192 1892)
a partir do qual o mundo surgiu por meio de uma determinaccedilatildeo arbitraacuteria Em outro texto ao
introduzir a hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce afirma
Devemos supor que haacute alguma coisa como uma folha de papel vazia ou com um
espaccedilo vazio sobre o qual um signo interpretante possa ser escrito Qual a
natureza desse vazio Ao permitir a escrita de um siacutembolo ele eacute ipso facto um
siacutembolo embora de um tipo completamente vago (NEM 4 p 260)36
36 We must suppose that there is something like a sheet of paper blank or with a blank space upon it upon which an
interpretant sign may be written What is the nature of this blank In affording room for the writing of a symbol it is
ipso facto itself a symbol although a wholly vague one
42
Esse vazio soacute pode ser um continuum completamente vago37 no qual todas as
possibilidades coerentes estatildeo completamente fundidas O nada eacute nessa etapa um continuum de
infinitas dimensotildees potenciais natildeo distintas (cf CP 6 sect 132 1892 CP 6 sect 193 1898 CP 6 sect
203 1898)
Do nada assim descrito por um processo de contraccedilatildeo da potencialidade em generalidade
surgem as diferentes dimensotildees qualitativas por meio da evoluccedilatildeo que tem lugar antes mesmo
da existecircncia do universo Como afirma Peirce ldquoO processo evolucionaacuterio eacute portanto natildeo uma
mera evoluccedilatildeo do universo existente mas antes um processo pelo qual as proacuteprias formas
platocircnicas se desenvolveram ou se desenvolvemrdquo (CP 6 sect 194 1898)38
Nessa evoluccedilatildeo o
possiacutevel contrai-se no geral por meio de um processo de diferenciaccedilatildeo
A evoluccedilatildeo das formas tem iniacutecio ou em alguma medida possui em seu estaacutegio
inicial uma vaga possibilidade e que eacute ou eacute seguido por um continuum de
formas que possui uma quantidade de dimensotildees muito grande para que a
dimensatildeo individual seja distinta Deve ser a partir da contraccedilatildeo da vagueza
daquela potencialidade de tudo em geral mas de nada em particular que o
mundo das formas surge () e as relaccedilotildees de suas dimensotildees tornam-se
definidas e contraiacutedas (CP 6 sectsect 196-7 1898)39
Do ponto de vista cosmoloacutegico cada dimensatildeo constitui uma qualidade una Aqui temos a
origem do princiacutepio de contradiccedilatildeo no momento da definiccedilatildeo dessas dimensotildees qualitativas
37 A natureza desse continuum potencial merece alguma atenccedilatildeo pois a continuidade presente na origem eacute distinta
daquela recuperada em termos de lei apoacutes o processo evolucionaacuterio entrar em cena Aparentemente a relaccedilatildeo entre
continuidade e lei natildeo eacute simeacutetrica toda lei tem a natureza de um continuum mas natildeo se pode dizer que o inverso seja
verdadeiro Eacute por meio da transformaccedilatildeo do continuum inicial no continuum atual que as formas individuais podem
se estabelecer 38
The evolutionary process is therefore not a mere evolution of the existing universe but rather a process by which
the very Platonic forms themselves have become or are becoming developed 39
The evolution of forms begins or at any rate has for an early stage of it a vague potentiality and that either is or
is followed by a continuum of forms having a multitude of dimensions too great for the individual dimensions to be
distinct It must be by a contraction of the vagueness of that potentiality of everything in general but of nothing in
particular that the world of forms comes about () the relations of its dimensions became definite and contracted
43
Peirce diz ldquoO Agora eacute uno e apenas uno O princiacutepio de contradiccedilatildeo pode ser visto como um
resultado formal da mesma coisa Qualquer objeto A natildeo pode ser azul e natildeo azul ao mesmo
tempordquo (CP 6 sect 231 1898)40
O estado desse nada caoacutetico de n dimensotildees eacute algo que natildeo podemos conceber claramente
mas o processo de formaccedilatildeo das qualidades distintas eacute descrito por Peirce da seguinte maneira
Atualmente jaacute natildeo podemos formar senatildeo uma tecircnue concepccedilatildeo acerca da
continuidade das qualidades intriacutensecas de sentimento O desenvolvimento da
mente humana extinguiu praticamente todos os sentimentos exceto algumas
espeacutecies esporaacutedicas como sons cores cheiros calor etc as quais aparecem
agora desconectadas e diferentes No caso das cores haacute uma difusatildeo
tridimensional de sentimentos Originariamente todos os sentimentos podem ter
estado conectados da mesma forma e a suposiccedilatildeo consiste em que o nuacutemero de
dimensotildees era infinito Na verdade o desenvolvimento envolve de modo
essencial uma limitaccedilatildeo de possibilidade (CP 6 sect 132 1892)41
Na medida em que o continuum inicial vai sendo cindido em n dimensotildees tem iniacutecio um
processo de resistecircncia reciacuteproca entre as dimensotildees Vemos aiacute a atuaccedilatildeo de duas tendecircncias que
se colocavam como meras potencialidades no nada original a tendecircncia agrave diversificaccedilatildeo e a
tendecircncia agrave generalizaccedilatildeo que garante a permanecircncia das dimensotildees e elimina a diversificaccedilatildeo Eacute
a atuaccedilatildeo dessas duas tendecircncias que permite a Peirce estabelecer um importante princiacutepio o
princiacutepio de semelhanccedila e contraste
A semelhanccedila eacute determinada pela posiccedilatildeo que a qualidade ocupa no continuum Peirce diz
que
40 The Now is one and but one The principle of contradiction may be regarded as a formalistic result of the same
thing Any object A cannot be blue and not blue at once 41
Of the continuity of intrinsic qualities of feeling we can now form but a feeble conception The development of the
human mind has practically extinguished all feelings except a few sporadic kinds sound colours smells warmth
etc which now appear to be disconnected and disparate In the case of colours there is a tridimensional spread of
feelings Originally all feelings may have been connected in the same way and the presumption is that the number
of dimensions was endless For development essentially involves a limitation of possibilities
44
Apesar das qualidades naquilo que elas satildeo para si mesmas cada uma sendo um
mero nada para qualquer outra natildeo estarem relacionadas umas com as outras
elas formam contudo um continuum no qual por causa da posiccedilatildeo que nele
ocupam adquirem mais ou menos semelhanccedila e contraste umas em relaccedilatildeo agraves
outras (NEM 4 p 137 ca 1898)42
Eacute a partir da semelhanccedila e contraste que Peirce enuncia a lei da mente a qual seraacute discutida
em mais detalhes na sequecircncia Uma primeira definiccedilatildeo de lei da mente pode ser encontrada nas
seguintes palavras de Peirce
() as ideias tendem a difundir-se continuamente e a afetar certas outras que se
encontram com elas em uma peculiar relaccedilatildeo de afetabilidade Nessa difusatildeo
elas perdem intensidade e especialmente o poder de afetar outras mas adquirem
generalidade e ficam fundidas com outras ideias (CP 6 sect 104 1892)43
Em siacutentese deixando de lado os pormenores da formulaccedilatildeo peirceana pode-se resumir a
hipoacutetese da origem do universo da maneira que se segue Identificam-se trecircs estaacutegios dessa
origem em um primeiro no iniacutecio absoluto antes da proacutepria existecircncia do universo encontra-se
o puro nada segundo a descriccedilatildeo fornecida por Peirce
A condiccedilatildeo inicial antes da existecircncia do universo natildeo foi o estado de um ser
puro e abstrato Ao contraacuterio foi o estado de um absoluto nada nem mesmo um
estado de vazio pois mesmo o vazio eacute alguma coisa Se vamos proceder de um
modo loacutegico e cientiacutefico devemos a fim de considerar todo o universo supor
42 But just as the qualities which as they are for themselves are equally unrelated to one other each being mere
nothing for any other yet form a continuum in which and because of their situation in which they acquire more or
less resemblance and contrast with one and other 43
() ideas tend to spread continuously and to affect certain others which stand to them in a peculiar relation of
affectability In this spreading they lose intensity and especially the power of affecting others but gain generality
and become welded with other ideas
45
uma condiccedilatildeo inicial na qual o universo completo era carente de existecircncia e
assim um estado de absoluto nada (CP 6 sect 215 1898)44
e acrescenta
Natildeo haacute coisa individual nenhuma compulsatildeo externa ou interna nenhuma lei
Eacute o nada germinal no qual todo o universo estaacute envolvido ou prenunciado
Como tal ele eacute possibilidade absolutamente indefinida e ilimitada ndash
possibilidade sem fronteiras Natildeo haacute compulsatildeo nem lei Eacute a liberdade sem
fronteiras (CP 6 sect 217 1898)45
O nada assim descrito eacute um estado indiferenciado de qualidade de sentimento sem relaccedilatildeo
com qualquer outra coisa nos termos peirceanos o sentimento eacute monaacutedico46
A existecircncia do
universo nesse momento era apenas uma das possibilidades tatildeo provaacutevel quanto a sua natildeo
existecircncia O segundo estaacutegio caracterizado pela reaccedilatildeo surge de uma singularidade no interior
do estado de indiferenciaccedilatildeo Peirce fala de reaccedilotildees acidentais ou bdquoflashesrsquo entre os eventos (cf
CP 3 sect 412 1890) isto eacute do surgimento de relaccedilotildees diaacutedicas expressas por reaccedilotildees brutas O
terceiro estaacutegio surge por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo de uma das possibilidades que tem na sua
atualizaccedilatildeo a virtude do seu proacuteprio crescimento isto eacute de tornar mais provaacutevel a sua repeticcedilatildeo
na sequecircncia dos eventos No iniacutecio essas regularidades seriam bastante deacutebeis mas com o
reforccedilo promovido pelo aumento da possibilidade de sua repeticcedilatildeo futura elas se tornariam cada
vez mais fortes ateacute transformarem-se em um haacutebito A regularidade estabelece um tipo de relaccedilatildeo
44 The initial condition before the universe existed was not a state of pure abstract being On the contrary it was a
state of just nothing at all not even a state of emptiness for even emptiness is something If we are to proceed in a
logical and scientific manner we must in order to account for the whole universe suppose an initial condition in
which the whole universe was non-existent and therefore a state of absolute nothing 45
There is no individual thing no compulsion outward nor inward no law It is the germinal nothing in which the
whole universe is involved or foreshadowed As such it is absolutely undefined and unlimited possibility --
boundless possibility There is no compulsion and no law It is boundless freedom 46
Peirce pretende ter provado que todas as relaccedilotildees podem ser reduzidas a trecircs tipos baacutesicos monaacutedicas nas quais os
elementos natildeo possuem quaisquer relaccedilotildees a natildeo ser com eles mesmos eacute o sentimento em sua mais pura expressatildeo
diaacutedicas que eacute a relaccedilatildeo entre dois agraves vezes descrita como atrito ou resistecircncia e triaacutedicas relaccedilatildeo de mediaccedilatildeo
46
triaacutedica caracterizada por um terceiro que faz a mediaccedilatildeo entre um primeiro e um segundo47
Em uma passagem um pouco longa mas muito esclarecedora Peirce traccedila as relaccedilotildees entre
os trecircs elementos constituintes do cosmo e como diante deles o homem pode compreender o
mundo e falar sobre ele
() de acordo com meu modo de ver haacute trecircs categorias de ser ideias de
sentimentos atos de reaccedilatildeo e haacutebitos Haacutebitos satildeo haacutebitos a respeito de
ideias de sentimentos ou haacutebitos a respeito de atos de reaccedilatildeo O conjunto
de todos os haacutebitos a respeito de ideias de sentimentos constitui um
grande haacutebito que eacute um Mundo e o conjunto de todos os haacutebitos a
respeito de haacutebitos de reaccedilatildeo constitui um segundo grande haacutebito que eacute
outro Mundo O primeiro eacute o Mundo Interior o mundo das formas de
Platatildeo O outro eacute o Mundo Exterior ou universo da existecircncia A mente
do homem estaacute adaptada agrave realidade do ser De acordo com isso haacute dois
modos de associaccedilatildeo de ideias associaccedilatildeo interior baseada em haacutebitos do
Mundo Interior e associaccedilatildeo exterior baseada em haacutebitos do Universo A
primeira eacute comumente chamada associaccedilatildeo por semelhanccedila mas em
minha opiniatildeo natildeo eacute a semelhanccedila que causa a associaccedilatildeo mas a
associaccedilatildeo que constitui a semelhanccedila Uma ideia de um sentimento eacute
como ela eacute em si mesma sem quaisquer elementos ou relaccedilotildees Um matiz
de vermelho em si mesmo natildeo se assemelha a outro matiz de vermelho
De fato quando falamos de um matiz de vermelho natildeo eacute da ideia de
sentimento que estamos falando mas de um conjunto de tais ideias Essa
unificaccedilatildeo no Mundo Interior que constitui o que apreendemos e a que
denominamos sua semelhanccedila Estando nossas mentes consideravelmente
adaptadas ao Mundo Interior as ideias de sentimentos atraem-se umas agraves
outras em nossas mentes e no curso de nossa experiecircncia do Mundo
Interior desenvolvem conceitos gerais A tais conjuntos chamamos
qualidades sensiacuteveis Associaccedilotildees de nossos pensamentos tendo por base
os atos de reaccedilatildeo satildeo denominadas associaccedilotildees por contiguidade uma
expressatildeo com a qual natildeo discutirei pois somente os atos de reaccedilatildeo
podem ser contiacuteguos Pois ser contiacuteguo eacute estar proacuteximo no espaccedilo e em
um soacute tempo e somente um ato de reaccedilatildeo pode preencher um espaccedilo por
ele mesmo A mente por sua adaptaccedilatildeo instintiva ao Mundo Exterior
representa as coisas como estando no espaccedilo o qual eacute sua representaccedilatildeo
intuitiva da conjunccedilatildeo de reaccedilotildees ou para usar uma frase mais familiar
um centro de forccedilas Consequentemente desse duplo modo de associaccedilatildeo
de ideias quando algueacutem chega a formar uma linguagem produz palavras
de duas classes palavras que denominam coisas coisas essas que ele
identifica pela uniatildeo de suas reaccedilotildees essas palavras satildeo nomes proacuteprios e
47 Temos por meio da narraccedilatildeo acima uma caracterizaccedilatildeo inicial das categorias fenomenoloacutegicas peirceana
primeiridade caracterizada por relaccedilotildees monaacutedicas secundidade caracterizada por relaccedilotildees diaacutedicas e terceiridade
caracterizada por relaccedilotildees triaacutedicas (cf IBRI 1992)
47
palavras que significam ou querem dizer qualidades que satildeo fotografias
compostas de ideias de sentimentos e tais palavras satildeo verbos ou porccedilotildees
de verbos tais como satildeo os adjetivos os substantivos comuns etc (CP 4
sect 157 1897)48
A espontaneidade potencial ou puro sentimento deu origem ao universo atual que
continua em crescimento Entre as possibilidades uma destacou-se por ter a cada realizaccedilatildeo o
incremento da possibilidade de suas realizaccedilotildees futuras Peirce denomina essa possibilidade
peculiar de princiacutepio motor responsaacutevel pela origem e desenvolvimento das regularidades de lei
da mente lei de associaccedilatildeo de ideias ou lei do haacutebito Rosa (2003) tece o seguinte comentaacuterio a
respeito da origem do universo segundo a cosmologia peirceana
O comeccedilo do processo cosmogocircnico consiste precisamente num processo que
parte de uma alta intensidade de grande espontaneidade e que tende a anular
essa intensidade atraveacutes de ideias gerais As ideias gerais reduzem a intensidade
na medida em que satildeo atractores para outras ideias situadas na sua vizinhanccedila
Noutros termos houve um momento em que uma grande quantidade de
48 () according to my view there are three categories of being ideas of feelings acts of reaction and habits Habits
are either habits about ideas of feelings or habits about acts of reaction The ensemble of all habits about ideas of
feeling constitutes one great habit which is a World and the ensemble of all habits about acts of reaction constitutes
a second great habit which is another World The former is the Inner World the world of Platos forms The other is
the Outer World or universe of existence The mind of man is adapted to the reality of being Accordingly there are
two modes of association of ideas inner association based on the habits of the inner world and outer association
based on the habits of the universe The former is commonly called association by resemblance but in my opinion it
is not the resemblance which causes the association but the association which constitutes the resemblance An idea
of a feeling is such as it is within itself without any elements or relations One shade of red does not in itself
resemble another shade of red Indeed when we speak of a shade of red it is already not the idea of the feeling of
which we are speaking but of a cluster of such ideas It is their clustering together in the Inner World that constitutes
what we apprehend and name as their resemblance Our minds being considerably adapted to the inner world the
ideas of feelings attract one another in our minds and in the course of our experience of the inner world develop
general concepts What we call sensible qualities are such clusters Associations of our thoughts based on the habits
of acts of reaction are called associations by contiguity an expression with which I will not quarrel since nothing
can be contiguous but acts of reaction For to be contiguous means to be near in space at one time and nothing can
crowd a place for itself but an act of reaction The mind by its instinctive adaptation to the Outer World represents
things as being in space which is its intuitive representation of the clustering of reactions What we call a Thing is a
cluster or habit of reactions or to use a more familiar phrase is a centre of forces In consequence of this double
mode of association of ideas when man comes to form a language he makes words of two classes words which
denominate things which things he identifies by the clustering of their reactions and such words are proper names
and words which signify or mean qualities which are composite photographs of ideas of feelings and such words
are verbs or portions of verbs such as are adjectives common nouns etc
48
sentimento estava associada a cada qualidade era um estado de espontaneidade
ilimitada das qualidades um sentimento muito intenso presente em cada
variaccedilatildeo infinitesimal Essa espontaneidade diminui assim que deixa de haver o
sentimento de variaccedilotildees ldquomuito pequenasrdquo da qualidade (CP 6 sect 136 1892) Jaacute
natildeo eacute a passagem do Nada inicial para qualquer coisa de definido mas sim do
que Peirce chamava o caos inicial das qualidades para uma generalizaccedilatildeo cada
vez maior (ROSA 2003 p 297-8)
A narraccedilatildeo da origem do universo pode parecer para muitos algo bastante estranho e em
desacordo com o todo da obra peirceana Um de seus comentadores a denominou de ldquoestoacuteria
bizarrardquo (cf HOOKWAY 1997) A leitura dessa narrativa faz surgir de imediato duas criacuteticas
Em primeiro lugar pode argumentar-se que as categorias peirceanas de primeiridade
secundidade e terceiridade natildeo satildeo universais uma vez que natildeo estatildeo presentes desde o iniacutecio (cf
HOOKWAY 1985 p 273) A categoria de terceiridade soacute teria surgido depois que a tendecircncia ao
estabelecimento de haacutebitos estivesse operante e no iniacutecio absoluto natildeo haveria sequer a
secundidade Uma maneira de evitar essa criacutetica eacute lembrar que para Peirce a sequecircncia descrita
acima eacute loacutegica (cf CP 6 sect 214 1898) e natildeo cronoloacutegica aliaacutes como deixa bastante claro o
tempo eacute um continuum e desse modo soacute entra em cena apoacutes o estabelecimento da terceiridade Eacute
o processo loacutegico descrito acima que lhe daacute origem Por meio desse raciociacutenio a universalidade
de suas categorias eacute preservada ainda que sua limitaccedilatildeo neste caso talvez fosse um preccedilo que
Peirce estivesse disposto a pagar Esta resposta pode ser enriquecida com a consideraccedilatildeo de que eacute
impossiacutevel atingir o iniacutecio absoluto Mesmo se pudeacutessemos voltar no tempo veriacuteamos as leis se
tornarem mais e mais deacutebeis e a variedade crescer constantemente afirma Peirce Contudo ainda
que a aproximaccedilatildeo do iniacutecio absoluto se tornasse cada vez maior natildeo poderiacuteamos atingi-lo
Como aponta Hookway
Ainda que nunca atingiacutessemos o caos inicial de sentimentos ainda assim
poderiacuteamos ficar arbitrariamente proacuteximos dele se continuaacutessemos por um
tempo suficiente longo o caos eacute algo que a histoacuteria poderia abordar como um
limite e o pensamos como o ponto limite dessa histoacuteria (HOOKWAY 1985 p
273)
49
Do mesmo modo pensar o fim uacuteltimo do universo como um estado absolutamente
ordenado e regular eacute tambeacutem um limite ao qual podemos apenas nos aproximar mais e mais sem
contudo alcanccedilar Quando Peirce se refere a tais estados limites coloca-os em momentos
infinitamente distantes e infinito aqui natildeo deve ser interpretado como uma figura de linguagem
mas como refletindo exatamente o intervalo que nos separa desses momentos
A outra criacutetica possiacutevel eacute a de que Peirce postula a existecircncia de um caos de indeterminaccedilatildeo
e possibilidades sem contudo fornecer qualquer explicaccedilatildeo ao mesmo Formulada de outra
forma bastante proacutexima da criacutetica endereccedilada a Peirce por Paul Carus49 como explicar a
presenccedila desses elementos fundamentais indicados por Peirce como iniciadores do processo de
desenvolvimento evolutivo do universo isto eacute do caos inicial das reaccedilotildees ao acaso e da
tendecircncia ao haacutebito
Em 1892 no texto ldquoA doutrina da necessidade examinadardquo ao realizar a defesa da
existecircncia do acaso absoluto como um princiacutepio operante no desenvolvimento do cosmo Peirce
afirma que a lei eacute justamente aquilo que necessita de uma explicaccedilatildeo ao passo que exigir o
mesmo para o acaso seria um equiacutevoco O caos inicial natildeo eacute ou seja natildeo possui o predicado de
existecircncia visto que a potencialidade eacute sua uacutenica propriedade A existecircncia segundo a
abordagem peirceana eacute uma relaccedilatildeo de dois caracterizada pelo atrito e pela resistecircncia o caos
inicial eacute pura possibilidade de qualidade e enquanto tal apresenta apenas relaccedilotildees monaacutedicas
radicalmente livres Como afirma Hookway ldquo() o caos inicial - sendo um estado carente de
existecircncia ou realidade um estado de puro nada - natildeo eacute o tipo de coisa que precisa ser explicadordquo
(HOOKWAY 1985 p 274) Nem o caos inicial e nem mesmo os eventos puramente reativos ou
flashes necessitam de qualquer explicaccedilatildeo o mesmo natildeo se pode dizer contudo da tendecircncia agrave
aquisiccedilatildeo de haacutebitos que eacute uma regularidade Seguindo o mesmo raciociacutenio que fizemos
anteriormente se retornaacutessemos ao passado veriacuteamos o poder da tendecircncia agrave aquisiccedilatildeo de
haacutebitos diminuir cada vez mais contudo nunca chegariacuteamos a um momento em que estivesse
ausente dos ingredientes constituintes do cosmo E na medida em que eacute uma possibilidade a sua
49 Editor do The Monist jornal que recebeu muitas contribuiccedilotildees de Peirce
50
origem pode ser explicada a partir da espontaneidade do caos inicial
22 O ACASO
Para Peirce a adoccedilatildeo da noccedilatildeo de acaso eacute em primeiro lugar uma necessidade da proacutepria
teoria da explicaccedilatildeo A sua introduccedilatildeo eacute feita por meio da sujeiccedilatildeo a um imperativo loacutegico
alusivo agrave hipoacutetese peirceana de que toda questatildeo que possa ser formulada de modo inteligiacutevel
tem necessariamente que possuir uma resposta racional Como afirma em um texto de 1884
ldquoDesiacutegnio e acasordquo
() a hipoacutetese do acaso absoluto eacute parte e parcela da hipoacutetese de que tudo eacute
explicaacutevel natildeo absolutamente rigidamente sem a menor inexatidatildeo ou exceccedilatildeo
esporaacutedica pois esta eacute uma suposiccedilatildeo autocontraditoacuteria contudo explicaacutevel de
modo geral A capacidade de explicaccedilatildeo natildeo tem limite determinado amp absoluto
(W 4 p 549 1883-4)50
O imperativo que manda ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo tem nessas palavras
uma de suas traduccedilotildees Como aponta Peirce um dos principais defeitos das teorias deterministas
encontra-se no fato de que elas deixam sem explicaccedilatildeo uma seacuterie de aspectos do cosmo O que
dizer sobre a proacutepria origem das leis deterministas Por que o universo segue estas leis e natildeo
outras E quanto agrave diversidade observada no universo Como ela eacute possiacutevel Como do
indiferenciado pocircde surgir a diferenccedila por meio da atuaccedilatildeo de leis estritamente deterministas
que levam de causas idecircnticas a efeitos idecircnticos A resposta a estas questotildees expande o universo
da inteligibilidade humana Eacute justamente o que pretende Peirce com a elaboraccedilatildeo e exploraccedilatildeo da
50 () the hypothesis of absolute chance is part and parcel of the hypothesis that everything is explicable not
absolutely rigidly without the smallest inexactitude or sporadic exception for that is a self-contradictory supposition
but yet explicable in a general way Explicability has no determinate amp absolute limit
51
hipoacutetese do acaso como um ingrediente essencial da constituiccedilatildeo do universo tal qual o
percebemos
Um dos aspectos mais originais do pensamento de Charles S Peirce eacute a presenccedila de um
princiacutepio de indeterminaccedilatildeo como elemento fundador de sua cosmologia Contrariamente a
muitos que procuram insistentemente ancorar a realidade sobre a permanecircncia e a imutabilidade
de certos elementos Peirce assume de maneira inquestionaacutevel a liberdade e a falta de
necessidade do mundo ser como eacute Ainda que o processo de desenvolvimento se decirc em funccedilatildeo de
certos princiacutepios norteadores natildeo haacute impedimento algum que barre a irrupccedilatildeo da novidade
radical no rearranjo de seus constituintes Um fato que na visatildeo de Peirce natildeo pode ser ignorado
eacute o de que o universo demonstra um processo de contiacutenuo crescimento que propicia o aumento
da complexidade de forma irreversiacutevel
O acaso eacute o elemento central da tese peirceana do indeterminismo denominada de tiquismo
(ver REYNOLDS 2009 SALATIEL 2008) Com o tiquismo o autor afirma que haacute no mundo
um caraacuteter de real espontaneidade natildeo devido agrave nossa subjetividade ou incapacidade cognitiva
mas agrave sua proacutepria constituiccedilatildeo ontoloacutegica Esse elemento nega a possibilidade do
desenvolvimento necessaacuterio dos sistemas determinados pelas leis mecacircnicas e pelas condiccedilotildees
iniciais as quais soacute podem ser entendidas como estatiacutesticas Peirce explica dessa maneira que
pela atuaccedilatildeo do acaso surgem a novidade e a variedade no universo
A concorrecircncia desses dois ingredientes acaso e lei implica a elaboraccedilatildeo de uma
epistemologia falibilista ou seja natildeo haacute verdades absolutas na concepccedilatildeo peirceana apenas
aproximaccedilotildees O erro eacute sempre uma possibilidade presente na tentativa de compreensatildeo realizada
pelo homem Para o filoacutesofo
() o universo natildeo eacute um mero resultado mecacircnico da atuaccedilatildeo cega da lei O
mais oacutebvio de seus caracteres natildeo pode ser explicado Satildeo os numerosos fatos da
experiecircncia que nos mostra isso mas aquilo que abriu os nossos olhos para esses
52
fatos eacute o princiacutepio do falibilismo (CP 1 sect 162 1897)51
Peirce eacute bastante radical ao afirmar que natildeo haacute crenccedilas estabelecidas na ciecircncia Todas as
proposiccedilotildees aceitas estatildeo sujeitas ao confronto com a experiecircncia Nas palavras do autor
() ciecircncia pura natildeo tem nada a ver com accedilatildeo As proposiccedilotildees aceitas satildeo
meramente escritas na lista de premissas que se propotildee a usar Nada eacute vital para
a ciecircncia nada pode ser Suas proposiccedilotildees aceitas portanto natildeo satildeo mais que
opiniotildees e a lista toda eacute provisoacuteria O homem cientiacutefico natildeo estaacute minimamente
soldado agraves suas conclusotildees Ele nada arrisca por elas Permanece apto a
abandonar uma ou todas tatildeo logo a natureza a elas se oponha Algumas delas eu
concedo satildeo habitualmente chamadas de verdades estabelecidas mas isto
meramente indica proposiccedilotildees a que nenhum homem experiente se opotildee hoje
Parece que qualquer proposiccedilatildeo provaacutevel daquele tipo permaneceraacute por um
longo tempo na lista de proposiccedilotildees a serem admitidas Contudo ela pode ser
refutada amanhatilde e se for assim o homem cientiacutefico se alegraraacute de ter se livrado
de um erro Natildeo haacute desse modo na ciecircncia proposiccedilotildees que respondam pelo
conceito de crenccedila (CP 1 sect 635 1908)52
Para Peirce existe uma afinidade natural entre o princiacutepio de continuidade e a doutrina do
falibilismo nunca podemos estar certo da verdade de nossas crenccedilas pois natildeo podemos comparaacute-
las com os fatos natildeo mentais
51 () the universe is not a mere mechanical result of the operation of blind law The most obvious of all its
characters cannot be so explained It is the multitudinous facts of all experience that show us this but that which has
opened our eyes to these facts is the principle of fallibilism 52
() pure science has nothing at all to do with action The propositions it accepts it merely writes in the list of
premisses it proposes to use Nothing is vital for science nothing can be Its accepted propositions therefore are but
opinions at most and the whole list is provisional The scientific man is not in the least wedded to his conclusions
He risks nothing upon them He stands ready to abandon one or all as soon as experience opposes them Some of
them I grant he is in the habit of calling established truths but that merely means propositions to which no
competent man today demurs It seems probable that any given proposition of that sort will remain for a long time
upon the list of propositions to be admitted Still it may be refuted tomorrow and if so the scientific man will be
glad to have got rid of an error There is thus no proposition at all in science which answers to the conception of
belief
53
O princiacutepio da continuidade eacute a ideia do falibilismo objetivado Pois o
falibilismo eacute a doutrina de que o nosso conhecimento nunca eacute absoluto mas
sempre flutua como se estivesse em um contiacutenuo de incerteza e
indeterminaccedilatildeo A doutrina da continuidade eacute a de que todas as coisas flutuam da
mesma maneira no continuum (CP 1 sect 171 1897)53
A passagem da natildeo existecircncia do universo agrave existecircncia se daacute por meio da evoluccedilatildeo ou
crescimento da lei em um processo no qual interferem tanto a criatividade radical fornecida pelo
acaso quanto a proacutepria lei que se fortalece com sua proacutepria aplicaccedilatildeo
Em resumo podemos dizer que do ponto de vista cosmoloacutegico o desenrolar dos
acontecimentos no universo se processa de maneira contiacutenua Esse desenvolvimento que para
Peirce eacute bem caracterizado pelo termo bdquocrescimento‟ molda dentro de sua concepccedilatildeo
cosmoloacutegica todos os elementos constituintes de nosso universo desde o mais riacutegido dos
elementos ateacute aqueles mais volaacuteteis desde um diamante ateacute a proacutepria mente humana Esse
universo em crescimento encontra no acaso seu constituinte fundamental como uma
decorrecircncia loacutegica necessaacuteria do princiacutepio que manda natildeo postular o incognosciacutevel no seio da
natureza (cf CP 6 sect 64 1892) e que Peirce assume como uma regra do meacutetodo cientiacutefico Na
passagem do acaso primordial ao universo ordenado e regido por leis interfere um princiacutepio que o
autor denomina de lei da mente ou princiacutepio de aquisiccedilatildeo de haacutebitos
Eacute possiacutevel enxergar a elaboraccedilatildeo teoacuterica peirceana como a resultante de um diaacutelogo com a
Ciecircncia e a Matemaacutetica do seacuteculo XIX A leitura que Peirce fez da obra de Charles Darwin
(1809ndash1882) bem como os avanccedilos da teoria matemaacutetica da probabilidade e estatiacutestica e da
mecacircnica estatiacutestica com os quais teve iacutentimo contato forneceram as bases para pensar a
variaccedilatildeo e o acaso54 Eacute com base nesse conceito que Peirce proporaacute uma alternativa ao modelo de
53 The principle of continuity is the idea of fallibilism objectified For fallibilism is the doctrine that our knowledge is
never absolute but always swims as it were in a continuum of uncertainty and of indeterminacy Now the doctrine
of continuity is that all things so swim in continua 54
Os termos usados por Peirce para referenciar esse elemento de total liberdade existente no cosmo satildeo variation
sporting e chance que aparecem em vaacuterios momentos de sua obra principalmente apoacutes a leitura que realizou ainda
jovem da obra capital de Charles Darwin A origem das espeacutecies (1859)
54
cientificidade da eacutepoca que estava calcado em uma atitude fisicalista e determinista e defendia a
busca de leis mecacircnicas de alcance universal e necessaacuterio
23 A DOUTRINA DA NECESSIDADE
Em seu mais elaborado texto sobre sua posiccedilatildeo indeterminista A doutrina da necessidade
examinada Peirce inicia por apresentar a crenccedila bastante presente em seu tempo que seraacute objeto
de sua anaacutelise ldquo() que todo fato no universo eacute precisamente determinado por leirdquo (CP 6 sect 36
1892)55
Essa crenccedila que para muitos pode parecer bastante natural natildeo se impotildee a todas as
mentes racionais diraacute o autor A ideia de que haacute acontecimentos naturais que ocorrem sem
determinaccedilatildeo de uma lei eacute bastante difundida desde a origem da filosofia56 e estaacute presente ateacute
mesmo nos trabalhos de Aristoacuteteles57 Natildeo obstante estas constataccedilotildees a tese do determinismo
aparece como inquestionaacutevel para os cientistas de seu tempo e podemos dizer ainda manteacutem
cativos vaacuterios pensadores no presente seacuteculo Parafraseando Pierre Simon Laplace (1749 ndash 1827)
o fiacutesico francecircs do seacuteculo XVIII que popularizou esta teoria Peirce sintetiza a crenccedila no
determinismo nas seguintes palavras
A proposiccedilatildeo em questatildeo eacute a de que o estado das coisas existentes em qualquer
tempo junto com certas leis imutaacuteveis determina completamente o estado de
coisas em qualquer outro tempo (pois a limitaccedilatildeo do tempo futuro eacute
indefensaacutevel) Assim dado o estado do universo na neacutebula original e dadas as
leis da mecacircnica uma mente suficientemente poderosa poderia deduzir a partir
desses dados a forma precisa de qualquer volteio de qualquer letra que estou
55 () that every single fact in the universe is precisely determined by law
56 Basta ver o trabalho de Epicuro que tomando a doutrina dos atomistas afirma que os aacutetomos desviam-se de seu
curso sob a accedilatildeo do acaso espontacircneo 57
Segundo Peirce Aristoacuteteles condena as doutrinas deterministas afirmando que os eventos podem surgir de trecircs
modos diferentes ldquo(1) por compulsatildeo externa ou accedilatildeo de causas eficientes (2) por virtude da natureza interna ou
influecircncia de causas finais e (3) irregularmente sem qualquer causa definida soacute pelo acaso absolutordquo (CP 6 sect 36
1892)
55
agora escrevendo (CP 6 sect 37 1892)58
A abordagem dos deterministas eacute dita em termos da teoria das categorias peirceana
carregada da noccedilatildeo de secundidade Como aponta o autor a questatildeo natildeo precisa nem ser
colocada em termos da negaccedilatildeo da noccedilatildeo de primeiridade59
que poderia muito bem ser admitida
pelos defensores do determinismo no niacutevel atocircmico sem grandes implicaccedilotildees O que tais
defensores natildeo podem aceitar eacute ldquo() a atribuiccedilatildeo dessa primeiridade a coisas completamente
mortas e materiaisrdquo (CP 6 sect 201 1898)60
Aqueles que comungam do credo determinista utilizam-se de dois tipos principais de
argumentos para justificaacute-lo Em primeiro lugar afirmam que ele deve ser visto como um
postulado que possibilita a praacutetica e o desenvolvimento da ciecircncia e em segundo lugar
acrescentam que a observaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais fornece evidecircncias suficientes para a sua
defesa
Sigamos mais um pouco na anaacutelise realizada por Peirce enfocando cada uma das
justificaccedilotildees Quanto agrave primeira justificativa o autor se pergunta o que se entende por postulado e
responde que ldquoEacute a formulaccedilatildeo de um fato material o qual natildeo estamos autorizados a assumir
como uma premissa mas cuja verdade eacute necessaacuteria para a validade de uma inferecircnciardquo (CP 6 sect
41 1892)61
Assim um postulado pode ser um fato que obtemos ou natildeo em nossa experiecircncia
Caso faccedila parte do mundo vivido estariacuteamos autorizados a utilizaacute-lo como premissa caso natildeo
faccedila parte ele deve ser justificado pela possibilidade de ser de outra maneira do que a assumida
isto eacute o postulado eacute vaacutelido na medida em que a experiecircncia o justifica De qualquer modo ldquo()
58 The proposition in question is that the state of things existing at any time together with certain immutable laws
completely determine the state of things at every other time (for a limitation to future time is indefensible) Thus
given the state of the universe in the original nebula and given the laws of mechanics a sufficiently powerful mind
could deduce from these data the precise form of every curlicue of every letter I am now writing 59
Primeiridade ou firstness eacute uma das categorias fenomenoloacutegicas peirceana sua caracteriacutestica principal eacute a
liberdade e espontaneidade 60
() the attribution of this firstness to things perfectly dead and material 61
It is the formulation of a material fact which we are not entitled to assume as a premiss but the truth of which is
requisite to the validity of an inference
56
cada postulado eacute eliminado quer por serem provisoacuterios ou pela experiencialidade de nossa
inferecircnciardquo (CP 6 sect 41 1892)62
O que Peirce estaacute discutindo eacute o tipo de validade que podemos atribuir ao raciociacutenio
indutivo e o grau de certeza dele decorrente Ainda que esse tema tenha sido tratado de modo
mais demorado em outros momentos da sua produccedilatildeo reportaremos apenas aos elementos
contidos na elaboraccedilatildeo do texto em anaacutelise
Natildeo se pode negar a existecircncia e a utilidade do pensamento indutivo poreacutem o que se
coloca em questatildeo eacute a necessidade de suas conclusotildees Os indutivistas afirmam que se tomarmos
um conjunto de amostras sucessivas devolvendo cada uma ao conjunto antes que a proacutexima
amostra seja retirada verificar-se-aacute apoacutes certo nuacutemero de vezes a tendecircncia de que cada
elemento seraacute retirado com a mesma frequecircncia Ou seja que ldquo() a razatildeo do nuacutemero de vezes
nas quais quaisquer dois satildeo retirados aproximaraacute indefinidamente da unidaderdquo (CP 6 sect 41
1892)63
Mas isso natildeo acontece afirma Peirce pois o que eacute medido eacute a proacutepria razatildeo de cada
amostra e natildeo a razatildeo do conjunto que permanece latente e desconhecida que eacute justamente o que
se quer determinar Por outro lado basta consultar a experiecircncia para saber que os elementos
obtidos na primeira amostra seratildeo mais frequentes depois de uma grande quantidade de amostras
Os indutivistas dizem ainda que ldquo() sob circunstacircncias semelhantes eventos semelhantes
ocorreratildeo e que este postulado eacute na base o mesmo que o princiacutepio da causalidade universalrdquo
(CP 6 sect 41 1892)64
Segundo Peirce essa afirmaccedilatildeo natildeo passa de uma grande bobagem devido
a pensadores que acreditam que as respostas soacute possam ser dadas em termos absolutos de 0 ou 1
Existe uma infinidade de possibilidades entre esses dois valores que deve ser levada em
consideraccedilatildeo
Em resumo poderiacuteamos dizer que uma quantidade fiacutesica nunca eacute do tipo absoluto A
62 () every postulate is cut off either by the provisionality or by the experientiality of our inference
63 () that the ratio of the numbers of times in which any two are drawn will indefinitely approximate to unity
64 () under like circumstances like events will happen and that this postulate is at bottom the same as the principle
of universal causation
57
praacutetica laboratorial de Peirce como eacute por ele ressaltada vaacuterias vezes em sua obra mostrou-lhe
que as quantidades fiacutesicas satildeo sempre estatiacutesticas e podem ser representadas por um conjunto de
valores aproximados graficamente transcritos na curva-sino das equaccedilotildees estatiacutesticas
Quanto ao segundo tipo de justificaccedilatildeo Peirce afirma que eacute de um tipo especial e que se a
primeira justificativa puder ser rebatida com um argumento que qualquer ser racional possa
aceitar a referecircncia agrave observaccedilatildeo da natureza requer um tipo especial de anaacutelise que natildeo
obstante deveria convencer uma pessoa acostumada a pensar cientificamente
A essecircncia da argumentaccedilatildeo dos que julgam as leis da natureza necessaacuterias eacute de que ldquo()
certas quantidades contiacutenuas tecircm certos valores exatosrdquo (CP 6 sect 44 1892)65
mas como a
observaccedilatildeo poderia determinar o valor de tal quantidade com erro nulo ndash pergunta-se o autor Se
for possiacutevel encontrar um meacutetodo para se determinar um valor absoluto para as quantidades na
fiacutesica ele deveraacute ser buscado em uma esfera diferente daquela da observaccedilatildeo
Se natildeo conhecemos o conjunto completo do qual uma determinada amostra foi retirada
natildeo estamos autorizados a sustentar que natildeo haacute nele qualquer traccedilo de um elemento que
aparentemente encontra-se ausente Dessa maneira natildeo temos porque sustentar que natildeo haja
qualquer elemento de acaso ou desvios espontacircneos agindo em qualquer lei da natureza
A observaccedilatildeo que inicialmente eacute tida pelos deterministas como uma justificativa em favor
de suas teses eacute apropriada por Peirce que a transforma em um argumento favoraacutevel agrave sua proacutepria
posiccedilatildeo Por meio da observaccedilatildeo afirma o autor apenas se constata que haacute certas regularidades
agindo na natureza mas isso natildeo eacute suficiente para afirmar que essas regularidades possam ser
elevadas agrave condiccedilatildeo de leis absolutas e necessaacuterias Ao contraacuterio quanto mais acuradas forem as
observaccedilotildees mais ficaraacute demonstrado que haacute uma irregularidade reinante nos fatos naturais Nas
palavras de Peirce ldquoTente verificar qualquer lei da natureza e vocecirc apuraraacute que quanto mais
precisas forem suas observaccedilotildees mais certamente elas mostraratildeo desvios irregulares da leirdquo (CP
65 () certain continuous quantities have certain exact values
58
6 sect 46 1892)66
Mesmo aqueles que retrocederem nas cadeias causais dos fatos seratildeo forccedilados a
admitir que estes sejam sempre devidos a determinaccedilotildees arbitraacuterias ou ao acaso
Tendo rebatido as pretensotildees dos deterministas do modo que se viu Peirce passaraacute a expor
aquilo que nos interessa de maneira mais especiacutefica neste texto em que consiste e como pode ser
pensado o acaso absoluto
Procedendo de maneira bastante didaacutetica o autor defenderaacute sua concepccedilatildeo de acaso em
face dos principais argumentos que podem ser colocados contra a sua existecircncia Eacute novamente na
ciecircncia da sua eacutepoca que Peirce buscaraacute elementos para defesa de sua tese Ele diz que eacute natural
esperar que ldquo() se houve um elemento de acaso real no universo deve natildeo ocasionalmente ser
produtor de efeitos sinalizadores de tal forma que natildeo passariam sem observaccedilatildeordquo (CP 6 sect 47
1892)67
Aleacutem da grande quantidade de eventos que podem comprovar esta tese para quem estaacute
disposto a observar eacute a proacutepria ciecircncia que trata dos movimentos dos gases que aponta para o
fato de que o comportamento dos mesmos muitas vezes parece contrariar a segunda lei da
termodinacircmica indicando que se deslocam como que ao acaso promovendo certas concentraccedilotildees
que algumas vezes resultam em efeitos bastante explosivos Dessa maneira a observaccedilatildeo que eacute
utilizada para referendar a posiccedilatildeo determinista acaba por se tornar diante da argumentaccedilatildeo do
autor em uma defesa da noccedilatildeo de acaso
Outros defensores do determinismo insistem em sustentar que sua posiccedilatildeo eacute uma crenccedila
natural e que em geral as crenccedilas naturais satildeo confirmadas pela experiecircncia A esse argumento
Peirce responde dizendo que de fato as crenccedilas naturais devem ser analisadas com bastante
cuidado e purificadas a partir de suas primeiras formulaccedilotildees que em geral satildeo errocircneas A
aproximaccedilatildeo da verdade que tais crenccedilas parecem apresentar eacute o resultado da adaptaccedilatildeo de ldquo()
produtos geneacuteticos a utilidades reconheciacuteveis ou finsrdquo (CP 6 sect 50 1892)68
Mas esse tipo de
66 Try to verify any law of nature and you will find that the more precise your observations the more certain they
will be to show irregular departures from the law 67
() if there were an element of real chance in the universe it must not occasionally be productive of signal effects
such as could not pass unobserved 68
() genetic products to recognizable utilities or ends
59
adaptaccedilatildeo conquanto belo e maravilhoso demonstra natildeo ser exatamente perfeito ldquo() de tal
modo que o argumento eacute quase contra a exatidatildeo absoluta de qualquer crenccedila natural incluindo
aquela do princiacutepio de causalidaderdquo (CP 6 sect 50 1892)69
Outro argumento comumente utilizado eacute de que a noccedilatildeo de acaso absoluto eacute inconcebiacutevel
Esse tipo de desconsideraccedilatildeo a priori pode ser rebatido de maneira bastante simples afirma
Peirce Ora o termo acaso possui uma grande diversidade de significado e mesmo que se
especificasse o sentido do mesmo seria possiacutevel mostrar que natildeo se tem razatildeo para fazer tal
afirmaccedilatildeo sem contar o fato de que a inconceptibilidade (inconceivability) natildeo eacute um tipo de
atribuiccedilatildeo que implica na natildeo existecircncia do acaso
Um outro argumento a priori eacute o que defende a ideia de que o acaso absoluto eacute
ininteligiacutevel isto eacute
() enquanto ele talvez possa ser concebiacutevel ele natildeo abre o olho da razatildeo para o
como ou o porquecirc das coisas e uma vez que uma hipoacutetese somente pode ser
justificada na medida em que causa algum fenocircmeno inteligiacutevel nunca
poderemos ter qualquer razatildeo de supor o acaso absoluto como entrando na
produccedilatildeo de qualquer coisa na natureza (CP 6 sect 52 1892)70
Esse argumento como aponta Peirce estaacute em estreita conexatildeo com os outros dois
anteriores Em primeiro lugar indica que natildeo haacute qualquer fato que possa ser por ele explicado
sendo portanto desnecessaacuterio e indica na sequecircncia que jaacute que as variaccedilotildees na atuaccedilatildeo das leis
natildeo podem ser observadas inequivocamente o acaso absoluto natildeo pode ser vera causa natildeo
havendo um lugar para ele em nossos esquemas de explicaccedilatildeo dos acontecimentos naturais
Para rebater esse argumento Peirce cria um diaacutelogo imaginaacuterio com um defensor do
69 () so that the argument is quite against the absolute exactitude of any natural belief including that of the
principle of causation 70
() while it may perhaps be conceivable it does not disclose to the eye of reason the how or why of things and
since a hypothesis can only be justified so far as it renders some phenomenon intelligible we never can have any
right to suppose absolute chance to enter into the production of anything in nature
60
determinismo no qual deixa claro quais satildeo os elementos existentes na sua noccedilatildeo de acaso
absoluto bem como suas principais diferenccedilas com respeito agrave tese adversaacuteria
Em primeiro lugar a atuaccedilatildeo real do acaso como uma causa dos eventos naturais natildeo nega
a existecircncia de regularidades no mundo apenas requer que sejam interpretadas como estatiacutesticas
e natildeo absolutas Pois a defesa da existecircncia de regularidades absolutas ou seja da atuaccedilatildeo de
leis naturais necessaacuterias implicaria em afirmar que toda a diversidade e toda novidade que
podem ser constatadas em qualquer evento natural por mais simples que seja como por
exemplo o jogo de dados tenham sido introduzidas no universo de uma soacute vez no iniacutecio de tudo
Assim o incremento da diversidade da natureza seria apenas uma ilusatildeo jaacute que sob a accedilatildeo das
leis mecacircnicas nada de absolutamente novo poderia surgir
As leis mecacircnicas apresentam ainda uma caracteriacutestica que parece incompatiacutevel com os
fenocircmenos naturais tanto orgacircnicos quanto inorgacircnicos elas ignoram a flecha do tempo Como
aponta Andrew Reynolds (2002) um aspecto central da Fiacutesica de entatildeo pode ser encontrado no
uso de leis matemaacuteticas exatas para descrever o movimento
Uma caracteriacutestica da expressatildeo matemaacutetica das leis de Newton (em termos de
equaccedilotildees diferenciais que descrevem a taxa de variaccedilatildeo das quantidades fiacutesicas
como uma funccedilatildeo do tempo) eacute sua invariacircncia sob o que acarretaria uma
reversatildeo da direccedilatildeo do bdquofluxo‟ do tempo (REYNOLDS 2002 p 2)
Natildeo haacute segundo esta abordagem qualquer dificuldade fiacutesica na ocorrecircncia de um evento
que inverta a flecha do tempo Por exemplo
Natildeo haacute nada nas proacuteprias leis isso eacute que especifica que uma xiacutecara fria de cafeacute
com creme mexida uniformemente natildeo possa em seus proacuteprios termos
absorver calor do ambiente circundante e tornar-se uma xiacutecara de cafeacute quente
nem as leis proiacutebem que o creme poderia espontaneamente separar-se a si
proacuteprio do cafeacute e pular bdquode volta‟ no tubo de creme do qual ele veiordquo
(REYNOLDS 2002 p 3)
61
A descriccedilatildeo deste evento imaginaacuterio eacute totalmente contraacuteria agraves ocorrecircncias normais Peirce
aponta que a abordagem determinista dos eventos natildeo consegue explicar o porquecirc de a grande
maioria dos eventos ser experienciada em uma ordem irreversiacutevel de acontecimentos que seguem
do passado para o futuro e natildeo o contraacuterio
As razotildees que conduzem o autor a defender a ideia de que a diversidade do mundo tem
crescido continuamente e de que este fato natildeo pode ser explicado a partir da abordagem
determinista satildeo sintetizadas em cinco itens que passamos a elencar
(1) A natureza explicada segundo leis mecacircnicas prescinde do curso do tempo Aqui Peirce
sustenta sua ideia de crescimento contiacutenuo do universo apelando para as ciecircncias que tecircm
no tempo uma variaacutevel imprescindiacutevel para as suas elaboraccedilotildees e descobertas Basta
inquirir agrave paleontologia ou agrave geologia ou ateacute mesmo agrave astronomia para se constatar que
haacute um crescimento e aumento da complexidade em cada um de seus objetos de estudo
(2) A diversidade e a novidade existentes no mundo natildeo podem ser adequadamente
explicadas pela atuaccedilatildeo de leis mecacircnicas absolutas Pois eacute da essecircncia de uma lei que
causas idecircnticas sempre produzam os mesmos efeitos Desse modo uma hipoacutetese
razoaacutevel eacute que sejam os resultados das pequenas variaccedilotildees ocorridas no momento da
atuaccedilatildeo da lei os responsaacuteveis pelo crescimento da complexidade existente
(3) A hipoacutetese da existecircncia do acaso absoluto manifesto nas pequenas variaccedilotildees no
momento da atualizaccedilatildeo das leis permite explicar como a diversidade surge Permite
ainda a justificaccedilatildeo da atuaccedilatildeo de um outro tipo de causalidade a da lei da mente que
explica a formaccedilatildeo da uniformidade constatada no universo Afirmar por outro lado que
a diversidade e irregularidade bem como uniformidade e regularidade existentes no
universo natildeo podem ser explicadas e nem mesmo deveriam ser questionadas como
fazem os deterministas significa ferir a primeira lei da loacutegica que consiste em natildeo
bloquear a investigaccedilatildeo
62
(4) A partir da introduccedilatildeo da causalidade mental ou causalidade teleoloacutegica em seu esquema
explicativo possibilitado pela inserccedilatildeo do acaso absoluto Peirce afirma ser possiacutevel
explicar diversos fenocircmenos que de outra maneira adquiririam o caraacuteter de
fantasmagoacuterico como por exemplo a consciecircncia e correlatos
(5) A mais importante razatildeo que permaneceraacute natildeo desenvolvida no texto em anaacutelise eacute a de
que ldquoa hipoacutetese do acaso-espontaneidade eacute uma daquelas consequecircncias inevitaacuteveis
capazes de serem formuladas com precisatildeo matemaacutetica em consideraacutevel detalherdquo (CP 6 sect
62 1892)71
Tem-se desse modo uma defesa da presenccedila do acaso no mundo que natildeo apenas recebe o
suporte das observaccedilotildees e evidecircncias que estatildeo disponiacuteveis para quem as desejar constatar como
parece se impor como uma evidecircncia para todo aquele que estaacute familiarizado com a praacutetica
cientiacutefica E que ainda fornece uma hipoacutetese explicativa para os fenocircmenos naturais tanto da
diversidade como da uniformidade do mundo que impulsiona o desenvolvimento de futuras
pesquisas sem postular o incompreensiacutevel como constituinte da natureza
Resumindo podemos dizer que contra a argumentaccedilatildeo peirceana os deterministas soacute
poderiam responder de uma das trecircs maneiras elencadas abaixo
(1) O acaso eacute algo absolutamente ininteligiacutevel
(2) Natildeo haacute qualquer fenocircmeno no qual a atuaccedilatildeo do acaso possa ser observada de forma
inequiacutevoca
(3) O acaso natildeo pode ser uma vera causa
Quanto agrave objeccedilatildeo (1) Peirce indica que sua hipoacutetese do acaso absoluto diferentemente da
tese determinista fornece uma explicaccedilatildeo para o surgimento tanto das irregularidades quanto das
71 The hypothesis of chance-spontaneity is one whose inevitable consequences are capable of being traced out with
mathematical precision into considerable detail
63
uniformidades existentes no universo O que parece ser um ganho consideraacutevel uma vez que
desobstrui os caminhos da investigaccedilatildeo cientiacutefica Um aspecto como jaacute vimos que fornece um
suporte extra a esta hipoacutetese eacute o fato que ela daacute lugar agrave elaboraccedilatildeo da lei da mente O acaso uma
vez manifestado desenvolve-se segundo determinadas maneiras e natildeo de uma maneira qualquer eacute
sob a atuaccedilatildeo da lei da mente ou lei da aquisiccedilatildeo de haacutebito ou simplesmente lei do haacutebito que
ele produz consequecircncias ou permanece inerte
A objeccedilatildeo do tipo (2) eacute na visatildeo de Peirce bastante ingecircnua pois parece ignorar todos os
avanccedilos cientiacuteficos que se verificaram nas aacutereas de astronomia biologia ou geologia
permanecendo cega para os fenocircmenos de crescimento de diversidade ou evoluccedilatildeo Esses
fenocircmenos satildeo totalmente refrataacuterios agrave abordagem mecanicista no entender desse autor
Compondo com esses fenocircmenos aparece a consciecircncia como outro empecilho agraves pretensotildees dos
mecanicistas que se fiam unicamente na ideia de regularidade para compor o seu quadro
explicativo Com essa atitude a noccedilatildeo de regularidade absoluta serve apenas ldquo() para bloquear
o caminho da investigaccedilatildeordquo (CP 6 sect 64 1892)72
Agrave acusaccedilatildeo (3) de que o acaso natildeo pode ser considerado uma vera causa Peirce responde
dizendo que esta criacutetica natildeo pode ser aplicada a concepccedilotildees elementares Se levarmos a seacuterio esta
acusaccedilatildeo seria preciso reavaliar a proacutepria crenccedila na existecircncia do universo material uma vez que
a variedade eacute um fato que natildeo pode ser ignorado
Tendo assim defendido a existecircncia do acaso absoluto Peirce acredita que natildeo resta duacutevida
que as pesquisas devam ser refeitas e direcionadas para novas bases que levem em consideraccedilatildeo o
caraacuteter estatiacutestico das regularidades bem como o indeterminismo reinante no universo que em
uacuteltima instacircncia eacute a fonte de diversidade e novidade existentes
72 () to block the road of inquiry
64
3 A LEI
Se de um lado temos no acaso um dos constituintes fundamentais da realidade do outro
encontramos no continuum ou nas leis outro elemento de igual importacircncia A elaboraccedilatildeo que
Peirce oferece deste toacutepico estaacute em estreita conexatildeo com a matemaacutetica dos infinitesimais por ele
estudada Nosso interesse aqui natildeo eacute o de aprofundar tais concepccedilotildees que seratildeo analisadas em
capiacutetulo posterior procuramos apenas extrair algumas caracteriacutesticas de sua descriccedilatildeo que
suportem a nossa anaacutelise da lei da mente A questatildeo levantada por Peirce e que serviraacute de guia
para a nossa discussatildeo seraacute a de Como pode uma ideia passada estar presente (CP 6 sect 109
1892)73
A resposta por ele proposta eacute de que devemos estar diretamente conscientes das ideias
do passado imediato Caso houvesse uma lacuna entre nosso conhecimento presente e as ideias
do passado todo o nosso conhecimento do passado natildeo seria mais do que uma ilusatildeo Assim
como consequecircncia devemos estar conscientes do passado ldquoatraveacutes de um intervalo de tempo
infinitesimalrdquo (CP 6 sect 110 1892)74
Nessa mesma linha aponta Hausman ldquosomos levados a
concentrar nosso exame da experiecircncia de ser consciente atraveacutes de um fluxo de tempo que deve
ser compreendido em termos de componentes infinitesimaisrdquo (HAUSMAN 1993 p 179)
Natildeo temos por conseguinte uma apreensatildeo completa e definida de uma ideia em um
determinado instante do tempo A cogniccedilatildeo se daacute no continuum apenas atraveacutes de um processo
de imbricaccedilatildeo das ideias que ocorre por meio de uma sucessatildeo de intervalos infinitesimais no
tempo Durante tais intervalos diraacute Peirce ldquopercebemos diretamente a sequecircncia temporal de seu
iniacutecio meio e fim ndash natildeo naturalmente como uma recogniccedilatildeo pois a recogniccedilatildeo eacute unicamente do
passado mas como um sentimento imediatordquo (CP 6 sect 111 1892)75
Se em um primeiro instante temos acesso ao sentimento do imediato caracteriacutestico da
73 How can a past idea be present
74 () through an infinitesimal interval of time
75 In an infinitesimal interval we directly perceive the temporal sequence of its beginning middle and end -- not of
course in the way of recognition for recognition is only of the past but in the way of immediate feeling
65
categoria de primeiridade no segundo momento temos a percepccedilatildeo da passagem do tempo A
ligar esses dois temos um terceiro que indica uma direccedilatildeo e que requer uma interpretaccedilatildeo uma
inferecircncia na medida em que se obteacutem uma generalidade
Peirce continuaraacute dizendo que quando haacute ldquoum fluxo contiacutenuo de inferecircncias atraveacutes de um
tempo finitordquo o resultado ldquoseraacute uma consciecircncia objetiva mediata de tempo completo no
momento passadordquo (CP 6 sect 111 1892)76
Por meio desta anaacutelise o autor estaacute propondo uma
abordagem da relaccedilatildeo do fluxo temporal sentido e a interpretaccedilatildeo cognitiva do mesmo
A cogniccedilatildeo que eacute uma experiecircncia mediata requer a consideraccedilatildeo dos sentimentos
passados impondo a eles uma certa definiccedilatildeo de tal maneira que possam ser comparados o que
se daacute segundo um ato interpretativo Cada intervalo consiste em um momento da percepccedilatildeo
consciente de tal maneira que se pode afirmar que a proacutepria consciecircncia eacute contiacutenua
31 O IDEALISMO OBJETIVO
Peirce se autodenomina em algumas passagens de idealista objetivo afirmando a sua
diferenccedila com relaccedilatildeo ao monismo materialista Aponta que a diferenccedila entre os dois eacute que o
monista materialista toma a lei da mente como uma consequecircncia das leis da mateacuteria enquanto o
idealista objetivo toma as leis da mateacuteria como um resultado especial da lei da mente Um grande
problema para o materialista eacute explicar como as leis da mateacuteria que satildeo completamente cegas ou
natildeo teleoloacutegicas podem dar origem a uma mente que natildeo age cegamente mas que possui
propoacutesitos Peirce diraacute que o problema consiste em se compreender como a accedilatildeo teleoloacutegica ou
propositada pode ser um efeito secundaacuterio de uma accedilatildeo natildeo teleoloacutegica
76 Let there be not merely an indefinite succession but a continuous flow of inference through a finite time and the
result will be a mediate objective consciousness of the whole time in the last moment
66
A soluccedilatildeo para a questatildeo segue-se a partir da inspiraccedilatildeo darwiniana por meio da
combinaccedilatildeo de dois fatores as insensiacuteveis variaccedilotildees fortuitas e a destruiccedilatildeo das formas menos
aptas cujas transformaccedilotildees levam-nas aleacutem de certos limites O uacuteltimo desses fatores poderia ser
entendido como uma lei mecacircnica mas o que dizer do primeiro Pergunta-se Peirce
A necessidade de natildeo bloquear a via de investigaccedilatildeo como tantas vezes apontada pelo
autor natildeo eacute transgredida por esta pergunta irrespondiacutevel uma vez que seria um absurdo a
tentativa de explicaccedilatildeo do proacuteprio acaso pois as explicaccedilotildees se datildeo por meio de generalidades e
as variaccedilotildees fortuitas satildeo uacutenicas e autorreferentes Jaacute a lei da evoluccedilatildeo ou lei da mente necessita
de uma explicaccedilatildeo e pode ser aqui esboccedilada
32 A LEI DA MENTE
Peirce descreve a lei da mente como o fato de que as
() ideias tendem a se dispersar continuamente e a afetar certas outras que
permanecem em uma relaccedilatildeo peculiar de afetabilidade com relaccedilatildeo a ela Nesta
dispersatildeo elas perdem intensidade e especialmente o poder de afetar as outras
mas ganham em generalidade e se tornam amalgamadas com outras ideias (CP
6 sect 104 1892)77
Eacute natural atribuir a uma lei o caraacuteter de absoluta como o atribuiacutedo comumente agraves leis da
fiacutesica a lei da mente entretanto natildeo requer uma exata conformidade Como afirma Peirce ldquo() a
conformidade exata estaria em conflito inequiacutevoco com a lei uma vez que cristalizaria
instantaneamente o pensamento e impediria as formaccedilotildees posteriores de haacutebitosrdquo (CP 6 sect 23
77 () ideas tend to spread continuously and to affect certain others which stand to them in a peculiar relation of
affectibility In this spreading they lose intensity and especially the power of affecting others but gain generality
and become welded with other ideas
67
1891)78
A lei da mente apenas torna um certo sentimento mais provaacutevel (likely) Ou seja a lei da
mente inclina o curso futuro dos eventos a uma certa direccedilatildeo sem contudo determinaacute-lo
A partir dessas consideraccedilotildees Peirce conclui que o uacutenico tipo de causalidade primaacuteria deve
ser a causalidade final e que esta deve ser considerada uma lei de caraacuteter absoluto Assim sob a
atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um contiacutenuo crescimento da uniformidade
a partir das formas diferenciadas Mas as mudanccedilas divergentes da lei estatildeo agindo
perpetuamente a fim de aumentar a variedade do mundo e satildeo controladas por um tipo de seleccedilatildeo
natural ou de qualquer outro tipo (pois Peirce julga que a seleccedilatildeo natural natildeo seja por si soacute
suficiente) de tal forma que ldquo() o resultado geral deve ser descrito como bdquoheterogeneidade
organizada‟ ou melhor variedade racionalizadardquo (CP 6 sect 23 1891)79
O relato da hipoacutetese cosmoloacutegica elaborada por Peirce ressaltou a importacircncia fundamental
da noccedilatildeo de continuidade no interior de sua filosofia A compreensatildeo do sentido que a noccedilatildeo
adquire em sua obra tanto quanto da evoluccedilatildeo que sofreu conforme Peirce atingia sua
maturidade seratildeo de grande importacircncia para a compreensatildeo do modo de atuaccedilatildeo da causalidade
final Com o objetivo de compreender este tipo de causalidade faremos no proacuteximo capiacutetulo um
estudo mais aprofundado do sinequismo a teoria da continuidade elaborada pelo filoacutesofo
78 () exact conformity would be in downright conflict with the law since it would instantly crystallize thought and
prevent all further formation of habit 79
() the general result may be described as organized heterogeneity or better rationalized variety
68
CAPIacuteTULO 02
O SINEQUISMO
Infinity is nothing but a peculiar twist given to generality (CP 8 sect 268 1900)
69
Em funccedilatildeo da importacircncia adquirida pela noccedilatildeo de continuidade80
uma investigaccedilatildeo sobre
a teoria do sinequismo seraacute desenvolvida aqui definida por Peirce como ldquoaquela tendecircncia do
pensamento filosoacutefico que insiste sobre a ideia de continuidade como sendo de grande
importacircncia em filosofia e em particular sobre a necessidade de hipoacuteteses que envolvam
verdadeira continuidaderdquo (CP 1 sect 169 1902)81
Em carta a William James de 1900 Peirce
afirma que o sinequismo eacute ldquoa pedra angular do arcordquo (CP 8 sect 257 1900)82
isto eacute o ponto de
apoio que daacute sustentaccedilatildeo a toda sua filosofia
Diferentemente dos matemaacuteticos da eacutepoca que trataram a questatildeo da continuidade o
interesse de Peirce pelo toacutepico foi motivado principalmente por uma preocupaccedilatildeo loacutegica e
filosoacutefica e que natildeo decorre somente das questotildees suscitadas pela anaacutelise matemaacutetica Como
afirma em 1897
() uma abordagem loacutegica perfeitamente satisfatoacuteria da concepccedilatildeo de
continuidade eacute exigida O que envolve a definiccedilatildeo de um certo tipo de infinito
e a fim de tornaacute-lo um pouco mais claro eacute necessaacuterio comeccedilar por desenvolver
a doutrina loacutegica das grandezas infinitas Essa doutrina ainda permanece apoacutes
os trabalhos de Cantor Dedekind e outros em uma situaccedilatildeo incipiente Por
exemplo questotildees como as seguintes permanecem sem respostas eacute ou natildeo eacute
logicamente possiacutevel para duas coleccedilotildees serem de tal grandeza que nenhuma
delas possa ser colocada em correspondecircncia biuniacutevoca com a parte ou com o
todo da outra Resolver esse problema demanda natildeo uma mera aplicaccedilatildeo da
loacutegica mas um maior desenvolvimento da concepccedilatildeo de possibilidade loacutegica
(CP 3 sect 526 1897)83
80 Como jaacute foi indicado no primeiro capiacutetulo desta tese
81 [Synechism is] that tendency of philosophical thought which insists upon the idea of continuity as of prime
importance in philosophy and in particular upon the necessity of hypotheses involving true continuity 82
() synechism which is the keystone of the arch 83
() a perfectly satisfactory logical account of the conception of continuity is required This involves the definition
of a certain kind of infinity and in order to make that quite clear it is requisite to begin by developing the logical
doctrine of infinite multitude This doctrine still remains after the works of Cantor Dedekind and others in an
inchoate condition For example such a question remains unanswered as the following Is it or is it not logically
possible for two collections to be so multitudinous that neither can be put into a one-to-one correspondence with a
part or the whole of the other To resolve this problem demands not a mere application of logic but a further
development of the conception of logical possibility
70
De fato podemos identificar ao menos trecircs aspectos do pensamento de Peirce que soacute
poderiam ser desenvolvidos com consistecircncia a partir uma definiccedilatildeo mais precisa da noccedilatildeo de
continuum o loacutegico o semioacutetico e o cosmoloacutegico Nossas consideraccedilotildees aqui seratildeo
desenvolvidas a partir de uma investigaccedilatildeo do papel que o conceito de continuum desempenha na
construccedilatildeo da filosofia de Peirce em particular para a compreensatildeo do estatuto e do papel das
explicaccedilotildees teleoloacutegicas no seu sistema Antes contudo de passarmos a essa discussatildeo cabem
algumas palavras a respeito da motivaccedilatildeo de Peirce para o desenvolvimento do conceito de
continuum
Neste capiacutetulo procuraremos apurar as propriedades atribuiacutedas ao continuum atraveacutes da
abordagem de alguns aspectos da definiccedilatildeo matemaacutetica proposta por Peirce ainda que
apresentada de maneira descritiva e seletiva Do ponto de vista cosmoloacutegico pode-se afirmar que
a estrutura mais profunda e necessaacuteria do real eacute a sua continuidade Como o objetivo desta
investigaccedilatildeo eacute colher elementos que permitam entender o lugar e a necessidade da introduccedilatildeo de
explicaccedilotildees teleoloacutegicas para a compreensatildeo do crescimento do universo e de seus processos isto
eacute para entender a forma de desdobramento do continuum real tornado manifesto por meio da
evoluccedilatildeo do universo a exposiccedilatildeo desses toacutepicos natildeo pretende ser completa ou exaustiva sua
funccedilatildeo seraacute selecionar aspectos das teorias que permitam em primeiro lugar compreender a
necessidade da explicaccedilatildeo teleoloacutegica e em segundo lugar tornar plausiacutevel tanto quanto
possiacutevel a ideia de que o projeto filosoacutefico peirceano possui grande coerecircncia se tomarmos suas
teorias em conjunto apresentando aspectos da maneira pela qual Peirce as pensava como estando
relacionadas e como se esclarecem mutuamente visto serem expressatildeo do mesmo elemento de
continuidade
71
1 O CONTINUUM E A EPISTEMOLOGIA
Eacute preciso lembrar que ao lado da preocupaccedilatildeo matemaacutetica com a definiccedilatildeo de continuum
haacute nos trabalhos de Peirce uma profunda reflexatildeo sobre a sua ontologia surgida a partir de suas
pretensotildees mais gerais de realizaccedilatildeo de um projeto de fundamentaccedilatildeo de seu meacutetodo para
obtenccedilatildeo do conhecimento Essa primeira abordagem da continuidade a partir de uma
perspectiva descritiva adequada agrave cosmologia ou metafiacutesica dos processos evolutivos entretanto
natildeo se opotildee agrave abordagem matemaacutetica que em realidade a confirma Satildeo as conclusotildees desse
modo hipoteacutetico de investigaccedilatildeo que orientaram em grande parte sua abordagem matemaacutetica
A elaboraccedilatildeo da hipoacutetese do continuum eacute tomada como uma consequecircncia da primeira e
mais importante maacutexima loacutegica assumida por Peirce a de que natildeo se pode ldquobloquear o caminho
da investigaccedilatildeordquo (CP 1 sect 135 1899)
84 Ela eacute vista como um meio de ldquo() evitar a hipoacutetese de que
isso ou aquilo seja inexplicaacutevelrdquo (CP 6 sect 171 1902)85
Pois descontinuidades como pontos ou
instantes marcados nos quais o continuum de um geral eacute quebrado satildeo em si mesmos natildeo
explicaacuteveis afirma Peirce Soacute fazem sentido quando referidas a um contexto maior que eacute
fornecido pelo continuum Desse modo a principal justificativa para se insistir na hipoacutetese do
continuum eacute a de que ela fornece uma explicaccedilatildeo para os fenocircmenos
Os fenocircmenos se impotildeem ao homem e eacute preciso elaborar hipoacuteteses testaacuteveis para explicaacute-
los ou ao menos hipoacuteteses que levem tatildeo longe quanto possiacutevel o horizonte da inteligibilidade
ou seja que natildeo bloqueie o caminho da investigaccedilatildeo A afirmaccedilatildeo de que a postulaccedilatildeo do
incognosciacutevel como elemento constituinte da natureza eacute uma estrateacutegia que deve ser banida dos
procedimentos cientiacuteficos estaacute em consonacircncia com a filosofia peirceana
A simples observaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais destituiacuteda de qualquer prejulgamento
ensina-nos pelo menos duas coisas em primeiro lugar que haacute uma incriacutevel variabilidade no
84 Do not block the way of inquiry
85 () to avoid the hypothesis that this or that is inexplicable
72
modo como a natureza se manifesta e em segundo lugar que os processos naturais demonstram
certas regularidades Em face dessas duas caracteriacutesticas Peirce elabora duas teorias que tentam
responder como a realidade deveria ser para que nos aparecesse dessa maneira especiacutefica A
primeira referente agrave presenccedila da variabilidade na natureza daacute origem ao tiquismo86
hipoacutetese
explicativa que postula o acaso absoluto como ingrediente fundamental da realidade e serve de
matriz ontoloacutegica indeterminista A segunda concernente agraves regularidades daacute origem ao
sinequismo cuja principal categoria eacute a de lei e procura explicar de que maneira a partir do
acaso absoluto original surgiu o mundo que conhecemos Desse modo Peirce pretende ter
elaborado por meio da concorrecircncia desses dois fatores uma hipoacutetese explicativa que pretende
dar conta ateacute mesmo do surgimento das leis naturais e de todos os processos naturais deixando
de fora apenas o acaso que por sua proacutepria natureza eacute aquilo que natildeo necessita de explicaccedilatildeo
As alusotildees que Peirce faz agrave importacircncia de uma teoria da continuidade frequentemente
estatildeo relacionadas com o seu realismo em particular com a compreensatildeo do que significa a ideia
de generalidade Ele diz que a questatildeo de se os gerais satildeo reais eacute a mesma de se existem continua
verdadeiros No texto intitulado ldquoConsciecircnciardquo afirma que ldquocontinuidade regularidade e
significacircncia satildeo essencialmente a mesma ideia com diferenccedilas meramente subsidiaacuteriasrdquo (CP 7
sect 535)87
Para o realista como indica Hookway (1985) quando classificamos coisas sob o mesmo
termo geral estamos afirmando que existe algum princiacutepio geral ou natureza que elas
compartilham Em 1878 Peirce discute esse ponto a partir de um exemplo que envolve um
problema de classificaccedilatildeo rotineiramente enfrentado por um naturalista Ao coletar um bom
nuacutemero de espeacutecimes que possuem algumas similaridades ele pode colocar-se a questatildeo de como
classificaacute-los Em particular no referido caso o naturalista nota que as asas dos espeacutecimes
recolhidos embora natildeo idecircnticas podem servir como criteacuterio para dividi-los em dois tipos um
que reuacutene as asas que satildeo parecidas com um S e outro que reuacutene as que se parecem com um C A
questatildeo que ele pode colocar-se eacute de se haacute aiacute apenas uma duas ou mais espeacutecies Para Peirce a
soluccedilatildeo para o problema pode ser obtida a partir da verificaccedilatildeo de se haacute formas intermediaacuterias
86 Jaacute discutido no primeiro capiacutetulo deste trabalho
87 () continuity regularity and significance are essentially the same idea with merely subsidiary differences
73
entre uma e outra Caso haja elas devem ser consideradas como pertencentes a uma mesma
espeacutecie Caso isso natildeo se verifique eacute possiacutevel classificaacute-las em duas espeacutecies distintas A sugestatildeo
envolvida esclarece Hookway eacute a de que ldquo() se os espeacutecimes formam um tipo de classe
natural eles variam continuamente segundo alguma dimensatildeordquo (HOOKWAY 1985 p 175) A
questatildeo eacute se esta condiccedilatildeo de contiacutenua variaccedilatildeo pode ser encontrada em todo caso investigados
Outro aspecto do pensamento peirceano relacionado com a teoria do continuum aparece em
sua discussatildeo sobre os processos causais A atribuiccedilatildeo da relaccedilatildeo de causalidade entre dois
eventos pode ser entendida se encontramos uma ligaccedilatildeo contiacutenua por meio da qual o primeiro eacute
transmitido ao segundo caso contraacuterio haveria duacutevidas quanto agrave possibilidade de tal atribuiccedilatildeo
Tanto no primeiro quanto no segundo exemplo percebemos que por meio da mediaccedilatildeo da
continuidade os casos analisados sobre o pano de fundo de uma estrutura mais ampla satildeo
tornados compreensiacuteveis para noacutes Segundo Peirce os nominalistas negariam que haja alguma
explicaccedilatildeo sobre o motivo dos objetos serem classificados como satildeo e colocariam esses
agrupamentos naturais na categoria de um fato bruto cuja razatildeo natildeo poderiacuteamos jamais alcanccedilar
Essa posiccedilatildeo entretanto eacute a expressatildeo do mais grave pecado loacutegico no entender de Peirce ela
bloqueia o caminho da investigaccedilatildeo
A relaccedilatildeo entre continuum e generalidade88
eacute mais claramente apresentada por Hookway na
seguinte passagem
() nenhuma estrutura relacional captura a natureza do continuum e natildeo
podemos quantificar todos os elementos do continuum As estruturas relacionais
a respeito das quais pensamos satildeo em certo sentido determinadas pela natureza
do continuum a respeito do qual pensamos mas elas natildeo exaurem seu caraacuteter
Da mesma maneira que pensamos em uma lei como algo que determina um
nuacutemero de diferentes interaccedilotildees pensamos o continuum como determinando
um nuacutemero infinito embora relacionado de estruturas relacionais Podemos
pensar o continuum como um geral entatildeo no sentido em que determina
conjuntos infinitos de estruturas relacionais como sua ldquoextensatildeordquo Se pensamos
um processo como continuum entatildeo acreditamos que sempre seraacute possiacutevel
88 Eacute a generalidade pode-se reiterar que torna o mundo compreensiacutevel para noacutes
74
para noacutes produzir uma caracterizaccedilatildeo mais complexa de estruturas relacionais
que ldquose conformardquo ou satildeo ldquodeterminadas porrdquo aquele processo contiacutenuo
(HOOKWAY 1985 p 178)
11 OS INFINITESIMAIS E O CONTINUUM
Por volta da uacuteltima deacutecada do seacuteculo XIX Peirce estava trabalhando em sua concepccedilatildeo de
continuidade principalmente com referecircncia a sua constituiccedilatildeo isto eacute realizava uma investigaccedilatildeo
sobre quais poderiam ou deveriam ser os constituintes dos continua Peirce foi um dos primeiros
pensadores a argumentar em favor da existecircncia real de conjuntos infinitos Seu criteacuterio para
diferenciar os conjuntos finitos dos infinitos era o assim chamado ldquosilogismo da quantidade
transpostardquo introduzido por De Morgan e que eacute vaacutelido unicamente quando aplicado a conjuntos
finitos e invaacutelido quando aplicado a conjuntos infinitos Peirce oferece vaacuterias versotildees desse
silogismo uma delas eacute a seguinte
Todo texano mata um texano
Nenhum texano eacute morto por mais que um texano
Desse modo todo texano eacute morto por um texano
A partir da colocaccedilatildeo desse silogismo uma diferenccedila entre a abordagem de Peirce e as
demais abordagens realizadas na segunda metade do seacuteculo XIX pode ser evidenciada Mesmo
que inicialmente tenha investigado a possibilidade de compreender o continuum como uma
coleccedilatildeo ou conjunto aos poucos supera essa concepccedilatildeo Peirce afirma ldquoPois a uacutenica coisa que
excede a variedade de todos os conjuntos eacute um continuumrdquo (CP 4 sect 652 1909)89
Os seus
constituintes natildeo podem ser indiviacuteduos desse modo deve possuir alguma caracteriacutestica de
potencialidade Tal potencialidade como afirma Rosa
89 For the only thing that exceeds the manifoldness of all collections is a continuum
75
Eacute a possibilidade de inserir uma qualquer multitude a partir de uma multitude
dada Eacute um geral pois haacute sempre a possibilidade de determinar um nuacutemero de
indiviacuteduos maior que natildeo importa que nuacutemero de indiviacuteduos dados Um
possiacutevel eacute essa possibilidade inesgotaacutevel e indefinida de determinaccedilatildeo do
existente a potencialidade de ver natildeo eacute esgotada por aquele que exerce esse
poder (ROSA 2003 p 223)
Ora sejam quais forem os constituintes do continuum eles devem possuir a qualidade de
ldquopossibilidade de inesgotaacutevel determinaccedilatildeordquo Peirce eacute mais claro sobre o que entende por isso na
seguinte passagem
Aquilo que eacute possiacutevel eacute nessa medida geral e enquanto geral deixa de ser
individual Assim recordando que a palavra ldquopotencialrdquo significa
indeterminado mas passiacutevel de determinaccedilatildeo em cada caso especiacutefico pode
haver um agregado de casos potencial de todas as possibilidades que satildeo
consistentes com certas condiccedilotildees gerais e isto pode ser tal que dado um
qualquer conjunto de indiviacuteduos distintos um conjunto de maior multitude que
o conjunto dado pode ser atualizado a partir desse agregado potencial Portanto
o agregado potencial eacute estritamente maior em multitude do que qualquer
conjunto de indiviacuteduos Mas visto ser apenas um agregado potencial ele natildeo eacute
composto por qualquer nuacutemero de indiviacuteduos Ele apenas conteacutem condiccedilotildees
gerais que permitem a determinaccedilatildeo de indiviacuteduos (NEM 3 p 106 1898 grifo
nosso)90
Ao tratar da reta como modelo do continuum Peirce indica que o arqueacutetipo dessa ideia eacute a
curva fechada A cisatildeo da linha natildeo resulta em um mas em dois pontos distintos que estabelecem
90 That which is possible is in so far general and as general it ceases to be individual Hence remembering that the
word potential means indeterminate yet capable of determination in any special case there may be a potential
aggregate of all the possibilities that are consistent with certain general conditions and this may be such that given
any collection of distinct individuals whatsoever out of that potential aggregate there may be actualized a more
multitudinous collection than the given collection Thus the potential aggregate is with the strictest exactitude
greater in multitude than any possible multitude of individuals But being a potential aggregate only it does not
contain any individuals at all It only contains general conditions which permit the determination of individuals
76
uma fronteira no contiacutenuo original Como indica Peirce natildeo haacute um ponto na reta mas uma reta
cuja separaccedilatildeo realiza dois pontos (cf NEM 2 p 359) O fato de que por meio do corte o ponto
ideal daacute origem a dois pontos reais indica que os pontos da reta natildeo possuem identidade Esses
estados de fronteira satildeo denominados de vagos na nomenclatura peirceana Como indica Rosa
ldquoO vago ou indefinido eacute aquilo que escapa ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo () o predicado
manteacutem portanto seu valor de verdade mesmo se o negarmosrdquo (ROSA 2003 p 235) O vago
na definiccedilatildeo de Peirce eacute um signo que natildeo se exprime a si mesmo de forma suficiente e natildeo
permite uma interpretaccedilatildeo determinada indubitaacutevel (cf CP 5 sect 505 1905) de modo que a
existecircncia ou atualidade jamais eacute atingida
Os infinitesimais91
surgiram como uma alternativa promissora agrave resposta pelos constituintes
do continuum Em 1892 Peirce afirma que os constituintes do continuum satildeo os infinitesimais92
e
eacute muito cuidadoso ao tratar do toacutepico considerando-os sempre como uma hipoacutetese que se natildeo
for inconsistente seraacute muito uacutetil para a explicaccedilatildeo da realidade Mas podemos nos indagar sobre
qual o significado desta noccedilatildeo para Peirce Embora seja um toacutepico sobre o qual o autor natildeo tenha
sido muito claro em suas declaraccedilotildees podemos inferir a partir da relaccedilatildeo que a teoria do
continuum possui com as demais teorias que Peirce vinha desenvolvendo na mesma eacutepoca que os
infinitesimais podem ser interpretados como would be Ao explicar o que satildeo tais constituintes do
real Peirce toma o exemplo do dado e afirma
Dizer que um dado tem um ldquowould berdquo eacute dizer que ele tem uma propriedade
91 Um infinitesimal como aponta Putnam (1995) eacute o intervalo de uma linha cujo comprimento natildeo eacute zero mas eacute
menor do que qualquer real positivo Os infinitesimais acrescenta foram gradualmente esquecidos durante o seacuteculo
XIX voltaram agraves consideraccedilotildees matemaacuteticas apenas na deacutecada de sessenta do seacuteculo passado como um resultado dos
trabalhos de Abraham Robinson (1966) e outros e do desenvolvimento da chamada anaacutelise Non-Standard Em
funccedilatildeo das caracteriacutesticas presentes na anaacutelise que Peirce realiza da noccedilatildeo de infinitesimal algumas vezes eacute
considerado como um precursor desses trabalhos Apurar em que medida eacute correta essa atribuiccedilatildeo eacute contudo um
trabalho que ainda estaacute por ser feito e que demandaria um conhecimento matemaacutetico bastante mais aprofundado de
nossa parte 92
O autor afirma ldquoThere is one property of a continuous expanse that I must mention though I cannot venture to
trouble you with the demonstration of it It is that in a continuous expanse say a continuous line there are
continuous lines infinitely short In fact the whole line is made up of such infinitesimal parts (CP 1 sect 166 1897)
77
bastante anaacuteloga a qualquer haacutebito que um homem possa ter Unicamente que o
ldquowould berdquo do dado eacute presumivelmente muito mais simples e mais definido do
que o haacutebito de um homem como o dado tem composiccedilatildeo homogecircnea e
formato cuacutebico eacute mais simples do que a natureza do sistema nervoso e a alma
de um homem e da mesma maneira como seria necessaacuterio a fim de definir o
haacutebito de um homem descrever como ele o conduziria a se comportar e em que
tipo de ocasiatildeo ndash natildeo obstante esta afirmaccedilatildeo implicaria natildeo importa como
que o haacutebito consiste naquela accedilatildeo ndash entatildeo para definir o ldquowould berdquo do dado eacute
necessaacuterio dizer como ele levaria o dado a se comportar na ocasiatildeo em que
afloraria todas as consequecircncias do ldquowould berdquo e essa afirmaccedilatildeo natildeo implicaraacute
de si mesma que o ldquowould berdquo do dado consiste em tal comportamento (CP 2 sect
664 1910)93
Tentaremos agora tomando como exemplo a atividade mental explicar alguns elementos
da concepccedilatildeo de continuidade peirceana A atividade mental pode ser tomada como um exemplo
que cumpre uma tripla funccedilatildeo faz-nos pensar a definiccedilatildeo de contiacutenuo por meio da anaacutelise da
passagem do tempo mostra como os infinitesimais estatildeo presentes nesse processo e ao discutir
como se daacute a atividade mental mostra tambeacutem a estrutura fundamental do cosmo pois para o
Peirce a natureza do cosmo eacute mental esta tambeacutem uma decorrecircncia do princiacutepio de continuidade
como uma hipoacutetese explicativa dos fenocircmenos
A questatildeo levantada por Peirce e que serviraacute de guia para essa discussatildeo eacute a de ldquocomo uma
ideia passada pode estar presenterdquo (CP 6 sect 109 1892)94
A resposta por ele proposta eacute de que
devemos estar diretamente conscientes das ideias do passado imediato Caso houvesse uma
lacuna entre nosso conhecimento presente e as ideias do passado todo o nosso conhecimento do
passado natildeo seria mais do que uma ilusatildeo Ou seja Peirce afirma que a consciecircncia natildeo reteacutem
93 To say that a die has a would-be is to say that it has a property quite analogous to any habit that a man might
have Only the would-be of the die is presumably as much simpler and more definite than the mans habit as the
dies homogeneous composition and cubical shape is simpler than the nature of the mans nervous system and soul
and just as it would be necessary in order to define a mans habit to describe how it would lead him to behave and
upon what sort of occasion--albeit this statement would by no means imply that the habit consists in that action--so to
define the dies would-be it is necessary to say how it would lead the die to behave on an occasion that would
bring out the full consequence of the would-be and this statement will not of itself imply that the would-be of
the die consists in such behaviour 94
How can a past idea be present
78
uma ideia em um intervalo finito de tempo Assim como consequecircncia devemos estar
conscientes do passado ldquoatraveacutes de um intervalo de tempo infinitesimalrdquo (CP 6 sect 110 1892)95
Como aponta Hausman ldquosomos levados a um concentrado exame da experiecircncia de ser
consciente atraveacutes de um fluxo de tempo que deve ser compreendido em termos de componentes
infinitesimaisrdquo (HAUSMAN 1993 p 179)
Como diz Peirce ldquosomos conscientes unicamente do tempo presente o qual se daacute em um
instante se eacute que existe tal coisa chamada instante Mas no presente estamos conscientes do
fluxo do tempo natildeo haacute fluxo em um instante Desse modo o presente natildeo eacute um instanterdquo (NEM
3 p 126)96
2 OS QUATRO ESTAacuteGIOS DO DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE CONTINUUM
A ideia de continuum eacute o fio condutor e o elemento comum de qualquer interpretaccedilatildeo que
busque relacionar os diferentes aspectos da produccedilatildeo peirceana constituiacuteda por teorias que uma
parte dos criacuteticos97
insiste em afirmar natildeo podem ser compatibilizadas a fim de produzir um todo
coerente objetivo de Peirce que considerava como arquitetocircnica a construccedilatildeo do seu sistema
Teorias que segundo tais perspectivas natildeo possuem aquelas caracteriacutesticas que tornam a obra de
Peirce atual e a aproxima do fazer filosoacutefico contemporacircneo Nota-se uma tendecircncia a colocar em
oposiccedilatildeo as teorias que tratam da metodologia da linguagem bem como da loacutegica com aquelas
que satildeo o resultado de sua investigaccedilatildeo metafiacutesica
Peirce reconhece o deacutebito que possui com Kant sobre este aspecto ao discorrer sobre a
necessidade de se construir arquitetonicamente os sistemas de filosofia ele afirma
95 () through an infinitesimal interval of time
96 We are conscious only of the present time which is an instant if there be such thing as an instant But in the
present we are conscious of the flow of the time There is no flow in an instant Hence the present is not an instant 97
Por exemplo GALLIE 1952
79
Que os sistemas devem ser construiacutedos arquitetonicamente foi apregoado
desde Kant mas eu natildeo acho que a implicaccedilatildeo completa da maacutexima tenha
por qualquer modo sido apreendida O que eu recomendo eacute que cada
pessoa que queira formar uma opiniatildeo sobre os problemas fundamentais
deve antes de tudo fazer um levantamento completo do conhecimento
humano deve tomar nota de todas as ideacuteias valiosas em cada ramo da
ciecircncia deve observar exatamente com respeito a que cada uma tem sido
bem sucedida e onde tem falhado a fim de que agrave luz da familiaridade
aprofundada desse modo obtida dos materiais disponiacuteveis para uma teoria
filosoacutefica e da natureza e da forccedila de cada um ele pode avanccedilar para o
estudo do que o problema da filosofia consiste e da maneira correta de
resolvecirc-lo (CP 6 sect 9 1891)98
A teoria da continuidade peirceana passou por vaacuterias fases das quais tentaremos oferecer
uma descriccedilatildeo neste capiacutetulo o momento de sua elaboraccedilatildeo mais feacutertil e de resultado mais
duradouro pode ser localizado na deacutecada de 90 do seacuteculo XIX Esse resultado se encontra
sintetizado na ldquoLei da menterdquo de 1892 e nas ldquoConferecircncias de Cambridgerdquo de 1898 e ocorre
ao mesmo tempo em que desenvolvia a loacutegica dos grafos existenciais e a hipoacutetese cosmoloacutegica
Natildeo bastasse a coincidecircncia quanto ao momento da origem dessas trecircs teorias eacute o proacuteprio Peirce
que declara haver uma unidade de base entre os toacutepicos ldquoOs meus bdquoGrafos existenciais‟ tecircm uma
semelhanccedila notaacutevel com todos os meus pensamentos acerca de qualquer toacutepico da filosofiardquo (MS
620 p 09)
A relaccedilatildeo mais imediata que se pode estabelecer entre elas eacute a de que constituem diversos
aspectos da ideia de continuum a loacutegica dos grafos existenciais estaacute baseada no continuum
98 That systems ought to be constructed architectonically has been preached since Kant but I do not think the full
import of the maxim has by any means been apprehended What I would recommend is that every person who
wishes to form an opinion concerning fundamental problems should first of all make a complete survey of human
knowledge should take note of all the valuable ideas in each branch of science should observe in just what respect
each has been successful and where it has failed in order that in the light of the thorough acquaintance so attained of
the available materials for a philosophical theory and of the nature and strength of each he may proceed to the study
of what the problem of philosophy consists in and of the proper way of solving it (CP 6 sect 9 1891)
80
topoloacutegico como veremos brevemente abaixo A teoria do continuum por sua vez eacute a proacutepria
expressatildeo matemaacutetica do referido conceito e a hipoacutetese cosmoloacutegica consiste na explicitaccedilatildeo dos
princiacutepios de desenvolvimento do continuum real
A variedade de definiccedilotildees que Peirce oferece da ideia de continuum deve-se segundo nos
parece ao fato de que grande parte seus escritos jamais foi publicada Os textos disponiacuteveis em
sua maioria satildeo constituiacutedos por notas que tomava para si proacuteprio ou projetos de livros que
nunca chegaram a ser concluiacutedos Assim o que temos ao ler seus textos eacute um retrato do proacuteprio
desenvolvimento quase cotidiano de suas ideias99
Os textos nos quais Peirce trata da questatildeo
refletem sucessivas tentativas de tornar a ideia de continuum clara coerente e adequada agraves suas
motivaccedilotildees filosoacuteficas As voltas avanccedilos e retomadas fazem parte dessa maneira do retrato do
desenvolvimento do pensamento do filoacutesofo que de fato nunca foi concluiacutedo as modificaccedilotildees
de suas ideias sobre o tema se prolongaram ateacute pouco tempo antes de sua morte em 1914
Segundo Potter e Shields (1977) de 1880 ateacute 1911 periacuteodo no qual Peirce tentou oferecer
uma definiccedilatildeo matematicamente precisa do conceito de continuidade eacute possiacutevel reconhecer
quatro estaacutegios no seu pensamento quanto ao tema100
preacute-cantoriano (ateacute 1884) cantoriano
(1884 ndash 1894) kantiano (1895 ndash 1908) e poacutes-cantoriano (1908 ndash 1911)
99 Moore se refere a essa condiccedilatildeo afirmando que como a maioria das principais ideias de Peirce a ideia de
continuum pode ser vista como ldquowork in progressrdquo (cf MOORE 2007 p 425) 100
Moore (2007) por outro lado classifica em trecircs as fases do desenvolvimento de sua noccedilatildeo de continuum
denominados de (1) Fase germinal (1868 - 1892) na qual as motivaccedilotildees fundamentais para a teoria satildeo identificadas
e elaboradas (2) Fase semi-cantoriana (1892 - 1895) na qual a teoria de conjuntos de Cantor imperfeitamente
compreendida eacute usada como uma estrutura organizadora e (3) Fase peirceana (1895-1914) na qual a teoria de
coleccedilotildees elaborada por Peirce assume o papel organizador
81
21 O PERIacuteODO PREacute-CANTORIANO
O primeiro periacuteodo eacute marcado pela consciecircncia de que havia uma confusatildeo incomum entre
as noccedilotildees de continuidade e divisibilidade infinita mas natildeo ainda pela tentativa de solucionar os
problemas implicados Peirce afirma que ldquo() um continuum eacute precisamente isso toda parte dele
tem partes no mesmo sentidordquo (CP 5 sect 335 1868)101
essa caracteriacutestica ficou conhecida na
literatura sobre o tema como reflexividade Essa confusatildeo persistiu ateacute que 1884 quando Peirce
leu pela primeira vez o artigo ldquoGrundlagen einer allgemeinen Mannigfaltigkeitslehrerdquo (1883) de
Cantor
Entre as motivaccedilotildees para a elaboraccedilatildeo de uma teoria do continuum encontram-se a
necessidade de uma anaacutelise epistemologicamente adequada do tempo bem como a elaboraccedilatildeo de
uma resposta agrave criacutetica feita ao seu texto intitulado ldquoAlgumas consequecircncias de quatro
incapacidadesrdquo de 1868 no qual Peirce desenvolve uma nova concepccedilatildeo de mente que em
oposiccedilatildeo agrave concepccedilatildeo de mente cartesiana caracteriza-se por natildeo possuir qualquer faculdade de
apreensatildeo imediata dos objetos do conhecimento nesse texto ele afirma que toda cogniccedilatildeo eacute
determinada por uma cogniccedilatildeo preacutevia (cf CP 5 sect 284 1868) ou seja que as premissas de todo
raciociacutenio satildeo tambeacutem conclusotildees Sua resposta inicial eacute dada nos termos de uma analogia da
cogniccedilatildeo com um triacircngulo Peirce pede que imaginemos um triacircngulo com o veacutertice invertido e
que aos poucos eacute mergulhado na aacutegua Diz ele
Considere qualquer linha horizontal como representando uma cogniccedilatildeo e
considere que o comprimento da linha serve para medir (por assim dizer) a
vivacidade da consciecircncia daquela cogniccedilatildeo Um ponto natildeo tendo
comprimento representaraacute por este princiacutepio um objeto fora da consciecircncia
Considere que uma linha horizontal abaixo de outra representa uma cogniccedilatildeo
que determina a cogniccedilatildeo representada por aquela outra e que tenha o mesmo
101 () a continuum is precisely that every part of which has parts in the same sense
82
objeto que a uacuteltima Considere a distacircncia finita entre as duas linhas como
representando que elas sejam duas cogniccedilotildees diferentes (CP 5 sect 263 1868)102
Dada esta situaccedilatildeo Peirce potildee-se a investigar se haacute a necessidade de se admitir se ldquodeve
existir um primeirordquo Agrave medida que o triacircngulo mergulha na aacutegua linhas sucessivas formam-se
em sua superfiacutecie que resultam do contato com a superfiacutecie da aacutegua Dizer que haacute uma primeira
seria o mesmo que afirmar que haveria uma linha formada no triacircngulo abaixo da qual nenhuma
outra poderia ser traccedilada mas segundo Peirce baseado na ideia de continuum como infinita
divisibilidade podem ser traccediladas abaixo de qualquer linha tantas outras o quanto se desejar Se
tomarmos essas linhas como cogniccedilotildees veremos que natildeo haacute necessidade de uma primeira visto
que afirmar tal necessidade seria o mesmo que abandonar a geometria
Em um momento posterior no texto ldquoTempo e pensamentordquo provavelmente de 1873
Peirce argumenta novamente em favor da ideia de que o continuum natildeo possui partes uacuteltimas
atraveacutes da investigaccedilatildeo das condiccedilotildees necessaacuterias para a existecircncia de uma mente loacutegica O
filoacutesofo aponta que trecircs coisas devem ser encontradas em toda mente loacutegica ldquoPrimeiro ideias
segundo determinaccedilatildeo de ideias por ideias preacutevias terceiro determinaccedilatildeo de ideias por
processos preacuteviosrdquo (CP 7 sect 348 1873)103
Em um fragmento de 1873 Peirce afirma com mais
detalhes ldquoem toda mente loacutegica deve haver 1ordm ideias 2ordm regras gerais de acordo com as quais
uma ideia determina uma outra ou haacutebitos da mente que conectam ideias 3ordm processos por meio
dos quais tais conexotildees habituais satildeo estabelecidasrdquo (CP 7 sect 358 1873)104
102 Now let any horizontal line represent a cognition and let the length of the line serve to measure (so to speak) the
liveliness of consciousness in that cognition A point having no length will on this principle represent an object
quite out of consciousness Let one horizontal line below another represent a cognition which determines the
cognition represented by that other and which has the same object as the latter Let the finite distance between two
such lines represent that they are two different cognitions 103
First ideas second determinations of ideas by previous ideas third determinations of ideas by previous
processes 104
In every logical mind there must be 1st ideas 2nd general rules according to which one idea determines another
or habits of mind which connect ideas and 3rd processes whereby such habitual connections are established
83
Para que tais condiccedilotildees produzam o pensamento loacutegico as ideias natildeo se podem apresentar
agrave mente como entidades distintas Se tal ocorresse uma vez que a mente soacute se fixa no conteuacutedo
da ideia presente no momento que passa (passing moment) natildeo haveria como conceber a
implicaccedilatildeo entre ideias105
Aqui indica Moore (2007) Peirce se aproxima mas ainda natildeo
formula com clareza uma das propriedades que definem o continuum segundo sua concepccedilatildeo
mais elaborada a de que seus componentes natildeo se distinguem em entidades singulares mas se
apresentam como que fundidos uns aos outros enquanto natildeo se realizam como seres atuais Essa
propriedade receberaacute o nome de confusatildeo (confusion) Ressalta-se tambeacutem a oposiccedilatildeo entre o
continuum reflexivo e as entidades discretas denominadas por Peirce de quanta discretas que
possuem partes uacuteltimas cuja funccedilatildeo eacute a de tornar mais clara a reflexividade do continuum Ao
estudar a metafiacutesica das coleccedilotildees Peirce vislumbra uma abordagem alternativa para o problema
mas o seu ainda impreciso conhecimento sobre coleccedilotildees natildeo o deixa seguir adiante
22 PERIacuteODO CANTORIANO
Por volta de 1884 Peirce jaacute tinha consciecircncia da centralidade que a noccedilatildeo de continuidade
poderia desempenhar na elaboraccedilatildeo de sua filosofia mas ainda natildeo tinha obtido sucesso em
propor uma definiccedilatildeo que lhe fosse satisfatoacuteria Moore afirma que por essa eacutepoca
Ele atingira a ideia de reflexividade kantiana mas natildeo chegara ainda a uma
anaacutelise dos pontos e outros discreta que fosse claramente compatiacutevel com
aquela ideia Reconhecera a utilidade para uma filosofia epistemologicamente
adequada do tempo de alguma coisa como confusatildeo mas essas caracteriacutesticas
105 Percebemos nesta consideraccedilatildeo uma clara motivaccedilatildeo filosoacutefica para o desenvolvimento de uma concepccedilatildeo precisa
de continuidade e mais que isso vemos como questotildees relacionadas agrave epistemologia estatildeo determinando os
caminhos que Peirce toma para pensar as propriedades que tal concepccedilatildeo deve possuir afim de que o conhecimento
seja possiacutevel As condiccedilotildees enunciadas na nota acima abrem a possibilidade de pensar a causalidade final atuante no
processo de implicaccedilatildeo de ideias o que seraacute feita no uacuteltimo capiacutetulo desta tese
84
do seu continuum ndash reflexividade e confusatildeo ndash natildeo foram colocadas em uma
conexatildeo sistemaacutetica em sua definiccedilatildeo de continuum Tinha comeccedilado a brincar
com os infinitesimais mas um pouco agrave parte de seu pensamento sobre
continuidade (MOORE 2007 p 434)
Apoacutes 1884 Peirce adere agrave posiccedilatildeo de Cantor afirmando que a noccedilatildeo de continuidade
deveria ser definida independentemente de nossas concepccedilotildees de espaccedilo e tempo Contudo a
definiccedilatildeo de Cantor natildeo surtiu o efeito que Peirce desejava e nos anos seguintes continuou a
tentar novas definiccedilotildees Seu principal desacordo com a definiccedilatildeo proposta pelo matemaacutetico
consistia em sua insatisfaccedilatildeo com a ideia de que fosse possiacutevel uma abordagem meacutetrica do
continuum Neste periacuteodo de desenvolvimento do seu pensamento sobre a continuidade duas
propriedades do continuum tornam-se centrais a kanticidade (Kanticity) e a aristotelicidade
(Aristotelicity) conforme a nomenclatura peirceana A kanticidade de uma seacuteria faz referecircncia
agravequela ldquopropriedade de intermediaccedilatildeo ou divisibilidaderdquo (CP 4 sect 121)106
ou ainda que a
ldquokanticidade consiste em ter um ponto entre dois pontos quaisquerrdquo (CP 6 sect 166 1889)107
Quanto agrave segunda Peirce afirma que a ldquoaristotelicidade consiste em ter todo ponto que eacute um
limite a uma seacuterie infinita de pontos que pertencem ao sistemardquo (CP 6 sect 166 1889)108
ou ainda
que
A propriedade de aristotelicidade pode ser colocada em termos gerais do
seguinte modo um continuum conteacutem o ponto final que pertence a toda seria
infinita de pontos que ele conteacutem Um corolaacuterio oacutebvio eacute que todo continuum
conteacutem seus limites Mas usando esse princiacutepio eacute necessaacuterio observar que uma
seacuterie pode ser contiacutenua exceto nisto que ela omita um ou ambos os limites (CP
6 sect 123)109
106 property of infinite intermediety or divisibility
107 The Kanticity is having a point between any two points
108 The Aristotelicity is having every point that is a limit to an infinite series of points that belong to the system
109 The property of Aristotelicity may be roughly stated thus a continuum contains the end point belonging to every
endless series of points which it contains An obvious corollary is that every continuum contains its limits But in
using this principle it is necessary to observe that a series may be continuous except in this that it omits one or both
of the limits
85
Como afirma Potter amp Shields (1977) por volta de 1889 o impacto de Cantor sobre Peirce
jaacute era bastante visiacutevel na definiccedilatildeo de continuidade que apresenta para o Dicionaacuterio do Seacuteculo
escreve
[Continuidade significa] em matemaacutetica e filosofia uma conexatildeo de pontos (ou
outros elementos) tatildeo iacutentima como aquelas dos instantes ou intervalos de
tempo assim a continuidade do espaccedilo consiste nisso que um ponto pode
mover-se de qualquer posiccedilatildeo para qualquer outra de tal modo que em cada
instante ele teraacute uma posiccedilatildeo definida e distinta no espaccedilo Esta afirmaccedilatildeo natildeo
eacute entretanto uma definiccedilatildeo adequada de continuidade mas somente um
exemplo extraiacutedo do tempo As antigas definiccedilotildees ndash o fato que partes adjacentes
tecircm seus limites em comum (Aristoacuteteles) infinita divisibilidade (Kant) o fato
que entre quaisquer dois pontos haacute um terceiro (o que eacute verdade para o sistema
dos nuacutemeros racionais) ndash satildeo inadequadas A definiccedilatildeo menos insatisfatoacuteria eacute a
de G Cantor de que continuidade eacute a perfeita concatenaccedilatildeo de um sistema de
pontos ndash palavras que precisam ser entendidas em sentidos especiais (CP 6 sect
164 1889)110
Do ponto de vista filosoacutefico Peirce estava tentando fornecer uma concepccedilatildeo de continuum
que fosse adequada agrave defesa de seu falibilismo e ao estabelecimento de sua cosmologia
evolucionaacuteria Seu entusiasmo com tal ideia era claro ele confessa no texto Falibilismo
continuidade e evoluccedilatildeo de 1897 que ldquose eu tentasse descrever completamente para vocecircs toda a
beleza e verdade cientiacutefica que encontro no princiacutepio de continuidade teria que dizer na
linguagem simples de Matilda a engajada ldquoque a tumba se fecharia sobre mim antes que esse
110 [Continuous means] in mathematics and philosophy a connection of points (or other elements) as intimate as that
of the instants or points of an interval of time thus the continuity of space consists in this that a point can move
from any one position to any other so that at each instant it shall have a definite and distinct position in space This
statement is not however a proper definition of continuity but only an exemplification drawn from time The old
definitions -- the fact that adjacent parts have their limits in common (Aristotle) infinite divisibility (Kant) the fact
that between any two points there is a third (which is true of the system of rational numbers) -- are inadequatedagger2 The
less unsatisfactory definition is that of G Cantor that continuity is the perfect concatenation of a system of points --
words which must be understood in special senses
86
assunto fascinante fosse esgotadordquo ndash mas natildeo antes que minha plateia estivesse exausta (CP 1 sect
171 1897)111
23 PERIacuteODO KANTIANO112
Em meados da deacutecada de 90 motivado por uma reflexatildeo sobre a definiccedilatildeo proposta por
Kant113
de que continuum eacute ldquotudo aquilo cujas partes tecircm partes do mesmo tipordquo (CP 6 sect 168
1889) passa a considerar o continuum natildeo mais como infinita divisibilidade mas como aquilo
que natildeo tem partes uacuteltimas Nesse sentido endereccedila criacuteticas a Cantor insistindo em uma
abordagem natildeo meacutetrica do continuum passando a usar o termo ldquomultitude em suas formulaccedilotildees
Assim afirma que ldquo() a possibilidade de determinar mais do que qualquer dada grandeza dos
pontos ou em outras palavras o fato de que haacute lugar para qualquer grandeza em cada parte da
linha torna-a contiacutenuardquo (CP 3 sect 568 1900)114
Peirce afirma pois que continuidade eacute
totalmente diferente de qualquer coleccedilatildeo de elementos discretos e que por outro lado quanto
maior uma coleccedilatildeo se torna mais ela se parece com o continuum
As criacuteticas que havia endereccedilado a Cantor desde 1892115
expressavam o seu desacordo com
uma abordagem meacutetrica do continuum segundo Peirce a definiccedilatildeo proposta pelo matemaacutetico
ldquovoltava-se para consideraccedilotildees meacutetricas enquanto a distinccedilatildeo entre seacuteries contiacutenuas e
descontiacutenuas eacute manifestamente natildeo-meacutetricardquo (CP 6 sect 121 1982)116
Em termos mais
111 If I were to attempt to describe to you in full all the scientific beauty and truth that I find in the principle of
continuity I might say in the simple language of Matilda the Engaged the tomb would close over me eer the
entrancing topic were exhausted -- but not before my audience was exhausted 112
Moore (2007) denomina este periacuteodo de Fase peirceana argumentando que eacute nele que Peirce obteacutem a definiccedilatildeo
de continuum mais satisfatoacuteria com relaccedilatildeo agraves suas preocupaccedilotildees filosoacuteficas 113
Que natildeo deve ser confundida com a propriedade denominada kanticidade anteriormente indicada cujo significado
era somente o de infinita divisibilidade 114
(hellip) the possibility of determining more than any given multitude of points or in other words the fact that there
is room for any multitude at every part of the line makes it continuous 115
No texto A lei da mente 116
It turns upon metrical considerations while the distinction between a continuous and a discontinuous series is
87
compreensiacuteveis as questotildees que Peirce estava se colocando desde 1893 eram segundo Potter e
Shields (1977) do seguinte tipo como um continuum pode ser colorido quando suas proacuteprias
partes os pontos natildeo podem secirc-lo (cf CP 4 sect 127) A soluccedilatildeo encontrada por Peirce foi a de
natildeo mais considerar os pontos como constituintes do continuum em sua nova formulaccedilatildeo as
partes constituintes do continuum satildeo tambeacutem contiacutenuas Essa posiccedilatildeo perdura ateacute por volta de
1908 quando motivado por problemas no interior dessa abordagem Peirce procura uma nova
elaboraccedilatildeo
24 PERIacuteODO POacuteS-CANTORIANO
Em particular a partir da criacutetica a Cantor de que o continuum natildeo eacute realmente uma
coleccedilatildeo surge a necessidade de se explicar como as partes do continuum juntam-se num todo
pois o continuum claramente tem partes Em 1906 Peirce enfatiza que ldquotudo o que eacute contiacutenuo
tem partes materiaisrdquo e que portanto natildeo pode ser pensado como uma coleccedilatildeo de pontos (CP 6
sect 174 1906) O modo de conexatildeo de suas partes contribui para a natureza do todo Em uma
coleccedilatildeo o modo de conexatildeo eacute soacute o estar junto (co-being) mas no continuum ela deve consistir de
alguma coisa a mais Apenas em 1908 retomando a definiccedilatildeo de Kant de que ldquo() todas as
partes de um continuum perfeito tecircm a mesma dimensionalidade que o todordquo (CP 4 sect 642
1908)117
Peirce afirma que eacute uma decorrecircncia dessa definiccedilatildeo natildeo apenas que todas as partes
devem ter partes do mesmo tipo mas que as partes suficientemente pequenas devem ter um modo
uniforme de conexatildeo imediata O modo de conexatildeo imediata tem como paradigma a noccedilatildeo de
tempo Ou seja ao final Peirce retoma o que havia descartado em 1889 quando aderiu agrave
definiccedilatildeo de Cantor e passa a tratar o continuum em termos de semelhanccedila com a conexatildeo das
pequenas partes temporais
manifestly non-metrical 117
(hellip) all the parts of a perfect continuum have the same dimensionality as the whole
88
Retomando o argumento de Aquiles e a tartaruga proposto por Zenatildeo de Eleacutea para
demonstrar a impossibilidade do movimento Peirce afirma tratar-se de um argumento falacioso
que falha justamente por assumir como divisiacutevel o que natildeo pode secirc-lo
Como afirmam Potter e Shields (1977) a concepccedilatildeo final de continuidade de Peirce entatildeo
fica assim a definiccedilatildeo matemaacutetica de continuidade descreve um continuum imperfeito (CP 4 sect
642 1908) mas o verdadeiro continuum eacute alguma coisa diferente de qualquer relaccedilatildeo meacutetrica ou
da ordem dos elementos O verdadeiro continuum natildeo tem elementos reais embora natildeo seja
vazio (cf POTTER e SHIELDS 1961 p 139)
Uma vez demonstrada a importacircncia central da noccedilatildeo de continuidade para o pensamento
de Peirce e o modo como esse conceito estaacute ligado agraves variadas maneiras de expressatildeo do seu
pensamento contribuindo para o esclarecimento dos aspectos mais obscuros de suas formulaccedilotildees
cabe agora tentar compreender em particular a maneira pela qual a atuaccedilatildeo da causalidade final
se manifesta nos processos naturais tendo como pano de fundo o continuum Como jaacute foi
indicado a possibilidade do conhecimento do mundo estaacute intimamente ligada ao seu aspecto de
generalidade que por sua vez soacute adquire sentido sob o conceito de continuidade Do mesmo
modo as relaccedilotildees causais em geral e a final em particular envolvem continuidade No proacuteximo
capiacutetulo seraacute investigada a especificidade do modo de atuaccedilatildeo da causalidade final
89
CAPIacuteTULO 03
A EVOLUCcedilAtildeO
Boys grow into men but not men into boys It is thus an immediate corollary from the
doctrine of the conservation of energy that growth is not the effect of force alone (CP
6 sect 554 1887)
90
Este capiacutetulo procura evidenciar o modo pelo qual o desenvolvimento do continuum se
efetuou e tem se efetuado para dar origem ao universo atual segundo a concepccedilatildeo peirceana
Seu desenvolvimento como ressalta Peirce se daacute por meio da atuaccedilatildeo da causalidade final A
negaccedilatildeo da atuaccedilatildeo da causalidade final nos processos naturais eacute uma posiccedilatildeo que natildeo pode ser
sustentada consistentemente pois para Peirce natildeo soacute nos deparamos com uma miriacuteade de
fenocircmenos que a manifestam claramente em particular nos reinos orgacircnico e psiacutequico mas
tambeacutem no reino fiacutesico como por exemplo mais determinante ainda no processo que deu
origem e continua a atuar no crescimento do universo que soacute pode ser entendido a partir da
perspectiva que toma a causalidade final como um agente operante no universo Tal processo diz
Peirce eacute a evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902)
1 ASPECTOS EPISTEMOLOacuteGICOS DA HIPOacuteTESE EVOLUCIONAacuteRIA
Partiremos nesta investigaccedilatildeo de algumas consideraccedilotildees sobre a perspectiva
epistemoloacutegica peirceana para evidenciarmos o modo pelo qual suas consideraccedilotildees sobre a
evoluccedilatildeo satildeo determinantes para a possibilidade de realizaccedilatildeo de seu projeto de validaccedilatildeo do
empreendimento cientiacutefico Para tal fim teremos como ponto de partida as consideraccedilotildees
oferecidas por Christopher Hookway (1984 1985) O primeiro aspecto a ser considerado eacute a sua
adoccedilatildeo do princiacutepio que nega a existecircncia do inexplicaacutevel Uma consequecircncia desta adoccedilatildeo eacute o
estabelecimento de um criteacuterio para a identificaccedilatildeo do tipo de hipoacutetese que pode ser aceita como
candidata agrave verdade cientiacutefica e desse modo merecedora de investigaccedilatildeo Como jaacute foi dito
anteriormente eacute a regularidade na concepccedilatildeo de Peirce aquilo que requer uma explicaccedilatildeo
Como aponta o filoacutesofo natildeo nos surpreendemos e nem buscamos explicaccedilotildees para o resultado
que emerja de um lance de dados uma regularidade natildeo esperada a quebra de uma expectativa
(cf CP 7 sect 194 1901) por outro lado excita-nos a buscar uma explicaccedilatildeo do por que dos
eventos terem se sucedido daquela maneira precisa A maior parte das irregularidades natildeo nos
desperta o menor interesse Peirce diz
91
Estou () certo de que a mera irregularidade onde nenhuma regularidade
definida eacute esperada natildeo cria surpresa nem excita qualquer curiosidade Por que
deveria jaacute que a irregularidade eacute a regra absolutamente preponderante da
experiecircncia e a regularidade eacute somente uma estranha exceccedilatildeo Em que estado
de surpresa passaria minha vida se tentasse compreender por que natildeo haacute
regularidades conectando dias nos quais eu recebo um nuacutemero par de cartas pelo
correio e noites nas quais eu observo um nuacutemero par de estrelas cadentes Mas
quem procuraria por explicaccedilotildees para irregularidades como essas (CP 7 sect 189
1901)118
Uma explicaccedilatildeo no entanto eacute requerida sempre que uma expectativa criada por um haacutebito
que tem por base uma regularidade eacute quebrada A surpresa causada pela quebra de regularidade
motiva-nos a procurar uma explicaccedilatildeo para o comportamento natildeo esperado dos fenocircmenos A
maneira como Peirce entende o que seria uma explicaccedilatildeo eacute bem clara na seguinte passagem
() o que a explicaccedilatildeo de um fenocircmeno faz eacute fornecer uma proposiccedilatildeo que se
fosse conhecida como verdadeira antes do fenocircmeno se apresentar teria tornado
aquele fenocircmeno prediziacutevel se natildeo como certeza ao menos como algo de
ocorrecircncia muito provaacutevel Assim tornaria aquele fenocircmeno racional - isto eacute
tornaacute-lo-ia uma consequecircncia loacutegica necessaacuteria ou provaacutevel (CP 7 sect 197
1901)119
O problema com essa definiccedilatildeo de explicaccedilatildeo eacute que aparentemente implica em um regresso
ao infinito Se aceitarmos como Peirce que uma explicaccedilatildeo natildeo pode ter por base uma hipoacutetese
118 I am () confident that mere irregularity where no definite regularity is expected creates no surprise nor excites
any curiosity Why should it when irregularity is the overwhelmingly preponderant rule of experience and
regularity only the strange exception In what a state of amazement should I pass my life if I were to wonder why
there was no regularity connecting days upon which I receive an even number of letters by mail and nights on which
I notice an even number of shooting stars But who would seek explanations for irregularities like that
119 () what an explanation of a phenomenon does is to supply a proposition which if it had been known to be true
before the phenomenon presented itself would have rendered that phenomenon predictable if not with certainty at
least as something very likely to occur It thus renders that phenomenon rational -- that is makes it a logical
consequence necessary or probable
92
que natildeo seja ela proacutepria explicaacutevel veremos a necessidade de uma hierarquia de hipoacuteteses
segundo a sua generalidade que conduziria a explicaccedilatildeo de qualquer fenocircmeno por fim ao
fracasso uma vez que nenhum fenocircmeno poderia ser completamente conhecido
Barrar a regressatildeo ao infinito parece possiacutevel somente se encontrarmos uma lei que natildeo
necessite de explicaccedilatildeo que se imponha por si mesma Esse entretanto natildeo parece ter sido o
caminho trilhado por Peirce Eacute na tentativa de solucionar o problema da regressatildeo ao infinito das
explicaccedilotildees que encontraremos uma das motivaccedilotildees para a elaboraccedilatildeo de sua hipoacutetese
evolucionaacuteria Submeter uma regularidade a uma lei de maior generalidade natildeo parece ser o
uacutenico caminho para oferecer uma explicaccedilatildeo Uma rota alternativa consiste em oferecer uma
explicaccedilatildeo histoacuterica de como tais regularidades surgiram isto eacute uma explicaccedilatildeo geneacutetica Como
aponta Hookway ldquoEacute plausiacutevel ler Peirce como se estivesse tentando bloquear a regressatildeo de
explicaccedilotildees por meio dessa estrateacutegia a cosmologia evolucionaacuteria oferece uma estrutura para
compreensatildeo histoacuterica das leis que nos capacita a bloquear o regresso das explicaccedilotildeesrdquo
(Hookway 1985 p 267-68)
Aleacutem do bloqueio agrave regressatildeo das explicaccedilotildees Peirce vecirc na hipoacutetese evolucionaacuteria tomada
como um instrumento loacutegico uma resposta para as similaridades formais e materiais constataacuteveis
entre as leis que dirigem diferentes tipos de fenocircmenos da mesma maneira que a teoria da
seleccedilatildeo natural elaborada por Darwin (1809 - 1882) auxilia-nos na compreensatildeo das
semelhanccedilas morfoloacutegicas e comportamentais de diferentes populaccedilotildees
De maneira mais ambiciosa Peirce parece acreditar que a hipoacutetese evolucionaacuteria seria
capaz tambeacutem de explicar porque temos a experiecircncia de uma uniformidade na natureza Ele
afirma que ldquo() a uacutenica maneira possiacutevel de explicar as leis da natureza e a uniformidade em
geral eacute supocirc-las resultado da evoluccedilatildeordquo (CP 6 sect 13 1891)120
em outro momento afirma que
Queremos uma teoria da evoluccedilatildeo da lei fiacutesica Devemos supor que agrave medida
que voltamos ao passado indefinido natildeo meramente as leis especiais mas a lei
120 (hellip) the only possible way of accounting for the laws of nature and for uniformity in general is to suppose them
results of evolution This supposes them not to be absolute not to be obeyed precisely
93
ela mesma encontra-se cada vez menos determinada E como isso poderia
acontecer se a causalidade tivesse sido sempre tatildeo rigidamente necessaacuteria como
eacute agora (EP 1 p 218-9 1884)121
Hookway eacute quanto a esse ponto discordante da pretensatildeo de Peirce pois afirma que
A demanda de que expliquemos por que uma lei existe parece muitas vezes e
corretamente dificilmente inteligiacutevel Essa natildeo parece ser uma questatildeo
cientiacutefica e certamente natildeo eacute idecircntica como Peirce supotildee agrave mais razoaacutevel
afirmaccedilatildeo de que eacute a regularidade ou a uniformidade que nos impulsiona a
buscar por explicaccedilotildees (Hookway 1985 p 268)
Todavia de acordo com o espiacuterito do projeto epistemoloacutegico peirceano que busca eliminar
o incognosciacutevel do reino da natureza por meio da validaccedilatildeo de um meacutetodo eficaz para a ciecircncia e
agrave luz da sua cosmologia que fornece elementos para pensar cada aspecto do universo como o
resultado de um processo evolucionaacuterio a proacutepria existecircncia de leis como um fato bruto que se
impotildee agrave experiecircncia deve ser tomado como um problema que requer uma explicaccedilatildeo A
discordacircncia presente na opiniatildeo de Hookway parece implicar em uma distinccedilatildeo entre leis e
regularidades que natildeo se encontra no pensamento de Peirce senatildeo em graus
Ao lado das leis que governam os fenocircmenos como jaacute vimos no primeiro capiacutetulo Peirce
identifica o acaso absoluto como um ingrediente constitutivo da realidade e fator determinante
para que ela nos apareccedila da maneira como a percebemos isto eacute diversa e com constante
crescimento de complexidade
A partir de uma perspectiva geral que engloba a origem do universo passando pelo tempo
atual e se projetando no futuro infinitamente distante podemos perceber que a hipoacutetese
121 We want a theory of the evolution of physical law We ought to suppose that as we go back in the indefinite past
not merely special laws but law itself is found to be less and less determinate And how can that be if causation was
always as rigidly necessary as it is now
94
evolucionaacuteria de Peirce se compromete com a ideia de que por meio da passagem do tempo as
variaccedilotildees ao acaso tornam-se mais raras e as leis tecircm a sua influecircncia sobre o curso dos eventos
aumentada tornando desse modo o mundo mais e mais racional Central a essa ideia eacute a noccedilatildeo
de haacutebito tanto em seu caraacuteter psicoloacutegico que atua sobre noacutes determinando atraveacutes de
investigaccedilatildeo que adotemos expectativas mais confiaacuteveis isto eacute tornemo-nos mais
autocontrolados quanto em seu caraacuteter cosmoloacutegico que determina o crescimento da
razoabilidade concreta no universo
2 AS RAIacuteZES NA CIEcircNCIA DO SEacuteCULO XIX
Uma outra motivaccedilatildeo para a adoccedilatildeo da hipoacutetese evolucionaacuteria pode ser encontrada na
insatisfaccedilatildeo com o tratamento que a mecacircnica claacutessica legava a certos fenocircmenos considerados
por Peirce de primordial importacircncia os fenocircmenos irreversiacuteveis A caracteriacutestica distintiva do
mundo fenomecircnico eacute sua diversidade afirma Peirce (cf CP 6 sect 262 1892) Como entatildeo
podemos perguntar eacute possiacutevel conciliar esse aspecto do mundo com uma abordagem mecanicista
dos fenocircmenos Eacute para responder a esta questatildeo que Peirce desenvolve uma teoria da evoluccedilatildeo
como um princiacutepio da loacutegica que amplia seu horizonte de aplicaccedilatildeo para aleacutem do reino das
explicaccedilotildees bioloacutegicas alcanccedilando o reino das explicaccedilotildees fiacutesicas psiacutequicas almejando ateacute
mesmo a explicar a gecircnese das proacuteprias leis naturais Embora tenha sido com a obra de Darwin
que o conceito de evoluccedilatildeo foi deslocado para o centro das discussotildees cientiacuteficas na segunda
metade do seacuteculo XIX Peirce dota-o de um sentido diferente daquele entatildeo empregado isto eacute do
de uma metafiacutesica do progresso Como um princiacutepio da loacutegica trata-se de uma ideia reguladora
que tem por finalidade abranger de forma sistemaacutetica e racional a ciecircncia do seu tempo Seu
sentido nada mais eacute do que a hipoacutetese de que existe uma explicaccedilatildeo simples para um estado de
coisas complexas (cf W 4 p 547 1884) Enquanto tal Peirce supunha-o presente na elaboraccedilatildeo
teoacuterica de todo grande filoacutesofo Ele afirma que ldquoHoje todos satildeo evolucionistas Diz-se que eacute o
tempo do evolucionismo Mas a verdade eacute que todos os filoacutesofos desde o tempo de Fereacutecides
95
tecircm sido evolucionistasrdquo (NEM 4 p 140 ca 1898)122
O desafio principal enfrentado por Peirce eacute o de propor uma alternativa agrave abordagem
mecanicista que natildeo ignore a variedade e diversidade dos fenocircmenos De um ponto de vista mais
geral pode-se identificar nos esforccedilos empreendidos por Peirce a busca por uma teoria que
levasse em consideraccedilatildeo os fenocircmenos irreversiacuteveis tarefa que natildeo faria sentido dentro dos
paracircmetros da fiacutesica newtoniana na qual a direccedilatildeo da flecha do tempo eacute teoricamente reversiacutevel
A evoluccedilatildeo como um processo operante no cosmo aparece como a fonte dos problemas da
abordagem da mecacircnica claacutessica pois a irreversibilidade de seus processos natildeo pode ser
explicada Diz Peirce
Desse modo pela admissatildeo da pura espontaneidade ou vida como uma
caracteriacutestica de universo agindo sempre e em todo lugar ainda que restrita pelos
limites da lei continuamente produzindo variaccedilotildees infinitesimais com relaccedilatildeo agrave
lei e outras grandes com infinita infrequecircncia considero toda a variedade e
diversidade do universo no uacutenico sentido no qual o realmente sui generis e novo
pode ser considerado A visatildeo comum tem que admitir a inexauriacutevel e numerosa
variedade do mundo tem que admitir que sua lei mecacircnica natildeo consegue dar
conta disso ao final a variedade pode se originar unicamente da espontaneidade
e contudo nega sem qualquer evidecircncia ou razatildeo a existecircncia dessa
espontaneidade ou de outra forma voltam ao iniacutecio do tempo e supotildeem-na
morta desde sempre (CP 6 sect 59 1892)123
Como aponta Reynolds (2002 p 27) ldquoEra uma crenccedila comum entre os fiacutesicos ateacute por volta
da uacuteltima deacutecada do seacuteculo dezenove que todos os fenocircmenos fiacutesicos poderiam ser acomodados
dentro dos esquemas da apresentaccedilatildeo da ciecircncia da mecacircnica de Newtonrdquo Peirce tendia a aceitar
esta afirmaccedilatildeo com alguma reserva sua principal discordacircncia dizia respeito agrave impossibilidade de
122 Everybody today is evolutionist This is said to be the day of evolutionism But in truth every important
philosopher from Pherecydes down has always been evolutionist
123 By thus admitting pure spontaneity or life as a character of the universe acting always and everywhere though
restrained within narrow bounds by law producing infinitesimal departures from law continually and great ones
with infinite infrequency I account for all the variety and diversity of the universe in the only sense in which the
really sui generis and new can be said to be accounted for The ordinary view has to admit the inexhaustible
multitudinous variety of the world has to admit that its mechanical law cannot account for this in the least that
variety can spring only from spontaneity and yet denies without any evidence or reason the existence of this
spontaneity or else shoves it back to the beginning of time and supposes it dead ever since
96
se abordar os fenocircmenos irreversiacuteveis dentro desse esquema explicativo A esta posiccedilatildeo que
considerava passiacutevel de criacutetica ele atribuiu o nome de mecanicismo ou necessitarismo Eacute
interessante notar que Peirce definia a fiacutesica como ldquo() a ciecircncia dos princiacutepios operativos na
natureza inorgacircnica a ciecircncia das forccedilas ou formas de energiardquo (CD p 4465 ca 1889)124
A
fiacutesica segundo sua concepccedilatildeo poderia ser divida em trecircs ramos distintos
1 Fiacutesica molar Mecacircnica e gravitaccedilatildeo a ciecircncia da forccedila em geral com
desenvolvimentos matemaacuteticos extensivos
2 Fiacutesica molecular o estudo da constituiccedilatildeo da mateacuteria e das forccedilas interiores agraves
moleacuteculas incluindo a elasticidade e o calor (um aspecto indivisiacutevel) coesatildeo e forccedilas quiacutemicas e
3 A fiacutesica do eacuteter sendo o estudo da luz ou radiaccedilatildeo eletricidade e magnetismo (cf CP
1 sect 193 1903)
Eacute no segundo ramo o da fiacutesica molecular indica Reynolds (2002) que Peirce vecirc a maior
importacircncia que seu projeto loacutegicometafiacutesico poderia ter como um guia para as pesquisas Sua
insatisfaccedilatildeo com a incapacidade da mecacircnica newtoniana de tratar do tempo como um fluxo que
possui uma direccedilatildeo especiacutefica eacute atribuiacuteda ao caraacuteter formal da teoria mecanicista Como afirma
() as leis da dinacircmica permanecem em uma condiccedilatildeo um pouco diferente
daquela das leis da gravitaccedilatildeo elasticidade e similares As leis da dinacircmica satildeo
muito mais parecidas com princiacutepios loacutegicos se eacute que natildeo satildeo precisamente isso
Elas soacute dizem como os corpos se moveratildeo depois que se tenha dito o que as
forccedilas satildeo Elas permitem qualquer forccedila e portanto qualquer movimento (CP
1 sect 347 1903)125
124 () the science of the principles operative in nature the science of forces or forms of energy 125 () the laws of dynamics stand on quite a different footing from the laws of gravitation elasticity electricity
and the like The laws of dynamics are very much like logical principles if they are not precisely that They only say
how bodies will move after you have said what the forces are They permit any forces and therefore any motions
97
Dado o seu caraacuteter geral e abstrato essas leis natildeo conseguem dar conta dos processos
irreversiacuteveis que ocorrem na natureza uma vez que a direccedilatildeo da flecha do tempo tanto pode estar
apontada para o futuro quanto para o passado sem que nada de significativo seja alterado na
teoria No entanto os processos naturais visados por Peirce como objetos merecedores de
atenccedilatildeo e explicaccedilatildeo satildeo justamente aqueles nos quais a direccedilatildeo do tempo desempenha um papel
fundamental satildeo os processos irreversiacuteveis como a proacutepria evoluccedilatildeo que determina o
crescimento do universo como um todo
A discussatildeo do alcance e limite da abordagem mecanicista passa pela consideraccedilatildeo do que
ficou conhecido como a lei da vis viva126
que eacute descrita por Peirce como ldquo() o princiacutepio
segundo o qual quando unicamente forccedilas posicionais satildeo consideradas qualquer mudanccedila na
vis viva do sistema depende unicamente das situaccedilotildees inicial e final das partiacuteculasrdquo (CD p 6768
ca 1889)127
As forccedilas posicionais satildeo aquelas resultantes exclusivamente da posiccedilatildeo relativa dos
corpos envolvidos Uma vez que essas forccedilas mantecircm a quantidade de vis viva do sistema
inalterada elas satildeo chamadas de forccedilas conservativas Na definiccedilatildeo que Peirce oferece do termo
forccedila temos a definiccedilatildeo do que entendia por forccedila conservativa
Uma atraccedilatildeo ou repulsatildeo dependente da posiccedilatildeo relativa do par de corpos
implicados Acredita-se que todas as forccedilas fundamentais sejam conservativas
ou fixas Seja qual for o movimento que tenha origem sob a influecircncia
unicamente de forccedilas conservativas pode originar-se sob as mesmas forccedilas
precisamente na ordem reversa a velocidade sendo a mesma mas em direccedilatildeo
oposta (CD p 2319 ca 1889)128
126 Reynolds (2002 p 30) lembra que essa quantidade foi primeiramente defina por Leibniz (1646 - 1716) como
sendo igual ao produto da massa e o quadrado da velocidade de uma partiacutecula ou a soma desse modo de um grupo
de partiacuteculas
127 () the principle that when only positional forces are considered any changes in the vis viva of a system
depend only on the initial and final situations of the particles 128 An attraction or repulsion depending upon the relative position of the pair of bodies concerned All fundamental
forces are believed to be conservative or fixed Whatever motion takes place under the influence of conservative
forces alone might take place under the same forces in precisely the reverse order the velocities being the same but
opposite in direction
98
A consequecircncia eacute a de que todos os sistemas que contenham unicamente forccedilas de tipo
conservativo satildeo reversiacuteveis Ainda que a princiacutepio a lei da vis viva tivesse aplicaccedilatildeo restrita aos
sistemas mecacircnicos Helmholtz (1821 - 1894) se encarregou de estendecirc-la a todos os sistemas
fiacutesicos argumentando que todas as forccedilas fundamentais da natureza satildeo posicionais portanto
conservativas que interagem entre pares de pontos materiais O passo seguinte nessa mesma
direccedilatildeo foi a determinaccedilatildeo do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia mais abrangente que a lei da
vis viva na medida em que inclui todos os tipos de forccedilas existentes na natureza como afirma
Reynolds ldquoO que o princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia fez foi tornar o velho princiacutepio da
mecacircnica (a lei da vis viva) um princiacutepio geral da fiacutesica com aplicaccedilatildeo universal a todos os
sistemas fiacutesicosrdquo (Reynolds 2002 p 32)
As implicaccedilotildees do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia e a sua relaccedilatildeo com a vis viva satildeo
bem indicadas por Peirce na seguinte passagem
Tambeacutem pode ser argumentado que de acordo com a lei de conservaccedilatildeo de
energia natildeo haacute nada no universo fiacutesico que corresponda agrave nossa ideia de que o
preacutevio determina o subsequente em qualquer modo no qual o subsequente natildeo
determine o preacutevio () Assim sendo do quadrado de uma quantidade negativa
sendo positivo segue-se que se todas as velocidades fossem revertidas em
qualquer instante tudo permaneceria igual unicamente o tempo indo para traacutes
em relaccedilatildeo a como estava Tudo que tenha acontecido aconteceria novamente
na ordem reversa (CP 8 sect 320 1906)129
ou ainda
129 It may also be argued that according to the law of the conservation of energy there is nothing in the physical
universe corresponding to our idea that the previous determines the subsequent in any way in which the subsequent
does not determine the previous() Now the square of a negative quantity being positive it follows that if all the
velocities were reversed at any instant everything would go on just the same only time going backward as it were
Everything that had happened would happen again in reverse order
99
Eu pessoalmente acredito que as duas direccedilotildees do Tempo satildeo tatildeo diferentes
quanto as duas direccedilotildees ao longo de uma linha Pois a lei da conservaccedilatildeo de
energia eacute que a vis viva e consequentemente tambeacutem as forccedilas das partiacuteculas
natildeo depende de nada mutaacutevel exceto as posiccedilotildees relativas das partiacuteculas Desse
modo o diferencial do tempo entra na expressatildeo analiacutetica da vis viva 12
m(dsdt)2 bem como naquela de forccedila m d2s (dt)
2 unicamente como o
quadrado Uma vez que o quadrado de uma quantidade negativa eacute igual agravequele
da quantidade positiva correspondente as duas direccedilotildees do tempo satildeo
indiferentes na medida em que a lei de conservaccedilatildeo de energia valha (NEM 2
p 481)130
O que se depreende eacute que natildeo se pode entender por meio destes princiacutepios porque o
universo apresenta caracteriacutesticas de irreversibilidade uma vez que a partir dos mesmos natildeo se
pode compreender por que a flecha do tempo possuiria caracteriacutesticas especiais em uma de suas
direccedilotildees isto eacute por que o tempo flui do passado para o futuro e por que essa direccedilatildeo apresenta
aspectos de irreversibilidade Entretanto seria um equiacutevoco julgar que Peirce natildeo tinha uma
avaliaccedilatildeo positiva do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia ele proacuteprio afirma em vaacuterios
momentos que ldquoA descoberta desta lei [de conservaccedilatildeo de energia] eacute a maior que a ciecircncia jamais
fez e nada que possa ser descoberto no futuro (a menos que seja de caraacuteter sobrenatural) pode
igualaacute-la em importacircnciardquo (W 5 p 402)131
Natildeo obstante esta avaliaccedilatildeo Peirce parece em
algumas passagens um pouco hesitante quanto ao verdadeiro alcance e natureza do princiacutepio
A descoberta da conservaccedilatildeo de energia pode muito bem ser considerada como a
maior conquista da filosofia natural Contudo por fim nada sabemos ao seu
respeito com exceccedilatildeo daquilo que a experiecircncia nos ensina e suas verificaccedilotildees
experimentais com exceccedilatildeo de alguns casos simples natildeo obtecircm qualquer grau
130 I personally believe that the two directions of Time are as alike as the two directions along a line For the law of
the conservation of energy is that the vis viva and consequently also the forces of the particles depends upon
nothing mutable except the relative positions of the particles Now the differential of the time enters into the
analytical expression of the vis viva 12 m(dsdt)2 as well as into that of force m d2s (dt)
2 only as squared
Whence the square of a negative quantity being equal to that of the corresponding positive quantity the two
directions of time are indifferent as far as the action of the law of the conservation of energy goes 131 The discovery of this law [of the conservation of energy] is the greatest that science has ever made and nothing
that can be hereafter (unless it be of a supernatural kind) can equal it in importance
100
extraordinaacuterio de precisatildeo quando consideramos o trabalho muscular e a
atividade cerebral haacute pouco mais que analogia a nos guiar a pensaacute-la como uma
aproximaccedilatildeo da verdade Toda determinaccedilatildeo fiacutesica de uma quantidade contiacutenua
tem seu ldquoerro provaacutevelrdquo e o erro provaacutevel da equaccedilatildeo que expressa a
conservaccedilatildeo de energia eacute grande em comparaccedilatildeo com aqueles que expressam
por exemplo as trecircs leis do movimento Todavia frequentemente vemos os
ldquocientistasrdquo tratando a lei da conservaccedilatildeo de energia em suas aplicaccedilotildees
extremas as mais distantes de qualquer coisa que possamos medir como algo de
que seria absurdo duvidar (CN 1 p 176 1893)132
O problema que Peirce tem como pano de fundo de suas especulaccedilotildees e para cuja soluccedilatildeo
emprega seus maiores esforccedilos eacute como jaacute ficou claro o de propor uma abordagem cientiacutefica aos
fenocircmenos irreversiacuteveis Quando se refere a tais fenocircmenos Peirce pensa sobretudo naqueles
que satildeo fruto da evoluccedilatildeo mas tambeacutem em outros fenocircmenos fiacutesicos cujas caracteriacutesticas de
irreversibilidade jaacute lhe eram claras O filoacutesofo afirma que
(hellip) quase todos os fenocircmenos dos corpos aqui na terra que atraem a nossa
atenccedilatildeo satildeo natildeo conservativos isto eacute satildeo inexplicaacuteveis por meio da Lei de
Conservaccedilatildeo de Energia Pois satildeo accedilotildees que natildeo podem ser revertidas Na
linguagem dos fiacutesicos satildeo irreversiacuteveis Deste tipo satildeo por exemplo o
nascimento o crescimento a vida () todos os movimentos que sofrem a
resistecircncia da fricccedilatildeo ou da viscosidade dos fluidos () o trovatildeo a produccedilatildeo das
cores pelo prisma o fluxo dos rios a formaccedilatildeo de barreiras em suas
desembocaduras a vegetaccedilatildeo de seus canais enfim substancialmente tudo que a
experiecircncia ordinaacuteria revela (CP 6 sect 72 1898)133
132 The discovery of the conservation of energy may well be considered as the greatest achievement of natural
philosophy Yet after all we know nothing about it except what experience teaches us and the experiential
verifications of it except in a few simple cases do not attain any extraordinary degree of precision while in regard
to muscular work and brain activity there is little but analogy to lead us to think it so much as a close approximation
to the truth Every physical determination of a continuous quantity has its probable error and the probable error of
the equation which expresses the conservation of energy is large in comparison with those which express for
example the three laws of motion Nevertheless we often find the scientists treating the law of the conservation of
energy in its extremest applications the most remote from anything we can measure as something it would be
absurd to doubt
133 () almost all the phenomena of bodies here on earth which attract our familiar notice are non-conservative that
is are inexplicable by means of the Law of the Conservation of Energy For they are actions which cannot be
reversed In the language of physics they are irreversible Such for instance is birth growth life () all motion
resisted by friction or by the viscosity of fluids () the conduction of heat combustion capillarity diffusion of fluids
() the thunder bolt the production of high colors by a prism the flow of rivers the formations of bars at their
mouths the wearing of their channels in short substantially everything that ordinary experience reveals
101
Temos desta maneira como jaacute ficou indicado uma tensatildeo entre a quase ubiquidade do
caraacuteter de irreversibilidade nos fenocircmenos naturais e a descriccedilatildeo cientiacutefica que toma o universo
como um sistema reversiacutevel in toto A soluccedilatildeo encontrada por Peirce natildeo eacute uma formulaccedilatildeo
isolada e totalmente diferente do que a ciecircncia de seu tempo vinha produzindo Veremos agora
como as discussotildees que conduziram agrave formulaccedilatildeo da termodinacircmica inspirou as ideias de Peirce
A descriccedilatildeo de fenocircmenos como irreversiacuteveis natildeo era exclusividade de Peirce Sadi Carnot
(1796ndash1832) Rudolf Clausius (1822ndash1888) e Lord Kelvin (1824ndash1907) jaacute se ocupavam com a
tarefa de compreender alguns fenocircmenos caracteriacutesticos da irreversibilidade em particular o
calor que daria origem posteriormente agrave teoria termodinacircmica Nas afirmaccedilotildees de Clausius de
que (1) a energia do universo eacute constante e (2) a entropia do universo tende ao maacuteximo
encontramos uma clara afirmaccedilatildeo de que eacute o aumento de entropia o marcador que determina a
direccedilatildeo da flecha do tempo Como aponta Reynolds
Em uma tentativa de oferecer uma abordagem mecacircnica de tais processos
irreversiacuteveis tal como satildeo descritos pela segunda lei Clausius Maxwell
Boltzmann e outros desenvolveram a teoria cineacutetica dos gases na qual a teoria
da probabilidade e os princiacutepios da mecacircnica satildeo combinados para oferecer uma
abordagem estatiacutestica dos movimentos da miriacuteade de partiacuteculas do gaacutes O
tratamento estatiacutestico foi considerado necessaacuterio principalmente por causa do
vasto nuacutemero de moleacuteculas que se supocircs constituiacutea um gaacutes (Reynolds 2002 p
42)
Para os criadores da teoria cineacutetica dos gases o fato de que os gases tendam a preencher
todo o interior dos recipientes em que satildeo colocados e de que nunca se concentram em apenas
uma parte dos mesmos eacute explicado em funccedilatildeo da lei dos grandes nuacutemeros ou lei das
probabilidades Embora teoricamente possiacutevel a ocorrecircncia da concentraccedilatildeo espontacircnea das
partiacuteculas de um gaacutes nunca eacute verificada isso porque a probabilidade de sua difusatildeo eacute muito maior
do que a de sua concentraccedilatildeo dado o nuacutemero extremamente grande de partiacuteculas que o
102
compotildeem cujas interaccedilotildees satildeo tatildeo numerosas e tatildeo sutis que satildeo tomadas como sendo
determinadas pelo acaso
Quanto a esse tipo de explicaccedilatildeo Peirce declara ldquoPara aquelas explicaccedilotildees que os fiacutesicos
propotildeem para os fenocircmenos irreversiacuteveis por meio da doutrina da probabilidade (doctrine of
chances) aplicada a trilhotildees de moleacuteculas aceito-as integralmente como um dos resultados mais
sofisticados da ciecircnciardquo (CP 7 sect 470 1898)134
Contudo acrescenta mais abaixo no mesmo
paraacutegrafo
Sua explicaccedilatildeo dos fatos eacute em seu conjunto admiraacutevel e fortalecida por uma
variedade de novos fenocircmenos que natildeo eram conhecidos no momento em que a
teoria foi primeiramente proposta mas que se encaixam em seus lugares como as
peccedilas separadas de um mapa de crianccedila uma vez que ela tenha comeccedilado a unir
algumas delas corretamente Essa explicaccedilatildeo demonstra que a accedilatildeo da energia
estaacute disseminada por cada departamento do fenocircmeno fiacutesico Contudo em uma
coisa ela falha a saber em mostrar a ausecircncia de um tipo muito diferente de
accedilatildeo e natildeo falha apenas em mostrar sua ausecircncia mas por suprimir ateacute mesmo
os meios de provar a sua presenccedila (CP 7 sect 470 1898)135
Os fenocircmenos que satildeo ignorados e ateacute mesmo mascarados pelas teorias indicadas satildeo
denominados por Peirce de fenocircmenos natildeo conservativos e possuem duas caracteriacutesticas
principais
a) verifica-se em seu desenrolar uma determinada direccedilatildeo e uma tendecircncia assintoacutetica para
a realizaccedilatildeo de um estado de coisas final
134 As to those explanations which the physicists propose for irreversible phenomena by means of the doctrine of
chances as applied to trillions of molecules I accept them fully as one of the finest achievements of science
135 Its explanation of the facts is altogether admirable and is fortified by a variety of new phenomena which were
not known at the time the theory was first proposed but which fit into their places like the pieces of a boys dissected
map after he has once begun to put a few of them rightly together This explanation demonstrates that the agency of
energy is disseminated through every department of physical phenomena But in one thing it fails namely it fails to
show the absence of a very different kind of agency and it not only fails to show its absence but even supplies the
means of proving its presence
103
b) satildeo irreversiacuteveis (cf CP 7 sect 471 1898)
Temos aqui a afirmaccedilatildeo clara de que tais fenocircmenos se dirigem para um fim Peirce diz que
se teleoloacutegico eacute uma palavra muito forte para descrever esse processo talvez se possa inventar
uma outra palavra finista (finious) para expressar a sua tendecircncia em direccedilatildeo a um estado final
(cf CP 7 sect 471 1898)
Embora Peirce reconheccedila que a fricccedilatildeo seja o exemplo de um fenocircmeno natildeo conservativo
que simula a accedilatildeo conservativa (cf CP 7 sect 472 1898) a utilizaccedilatildeo de (a) e (b) acima como
criteacuterios indica a expectativa de Peirce de que os fenocircmenos que nos interessam neste capiacutetulo
isto eacute os fenocircmenos de crescimento ou evoluccedilatildeo podem ser explicados por meio da assimilaccedilatildeo
dos princiacutepios envolvidos na teoria cineacutetica dos gases Tais fenocircmenos satildeo irreversiacuteveis em
funccedilatildeo da operaccedilatildeo no mundo de um princiacutepio real de acaso Eacute a indeterminaccedilatildeo resultante da
interaccedilatildeo de um vasto nuacutemero de partiacuteculas e de seus movimentos que explicaria a
irreversibilidade constatada em certos fenocircmenos Todavia o proacuteprio tempo natildeo parece receber
este mesmo tipo de tratamento como veremos no capiacutetulo dedicado agrave causalidade final
Tendo visto como a proposta do acaso absoluto como um princiacutepio operante na natureza eacute
uma consequecircncia da leitura que Peirce faz da ciecircncia do seu tempo em particular da teoria
termodinacircmica passaremos agora a investigar as descriccedilotildees e classificaccedilotildees que Peirce oferece
ao fenocircmeno evolutivo Vale lembrar que com o termo bdquoevoluccedilatildeo‟ Peirce se refere aos fenocircmenos
de crescimento que satildeo portanto em seus proacuteprios termos irreversiacuteveis e finistas Os textos que
compotildeem a base desta investigaccedilatildeo satildeo da maturidade de Peirce e frutos de sua preocupaccedilatildeo com
a elaboraccedilatildeo de uma metafiacutesica adequada agrave nossa esperanccedila de tornar possiacutevel o desenvolvimento
da ciecircncia
104
3 OS TREcircS TIPOS DE EVOLUCcedilAtildeO
As ideias evolucionistas de Peirce aparecem de maneira mais pronunciada nos textos que
tratam de suas concepccedilotildees cosmoloacutegicas136
isto eacute em sua obra mais tardia ainda que possamos
encontrar elementos que demonstrem sua preocupaccedilatildeo com o tema desde o iniacutecio de sua carreira
intelectual Haacute relatos do proacuteprio autor que testemunham a impressatildeo marcante que a leitura da
Origem das espeacutecies de Charles Darwin jaacute no ano seguinte a sua publicaccedilatildeo causou em todo o
ciacuterculo de estudiosos de Cambridge em Massachusetts do qual Peirce fazia parte
Ainda que fosse grande admirador e leitor de primeira hora da obra de Darwin Peirce tinha
um olhar mais abrangente sobre os tipos de evoluccedilatildeo encontrados em atuaccedilatildeo no mundo
orgacircnico A evoluccedilatildeo descrita por Darwin seria apenas um dos tipos e natildeo o mais presente em
atuaccedilatildeo nos processos naturais A concepccedilatildeo peirceana prevecirc a existecircncia de trecircs tipos diferentes
de evoluccedilatildeo orgacircnica que podem ser usados como criteacuterios para a classificaccedilatildeo das teorias
propostas sobre o tema Em primeiro lugar observa-se a evoluccedilatildeo de tipo darwiniana na qual a
reproduccedilatildeo eacute indicada como o momento da ocorrecircncia de variaccedilotildees fortuitas que explicam o
desenvolvimento das espeacutecies da monera ao homem Segundo Peirce a evoluccedilatildeo darwiniana
ocorre como consequecircncia da atuaccedilatildeo de dois fatores a hereditariedade que faz a descendecircncia
assemelhar-se aos pais ainda que preserve espaccedilo para a ocorrecircncia de pequenas variaccedilotildees e a
destruiccedilatildeo de tipos ou de raccedilas que natildeo conseguem manter a taxa de natalidade maior do que a
taxa de mortalidade
Em segundo lugar tem-se a teoria de tipo lamarckiano na qual as modificaccedilotildees ocorridas
nas espeacutecies satildeo frutos dos desafios apresentados aos indiviacuteduos e respondidos durante a sua
vida por meio de esforccedilos e exerciacutecios com a intenccedilatildeo de fixar novos haacutebitos Segundo a
interpretaccedilatildeo oferecida por Peirce a teoria darwiniana diferencia-se da teoria lamarckiana na
136 As preocupaccedilotildees de Peirce com as teorias da evoluccedilatildeo bioloacutegicas parecem culminar no texto ldquoEvolucionary
loverdquo de 1893 mas em textos anteriores como ldquoDesign and chancerdquo de 1883-84 ldquoA guess at the riddlerdquo de 1887-88
e ldquoThe arquitecture of the theoriesrdquo de 1891 tambeacutem encontramos importantes indicaccedilotildees sobre o tema
105
medida em que esta atua sobre o indiviacuteduo enquanto aquela atua sobre a espeacutecie podendo dar
lugar ao surgimento de caracteriacutesticas beneacuteficas agrave espeacutecie mas deleteacuterias ao indiviacuteduo Peirce
afirma
Concebendo-se de maneira mais ampla e filosoacutefica a evoluccedilatildeo darwiniana eacute
evoluccedilatildeo pela operaccedilatildeo do acaso e a destruiccedilatildeo dos resultados ruins enquanto a
evoluccedilatildeo lamarckiana eacute evoluccedilatildeo por meio do efeito do haacutebito e do esforccedilo (CP
6 sect 16 1891)137
E em terceiro lugar encontra-se a teoria catacliacutesmica proposta por Clarence King de
acordo com a qual as modificaccedilotildees satildeo o resultado de mudanccedilas bruscas no ambiente Em face
dessas alteraccedilotildees ambientais os organismos aumentam enormemente a quantidade de variaccedilotildees
que ocorrem em suas reproduccedilotildees Assim notam-se alteraccedilotildees que natildeo satildeo imperceptiacuteveis ndash
como a evoluccedilatildeo darwiniana e a lamarckiana supotildeem ndash nem frutos do acaso nem do esforccedilo
individual mas respostas a mudanccedilas ambientais
Esse modo de evoluccedilatildeo por forccedilas externas e por meio da quebra de haacutebitos
parece ser requisitado por alguns dos mais amplos e importantes fatos da
biologia e da paleontologia ao mesmo tempo em que tem sido o principal fator
na evoluccedilatildeo histoacuterica de instituiccedilotildees tanto quanto na de ideias e possivelmente
natildeo pode recusar um lugar proeminente no processo de evoluccedilatildeo do universo em
geral (CP 6 sect 17 1891)138
137 But more broadly and philosophically conceived Darwinian evolution is evolution by the operation of chance
and the destruction of bad results while Lamarckian evolution is evolution by the effect of habit and effort
138 This mode of evolution by external forces and the breaking up of habits seems to be called for by some of the
broadest and most important facts of biology and paleontology while it certainly has been the chief factor in the
historical evolution of institutions as in that of ideas and cannot possibly be refused a very prominent place in the
process of evolution of the universe in general
106
4 OS TREcircS MODELOS DE EXPLICACcedilAtildeO
Um aspecto central e condiccedilatildeo de possibilidade da evoluccedilatildeo eacute a existecircncia de variaccedilotildees no
interior dos fenocircmenos naturais Nota-se na formulaccedilatildeo peirceana o reconhecimento do aspecto
eminentemente mutaacutevel da natureza Natildeo mais circunscrito apenas aos fenocircmenos bioloacutegicos
Peirce procura montar um quadro teoacuterico no qual a evoluccedilatildeo eacute o aspecto marcante de todos os
acontecimentos dos mais variados campos
A descriccedilatildeo dos tipos de evoluccedilatildeo orgacircnica conduziu Peirce a elaborar modelos de
explicaccedilatildeo para o modo como a histoacuteria e particularmente a histoacuteria da ciecircncia se desenvolveu
Nesse campo natildeo seria um erro afirmar que os trecircs tipos de evoluccedilatildeo encontram-se presentes e
concorrem para os resultados alcanccedilados Um exemplo fornecido por Peirce da atuaccedilatildeo da forma
darwiniana na evoluccedilatildeo da ciecircncia pode ser encontrado no modo como as teorias satildeo propostas Eacute
bastante plausiacutevel afirma Peirce que na elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses para a soluccedilatildeo de um
determinado problema os cientistas faccedilam um grande nuacutemero de tentativas mentais de
elaboraccedilatildeo de teorias diversas umas das outras de modo quase imperceptiacutevel ateacute que uma delas
seja vista como francamente impossiacutevel Essa hipoacutetese eacute rejeitada e a energia investigativa volta-
se para as outras formulaccedilotildees ateacute que uma delas se mostre mais apta a fornecer as respostas
almejadas e se torne cada vez mais forte na mente do cientista
A evoluccedilatildeo lamarckiana diz Peirce ldquo() toma a forma de uma modificaccedilatildeo perpeacutetua de
nossa opiniatildeo de modo a tornaacute-la mais representativa dos fatos conhecidos na medida em que
mais e mais observaccedilotildees satildeo coletadasrdquo (CP 1 sect 108 1896)139
Embora esse tipo de evoluccedilatildeo
natildeo explique os grandes avanccedilos da ciecircncia jaacute que implica em uma evoluccedilatildeo bastante gradual eacute
o responsaacutevel pelos avanccedilos que se notam apoacutes deacutecadas de pequenas contribuiccedilotildees individuais O
exemplo indicado por Peirce eacute a evoluccedilatildeo da classificaccedilatildeo dos elementos quiacutemicos que ocorreu
no lapso de tempo entre Jons Jakob Berzelius (1779 ndash 1848) e Dmitri Mendeleev (1834 ndash 1907)
139 () take the form of perpetually modifying our opinion in the effort to make that opinion represent the known
facts as more and more observations came to be collected
107
Os principais progressos cientiacuteficos entretanto ocorrem por saltos afirma Peirce e ldquo() o
impulso para cada salto eacute um novo recurso observacional ou algum novo modo de raciocinar
sobre as observaccedilotildeesrdquo (CP 1 sect 109 1896)140
Como exemplo o autor indica a descoberta dos
micro-organismos por Pasteur que desbancou a perspectiva metafiacutesica de Claude Bernard (1813 -
1878) ao indicar os agentes causadores das doenccedilas unindo novas ideias a novos meacutetodos
observacionais
5 A EVOLUCcedilAtildeO E A COSMOLOGIA
Ao reunir as caracteriacutesticas mais marcantes de cada um dos tipos de evoluccedilatildeo descritos
acima e abstrair suas caracteriacutesticas mais especiacuteficas determinadas em funccedilatildeo do seu campo de
aplicaccedilatildeo Peirce propotildee uma formulaccedilatildeo geral para os modos de evoluccedilatildeo em curso no universo
Nessa perspectiva distingue trecircs tipos de evoluccedilatildeo a evoluccedilatildeo causada por variaccedilatildeo fortuita
denominada de evoluccedilatildeo ticaacutestica ou ticasmo a evoluccedilatildeo que segue uma necessidade jaacute dada
denominada de evoluccedilatildeo anancaacutestica ou anancasmo e a evoluccedilatildeo marcada pela atuaccedilatildeo da
causalidade final denominada de evoluccedilatildeo agapaacutestica ou agapasmo Pode-se ver que agrave evoluccedilatildeo
ticaacutestica de desenvolvimento das ideias corresponde o modelo darwiniano e a evoluccedilatildeo orgacircnica
proposta por Darwin agrave evoluccedilatildeo anancaacutestica corresponde o modelo de rupturas e a evoluccedilatildeo por
cataclismos proposta por Clarence King para o reino orgacircnico e agrave evoluccedilatildeo agapaacutestica
corresponde o modelo lamarckiano e a evoluccedilatildeo lamarckiana
Os trecircs modos de evoluccedilatildeo satildeo compostos pelos mesmos elementos gerais diz o filoacutesofo
Uma geraccedilatildeo passa espontaneamente uma quantidade de bdquotalentos‟ para a geraccedilatildeo seguinte e essa
possui a disposiccedilatildeo de tomaacute-los e desenvolvecirc-los e dessa maneira servir a um propoacutesito geral
Esses elementos mostram-se mais claramente no agapasmo mas tambeacutem estatildeo presentes de
140 () and the impulse for each leap is either some new observational resource or some novel way of reasoning
about the observations
108
maneira diversa no ticasmo e no anancasmo Essas duas formas podem ser vistas como formas
degeneradas de agapasmo afirma o autor (cf CP 6 sect 303 1893)
Embora o ticasmo possa ser considerado uma forma degenerada de agapasmo possui
contudo caracteriacutesticas que lhe satildeo proacuteprias As variaccedilotildees que datildeo lugar ao crescimento soacute o
fazem por meio da distribuiccedilatildeo aleatoacuteria de talentos implicando que os rejeitados cedam o seu
lugar para aqueles que possuam mais disposiccedilatildeo Como exemplo Peirce usa os jogos de azar no
qual os jogadores arruinados deixam na mesa o seu dinheiro para tornar aqueles natildeo arruinados
ainda mais ricos enquanto no agapasmo ldquo() o progresso ocorre a partir da continuidade da
mente em virtude da simpatia positiva existente entre a descendecircncia criadardquo (CP 6 sect 304
1893)141
O anancasmo por sua vez eacute um modo de evoluccedilatildeo claramente afiliado ao agapasmo na
medida em que demonstra uma tendecircncia para o desenvolvimento em direccedilatildeo a uma preordenada
perfeiccedilatildeo Como exemplo Peirce cita a filosofia hegeliana O que a diferencia do agapasmo eacute o
fato de que ldquo() a liberdade viva eacute praticamente omitida de seu meacutetodordquo (CP 6 sect 305 1893)142
Apenas com a introduccedilatildeo de elementos ticaacutesticos dotando o sistema de liberdade vital o
hegelianismo poderia aproximar-se do verdadeiro agapasticismo que afirma Peirce Hegel estava
mirando
O processo de crescimento ou evoluccedilatildeo diraacute o autor deve ser explicado como estando
submetido aos mesmos princiacutepios a que todos os demais fenocircmenos estatildeo Assim faz-se
necessaacuterio encontrar uma lei que tenha na sua aplicaccedilatildeo o motor de seu fortalecimento ou seja
uma lei que possa crescer devido agrave sua proacutepria natureza Esta eacute a lei da mente Como afirma
Peirce ldquo() a uacutenica tendecircncia que pode crescer por sua proacutepria virtude [eacute] a tendecircncia de todas
as coisas adquirirem haacutebitosrdquo (CP 6 sect 100 1902)143
O filoacutesofo afirma que ldquo() a evoluccedilatildeo fiacutesica trabalha com vistas a fins do mesmo modo
141 () advance takes place by virtue of a positive sympathy among the created springing from continuity of mind
142 () living freedom is practically omitted from its method
143 () the only tendency which can grow by its own virtue the tendency of all things to take habits
109
que a accedilatildeo mental trabalha com vistas a fins e desse modo em um aspecto da questatildeo seria
perfeitamente verdadeiro dizer que a causalidade final eacute a uacutenica primaacuteriardquo (CP 6 sect 101 1902)144
Para Peirce ldquoA causa final natildeo determina de que modo particular algo se realizaraacute mas
unicamente que o resultado teraacute certo caraacuteter geralrdquo (CP 1 sect 211 1902)145
Eacute a causa final
acrescenta que atribui existecircncia a um objeto de uma classe Natildeo devemos todavia entender
essa atribuiccedilatildeo como algum tipo de produccedilatildeo miraculosa Eacute o proacuteprio autor que esclarece o
sentido preciso dessa atribuiccedilatildeo ldquoO que eu entendo pela ideia que confere existecircncia aos
membros individuais de uma classe eacute que ela lhes confere o poder de produzir resultados neste
mundo que ela lhes confere equivale dizer existecircncia orgacircnica ou em uma palavra vidardquo (CP
1 sect 220 1902)146
6 O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA EVOLUCcedilAtildeO
Peirce conclui que a causa primaacuteria atuante no universo em crescimento deve ser a causa
final mas que contudo eacute inoacutecua sem a atuaccedilatildeo da causa eficiente Como indica Silveira (1985
p 8) ldquo() o que o cosmo evolucionaacuterio exige para se efetivar na organizaccedilatildeo crescente que o
define eacute a presenccedila de duas causas cujo modo de operar eacute reciprocamente inverso a causa final e
a causa eficienterdquo Assim sob a atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um
contiacutenuo crescimento da uniformidade a partir das formas diferenciadas Entretanto como aponta
Peirce as divergecircncias agraves leis estatildeo agindo continuamente a fim de aumentar a variedade do
mundo (cf CP 6 sect 101 1902)
144 () the physical evolution works towards ends in the same way that mental action works towards ends and thus
in one aspect of the matter it would be perfectly true to say that final causation is alone primary 145 Final causation does not determine in what particular way it is to be brought about but only that the result shall
have a certain general character
146 What I mean by the ideas conferring existence upon the individual members of the class is that it confers upon
them the power of working out results in this world that it confers upon them that is to say organic existence or in
one word life
110
A ideia ou causa final atrairia os acontecimentos que se processariam em funccedilatildeo de um ser
in futuro Dizer que o futuro natildeo influencia o presente eacute uma doutrina inaceitaacutevel afirma Peirce
expressando uma ideia caracteriacutestica do pragmatismo americano (cf CP 2 sect 86 1902) A defesa
desta doutrina negaria a possibilidade da existecircncia de causas finais e fins que satildeo
imprescindiacuteveis para a constituiccedilatildeo do cosmo
Na evoluccedilatildeo agapaacutestica mais representativa da atuaccedilatildeo da causalidade final a proacutepria ideia
possui uma forccedila de atraccedilatildeo que conduz o pensamento para si A ideia encontra os veiacuteculos
adequados para sua realizaccedilatildeo Como afirma Peirce
O desenvolvimento agapaacutestico do pensamento eacute a adoccedilatildeo de certas tendecircncias
mentais natildeo totalmente descuidadas como no ticasmo nem completamente
cegas pela mera forccedila das circunstacircncias ou da loacutegica como no anancasmo mas
por uma imediata atraccedilatildeo da proacutepria ideia cuja natureza eacute adivinhada depois que
a mente a possui pelo poder da simpatia isto eacute por virtude da continuidade da
mente () (CP 6 sect 307 1893)147
Quando Peirce se refere ao pensamento este deve ser entendido como ldquo() o princiacutepio
primordial para a compreensatildeo natildeo soacute dos fenocircmenos do espiacuterito mas da totalidade do cosmordquo
(SILVEIRA p 75 1989) Sobre a mateacuteria Peirce afirma que
() em obediecircncia ao princiacutepio ou maacutexima da continuidade segundo o qual
devemos assumir que as coisas satildeo contiacutenuas tanto quanto possamos urge que
devamos supor uma continuidade entre os caracteres da mente e da mateacuteria de
tal forma que a mateacuteria natildeo seria mais do que mente que tendo haacutebitos de tal
modo empedernidos eacute levada a agir com um grau particularmente elevado de
147 The agapastic development of thought is the adoption of certain mental tendencies not altogether heedlessly as
in tychasm nor quite blindly by the mere force of circumstances or of logic as in anancasm but by an immediate
attraction for the idea itself whose nature is divined before the mind possesses it by the power of sympathy that is
by virtue of the continuity of mind ()
111
regularidade mecacircnica ou rotina (CP 6 sect 277 1893)148
Em decorrecircncia da aceitaccedilatildeo da ideia de continuidade entre a mente e a mateacuteria Peirce se
autodenomina em algumas passagens de idealista objetivo Afirma sua diferenccedila com relaccedilatildeo ao
monismo materialista indicando que ldquo(hellip) o primeiro [monista materialista] faz da lei da mente
um resultado especial das leis da mateacuteria enquanto o uacuteltimo [idealista objetivo] faz com que as
leis da mateacuteria sejam um resultado especial da lei da menterdquo (CN 1 p 200 1893)149
O princiacutepio de aquisiccedilatildeo de haacutebitos eacute tomado por Peirce como o motor da constituiccedilatildeo das
leis do cosmo Em outro momento o filoacutesofo diraacute que ldquo(hellip) estaacute claro que nada a natildeo ser o
princiacutepio do haacutebito ele mesmo devido ao crescimento de uma tendecircncia infinitesimal do acaso
em direccedilatildeo agrave aquisiccedilatildeo de haacutebitos eacute a uacutenica ponte que pode ligar o abismo entre o acaso do caos
e o cosmo da ordemrdquo (CP 6 sect 262 1879)150
Segundo Santaella (2004 p 248-9) ldquo() para
Peirce a tendecircncia do universo a adquirir novos haacutebitos tendecircncia esta que tem seu expoente na
mente humana eacute aquilo que permite o contiacutenuo crescimento da potencialidade da ideiardquo
7 EVOLUCcedilAtildeO E AUTOCONTROLE
No longo processo de evoluccedilatildeo do cosmos uma caracteriacutestica ausente em sua origem
tornou-se mais e mais poderosa com a atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos o autocontrole Nos
148 () in obedience to the principle or maxim of continuity that we ought to assume things to be continuous as
far as we can it has been urged that we ought to suppose a continuity between the characters of mind and matter so
that matter would be nothing but mind that had such indurated habits as to cause it to act with a peculiarly high
degree of mechanical regularity or routine
149 () the former makes the laws of mind a special result of the laws of matter while the latter makes the laws of
matter a special result of the laws of mind
150 () it is clear that nothing but a principle of habit itself due to the growth by habit of an infinitesimal chance
tendency toward habit-taking is the only bridge that can span the chasm between the chance-medley of chaos and
the cosmos of order and law
112
estaacutegios mais avanccedilados do processo evolutivo o homem torna-se cocriador do universo por
meio da aquisiccedilatildeo de uma conduta cada vez mais autocontrolada Como afirma Peirce ldquoEm seus
estaacutegios mais elevados a evoluccedilatildeo se daacute mais e mais amplamente por meio do autocontrole e
isto daacute ao pragmaticista um tipo de justificaccedilatildeo para fazer o propoacutesito racional ser geral (CP 5 sect
433 1905)151
Natildeo haacute segundo o autor evoluccedilatildeo sem mudanccedila de haacutebitos e tampouco mudanccedila
de haacutebitos sem evoluccedilatildeo O processo de mudanccedila de haacutebito eacute desencadeado segundo Peirce por
trecircs fatores surpresa necessidade e disposiccedilatildeo (readiness) que estatildeo relacionados com os trecircs
modos de evoluccedilatildeo descritos acima A surpresa entretanto natildeo eacute por si soacute suficiente para que a
mudanccedila de haacutebito se efetue eacute preciso o esforccedilo quando haacute a necessidade ou o amor que eacute
auxiliado pela disposiccedilatildeo
A disposiccedilatildeo eacute a marca dos haacutebitos conquistados deliberadamente Peirce diz ldquo[Disposiccedilatildeo]
para agir de um certo modo sob dadas circunstacircncias e quando afetado por um dado motivo eacute um
haacutebito e um haacutebito deliberado ou autocontrolado eacute precisamente uma crenccedilardquo (CP 5 sect 480)152
A evoluccedilatildeo marcada pela necessidade se caracteriza pela negaccedilatildeo da opccedilatildeo de se continuar
com os antigos haacutebitos Eacute por meio de um esforccedilo para vencer a resistecircncia quase sempre
acompanhado por um sentimento de dor segundo Peirce que os novos haacutebitos mais adequados
satildeo estabelecidos Peirce indica que
O sentimento de dor eacute um sintoma de um sentimento que nos repele o
sentimento de prazer eacute o sintoma de um sentimento atrativo Atraccedilatildeo e repulsatildeo
satildeo tipos de accedilatildeo Sentimentos satildeo prazerosos ou dolorosos de acordo com o
tipo de accedilatildeo que eles estimulam Em geral o bom eacute atrativo ndash natildeo para todo
mundo mas para um agente suficiente maduro e o mal eacute aquilo que lhe eacute
repulsivo (CP 5 sect 552 1906)153
151 In its higher stages evolution takes place more and more largely through self-control and this gives the
pragmaticist a sort of justification for making the rational purport to be general
152 [Readiness] to act in a certain way under given circumstances and when actuated by a given motive is a habit
and a deliberate or self-controlled habit is precisely a belief 153 The feeling of pain is a symptom of a feeling which repels us the feeling of pleasure is the symptom of an
attractive feeling Attraction and repulsion are kinds of action Feelings are pleasurable or painful according to the
113
Peirce afirma que a mais elevada qualidade da mente humana consiste em uma grande
disposiccedilatildeo para desenvolver haacutebitos e uma grande disposiccedilatildeo para perdecirc-los sendo que ldquoA mais
plaacutestica de todas as coisas eacute a mente humana ()rdquo (CP 7 sect 515 1898)154
pois apresenta em
maior grau a prontidatildeo tanto para adquirir como para perder haacutebitos No caso humano a vontade
desempenha um importante papel no processo de criaccedilatildeo de novos haacutebitos com a finalidade de
tornar a conduta mais autocontrolada e portanto racional
Embora natildeo tenha desenvolvido uma teoria completa da esteacutetica eacute nessa ciecircncia normativa
que Peirce busca os elementos para identificar a finalidade para qual tende o universo e para a
qual a mente humana estaacute apta a contribuir por meio do desenvolvimento do autocontrole O
objeto de estudo da esteacutetica eacute o admiraacutevel A eacutetica enquanto ciecircncia normativa da conduta visa
desenvolver regras para a accedilatildeo que possam ter como objetivo alcanccedilar o summum bonun em
outras palavras aquilo que possa ser admiraacutevel por si mesmo sem a consideraccedilatildeo de qualquer
outra ordem de motivos O admiraacutevel diraacute Peirce eacute a proacutepria razoabilidade em suas palavras
ldquo() o uacutenico bem uacuteltimo ao qual os fatos praacuteticos dirigem a atenccedilatildeo e ao qual podem se
subordinar eacute o maior desenvolvimento da razoabilidade concreta ()rdquo (CP 5 sect 3 1902)155
Quanto agrave loacutegica como a terceira ciecircncia normativa Peirce afirma que ldquo() pensar eacute uma espeacutecie
de conduta que estaacute largamente sujeita ao autocontrole Em todas as suas caracteriacutesticas () o
autocontrole loacutegico eacute um perfeito espelho do autocontrole eacutetico (CP 5 sect 419 1905)156
Cabe agrave
loacutegica fixar haacutebitos autocontrolados de pensamento que possam mirar a verdade (cf CP 1 sect 191
1903)
Desse modo o homem tem seu lugar identificado no processo evolutivo que deu origem ao
kind of action which they stimulate In general the good is the attractive -- not to everybody but to the sufficiently
matured agent and the evil is the repulsive to the same
154 The most plastic of all things is the human mind ()
155 () the only ultimate good which the practical facts to which it directs attention can subserve is to further the
development of concrete reasonableness ()
156 () thinking is a species of conduct which is largely subject to self-control In all their features hellip logical self-
control is a perfect mirror of ethical self-control
114
cosmos e a si mesmo como uma parte integrante e natildeo distinta tem tambeacutem indicada de modo
claro qual a sua funccedilatildeo como cientista Peirce eacute bastante expliacutecito ao dizer que todo trabalho
intelectual soacute pode ser realizado de forma frutiacutefera quando motivado por um ardente desejo de
obter a verdade
A criaccedilatildeo do universo que natildeo aconteceu durante uma certa semana atarefada
no ano 4004 A C mas que estaacute acontecendo hoje e que nunca estaraacute terminada
eacute o verdadeiro desenvolvimento da Razatildeo Natildeo consigo ver como algueacutem pode
ter um ideal admiraacutevel mais satisfatoacuterio do que o desenvolvimento da Razatildeo
assim entendido A uacutenica coisa cuja admirabilidade natildeo eacute devida a uma razatildeo
ulterior eacute a proacutepria Razatildeo compreendida em toda sua completude tanto quanto
podemos compreendecirc-la Sob esta concepccedilatildeo o ideal da conduta seraacute executar
nossa pequena funccedilatildeo na operaccedilatildeo de criaccedilatildeo dando uma matildeo para tornar o
mundo mais razoaacutevel sempre que como diz a giacuteria cabe a noacutes fazecirc-lo Na
loacutegica observar-se-aacute que o conhecimento eacute razoabilidade e o ideal de razatildeo seraacute
seguir tais meacutetodos para se desenvolver o conhecimento o mais rapidamente ()
(CP 4 sect 615 1903)157
157 The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in the year 4004 BC but is
going on today and never will be done is this very development of Reason I do not see how one can have a more
satisfying ideal of the admirable than the development of Reason so understood The one thing whose admirableness
is not due to an ulterior reason is Reason itself comprehended in all its fullness so far as we can comprehend it
Under this conception the ideal of conduct will be to execute our little function in the operation of the creation by
giving a hand toward rendering the world more reasonable whenever as the slang is it is up to us to do so In
logic it will be observed that knowledge is reasonableness and the ideal of reasoning will be to follow such methods
as must develop knowledge the most speedily ()
115
CAPIacuteTULO 04
A ABDUCcedilAtildeO
Enter your skiff of Musement push off into the lake of thought and leave the breath of
heaven to swell your sail With your eyes open awake to what is about or within you
and open conversation with yourself for such is all meditation It is however not a
conversation in words alone but is illustrated like a lecture with diagrams and with
experiments (CP 6 sect 461 1908)
116
1 ABDUCcedilAtildeO E CRIACcedilAtildeO DE HIPOacuteTESES EXPLICATIVAS
Haacute uma grande discussatildeo entre os inteacuterpretes da obra de Peirce quanto agrave continuidade ou
natildeo continuidade de suas ideias no conjunto da sua longa e intensa produccedilatildeo (ver GOUDGE
(1950) GALLIE (1952) MOORE and ROBIN (1964) WIENER (1964) HOOKWAY 1985
entre outros) Sem querer entrar no meacuterito das respostas apresentadas ao problema de se apurar a
quantidade de sistemas identificaacuteveis em sua obra na literatura especializada parece-nos todavia
que algumas questotildees tratadas pelo filoacutesofo satildeo particularmente presentes no conjunto de suas
ideias e datildeo sentido a muitas de suas teorias que conheceram a luz em momentos distintos de sua
reflexatildeo
A investigaccedilatildeo cientiacutefica eacute uma dessas questotildees Podemos identificar desde os seus
primeiros textos uma preocupaccedilatildeo clara quanto ao alcance legitimidade e modo de efetivaccedilatildeo do
empreendimento cientiacutefico mais especificamente quanto ao que ele chama pelo nome de loacutegica
da ciecircncia Em seus uacuteltimos trabalhos Peirce procura organizar e sistematizar a sua filosofia com
relaccedilatildeo a outras aacutereas do conhecimento o que lhe permite tornar claras a estrutura e as inter-
relaccedilotildees entre as vaacuterias partes do seu sistema filosoacutefico Eacute dessa maneira que identifica a loacutegica
como uma das trecircs ciecircncias normativas ao lado da esteacutetica e da eacutetica que lhe satildeo antecedentes
dependentes tanto da fenomenologia quanto da matemaacutetica Peirce a define como um raciociacutenio
autocontrolado cuja funccedilatildeo eacute promover o crescimento concreto da razoabilidade A loacutegica se
divide por sua vez em trecircs ramos denominados por Peirce de Gramaacutetica Filosoacutefica Loacutegica
Criacutetica e Metodecircutica
A Gramaacutetica Filosoacutefica trata das unidades baacutesicas de todos os raciociacutenios os signos Eacute
neste ramo da loacutegica que veremos Peirce desenvolver os estudos de semioacutetica A loacutegica criacutetica
tem por finalidade tratar das formas dos argumentos ou raciociacutenios Nestes estudos Peirce trata
dos trecircs tipos de inferecircncias a abduccedilatildeo a deduccedilatildeo e a induccedilatildeo A Metodecircutica por sua vez
compreende as teorias sobre a verdade e a investigaccedilatildeo cientiacutefica bem desenvolvidas na sua
abordagem pragmaticista O objetivo deste terceiro ramo da loacutegica eacute moldar a conduta a partir do
uso dos signos de tal forma que um estado de crenccedila estaacutevel seja alcanccedilado
117
Se como aponta Hookway (1985) eacute possiacutevel dar sentido agrave obra peirceana a partir da
perspectiva que a toma como a exploraccedilatildeo e o desenvolvimento de uma imagem bastante geral da
filosofia e seus problemas que se formou desde os seus primeiros escritos vemos na procura de
um meacutetodo adequado para a ciecircncia um objetivo que conduz Peirce no processo de sua reflexatildeo
Aos textos iniciais que discutem o modo adequado de obtenccedilatildeo e limite do conhecimento
seguem-se outros que agraves vezes com deacutecadas de intervalo retomam e desenvolvem aspectos
problemaacuteticos que ficaram anteriormente sem respostas ou que passaram a ser problematizados
com o desenvolvimento de novos instrumentos de anaacutelise Assim os temas centrais dos seus
textos iniciais que datam da deacutecada de 1860 e 70158 satildeo retomados e desenvolvidos em boa parte
de sua produccedilatildeo posterior quer diretamente sob o aspecto de uma nova formulaccedilatildeo e resposta
aos mesmos problemas quer indiretamente com a elaboraccedilatildeo de novas teorias implicadas por
essas mesmas concepccedilotildees
Pensar para Peirce eacute uma atividade que consiste em manipular signos e crer eacute
essencialmente possuir certas disposiccedilotildees para agir Essas duas concepccedilotildees satildeo fundamentais
para se compreender a sua filosofia Ambas as concepccedilotildees estatildeo localizadas no niacutevel mais
elementar de suas preocupaccedilotildees e teorias que satildeo construiacutedas como uma resposta e terapia agrave
abordagem equivocada legada pelo cartesianismo Se considerarmos que a filosofia de Peirce eacute
em grande parte uma tentativa de produccedilatildeo de um meacutetodo adequado agrave investigaccedilatildeo da verdade e
se atentarmos para o fato de que eacute com o pragmatismo que Peirce acredita ter oferecido sua
melhor resposta entatildeo percebemos a importacircncia capital que sua noccedilatildeo de crenccedila159 assume pois
eacute o proacuteprio filoacutesofo que afirma ldquoA partir desta definiccedilatildeo o pragmatismo eacute dificilmente mais do
que um corolaacuteriordquo (CP 5 sect 12 1906)160
A investigaccedilatildeo desta maneira torna-se um processo que permite a superaccedilatildeo de um estado
158 Nesses textos jaacute se encontra ainda que em germe as ideias de verdade como concordacircncia de investigadores a
longo prazo que o incognosciacutevel natildeo faz sentido que a induccedilatildeo eacute uma inferecircncia e um caminho para a verdade que
todo pensamento se realiza por meio de signos e de que eacute possiacutevel construir uma teoria de categorias melhor do que
as existentes Esses temas estaratildeo presentes em grande medida em toda a produccedilatildeo posterior de Peirce 159
Emprestada do filoacutesofo e psicoacutelogo escocecircs Alexander Bain (1818 ndash 1903) (cf CP 5 sect 12 1906) 160
From this definition pragmatism is scarce more than a corollary
118
de duacutevida autecircntica161
que paralisa a accedilatildeo por meio do estabelecimento de crenccedilas estaacuteveis e
verdadeiras Podemos dizer que A duacutevida que p se e somente se A eacute levado a acreditar em p e
em alguma outra proposiccedilatildeo q e A estaacute consciente de uma inconsistecircncia entre p e q Desde que
ldquoA acredita que prdquo significa que A tem disposiccedilotildees para agir de determinadas maneiras segue-se
que duvidar que p envolve a consciecircncia da parte de A de que possui a disposiccedilatildeo a agir de modos
incompatiacuteveis em uma dada situaccedilatildeo O que implica em uma suspensatildeo da accedilatildeo isto eacute uma
privaccedilatildeo de um haacutebito (cf MEYERS 1967 p 3) Para cumprir tal tarefa faz-se necessaacuteria a
utilizaccedilatildeo de um meacutetodo que permita realmente fixar tais crenccedilas (cf W 3 p 344 CP 5 sect 374
1877 CP 6 sect 496 1906) A essecircncia das crenccedilas obtidas por este meacutetodo eacute o estabelecimento de
um haacutebito cujos diferentes tipos se distinguem pelos diferentes modos de accedilatildeo que eles
produzem Peirce afirma ldquo() uma crenccedila genuiacutena ou opiniatildeo eacute alguma coisa com a qual um
homem estaacute preparado para agir e eacute por consequecircncia em um sentido geral um haacutebitordquo (CP 2 sect
148 1902)162
Com exceccedilatildeo de algumas poucas passagens nas quais eacute caracterizado como uma accedilatildeo do
tipo quasi-reflexa (cf CP 5 sect 373 1877 CP 5 sect 394 1877 CP 1 sect390 1890 CP 2 sect 711
1883) o haacutebito eacute apresentado como uma disposiccedilatildeo para a accedilatildeo caracterizada como
autocontrolada ou deliberada Como representante da terceiridade ele eacute indeterminado geral e
inteligente (cf CP 5 sect 400 1877 CP 6 sectsect 20-1 1891) natildeo podendo ser reduzido a um
processo meramente mecacircnico Sua indeterminaccedilatildeo eacute marca dos processos que se abrem para o
futuro
161 Peirce reprova a duacutevida cartesiana por dois motivos principais por ser fingida e por ser radical A atribuiccedilatildeo
desses dois qualificativos agrave duacutevida ignora segundo o autor tanto a natureza do sujeito que conhece quanto a
natureza do proacuteprio processo cognitivo A duacutevida eacute um estado causado pela surpresa de um evento inesperado desta
maneira sua origem eacute sempre exterior ao sujeito que a experiencia natildeo podendo ser criada a partir de um ato de
vontade Por outro lado ela natildeo pode ser radical visto que eacute da natureza do conhecimento repousar sobre um
conhecimento anterior (cf CP 5 sect 311 1868) 162
() a belief or opinion and a genuine belief or opinion is something on which a man is prepared to act and is
therefore in a general sense a habit
119
Pois todo haacutebito tem ou eacute uma lei geral Tudo o que eacute verdadeiramente geral
refere ao futuro indefinido pois o passado conteacutem unicamente uma certa
coleccedilatildeo de casos que ocorreram O passado eacute fato atual Mas o geral (fato) natildeo
pode ser completamente realizado Eacute uma potencialidade e seu modo de ser
eacute esse in futuro O futuro eacute potencial natildeo atual (CP 2 sect 148 1902)163
Toda crenccedila firmemente adotada eacute para seu possuidor algo de indubitaacutevel ainda que muitas
vezes inconsciente que dispensa qualquer tipo de justificaccedilatildeo racional Contudo faz-se
necessaacuterio encontrar uma maneira de selecionar as crenccedilas verdadeiras dentre aquelas que natildeo
passam de prejulgamentos Se por um lado o caraacuteter impositivo das crenccedilas se manifesta de
maneira clara por outro na medida em que eacute objetiva pode comportar a criacutetica e a deliberaccedilatildeo
desse modo o autocontrole
Como afirma Peirce ldquo() devemos comeccedilar nossa investigaccedilatildeo por aquilo cuja existecircncia eacute
indubitaacutevel ()rdquo (CP 5 sect 267 1868)164
Com esta frase jaacute de 1868 o autor indica uma
caracteriacutestica que marcaraacute toda a sua obra a adoccedilatildeo do senso comum criacutetico O investigador
principia pelo que toma como indubitaacutevel suas proacuteprias crenccedilas mas aos poucos passa a
questionaacute-las quanto ao seu conteuacutedo e assumir um aspecto mais normativo ao se preocupar com
aquilo sobre o que devemos nos interrogar Nas palavras de Claudine Tiercelin (1993 p 88) ldquoSe
as crenccedilas satildeo portanto intrinsecamente confiaacuteveis como descriccedilatildeo de nossa experiecircncia elas
podem ser faliacuteveis como descriccedilatildeo da realidaderdquo
O problema de se determinar a origem das premissas de qualquer raciociacutenio conduziu as
investigaccedilotildees de Peirce sobre esse toacutepico Segundo o filoacutesofo os juiacutezos perceptivos satildeo () as
primeiras premissas de todos os nossos raciociacutenios e natildeo podem ser colocados em questatildeo (CP
5 sect 116)165
uma vez que estatildeo totalmente aleacutem da possibilidade de controle O percepto como
163 For every habit has or is a general law Whatever is truly general refers to the indefinite future for the past
contains only a certain collection of such cases that have occurred The past is actual fact But a general (fact) cannot
be fully realized It is a potentiality and its mode of being is esse in futuro The future is potential not actual 164
() we must commence our inquiry must be one whose existence is indubitable () 165
() the first premisses of all our reasonings and that they cannot be called in question
120
Peirce o designa eacute uma instacircncia do processo cognitivo que se caracteriza pela impossibilidade
de controle O autor pergunta entatildeo onde tem iniacutecio a possibilidade de controlar o processo de
cogniccedilatildeo e responde da seguinte maneira
Certamente natildeo antes de o percepto estar formado Mesmo depois que ele se
forma existe uma operaccedilatildeo que me parece ser bastante incontrolaacutevel Eacute aquela
de julgar o que eacute que a pessoa percebe Um juiacutezo eacute um ato de formaccedilatildeo de uma
proposiccedilatildeo mental combinada com sua adoccedilatildeo ou um ato de afirmaacute-la Um
percepto por outro lado eacute uma imagem ou um quadro moacutevel ou outra figuraccedilatildeo
(CP 5 sect 115 1903)166
Temos nesta passagem a tematizaccedilatildeo do momento em que se daacute a relaccedilatildeo entre o sujeito
que investiga e o objeto investigado Eacute nessa relaccedilatildeo que devemos encontrar os elementos para
justificar a crenccedila peirceana na possibilidade de uma ciecircncia Eacute importante notar que o juiacutezo
perceptivo base para qualquer raciociacutenio eacute por um lado o resultado de um processo que natildeo
pode ser controlado jaacute que o objeto eacute real e resiste agrave vontade humana e ou ao menos esta eacute uma
boa hipoacutetese para explicar o modo que tais objetos nos aparecem na experiecircncia por outro que eacute
fruto de uma interpretaccedilatildeo Isto eacute se por um lado o juiacutezo perceptivo eacute formado a partir da reaccedilatildeo
da secundidade do mundo sobre noacutes ele comporta tambeacutem aspectos de terceiridade na medida
em que eacute fruto de uma interpretaccedilatildeo Parece-nos plausiacutevel pensar o juiacutezo perceptivo como livre o
suficiente para ser o resultado de uma adivinhaccedilatildeo mas contido dentro dos limites impostos pela
realidade do objeto O erro deste modo adquire o caraacuteter de uma possibilidade sempre presente
nesse processo
Como aponta Tiercelin verifica-se uma tensatildeo entre a filosofia peirceana e a filosofia do
senso comum escocesa a qual Peirce afirma estar na base de seu pragmatismo (cf TIERCELIN
166 Certainly not before the percept is formed Even after the percept is formed there is an operation which seems to
me to be quite uncontrollable It is that of judging what it is that the person perceives A judgment is an act of
formation of a mental proposition combined with an adoption of it or act of assent to it A percept on the other hand
is an image or moving picture or other exhibition
121
1993 p 88) As crenccedilas primeiras embora sejam indubitaacuteveis natildeo satildeo infaliacuteveis Elas
comportam a possibilidade de criacutetica que deve ser exercitada pelo filoacutesofo pragmaacutetico Para
penetrar nos poacuterticos da filosofia Peirce indica o meacutetodo cientiacutefico como o uacutenico caminho
efetivo (ver REILLY 1970)
Em um texto de 1877 ldquoA fixaccedilatildeo da crenccedilardquo Peirce faz uma descriccedilatildeo dos principais
meacutetodos identificaacuteveis utilizados para a obtenccedilatildeo do conhecimento O primeiro meacutetodo por ele
descrito eacute denominado de meacutetodo da tenacidade caracterizado como o mais econocircmico crer
naquilo que jaacute se crecirc Sua ineficaacutecia mostra que o homem possui grande dificuldade em manter
crenccedilas que estatildeo em desacordo com a realidade Da mesma maneira que eacute incapaz de fingir uma
duacutevida por um longo periacuteodo manter crenccedilas equivocadas ainda que sua substituiccedilatildeo possa
muitas vezes apenas criar uma cadeia de falsas crenccedilas que cedo ou tarde conduziratildeo o homem
agrave busca da tranquilidade propiciada somente pela detenccedilatildeo da crenccedila verdadeira As crenccedilas
assim mantidas satildeo claramente irracionais mas a principal criacutetica endereccedilada pelo autor natildeo
incide particularmente sobre esse caraacuteter mas sim sobre o fato de que tais crenccedilas acabam por
criar tensatildeo social em funccedilatildeo do choque que crenccedilas diferentes acabam por provocar e falhar na
tarefa de fixaacute-las Esse meacutetodo pode apenas atuar sobre a mente individual e temporariamente (cf
CP 5 sect 377 1877)
O segundo meacutetodo eacute denominado de meacutetodo da autoridade e distingue-se do primeiro por
levar em consideraccedilatildeo o impulso social Nele uma instituiccedilatildeo o Estado ou a Igreja por exemplo
toma para si o direito de doutrinar e defender certas crenccedilas de todos os perigos evitando a todo
custo o surgimento da duacutevida Embora seja um meacutetodo eficaz - a histoacuteria tem nos dado esta liccedilatildeo
afirma Peirce - falharaacute visto que eacute impossiacutevel gerenciar perfeitamente a opiniatildeo puacuteblica Cedo ou
tarde surgiratildeo indiviacuteduos que reclamaratildeo novas maneiras de estabelecer crenccedilas e uma vez com a
posse de novos meacutetodos voltar-se-atildeo contra a instituiccedilatildeo e terminaratildeo por sobrepujaacute-la Natildeo
basta um meacutetodo que apenas indique a maneira de fixar as crenccedilas sem determinar os conteuacutedos
das mesmas (cf CP 5 sect 382 1877)
O terceiro meacutetodo eacute aquele que assume como verdadeiro o que eacute agradaacutevel agrave razatildeo diz
122
Peirce diminuindo a importacircncia dos fatos Eacute o meacutetodo a priori Embora seja mais respeitaacutevel
que os outros dois na opiniatildeo de Peirce falha gravemente ao transformar a investigaccedilatildeo em uma
questatildeo de gosto (cf CP 5 sect 382 1877)
Esses trecircs meacutetodos Peirce reconhece possuem qualidades positivas O meacutetodo da
tenacidade demonstra grande forccedila simplicidade e caraacuteter direto o meacutetodo da autoridade ao
governar as massas humanas garante-lhes a paz o meacutetodo a priori por sua vez eacute confortaacutevel
(cf CP 5 sect 386 1877) Entretanto sejam quais forem suas qualidades os trecircs meacutetodos
terminam por se autodestruir pois o que eles produzem afirma Peirce natildeo satildeo crenccedilas mas
estados mentais diversos A verdadeira crenccedila natildeo pode ser fingida imposta ou desconsiderar a
experiecircncia natildeo ao menos para o homem de espiacuterito sadio (cf W 3 p 253 1877)
Diante do fracasso dos trecircs meacutetodos em cumprir a tarefa de fixar as crenccedilas167
cabe a
Peirce mostrar como o quarto meacutetodo denominado de meacutetodo cientiacutefico consegue estabelecer
crenccedilas estaacuteveis Como afirma o autor () eacute necessaacuterio encontrar um meacutetodo pelo qual nossas
crenccedilas natildeo sejam determinadas por nada de humano mas por alguma permanecircncia exterior ndash por
alguma coisa sobre a qual nosso pensamento natildeo tenha nenhum efeito (CP 5 sect 384 1877)168
e
acrescenta como nota em 1903 ldquoMas que por outro lado tende incessantemente a influenciar o
pensamento ou em outras palavras por algo Realrdquo (CP 5 notas 1877)169
O meacutetodo cientiacutefico eacute o uacutenico meacutetodo que considera com a devida atenccedilatildeo a experiecircncia
estabelece um diaacutelogo com a natureza o mundo real exterior ao homem e que pode pelo
processo de investigaccedilatildeo empiacuterica responder agraves duacutevidas e corrigir as crenccedilas dos cientistas A
vantagem determinante deste meacutetodo eacute a de que ele conduz os investigadores pelo processo de
investigaccedilatildeo puacuteblica agraves mesmas conclusotildees sobre qualquer questatildeo investigada Ele se
fundamenta sobre a realidade do universo e sobre o seu aspecto puacuteblico Eacute a secundidade reativa
refrataacuteria ao que dela possamos pensar a acircncora desse meacutetodo Com relaccedilatildeo aos pressupostos
167 O principal defeito dos trecircs meacutetodos consiste em sustentar a crenccedila com base na vontade humana
168 () it is necessary that a method should be found by which our beliefs may be determined by nothing human but
by some external permanency -- by something upon which our thinking has no effect 169
But which on the other hand unceasingly tends to influence thought or in other words by something Real
123
desse meacutetodo Peirce afirma que
Existem coisas Reais cujas caracteriacutesticas satildeo inteiramente independentes das
nossas opiniotildees sobre elas tais Reais afetam nossos sentidos de acordo com leis
regulares e ainda que nossas sensaccedilotildees sejam tatildeo diferentes quanto sejam
nossas relaccedilotildees com os objetos todavia fazendo uso das leis de percepccedilatildeo
podemos afirmar por meio do raciociacutenio como as coisas real e verdadeiramente
satildeo e qualquer homem desde que tenha experiecircncia suficiente e tenha refletido
o suficiente sobre isto seraacute conduzido agrave uacutenica conclusatildeo Verdadeira (CP 5 sect
384 1877)170
A grande vantagem do meacutetodo cientiacutefico reside no fato de que diferentemente dos
demais meacutetodos possui a capacidade de autocorreccedilatildeo Eacute nesta caracteriacutestica que Peirce deposita
suas mais altas esperanccedilas quanto agrave possibilidade de realizaccedilatildeo da ciecircncia Estaacute claro tambeacutem
que o preccedilo a se pagar para a efetividade do meacutetodo eacute bastante elevado Peirce se compromete
com uma hipoacutetese de base qual seja a de que existe uma realidade externa ao homem e que lhe eacute
resistente mas que ao mesmo tempo se mostra inteiramente na experiecircncia O incognosciacutevel
natildeo eacute uma alternativa viaacutevel pois o verdadeiro cientista tem como seu mais ardente desejo o
conhecimento da verdade e deve deste modo afastar como destituiacutedo de sentido qualquer
elemento que possa bloquear o caminho da investigaccedilatildeo Eacute fundamental para o bom
funcionamento do meacutetodo que os fatos investigados admitam ldquo() racionalizaccedilatildeo e
racionalizaccedilatildeo por noacutesrdquo (CP 7 sect 219 c 1901)171
Peirce afirma ldquoQue eles [os fatos] devam ser
[racionalizados por noacutes] pela mesma razatildeo que um general que tenha que capturar uma posiccedilatildeo
ou ver seu paiacutes arruinado deve insistir na hipoacutetese de que haacute algum modo pelo qual ele possa e
deva capturaacute-lardquo (CP 7 sect 219 c 1901)172
Esta eacute a justificaccedilatildeo para o lanccedilamento de uma
170 There are Real things whose characters are entirely independent of our opinions about them those Reals affect
our senses according to regular laws and though our sensations are as different as are our relations to the objects
yet by taking advantage of the laws of perception we can ascertain by reasoning how things really and truly are and
any man if he have sufficient experience and he reason enough about it will be led to the one True conclusion 171
() rationalization and of rationalization by us 172
That we must hope they do for the same reason that a general who has to capture a position or see his country
124
hipoacutetese seja qual for Eacute uma situaccedilatildeo extrema que exige uma aposta na sua possiacutevel soluccedilatildeo A
aposta na possibilidade da ciecircncia eacute feita radicalmente por Peirce que passaraacute seus anos
produtivos em busca de uma justificaccedilatildeo para a mesma bem como na tarefa de esclarecer os
mecanismos pelos quais a ciecircncia se constroacutei A defesa da hipoacutetese realista soacute pode ser
compreendida nos temos peirceanos como uma possibilidade de manter o projeto da ciecircncia
realizaacutevel
Embora seja um opositor radical a algumas das ideias de Descartes notadamente agrave ideia de
intuiccedilatildeo natildeo estaria longe da verdade dizer que Peirce retoma a sua agenda filosoacutefica ou ao
menos o seu moacutebil constituinte qual seja o de propor uma soluccedilatildeo para o problema do
conhecimento e o de expandir o horizonte da inteligibilidade tanto quanto possiacutevel173 Do mesmo
modo que Descartes seraacute no meacutetodo de obtenccedilatildeo e validaccedilatildeo do conhecimento que Peirce
buscaraacute sua resposta Agrave elaboraccedilatildeo deste meacutetodo que inicialmente eacute batizado de pragmatismo e
posteriormente de pragmaticismo Peirce dedicaraacute vaacuterios anos de sua vida Diferentemente de
outros metodoacutelogos Peirce entende que uma parte do seu meacutetodo deve ser dedicada agrave explicaccedilatildeo
de como as novas teorias ou fazendo uso de seu termo hipoacuteteses satildeo elaboradas O coraccedilatildeo desta
teoria eacute uma reflexatildeo sobre o processo de criaccedilatildeo cientiacutefica condensada no tipo de raciociacutenio que
Peirce denominou de abduccedilatildeo174
No plano da evoluccedilatildeo cosmoloacutegica o haacutebito ou a lei inclina a um desenvolvimento do
universo que tem como meta tornaacute-lo mais razoaacutevel Para bem compreendermos esse
desenvolvimento faz-se necessaacuteria uma incursatildeo na teoria das inferecircncias que Peirce
desenvolveu em particular no tipo de inferecircncia denominado de abduccedilatildeo ou retroduccedilatildeo ou
ainda hipoacutetese pois ldquo() um processo inferencial envolve a formaccedilatildeo de um haacutebitordquo (CP 2 sect
148 1902)175
Nos trabalhos produzidos entre 1865 e 1901 vemos Peirce aprofundar e desenvolver suas
ruined must go on the hypothesis that there is some way in which he can and shall capture it 173
Quanto a este aspecto na obra cartesiana ver PATY 1998 174
Ver IBRI 1994 ADERSON 1986 E 1995 175
() the inferential process involves the formation of a habit
125
anaacutelises e concepccedilotildees do processo de produccedilatildeo de inferecircncias culminando com a distinccedilatildeo de
trecircs tipos de raciociacutenios que se integram e concorrem para a realizaccedilatildeo do conhecer a induccedilatildeo a
deduccedilatildeo e a abduccedilatildeo
A anaacutelise do raciociacutenio abdutivo em sua obra eacute segundo nossa apreciaccedilatildeo fundamental em
muitos sentidos De iniacutecio a importacircncia de sua investigaccedilatildeo se justifica pelos possiacuteveis
esclarecimentos que possa trazer agrave proacutepria tarefa de compreensatildeo das ideias peirceanas no
interior das quais ocupa um lugar central Ao mesmo tempo se concordamos com Peirce essa
teoria parece iluminar aspectos pouco considerados do processo de criaccedilatildeo cientiacutefica quer seja
como insight ou como inferecircncia pois estaria na base e seria o elemento desencadeador da
formaccedilatildeo de qualquer juiacutezo sinteacutetico Acrescenta-se a isso a hipoacutetese central a esta investigaccedilatildeo
de que o modo como a abduccedilatildeo atua e a consideraccedilatildeo de suas implicaccedilotildees seraacute de grande auxiacutelio
para compreender com maior clareza as propriedades do continuum e de que maneira podemos
perceber a atuaccedilatildeo da causalidade final no momento da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese
Em contraste com a avaliaccedilatildeo positiva expressa nas expectativas acima elencadas alguns
comentadores de sua obra acusam-no de haver no tratamento dessa questatildeo confundido loacutegica
com psicologia afirmando que a abduccedilatildeo eacute por natureza um processo refrataacuterio agrave anaacutelise loacutegica
que seria fundamentalmente intuicionista como aponta Roth (1988) Uma avaliaccedilatildeo da validade
dessa criacutetica deve atentar para o desenvolvimento da abordagem que Peirce realiza da abduccedilatildeo
Para Peirce o indiviacuteduo natildeo constitui a unidade para a produccedilatildeo do conhecimento esta eacute
encontrada na comunidade Os juiacutezos perceptivos devem ser submetidos agrave criacutetica da comunidade
de investigadores para que as idiossincrasias sejam eliminadas e em um longo prazo possam
aproximar-se da verdade
A compreensatildeo dessa relaccedilatildeo coloca em pauta a investigaccedilatildeo do entrecruzamento da
epistemologia falibilista de Peirce e de sua ontologia indeterminista que constituem as condiccedilotildees
para o processo semioacutetico isto equivale dizer para o pensamento A relaccedilatildeo entre a abduccedilatildeo e os
juiacutezos perceptivos eacute enunciada da seguinte maneira
126
() a inferecircncia abdutiva transforma-se gradativamente no juiacutezo perceptivo sem
qualquer linha niacutetida de demarcaccedilatildeo entre eles ou em outras palavras nossas
primeiras premissas os juiacutezos perceptivos devem ser consideradas como um
caso extremo das inferecircncias abdutivas das quais diferem por estarem
absolutamente aleacutem da criacutetica (CP 5 sect 181 1903)176
Conforme ressalta Santaella (2004) a interpretaccedilatildeo da abduccedilatildeo tem sido um toacutepico
polecircmico entre os comentadores da obra de Peirce O que distingue esse processo inferencial eacute o
fato de ser ao mesmo tempo um processo instintivo e ter a natureza de uma inferecircncia loacutegica Eacute
por meio da abduccedilatildeo Peirce deixa claro que as novidades satildeo introduzidas no processo evolutivo
tanto da natureza em geral quanto e no conhecimento humano A dificuldade do tratamento e
compreensatildeo desse conceito fundamental eacute bem sintetizada por Santaella ao se perguntar ldquo() se
as hipoacuteteses satildeo frutos da maravilhosa faculdade imaginativa humana como podem elas se
acomodar dentro da forma de uma inferecircncia loacutegicardquo (SANTAELLA 2004 p 109)
A intuiccedilatildeo entendida como flash de criatividade eacute a base do processo de abduccedilatildeo que teraacute
como finalidade a produccedilatildeo de uma nova ideia ou forma que poderaacute dar lugar a uma inclinaccedilatildeo
geral ou haacutebito Em uma leitura raacutepida eacute tentador compreender esse flash como sendo de
natureza intuitiva semelhante agrave cartesiana Nada mais equivocado se levarmos em conta que a
principal criacutetica que Peirce endereccedila a Descartes refere-se justamente ao conceito de intuiccedilatildeo Se
natildeo haacute a possibilidade de uma cogniccedilatildeo sem a existecircncia de uma cogniccedilatildeo que a preceda como
entender o surgimento da novidade que a abduccedilatildeo potildee em cena
A soluccedilatildeo parece derivar do caraacuteter habitual do instinto Peirce afirma que todo instinto tem
o caraacuteter de um haacutebito e dessa forma distingue a accedilatildeo por ele produzida da reaccedilatildeo bruta e cega
Satildeo derivados da proacutepria evoluccedilatildeo a que estatildeo submetidos o cosmo e o homem como uma parte
176() abductive inference shades into perceptual judgment without any sharp line of demarcation between them or
in other words our first premisses the perceptual judgments are to be regarded as an extreme case of abductive
inferences from which they differ in being absolutely beyond criticism
127
integrante Santaella aponta que ldquo() do instinto peirceano germina a abduccedilatildeo fonte de todas as
iluminaccedilotildees e criaccedilotildees humanas mas tambeacutem o mais fraacutegil de todos os raciociacutenios o mais
faliacutevel sem nenhum poder de comprovaccedilatildeo necessitando da deduccedilatildeo e da induccedilatildeo para que
possa ter qualquer valor de verdaderdquo (SANTAELLA 2004 p 113-14)
A discussatildeo realizada sobre o raciociacutenio abdutivo jaacute foi identificada como uma das grandes
contribuiccedilotildees de Peirce para o debate filosoacutefico Jaakko Hintikka (cf 1999 p 91) afirma que se a
grandeza de um filoacutesofo eacute medida pelas contribuiccedilotildees inovadoras que fornece aos problemas
tradicionais da filosofia Peirce seria nesse sentido um dos maiores filoacutesofos na medida em que
cria um novo problema o da abduccedilatildeo Cabe ressaltar que em diversos momentos Peirce deixa
claro que o raciociacutenio abdutivo deteacutem exclusividade heuriacutestica em sua filosofia ldquoAbduccedilatildeo eacute o
processo de formaccedilatildeo de uma hipoacutetese explanatoacuteria Eacute a uacutenica operaccedilatildeo loacutegica que apresenta uma
ideia nova pois a induccedilatildeo nada faz aleacutem de determinar um valor e a deduccedilatildeo meramente
desenvolve as consequecircncias necessaacuterias de uma hipoacutetese purardquo (CP 5 sect 171 1903)177
Conforme ressalta Gallie (1952) a compreensatildeo do estatuto que Peirce daacute agrave abduccedilatildeo como
um processo inferencial eacute bastante facilitado se levamos em conta o significado que o filoacutesofo
atribui agrave noccedilatildeo de inferecircncia Peirce natildeo adota a concepccedilatildeo filosoacutefica tradicional de inferecircncia
como um processo mental Um argumento natildeo possui a funccedilatildeo de retratar para outro o que se
passou na mente do argumentador mas de provocar a concordacircncia do primeiro com o uacuteltimo
quanto ao conteuacutedo das premissas e conclusatildeo mobilizadas Ele emprega afirma Gallie ldquoUma
forma de falar cujo arranjo eacute tal que mostra que bdquose a proposiccedilatildeo-premissa for verdadeira entatildeo a
proposiccedilatildeo-conclusatildeo necessaacuteria ou naturalmente seraacute verdadeira‟rdquo (GALLIE 1952 p 96-7) O
argumento desta maneira tem a funccedilatildeo de mostrar ou lembrar o ouvinte deste fato a maneira
entretanto pela qual ele alcanccedila este resultado eacute algo totalmente irrelevante acrescenta Gallie
Peirce afirma em concordacircncia com esta interpretaccedilatildeo que ldquoDeve haver em funccedilatildeo de tudo que
noacutes sabemos ou nos importamos centenas de maneiras de pensar na passagem das premissas agraves
177 Abduction is the process of forming an explanatory hypothesis It is the only logical operation which introduces
any new idea for induction does nothing but determine a value and deduction merely evolves the necessary
consequences of a pure hypothesis
128
conclusotildeesrdquo (CP 2 sect 55 1902)178
e ainda ldquoInferecircncia () deve ser para natildeo dizer que
provavelmente eacute de uma construccedilatildeo inteiramente diferente do processo de pensamentordquo (CP 2 sect
54 1902)179
Gallie sintetiza de modo claro a relaccedilatildeo que se estabelece no pensamento peirceano entre
inferecircncia e investigaccedilatildeo ele diz
Em suma da mesma maneira que Peirce usa a palavra investigaccedilatildeo para
indicar natildeo algum processo mental descritiacutevel mas o fato que algumas de
nossas atividades podem ser guiadas por signos e siacutembolos que admitem
criticismo loacutegico da mesma maneira ele usa a palavra inferecircncia para indicar
natildeo alguma passagem da mente sentida (ou postulada) mas o fato que
usualmente quando fazemos uma asserccedilatildeo estamos na posiccedilatildeo de dar uma
razatildeo para ela (GALLIE 1952 p 96)
De acordo com esta concepccedilatildeo de inferecircncia natildeo eacute muito difiacutecil entender como e porque a
abduccedilatildeo ou o processo de elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses eacute considerado por Peirce como uma
inferecircncia loacutegica De fato como diz Gallie seria muito ldquoesquisitordquo ou ldquocompletamente inuacutetilrdquo
uma hipoacutetese para a qual natildeo pudeacutessemos fornecer qualquer tipo de razotildees que a justificassem
2 OS TREcircS TIPOS DE RACIOCIacuteNIO
Os trecircs tipos de inferecircncia considerados por Peirce satildeo a deduccedilatildeo a induccedilatildeo e da mesma
maneira a abduccedilatildeo Em um texto de 1903 satildeo caracterizados da seguinte maneira ressaltando-se
178 There may for aught we know or care be a hundred ways of thinking in passing from such a premiss to such a
conclusion 179
Still the inference or argument so far as logic can take any cognizance of it may be not to say probably is of an
entirely different construction from the thinking process
129
novamente que a uacutenica origem das ideias novas eacute o raciociacutenio abdutivo
A deduccedilatildeo eacute o uacutenico raciociacutenio necessaacuterio Ela eacute aquilo que constitui o
raciociacutenio da matemaacutetica Ela principia de uma hipoacutetese cuja verdade ou
falsidade nada tem a ver com o raciociacutenio oacutebvio eacute que suas conclusotildees satildeo
igualmente ideais () A induccedilatildeo eacute o teste experimental de uma teoria Sua
justificaccedilatildeo eacute que embora a conclusatildeo em qualquer estaacutegio da investigaccedilatildeo
possa ser mais ou menos errocircnea a aplicaccedilatildeo continuada do mesmo meacutetodo
deve corrigir o erro A uacutenica coisa que a induccedilatildeo perfaz eacute determinar o valor de
uma quantidade Ela parte de uma teoria e avalia seu grau de concordacircncia com
os fatos Ela nunca pode dar origem a qualquer ideia que seja Nem o pode fazer
a deduccedilatildeo Todas as ideias da ciecircncia surgem atraveacutes da abduccedilatildeo (CP 5 sect 145
1903)180
No texto Deduccedilatildeo induccedilatildeo e hipoacutetese de 1878 Peirce oferece por meio de exemplos uma
descriccedilatildeo clara do que ele entende por cada um dos tipos de raciociacutenio desse modo temos os
seguintes silogismos
Deduccedilatildeo
Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos
Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola
Resultado Estes feijotildees satildeo brancos
180 Deduction is the only necessary reasoning It is the reasoning of mathematics It starts from a hypothesis the truth
or falsity of which has nothing to do with the reasoning and of course its conclusions are equally ideal () Induction
is the experimental testing of a theory The justification of it is that although the conclusion at any stage of the
investigation may be more or less erroneous yet the further application of the same method must correct the error
The only thing that induction accomplishes is to determine the value of a quantity It sets out with a theory and it
measures the degree of concordance of that theory with fact It never can originate any idea whatever No more can
deduction All the ideas of science come to it by the way of Abduction
130
Induccedilatildeo
Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola
Resultado Estes feijotildees satildeo brancos
Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos
Hipoacutetese
Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos
Resultado Estes feijotildees satildeo brancos
Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola
Outra definiccedilatildeo mais ampla dada em 1903 quando Peirce jaacute havia superado a teoria
silogiacutestica e elaborado a loacutegica das relaccedilotildees pode ser encontrada no seguinte exemplo
ldquoObserva-se um fato surpreendente C
Mas se A fosse verdadeira C seria uma coisa corrente
Portanto haacute razotildees para suspeitar que A eacute verdadeirardquo (CP 5 sect 189 1903)181
Eacute preciso notar que no segundo esquema acima dois fatos chamam atenccedilatildeo e merecem
comentaacuterio Em primeiro lugar seguindo a interpretaccedilatildeo de Gallie vale ressaltar que a conclusatildeo
possui um caraacuteter meramente de tentativa O raciociacutenio meramente indica que vale a pena
181 The surprising fact C is observed But if A were true C would be a matter of course Hence there is reason to
suspect that A is true
131
consideraacute-la Em segundo lugar nota-se que o esquema abdutivo indica unicamente a direccedilatildeo em
que a pesquisa deve ser desenvolvida sem qualquer consideraccedilatildeo sobre a sustentaccedilatildeo ou
plausibilidade com relaccedilatildeo aos fatos que a hipoacutetese possa ter Essas consideraccedilotildees aparecem
posteriormente apoacutes a extraccedilatildeo dedutiva de consequecircncias experimentais e de sua confrontaccedilatildeo
com os fatos por meio da induccedilatildeo
Embora Peirce classifique a abduccedilatildeo como um tipo de raciociacutenio deixa claro que ela natildeo
estaacute submetida agraves mesmas regras da loacutegica criacutetica O seu enquadramento nessa classificaccedilatildeo
deve-se mais agrave ausecircncia de qualquer outra que lhe seja mais adequada182 suas caracteriacutesticas
indicam a liberdade proacutepria dos processos marcados pela categoria de primeiridade como diz
ldquoQualquer que seja o modo como o homem tenha adquirido sua faculdade de adivinhar os
caminhos da Natureza eacute certo que natildeo foi por meio de uma loacutegica criacutetica e autocontrolada (CP
5 sect 173 1903)183
O problema da abduccedilatildeo pode ser visto como o problema da elaboraccedilatildeo de juiacutezos
sinteacuteticos184
em 1868 o autor afirma
De acordo com Kant a questatildeo central da filosofia eacute Como satildeo possiacuteveis os
juiacutezos sinteacuteticos a priori Mas anteriormente a ela surge a questatildeo como os
juiacutezos sinteacuteticos em geral e mais amplamente como o raciociacutenio sinteacutetico eacute
absolutamente possiacutevel Quando a resposta ao problema geral for obtida a
particular seraacute comparativamente simples Este eacute o cadeado da porta da filosofia
(CP 5 sect 348 1868)185
182 Peirce esclarece quanto agrave classificaccedilatildeo da abduccedilatildeo como uma forma de raciociacutenio Any novice in logic may well
be surprised at my calling a guess an inference It is equally easy to define inference so as to exclude or include
abduction But all the object of the logic study have to be classified and it is found that there is no o-ther good class
in which to put abduction but that of inference (HP 2 p 899 1901) 183
However man may have acquired his faculty of divining the ways of Nature it has certainly not been by a self-
controlled and critical logic 184
Para uma discussatildeo da influencia de Kant em Peirce ver KRUSE 2010 e HAACK 2011 185
According to Kant the central question of philosophy is How are synthetical judgments a priori possible But
antecedently to this comes the question how synthetical judgments in general and still more generally how
synthetical reasoning is possible at all When the answer to the general problem has been obtained the particular one
will be comparatively simple This is the lock upon the door of philosophy
132
O cadeado da porta da filosofia consistiria dessa maneira em solucionar o problema
bastante antigo na histoacuteria da filosofia de conciliar o particular com o universal e garantir que a
partir do conteuacutedo da experiecircncia seja possiacutevel chegar ao estabelecimento de crenccedilas seguras que
no limite aproximar-se-iam mais e mais da verdade O encaminhamento da soluccedilatildeo desta
questatildeo realizado por Peirce tem na afirmaccedilatildeo do realismo sua pedra de toque Eacute a realidade
dos universais que torna qualquer pensamento mediado possiacutevel Ao lado de seu realismo
encontramos outra caracteriacutestica fundamental para a compreensatildeo do ecircxito na elaboraccedilatildeo de
hipoacuteteses a universalidade das categorias O problema de compatibilizar o universal da razatildeo do
sujeito com o particular do objeto se resolve ao considerar que tambeacutem no objeto captado por
meio da percepccedilatildeo encontra-se o universal fugindo definitivamente dessa maneira do
nominalismo A percepccedilatildeo eacute ela mesma um processo interpretativo resultado da criaccedilatildeo de
hipoacutetese e da resistecircncia do objeto A anaacutelise do tratamento realizado por Peirce desta questatildeo
conduziraacute ao cerne de sua teoria da criaccedilatildeo e da descoberta sejam elas cientiacuteficas ou natildeo
implicando a consideraccedilatildeo do entrelaccedilamento de dois aspectos de seu pensamento sua ontologia
e sua epistemologia
A teoria abdutiva desenvolvida por Peirce conheceu o mesmo percurso descrito acima
Desde os primeiros textos podemos verificar a presenccedila de uma preocupaccedilatildeo com os processos
de criaccedilatildeo e de tratamento de hipoacuteteses O desenvolvimento da abordagem que Peirce oferece do
tema reflete os avanccedilos de que ele obteve na loacutegica Como veremos adiante a ideia de abduccedilatildeo se
altera agrave medida em que o autor cria novos instrumentos de anaacutelise que ultrapassam a abordagem
loacutegica legada por Aristoacuteteles
Desde seus primeiros trabalhos em loacutegica Peirce se preocupou com o estudo dos
argumentos afirmando que sua classificaccedilatildeo eacute a principal tarefa dos loacutegicos pois todo teste
depende claramente da classificaccedilatildeo (cf EP 1 p 186 1878) Como aponta Chauvireacute (2003 p
31) ldquoNota-se que Peirce natildeo opotildee somente a deduccedilatildeo agrave induccedilatildeo mas introduz um terceiro tipo
de inferecircncia a abduccedilatildeo cuja definiccedilatildeo e cuja anaacutelise constituem um dos pontos mais originais
tanto da sua filosofia dos signos quanto da sua filosofia da ciecircnciardquo
133
Peirce indica ainda uma subdivisatildeo a que esta classificaccedilatildeo das inferecircncias estaacute sujeita
entre inferecircncias analiacuteticas na qual ele coloca a deduccedilatildeo e inferecircncias sinteacuteticas que
compreendem a induccedilatildeo e a hipoacutetese Deixando para outra ocasiatildeo o tratamento da inferecircncia
dedutiva186
dedicaraacute o texto em questatildeo agrave compreensatildeo e diferenciaccedilatildeo das inferecircncias indutivas
e hipoteacuteticas bem como agrave justificaccedilatildeo da necessidade de clareza quanto a esta distinccedilatildeo para a
elaboraccedilatildeo do meacutetodo cientiacutefico
Peirce argumenta que a diferenccedila entre a inferecircncia que formula uma hipoacutetese e aquela que
realiza uma induccedilatildeo eacute bastante clara na maioria dos casos analisados natildeo obstante seja ignorada
pelos estudiosos da loacutegica ou objeto de grande confusatildeo Embora nenhuma classificaccedilatildeo seja
perfeitamente satisfatoacuteria diz Peirce sendo sempre possiacutevel encontrar casos que se localizem na
fronteira entre as duas classes e que poderiam levar agrave primeira vista a uma certa duacutevida sobre
qual categoria a que dada inferecircncia pertence a anaacutelise da abduccedilatildeo e induccedilatildeo deixa claro as
suas diferenccedilas Quanto ao modo em que se realiza e quanto ao objetivo que almeja Peirce tece o
seguinte comentaacuterio
Pela induccedilatildeo concluiacutemos que fatos similares aos fatos observados satildeo
verdadeiros em casos natildeo examinados Pela hipoacutetese concluiacutemos a existecircncia de
um fato totalmente diferente de qualquer coisa observada a partir do qual de
acordo com as leis conhecidas alguma coisa observada necessariamente
resultaria O primeiro eacute um raciociacutenio dos particulares para a lei geral o uacuteltimo
do efeito para a causa O primeiro classifica o uacuteltimo explica (EP 1 p 194
1878)187
Com a finalidade de tornar a diferenccedila mais clara vejamos alguns exemplos de hipoacutetese
186 Realizado em 1880 em seu texto umlOn the Algebra of Logicuml e na definiccedilatildeo de umlsilogismouml para o seu Century
Dictionary 187
By induction we conclude that facts similar to observed facts are true in cases not examined By hypothesis we
conclude the existence of a fact quite different from anything observed from which according to known laws
something observed would necessarily result The former is reasoning from particulars to the general law the latter
from effect to cause The former classifies the latter explains
134
fornecidos por Peirce e a diferenccedila com relaccedilatildeo agrave induccedilatildeo em um deles O primeiro exemplo faz
referecircncia a uma viagem que Peirce realizou no ano de 1870 para a Turquia ele nos diz que
enquanto caminhava em direccedilatildeo a uma casa que iria visitar encontrou um homem montado em
um cavalo com quatro outros homens agrave cavalo ao seu redor e que seguravam uma tenda sobre sua
cabeccedila Como o governador da proviacutencia seria a uacutenica pessoa que poderia ter um tratamento tatildeo
honroso Peirce concluiu que se tratava do proacuteprio Esta eacute uma hipoacutetese acrescenta Do fato de se
encontrar foacutesseis de peixes e conchas no interior do paiacutes elabora-se a hipoacutetese de que o mar em
algum momento do passado tenha banhado aquelas terras Do fato de que inuacutemeros documentos
e monumentos faccedilam referecircncia a um conquistador chamado Napoleatildeo Bonaparte se conclui que
ele de fato existiu sendo esta conclusatildeo uma outra hipoacutetese Com respeito a esses exemplos
Peirce acrescenta que a hipoacutetese eacute um tipo fraco de argumento que mais inclina do que determina
o nosso julgamento em direccedilatildeo agrave afirmaccedilatildeo da verdade expressa nas respectivas hipoacuteteses
Para tornar clara a diferenccedila entre o raciociacutenio hipoteacutetico e raciociacutenio indutivo vejamos um
outro exemplo tambeacutem fornecido por Peirce Neste nos deparamos com um escrito anocircnimo
sobre uma folha de papel que foi arrancada de um bloco Haacute a suspeita de que o autor do escrito
seja uma determinada pessoa Sua mesa agrave qual somente ele tinha acesso eacute investigada e eacute
encontrado um bloco de papel com uma folha arrancada cujas bordas satildeo idecircnticas agraves da folha do
escrito anocircnimo A conclusatildeo de que o suspeito eacute realmente o autor do escrito eacute claramente uma
hipoacutetese Peirce acrescenta que a base para essa inferecircncia eacute de que seria muito improvaacutevel que
duas folhas de papel arrancadas ao acaso tivessem suas bordas exatamente iguais apenas por
acidente A razatildeo de uma conclusatildeo do tipo presente no exemplo acima eacute enunciada nos seguintes
termos por Peirce ldquoum nuacutemero de caracteres que pertence a uma certa classe eacute encontrado em
um certo objeto desse modo eacute inferido que todos os caracteres daquela classe pertencem ao
objeto em questatildeordquo (EP 1 p 192 1878)188
O princiacutepio de elaboraccedilatildeo da hipoacutetese neste caso
envolve o mesmo princiacutepio da induccedilatildeo a diferenccedila eacute que natildeo satildeo analisados uma quantidade
grande de caracteres e a conclusatildeo eacute bastante distinta A inferecircncia indutiva no exemplo acima
188 A number of characters belonging to a certain class are found in a certain object whence it is inferred that all the
characters of that class belong to the object in question
135
apenas nos autorizaria a concluir que se as folhas de papel possuem alguns caracteres que
correspondem entatildeo ela deve compartilhar outros concluir no entanto sobre o autor do escrito
na folha de papel a partir de algumas de suas caracteriacutesticas eacute algo de natureza completamente
diferentemente Peirce resume a diferenccedila entre os dois tipos de inferecircncia da seguinte maneira
ldquoa essecircncia de uma induccedilatildeo eacute que ela infere de um conjunto de fatos um outro conjunto de fatos
similares enquanto a hipoacutetese infere a partir de fatos de um tipo fatos de um outrordquo (EP 1 p
198)189
Pode-se perceber que uma das razotildees pelas quais Peirce elabora a reflexatildeo apresentada
neste texto eacute a de compreender o processo de produccedilatildeo do conhecimento Neste momento Peirce
ainda atribuiacutea tanto agrave inferecircncia indutiva quanto agrave inferecircncia hipoteacutetica o papel de produtor de
novas ideias na medida em que ambas satildeo classificadas como inferecircncias sinteacuteticas Posiccedilatildeo que
no futuro modificaraacute atribuindo a exclusividade heuriacutestica ao processo inferencial que receberaacute o
nome de abduccedilatildeo Mas a quecirc serve esta distinccedilatildeo Esta eacute uma pergunta que podemos nos colocar
e para a qual Peirce apresenta uma resposta retomada e aprimorada em vaacuterios textos posteriores
Em um texto de 1901 lemos
Nada tem contribuiacutedo tanto para apresentar ideias da loacutegica da ciecircncia caoacuteticas
ou errocircneas como a falha em distinguir os caracteres essencialmente diferentes
de diferentes elementos do raciociacutenio cientiacutefico e uma das piores dessas
confusotildees bem como uma das mais comuns consiste em ver a abduccedilatildeo e a
induccedilatildeo tomadas juntas (frequentemente misturadas tambeacutem com a deduccedilatildeo)
como um uacutenico argumento (CP 7 sect 218 1901)190
189 But the essence of an induction is that it infers from one set of facts another set of similar facts whereas
hypothesis infers from facts of one kind to facts of another 190
Nothing has so much contributed to present chaotic or erroneous ideas of the logic of science as failure to
distinguish the essentially different characters of different elements of scientific reasoning and one of the worst of
these confusions as well as one of the commonest consists in regarding abduction and induction taken together
(often mixed also with deduction) as a simple argument
136
No texto de 1878 Peirce oferece algumas razotildees segundo as quais a distinccedilatildeo em questatildeo
seria de grande importacircncia O valor desta distinccedilatildeo segundo o autor deve ser testado por suas
aplicaccedilotildees Em primeiro lugar encontra-se o fato de que a induccedilatildeo eacute um tipo de inferecircncia bem
mais forte do que a hipoacutetese A impossibilidade de se inferir indutivamente conclusotildees hipoteacuteticas
eacute apontada como a segunda razatildeo Do ponto de vista psicoloacutegico ou fisioloacutegico tambeacutem se
verifica uma distinccedilatildeo quanto ao modo de apreensatildeo dos fatos que eacute apontado como a terceira
razatildeo para se insistir sobre a sua distinccedilatildeo A induccedilatildeo eacute o procedimento loacutegico da formaccedilatildeo de um
haacutebito jaacute que ela realiza a inferecircncia de uma regra e toda regra eacute de natureza habitual enquanto a
hipoacutetese realiza a unificaccedilatildeo de vaacuterios predicados em uma uacutenica concepccedilatildeo Peirce tenta
esclarecer a particularidade do processo de elaboraccedilatildeo de hipoacutetese fazendo uso de uma analogia
ldquoos vaacuterios sons produzidos pelos instrumentos de uma orquestra incidem sobre o ouvido e o
resultado eacute uma peculiar emoccedilatildeo musical bem distinta dos proacuteprios sonsrdquo (EP 1 199 1878)191
A partir dessa constataccedilatildeo Peirce afirma que a hipoacutetese representa o elemento sensiacutevel do
pensamento enquanto a induccedilatildeo responde por seu elemento habitual Um outro meacuterito dessa
distinccedilatildeo eacute o de permitir uma classificaccedilatildeo natural das ciecircncias e das mentes que as realizam
segundo os diferentes modos de raciociacutenio E por fim Peirce deixa as demais vantagens aos
leitores que dominarem a habilidade de distinguir entre os vaacuterios tipos de inferecircncias a tarefa de
descobrir
Para Peirce antes da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese que eacute por ele considerada como o
primeiro estaacutegio do meacutetodo cientiacutefico o cientista deve ter se nutrido da observaccedilatildeo do mundo A
experiecircncia eacute o iniacutecio necessaacuterio para todo conhecimento humano de modo que natildeo existe
conhecimento que natildeo esteja embasado na experiecircncia ele diz ldquoTodo conhecimento seja qual
for vem da observaccedilatildeordquo (CP 1 sect 238 1902)192
Ainda que a observaccedilatildeo natildeo possa ser
considerada como uma parte do meacutetodo cientiacutefico ela eacute um preacute-requisito fundamental para o seu
sucesso Com a finalidade de estabelecer uma conversaccedilatildeo com a natureza a observaccedilatildeo preacutevia
191 The various sounds made by the instruments of an orchestra strike upon the ear and the result is a peculiar
musical emotion quite distinct from the sounds themselves 192
All knowledge whatever comes from observation
137
do cientista deve ser ativa e natildeo passiva Ela natildeo eacute pura sensaccedilatildeo mas experimentaccedilatildeo
inteligente Para que a conversa seja produtiva o investigador deve apresentar as questotildees
apropriadas Sobre a observaccedilatildeo Peirce afirma que se trata ldquode uma experiecircncia voluntariamente
atenta habitualmente com algum frequentemente com a necessidade de um grande esforccedilordquo e
acrescenta que a ldquoexperiecircncia supotildee que seu objeto reaja sobre noacutes com alguma forccedila muita ou
pouca de tal maneira que ela tenha um certo grau de realidade ou independecircncia de nosso esforccedilo
cognitivordquo (CP 2 sect 605 1902)193
Tal esforccedilo soacute eacute verdadeiramente realizado uma vez que
alguma coisa de inesperado surja no desenrolar dos acontecimentos fenomecircnicos isto eacute quando o
curso dos eventos se mostra de alguma maneira surpreendente para o investigador
A experiecircncia eacute portanto uma operaccedilatildeo cognitiva Ela implica a consciecircncia de um objeto
externo que eacute resistente ao sujeito A observaccedilatildeo com a qual a pesquisa cientiacutefica tem seu iniacutecio eacute
sempre a quebra de uma expectativa e eacute esta caracteriacutestica inesperada que forccedila o cientista a ter
consciecircncia da externalidade do objeto e que o conduz agrave procura de uma explicaccedilatildeo
A pesquisa cientiacutefica propriamente dita inicia-se com a hipoacutetese uma conjectura que tenta
explicar o fenocircmeno surpreendente (cf CP 6 sect 469 1908) O meacutetodo cientiacutefico compreende
para Peirce trecircs estaacutegios distintos abduccedilatildeo ou hipoacutetese deduccedilatildeo e induccedilatildeo ou teste
Diferentemente de outros filoacutesofos da ciecircncia Peirce compreende que uma parte de seu meacutetodo
deve ser dedicada agrave explicaccedilatildeo de como as novas hipoacuteteses satildeo elaboradas O coraccedilatildeo desta teoria
eacute uma reflexatildeo sobre o processo de criaccedilatildeo cientiacutefica condensado no raciociacutenio abdutivo Uma
vez elaborada e selecionada a hipoacutetese dever testada Com esta finalidade Peirce indica a
necessidade de se deduzir as consequecircncias praacuteticas da hipoacutetese e por meio da induccedilatildeo proceder
agrave sua verificaccedilatildeo confrontando-a com a experiecircncia Nota-se que mesmo mantendo o nome
induccedilatildeo para este procedimento de teste ele natildeo reteacutem mais nada da sua significaccedilatildeo original
empregada na histoacuteria da filosofia Natildeo se trata do procedimento de obtenccedilatildeo de uma lei geral por
193 Attentive experience especially an act of voluntarily attentive experience usually with some often with great
effort () experience supposes that its object reacts upon us with some strength much or little so that it has a certain
grade of reality or independence of our cognitive exertion
138
meio dos casos particulares mas de verificar se as consequecircncias de uma conjectura geral satildeo
conformes agrave experiecircncia
As duas principais funccedilotildees da ciecircncia satildeo a elaboraccedilatildeo e o teste de conjecturas A ciecircncia
somente seraacute possiacutevel se ao se realizar essas duas funccedilotildees o resultado seja a verdade ou se por
meio delas nos aproximamos do conhecimento real Durante deacutecadas Peirce se dedicou
agrave compreensatildeo dos mecanismos da induccedilatildeo visando compreender como ela durante a
investigaccedilatildeo cientiacutefica teria o poder de conduzir agrave verdade por meio de um processo de
autocorreccedilatildeo Seus esforccedilos todavia indicaram que a menos que a conjectura jaacute tenha colocado o
investigador na boa direccedilatildeo a ciecircncia natildeo conseguiria atingir seu objetivo Desta maneira este
estranho tipo de inferecircncia chamado de abduccedilatildeo deveria ser a chave para o progresso que se
verifica na ciecircncia De fato a abduccedilatildeo eacute uma espeacutecie de adivinhaccedilatildeo da boa hipoacutetese
A abduccedilatildeo compreende dois momentos a elaboraccedilatildeo e a eleiccedilatildeo das hipoacuteteses a serem
testadas O primeiro momento eacute marcado pela criatividade e o segundo pelas exigecircncias da
economia da pesquisa cientiacutefica Na anaacutelise do primeiro momento o da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese
um aspecto bastante proacuteprio do pensamento peirceano eacute ressaltado o papel que a imaginaccedilatildeo
desempenha neste estaacutegio Peirce diz
Quando um homem deseja ardentemente conhecer a verdade seu primeiro
esforccedilo eacute de imaginar aquilo que tal verdade poderia ser () eacute verdade que apoacutes
tudo nada aleacutem da imaginaccedilatildeo pode lhe fornecer a pista da verdade Ele pode
fixar estupidamente o olhar sobre os fenocircmenos mas sem a imaginaccedilatildeo eles natildeo
se ligaratildeo de maneira racional (CP 1 sect 46 1896)194
194 When a man desires ardently to know the truth his first effort will be to imagine what that truth can be () it
remains true that there is after all nothing but imagination that can ever supply him an inkling of the truth He can
stare stupidly at phenomena but in the absence of imagination they will not connect themselves together in any
rational way
139
A imaginaccedilatildeo do cientista natildeo obstante eacute aquela que sonha com explicaccedilotildees e com leis (cf
CP 1 sect 49 1896) a conjectura deve portanto ser de tal maneira que elimine o aspecto
surpreendente e coloque o cientista em harmonia com o curso dos fenocircmenos Uma vez de posse
das conjecturas Peirce indica os criteacuterios que devem ser utilizados para selecionar aquelas que
devem ser submetidas a teste e em que ordem afim de que o trabalho de investigaccedilatildeo cientiacutefica
tenha o melhor desempenho possiacutevel As principais condiccedilotildees de admissibilidade de hipoacuteteses
que Peirce estabelece satildeo
1 A hipoacutetese deve ser experimentalmente testaacutevel
2 Ela deve explicar os fatos surpreendentes aos quais nos confrontamos
3 A seleccedilatildeo e classificaccedilatildeo das hipoacuteteses a serem testadas devem ser realizadas em funccedilatildeo
do princiacutepio de economia da pesquisa
A testabilidade de uma hipoacutetese consiste em que devemos poder tirar dela por deduccedilatildeo um
certo nuacutemero de consequecircncias ou prediccedilotildees suscetiacutevel de ser comparado com os resultados de
uma experiecircncia provocada por esta razatildeo ldquouma hipoacutetese da qual natildeo se pode fundar nenhuma
prediccedilatildeo natildeo deveria ser aceitardquo (CP 5 sect 599 1903)195
Explicar um fenocircmeno para Peirce eacute fazecirc-lo aparecer como dedutiacutevel de uma lei ou de uma
teoria isto eacute como previsiacutevel Peirce caracteriza a explicaccedilatildeo como uma forma de reduccedilatildeo do
diverso agrave unidade explicar eacute sintetizar uma multiplicidade de predicados ou ainda substituir
uma pluralidade de proposiccedilotildees por uma soacute proposiccedilatildeo de um grau de generalidade superior (cf
CHAUVIREacute 2003 p 84)
E por fim a terceira condiccedilatildeo indica que as hipoacuteteses de conteuacutedos mais abrangentes
devem ser preferidas bem como aquelas que natildeo exijam muito tempo recursos materiais ou
esforccedilo em seus testes
195 A hypothesis on which no verifiable predictions can be based should never be accepted
140
CAPIacuteTULO 05
A CAUSALIDADE FINAL
Thus whether you accept the opinion or not you must see that it is a perfectly
intelligible opinion that ideas are not all mere creations of this or that mind but on the
contrary have a power of finding or creating their vehicles and having found them of
conferring upon them the ability to transform the face of the earth (CP 1 sect 217 1902)
141
Este capiacutetulo eacute dedicado agrave apresentaccedilatildeo e discussatildeo das principais caracteriacutesticas atribuiacutedas
agrave ideia de causa final na obra de Peirce Iniciaremos por uma exposiccedilatildeo das questotildees envolvidas
e resgatando elementos presentes nos capiacutetulos anteriores desta tese faremos uma comparaccedilatildeo
da concepccedilatildeo peirceana com a aristoteacutelica para realccedilar aquilo que Peirce acrescenta de original
Como este eacute o uacuteltimo capiacutetulo deste trabalho sua funccedilatildeo eacute a de tambeacutem ressaltar o papel central
que a ideia de causa final desempenha em outros campos da produccedilatildeo peirceana afins ao recorte
proposto no todo desta tese
Para Peirce a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais fornecida apenas com base na atuaccedilatildeo da
causa eficiente eacute claramente insuficiente A causalidade final eacute necessaacuteria para a construccedilatildeo de
esquemas de explicaccedilatildeo que possam oferecer uma imagem adequada do real portanto eacute essencial
do ponto de vista epistemoloacutegico O mesmo pode ser afirmado no que diz respeito ao ponto de
vista ontoloacutegico pois Peirce a considera como causa real atuante nos processos de constituiccedilatildeo
do universo ou seja na evoluccedilatildeo ou crescimento do cosmo Como indica T L Short ldquo() A
teleologia de Peirce natildeo eacute somente metodoloacutegica ela inclui reivindicaccedilotildees ontoloacutegicasrdquo (1981b
p 377) O banimento desta modalidade causal da ciecircncia ao menos desde Bacon196
eacute visto pelo
filoacutesofo como uma fonte de equiacutevocos Em um texto de 1903 Peirce afirma
() o natildeo reconhecimento da causalidade final () tem sido e ainda eacute produtor
de mais erros filosoacuteficos e de absurdos do que qualquer outra fonte de erro e de
absurdos Se haacute uma deusa do absurdo isso deve ser sua assombraccedilatildeo (MS
478)197
Como aponta Andrew Woodfield em seu livro sobre a teleologia ldquoA ciecircncia moderna eacute no
seu todo hostil agraves explicaccedilotildees teleoloacutegicasrdquo (WOODFIELD 1976 p03) Hawkins (2007 p 522)
196 Como aponta Bacon a investigaccedilatildeo sobre causas finais eacute esteacuteril e como uma virgem consagrada a Deus nada
produz (cf BACON F De Augmentis Scientiarum III 5) 197
() the non-recognition of final causation () has been and still is productive of more philosophical error and
nonsense than any or every other source of error or nonsense If there is any goddess of nonsense this must be her
haunt (apud HULSWIT 1996 p 182)
142
afirma que embora filoacutesofos contemporacircneos como Russell e Quine tenham afirmado que ateacute
mesmo a causalidade eficiente eacute metafisicamente suspeita ela continua a gozar de popularidade
junto ao senso comum e de respeito entre os filoacutesofos Aquele que defende a existecircncia de causas
eficientes atuando na natureza pode estar errado mas ningueacutem o chamaria de louco como
acontece com aqueles que insistem na pertinecircncia da inclusatildeo da causalidade final nos esquemas
explicativos ou como elemento atuante no mundo Hawkins (2007 p 522) faz um bom resumo
da situaccedilatildeo atual
() muitos filoacutesofos contemporacircneos consideram a causalidade final na melhor
das hipoacuteteses como uma reliacutequia de um encantado mundo preacute-moderno Na pior
das hipoacuteteses a causalidade final eacute um pensamento metafiacutesico clandestino na
barcaccedila antifundacionalista conduzida por Quine e seus companheiros Mesmo
os filoacutesofos Continentais (por exemplo Heidegger Deleuze) tendem a
suspeitar da causalidade final Para eles a causa final eacute um conceito
incompatiacutevel com a nossa experiecircncia de liberdade e novidade () Por fim nem
mesmo o senso comum parece endossar a causalidade final De acordo com a
compreensatildeo preacute-filosoacuteficas as causas satildeo temporalmente preacutevias aos efeitos
Contudo os defensores da causalidade final parecem negar precisamente essa
prioridade O caraacuteter de uma coisa no presente eacute de alguma forma pensado
como determinado pelo que ela seraacute no futuro seu fim (telos) Para os natildeo
filoacutesofos a alegaccedilatildeo de que a causalidade pode atuar nesse sentido pode parecer
incompreensiacutevel
Satildeo comuns afirmaccedilotildees de que natildeo existem causas finais atuando no universo e de que os
fenocircmenos que satildeo descritos por meio de uma linguagem teleoloacutegica podem e seratildeo no futuro
descritos unicamente por meio da utilizaccedilatildeo de esquemas de explicaccedilatildeo que faccedilam uso exclusivo
da causalidade eficiente Se por um lado o projeto de reduccedilatildeo das explicaccedilotildees teleoloacutegicas a
explicaccedilotildees com base em causalidade eficiente ainda natildeo foi plenamente realizado por outro a
proacutepria noccedilatildeo de causalidade final natildeo estaacute inteiramente esclarecida Como aponta Hulswit ldquoAteacute
o presente momento nenhuma teoria clara dos processos teleoloacutegicos estaacute disponiacutevelrdquo
143
(HULSWIT 1996 P 183)198
Esperamos que a anaacutelise e exposiccedilatildeo das ideias peirceanas sobre o
tema possam constituir uma contribuiccedilatildeo efetiva para a elaboraccedilatildeo de uma teoria mais adequada
e clara sobre a maneira de atuaccedilatildeo da causalidade teleoloacutegica A principal justificativa para a sua
inclusatildeo eacute como ressalta o autor o papel essencial que desempenha na completude das
descriccedilotildees e nas explicaccedilotildees dos fenocircmenos
1 O MODO DE ATUACcedilAtildeO DA CAUSALIDADE FINAL
Ao explicar os modos de causalidade atuantes no universo199
Peirce daacute tanto agrave causalidade
final quanto agrave causalidade eficiente praticamente a mesma importacircncia natildeo escondendo todavia
certa primazia da primeira Quando Peirce fala em causalidade final estaacute pensando na maneira
como foi definida por Aristoacuteteles
O significado da expressatildeo bdquocausa final‟ deve ser determinado pelo seu uso na
declaraccedilatildeo de Aristoacuteteles de que todas as causas se dividem em dois grandes
ramos o das eficientes ou eneacutergicas e o das ideais ou finais Se preservarmos a
verdade da declaraccedilatildeo devemos compreender por causa final o modo de realizar
fatos de acordo com o qual uma descriccedilatildeo geral do resultado eacute obtida quase sem
consideraccedilatildeo por qualquer compulsatildeo para ela se realizar deste ou daquele modo
particular embora o significado possa estar adaptado a um fim O resultado
geral deve ser realizado de um modo em uma vez e de outra em outra A causa
final natildeo determina em qual modo particular se realizaraacute mas unicamente que o
resultado teraacute um certo caraacuteter geral (CP 1 sect 211 1902)200
198 Aleacutem do texto citado ver tambeacutem HULSWIT 1997 1998 2001 e 2003 PAPE 1993 e 1997
199 Para uma discussatildeo da causalidade final no interior da semioacutetica ver SHORT 1981a 1982 e 1996
200 ldquoThe signification of the phrase final cause must be determined by its use in the statement of Aristotle that all
causation divides into two grand branches the efficient or forceful and the ideal or final If we are to conserve the
truth of that statement we must understand by final causation that mode of bringing facts about according to which a
general description of result is made to come about quite irrespective of any compulsion for it to come about in this
or that particular way although the means may be adapted to the end The general result may be brought about at one
time in one way and at another time in another way Final causation does not determine in what particular way it is
to be brought about but only that the result shall have a certain general characterrdquo (CP 1 sect 211 1902) Uma
144
Jaacute o significado de causa eficiente Peirce indica em outra passagem nos seguintes termos
A causalidade eficiente por outro lado eacute uma compulsatildeo determinada pela
condiccedilatildeo particular de coisas e eacute uma compulsatildeo agindo para fazer certa
situaccedilatildeo comeccedilar a mudar de uma forma perfeitamente determinada e seja qual
for o caraacuteter geral do resultado de modo algum diz respeito agrave causaccedilatildeo eficiente
Por exemplo eu atiro na asa de uma aacuteguia e uma vez que o meu propoacutesito - um
tipo especial de causa final ou ideal - eacute acertar a ave eu natildeo atiro diretamente
nela mas um pouco agrave sua frente tendo em conta a mudanccedila de posiccedilatildeo no
momento em que a bala chegar agravequela distacircncia Ateacute esse momento trata-se de
um caso de causaccedilatildeo final Mas apoacutes a bala sair do rifle o caso eacute entregue agrave
estuacutepida causalidade eficiente e se a aacuteguia fizer uma volta em outra direccedilatildeo a
bala natildeo alteraraacute sua trajetoacuteria em nada a causalidade eficiente natildeo tem qualquer
relaccedilatildeo com os resultados mas simplesmente obedece cegamente a ordens Eacute
verdade que a forccedila da bala estaacute em conformidade com uma lei e a lei eacute algo
geral Mas por isso mesmo a lei natildeo eacute uma forccedila Pois forccedila eacute compulsatildeo e
compulsatildeo eacute hic et nunc (CP 1 sect 212 1902)201
Embora sejam diametralmente opostas causa final e causa eficiente se relacionam de
maneira complementar Peirce enfatiza este aspecto nos seguintes termos
comparaccedilatildeo do conceito de causa final presente na obra peirceana com aquele presente na obra aristoteacutelica seraacute
realizada na pesquisa com a intenccedilatildeo de oferecer uma melhor compreensatildeo da definiccedilatildeo peirceana A despeito da
afirmaccedilatildeo de identidade entre uma definiccedilatildeo e outra estabelecido acima haacute elementos presentes na metafiacutesica
peirceana que sugerem alteraccedilotildees no conceito e invalidam essa identidade A investigaccedilatildeo desse toacutepico colocaraacute em
relevo essas diferenccedilas 201
Efficient causation on the other hand is a compulsion determined by the particular condition of things and is a
compulsion acting to make that situation begin to change in a perfectly determinate way and what the general
character of the result may be in no way concerns the efficient causation For example I shoot at an eagle on the
wing and since my purpose -- a special sort of final or ideal cause -- is to hit the bird I do not shoot directly at it
but a little ahead of it making allowance for the change of place by the time the bullet gets to that distance So far it
is an affair of final causation But after the bullet leaves the rifle the affair is turned over to the stupid efficient
causation and should the eagle make a swoop in another direction the bullet does not swerve in the least efficient
causation having no regard whatsoever for results but simply obeying orders blindly It is true that the force of the
bullet conforms to a law and the law is something general But for that very reason the law is not a force For force
is compulsion and compulsion is hic et nunc
145
Causalidade eficiente eacute aquele tipo de causalidade atraveacutes do qual as partes
compotildeem o todo causalidade final eacute aquele tipo de causalidade pelo qual o todo
chama por suas partes Causa final sem causa eficiente eacute inoacutecua um mero
chamar por partes eacute o que qualquer soldado ou homem pode fazer mas elas natildeo
viratildeo sem a causa eficiente Causa eficiente sem causa final entretanto eacute pior do
que inoacutecuo eacute mero caos e o caos natildeo eacute nem mesmo caos sem causa final eacute um
nada vazio (CP 1 sect 211 1902)202
A tarefa que nos propomos aqui eacute a de entender como Peirce um cientista familiarizado
com as principais teorias cientiacuteficas do seu tempo e formado dentro dos rigores do meacutetodo
experimental pocircde atribuir tal relevacircncia agrave causalidade final Ao mesmo tempo investigaremos
de que modo se daacute a atuaccedilatildeo deste tipo de causalidade na natureza segundo a concepccedilatildeo
peirceana Ou seja nosso objetivo eacute o de compreender o papel epistemoloacutegico e ontoloacutegico
desempenhado pela causa final no sistema peirceano
Uma das questotildees que conduziu inicialmente esta investigaccedilatildeo jaacute pode ser colocada se a
causalidade final eacute atuante em todo o universo e natildeo apenas nos fenocircmenos bioloacutegicos como ela
pode se manifestar sem a postulaccedilatildeo de um plano de criaccedilatildeo ou seja sem um reino de fins
Poder-se-ia julgar por meio da descriccedilatildeo oferecida da lei da mente ou causa final que a
sua aplicaccedilatildeo restringe-se ao acircmbito dos fenocircmenos mentais particularmente aos dos humanos A
fim de evitar esse equiacutevoco fazem-se necessaacuterias algumas palavras a respeito da distinccedilatildeo
elaborada por Peirce entre causa final e propoacutesito A causa final possui uma abrangecircncia muito
maior do que o propoacutesito sendo este apenas o tipo de causa final a que estamos mais habituados
Em um texto de 1902 Peirce esclarece que ldquoUm propoacutesito eacute um desejo operativordquo (CP 1 sect 205
1902)203
Ainda que para os seres humanos o propoacutesito se apresente como uma conduccedilatildeo
autocontrolada que mira algum ser in futuro que aparece como desejaacutevel quando consideramos a
202 Efficient causation is that kind of causation whereby the parts compose the whole final causation is that kind of
causation whereby the whole calls out its parts Final causation without efficient causation is helpless mere calling
for parts is what a Hotspur or any man may do but they will not come without efficient causation Efficient
causation without final causation however is worse than helpless by far it is mere chaos and chaos is not even so
much as chaos without final causation it is blank nothing 203
A purpose is an operative desire
146
atuaccedilatildeo da causa final em seu sentido mais amplo constatamos que o significado do termo natildeo
reteacutem nada de sua interpretaccedilatildeo psicoloacutegica
Os exemplos da atuaccedilatildeo da causa final satildeo muitos afirma Peirce No que tange ao
pensamento particularmente em sua atividade teoacuterico-criativa a presenccedila do ser in futuro como
um bdquoatrator‟ eacute inequiacutevoca Procedemos agrave verificaccedilatildeo de nossas candidatas a leis gerais por meio
de experimentos afirma Peirce Variamos gradualmente as condiccedilotildees de nossos experimentos
para constatar o que acontece Se estivermos no caminho errado uma enfaacutetica negativa faraacute com
que reconsideremos nossas hipoacuteteses de tal modo que em um longo prazo (a long run) elas se
tornaratildeo cada vez mais adequadas e corretas Ou seja ldquoIsto equivale a dizer que conjeturamos as
leis pedaccedilo por pedaccedilordquo (CP 1 sect 86 1896)204
Temos nesse ponto o retorno de uma outra questatildeo jaacute debatida no primeiro capiacutetulo desta
tese a justificaccedilatildeo oferecida pelo autor da presenccedila de um caraacuteter tatildeo marcadamente
antropomoacuterfico em suas explicaccedilotildees Como vimos Peirce salienta em algumas passagens que
isso natildeo poderia ser evitado sendo uma das caracteriacutesticas da nossa compreensatildeo do mundo e
marca de uma inteligecircncia que aprende com a experiecircncia O filoacutesofo chega ateacute mesmo a afirmar
que tudo que eacute racional deve ser antropomoacuterfico Como diz
Toda explicaccedilatildeo cientiacutefica de um fenocircmeno natural eacute uma hipoacutetese de que haacute
alguma coisa na natureza agrave qual a razatildeo humana eacute anaacuteloga e que realmente eacute
assim todo o sucesso da ciecircncia em suas aplicaccedilotildees para a conveniecircncia humana
satildeo testemunhas (CP 1 sect 316 1903)205
Eacute natural portanto que as teorias explicativas dos processos que ocorrem na natureza
tenham a marca do humano A proacutepria noccedilatildeo de causalidade diz Peirce expressa essa
204 This is to say we guess out the laws bit by bit
205 Every scientific explanation of a natural phenomenon is a hypothesis that there is something in nature to which
the human reason is analogous and that it really is so all the success of science in its application to human
convenience are witness
147
caracteriacutestica do pensamento inteligiacutevel ele afirma que sua origem ldquo() estaacute em nossa tendecircncia
a procurar relaccedilotildees na natureza anaacutelogas agraves relaccedilotildees intelectuaisrdquo (MS 963 c1893)206
Como
afirma Hulswit
() todas as ideias teoacutericas de um modo ou de outro se originam e se referem agrave
experiecircncia humana Se assim natildeo o fizessem elas natildeo teriam sentido ora se
elas tecircm que ter algum sentido deve haver algum tipo de relaccedilatildeo entre elas e
nossa experiecircncia humana cotidiana Consequentemente longe de ser um
problema o antropomorfismo eacute uma necessidade pura (HULSWIT 1996 p
184)
A elaboraccedilatildeo de teorias que espelham aquilo que eacute familiar aos seres humanos natildeo pode ser
considerada dessa maneira como um defeito da proposta peirceana mas deve ser entendida
como um requisito necessaacuterio agravequilo que pode ser compreendido como objeto da inteligibilidade
humana Uma consequecircncia podemos dizer da hipoacutetese que fundamenta a atividade cientiacutefica
que eacute a de considerar que o mundo eacute em princiacutepio passiacutevel de ser conhecido racionalmente ndash
uma esperanccedila reguladora para o exerciacutecio de toda investigaccedilatildeo
O modelo que nos eacute mais familiar da atuaccedilatildeo da causalidade final eacute a accedilatildeo propositada que
naturalmente eacute realizada com o objetivo de se obter algum resultado No entanto nos adverte o
autor este eacute apenas um tipo de causa final e natildeo o mais expressivo mas mesmo ele jaacute coloca em
evidecircncia a primeira caracteriacutestica que Peirce atribui agrave causa final e que natildeo eacute reconhecida pelos
detratores dessa noccedilatildeo ela a causa final natildeo eacute nunca um fato concreto mas eacute sempre geral
Consideraacute-la como um evento concreto no futuro que exerce uma influecircncia sobre o desenrolar
dos processos de acontecimentos do presente dirigindo-os para um determinado fim eacute um erro
categorial
Podemos nos perguntar todavia quais as consequecircncias dessa caracterizaccedilatildeo da noccedilatildeo de
206 () has its origin in our tendency to seek relations in nature analogous to intellectual relations
148
causa final como um geral A resposta a esta pergunta envolve a dissoluccedilatildeo de certa confusatildeo
presente na ideia de causalidade final que a perspectiva cientiacutefica moderna adotou Esta noccedilatildeo
aparece aos cientistas e filoacutesofos da ciecircncia como sendo possuidora de trecircs caracteriacutesticas que a
torna incompatiacutevel com os criteacuterios de cientificidade vigentes e refrataacuteria aos seus procedimentos
de teste Segundo esta perspectiva a causa final possuiria trecircs caracteriacutesticas intrataacuteveis e
inaceitaacuteveis do ponto de vista cientiacutefico em primeiro lugar ela teria como condiccedilatildeo para sua
atuaccedilatildeo a existecircncia de eventos individuais e concretos no futuro que em segundo lugar
exerceriam algum tipo de influecircncia causal sobre o presente determinando em terceiro lugar um
curso preciso de accedilatildeo a fim de que pudessem ser realizados (cf HULSWIT 1996 p 200-2)
Vejamos em que medida essas caracteriacutesticas podem ser de fato atribuiacutedas agrave noccedilatildeo de causa final
que extraiacutemos da obra do filoacutesofo Como foi indicado acima Peirce nega que exista qualquer
evento no futuro constituinte da causa final Ela eacute sempre um geral e como tal difere
categoricamente dos eventos que podem ser classificados no acircmbito dos fatos individuais e
concretos
Um exemplo simples talvez possa ser de alguma ajuda para iluminar o que Peirce estaacute
afirmando Retomando o caso da accedilatildeo humana propositada podemos dizer que a causa final natildeo
eacute o proacuteprio objetivo da accedilatildeo que natildeo passa de um desejo operativo nas palavras de Peirce mas
eacute antes uma certa classe de objetos que possuem certo tipo geral de caracteriacutesticas Assim se o
desejo que me move eacute o de tomar um sorvete a causa final natildeo seria o proacuteprio desejo mas uma
classe geral na qual os sorvetes estatildeo subsumidos Ainda que possamos especificar o quanto
quisermos o tipo de sorvete o sabor a procedecircncia os modos de fabricaccedilatildeo ainda assim
continuariacuteamos a ter como atrator da nossa accedilatildeo certa classe geral dificilmente um objeto
definido e concreto
Em segundo lugar207
embora as causas finais natildeo sejam eventos futuros elas exercem certa
influecircncia a partir do futuro eacute preciso natildeo esquecer que a distinccedilatildeo entre passado presente e
207 Aqui discordamos da interpretaccedilatildeo de Hulswit que nega a possibilidade de atribuir agrave causalidade final qualquer
tipo de influecircncia sobre o presente a partir do futuro Em sua concepccedilatildeo as causas finais satildeo ldquogeneral types which
may be realized in the future These general types are no actual existences but general (physical) possibilities for
149
futuro realizada por Peirce deixa claro que cada momento estaacute imerso em um fluxo contiacutenuo
cujas fronteiras natildeo estatildeo determinadas de forma precisa e absoluta O modo de efetivaccedilatildeo dessas
trecircs componentes do tempo eacute no entanto bastante diferente O passado se impotildee e determina
natildeo de maneira absoluta o modo que o presente se efetiva a essa influecircncia Peirce daacute o nome de
Obsistecircncia (sugerindo como indica o autor obviar objeto obstinado obstaacuteculo insistecircncia
resistecircncia etc) O presente se efetiva como possibilidade sempre aberta ao novo Peirce atribui
o nome de Originalidade que eacute ser tal como aquele ser eacute independentemente de qualquer outra
coisa O modo de efetivaccedilatildeo do futuro eacute a Transuasatildeo (sugerindo translaccedilatildeo transfusatildeo
transcendental etc) eacute mediaccedilatildeo ou a modificaccedilatildeo da originalidade e da obsistecircncia pela
mediaccedilatildeo
Se existisse apenas a atuaccedilatildeo do passado na determinaccedilatildeo dos eventos presentes teriacuteamos
um mundo bastante diferente do atual no qual as regularidades seriam absolutas o que equivale a
dizer que das mesmas causas os mesmos efeitos seguir-se-iam formando um sistema
perfeitamente adequado agrave descriccedilatildeo mecanicista Fosse o presente absolutamente indeterminado
teriacuteamos apenas a manifestaccedilatildeo de potencialidades absolutamente livres sem a possibilidade de
estabelecimento de qualquer relaccedilatildeo entre duas ou mais realizaccedilotildees que ademais nem mesmo
poderiam ser descritas como espaciais ou temporais que satildeo formas de mediaccedilatildeo e portanto
expressotildees do geral Em uma palavra teriacuteamos o caos o mesmo que Peirce descreve como
condiccedilatildeo original e necessaacuteria do cosmo Essas satildeo imagens possiacuteveis e ateacute mesmo coerentes
mas inadequadas para a descriccedilatildeo do mundo que a experiecircncia nos revela estar em constante
processo de vir a ser descrito por Peirce como evolucionaacuterio ou em crescimento A atuaccedilatildeo da
causalidade final eacute uma hipoacutetese necessaacuteria para podermos compreender o desenvolvimento dos
processos naturais A mediaccedilatildeo que a ideia geral realiza entre a imposiccedilatildeo cega do passado e a
originalidade ilimitada do presente eacute sintetizada pelo autor na ideia de um ser in futuro Nas
palavras de Peirce
future realizationrdquo (HULSWIT 1996 P 185) Embora reconheccedilamos a dificuldade em integrar esta caracteriacutestica a
uma visatildeo cientificamente aceitaacutevel da noccedilatildeo natildeo podemos ignorar as declaraccedilotildees enfaacuteticas encontradas nos textos
de Peirce acerca da realidade da influecircncia que o futuro exerce sobre o desenrolar dos acontecimentos no presente
150
Vamos agora considerar o ser in futuro Como em outros casos isto eacute apenas
uma avenida que leva a uma apreensatildeo mais pura do elemento que ele conteacutem
Uma concepccedilatildeo absolutamente pura de uma categoria estaacute fora de questatildeo Ser
in futuro aparece em formas mentais intenccedilotildees e expectativas A memoacuteria nos
fornece um conhecimento do passado por uma espeacutecie de forccedila bruta uma accedilatildeo
bastante binaacuteria sem qualquer raciociacutenio Mas todo o nosso conhecimento do
futuro eacute obtido por meio de outra coisa (CP 2 sect 88 1902)208
O ser in futuro eacute deixemos claro fundamental para a possibilidade de constituiccedilatildeo efetiva
de uma ciecircncia que possa natildeo apenas explicar o mundo da nossa experiecircncia presente mas
tambeacutem servir de guia ao estabelecimento da nossa conduta autocontrolada
Peirce indica que o modo de efetivaccedilatildeo da causa final eacute semelhante ao de uma sugestatildeo ou
inclinaccedilatildeo nunca determina o modo exato por meio do qual o resultado desejado seraacute obtido Em
suas palavras
Por uma tendecircncia a um fim quero dizer que um determinado resultado seraacute
realizado ou aproximado de tal maneira que se dentro de certos limites sua
realizaccedilatildeo por meio de uma linha de causalidade mecacircnica for impedida ele seraacute
realizado ou aproximado por uma linha independente de causalidade mecacircnica
(NEM 4 p 66 1902)209
208 Let us now take up being in futuro As in the other cases this is merely an avenue leading to a purer apprehension
of the element it contains An absolutely pure conception of a Category is out of the question Being in futuro appears
in mental forms intentions and expectations Memory supplies us knowledge of the past by a sort of brute force a
quite binary action without any reasoning But all our knowledge of the future is obtained through the medium of
something else 209
By a tendency to an end I mean that a certain result will be brought about or approached and in such a way that
if within limits its being brought about by one line of mechanical causation be prevented it will be brought about
or approached by an independent line of mechanical causation
151
2 CAUSALIDADE FINAL E CAUSALIDADE EFICIENTE
A noccedilatildeo de causalidade assumida pelo filoacutesofo eacute claramente mais ampla do que aquela
restrita agrave causalidade eficiente Hulswit indica que ele retoma o sentido original de causa tal
como definido por Aristoacuteteles de acordo com quem uma causa eacute algum tipo de condiccedilatildeo sem a
qual uma coisa natildeo seria o que eacute A causa final dessa maneira eacute determinante do modo de vir a
ser das coisas Ou seja constitui um elemento indispensaacutevel para a criaccedilatildeo de um mundo ndash o da
nossa experiecircncia ndash que se encontra a meio caminho entre a rigidez intransigente e esteacuteril do
mecanicismo e a pura espontaneidade do caos
Como indicado no capiacutetulo sobre evoluccedilatildeo uma das motivaccedilotildees para o desenvolvimento de
uma abordagem teleoloacutegica por parte de Peirce foi a constataccedilatildeo da existecircncia dos assim
chamados fenocircmenos irreversiacuteveis descritos pela termodinacircmica A insuficiecircncia da mecacircnica
claacutessica se mostrava patente no tratamento deste tipo de fenocircmeno Como diz o filoacutesofo
Essas accedilotildees natildeo conservativas que parecem violar a lei de energia e que a fiacutesica
sempre explica como sendo devidas agrave accedilatildeo ao acaso entre trilhotildees de moleacuteculas
satildeo cada uma e todas marcadas por dois caracteres A primeira eacute que eles atuam
em uma direccedilatildeo determinada e tendem assintoticamente em direccedilatildeo agrave realizaccedilatildeo
de um estado uacuteltimo de coisas Se teleoloacutegica eacute uma palavra muito forte para
aplicar a eles podemos inventar a palavra finista para expressar a sua tendecircncia
em direccedilatildeo a um estado final A outra caracteriacutestica das accedilotildees natildeo conservativas
eacute que elas satildeo irreversiacuteveis (CP 7 sect 471 1898)210
As accedilotildees teleoloacutegicas ou finistas como denomina Peirce possuem desse modo duas
caracteriacutesticas elas tendem para um estado final de coisa e elas satildeo irreversiacuteveis Estaacute impliacutecita
aqui uma espeacutecie de superioridade da causa final em relaccedilatildeo agrave causa eficiente A primeira
210 Those non-conservative actions which seem to violate the law of energy and which physics explains away as due
to chance action among trillions of molecules are one and all marked by two characters The first is that they act in
one determinate direction and tend asymptotically toward bringing about an ultimate state of things If teleological is
too strong a word to apply to them we might invent the word finious to express their tendency toward a final state
The other character of non-conservative action is that they are irreversible
152
controla a uacuteltima afim de que um resultado com certo caraacuteter geral seja obtido Ou dito de outra
maneira as causas finais determinam as causas eficientes de tal modo que elas proacuteprias (as
causas finais) se realizem As ideias diz o autor possuem a capacidade de criar as condiccedilotildees para
a sua realizaccedilatildeo Segundo o texto
Desse modo quer aceite ou natildeo a opiniatildeo vocecirc deve ver que eacute uma opiniatildeo
perfeitamente inteligiacutevel a de que as ideias natildeo satildeo meras criaccedilotildees desta ou
daquela mente mas pelo contraacuterio tecircm um poder de encontrar ou criar os seus
veiacuteculos e tendo-os encontrado conferem-lhes a capacidade de transformar a
face da terra (CP 1 sect 217 1902)211
Vemos assim que a causa final definida dessa forma estaacute em estreita relaccedilatildeo com a ideia
a que Peirce se referia por meio da expressatildeo ldquolei da menterdquo Ele afirma que a lei da mente
apenas torna um certo sentimento mais provaacutevel (likely) Em outras palavras podemos dizer que
a lei da mente inclina o curso futuro dos eventos a uma certa direccedilatildeo sem contudo determinaacute-lo
Como afirma Peirce ldquoA causa final natildeo determina de que modo particular algo se realizaraacute mas
unicamente que o resultado teraacute um certo caraacuteter geralrdquo (CP 1 sect 211 1902)212
Eacute a causa final
diz Peirce que atribui existecircncia a um objeto de uma classe Natildeo devemos todavia entender essa
atribuiccedilatildeo como algum tipo de produccedilatildeo miraculosa Eacute o proacuteprio autor que esclarece em qual
sentido preciso entende essa atribuiccedilatildeo ldquoO que eu entendo pela ideia conferindo existecircncia aos
membros individuais de uma classe eacute que ela lhes confere o poder de produzir resultados neste
mundo que ela lhes confere equivale dizer existecircncia orgacircnica ou em uma palavra vidardquo (CP
1 sect 220 1902)213
Para tornar mais evidente a ideia de que a causa final eacute uma espeacutecie de lei viva Peirce
211 Thus whether you accept the opinion or not you must see that it is a perfectly intelligible opinion that ideas are
not all mere creations of this or that mind but on the contrary have a power of finding or creating their vehicles and
having found them of conferring upon them the ability to transform the face of the earth 212
Final causation does not determine in what particular way it is to be brought about but only that the result shall
have a certain general character 213
What I mean by the ideas conferring existence upon the individual members of the class is that it confers upon
them the power of working out results in this world that it confers upon them that is to say organic existence or in
one word life
153
apresenta um exemplo que foca a distinccedilatildeo entre o homem e a mateacuteria que o compotildee Essa
distinccedilatildeo se cristaliza na frase ldquoum homem eacute uma onda mas natildeo um voacuterticerdquo (CP 1 sect 220
1902)214
Ainda que ele seja indissociaacutevel das partiacuteculas que o compotildee nem todas as
propriedades que lhe podem ser atribuiacutedas satildeo adequadas a elas Vejamos o exemplo fornecido
por Peirce
Tome um cadaacutever disseque-o mais perfeitamente do que jamais foi dissecado
Tome todo o sistema de veias sanguiacuteneas como noacutes as vemos desenhadas nos
livros Trate o sistema de nervos espinal e simpateacutetico o sistema alimentar com
os seus adjuvantes o sistema muscular o sistema oacutesseo da mesma maneira
Coloque-os todos em uma cabine de tal modo que de um certo ponto de vista
cada um aparece superposto ao outro em seu lugar proacuteprio Este seria um
espeacutecime singularmente instrutivo Mas chamaacute-lo de homem seria algo que
ningueacutem faria ou sonharia nem mesmo por um instante Todavia a melhor
definiccedilatildeo que poderia ser elaborada seria uma dissecaccedilatildeo similar Ela realmente
natildeo atuaria no mundo como o objeto definido faria Isto nos habilita a ver como
as coisas funcionam na medida em que nos mostra a causa eficiente A causa
final que caracteriza o definitum natildeo eacute abordada (CP 1 sect 220 1902)215
A partir deste exemplo Peirce aprofunda a distinccedilatildeo entre causa eficiente e causa final que
jaacute indicamos anteriormente A causa eficiente eacute aquela na qual as partes compotildeem o todo
enquanto na causa final percebemos o todo chamando por suas partes (cf CP 1 sect 220 1902)
Como indica Silveira ldquo() o que o cosmo evolucionaacuterio exige para se efetivar na organizaccedilatildeo
crescente que o define eacute a presenccedila de duas causas cujo modo de operar eacute reciprocamente
inverso causa final e causa eficienterdquo (SILVEIRA 1985 p 8) Assim sob a atuaccedilatildeo da lei de
214 A man is a wave but not a vortex
215 Take a corpse dissect it more perfectly than it ever was dissected Take out the whole system of blood vessels
entire as we see them figured in the books Treat the whole systems of spinal and sympathetic nerves the alimentary
canal with its adjuvants the muscular system the osseous system in the same way Hang these all in a cabinet so
that from a certain point of view each appears superposed over the others in its proper place That would be a
singularly instructive specimen But to call it a man would be what nobody would for an instant do or dream Now
the best definition that ever was framed is at best but a similar dissection It will not really work in the world as the
object defined will It will enable us to see how the thing works in so far as it shows the efficient causation The final
causation which is what characterizes the definitum it leaves out of account
154
aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um contiacutenuo crescimento da uniformidade a partir das
formas diferenciadas Como indica o autor
Mas as mudanccedilas divergentes agrave lei estatildeo agindo perpetuamente a fim de
aumentar a variedade do mundo e satildeo controladas por um tipo de seleccedilatildeo
natural ou de qualquer outro tipo de tal forma que o resultado geral deve ser
descrito como bdquoheterogeneidade organizada‟ ou melhor bdquovariedade racionalizada‟
(CP 6 sect 23 1891)216
A ideia ou causa final atuaria desse modo como um atrator para a realizaccedilatildeo de um
determinado curso de eventos inclinando agrave realizaccedilatildeo de acontecimentos que se processariam em
funccedilatildeo de um ser in futuro Esta atraccedilatildeo pode ser entendida como um criteacuterio para a seleccedilatildeo das
hipoacuteteses a serem testadas no caso de um processo de investigaccedilatildeo ou dos caminhos ou
estrateacutegias a serem adotados para a realizaccedilatildeo de qualquer objetivo praacutetico A sua atuaccedilatildeo se
manifesta natildeo soacute na eleiccedilatildeo dos modos de conduta racional e autocontrolada do homem mas estaacute
presente tambeacutem ainda que de forma degenerada na determinaccedilatildeo de qualquer evento natural
como por exemplo na determinaccedilatildeo do curso que a aacutegua da chuva percorre ao descer uma
montanha A maneira pela qual o futuro atua sobre o presente se distingue daquela efetuada pelo
passado O passado atua de maneira direta dualista enquanto o futuro necessita de um meio ou
uma maquinaria como diz o autor atraveacutes do qual possa exercer sua influecircncia Silveira
esclarece que ldquoenquanto esta uacuteltima [causa eficiente] atualiza-o pela forccedila a primeira [causa
final] muito mais genuiacutena faz derivar o proacuteprio cosmo de uma ideia antecipa o todo agraves partes
cabendo agrave causa eficiente a composiccedilatildeo efetiva ndash e de algum modo defectiva ndash do todo pela
accedilatildeo reciacuteproca das partesrdquo (SILVEIRA 1985 p 8)
Neste contexto cabem algumas palavras sobre a ceacutelebre imagem do xerife e do tribunal
216 But the chance divergences from law are perpetually acting to increase the variety of the world and are checked
by a sort of natural selection and otherwise (for the writer does not think the selective principle sufficient) so that the
general result may be described as organized heterogeneity or better rationalized variety
155
criada por Peirce para a explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre causalidade final e causalidade eficiente
ressaltando a sua complementaridade
A Lei sem a forccedila para se fazer cumprir seria como um tribunal sem um xerife e
todas as suas decisotildees seriam apenas ditos arrogantes (CP 1 sect 212 1902) () O
tribunal natildeo pode ser imaginado sem um xerife Causalidade final natildeo pode ser
imaginada sem causalidade eficiente mas nenhum pouquinho a menos naquele
exemplo satildeo os seus modos de accedilatildeo contraacuterios polares O xerife ainda teria seu
punho mesmo que natildeo houvesse nenhum tribunal mas uma causa eficiente
destacada de uma causa final na forma de uma lei nem sequer possuiria
eficiecircncia ela pode exercitar-se e algo pode seguir post hoc mas natildeo propter
hoc pois propter implica regularidade potencial (CP 1 213 1902)217
A implicaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo acima eacute a de que natildeo haacute em nenhum acircmbito dos processos
naturais qualquer ato de causaccedilatildeo que natildeo contenha ao mesmo tempo componentes causais
eficientes e finais Peirce eacute mais expliacutecito em outra passagem utilizando a mesma imagem do
xerife e do tribunal
A lei da natureza entregue a si mesma seria bastante semelhante a um tribunal
sem um xerife Um tribunal em tal situaccedilatildeo poderia ser capaz de induzir algum
cidadatildeo a atuar como um xerife mas ateacute que ela tenha se provido de um oficial
que ao contraacuterio de si natildeo poderia discursar com autoridade mas que poderia
estender o braccedilo forte sua lei poderia ser a perfeiccedilatildeo da razatildeo humana mas
permaneceria meros fogos de artifiacutecio brutum Fulmen (CP 5 sect 48 1903)218
217 Law without force to carry it out would be a court without a sheriff and all its dicta would be vaporings () The
court cannot be imagined without a sheriff Final causality cannot be imagined without efficient causality but no
whit the less on that account are their modes of action polar contraries The sheriff would still have his fist even if
there were no court but an efficient cause detached from a final cause in the form of a law would not even possess
efficiency it might exert itself and something might follow post hoc but not propter hoc for propter implies
potential regularity 218
A law of nature left to itself would be quite analogous to a court without a sheriff A court in that predicament
might probable be able to induce some citizen to act as a sheriff but until it had so provided with an officer who
unlike itself could not discourse authoritatively but who could put forth the strong arm its law might be the
perfection of human reason but remain mere fireworks brutum fulmen
156
A metaacutefora distingue claramente o tribunal e o xerife o primeiro toma decisotildees e o segundo
as executa O tribunal guia e direciona e o xerife age Como indica Potter
Juntos eles obtecircm a ordem e mantecircm a paz separados um eacute impotente e o outro
brutal Natildeo obstante nem o tribunal nem o xerife satildeo imaginaacuteveis a natildeo ser em
referecircncia de um com o outro e contudo eles e suas atividades permanecem
sempre claramente distintos Da mesma forma acontece com causalidade
eficiente e final (POTTER 1997 p114)
Para sermos mais precisos com a concepccedilatildeo peirceana em cada ato causal estatildeo envolvidos
trecircs elementos causa eficiente causa final e acaso Temos aqui portanto o modo de vir a ser de
tudo o que eacute em outras palavras este eacute o princiacutepio de individuaccedilatildeo Natildeo poderia dessa maneira
existir fenocircmenos puramente mecacircnicos no cosmo peirceano pois tal possibilidade entraria em
confronto com a proacutepria tese da continuidade criando uma dualidade que natildeo pode ser
consistentemente integrada ao sistema Peirce diz que
O sinequismo mesmo em suas formas menos robustas nunca poderaacute tolerar o
dualismo propriamente assim denominado Ele natildeo quer exterminar a
concepccedilatildeo de duplicidade nem pode qualquer um desses malucos que pregam
cruzadas filosoacuteficas contra esta ou aquela concepccedilatildeo fundamental encontrar o
menor conforto nesta doutrina Mas o dualismo em seu mais amplo e legiacutetimo
significado como a filosofia que realiza as suas anaacutelises com um machado
deixando como elementos finais pedaccedilos do ser sem qualquer relaccedilatildeo isto eacute o
mais hostil ao sinequismo Em particular o sinequista natildeo admitiraacute que os
fenocircmenos fiacutesicos e psiacutequicos sejam inteiramente distintos - seja como
pertencendo a diferentes categorias de substacircncia ou como lados inteiramente
separados de um escudo - mas insistiraacute que todos os fenocircmenos satildeo de um soacute
caraacuteter embora alguns sejam mais mentais e espontacircneos outros mais materiais
e regulares Ainda assim todos similarmente apresentam aquela mistura de
liberdade e restriccedilatildeo que permite que eles sejam ou melhor faz com que sejam
teleoloacutegicos ou propositados (CP 7 sect 570 1892)219
219 Synechism even in its less stalwart forms can never abide dualism properly so called It does not wish to
exterminate the conception of twoness nor can any of these philosophic cranks who preach crusades against this or
that fundamental conception find the slightest comfort in this doctrine But dualism in its broadest legitimate
meaning as the philosophy which performs its analyses with an axe leaving as the ultimate elements unrelated
chunks of being this is most hostile to synechism In particular the synechist will not admit that physical and
157
Como Peirce deixa claro em outra passagem eacute da mistura da restriccedilatildeo com a liberdade que
os fenocircmenos teleoloacutegicos surgem Ele diz que esta ldquomistura de liberdade e restriccedilotildeesrdquo acarreta
ldquoresultados teleoloacutegicos inevitaacuteveisrdquo (EP 1 p 236 1885)220
A combinaccedilatildeo dos trecircs fatores eacute a
chave para se compreender a consequecircncia que Peirce indica ser a caracteriacutestica mais presente
em todos os fenocircmenos naturais qual seja a variaccedilatildeo que se processa dentro de certos limites e
que eacute o germe que possibilita a criaccedilatildeo de tudo que eacute novo e original O autor indica em outro
texto
Eacute curioso como certos fatos nos escapam porque satildeo tatildeo penetrantes e
onipresentes exatamente como os antigos imaginavam que a muacutesica das esferas
natildeo era ouvida porque era ouvida o tempo todo Mas seraacute que algueacutem
gentilmente natildeo diraacute ao resto do auditoacuterio qual eacute o caraacuteter mais marcante e
intrusivo da natureza Eacute claro que me refiro agrave sua variedade (CP 1 sect 159
1897)221
A variaccedilatildeo fruto da atuaccedilatildeo do acaso como jaacute ficou claro no primeiro capiacutetulo desta tese
natildeo eacute uma ocorrecircncia rara que surge vez ou outra no curso dos eventos mas estaacute presente em
toda atualizaccedilatildeo que se processa deste modo em funccedilatildeo das imposiccedilotildees cegas do passado das
restriccedilotildees criadas pela lei e da manifestaccedilatildeo da livre espontaneidade Peirce eacute enfaacutetico ao
descrever a tessitura da realidade
Assim pela admissatildeo da espontaneidade pura ou vida como uma caracteriacutestica
do universo agindo sempre e em toda parte embora contida dentro dos estreitos
psychical phenomena are entirely distinct -- whether as belonging to different categories of substance or as entirely
separate sides of one shield -- but will insist that all phenomena are of one character though some are more mental
and spontaneous others more material and regular Still all alike present that mixture of freedom and constraint
which allows them to be nay makes them to be teleological or purposive 220
Mixture of freedom and constraint () inevitable teleological results 221
It is curious how certain facts escape us because they are so pervading and ubiquitous just as the ancients
imagined the music of the spheres was not heard because it was heard all the time But will not somebody kindly tell
the rest of the audience what is the most marked and obtrusive character of nature Of course I mean the variety of
nature
158
limites da lei produzindo continuamente divergecircncias infinitesimais da lei e as
grandes com infinita infrequecircncia dou conta de toda a variedade e diversidade
do universo no uacutenico sentido em que o realmente sui generis e o novo pode ser
compreendido A visatildeo comum tem que admitir a inesgotaacutevel e incontaacutevel
variedade do mundo tem que admitir que a sua lei mecacircnica natildeo pode
minimamente dar conta disso que a variedade pode brotar apenas da
espontaneidade e ainda nega sem qualquer evidecircncia ou razatildeo a existecircncia
desta espontaneidade ou entatildeo a remete de volta para o iniacutecio do tempo e supotildee-
na morta desde entatildeo A loacutegica superior do meu ponto de vista natildeo me parece
facilmente refutada (CP 6 sect 59 1892)222
Peirce refere-se aos infinitesimais nesta passagem como vimos no capiacutetulo sobre a
continuidade Natildeo eacute possiacutevel compreender adequadamente a noccedilatildeo de continuum sem
introduzirmos a noccedilatildeo de infinitesimal nessas duas noccedilotildees estaacute implicada a relaccedilatildeo entre a lei e o
acaso entre a regularidade e a espontaneidade Como jaacute mencionamos acima eacute dessa relaccedilatildeo que
a causa final surge Em um texto de 1898 Peirce traccedila a relaccedilatildeo aqui indicada
O que eacute possiacutevel eacute na mesma medida geral e como geral deixa de ser
individual Assim lembrando que a palavra potencial significa indeterminado
contudo ainda capaz de determinaccedilatildeo em qualquer caso especial pode haver um
agregado potencial de todas as possibilidades que satildeo consistentes com certas
condiccedilotildees gerais e isso pode ser tal que dado qualquer coleccedilatildeo de indiviacuteduos
distintos seja qual for a partir daquele agregado potencial pode ser realizado
uma coleccedilatildeo mais numerosa do que a coleccedilatildeo dada Assim o potencial agregado
eacute com a mais estrita exatidatildeo maior em magnitude do que qualquer magnitude
possiacutevel de indiviacuteduos Mas sendo apenas um agregado potencial ele natildeo
conteacutem quaisquer indiviacuteduos Ele conteacutem apenas as condiccedilotildees gerais que
permitem a determinaccedilatildeo dos indiviacuteduos (CP 6 sect 185 1898)223
222 By thus admitting pure spontaneity or life as a character of the universe acting always and everywhere though
restrained within narrow bounds by law producing infinitesimal departures from law continually and great ones
with infinite infrequency I account for all the variety and diversity of the universe in the only sense in which the
really sui generis and new can be said to be accounted for The ordinary view has to admit the inexhaustible
multitudinous variety of the world has to admit that its mechanical law cannot account for this in the least that
variety can spring only from spontaneity and yet denies without any evidence or reason the existence of this
spontaneity or else shoves it back to the beginning of time and supposes it dead ever since The superior logic of my
view appears to me not easily controverted 223
That which is possible is in so far general and as general it ceases to be individual Hence remembering that the
word potential means indeterminate yet capable of determination in any special case there may be a potential
159
A causalidade teleoloacutegica na concepccedilatildeo peirceana possui uma caracteriacutestica de
criatividade que a distingue de outras concepccedilotildees em particular da de Aristoacuteteles como veremos
abaixo A criatividade do processo de qualquer crescimento seja ela o de uma ideia na mente de
um investigador ou do proacuteprio cosmo eacute descrito perfeitamente pelo termo evoluccedilatildeo que como jaacute
foi indicado natildeo eacute nada mais do que um princiacutepio loacutegico Faremos agora uma retomada de
algumas das caracteriacutesticas mais marcantes do processo evolutivo descrito por Peirce e nos
concentraremos naquele denominado de agapasmo por se tratar da forma original de evoluccedilatildeo
3 CAUSA FINAL E EVOLUCcedilAtildeO ndash AacuteGAPE OU O AMOR CRIATIVO
Para melhor ilustrar a presenccedila da causa final no cosmo podemos lembrar que a sua
atuaccedilatildeo natildeo eacute outra coisa que a evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902) Nota-se na formulaccedilatildeo
peirceana um alargamento das fronteiras tradicionalmente consideradas como limitantes da accedilatildeo
da evoluccedilatildeo Natildeo soacute o reino orgacircnico cresce com a evoluccedilatildeo mas todo o cosmo assim procede
Peirce procuraraacute montar um quadro teoacuterico no qual a evoluccedilatildeo eacute o aspecto marcante de todos os
acontecimentos nos mais variados campos
A evoluccedilatildeo pode ser aplicada ateacute mesmo agrave proacutepria causa final no texto A lei da mente de
1892 Peirce caracteriza a teleologia como tambeacutem submetida a um processo de desenvolvimento
(developmental) indicando que no processo de atuaccedilatildeo da causa final o tipo geral de resultado
pode sofrer alteraccedilotildees em funccedilatildeo das variaccedilotildees surgidas na experiecircncia como indica Hausman
aggregate of all the possibilities that are consistent with certain general conditions and this may be such that given
any collection of distinct individuals whatsoever out of that potential aggregate there may be actualized a more
multitudinous collection than the given collection Thus the potential aggregate is with the strictest exactitude
greater in multitude than any possible multitude of individuals But being a potential aggregate only it does not
contain any individuals at all It only contains general conditions which permit the determination of individuals
160
esta eacute ldquoA visatildeo de que existem propoacutesitos que podem evoluir espontaneamenterdquo (HAUSMAN
1993 p 175) Tomando como exemplo de evoluccedilatildeo a constituiccedilatildeo da personalidade de um
indiviacuteduo Peirce afirma que
() ela implica uma harmonia teleoloacutegica nas ideias e no caso da personalidade
esta teleologia eacute mais do que uma mera procura propositada de um fim preacute-
determinado eacute uma teleologia em desenvolvimento Este eacute o caraacuteter pessoal A
ideia geral viva e consciente agora jaacute eacute determinante de atos no futuro em uma
medida que natildeo eacute agora consciente (CP 6 sect 156 1892)224
Natildeo obstante o propoacutesito natildeo pode ser estaacutetico pois o desenvolvimento em conformidade
com um propoacutesito preacute-determinado seria contraacuterio agrave proacutepria noccedilatildeo de processo criativo que
caracteriza segundo Peirce a atuaccedilatildeo da causalidade final Caso o propoacutesito se mantivesse
inalterado natildeo teriacuteamos nada aleacutem do que um desenvolvimento mecacircnico o que eliminaria a
proacutepria possibilidade de constituiccedilatildeo da personalidade como algo em desenvolvimento em
crescimento e vivo Embora Peirce na passagem acima esteja se referindo ao desenvolvimento
da personalidade humana eacute possiacutevel estender esta caracterizaccedilatildeo para todos os fenocircmenos
teleoloacutegicos variando sua atuaccedilatildeo exclusivamente em funccedilatildeo dos graus de liberdade que lhes
sejam inerentes Quanto mais livre ou seja quanto mais autocontrolado for um sistema mais
variaccedilatildeo pode existir no desenvolvimento de uma certa finalidade mas isso natildeo exclui a
possibilidade que mesmo no acircmbito da cosmologia as causas finais isto eacute as leis gerais de
desenvolvimento possam ser alteradas pela accedilatildeo do acaso Como indica Short ldquoA causaccedilatildeo final
desse modo resulta natildeo na uniformidade morta de um uacutenico plano mas na heterogeneidade
imprevisiacutevel de empresas personalidades e espeacutecies que preenchem o nosso mundordquo (SHORT
1994 p 406)
224 () it implies a teleological harmony in ideas and in the case of personality this teleology is more than a mere
purposive pursuit of a predeterminate end it is a developmental teleology This is personal character A general idea
living and conscious now it is already determinative of acts in the future to an extent to which it is not now
conscious
161
Enquanto a variaccedilatildeo fruto do acaso absoluto eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria para a evoluccedilatildeo
como jaacute vimos a proacutepria evoluccedilatildeo parece pressupor um outro agente como determinante do seu
processo de desenvolvimento A tal agente Peirce daacute o nome de Aacutegape Consciente das
limitaccedilotildees do tiquismo extraiacutedo da teoria de Darwin o filoacutesofo procura desenvolver uma noccedilatildeo
de evoluccedilatildeo mais geral tendo por base a evoluccedilatildeo do tipo lamarckiano Como aponta Hausman
O agente da evoluccedilatildeo distinto do agente do desvio da diversidade e da
complexidade sozinha tem uma funccedilatildeo teleoloacutegica ndash natildeo para uma teleologia do
tipo tradicional do tempo de Peirce mas uma teleologia em desenvolvimento
uma teleologia de acordo com a qual novos propoacutesitos fins podem emergir
(HAUSMAN 1998 p 630)
A evoluccedilatildeo do cosmo entretanto diz Peirce se daacute pela antecipaccedilatildeo da ideia a ser realizada
por meio de uma adivinhaccedilatildeo que soacute eacute possiacutevel como resultante da continuidade entre as coisas
O universo antecipa abdutivamente por meio da causa final a ideia a ser realizada Nas palavras
de Peirce ldquoA adoccedilatildeo de certas tendecircncias mentais () por uma atraccedilatildeo imediata da ideia em si
cuja natureza eacute adivinhada antes que a mente a possua pelo poder de simpatia ou seja pela
virtude da continuidade da menterdquo (CP 6 307 1893)225
Eacute o amor afirma Peirce o grande agente evolucionaacuterio do universo fato reconhecido desde
a mais tenra idade da filosofia Eacute aacutegape que conduz o processo de desenvolvimento do universo
possibilitando que em um longo prazo ele se torne mais e mais razoaacutevel fazendo com que
aquilo que Peirce chama de razoabilidade concreta possa crescer Quanto ao seu modo de atuar
Peirce afirma que ldquoO movimento do amor eacute circular em um e mesmo impulso projeta criaccedilotildees
em independecircncia e as reuacutene em harmonia Parece complicado quando dito desta maneira mas eacute
completamente sintetizado na foacutermula simples que denominamos a Regra Douradardquo (CP 6 sect
225 The adoption of certain mental tendencies () by an immediate attraction of the idea itself whose nature is
divined before the mind possesses it by the power of sympathy that is by the virtue of the continuity of the mind
162
288 1893)226
Sua funccedilatildeo eacute a de tornar harmoniosos os frutos das criaccedilotildees que constituem o
universo Poeticamente Peirce afirma que aacutegape eacute capaz de ateacute mesmo ldquo() reconhecer os
germes de amor no oacutedio gradualmente trazecirc-los para a vida e tornaacute-los amaacuteveisrdquo (CP 6 sect 289
1893)227
Do ponto de vista mais geral como aponta Silveira (2003) levando-se em conta a
hierarquia estabelecida por Peirce entre as ciecircncias na qual a loacutegica tem por base a eacutetica que por
sua vez tem por base a esteacutetica a uacutenica ideia que pode atuar como forccedila atratora do desenrolar
dos acontecimentos eacute a proacutepria ideia de razoabilidade A razoabilidade eacute o uacutenico bem admiraacutevel
por si mesmo
O proacuteprio ser do geral da Razatildeo consiste em seu governo sobre eventos
individuais Assim entatildeo a essecircncia da razatildeo eacute tal que nunca seu ser pode ter
sido completamente aperfeiccediloado Ele sempre deve estar em um estado de
incipiecircncia de crescimento Eacute como o caraacuteter de um homem que consiste nas
ideias que ele vai conceber e nos esforccedilos que faraacute e que soacute se desenvolve na
medida em que as ocasiotildees realmente surgem No entanto em toda a sua vida
nenhum filho de Adatildeo jamais manifestou plenamente o que havia em si Assim
entatildeo o desenvolvimento da razatildeo requer como uma parte de si a ocorrecircncia de
mais eventos individuais do que jamais pode ocorrer Requer tambeacutem todas as
cores de todas as qualidades de sentimento incluindo o prazer em seu devido
lugar entre os demais Este desenvolvimento da razatildeo consiste vocecirc observaraacute
em encarnaccedilatildeo isto eacute em manifestaccedilatildeo A criaccedilatildeo do universo que natildeo teve
lugar durante uma certa ocupada semana no ano 4004 AC mas que estaacute
acontecendo hoje e nunca estaraacute terminada eacute o verdadeiro desenvolvimento da
Razatildeo Natildeo vejo como se possa ter um ideal mais satisfatoacuterio do admiraacutevel do
que o desenvolvimento da razatildeo assim entendida A uacutenica coisa cuja
admirabilidade natildeo eacute devida a um motivo ulterior eacute a proacutepria razatildeo
compreendida em toda sua plenitude tanto quanto podemos compreendecirc-la Sob
esta concepccedilatildeo o ideal de conduta seraacute o de executar a nossa pequena funccedilatildeo na
operaccedilatildeo da criaccedilatildeo dando uma ajuda para tornar o mundo mais razoaacutevel
sempre que como diz a giacuteria cabe a noacutes fazecirc-lo Em loacutegica pode-se observar
que o conhecimento eacute a razoabilidade e o ideal do raciociacutenio seraacute seguir os
meacutetodos como se deve para desenvolver o conhecimento mais rapidamente (CP
1 sect 615 1903)228
226 The movement of love is circular at the one and the same impulse projecting creations into independency and
drawing them into harmony This seems complicated when stated so but it is fully summed up in the simple formula
we call the Golden rule 227
() recognizing germs of loveliness in the hateful gradually warms it in to life and make it lovely 228
The very being of the General of Reason consists in its governing individual events So then the essence of
Reason is such that its being never can have been completely perfected It always must be in a state of incipiency of
growth It is like the character of a man which consists in the ideas that he will conceive and in the efforts that he will
make and which only develops as the occasions actually arise Yet in all his life long no son of Adam has ever fully
163
Podemos nos utilizar de um esquema proposto por Potter (1997) para sintetizarmos o modo
de desenvolvimento ou crescimento influenciado pela atuaccedilatildeo da evoluccedilatildeo agapaacutestica
O desenvolvimento Agapaacutestico (terceiridade) novas ideias satildeo adotadas nem
descuidadamente nem cegamente mas por uma atraccedilatildeo imediata pela ideia em
si adivinhada antes mesmo de a mente possuir a ideia conscientemente pelo
poder da simpatia ou afinidade (continuidade da mente) tanto
a) pela comunidade que possui a ideia na personalidade coletiva e a passa aos
indiviacuteduos que de outra forma satildeo incapazes de alcanccedilaacute-la ou
b) Por um indiviacuteduo que descobre a ideia por si mesmo mas soacute porque estaacute em
simpatia com a comunidade e essa simpatia permitiu que ele experimentasse a
atratividade da ideia ou
c) Por um indiviacuteduo que descobre a ideia por si mesmo independentemente de
seus afetos humanos simplesmente em virtude da atratividade da ideia em si
(POTTER 1997 p 187)
4 A ORIGINALIDADE DA CAUSA FINAL PEIRCEANA
Uma vez delineado o papel da causalidade final na obra peirceana resta-nos enfatizar suas
principais caracteriacutesticas e apontar em que consiste a sua originalidade Para tanto indicaremos
em que medida sua concepccedilatildeo se distingue daquela proposta por Aristoacuteteles Peirce como jaacute foi
manifested what there was in him So then the development of Reason requires as a part of it the occurrence of
more individual events than ever can occur It requires too all the coloring of all qualities of feeling including
pleasure in its proper place among the rest This development of Reason consists you will observe in embodiment
that is in manifestation The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in the
year 4004 BC but is going on today and never will be done is this very development of Reason I do not see how
one can have a more satisfying ideal of the admirable than the development of Reason so understood The one thing
whose admirableness is not due to an ulterior reason is Reason itself comprehended in all its fullness so far as we
can comprehend it Under this conception the ideal of conduct will be to execute our little function in the operation
of the creation by giving a hand toward rendering the world more reasonable whenever as the slang is it is up to
us to do so In logic it will be observed that knowledge is reasonableness and the ideal of reasoning will be to
follow such methods as must develop knowledge the most speedily
164
dito considerava-se um seguidor da noccedilatildeo aristoteacutelica de causa final juiacutezo que natildeo nos parece
ser totalmente preciso Indicaremos a seguir para efeito de comparaccedilatildeo alguns aspectos
presentes em ambas as noccedilotildees
Natildeo eacute pretensatildeo deste trabalho realizar um estudo que compreenda o todo da noccedilatildeo de
causalidade final presente na obra aristoteacutelica A quantidade de estudos sobre esse toacutepico eacute
bastante grande de tal maneira que propor uma interpretaccedilatildeo da noccedilatildeo sem o estabelecimento de
um diaacutelogo com essa produccedilatildeo seria visto como suspeito Todavia dada a proximidade entre as
ideias sobre causalidade final dos dois filoacutesofos reconhecida por Peirce e pelos estudiosos de sua
obra cabe aqui apenas a indicaccedilatildeo daqueles aspectos que satildeo semelhantes em ambas as
concepccedilotildees e aqueles que diferenciam a concepccedilatildeo peirceana e expressam sua originalidade
Para contrastar com a concepccedilatildeo peirceana veremos o que Aristoacuteteles diz no segundo livro
da Fiacutesica texto claacutessico para a compreensatildeo da noccedilatildeo de causa final no autor Para o que nos
interessa neste momento podemos perceber que Aristoacuteteles busca responder agraves seguintes
questotildees que podem ser colocadas na forma de um dilema ldquoa natureza procede apenas por
necessidade e natildeo com vista de finsrdquo ou ldquoa natureza aleacutem de proceder por necessidade opera
tambeacutem teleologicamenterdquo como indica Angioni (2006 p 37) Tendo estabelecido que as coisas
acontecem por necessidade na natureza mas tambeacutem motivadas pelo acaso o que acaba por
produzir acontecimentos que satildeo frutos natildeo da necessidade mas do encontro de cadeias causais
necessaacuterias independentes Cabe perguntar qual a causa do encontro dessas cadeias
independentes de eventos Angioni indica que Aristoacuteteles reconhece duas possibilidades ou as
coisas se datildeo por concomitacircncia isto eacute ldquoas seacuteries causais se agrupam bdquoespontaneamente‟ () sem
que nenhuma causa anterior explique por que tal conjunccedilatildeo de seacuteries viria a ser necessaacuteriardquo
(2006 p 42) e acrescenta ldquoou tais seacuteries compotildeem-se entre si sob um princiacutepio anterior que
exige a composiccedilatildeo das mesmas sob certa ordemrdquo (ANGIONI 2006 p 46)
O exemplo da parede de pedra pode ajudar na compreensatildeo da relaccedilatildeo entre aquilo que
acontece por natureza isto eacute necessariamente e aquilo que ocorre em vista de um fim Na
parede as pedras e alicerces naturalmente pesados tecircm a tendecircncia a se deslocar para baixo e
165
constituem a base e acima deles se encontram as estruturas de madeira que sendo mais leves tecircm
a tendecircncia de se deslocarem para o alto (com relaccedilatildeo agraves pedras) A parede seraacute necessariamente
construiacuteda com pedras que teratildeo a tendecircncia de se deslocar para baixo As caracteriacutesticas
inerentes aos materiais como a pedra e a funccedilatildeo a ser desempenhada pela parede se combinam de
modo que podemos dizer que haacute uma necessidade que ela seja desse modo Aristoacuteteles diz que
ldquoessas coisas natildeo se geram sem os itens que possuem uma natureza necessaacuteria mas natildeo satildeo
devido a esses itens a natildeo ser como mateacuteria mas satildeo em vista de algordquo (ARISTOacuteTELES 2002
200a 7-10) Haacute portanto um plano de desenvolvimento conduzido pela necessidade de
acabamento que natildeo pode se dar a natildeo ser com a junccedilatildeo com aquilo que eacute necessaacuterio As quatro
causas atuariam concomitantemente sendo a mais primordial a causa final ou acabamento
Angioni indica que para Aristoacuteteles ldquoa causa final () deve receber mais atenccedilatildeo porque ela eacute
bdquocausa da mateacuteria‟ natildeo o inverso ()rdquo (ANGIONI 2006 P 54)
A partir da diferenciaccedilatildeo das causas em quatro tipos distintos proposta por Aristoacuteteles
(Fiacutesica 194b15-195b30) Peirce elabora uma aplicaccedilatildeo das noccedilotildees agraves suas proacuteprias ideias e
afirma
A causa interna de individuaccedilatildeo eacute chamada a causa material Assim partes
integrantes de um assunto ou de um fato formam sua mateacuteria ou causa
material A causa externa de individuaccedilatildeo eacute chamada de eficiente ou a causa
eficiente e o causatum eacute chamado de efeito A causa interna de definiccedilatildeo eacute
chamada causa formal ou forma Todos estes fatos que constituem a definiccedilatildeo
de um assunto ou fato compotildeem sua forma A causa externa de definiccedilatildeo eacute
chamada de causa final ou fim Espera-se que estas declaraccedilotildees seratildeo
consideradas mais certeiras do que aquelas de Aristoacuteteles e os escolaacutesticos como
o alvo que eles miravam (EP 2 315-6 1904)229
229 The individuating internal cause is called the material cause Thus the integrant parts of a subject or fact form its
matter or material cause The individuating external cause is called the efficient or efficient cause and the causatum
is called the effect The defining internal cause is called the formal cause or form All these facts which constitute
the definition of a subject or fact make up its form The defining external cause is called the final cause or end It is
hoped that these statements will be found to hit a little more squarely than did those of Aristotle and the scholastics
the bull‟s eye at which they aimed (EP 2 p 315-6 1904)
166
Assim como a de Aristoacuteteles a noccedilatildeo de causa final peirceana eacute explicitamente
antropomoacuterfica Como jaacute indicamos anteriormente Peirce reconhecia esse aspecto de sua teoria e
o endossava indicando que natildeo poderia ser de outra forma A principal justificativa para esta
forma de exposiccedilatildeo reside na ideia de que tudo o que pode ser conhecido tudo que eacute
compreensiacutevel para o homem deve ter a sua marca Isso no entanto natildeo significa que a accedilatildeo
propositada a forma de causalidade final mais familiar aos homens seja sua uacutenica expressatildeo A
causalidade final eacute como vimos na obra de Peirce ubiacutequa
Toda causalidade final eacute um tipo ideal para ambos os filoacutesofos aquilo que exerce o poder
causal do tipo final natildeo pode ser algo atual ou individual mas antes eacute a expressatildeo de certas
potencialidades jaacute delineadas no presente Natildeo existe qualquer evento real futuro que exerccedila
algum tipo de atraccedilatildeo sobre o desenrolar dos eventos conduzindo-os a um predeterminado fim
Causalidade final e causalidade eficiente natildeo podem existir de maneira autocircnoma a
consciecircncia desta complementaridade eacute ainda mais viva em Peirce Como vimos todas as
instacircncias de atuaccedilatildeo causal recebem a influecircncia de trecircs diferentes forccedilas causais da causa
eficiente do acaso e da causa final
Por outro lado para Aristoacuteteles eacute como indica Short (1981b p 371) ldquoUm tipo geral eacute uma
causa final por causa do bem que caracterizaccedilatildeo qualquer uma de suas atualizaccedilotildeesrdquo Haacute na obra
Aristoteacutelica uma relaccedilatildeo estreita entre causa final e a realizaccedilatildeo do bem supremo de cada ser ou
objeto Esse aspecto natildeo se encontra presente nas consideraccedilotildees de Peirce a causalidade final natildeo
atua em funccedilatildeo da atualizaccedilatildeo de algum elemento substancial Embora natildeo possa existir qualquer
processo do qual ela esteja ausente isso natildeo implica para Peirce que ela tenha que estar definida
com algum grau de precisatildeo desde o princiacutepio Haacute reconhece o filoacutesofo a possibilidade de que
no decorrer do processo a proacutepria causa final se altere e gere novos resultados em funccedilatildeo de
novos elementos ou situaccedilotildees que podem ter sido colocados em cena pela atuaccedilatildeo do acaso
Como vimos a atuaccedilatildeo do acaso eacute uma condiccedilatildeo para a existecircncia de causas finais na concepccedilatildeo
peirceana e nisto elas se distinguem do conceito aristoteacutelico pois para o estagirita a atuaccedilatildeo do
167
acaso implica na ausecircncia de causa final Pode-se acrescentar a essas diferenccedilas a ideia peirceana
de que aacutegape ndash ou amor criativo ndash eacute a mais pura expressatildeo da causalidade final
5 CAUSA FINAL E CLASSIFICACcedilAtildeO NATURAL
O esforccedilo para tornar a causalidade final compreensiacutevel e a defesa do seu lugar nos eventos
do cosmo respondem a uma necessidade bastante presente nos vaacuterios periacuteodos da produccedilatildeo
peirceana o de tornar a ciecircncia um empreendimento possiacutevel e natildeo uma mera ficccedilatildeo arbitraacuteria O
problema da relaccedilatildeo do homem com o mundo tambeacutem denominado de problema da existecircncia do
mundo exterior eacute o objeto da inquietaccedilatildeo de Peirce Esse aspecto da justificaccedilatildeo da causalidade
final ficaraacute mais claro ao tratarmos das ideias de Peirce quanto agrave classificaccedilatildeo natural (cf
HULSWIT 1997)
Hawkins (2007) afirma que o tratamento que Peirce dispensa agrave classificaccedilatildeo natural no
texto On science and natural classes de 1902 pode parecer estranho pois ldquoEm vez de comeccedilar
com os elementos baacutesicos do mundo fiacutesico tratados como se o caraacuteter que ele nos parece ter seja
de fato o seu caraacuteter independente de nossa observaccedilatildeo (em si mesmos) Peirce comeccedila com a
questatildeo de como o mundo da cientista se revela para elardquo (HAWKINS 2007 p 530) E a
resposta a partir da qual Peirce desenvolve seu texto eacute a de que o mundo se revela natildeo como um
caos desordenado mas antes se apresenta pleno de regularidades que permite ao cientista dividi-
lo em grupos distintos
Eacute a causa final o princiacutepio que permite ao cientista agrupar os diferentes aspectos do
mundo Em particular ldquo() o desejo [como vimos a mais familiar forma de causa final] cria
classes e classes extremamente amplasrdquo (EP 2 p 118 1902)230
Ao tratar da classificaccedilatildeo
natural das ciecircncias Peirce afirma que se queremos conhecer em quais classes as ciecircncias estatildeo
230 () desire creates classes and extremely broad classes
168
naturalmente divididas basta consultar uma lista dos perioacutedicos existentes O que cria as classes
eacute o desejo de conhecer dos cientistas Esse desejo contudo natildeo eacute o produtor de uma lista
arbitraacuteria o mundo impotildee limites Embora algueacutem possa querer inventar uma ciecircncia que ainda
natildeo exista ela soacute sobreviveraacute se espelhar alguns aspectos do mundo que lhe resiste O mundo eacute
definido por Peirce da seguinte maneira
() o mundo externo (isto eacute o mundo que eacute comparativamente externo) natildeo
consiste apenas de objetos existentes nem apenas destes e de suas reaccedilotildees mas
ao contraacuterio seus mais importantes reais tecircm o modo de ser daquilo que o
nominalista chama de meras palavras isto eacute tipos gerais e would-bes O
nominalista estaacute certo em dizer que eles satildeo substancialmente da natureza das
palavras mas o seu bdquomero‟ revela uma completa incompreensatildeo do que o nosso
mundo cotidiano consiste (CP 8 sect 191 1904)231
Para finalizar Peirce indica que as causas finais possuem trecircs caracteriacutesticas elas satildeo
sempre gerais sempre vagas e sempre possuem certa amplitude (longitude) Satildeo gerais como jaacute
vimos porque aquilo que atrai os acontecimentos eacute sempre de certo tipo fruto da mediaccedilatildeo Satildeo
vagas porque nem o modo de sua realizaccedilatildeo nem o resultado estatildeo determinados de antematildeo
Finalmente satildeo amplas porque ainda quando natildeo realizadas plenamente qualquer outra
possibilidade que dela se aproxima jaacute eacute aceitaacutevel
231 () the external world (that is the world that is comparatively external) does not consist of existent objects
merely nor merely of these and their reactions but on the contrary its most important reals have the mode of being
of what the nominalist calls mere words that is general types and would-bes The nominalist is right in saying that
they are substantially of the nature of words but his mere reveals a complete misunderstanding of what our
everyday world consists of
169
CONCLUSAtildeO
() the only possible justification for a hypothesis is that it renders the facts
comprehensible (CP 8 sect 168 1903)
170
A descriccedilatildeo da cosmogonia elaborada por Peirce como uma hipoacutetese que permite ampliar o
horizonte da inteligibilidade humana e garantir a possibilidade da elaboraccedilatildeo de teorias
cientiacuteficas exitosas forneceu os elementos iniciais para a compreensatildeo de sua filosofia Criada
sob a maacutexima loacutegica mais fundamental sintetizada na expressatildeo ldquonatildeo bloquear o caminho da
investigaccedilatildeordquo a cosmogonia peirceana identifica e nomeia as trecircs categorias metafiacutesicas
formadoras do seu sistema ndash acaso existente e lei ndash e a maneira como se combinam para
constituir a realidade revelada pela experiecircncia Tais categorias satildeo os correlatos hipoteacuteticos das
categorias faneroscoacutepicas232
reveladas pela experiecircncia ndash primeiridade secundidade e
terceiridade Uma boa hipoacutetese explicativa que torna o mundo da experiecircncia ndash tal como o
exprerienciamos ndash compreensiacutevel agrave nossa inteligecircncia eacute a de pensaacute-lo como originaacuterio de um
processo evolutivo a partir do acaso absoluto e cujo desenvolvimento se daacute sob a influecircncia da
lei da mente e da causalidade final
Uma consequecircncia dessa hipoacutetese eacute a de que os fenocircmenos satildeo sem exceccedilatildeo o resultado
de um processo contiacutenuo de aumento da complexidade e da regularidade do mundo Peirce indica
que sua filosofia eacute construiacuteda sobre a hipoacutetese de que todos os fenocircmenos satildeo partes de um
continuum Agrave apresentaccedilatildeo das consequecircncias desta hipoacutetese e a teoria assim constituiacuteda o
filoacutesofo daacute o nome de sinequismo e indica que ela sintetiza sua filosofia em uma uacutenica palavra
(cf CP 4 sect 584 1906) A adoccedilatildeo do sinequismo como de qualquer hipoacutetese tem por motivaccedilatildeo
a esperanccedila de tornar os fenocircmenos inteligiacuteveis sendo esta diz Peirce sua principal justificaccedilatildeo
A ideia de continuidade desenvolvida por Peirce eacute original ainda que elaborada a partir da
reflexatildeo das definiccedilotildees presentes nas obras de Aristoacuteteles e Kant e faz uso da noccedilatildeo de
infinitesimal como seu constituinte fundamental O continuum pensado por Peirce natildeo possui
pontos atuais mas apenas pontos virtuais denominados de infinitesimais a partir dos quais
continuidades podem ser desenvolvidas infinitamente O modelo principal do continuum eacute o
tempo e o espaccedilo
232 Peirce por vezes denomina a ciecircncia do que nos aparece como faneroscopia e em outras de fenomenologia
171
O modo de desenvolvimento ou crescimento do continuum recebe o nome de evoluccedilatildeo O
processo evolutivo faz surgir um universo que apresenta caracteriacutesticas de espontaneidade e
liberdade manifestas em sua grande variedade e novidade mas tambeacutem regularidade expressa
por suas leis Como vimos essas duas caracteriacutesticas cuja origem encontra-se no acaso e na lei
da mente ou lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos satildeo necessaacuterias para que se possa construir teorias que
natildeo postulem o incognosciacutevel nem produzam uma imagem congelada do universo como aquela
oferecida pelo mecanicismo De um lado a diversidade e a novidade satildeo constatadas tanto por
meio de certas ciecircncias como a biologia e a paleontologia mas tambeacutem pela atitude de qualquer
pessoa que olhe para o mundo com atenccedilatildeo e sem preconceitos A diversidade diz Peirce eacute o
aspecto mais marcante que a experiecircncia nos revela Do outro lado as regularidades tambeacutem se
impotildeem na observaccedilatildeo principalmente para aqueles que desenvolveram grande poder de
abstraccedilatildeo e aprenderam a reconhecer nos mais variados fenocircmenos certos traccedilos que se repetem
Contudo ainda que as regularidades estejam atuando continuamente e sob o efeito da lei da
mente tornando-se mais e mais regular nunca atingem o status de absolutas A atualizaccedilatildeo de
qualquer lei eacute o momento da interferecircncia do acaso que pode ser imperceptiacutevel em certos
fenocircmenos e marcante em outros
A possibilidade de pensarmos um universo que se desenvolve sob a atuaccedilatildeo de princiacutepios
incognosciacuteveis eacute um caminho vedado pela filosofia peirceana Na medida em que a filosofia eacute
uma atividade intelectual que procura tornar a experiecircncia compreensiacutevel a postulaccedilatildeo do
incognosciacutevel eacute a negaccedilatildeo do proacuteprio empreendimento racional Se o universo entretanto fosse
tal como descrito pelo mecanicismo ou bdquonecessitarismo‟ segundo o termo empregado pelo autor
isto eacute completamente determinado por leis absolutas natildeo poderia apresentar as caracteriacutesticas
reveladas pela experiecircncia
Em acreacutescimo agrave tarefa de tornar o mundo em todos os seus detalhes inteligiacutevel pode-se
verificar no surgimento de teorias cientiacuteficas que tratam especificamente de fenocircmenos
irreversiacuteveis uma outra fonte de motivaccedilatildeo para a constituiccedilatildeo de uma filosofia evolutiva que
tem por base uma matriz ontoloacutegica indeterminista como vimos no terceiro capiacutetulo desta tese
172
Uma das tarefas a que nos propomos realizar neste trabalho foi a de compreender o lugar da
cosmogonia proposta por Peirce no interior de seu sistema filosoacutefico A hipoacutetese que motivou
essa investigaccedilatildeo foi a de que sua cosmogonia desempenha um papel importante na validaccedilatildeo do
empreendimento cientiacutefico A constituiccedilatildeo de uma ciecircncia adequada agrave determinaccedilatildeo de uma
conduta racional para o futuro pareceu-nos desde o iniacutecio o alvo que Peirce mirava Vimos no
capiacutetulo trecircs sobre a evoluccedilatildeo de que maneira essa hipoacutetese serve ao propoacutesito de impedir o
regresso infinito das explicaccedilotildees substituindo uma perspectiva (que poderiacuteamos denominar de
bdquofundacionista‟) por outra mais adequada construiacuteda em moldes geneacuteticos
Outro grande problema sobre o qual Peirce se debruccedilou durante muitos anos de sua
investigaccedilatildeo foi o de justificar a esperanccedila de que as hipoacuteteses poderiam de alguma maneira ser
refinadas a ponto de proporem explicaccedilotildees aceitaacuteveis para os fenocircmenos da experiecircncia O
primeiro candidato proposto como capaz de desempenhar esta funccedilatildeo foi a induccedilatildeo que no
entanto apoacutes uma vigorosa anaacutelise mostrou-se muito eficaz quanto agrave tarefa de eliminar hipoacuteteses
equivocadas mas completamente ineficaz quanto agrave tarefa de nos deixar mais proacuteximos de uma
explicaccedilatildeo verdadeira do mundo da experiecircncia A abduccedilatildeo surge entatildeo como a uacutenica esperanccedila
para a realizaccedilatildeo da ciecircncia Se a ciecircncia eacute possiacutevel eacute no momento da elaboraccedilatildeo das hipoacuteteses a
serem testadas que a capacidade humana de conhecer deve se manifestar Eacute a hipoacutetese ela
mesma que deve nos colocar na boa direccedilatildeo A suposta capacidade autocorretiva da induccedilatildeo
mostrou-se uma ilusatildeo
A abduccedilatildeo eacute descrita como um dos trecircs tipos de raciociacutenios loacutegicos contudo Peirce eacute muito
claro na indicaccedilatildeo de que ela natildeo passa de uma espeacutecie de adivinhaccedilatildeo desse modo
eminentemente faliacutevel sem qualquer garantia de que a hipoacutetese proposta seraacute a melhor
Entretanto o filoacutesofo jaacute constatava os avanccedilos que a ciecircncia do seu tempo havia atingido e natildeo
poderia haver outra fonte aleacutem da abduccedilatildeo que possui exclusividade heuriacutestica no seu sistema A
efetividade da abduccedilatildeo eacute explicada de iniacutecio a partir de uma perspectiva evolucionista um
instinto para o conhecimento que teria se desenvolvido a partir da necessidade de modelar a
conduta adequada para a sobrevivecircncia
173
A perspectiva evolutiva no entanto dificilmente pode ser aceita como uma explicaccedilatildeo
adequada para a elaboraccedilatildeo de teorias que vatildeo muito aleacutem daquilo que diz respeito agrave necessidade
de sobrevivecircncia humana A causa final entendida como o tipo de causalidade no qual o todo
chama por suas partes (cf CP 1 sect 220 1902) ou evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902) pode ser vista
natildeo apenas como o princiacutepio que deu origem e continua atuando atualmente na constituiccedilatildeo do
universo como tambeacutem o princiacutepio por meio do qual o ser humano fruto do mesmo processo
evolutivo consegue adivinhar as boas hipoacuteteses explicativas
Desse modo o que Peirce faz ao elaborar a hipoacutetese que explica a origem a
desenvolvimento do universo vai aleacutem da criaccedilatildeo de uma cosmogonia O filoacutesofo identifica um
princiacutepio sob o qual o universo se desenvolveu ndash a causalidade final cujo principal efeito indica
Peirce eacute a de tornar o universo mais razoaacutevel desenvolver a sua razoabilidade concreta (cf CP
1 sect 602 1903 CP 1 sect 615 1903)
A perspectiva evolucionaacuteria de Peirce prevecirc que quanto ao ser humano o futuro traraacute por
meio do desenvolvimento do conhecimento racional do mundo a possibilidade do
estabelecimento de condutas mais e mais autocontroladas quanto ao universo o futuro muito
mais amplo traraacute a crescente influecircncia da lei na determinaccedilatildeo de cada evento Em um futuro
suficiente distante as regularidades estaratildeo tatildeo presentes que impossibilitaratildeo a existecircncia da
vida manifestaccedilatildeo por excelecircncia da espontaneidade cada acontecimento seraacute fundamentalmente
determinado pela atuaccedilatildeo das leis em um universo que poderia ser comparado a um imenso
cristal Essa descriccedilatildeo como vimos eacute apresentada por Peirce em sua cosmogonia (cf CP 6 sect 33
1891) e parece indicar que a cristalizaccedilatildeo dos haacutebitos no futuro distante do universo corresponde
agrave realizaccedilatildeo da razoabilidade concreta Entretanto se esta interpretaccedilatildeo estaacute correta o estado
final a que tende o universo eacute aquele descrito pelos necessitarista e muito criticado por Peirce
como vimos A alternativa que nos parece mais adequada e coerente ao conjunto das ideias
peirceanas algumas delas apresentadas neste trabalho eacute a de pensar as categorias como
inesgotaacuteveis e atuantes em qualquer momento do desenvolvimento do universo propiciando o
infinito crescimento da ordem e da diversidade A filosofia de Peirce pode ser entendida como a
tentativa de mostrar o modo como essas duas caracteriacutesticas inerentes agrave nossa experiecircncia do
174
mundo ndash a diversidade e a regularidade ndash satildeo compatibilizadas na concepccedilatildeo de uma matriz
ontoloacutegica indeterminista mas geradora de ordem
175
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MAX ROGEacuteRIO VICENTINI
O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA COSMOLOGIA DE CHARLES
SANDERS PEIRCE
Tese apresentada ao programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Filosofia do Departamento de
Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e
Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo
Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em
Filosofia sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr
Pablo Rubeacuten Mariconda
Satildeo Paulo
2011
Autorizo a reproduccedilatildeo e divulgaccedilatildeo total ou parcial deste trabalho por
qualquer meio convencional ou eletrocircnico para fins de estudo e
pesquisa desde que citada a fonte
Vicentini Max Rogeacuterio
O papel da causalidade final na cosmologia de Charles Sanders
Peirce Max Rogeacuterio Vicentini - 2011-
182 f
Tese (Doutorado) Universidade de Satildeo Paulo 2011 Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo
Orient Prof Dr Pablo Rubeacuten Mariconda
1 Cosmologia
Nome VICENTINI Max Rogeacuterio
Tiacutetulo O papel da causalidade final na cosmologia de Charles Sanders Peirce
Tese apresentada agrave Faculdade de Filosofia Letras
e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo
Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em
Filosofia
Aprovado em
Banca Examinadora
Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________
Julgamento ___________ Assinatura ______________
Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________
Julgamento ___________ Assinatura ______________
Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________
Julgamento ___________ Assinatura ______________
Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________
Julgamento ___________ Assinatura ______________
Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________
Julgamento ___________ Assinatura ______________
DEDICATOacuteRIA
Ao meu pai Armando Vicentini in memoriam
agrave minha matildee Aparecida Giraldeli Vicentini
e aos amigos presentes e ausentes
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo ao Professor Dr Pablo Rubeacuten Mariconda pelo tempo dedicado a minha
orientaccedilatildeo e ao professor Dr Michel Paty cujos cursos e conversas expandiram a minha
compreensatildeo sobre o tema desta tese e suas relaccedilotildees com problemas mais amplos e atuais bem
como por sua disposiccedilatildeo em me orientar no periacuteodo de pesquisa junto agrave Universiteacute Paris VII ndash
Denis Diderot e agrave equipe Sphere
Agrave CAPES pela bolsa que me permitiu passar um ano pesquisando em Paris
Aos membros da banca de qualificaccedilatildeo pela disponibilidade leitura atenta e boas sugestotildees
Ao setor de capacitaccedilatildeo docente da Proacute-Reitora de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo e aos
professores do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Maringaacute que apoiaram e
aceitaram meu pedido de afastamento para a realizaccedilatildeo desta tese
Aos meus antigos professores Lauro Nice e Betty cujas influecircncias foram decisivas para a
realizaccedilatildeo deste trabalho
Aos meus amigos pelo incentivo leitura e discussotildees do texto aqui apresentado Aos
integrantes do Grupo de Pesquisa coordenado pelo Prof Pablo especialmente a Adriana
Belmonte
Agrave minha matildee Aparecida e minhas irmatildes pela alegria que sempre acontece quando estamos
juntos
Quero agradecer especialmente ao Douglas Ameacutelia Sandro Liacutegia Bima Wagner Nei
Ivan Ernane e Rosacircngela que tornaram esses anos de pesquisas mais leves ou mais intensos ou
ambos
RESUMO
VICENTINI M R O papel da causalidade final na cosmologia de Charles Sanders Peirce
2011 182 f Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas
Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2011
Trata-se de uma proposta de investigaccedilatildeo das ideias cosmoloacutegicas de Charles S Peirce
particularmente das que dizem respeito agrave pertinecircncia da inclusatildeo de esquemas de explicaccedilatildeo que
faccedilam uso da causalidade final como instacircncia determinante do desenvolvimento dos fenocircmenos
naturais Anterior agrave avaliaccedilatildeo desse tipo de explicaccedilatildeo cabe uma investigaccedilatildeo sobre as
caracteriacutesticas mais relevantes de seu pensamento que o proacuteprio autor julgava construiacutedo
arquitetonicamente Com esse objetivo centramos a anaacutelise no conceito de continuum que pode
ser visto como fundamental para o desenvolvimento da obra de Peirce Eacute o estudo do continuum
que permitiraacute e conduziraacute a investigaccedilatildeo das categorias ontoloacutegicas peirceanas acaso existente e
lei A passagem do acaso agrave lei isto eacute a proacutepria origem do cosmos se daacute por um processo
evolutivo que tem na lei da mente seu principal motor A lei da mente por sua vez atua de modo
finaliacutestico tornando mais provaacutevel o desenvolvimento dos fenocircmenos em certas direccedilotildees
restringindo assim o horizonte das possibilidades sem contudo esgotaacute-lo
Palavras-chave cosmologia sinequismo abduccedilatildeo teleologia
ABSTRACT
VICENTINI M R The role of final causality in the cosmology of Charles Sanders Peirce
2011 182 f Thesis (PhD) - Faculty of Philosophy Letters and Sciences University of Sao
Paulo Sao Paulo 2011
This thesis is about the cosmological ideas of Charles S Peirce particularly those concerning the
relevance of the inclusion of explanatory schemes that make use of final causality as an instance
determinant of the development of natural phenomena Before the evaluation of this type of
explanation it is important to perform an investigation into the most relevant features of his
thought which the author believed was architecturally built With this aim we focus on the
concept of the continuum which can be seen as fundamental to the development of the work of
Peirce It is the study of the continuum that will lead to investigation of Peirces ontological
categories chance existent and law The passage of chance to law that is the very origin of the
cosmos is given by an evolutionary process in which the law of the mind is its main engine The
law of the mind in turn acts in a finalistic way making more probable the development of
phenomena in certain directions thus restricting the horizon of possibilities without however
exhausting it
Keywords cosmology synechism abduction teleology
LISTA DE ABREVIACcedilOtildeES
CP x sect y - CCollected Papers of Charles Sanders Peirce volume x paraacutegrafo y ano de composiccedilatildeo
W x p y - Writings of Charles S Peirce A Chronological Edition volume x p y ano de
composiccedilatildeo
CN x p y
MS x
-
-
Contributions to The Nation volume x p y (Alguns estudiosos usam N)
Manuscritos nuacutemero do manuscrito
EP x p y - The Essential Peirce Selected Philosophical Writings volume x p y
HP x py - Historical Perspectives on Peirces Logic of Science A History of Science volume x
p y
NEM x p y - The New Elements of Mathematics by Charles S Peirce volume x p y (Alguns
estudiosos usam NE)
CD p x Century Dictionary p x (Alguns estudiosos usam C)
Sumaacuterio
INTRODUCcedilAtildeO 11
CAPIacuteTULO 1 - A HIPOacuteTESE COSMOLOacuteGICA 28
11 NAtildeO BLOQUEAR O CAMINHO DA INVESTIGACcedilAtildeO 29
12 UMA ESTOacuteRIA BIZARRA 38
121 O NADA 41
122 O ACASO 50
123 A DOUTRINA DA NECESSIDADE 54
13 A LEI 64
131 O IDEALISMO OBJETIVO 65
132 A LEI DA MENTE 66
CAPIacuteTULO 2 - O SINEQUISMO 68
21 O CONTINUUM E A EPISTEMOLOGIA 71
211 OS INFINITESIMAIS E O CONTINUUM 74
22 OS QUATRO ESTAacuteGIOS DO DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE CONTINUUM 78
221 O PERIacuteODO PREacute-CANTORIANO 81
222 PERIacuteODO CANTORIANO 83
223 PERIacuteODO KANTIANO 86
CAPIacuteTULO 3 - A EVOLUCcedilAtildeO 89
31 ASPECTOS EPISTEMOLOacuteGICOS DA HIPOacuteTESE EVOLUCIONAacuteRIA 90
32 AS RAIacuteZES NA CIEcircNCIA DO SEacuteCULO XIX 94
33 OS TREcircS TIPOS DE EVOLUCcedilAtildeO 104
34 OS TREcircS MODELOS DE EXPLICACcedilAtildeO 106
35 A EVOLUCcedilAtildeO E A COSMOLOGIA 107
36 O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA EVOLUCcedilAtildeO 109
37 EVOLUCcedilAtildeO E AUTOCONTROLE 111
CAPIacuteTULO 4 - A ABDUCcedilAtildeO 115
41 ABDUCcedilAtildeO E CRIACcedilAtildeO DE HIPOacuteTESES EXPLICATIVAS 116
42 OS TREcircS TIPOS DE RACIOCIacuteNIO 128
CAPIacuteTULO 5 - A CAUSALIDADE FINAL 140
51 O MODO DE ATUACcedilAtildeO DA CAUSALIDADE FINAL 143
52 CAUSALIDADE FINAL E CAUSALIDADE EFICIENTE 151
53 CAUSA FINAL E EVOLUCcedilAtildeO ndash AacuteGAPE OU O AMOR CRIATIVO 159
54 A ORIGINALIDADE DA CAUSA FINAL PEIRCEANA 163
55 CAUSA FINAL E CLASSIFICACcedilAtildeO NATURAL 167
CONCLUSAtildeO 169
REFEREcircNCIAS 175
11
INTRODUCcedilAtildeO
Hume whose cogitations led up to the recognition of Association as the one law of
mind most judiciously remarks This uniting principle among ideas is not to be
considered as an inseparable connexion for that has been already excluded from the
imagination Nor yet are we to conclude that without it the mind cannot join two
ideas for nothing is more free than that faculty but we are only to regard it as a gentle
force which commonly prevailsrdquo That phrase a gentle force which commonly
prevails describes the phenomenon to perfection (CP 7 sect 389 1893)
12
A obra de Charles Sanders Peirce (1839 ndash 1914) eacute admiraacutevel pela complexidade rigor e
abrangecircncia Peirce eacute considerado um dos maiores senatildeo o maior dos filoacutesofos americanos e
poucos foram os campos que permaneceram fora de seu interesse Mesmo tendo se formado em
Quiacutemica e trabalhado durante muitos anos na United States Coast and Geodetic Survey1 Peirce
foi uma dessas mentes inquietas que sobre tudo investigou e que sobre quase tudo escreveu
fazendo contribuiccedilotildees originais e relevantes para vaacuterias aacutereas do saber
Como intelectual Peirce considerava-se um loacutegico tido pelos historiadores como um dos
pais da loacutegica moderna desenvolveu a loacutegica das relaccedilotildees e formulou a loacutegica dos grafos
existenciais mas destacou-se tambeacutem nos estudos da matemaacutetica (teoria da probabilidade) e
sobretudo na filosofia das ciecircncias para a qual contribuiu com uma nova teoria dos argumentos
dedutivos indutivos e abdutivos Fundador do pragmatismo norte-americano sua grande
contribuiccedilatildeo agrave filosofia foi a criaccedilatildeo da semioacutetica ou a loacutegica segundo seu entendimento
Como aponta Silveira (1982 p 78) Peirce foi antes de tudo um cientista Um cientista
entretanto com algumas peculiaridades proacuteprias inclusive na formaccedilatildeo que se recebia a sua
eacutepoca Antes da universidade recebera o ensino claacutessico e como era comum as atividades em
casa sobrepujavam as desenvolvidas na escola Filho de um professor de Matemaacutetica de Harvard
desde cedo habituou-se agrave investigaccedilatildeo e agrave reflexatildeo sob a orientaccedilatildeo de seu proacuteprio pai que via
nele o potencial de um gecircnio
Peirce foi nomeado professor da entatildeo receacutem-fundada Universidade John Hopkins em 1879
mas em 1884 teve seu contrato de trabalho sumariamente cancelado em circunstacircncias obscuras
Natildeo tendo mais conseguido manter qualquer posto acadecircmico isso em prejuiacutezo segundo Nagel
(1982) do desenvolvimento da Filosofia posterior e de sua proacutepria Filosofia Peirce tinha entatildeo
quarenta e quatro anos
1 Eacute uma agecircncia federal dos Estados Unidos que define e gerencia um sistema de coordenadas nacional fornecendo a
base para o transporte e a comunicaccedilatildeo elaborando mapas e graacuteficos e um grande nuacutemero de aplicaccedilotildees da ciecircncia e
da engenharia Nela Peirce trabalhou de 1859 a 1891
13
O conjunto de suas ideias jaacute foi algumas vezes comparado a um labirinto com muitas
entradas cujo fio de Ariadne que pode conduzir o leitor a salvo por entre suas diferentes
estruturas foi indicado pelo proacuteprio autor como sendo o sinequismo2 a teoria que identifica a
continuidade como uma hipoacutetese fundamental para toda investigaccedilatildeo nas palavras de Peirce
ldquo() a chave mestra que dizem-nos os adeptos destranca os misteacuterios da filosofiardquo (CP 1 sect 163
1897)3
Nesta introduccedilatildeo faremos um esboccedilo do mapa que nos conduziu durante essa investigaccedilatildeo
O alvo determinado desde o iniacutecio foi o de compreender o papel que a causalidade final
desempenha na cosmologia de Peirce A aproximaccedilatildeo natildeo se deu de modo direto se o alvo estava
determinado o mesmo natildeo se poderia dizer do caminho que foi sendo construiacutedo aos poucos
sedimentando-se ao longo dos anos da pesquisa A eleiccedilatildeo dos temas a proacutepria investigaccedilatildeo e a
sua apresentaccedilatildeo foram objeto de longa reflexatildeo O caminho mostrou-se cheio de surpresas e de
natildeo raros momentos de indecisotildees O resultado que agora apresento nesta tese traz a marca da
falibilidade que Peirce considerava caracteriacutestica tanto dos nossos processos de pensamento
quanto daqueles que deram origem e permanecem atuando na constituiccedilatildeo dos mais diferentes
aspectos do cosmos e que eacute intriacutenseco agrave proacutepria maneira de atuaccedilatildeo da causalidade final como
veremos agrave frente O processo de criaccedilatildeo de empatia com a obra de Peirce constituiu-se
lentamente e as boas hipoacuteteses de interpretaccedilatildeo ndash ao menos eacute nossa esperanccedila de que as que aqui
lanccedilamos o sejam ndash surgiram aos poucos
Eacute possiacutevel extrair das ideias de Peirce importantes indicaccedilotildees sobre a maneira pela qual
uma investigaccedilatildeo deve ser conduzida Natildeo podemos esquecer que sua grande realizaccedilatildeo consiste
na elaboraccedilatildeo de um meacutetodo adequado para orientar a conduta dos investigadores nos mais
variados campos incluindo aiacute o da pesquisa acadecircmica Essa caracterizaccedilatildeo parece ser de grande
auxiacutelio para compreendermos o desenvolvimento de sua proacutepria obra bem como para lanccedilar
alguma luz sobre o proacuteprio processo de elaboraccedilatildeo deste trabalho Toda investigaccedilatildeo eacute marcada
2 Sinequismo do grego synecheacutes eacute o nome que Peirce daacute agrave sua teoria da continuidade bem como ao seu sistema
filosoacutefico 3 () it is the master key which adepts tell us unlocks the arcana of philosophy
14
pelo objetivo que pode ou natildeo estar determinado de maneira clara A determinaccedilatildeo preacutevia natildeo
significa que o caminho e o resultado especiacutefico possam ser traccedilados e previstos nos miacutenimos
detalhes As surpresas que podem produzir desvios da rota eacute tambeacutem condiccedilatildeo para o crescimento
da compreensatildeo do tema ou das ideias do autor Natildeo se fechar ao inesperado eacute condiccedilatildeo para a
realizaccedilatildeo da pesquisa
Estar disposto a abrir matildeo de suas conclusotildees e ideias tatildeo logo a experiecircncia mostre que satildeo
inadequadas eacute a atitude mais honesta do verdadeiro cientista aquele que investiga por um
ldquoardente amor agrave verdaderdquo como diria Peirce (CP 8 notas 1900) Eacute desse modo que a
compreensatildeo aqui apresentada das ideias peirceanas sobre a causalidade final foi sendo formada
natildeo sem surpresas e desvios O mesmo movimento pode ser visto na obra do autor que natildeo se
nega a dialogar com as evidecircncias ainda que contraacuterias e em redefinir suas ideias com fins agrave
determinaccedilatildeo de um meio mais adequado ao fim almejado Na interpretaccedilatildeo aqui defendida o
fim maior de obra de Peirce eacute a defesa da possibilidade de uma ciecircncia feita a partir da
experiecircncia com todas as dificuldades envolvidas nas duas ideias
Embora se definisse como um loacutegico e tenha tido formaccedilatildeo em Quiacutemica poucas aacutereas do
saber entre as jaacute estabelecidas em seu tempo ou em processo de constituiccedilatildeo ficaram fora do
escopo de seu interesse e investigaccedilatildeo Essa caracteriacutestica estaacute em conformidade com a maacutexima
que anima seu pensamento ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo (CP 6 sect 64 1892 sect 273
1893) Podemos indicar dois traccedilos caracteriacutesticos de sua produccedilatildeo de um lado percebemos que
para Peirce nada pode ser aceito como um dado (cf CP 6 sectsect 35-65 1892) resistente portanto a
toda investigaccedilatildeo ou seja isso equivale a dizer que a pesquisa natildeo conhece limites e que para
tudo que possa ser problematizado deve haver um processo adequado de investigaccedilatildeo por meio
do qual uma resposta possa ser obtida Naturalmente uma consequecircncia desta tese eacute a de que seu
alcance ultrapassa o puramente epistemoloacutegico e indica que a ontologia dos processos naturais
possua em si mesma um aspecto noeacutetico De outro lado a busca do meacutetodo adequado (cf CP 5
sectsect 358-87 1877) e sua aplicaccedilatildeo aos diferentes campos do saber em estreita relaccedilatildeo com a tese
sinequista ao lado de sua inesgotaacutevel curiosidade sugerem uma hipoacutetese explicativa para a
abrangecircncia dos objetos estudados pelo autor
15
O rigor necessaacuterio ao meacutetodo que deve garantir a possibilidade de realizaccedilatildeo da ciecircncia
parece-nos ser o propoacutesito primaacuterio e sempre presente no desenvolvimento do pensamento
peirceano Em funccedilatildeo dessa preocupaccedilatildeo que eacute uma caracteriacutestica recorrente em muitos de seus
escritos e em consonacircncia com o juiacutezo que o proacuteprio autor fazia de sua obra discordamos
daqueles inteacuterpretes que encontram dificuldade em atribuir-lhe uma unidade (cf GOUDGE
1950 GALLIE 1952 MOORE and ROBIN 1964 WIENER 1964 entre outros) Natildeo haacute duacutevida
de que o seu pensamento evoluiu de que suas teorias sofreram alteraccedilotildees e de que suas hipoacuteteses
amadureceram no periacuteodo que compreende sua intensa produccedilatildeo e que se estende por mais de
cinquenta anos Natildeo obstante a unidade que lhe pode ser atribuiacuteda natildeo eacute a de um sistema cujos
axiomas encontram-se presentes desde os primeiros escritos e cujas implicaccedilotildees satildeo apenas
apresentadas de maneira mais clara agrave medida que sua obra vai se constituindo Como descrito
acima na atividade do cientista que natildeo se furta ao embate com a experiecircncia quando submete
suas ideias agrave prova dos experimentos agraves vezes se depara com resultados que a princiacutepio natildeo
haviam sido cogitados Peirce natildeo os ignora e ao elaborar novos instrumentos para trataacute-los vecirc-se
na situaccedilatildeo em que tem de abrir matildeo de certos aspectos de seu pensamento inicial com o objetivo
de tornar seu sistema coerente Assim a unidade que se encontra eacute decorrente da atitude frente
aos objetos do conhecimento mais do que daquela referente aos conteuacutedos de suas teorias que
como reconhece o autor como um homem de ciecircncia satildeo sempre provisoacuterios e hipoteacuteticos
Em alguns momentos do periacuteodo que compreende sua longa e extensa produccedilatildeo o meacutetodo
eacute diretamente tematizado e em outros parece estar ausente de suas preocupaccedilotildees mais imediatas
para depois de alguns anos surgir novamente Quanto a este aspecto Peirce parece retomar o
projeto da filosofia moderna Como veremos em seus primeiros textos debate diretamente com
Descartes a quem critica principalmente o estabelecimento da intuiccedilatildeo imediata clara e distinta
dos objetos como criteacuterio de distinccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso e como fundamento de toda
atividade cognitiva (cf CP 5 sectsect 264-5 1868 CP 5 sectsect 389-92 1878) Um de seus primeiros
passos em direccedilatildeo agrave compreensatildeo do pensamento cientiacutefico eacute a elaboraccedilatildeo de uma nova teoria da
accedilatildeo mental baseada na ideia de que toda cogniccedilatildeo eacute mediada (cf CP 5 sect 4 1868) Como natildeo
temos acesso imediato aos objetos nosso conhecimento traraacute a marca do provisoacuterio e do faliacutevel
fruto de uma seacuteria infinita de interpretaccedilotildees e ao mesmo tempo implicando que o objeto natildeo
16
pode ser absolutamente conhecido jaacute que o seu modo de ser eacute vago (cf CHAUVIREacute 1995 e
TIERCELIN 1993a e 1993b) As teorias produzidas pelo ser humano seratildeo deste modo faliacuteveis
e construiacutedas a partir de sua proacutepria experiecircncia do mundo tanto o externo que se lhe impotildee e
resiste como o interno cujos processos de constituiccedilatildeo natildeo satildeo de maneira alguma heterogecircneos
Aqui a hipoacutetese do continuum requer a coerecircncia do autor Natildeo haacute descontinuidade entre o
mundo do pensamento e o mundo real Ateacute mesmo esta distinccedilatildeo soa artificial e inadequada O
elemento central na perspectiva peirceana eacute o pensamento (cf CN 1 p 200 1893) A fim de fazer
avanccedilar sua compreensatildeo dos processos naturais e confirmar suas hipoacuteteses acerca do
funcionamento dos processos de constituiccedilatildeo de nossas teorias Peirce encontra no haacutebito ou
tendecircncia agrave aquisiccedilatildeo de haacutebitos um elemento unificador fundamental e que elimina a
descontinuidade entre as leis do pensamento e as leis da natureza que segundo essa perspectiva
natildeo diferem senatildeo pelos diferentes graus de rigidez do haacutebito que ambas em uacuteltima instacircncia
satildeo diante da unicidade existente entre homem e mundo a construccedilatildeo da ciecircncia eacute o
desenvolvimento de uma capacidade que nos eacute natural Em um texto de 1893 Peirce diz que ldquo()
minha longa investigaccedilatildeo dos processos do raciociacutenio cientiacutefico conduziu-me muitos anos atraacutes
agrave conclusatildeo de que a ciecircncia natildeo eacute nada mais do que o desenvolvimento de nossos instintos
naturaisrdquo (CP 6 sect 604 1893)4
Muitas ideias propostas ou retomadas por Peirce tecircm o dom de surpreender o leitor que se
aproxima de sua obra pela primeira vez e mesmo agravequeles que dela tecircm um conhecimento parcial
Entre essas ideias julgamos apropriado incluir a de causalidade final (cf CP 1 sect 211 sect 250 sect
269 1902 CP 6 sect 66 sect 101 1898) O espanto ao ler em seus textos uma defesa da necessidade
da causalidade final natildeo apenas no acircmbito das explicaccedilotildees mas tambeacutem como princiacutepio atuante
nos processos naturais eacute decorrente de certa imagem fixada na tradiccedilatildeo ocidental ao menos
desde Bacon5 de julgaacute-la obscurantista e contraacuteria ao empirismo Andrew Woodfield (1976 p 3)
4 () my long investigation of the logical process of scientific reasoning led me many years ago to the conclusion
that science is nothing but a development of our natural instincts 5 Como aponta Bacon a investigaccedilatildeo sobre causas finais eacute esteacuteril e como uma virgem consagrada a Deus nada
produz (cf SPEDDING 1989 p 571)
17
afirma que ldquoA ciecircncia moderna eacute no seu todo hostil agraves explicaccedilotildees teleoloacutegicasrdquo6 Se
considerarmos que Peirce foi educado desde muito jovem como loacutegico e cientista e que desse
modo estava familiarizado com o meacutetodo cientiacutefico que vigorava em seu tempo sua insistecircncia
na realidade da causalidade final pode parece fora de lugar
Se o juiacutezo de Aristoacuteteles sobre a causalidade final era de que ela consistia em um aspecto
inerente ao mundo (cf CP 1 sect 211 1902) o mesmo natildeo se pode dizer do juiacutezo de um cientista
do seacuteculo XIX Para os cientistas do seacuteculo XIX como para os cientistas do nosso tempo a
causalidade final parece envolver ao menos trecircs aspectos que lhe dificultam a concessatildeo da
cidadania cientiacutefica parece que ela envolve a ideia de (1) que existem eventos individuais no
futuro (2) que exercem algum tipo de influecircncia causal sobre o presente e (3) que tecircm o poder de
determinar um curso preciso de accedilatildeo a fim de que possam ser realizados (cf HULSWIT 1996 p
200-2) em outras palavras pode-se notar que os aspectos aqui levantados sinalizam para a
concepccedilatildeo de causalidade final como causalidade eficiente invertida
Segundo a compreensatildeo de Peirce (cf EP 2 p 315-6 1904 CP 1 sect 211 1902) as causas
podem ser divididas em dois grandes grupos como afirma jaacute havia sido indicado por
Aristoacuteteles aquele que compreende as eficientes ou eneacutergicas e aquele que compreende as ideais
ou finais A insuficiecircncia da utilizaccedilatildeo de esquemas explicativos que faccedilam uso de apenas um dos
dois grupos eacute claramente apontada por Peirce Em 1902 no texto ldquoA detailed classification of the
Sciencerdquo afirma que ldquoA causa final sem a causa eficiente eacute inoacutecua () A causa eficiente sem a
causa final entretanto eacute pior do que inoacutecua em muito eacute mero caos e o caos natildeo eacute nem mesmo
caos sem a causa final eacute um nada vaziordquo (CP 1 sect 211 1902)7
Ao tratar da causa final reconhece sua diacutevida com Aristoacuteteles e julga modestamente ser um
seguidor do grande filoacutesofo Poreacutem o juiacutezo que faz da filiaccedilatildeo de suas ideias natildeo parece ser
6 Modern Science is on the whole hostile to teleological explanation
7 Final causation without efficient causation is helpless () Efficient causation without final causation however is
worse than helpless by far it is mere chaos and chaos is not even so much as chaos without final causation is blank
nothing
18
totalmente correto Sob alguns aspectos podemos afirmar que Peirce construiu uma concepccedilatildeo
original de causalidade final A apresentaccedilatildeo da originalidade de seu conceito e do papel que
desempenha no interior de sua cosmologia eacute o objetivo desta tese e que espero ter conseguido
realizar na exposiccedilatildeo que se segue Mostro neste trabalho que a causalidade final desempenha um
papel duplo ao mesmo tempo em que eacute uma exigecircncia da teoria da explicaccedilatildeo cientiacutefica tambeacutem
eacute um agente real do crescimento do universo pois atuante na determinaccedilatildeo de vaacuterios processos
naturais Dessa forma a investigaccedilatildeo tem a pretensatildeo de abarcar suas implicaccedilotildees tanto para a
epistemologia peirceana quanto para sua cosmologia
O objetivo do primeiro capiacutetulo eacute apresentar a hipoacutetese cosmoloacutegica peirceana considerada
por alguns comentadores como a ovelha negra ou o elefante branco do seu sistema (cf GALLIE
1952 p 215) localizaacute-la no interior de sua obra e selecionar os aspectos que melhor ilustram a
atuaccedilatildeo da causalidade final na constituiccedilatildeo do cosmo Jaacute nesse capiacutetulo apresentamos a hipoacutetese
que identifica a causalidade final como elemento necessaacuterio para a possibilidade de constituiccedilatildeo
de procedimentos cientiacuteficos que nos permitam conhecer a natureza e ao mesmo tempo moldar
uma conduta adequada para o futuro por meio da nossa capacidade de autocontrole (cf CP 5 sect
538 1902)
O imperativo que manda ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo sintetiza um aspecto
central do projeto de Peirce A primeira lei da loacutegica8 como o autor costuma denominaacute-la
expressa sua insatisfaccedilatildeo com relaccedilatildeo ao posicionamento da ciecircncia de seu tempo frente a alguns
princiacutepios isto eacute as leis naturais que eram entatildeo tomados como dados portanto
inquestionaacuteveis e alheios agrave investigaccedilatildeo Peirce reclama principalmente uma abordagem racional
para o estatuto das leis cientiacuteficas tomadas entatildeo como princiacutepios a partir dos quais as ciecircncias
satildeo construiacutedas mas que permaneciam de fora desse processo Ora para fornecer uma explicaccedilatildeo
racional do porquecirc de tais e tais leis atuarem no nosso universo ou seja para que a sua
8 Nota-se que o termo bdquoloacutegica‟ na obra peirceana tem um sentido bem mais amplo do que aquele hoje vigente Peirce
incluiacutea em seus estudos trecircs diferentes ramos por ele denominados de Gramaacutetica Filosoacutefica Loacutegica Criacutetica e
Metodecircutica (cf CP 2 sect 93 1902)
19
postulaccedilatildeo pura e simples natildeo bloqueie o caminho da investigaccedilatildeo o filoacutesofo expande o conceito
de evoluccedilatildeo9 e o utiliza como um princiacutepio loacutegico constituinte de sua hipoacutetese cosmoloacutegica A
hipoacutetese de um cosmo que evolui a partir do puro acaso do nada inicial ndash um continuum de
possibilidades infinitas ndash eacute a que permite explicar as caracteriacutesticas do universo atual sem a
necessidade de tomar seus constituintes como dados como eacute o caso das leis que passam a ser
explicadas como fruto do processo de aquisiccedilatildeo de haacutebitos a que todo universo estaacute submetido
Veremos entatildeo como a hipoacutetese cosmoloacutegica eacute uma consequecircncia da teoria da explicaccedilatildeo e qual
dentro dessa perspectiva eacute seu papel natildeo soacute como um subsiacutedio para o projeto de tornar a ciecircncia
possiacutevel mas tambeacutem como hipoacutetese que torna compreensiacutevel certos fenocircmenos como as accedilotildees
natildeo conservativas de difiacutecil explicaccedilatildeo para a ciecircncia mecanicista (cf CP 7 sect 471-83 1898)
como veremos no capiacutetulo sobre evoluccedilatildeo
A hipoacutetese cosmoloacutegica que eacute apresentada na forma de uma cosmogonia descreve a
passagem de um continuum de possibilidades absolutamente indeterminadas para outro
continuum o do geral Aqui entra em cena o elemento da continuidade que receberaacute nesse
capiacutetulo uma primeira descriccedilatildeo
No segundo capiacutetulo trataremos especificamente da hipoacutetese do continuum que assim
como havia acontecido com a hipoacutetese evolutiva eacute tomada como um princiacutepio da loacutegica (cf CP
6 sect 173 1902) Essa hipoacutetese estaacute desse modo a subsumida agrave tarefa de garantir a
inteligibilidade da natureza A esta doutrina metafiacutesica Peirce daacute o nome de sinequismo Como
aponta Hausman ldquoo sinequismo de Peirce eacute inseparaacutevel da ideia de Peirce de que a condiccedilatildeo
fundamental de inteligibilidade eacute mediaccedilatildeo generalidade e continuidaderdquo (HAUSMAN 1998 p
630) Considerar todas as coisas como sendo contiacutenuas umas agraves outras tem como uma de suas
consequecircncias a de que a individualidade absoluta eacute apenas uma ilusatildeo Desta forma nenhuma
quantidade absoluta pode ser apurada tudo estaacute mergulhado em um mar de indeterminaccedilatildeo cujo
princiacutepio constituinte eacute diz-nos Peirce o acaso (cf CP 1 sectsect 163-75 1897) Assim duas das
9 Veremos adiante (capiacutetulo III desta tese) que embora a leitura da Origem das espeacutecies de Charles Darwin tenha
exercido uma grande influecircncia sobre o jovem Peirce sua concepccedilatildeo de evoluccedilatildeo era muito mais ampla podendo ser
classificada em trecircs tipos ticaacutestica anancaacutestica e agapaacutestica
20
principais teorias da obra peirceana satildeo relacionadas o tiquismo10
e o sinequismo O problema eacute
colocado de maneira bastante clara por Esposito (1973 p 65) na forma de um dilema ldquoou o
crescimento era real e a filosofia mecacircnica insuficiente ou era uma ilusatildeo e a filosofia
cosmogocircnica ndash o sinequismo ndash desnecessaacuteriardquo
A principal justificativa do sinequismo encontra-se no fato de que fornece uma boa
explicaccedilatildeo para os fenocircmenos serem como satildeo As descontinuidades satildeo vistas por Peirce como
inexplicaacuteveis A hipoacutetese do continuum ajuda entatildeo a evitar a postulaccedilatildeo do incompreensiacutevel no
seio da natureza que algo deva ser considerado como um dado ou um fato uacuteltimo e
consequentemente que a investigaccedilatildeo deva ser suspensa (cf CP 1 sect 175 1897) Aleacutem disso
indica o filoacutesofo ela promove o progresso da ciecircncia na medida em que encoraja os
pesquisadores a natildeo desesperarem diante dos misteacuterios da natureza facultando uma nova maneira
de tratar os fenocircmenos ou seja a aplicaccedilatildeo dos meacutetodos e conceitos de uma ciecircncia a outras Da
mesma forma que vimos no primeiro capiacutetulo Peirce fazer ao empregar conceitos da biologia e
matemaacutetica como princiacutepios da loacutegica
O sinequismo eacute tido por Peirce como uma esperanccedila reguladora (regulative hope) isto eacute
algo cuja existecircncia ainda que natildeo possa ser provada eacute necessaacuteria para a possibilidade da
atividade cientiacutefica Enquanto um princiacutepio da loacutegica ele estabelece um criteacuterio para o tipo de
hipoacutetese que deve ser selecionado para o teste Ele estaacute diretamente relacionado com o princiacutepio
metodoloacutegico que diz que eacute sempre melhor escolher hipoacuteteses que abram espaccedilo para o maior
nuacutemero de possibilidades (cf CP 7 sect 221 1901) Natildeo se trata portanto de uma doutrina
metafiacutesica uacuteltima mas uma hipoacutetese eleita por razotildees metodoloacutegicas e que poderaacute vir a ser
substituiacuteda por alguma formulaccedilatildeo mais fraca caso a experiecircncia assim o exija Ainda assim seria
preferiacutevel diz Peirce uma hipoacutetese que afirme que ldquo() um continuum eacute meramente uma seacuterie
descontiacutenua com possibilidades adicionaisrdquo (CP 1 sect 170 1893)11
agravequela que afirma a existecircncia
de descontinuidades radicais
10 Tiquismo do grego Tycheacute eacute o nome que Peirce daacute agrave sua teoria do acaso como um princiacutepio operante na natureza
(tal como seraacute apresentado no primeiro capiacutetulo desta tese) 11
() a continuum is merely a discontinuous series with additional possibilities
21
A necessidade de introduzir a hipoacutetese do sinequismo indica Esposito (1973) natildeo decorre
da defesa de qualquer tese holista como se poderia pensar antes sua funccedilatildeo primordial eacute
permitir uma abordagem coerente do fenocircmeno do crescimento presente nas mais variadas
expressotildees do que chamamos de universo O crescimento eacute apenas uma outra palavra para
designar a evoluccedilatildeo Se por um lado Peirce exige a continuidade como condiccedilatildeo para a
inteligibilidade por outro funda sua ontologia sobre uma matriz indeterminista que tem no
acaso entendido como vera causa seu princiacutepio de constituiccedilatildeo necessaacuterio agrave abordagem dos
fenocircmenos evolutivos A intromissatildeo do acaso no continuum processo criativo espontacircneo
responsaacutevel pela introduccedilatildeo de novidade no universo produz descontinuidades
A maneira de conciliar esses dois aspectos aparentemente conflitantes mas necessaacuterios agrave
abordagem peirceana parece ser realizada por meio da noccedilatildeo de infinitesimal (cf CP 6 sect 86
1898) Como aponta Hausman (1998) o papel desempenhado pelos infinitesimais na origem da
evoluccedilatildeo tem sido subestimado pelos comentadores de Peirce Ele afirma ldquoO que eacute
imediatamente importante eacute que a noccedilatildeo de infinitesimal parece ser necessaacuteria para tratar dos
componentes constitutivos dos continua que podem evoluir de acordo com uma teleologia
evolucionaacuteriardquo (HAUSMAN 1998 p 630) O problema portanto que devemos tratar eacute o de
conciliar o continuum fonte de inteligibilidade com a presenccedila do acaso introdutora de
novidades o que implica em descontinuidades Uma vez que o continuum eacute sempre geral ou
seja seus componentes natildeo podem ser individuais uma soluccedilatildeo parece ser a de consideraacute-los
como sendo infinitesimais que se tornam dessa maneira portadores da espontaneidade e da
liberdade do acaso Esse processo envolve uma antiga e difiacutecil questatildeo a saber como o geral
produz os particulares ou melhor dizendo como universal e particular se relacionam Sob este
aspecto concordamos com Hausman que faz uma siacutentese do processo ao dizer que
A sugestatildeo de Peirce que indica a maneira pela qual os dois princiacutepios
aparentemente contraacuterios podem ser mantidos eacute propor que os contiacutenuos satildeo
compostos de infinitesimais que satildeo possibilidades (Primeiros) que podem
tornar-se potencialidades ndash que podem tornar-se pontos que podem fugir da
identidade do continuum ao qual eles pertencem antes de tornarem-se
22
potencialidades (HAUSMAN 1998 p 631)
Esta sugestatildeo envolve a distinccedilatildeo natildeo muito frequente entre possiacutevel e potencial que seraacute
elaborada com mais detalhes nesse capiacutetulo Ela parece-nos eacute fundamental para compreender a
relaccedilatildeo entre a continuidade e a causalidade final o objeto de nossa investigaccedilatildeo A discussatildeo do
princiacutepio de individuaccedilatildeo que estaacute aiacute envolvido parece necessitar da consideraccedilatildeo de outro
ingrediente presente na cosmologia peirceana o amor criativo ou aacutegape como eacute denominado por
Peirce (cf CP 6 sect 287 1893)
Chegamos assim ao tema do terceiro capiacutetulo desta tese que trata da evoluccedilatildeo A hipoacutetese
evolucionaacuteria atende em primeiro lugar a uma necessidade de barrar a regressatildeo infinita das
explicaccedilotildees e de alargar tanto quanto possiacutevel o horizonte da inteligibilidade humana portanto
subsumida agrave maacutexima que ordena natildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeo A estrateacutegia de
produzir explicaccedilatildeo com base em conhecimentos jaacute garantidos gera um regresso ao infinito na
medida em que tais conhecimentos tambeacutem devem ser explicados em funccedilatildeo de outros
conhecimentos preacutevios e assim sucessivamente se natildeo se quiser postular arbitrariamente um
fundamento que seria ele proacuteprio carente de explicaccedilatildeo e desse modo refrataacuterio agrave
inteligibilidade A alternativa sugerida por Peirce eacute de considerar os elementos formadores das
explicaccedilotildees como objetos histoacutericos e dessa maneira a hipoacutetese da cosmologia evolutiva eacute
utilizada para garantir a inteligibilidade dos elementos ao propor uma explicaccedilatildeo de sua
formaccedilatildeo isto eacute uma explicaccedilatildeo geneacutetica Especialmente as leis e suas similaridades diz Peirce
soacute podem ser explicadas a partir de uma perspectiva evolutiva (cf CP 6 sect 13 1891)
A evoluccedilatildeo eacute o modo pelo qual o universo cresce fato que se impotildee agrave experiecircncia e
segundo Peirce as explicaccedilotildees que tecircm por base apenas a atuaccedilatildeo da causalidade eficiente satildeo
incapazes de abarcaacute-lo (CP 1 sect 220 1902) O modo de efetivaccedilatildeo da evoluccedilatildeo confunde-se
assim com a proacutepria maneira da causalidade final atuar Compreendendo o processo de evoluccedilatildeo
seja do cosmo ou de qualquer outro fenocircmeno irreversiacutevel compreenderemos a concepccedilatildeo
23
original de causalidade final empregada pelo filoacutesofo Eacute nos fenocircmenos irreversiacuteveis e no
tratamento insatisfatoacuterio que o mecanicismo (cf CP 6 sect 555 1887 CP 6 sect 614 1893)12
lhes
dispensava que vamos encontrar outra motivaccedilatildeo para a proposiccedilatildeo de uma filosofia evolutiva
aliado ao ideal de ciecircncia que procura natildeo deixar sem explicaccedilatildeo aquilo que pode ser
compreendido por uma hipoacutetese mais abrangente (cf CP 6 sect 60 1892)
Levando-se em conta o sinequismo (cf CP 6 sectsect 169-73 1902)e o evolucionismo (cf CP
1 sectsect 103-9 1896) propostos por Peirce chegamos ao tema do quarto capiacutetulo desta tese o
raciociacutenio abdutivo Jaacute que uma das consequecircncias do sinequismo eacute a de que entre o homem e o
cosmo natildeo haacute qualquer descontinuidade radical que ambos satildeo expressotildees de um mesmo
processo expressotildees que possuem apenas diferenccedila de graus e de que o princiacutepio constituinte das
transformaccedilotildees que ambos sofrem eacute a evoluccedilatildeo temos assim os elementos necessaacuterios para a
compreensatildeo do modo de crescimento do proacuteprio conhecimento humano isto eacute temos condiccedilotildees
de entender porque para Peirce a ciecircncia eacute um projeto realizaacutevel uma vez desconsideradas as
questotildees sobre o tempo que o empreendimento possa tomar para se realizar (cf CP 5 sect409
1878)
O projeto peirceano inicial era o de fundar o meacutetodo de investigaccedilatildeo cientiacutefica na induccedilatildeo
entendida como processo de verificaccedilatildeo empiacuterica de hipoacuteteses Vejamos uma declaraccedilatildeo na qual
Peirce expressa sua esperanccedila na capacidade autocorretiva da induccedilatildeo
Tambeacutem natildeo devemos perder de vista a tendecircncia constante do processo
indutivo para corrigir a si mesmo Isso eacute da sua essecircncia Esta eacute a sua maravilha
A probabilidade de sua conclusatildeo soacute consiste no fato de que se o valor
verdadeiro da relaccedilatildeo procurada natildeo tiver sido alcanccedilado uma extensatildeo do
processo indutivo levaraacute a uma maior aproximaccedilatildeo (CP 2 sect 729 1883)13
12 O objetivo aqui eacute indicar a maneira que Peirce se referia ao mecanicismo e como pretendeu superaacute-lo natildeo entrarei
na discussatildeo sobre a pertinecircncia histoacuterica de suas criacuteticas 13
Nor must we lose sight of the constant tendency of the inductive process to correct itself This is of its essence
This is the marvel of it The probability of its conclusion only consists in the fact that if the true value of the ratio
sought has not been reached an extension of the inductive process will lead to a closer approximation
24
Nessa perspectiva Peirce esperava confirmar a tese de que as correccedilotildees que o processo
indutivo ocasionaria nas hipoacuteteses por meio do confronto com a experiecircncia levariam a um
refinamento das teorias conduzindo a um niacutevel de precisatildeo e seguranccedila que facultaria a
qualificaccedilatildeo das mesmas como verdadeiras No entanto apoacutes uma profunda anaacutelise o filoacutesofo
constatou que a esperanccedila de que esse processo de raciociacutenio pudesse ser autocorretivo e assim
levasse por si soacute a um desenvolvimento contiacutenuo do conhecimento mostrou-se irrealizaacutevel (cf
SKAGESTAD 1981)
A hipoacutetese desencadeadora do processo de investigaccedilatildeo deveria ela proacutepria colocar o
cientista na boa direccedilatildeo caso isso natildeo se verificasse o processo de autocorreccedilatildeo natildeo garantiria o
ecircxito da empresa como afirma o filoacutesofo ldquoUma abduccedilatildeo () eacute a uacutenica esperanccedila possiacutevel de
regulaccedilatildeo racional de nossa conduta futura ()rdquo (CP 2 sect 270 1897)14
Peirce afirma que a
atividade de lanccedilar hipoacuteteses embora faliacutevel e perfeitamente descrito como adivinhaccedilatildeo ou
palpite eacute um processo de inferecircncia loacutegica Seu significado praacutetico eacute o de que devemos agir
animados pela esperanccedila de que o homem adivinha naturalmente as melhores hipoacuteteses para
testar embora como veremos isso natildeo queira dizer que acerte sempre ou que acerte na maioria
das vezes e nem que criteacuterios para a seleccedilatildeo das hipoacuteteses a serem testadas sejam dispensaacuteveis
(cf CP 7 sect 219 1901) Essa sintonia natural entre o homem e o cosmo pode ser vista com o
resultado de um processo de seleccedilatildeo natural que concedeu aos homens essa vantagem evolutiva
para a sobrevivecircncia e da continuidade da mente mas isso natildeo explica tudo pois o alcance da
inteligibilidade humana eacute muito mais amplo do que o acircmbito restrito daqueles conhecimentos que
poderiam ter relevacircncia para a sua sobrevivecircncia (cf 6 sect 307 1893)
Explicar como a abduccedilatildeo funciona para aleacutem das circunstacircncias imediatas e cotidianas
requer a abordagem de outra importante ideia desenvolvida por Peirce de maneira original a sua
concepccedilatildeo de causalidade final o que nos leva ao tema do uacuteltimo capiacutetulo desta tese no qual se
14 An Abduction is (hellip) the only possible hope of regulating our future conduct rationally (hellip)
25
trata especificamente da causalidade final ressaltando a originalidade da concepccedilatildeo peirceana
Para tanto discutiremos em um primeiro momento a insuficiecircncia da utilizaccedilatildeo exclusiva da
causalidade eficiente nos esquemas explicativos dos processos naturais ressaltando segundo a
concepccedilatildeo de Peirce a complementariedade entre causalidade final e causalidade eficiente (cf
CP 1 sectsect 211-2 1902) Aqui se verifica que a causalidade final cumpre um duplo papel a
necessidade de sua inclusatildeo pode ser verificada tanto por razotildees epistemoloacutegicas quanto
ontoloacutegicas Seraacute realizada uma anaacutelise da hostilidade com que tal tipo de causalidade eacute tratado
pela ciecircncia moderna cujas principais objeccedilotildees jaacute foram indicadas acima (cf p 17)15
Uma vez que natildeo podemos ter acesso aos objetos externos agrave nossa experiecircncia cuja
realidade natildeo eacute mais que uma hipoacutetese que torna explicaacutevel o como e o porquecirc de termos do
mundo a experiecircncia que temos dadas as caracteriacutesticas de variaccedilatildeo e regularidade da natureza
a causalidade final eacute uma outra hipoacutetese necessaacuteria na medida em que torna o empreendimento
cientiacutefico possiacutevel isto eacute uma esperanccedila de que possamos produzir expectativas para o futuro e
comportamentos adequados moldados pelo autocontrole (cf CP 2 sect 270 1897)
Para que a ciecircncia seja possiacutevel torna-se fundamental a tarefa de bem classificar os objetos
da experiecircncia Mas qual criteacuterio adotar A escolha injustificada do criteacuterio tornaria ciecircncia uma
espeacutecie de ficccedilatildeo ou ilusatildeo A classificaccedilatildeo natural diraacute Peirce soacute pode ser obtida se
considerarmos a causa final de cada fenocircmeno ainda que isso seja um tanto vago (cf CP 1 sect
204 216 1902) Eacute a causalidade final o criteacuterio correto para a constituiccedilatildeo das diferentes classes
da experiecircncia Ora entretanto natildeo eacute no objeto externo ao homem que o criteacuterio deve ser
buscado mas na proacutepria tendecircncia de desenvolvimento dos fenocircmenos que se observa na
experiecircncia Desse modo a uacutenica ciecircncia possiacutevel eacute uma aposta que se faz um palpite que
enquanto tal eacute eminentemente faliacutevel (cf CP 1 sect 14 sect171 1897)
Como jaacute foi dito Peirce considera a ciecircncia um empreendimento eminentemente faliacutevel
15 Embora natildeo desconheccedilamos a existecircncia de uma grande bibliografia sobre o tratamento das questotildees referentes agrave
causalidade final em outros acircmbitos notadamente na biologia concentramos nossa atenccedilatildeo nesta tese somente na
discussatildeo do conceito no interior da cosmologia peirceana
26
mas ao mesmo tempo absolutamente abrangente O que nos deve guiar na elaboraccedilatildeo de nossas
teorias cientiacuteficas eacute o rigor e a completude com que explicamos o mundo da experiecircncia
A hipoacutetese que encontra na causalidade final uma importante noccedilatildeo para a possibilidade da
realizaccedilatildeo da ciecircncia que eacute marcada pela falibilidade mas ao mesmo tempo em que visa total
abrangecircncia explicativa pode ser vista como uma das etapas das tentativas realizadas por Peirce
para tornar compreensiacutevel a proacutepria existecircncia das leis isto eacute a maneira que percebemos o
mundo e um princiacutepio que nos permite controlar adequadamente a nossa conduta Concordamos
com Short quando afirma que ldquoa intenccedilatildeo da cosmologia era ser uma abordagem evolucionaacuteria
fundamental da lei per serdquo (2011 p 535)
Eacute como aponta Short (cf 2011 p 532) no periacuteodo cosmoloacutegico que Peirce desenvolve a
doutrina do idealismo objetivo (ver TIERCELIN 1998) que afirma que a mente isto eacute o
sentimento eacute anterior agrave mateacuteria Peirce indica que ldquoa uacutenica teoria inteligiacutevel do universo eacute o
idealismo objetivo que a mateacuteria eacute mente empedernida haacutebitos inveterados tornam-se leis
fiacutesicasrdquo (EP 1 p 293 1891)16
O universo desse modo eacute o resultado de um processo que tendo
se originado espontaneamente de uma neacutebula de possibilidades no iniacutecio infinitamente remoto
desenvolveu-se por meio da atuaccedilatildeo de um princiacutepio que Peirce inicialmente denominou de lei da
mente e que posteriormente natildeo sem alteraccedilotildees denominou de causalidade final ou teleologia
Retomemos as palavras do proacuteprio autor
A hipoacutetese sugerida pelo presente escritor eacute a de que todas as leis satildeo resultadas
da evoluccedilatildeo que subjacente a todas as outras leis estaacute a uacutenica tendecircncia que
pode crescer por sua proacutepria virtude a tendecircncia de todas as coisas a adquir
haacutebitos Uma vez que essa mesma tendecircncia eacute a uacutenica lei fundamental da mente
segue-se que a evoluccedilatildeo fiacutesica trabalha segundo fins da mesma forma que a accedilatildeo
mental trabalha segundo fins e portanto em um aspecto da questatildeo seria
perfeitamente correto dizer que causaccedilatildeo final eacute a uacutenica primaacuteria No entanto
por outro lado a lei de haacutebito eacute uma simples lei formal uma lei da causalidade
eficiente de modo que uma ou outra maneira de considerar o assunto eacute
16 The one intelligible theory of the universe is that of objective idealism that matter is effete mind inveterate habits
becoming physical laws
27
igualmente verdadeira embora a primeira seja mais plenamente inteligente (CP
6 sect 101 1902)17
As hipoacuteteses do caos original da lei da mente e da causalidade final podem ser vistas como
etapas em um processo de investigaccedilatildeo realizado com a finalidade de tornar compreensiacutevel o
processo pelo qual o universo se desenvolveu ateacute o momento atual e de constituir-se em um
instrumento heuriacutestico para descoberta futura de leis
17 The hypothesis suggested by the present writer is that all laws are results of evolution that underlying all other
laws is the only tendency which can grow by its own virtue the tendency of all things to take habits Now since this
same tendency is the one sole fundamental law of mind it follows that the physical evolution works towards ends in
the same way that mental action works towards ends and thus in one aspect of the matter it would be perfectly true
to say that final causation is alone primary Yet on the other hand the law of habit is a simple formal law a law of
efficient causation so that either way of regarding the matter is equally true although the former is more fully
intelligent
28
CAPIacuteTULO 01
A HIPOacuteTESE COSMOLOacuteGICA
The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in
the year 4004 BC but is going on today and never will be done is this very
development of Reason (CP 1 sect 615 1903)
29
Neste capiacutetulo seraacute feita uma apresentaccedilatildeo da hipoacutetese cosmoloacutegica peirceana e uma
discussatildeo inicial dos elementos que a constituem Partiremos da apresentaccedilatildeo da teoria da
explicaccedilatildeo desenvolvida por Charles S Peirce na qual a hipoacutetese evolucionaacuteria possui um papel
central e mostraremos como o empreendimento cristalizado na forma da hipoacutetese cosmoloacutegica
poder ser visto como um fruto tardio e necessaacuterio do seu grande projeto de garantir a realizaccedilatildeo
do empreendimento cientiacutefico e de expansatildeo do horizonte da inteligibilidade humana Esse
projeto tem sua mais importante sustentaccedilatildeo como indica o proacuteprio autor na ideia de
continuidade a qual tambeacutem receberaacute aqui uma primeira caracterizaccedilatildeo O conceito de
continuum assume no estudo de sua obra o papel de um fio condutor por meio do qual nos
moveremos entre as estruturas que datildeo sustentaccedilatildeo e encontram-se na origem do cosmo
peirceano cuja pretensatildeo eacute a de ser uma hipoacutetese explicativa do modo de ser atual do universo
Por meio da hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce apresenta os elementos principais de sua
metafiacutesica ou dito de maneira mais direta a metafiacutesica peirceana assume a forma de uma
cosmologia e mais particularmente de uma cosmogonia Eacute a maneira de pensar moldada pela
evoluccedilatildeo que daacute origem agrave apresentaccedilatildeo sob a forma de cosmogonia dos elementos de sua
hipoacutetese cosmoloacutegica
1 NAtildeO BLOQUEAR O CAMINHO DA INVESTIGACcedilAtildeO
Encontra-se presente na obra de Peirce desde seus escritos de juventude uma preocupaccedilatildeo
com a elaboraccedilatildeo de um meacutetodo adequado que nos possa conduzir com ecircxito agrave obtenccedilatildeo da
verdade nos mais variados campos da investigaccedilatildeo humana em particular no cientiacutefico (cf CP
5 sectsect 358-87 1877 5 sectsect 388-410 1878) Neste sentido a agenda de problemas com a qual se
ocupa apresenta uma motivaccedilatildeo inicial que natildeo difere muito daquela proposta e desenvolvida
pelos filoacutesofos modernos em particular por Descartes As diferenccedilas e particularidades do projeto
30
peirceano de elaboraccedilatildeo metodoloacutegica entretanto natildeo tardaratildeo a aparecer
Na seacuterie de textos de 1868-69 conhecida como ldquoseacuterie sobre cogniccedilatildeordquo vemos Peirce
analisar e criticar de maneira bastante contundente os pressupostos da filosofia cartesiana O
principal alvo da criacutetica ali desenvolvida eacute a noccedilatildeo de conhecimento intuitivo ou seja da
afirmaccedilatildeo de que temos a possibilidade de apreender de forma imediata certos tipos de ideias
Sua criacutetica consiste em mostrar que mesmo se tiveacutessemos tal tipo de apreensatildeo natildeo teriacuteamos
condiccedilatildeo de distingui-lo em meio agraves demais cogniccedilotildees que satildeo frutos da mediaccedilatildeo
representacional e desse modo da experiecircncia (cf CP 5 sectsect 283-309 1868) Em outras palavras
enquanto Descartes julgava possiacutevel a obtenccedilatildeo de conhecimento certo e seguro por meio de
premissas que natildeo eram elas proacuteprias conclusotildees Peirce afirma uma nova concepccedilatildeo da accedilatildeo
mental na qual toda premissa eacute ao mesmo tempo conclusatildeo (cf CP 5 sect 213 1868) Jaacute nesses
textos Peirce afirmava a necessidade de se pensar a cogniccedilatildeo como um processo contiacutenuo e
faliacutevel pois ainda que pudessem existir cogniccedilotildees intuitivas natildeo teriacuteamos como reconhececirc-las
(cf CP 5 sectsect 238-43 1868) O resultado de sua anaacutelise foi sintetizado que ele denominou de as
quatro incapacidades humanas
1 Natildeo temos poder de Introspecccedilatildeo todo conhecimento do mundo interno eacute
derivado do nosso conhecimento de fatos externos por raciociacutenio hipoteacutetico
2 Natildeo temos poder de Intuiccedilatildeo mas toda cogniccedilatildeo eacute determinada logicamente
por cogniccedilotildees preacutevias
3 Natildeo temos poder de pensar sem signos
4 Natildeo temos concepccedilatildeo do absolutamente incognosciacutevel (CP 5 sect 4 1868)18
18 1 We have no power of Introspection but all knowledge of the internal world is derived by hypothetical
reasoning from our knowledge of external facts
2 We have no power of Intuition but every cognition is determined logically by previous cognitions
3 We have no power of thinking without signs
4 We have no conception of the absolutely incognizable
31
Obviamente levando-se em conta essas incapacidades a afirmaccedilatildeo do conhecimento
intuitivo implica uma contradiccedilatildeo em termos que Peirce indica da seguinte maneira
() todas as faculdades cognitivas que conhecemos satildeo relativas e
consequentemente os seus produtos satildeo relaccedilotildees Mas a cogniccedilatildeo de uma relaccedilatildeo
eacute determinada por cogniccedilotildees preacutevias Nenhuma cogniccedilatildeo natildeo determinada por
uma cogniccedilatildeo preacutevia portanto pode ser conhecida Ela natildeo existe portanto em
primeiro lugar porque eacute absolutamente incognosciacutevel em segundo porque a
cogniccedilatildeo existe unicamente na medida em que eacute conhecida (EP 1 p 26
1868)19
Do ponto de vista peirceano o projeto de Descartes embora vigoroso e respeitaacutevel20
natildeo
parte de uma visatildeo realista do que eacute o homem enquanto sujeito do conhecimento para Peirce a
caracteriacutestica mais geral daqueles para os quais seu meacutetodo eacute adequado eacute o fato de serem
inteligecircncias que aprendem com a experiecircncia (cf CP 3 sect 428 1896) Eacute a partir da criacutetica a
Descartes que Peirce abre o caminho para a constituiccedilatildeo do seu proacuteprio meacutetodo de investigaccedilatildeo
tarefa que nunca abandonou Mesmo em seus escritos mais tardios podemos encontrar novas
tentativas de elaboraccedilatildeo de provas para o que veio a chamar ldquopragmatismordquo e posteriormente
ldquopragmaticismordquo
Na tentativa de escapar ao regresso das explicaccedilotildees ou da postulaccedilatildeo infundada de um
primeiro ponto de partida para a cogniccedilatildeo Peirce busca no conceito de evoluccedilatildeo presente de
maneira muito pronunciada na ciecircncia da segunda metade do seacuteculo XIX21
um outro caminho
para a fundamentaccedilatildeo do conhecimento Tal conceito assume em sua obra o caraacuteter de ldquoum
postulado da loacutegicardquo (EP 1 p 218 1884) e apenas indica que deve haver uma explicaccedilatildeo simples
19 () all the cognitive faculties we know of are relative and consequently their products are relations But the
cognition of a relation is determined by previous cognitions No cognition not determined by a previous cognition
then can be known It does not exist then first because it is absolutely incognizable and second because a
cognition only exists so far as it is known 20
Veremos posteriormente p 119 desta tese que ao classificar os tipos de meacutetodos de investigaccedilatildeo Peirce expressa
respeito com relaccedilatildeo ao meacutetodo a priori seguido por Descartes 21
Principalmente por meio do trabalho de Charles Darwin
32
para um estado de coisas complexo (cf W 4 p 547) Como um postulado22 o princiacutepio
evolucionista indica um ponto de vista sobre as coisas que se escolhe com a finalidade de
fornecer uma explicaccedilatildeo geral De uma maneira mais simples podemos dizer que a evoluccedilatildeo
representa a escolha de uma perspectiva que atende agrave necessidade de natildeo admitir que fatos
uacuteltimos sejam inexplicaacuteveis (cf CP 6 sect 604 1893) Sua funccedilatildeo enquanto princiacutepio regulador eacute
a de indicar que tipo de hipoacuteteses deve ser escolhido para satisfazer agrave necessidade expressa
acima Como afirma Rosa (2003 p 268) ldquo() eacute enquanto exigecircncia de explicabilidade que a
evoluccedilatildeo eacute um postulado da loacutegicardquo
O objeto a ser explicado por esse princiacutepio regulador natildeo eacute o contingente mas o geral
Dessa maneira o fim buscado eacute a explicaccedilatildeo do universo como uma entidade global Ele tem por
objetivo a explicaccedilatildeo das regularidades do universo ou seja busca uma explicaccedilatildeo para a
existecircncia e para a homogeneidade das leis naturais Eacute em funccedilatildeo dessa caracteriacutestica que
podemos dizer que existe uma cosmologia peirceana Peirce natildeo estava satisfeito com a
incapacidade das teorias aceitas na eacutepoca em fornecer uma explicaccedilatildeo para as leis naturais que
eram tratadas como dados aceitos sem qualquer questionamento A lei como disse em um texto
de 1891 eacute justamente aquilo que necessita de uma razatildeo (cf CP 6 sect 12 1891 1 sect 406 1890)
Na medida em que as leis naturais demonstram regularidades na sua forma de atuar colocam-se
como objeto de uma investigaccedilatildeo cuja finalidade eacute apurar por que razatildeo elas se constituiacuteram
daquela maneira As regularidades satildeo reconhece Peirce em consonacircncia com os cientistas da sua
eacutepoca o objeto de explicaccedilatildeo da ciecircncia aquele entretanto que esperasse o mesmo tratamento
para as leis teria suas expectativas frustradas de modo surpreendente
Toda investigaccedilatildeo afirma Peirce parte de uma surpresa da quebra de uma expectativa real
Em 1877 afirma ainda em oposiccedilatildeo a Descartes
Alguns filoacutesofos imaginaram que para comeccedilar uma investigaccedilatildeo soacute era
necessaacuterio proferir uma questatildeo seja oralmente ou colocando-a em uma folha de
22 Peirce afirma que os grandes avanccedilos cientiacuteficos que ainda estavam por vir seriam frutos da aplicaccedilatildeo de teorias
meacutetodos ou conceitos de uma determinada aacuterea do saber a outras Podemos ver que eacute exatamente o que estaacute fazendo
aqui ao tomar um conceito posto em evidecircncia pela teoria darwiniana como um postulado da loacutegica Esta afirmaccedilatildeo
pode ser vista como uma consequecircncia da tese sinequista
33
papel e ateacute mesmo recomendaram-nos a comeccedilar nossos estudos duvidando de
tudo Mas a mera colocaccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo na forma interrogativa natildeo
estimula a mente a batalhar pela crenccedila Deve existir uma duacutevida real e viacutevida e
sem isso toda discussatildeo eacute vatilde (CP 5 sect 376 1877)23
Esse fato conduz agrave elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses explicativas que se verdadeiras eliminariam a
surpresa do evento Esse processo como indica o filoacutesofo parte do consequente e procura
encontrar um antecedente que o explique O antecedente generaliza os dados dispersos no
consequente Ao tipo de raciociacutenio que nos possibilita criar hipoacuteteses Peirce daacute o nome de
abduccedilatildeo Conforme Rosa (2003 p 269) ldquo() o raciociacutenio abdutivo consiste no processo
imaginativo que parte do particular e procura o universal que o subsume de forma a poder
deduzir o particular a partir do universal dadordquo
A caracteriacutestica mais marcante da generalidade segundo Peirce eacute a continuidade que seraacute
investigada mais detidamente no capiacutetulo dois desta tese (cf CP 4 sect 642 1908) As ideias do
filoacutesofo acerca deste toacutepico estatildeo concentradas na doutrina chamada por ele de doutrina do
sinequismo (cf CP 6 sect 103 1892) Eacute a continuidade que daraacute sustentaccedilatildeo agrave tese evolucionista e
por meio dela agrave hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce trata o sinequismo como um princiacutepio regulador da
loacutegica da mesma maneira que havia feito com a evoluccedilatildeo
O sinequismo natildeo eacute uma doutrina metafiacutesica uacuteltima e absoluta eacute um princiacutepio
regulador da loacutegica prescrevendo que tipo de hipoacutetese eacute adequado agrave
consideraccedilatildeo e ao exame () Em resumo o sinequismo soma ao princiacutepio
segundo o qual as inexplicabilidades natildeo podem ser consideradas como
explicaccedilotildees possiacuteveis (CP 6 sect 173 1902)24
23 Some philosophers have imagined that to start an inquiry it was only necessary to utter a question or set in down
upon paper and have even recommended us to begin our studies with questioning everything But the mere putting
of a proposition into the interrogative form does not stimulate the mind to any struggle after belief There must be a
real and living doubt and without this all discussion is idle 24
Synechism is not an ultimate and absolute metaphysical doctrine it is a regulative principle of logic prescribing
what sort of hypothesis is fit to be entertained and examined () In short synechism amounts to the principle that
inexplicabilities are not to be considered as possible explanations
34
Outra formulaccedilatildeo da hipoacutetese do continuum ou uma de suas consequecircncias eacute aquela
encontrada na afirmaccedilatildeo de que os processos da natureza e os processos da mente humana satildeo
similares (cf 6 sect 289 1893) por esta razatildeo veremos o conceito de haacutebito assumir grande
importacircncia na elaboraccedilatildeo peirceana
Como ficaraacute evidente na proacutexima seccedilatildeo a exposiccedilatildeo dos elementos constituintes e dos
processos de desenvolvimento do cosmo bem como a identificaccedilatildeo do seu princiacutepio geral de
constituiccedilatildeo na lei de aquisiccedilatildeo de haacutebito ou lei da mente assume a forma de uma cosmogonia
que descreve o cosmo em termos antropomoacuterficos Ventimiglia eacute bastante direto ao afirmar que o
caraacuteter antropomoacuterfico da cosmologia peirceana a desqualifica como hipoacutetese cientiacutefica ele
afirma que ldquoa cosmologia de Charles Peirce tem tradicionalmente estado entre os menos
celebrados aspectos de seu pensamento Eacute tipicamente considerada excessivamente
antropomoacuterfica para ser uma seacuteria contribuiccedilatildeo a nossa compreensatildeo da evoluccedilatildeo da realidadeldquo
(VENTIMIGLIA 2008 p 661) Natildeo podemos portanto prosseguir sem antes considerarmos
ainda que brevemente o problema colocado por essa abordagem A dificuldade consiste em
justificar a atribuiccedilatildeo de caracteres humanos a seres ou coisas que natildeo satildeo humanos Em primeiro
lugar eacute preciso notar que Peirce estava consciente dessa dificuldade e respondeu aos seus criacuteticos
nos seguintes termos
Ouccedilo vocecirc dizer bdquoIsto cheira demais a uma concepccedilatildeo antropomoacuterfica‟
Respondo que cada explicaccedilatildeo cientiacutefica de um fenocircmeno natural eacute uma
hipoacutetese de que haacute algo na natureza ao qual a razatildeo humana eacute anaacuteloga e que
realmente eacute assim todos os sucessos da ciecircncia em suas aplicaccedilotildees agrave
conveniecircncia humanas satildeo testemunhas (CP 1 sect 316 1903)25
25 I hear you say This smacks too much of an anthropomorphic conception I reply that every scientific
explanation of a natural phenomenon is a hypothesis that there is something in nature to which the human reason is
analogous and that it really is so all the successes of science in its applications to human convenience are witnesses
35
Como inteligecircncias que aprendem com a experiecircncia e que natildeo possuem outra fonte da qual
retirar o material de seus pensamentos os humanos soacute podem compreender aquilo que tem a
forma da experiecircncia humana A proacutepria ideia de que os acontecimentos naturais se processam
segundo leis pode ser visto como uma projeccedilatildeo do modo pelo qual raciocinamos Diz Peirce
Costumamos conceber a Natureza como estando perpetuamente realizando
deduccedilotildees em Barbara Esta eacute a nossa metafiacutesica natural e antropomoacuterfica
Concebemos que haacute Leis da Natureza que satildeo as suas Regras ou premissas
maiores Concebemos que Casos surgem sob estas leis estes casos consistem na
predicaccedilatildeo ou ocorrecircncia de causas que satildeo os termos meacutedios dos silogismos
E finalmente concebemos que a ocorrecircncia destas causas em virtude das leis
da Natureza resulta em efeitos que satildeo as conclusotildees dos silogismos Conceber
a natureza dessa maneira leva-nos naturalmente a conceber a ciecircncia como tendo
trecircs tarefas - (1) a descoberta de Leis que eacute realizada por induccedilatildeo (2) a
descoberta de Causas que eacute realizado por inferecircncia hipoteacutetica e (3) a prediccedilatildeo
dos Efeitos que eacute realizada por deduccedilatildeo Parece-me ser muito uacutetil selecionar um
sistema de loacutegica que preserve todas essas concepccedilotildees natural (CP 2 sect 713
1883)26
Peirce sugere que a tarefa da ciecircncia eacute definida em funccedilatildeo daquilo que nos eacute mais familiar e
mais sistematizado ou seja o modo de realizar inferecircncia descrito por Aristoacuteteles Essa descriccedilatildeo
prescreve aquilo que se espera seja a tarefa da ciecircncia projetando sobre o mundo categorias que
satildeo proacuteprias do pensamento O que anima a realizaccedilatildeo da ciecircncia como descrita acima eacute a
esperanccedilas de que a natureza proceda de forma loacutegica e isso natildeo eacute nada mais do que uma
concepccedilatildeo antropomoacuterfica
26 We usually conceive Nature to be perpetually making deductions in Barbara This is our natural and
anthropomorphic metaphysics We conceive that there are Laws of Nature which are her Rules or major premisses
We conceive that Cases arise under these laws these cases consist in the predication or occurrence of causes which
are the middle terms of the syllogisms And finally we conceive that the occurrence of these causes by virtue of the
laws of Nature results in effects which are the conclusions of the syllogisms Conceiving of nature in this way we
naturally conceive of science as having three tasks--(1) the discovery of Laws which is accomplished by induction
(2) the discovery of Causes which is accomplished by hypothetic inference and (3) the predictio of Effects which is
accomplished by deduction It appears to me to be highly useful to select a system of logic which shall preserve all
these natural conceptions
36
A criacutetica de antropomorfismo tambeacutem foi endereccedilada agrave teoria darwinista em particular ao
seu conceito de luta (struggle) o qual informa Peirce foi acusado de ser muito antropomoacuterfico
para ser cientiacutefico (cf CP 5 sect 46 1903) Sua resposta foi dada nos seguintes termos
Mas quanto a sua natildeo cientificidade porque eacute antropomoacuterfico eacute uma objeccedilatildeo de
um tipo muito superficial que surge a partir de preconceitos com base em
consideraccedilotildees demasiado estreitas Antropomoacuterfico eacute o que praticamente todas
as concepccedilotildees satildeo na base caso contraacuterio outras raiacutezes para as palavras com as
quais satildeo expressas diferentes das velhas raiacutezes arianas teriam que ser
encontradas E com relaccedilatildeo a qualquer preferecircncia por um tipo de teoria sobre
outro eacute bom lembrar que cada verdade da ciecircncia eacute devida agrave afinidade da alma
humana com a alma do universo imperfeita como tal afinidade sem duacutevida eacute
Dizer portanto que uma concepccedilatildeo eacute natural ao homem eacute praticamente a
mesma coisa que dizer que eacute antropomoacuterfica essa eacute mais elevada das
recomendaccedilotildees que se poderia lhe dar aos olhos de um Loacutegico Exato (CP 5 sect
47 1903)27
Peirce natildeo somente estaacute consciente do aspecto antropomoacuterfico de sua teoria mas tambeacutem
elabora uma defesa das teorias que apresentam esta caracteriacutestica O antropomorfismo eacute uma
decorrecircncia da maneira como entende a possibilidade dos homens adquirirem conhecimento ou
em outras palavras da sua concepccedilatildeo de que a natureza primaacuteria do universo eacute a mente
concepccedilatildeo que pode ser sintetizada sob o roacutetulo que Peirce agraves vezes atribui ao sistema filosoacutefico
de idealismo objetivo (cf CP 6 sectsect 24-5 1891) A relaccedilatildeo entre antropomorfismo experiecircncia e
possibilidade de conhecimento eacute estabelecida nos seguintes termos
27 But as to its being unscientific because anthropomorphic that is an objection of a very shallow kind that arises
from prejudices based upon much too narrow considerations Anthropomorphic is what pretty much all
conceptions are at bottom otherwise other roots for the words in which to express them than the old Aryan roots
would have to be found And in regard to any preference for one kind of theory over another it is well to remember
that every single truth of science is due to the affinity of the human soul to the soul of the universe imperfect as that
affinity no doubt is To say therefore that a conception is one natural to man which comes to just about the same
thing as to say that it is anthropomorphic is as high a recommendation as one could give to it in the eyes of an Exact
Logician
37
() se vocecirc tivesse dito antropomorfismo eu deveria ter respondido que eu
sinceramente abraccedilo a maioria das claacuteusulas dessa doutrina se algum direito a
uma interpretaccedilatildeo particular me for permitido Eu defendo por exemplo que o
homem eacute tatildeo completamente envolvido pelos limites de sua experiecircncia praacutetica
possiacutevel sua mente eacute tatildeo restrita a ser o instrumento de suas necessidades que
ele natildeo pode nem remotamente compreender algo que transcenda aqueles
limites A consequecircncia estrita disto eacute a de que eacute absurdo dizer-lhe que natildeo deve
pensar desta ou daquela forma porque fazecirc-lo seria transcender os limites de
uma experiecircncia possiacutevel Deixe-o tentar empenhadamente pensar qualquer
coisa que esteja aleacutem desse limite isso simplesmente natildeo pode ser feito Assim
como vocecirc pode aprovar uma lei de que nenhum homem deve saltar sobre a lua
isso natildeo lhe proibiria de saltar tatildeo alto quanto possivelmente pudesse (CP 5 536
1905)28
O filoacutesofo chega a afirmar que entre duas concepccedilotildees quaisquer uma com caraacuteter
antropomoacuterfico e outra natildeo preferiria a primeira pois ldquo() outras coisas permanecendo iguais
uma concepccedilatildeo antropomoacuterfica quer faccedila o melhor nuacutecleo para uma hipoacutetese de trabalho
cientiacutefico ou natildeo eacute muito mais provaacutevel que seja aproximadamente verdadeira do que aquela que
natildeo eacute antropomoacuterficaldquo (CP 5 notas 1903)29
Os elementos de todo conceito diz o autor entram
no pensamento loacutegico pela percepccedilatildeo e saem na forma de uma accedilatildeo propositada aqueles que
ldquo() natildeo podem apresentar seus passaportes nos dois portotildees devem ser detidos como natildeo
autorizados pela razatildeoldquo (CP 5 sect 212 1903)30
A exigecircncia de compreensibilidade eacute a principal
caracteriacutestica de toda hipoacutetese desse modo eacute natural que o aspecto antropomoacuterfico confira-lhes
de saiacuteda uma maior recomendaccedilatildeo Diz Peirce ldquo() que a uacutenica justificaccedilatildeo possiacutevel para uma
hipoacutetese eacute que ela torna os fatos compreensiacuteveis e que supocirc-los absolutamente incompreensiacuteveis
28 () if you had said Anthropomorphism I should have replied that I heartily embrace most of the clauses of that
doctrine if some right of private interpretation be allowed me I hold for instance that man is so completely
hemmed in by the bounds of his possible practical experience his mind is so restricted to being the instrument of his
needs that he cannot in the least mean anything that transcends those limits The strict consequence of this is that it
is all nonsense to tell him that he must not think in this or that way because to do so would be to transcend the limits
of a possible experience For let him try ever so hard to think anything about what is beyond that limit it simply
cannot be done You might as well pass a law that no man shall jump over the moon it wouldnt forbid him to jump
just as high as he possibly could 29
() other things being equal an anthropomorphic conception whether it makes the best nucleus for a scientific
working hypothesis or not is far more likely to be approximately true than one that is not anthropomorphic 30
() and whatever cannot show its passports at both those two gates is to be arrested as unauthorized by reason
38
(que eacute o que a doutrina do incognosciacutevel faz) eacute natildeo os tornar compreensiacuteveisldquo (CP 1 sect 316
1903)31
A fim de natildeo introduzir o inexplicaacutevel na natureza Peirce reconhece a necessidade de se
perguntar sobre a proacutepria origem das leis naturais que nas teorias necessitaristas32
entatildeo aceitas
como dissemos satildeo consideradas como dados inquestionaacuteveis
2 UMA ESTOacuteRIA BIZARRA
A centralidade do conceito de haacutebito na filosofia de Charles S Peirce eacute amplamente
reconhecida da mesma forma que o significado peculiar que este lhe atribui A partir de 1890
tendo conseguido vaacuterios avanccedilos no estabelecimento das categorias da experiecircncia Peirce
oferece uma interpretaccedilatildeo da noccedilatildeo de haacutebito por meio da qual lhe eacute conferida um estatuto
ontoloacutegico distanciando-a dessa maneira tanto da noccedilatildeo humeana como daquela utilizada pelos
psicoacutelogos do iniacutecio do seacuteculo XX Como afirma Bortolotti (2003 p 1) ldquo() o haacutebito passa a ser
a categoria universal da lei dotado de objetividaderdquo Como uma lei geral o haacutebito se entranha na
proacutepria constituiccedilatildeo do cosmo Eacute por meio do estabelecimento crescente do haacutebito tanto nos
homens quanto na natureza que se explica a diminuiccedilatildeo das variaccedilotildees e o aumento das
regularidades tanto quanto o incremento do poder humano de compreender o mundo e produzir
um comportamento autocontrolado
Por meio dos haacutebitos a capacidade humana de criar expectativas eacute desenvolvida e pelo
mesmo movimento produz-se um incremento no controle de suas proacuteprias experiecircncias Em um
texto de 1902 Peirce traccedila um quadro no qual eacute definida a noccedilatildeo de haacutebito e sua relaccedilatildeo com
31 () that the only possible justification for a hypothesis is that it renders the facts comprehensible and that to
suppose them absolutely incomprehensible (which is what the doctrine of the Unknowable comes to) is not rendering
them comprehensible 32
Necessitaristas eacute o adjetivo que Peirce utiliza para se referir aos adeptos do mecanicismo cuja principal
caracteriacutestica na opiniatildeo do autor eacute a afirmaccedilatildeo de que cada fato singular do universo eacute precisamente determinado
por lei (cf CP 6 sect 36 1892)
39
uma seacuterie de conceitos que lhe satildeo proacuteximos nele o autor declara
Uma expectativa eacute um haacutebito de imaginaccedilatildeo Um haacutebito natildeo eacute uma afecccedilatildeo da
consciecircncia eacute uma lei geral de accedilatildeo de tal forma que em certo tipo geral de
ocasiatildeo um homem estaraacute mais ou menos apto a agir de certo modo geral Uma
imaginaccedilatildeo eacute uma afecccedilatildeo da consciecircncia que pode ser diretamente comparada
com um percepto com respeito a alguma caracteriacutestica especial e ser
considerada em acordo ou desacordo com ele () Naturalmente cada
expectativa eacute uma questatildeo de inferecircncia () Para nosso objetivo presente eacute
suficiente dizer que um processo inferencial envolve a formaccedilatildeo de um haacutebito
Pois ele produz uma crenccedila ou opiniatildeo e uma crenccedila ou opiniatildeo genuiacutena eacute
algo sobre cujo conteuacutedo o homem estaacute preparado para agir e eacute portanto em um
sentido geral um haacutebito () Pois cada haacutebito tem ou eacute uma lei geral Tudo o
que eacute verdadeiramente geral refere-se ao futuro indefinido pois o passado
conteacutem unicamente uma certa coleccedilatildeo daqueles casos que ocorreram O passado
eacute fato real Mas o (fato) geral natildeo pode ser completamente realizado Eacute uma
potencialidade e o seu modo de ser eacute esse in futuro (CP 2 sect 148 1902)33
Percebemos na longa citaccedilatildeo acima que Peirce deixa claro que a noccedilatildeo de haacutebito estaacute
estreitamente ligada agrave noccedilatildeo de geral que por sua vez eacute outra maneira de fazer referecircncia agraves leis
Toda lei eacute geral e desse modo um haacutebito A noccedilatildeo de haacutebito ultrapassa o aspecto psicoloacutegico
para tornar-se uma categoria ontoloacutegica a de lei
Segundo a teoria do sinequismo reconhecida como a pedra fundamental da arquitetocircnica
peirceana todo geral eacute um continuum Peirce afirma que ldquo() continuidade e generalidade satildeo
dois nomes para a mesma falta de distinccedilatildeo de indiviacuteduosrdquo (CP 4 sect 172 1897)34
Assim ao
falarmos de haacutebitos gerais e em suas constituiccedilotildees estamos referindo agrave proacutepria origem e
33 An expectation is a habit of imagining A habit is not an affection of consciousness it is a general law of action
such that on a certain general kind of occasion a man will be more or less apt to act in a certain general way An
imagination is an affection of consciousness which can be directly compared with a percept in some special feature
and be pronounced to accord or disaccord with it () Of course every expectation is a matter of inference () For
our present purpose it is sufficient to say that the inferential process involves the formation of a habit For it produces
a belief or opinion and a genuine belief or opinion is something on which a man is prepared to act and is
therefore in a general sense a habit () For every habit has or is a general law Whatever is truly general refers to
the indefinite future for the past contains only a certain collection of such cases that have occurred The past is
actual fact But a general (fact) cannot be fully realized It is a potentiality and its mode of being is esse in futuro 34
() continuity and generality are two names for the same absence of distinction of individuals
40
constituiccedilatildeo das leis em particular e para os interesses deste texto das leis naturais ou seja
deslocamo-nos para o campo das discussotildees cosmoloacutegicas e cosmogocircnicas Coerente com sua
determinaccedilatildeo de banir o inexplicaacutevel do reino da ciecircncia Peirce ataca o problema da origem do
universo que usualmente era deixado sem explicaccedilatildeo Para aleacutem da origem a maacutexima que
ordena expandir o horizonte da inteligibilidade cientiacutefica requer uma explicaccedilatildeo da proacutepria
passagem da natildeo-existecircncia para a existecircncia
A maneira como o haacutebito se instaura e cresce eacute propriamente o modo por meio do qual a
cosmogonia peirceana explica o surgimento do cosmo A estrutura mais geral de cosmologia
peirceana eacute indicada pelo filoacutesofo na seguinte passagem
() no iniacutecio - infinitamente remoto - havia um caos de sentimentos impessoais
o qual sem conexatildeo ou regularidade seria propriamente carente de existecircncia
Esse sentimento variando aqui e ali na pura arbitrariedade teria iniciado o
germe da tendecircncia generalizante Suas outras variaccedilotildees poderiam ser
evanescentes mas esta teria uma virtude de crescimento Assim a tendecircncia ao
haacutebito teria comeccedilado e a partir daiacute com os outros princiacutepios de evoluccedilatildeo todas
as regularidades do universo teriam se desenvolvido Em qualquer tempo
entretanto um elemento de puro acaso sobrevive e permaneceraacute ateacute que o
mundo se torne um sistema absolutamente perfeito racional e simeacutetrico no qual
a mente eacute por fim cristalizada em um futuro infinitamente distante (CP 6 sect 33
1891)35
Esta citaccedilatildeo apresenta de forma condensada a narraccedilatildeo do iniacutecio do universo O trabalho
deste capiacutetulo eacute o de compreender os elementos aqui apresentados e as teorias que sustentam esta
abordagem Nota-se que uma vez iniciado o processo de crescimento do universo tanto a accedilatildeo do
acaso como a atuaccedilatildeo das regularidades e ateacute mesmo os eventos catastroacuteficos atuaratildeo para
35 () in the beginning -- infinitely remote -- there was a chaos of unpersonalized feeling which being without
connection or regularity would properly be without existence This feeling sporting here and there in pure
arbitrariness would have started the germ of a generalizing tendency Its other sportings would be evanescent but
this would have a growing virtue Thus the tendency to habit would be started and from this with the other
principles of evolution all the regularities of the universe would be evolved At any time however an element of
pure chance survives and will remain until the world becomes an absolutely perfect rational and symmetrical
system in which mind is at last crystallized in the infinitely distant future
41
formar o universo que conhecemos por meio da experiecircncia
21 O NADA
Peirce como indica Rosa identifica um processo que ocorre antes da proacutepria existecircncia do
universo Um processo de diferenciaccedilatildeo que ocorre no interior do nada e o distingue em dois
tipos um nada caoacutetico e um nada ainda mais primitivo Nas palavras de Rosa
O nada primitivo eacute um estado em que o ldquouniverso natildeo existiardquo um ldquoabsoluto
nadardquo Contudo esse Nada absoluto tem propriedades notaacuteveis na medida em
que a totalidade do universo atual jaacute se encontrava nele em germe com efeito
ele representa a totalidade das possibilidades (ROSA 2003 p 291)
Esse nada pode ser entendido como uma entidade loacutegica constituiacuteda por predicados que
sejam compatiacuteveis Nesse nada portanto encontram-se fundidas todas as possibilidades
consistentes do universo Ele eacute como Peirce indicou o mundo platocircnico (cf CP 6 sect 192 1892)
a partir do qual o mundo surgiu por meio de uma determinaccedilatildeo arbitraacuteria Em outro texto ao
introduzir a hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce afirma
Devemos supor que haacute alguma coisa como uma folha de papel vazia ou com um
espaccedilo vazio sobre o qual um signo interpretante possa ser escrito Qual a
natureza desse vazio Ao permitir a escrita de um siacutembolo ele eacute ipso facto um
siacutembolo embora de um tipo completamente vago (NEM 4 p 260)36
36 We must suppose that there is something like a sheet of paper blank or with a blank space upon it upon which an
interpretant sign may be written What is the nature of this blank In affording room for the writing of a symbol it is
ipso facto itself a symbol although a wholly vague one
42
Esse vazio soacute pode ser um continuum completamente vago37 no qual todas as
possibilidades coerentes estatildeo completamente fundidas O nada eacute nessa etapa um continuum de
infinitas dimensotildees potenciais natildeo distintas (cf CP 6 sect 132 1892 CP 6 sect 193 1898 CP 6 sect
203 1898)
Do nada assim descrito por um processo de contraccedilatildeo da potencialidade em generalidade
surgem as diferentes dimensotildees qualitativas por meio da evoluccedilatildeo que tem lugar antes mesmo
da existecircncia do universo Como afirma Peirce ldquoO processo evolucionaacuterio eacute portanto natildeo uma
mera evoluccedilatildeo do universo existente mas antes um processo pelo qual as proacuteprias formas
platocircnicas se desenvolveram ou se desenvolvemrdquo (CP 6 sect 194 1898)38
Nessa evoluccedilatildeo o
possiacutevel contrai-se no geral por meio de um processo de diferenciaccedilatildeo
A evoluccedilatildeo das formas tem iniacutecio ou em alguma medida possui em seu estaacutegio
inicial uma vaga possibilidade e que eacute ou eacute seguido por um continuum de
formas que possui uma quantidade de dimensotildees muito grande para que a
dimensatildeo individual seja distinta Deve ser a partir da contraccedilatildeo da vagueza
daquela potencialidade de tudo em geral mas de nada em particular que o
mundo das formas surge () e as relaccedilotildees de suas dimensotildees tornam-se
definidas e contraiacutedas (CP 6 sectsect 196-7 1898)39
Do ponto de vista cosmoloacutegico cada dimensatildeo constitui uma qualidade una Aqui temos a
origem do princiacutepio de contradiccedilatildeo no momento da definiccedilatildeo dessas dimensotildees qualitativas
37 A natureza desse continuum potencial merece alguma atenccedilatildeo pois a continuidade presente na origem eacute distinta
daquela recuperada em termos de lei apoacutes o processo evolucionaacuterio entrar em cena Aparentemente a relaccedilatildeo entre
continuidade e lei natildeo eacute simeacutetrica toda lei tem a natureza de um continuum mas natildeo se pode dizer que o inverso seja
verdadeiro Eacute por meio da transformaccedilatildeo do continuum inicial no continuum atual que as formas individuais podem
se estabelecer 38
The evolutionary process is therefore not a mere evolution of the existing universe but rather a process by which
the very Platonic forms themselves have become or are becoming developed 39
The evolution of forms begins or at any rate has for an early stage of it a vague potentiality and that either is or
is followed by a continuum of forms having a multitude of dimensions too great for the individual dimensions to be
distinct It must be by a contraction of the vagueness of that potentiality of everything in general but of nothing in
particular that the world of forms comes about () the relations of its dimensions became definite and contracted
43
Peirce diz ldquoO Agora eacute uno e apenas uno O princiacutepio de contradiccedilatildeo pode ser visto como um
resultado formal da mesma coisa Qualquer objeto A natildeo pode ser azul e natildeo azul ao mesmo
tempordquo (CP 6 sect 231 1898)40
O estado desse nada caoacutetico de n dimensotildees eacute algo que natildeo podemos conceber claramente
mas o processo de formaccedilatildeo das qualidades distintas eacute descrito por Peirce da seguinte maneira
Atualmente jaacute natildeo podemos formar senatildeo uma tecircnue concepccedilatildeo acerca da
continuidade das qualidades intriacutensecas de sentimento O desenvolvimento da
mente humana extinguiu praticamente todos os sentimentos exceto algumas
espeacutecies esporaacutedicas como sons cores cheiros calor etc as quais aparecem
agora desconectadas e diferentes No caso das cores haacute uma difusatildeo
tridimensional de sentimentos Originariamente todos os sentimentos podem ter
estado conectados da mesma forma e a suposiccedilatildeo consiste em que o nuacutemero de
dimensotildees era infinito Na verdade o desenvolvimento envolve de modo
essencial uma limitaccedilatildeo de possibilidade (CP 6 sect 132 1892)41
Na medida em que o continuum inicial vai sendo cindido em n dimensotildees tem iniacutecio um
processo de resistecircncia reciacuteproca entre as dimensotildees Vemos aiacute a atuaccedilatildeo de duas tendecircncias que
se colocavam como meras potencialidades no nada original a tendecircncia agrave diversificaccedilatildeo e a
tendecircncia agrave generalizaccedilatildeo que garante a permanecircncia das dimensotildees e elimina a diversificaccedilatildeo Eacute
a atuaccedilatildeo dessas duas tendecircncias que permite a Peirce estabelecer um importante princiacutepio o
princiacutepio de semelhanccedila e contraste
A semelhanccedila eacute determinada pela posiccedilatildeo que a qualidade ocupa no continuum Peirce diz
que
40 The Now is one and but one The principle of contradiction may be regarded as a formalistic result of the same
thing Any object A cannot be blue and not blue at once 41
Of the continuity of intrinsic qualities of feeling we can now form but a feeble conception The development of the
human mind has practically extinguished all feelings except a few sporadic kinds sound colours smells warmth
etc which now appear to be disconnected and disparate In the case of colours there is a tridimensional spread of
feelings Originally all feelings may have been connected in the same way and the presumption is that the number
of dimensions was endless For development essentially involves a limitation of possibilities
44
Apesar das qualidades naquilo que elas satildeo para si mesmas cada uma sendo um
mero nada para qualquer outra natildeo estarem relacionadas umas com as outras
elas formam contudo um continuum no qual por causa da posiccedilatildeo que nele
ocupam adquirem mais ou menos semelhanccedila e contraste umas em relaccedilatildeo agraves
outras (NEM 4 p 137 ca 1898)42
Eacute a partir da semelhanccedila e contraste que Peirce enuncia a lei da mente a qual seraacute discutida
em mais detalhes na sequecircncia Uma primeira definiccedilatildeo de lei da mente pode ser encontrada nas
seguintes palavras de Peirce
() as ideias tendem a difundir-se continuamente e a afetar certas outras que se
encontram com elas em uma peculiar relaccedilatildeo de afetabilidade Nessa difusatildeo
elas perdem intensidade e especialmente o poder de afetar outras mas adquirem
generalidade e ficam fundidas com outras ideias (CP 6 sect 104 1892)43
Em siacutentese deixando de lado os pormenores da formulaccedilatildeo peirceana pode-se resumir a
hipoacutetese da origem do universo da maneira que se segue Identificam-se trecircs estaacutegios dessa
origem em um primeiro no iniacutecio absoluto antes da proacutepria existecircncia do universo encontra-se
o puro nada segundo a descriccedilatildeo fornecida por Peirce
A condiccedilatildeo inicial antes da existecircncia do universo natildeo foi o estado de um ser
puro e abstrato Ao contraacuterio foi o estado de um absoluto nada nem mesmo um
estado de vazio pois mesmo o vazio eacute alguma coisa Se vamos proceder de um
modo loacutegico e cientiacutefico devemos a fim de considerar todo o universo supor
42 But just as the qualities which as they are for themselves are equally unrelated to one other each being mere
nothing for any other yet form a continuum in which and because of their situation in which they acquire more or
less resemblance and contrast with one and other 43
() ideas tend to spread continuously and to affect certain others which stand to them in a peculiar relation of
affectability In this spreading they lose intensity and especially the power of affecting others but gain generality
and become welded with other ideas
45
uma condiccedilatildeo inicial na qual o universo completo era carente de existecircncia e
assim um estado de absoluto nada (CP 6 sect 215 1898)44
e acrescenta
Natildeo haacute coisa individual nenhuma compulsatildeo externa ou interna nenhuma lei
Eacute o nada germinal no qual todo o universo estaacute envolvido ou prenunciado
Como tal ele eacute possibilidade absolutamente indefinida e ilimitada ndash
possibilidade sem fronteiras Natildeo haacute compulsatildeo nem lei Eacute a liberdade sem
fronteiras (CP 6 sect 217 1898)45
O nada assim descrito eacute um estado indiferenciado de qualidade de sentimento sem relaccedilatildeo
com qualquer outra coisa nos termos peirceanos o sentimento eacute monaacutedico46
A existecircncia do
universo nesse momento era apenas uma das possibilidades tatildeo provaacutevel quanto a sua natildeo
existecircncia O segundo estaacutegio caracterizado pela reaccedilatildeo surge de uma singularidade no interior
do estado de indiferenciaccedilatildeo Peirce fala de reaccedilotildees acidentais ou bdquoflashesrsquo entre os eventos (cf
CP 3 sect 412 1890) isto eacute do surgimento de relaccedilotildees diaacutedicas expressas por reaccedilotildees brutas O
terceiro estaacutegio surge por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo de uma das possibilidades que tem na sua
atualizaccedilatildeo a virtude do seu proacuteprio crescimento isto eacute de tornar mais provaacutevel a sua repeticcedilatildeo
na sequecircncia dos eventos No iniacutecio essas regularidades seriam bastante deacutebeis mas com o
reforccedilo promovido pelo aumento da possibilidade de sua repeticcedilatildeo futura elas se tornariam cada
vez mais fortes ateacute transformarem-se em um haacutebito A regularidade estabelece um tipo de relaccedilatildeo
44 The initial condition before the universe existed was not a state of pure abstract being On the contrary it was a
state of just nothing at all not even a state of emptiness for even emptiness is something If we are to proceed in a
logical and scientific manner we must in order to account for the whole universe suppose an initial condition in
which the whole universe was non-existent and therefore a state of absolute nothing 45
There is no individual thing no compulsion outward nor inward no law It is the germinal nothing in which the
whole universe is involved or foreshadowed As such it is absolutely undefined and unlimited possibility --
boundless possibility There is no compulsion and no law It is boundless freedom 46
Peirce pretende ter provado que todas as relaccedilotildees podem ser reduzidas a trecircs tipos baacutesicos monaacutedicas nas quais os
elementos natildeo possuem quaisquer relaccedilotildees a natildeo ser com eles mesmos eacute o sentimento em sua mais pura expressatildeo
diaacutedicas que eacute a relaccedilatildeo entre dois agraves vezes descrita como atrito ou resistecircncia e triaacutedicas relaccedilatildeo de mediaccedilatildeo
46
triaacutedica caracterizada por um terceiro que faz a mediaccedilatildeo entre um primeiro e um segundo47
Em uma passagem um pouco longa mas muito esclarecedora Peirce traccedila as relaccedilotildees entre
os trecircs elementos constituintes do cosmo e como diante deles o homem pode compreender o
mundo e falar sobre ele
() de acordo com meu modo de ver haacute trecircs categorias de ser ideias de
sentimentos atos de reaccedilatildeo e haacutebitos Haacutebitos satildeo haacutebitos a respeito de
ideias de sentimentos ou haacutebitos a respeito de atos de reaccedilatildeo O conjunto
de todos os haacutebitos a respeito de ideias de sentimentos constitui um
grande haacutebito que eacute um Mundo e o conjunto de todos os haacutebitos a
respeito de haacutebitos de reaccedilatildeo constitui um segundo grande haacutebito que eacute
outro Mundo O primeiro eacute o Mundo Interior o mundo das formas de
Platatildeo O outro eacute o Mundo Exterior ou universo da existecircncia A mente
do homem estaacute adaptada agrave realidade do ser De acordo com isso haacute dois
modos de associaccedilatildeo de ideias associaccedilatildeo interior baseada em haacutebitos do
Mundo Interior e associaccedilatildeo exterior baseada em haacutebitos do Universo A
primeira eacute comumente chamada associaccedilatildeo por semelhanccedila mas em
minha opiniatildeo natildeo eacute a semelhanccedila que causa a associaccedilatildeo mas a
associaccedilatildeo que constitui a semelhanccedila Uma ideia de um sentimento eacute
como ela eacute em si mesma sem quaisquer elementos ou relaccedilotildees Um matiz
de vermelho em si mesmo natildeo se assemelha a outro matiz de vermelho
De fato quando falamos de um matiz de vermelho natildeo eacute da ideia de
sentimento que estamos falando mas de um conjunto de tais ideias Essa
unificaccedilatildeo no Mundo Interior que constitui o que apreendemos e a que
denominamos sua semelhanccedila Estando nossas mentes consideravelmente
adaptadas ao Mundo Interior as ideias de sentimentos atraem-se umas agraves
outras em nossas mentes e no curso de nossa experiecircncia do Mundo
Interior desenvolvem conceitos gerais A tais conjuntos chamamos
qualidades sensiacuteveis Associaccedilotildees de nossos pensamentos tendo por base
os atos de reaccedilatildeo satildeo denominadas associaccedilotildees por contiguidade uma
expressatildeo com a qual natildeo discutirei pois somente os atos de reaccedilatildeo
podem ser contiacuteguos Pois ser contiacuteguo eacute estar proacuteximo no espaccedilo e em
um soacute tempo e somente um ato de reaccedilatildeo pode preencher um espaccedilo por
ele mesmo A mente por sua adaptaccedilatildeo instintiva ao Mundo Exterior
representa as coisas como estando no espaccedilo o qual eacute sua representaccedilatildeo
intuitiva da conjunccedilatildeo de reaccedilotildees ou para usar uma frase mais familiar
um centro de forccedilas Consequentemente desse duplo modo de associaccedilatildeo
de ideias quando algueacutem chega a formar uma linguagem produz palavras
de duas classes palavras que denominam coisas coisas essas que ele
identifica pela uniatildeo de suas reaccedilotildees essas palavras satildeo nomes proacuteprios e
47 Temos por meio da narraccedilatildeo acima uma caracterizaccedilatildeo inicial das categorias fenomenoloacutegicas peirceana
primeiridade caracterizada por relaccedilotildees monaacutedicas secundidade caracterizada por relaccedilotildees diaacutedicas e terceiridade
caracterizada por relaccedilotildees triaacutedicas (cf IBRI 1992)
47
palavras que significam ou querem dizer qualidades que satildeo fotografias
compostas de ideias de sentimentos e tais palavras satildeo verbos ou porccedilotildees
de verbos tais como satildeo os adjetivos os substantivos comuns etc (CP 4
sect 157 1897)48
A espontaneidade potencial ou puro sentimento deu origem ao universo atual que
continua em crescimento Entre as possibilidades uma destacou-se por ter a cada realizaccedilatildeo o
incremento da possibilidade de suas realizaccedilotildees futuras Peirce denomina essa possibilidade
peculiar de princiacutepio motor responsaacutevel pela origem e desenvolvimento das regularidades de lei
da mente lei de associaccedilatildeo de ideias ou lei do haacutebito Rosa (2003) tece o seguinte comentaacuterio a
respeito da origem do universo segundo a cosmologia peirceana
O comeccedilo do processo cosmogocircnico consiste precisamente num processo que
parte de uma alta intensidade de grande espontaneidade e que tende a anular
essa intensidade atraveacutes de ideias gerais As ideias gerais reduzem a intensidade
na medida em que satildeo atractores para outras ideias situadas na sua vizinhanccedila
Noutros termos houve um momento em que uma grande quantidade de
48 () according to my view there are three categories of being ideas of feelings acts of reaction and habits Habits
are either habits about ideas of feelings or habits about acts of reaction The ensemble of all habits about ideas of
feeling constitutes one great habit which is a World and the ensemble of all habits about acts of reaction constitutes
a second great habit which is another World The former is the Inner World the world of Platos forms The other is
the Outer World or universe of existence The mind of man is adapted to the reality of being Accordingly there are
two modes of association of ideas inner association based on the habits of the inner world and outer association
based on the habits of the universe The former is commonly called association by resemblance but in my opinion it
is not the resemblance which causes the association but the association which constitutes the resemblance An idea
of a feeling is such as it is within itself without any elements or relations One shade of red does not in itself
resemble another shade of red Indeed when we speak of a shade of red it is already not the idea of the feeling of
which we are speaking but of a cluster of such ideas It is their clustering together in the Inner World that constitutes
what we apprehend and name as their resemblance Our minds being considerably adapted to the inner world the
ideas of feelings attract one another in our minds and in the course of our experience of the inner world develop
general concepts What we call sensible qualities are such clusters Associations of our thoughts based on the habits
of acts of reaction are called associations by contiguity an expression with which I will not quarrel since nothing
can be contiguous but acts of reaction For to be contiguous means to be near in space at one time and nothing can
crowd a place for itself but an act of reaction The mind by its instinctive adaptation to the Outer World represents
things as being in space which is its intuitive representation of the clustering of reactions What we call a Thing is a
cluster or habit of reactions or to use a more familiar phrase is a centre of forces In consequence of this double
mode of association of ideas when man comes to form a language he makes words of two classes words which
denominate things which things he identifies by the clustering of their reactions and such words are proper names
and words which signify or mean qualities which are composite photographs of ideas of feelings and such words
are verbs or portions of verbs such as are adjectives common nouns etc
48
sentimento estava associada a cada qualidade era um estado de espontaneidade
ilimitada das qualidades um sentimento muito intenso presente em cada
variaccedilatildeo infinitesimal Essa espontaneidade diminui assim que deixa de haver o
sentimento de variaccedilotildees ldquomuito pequenasrdquo da qualidade (CP 6 sect 136 1892) Jaacute
natildeo eacute a passagem do Nada inicial para qualquer coisa de definido mas sim do
que Peirce chamava o caos inicial das qualidades para uma generalizaccedilatildeo cada
vez maior (ROSA 2003 p 297-8)
A narraccedilatildeo da origem do universo pode parecer para muitos algo bastante estranho e em
desacordo com o todo da obra peirceana Um de seus comentadores a denominou de ldquoestoacuteria
bizarrardquo (cf HOOKWAY 1997) A leitura dessa narrativa faz surgir de imediato duas criacuteticas
Em primeiro lugar pode argumentar-se que as categorias peirceanas de primeiridade
secundidade e terceiridade natildeo satildeo universais uma vez que natildeo estatildeo presentes desde o iniacutecio (cf
HOOKWAY 1985 p 273) A categoria de terceiridade soacute teria surgido depois que a tendecircncia ao
estabelecimento de haacutebitos estivesse operante e no iniacutecio absoluto natildeo haveria sequer a
secundidade Uma maneira de evitar essa criacutetica eacute lembrar que para Peirce a sequecircncia descrita
acima eacute loacutegica (cf CP 6 sect 214 1898) e natildeo cronoloacutegica aliaacutes como deixa bastante claro o
tempo eacute um continuum e desse modo soacute entra em cena apoacutes o estabelecimento da terceiridade Eacute
o processo loacutegico descrito acima que lhe daacute origem Por meio desse raciociacutenio a universalidade
de suas categorias eacute preservada ainda que sua limitaccedilatildeo neste caso talvez fosse um preccedilo que
Peirce estivesse disposto a pagar Esta resposta pode ser enriquecida com a consideraccedilatildeo de que eacute
impossiacutevel atingir o iniacutecio absoluto Mesmo se pudeacutessemos voltar no tempo veriacuteamos as leis se
tornarem mais e mais deacutebeis e a variedade crescer constantemente afirma Peirce Contudo ainda
que a aproximaccedilatildeo do iniacutecio absoluto se tornasse cada vez maior natildeo poderiacuteamos atingi-lo
Como aponta Hookway
Ainda que nunca atingiacutessemos o caos inicial de sentimentos ainda assim
poderiacuteamos ficar arbitrariamente proacuteximos dele se continuaacutessemos por um
tempo suficiente longo o caos eacute algo que a histoacuteria poderia abordar como um
limite e o pensamos como o ponto limite dessa histoacuteria (HOOKWAY 1985 p
273)
49
Do mesmo modo pensar o fim uacuteltimo do universo como um estado absolutamente
ordenado e regular eacute tambeacutem um limite ao qual podemos apenas nos aproximar mais e mais sem
contudo alcanccedilar Quando Peirce se refere a tais estados limites coloca-os em momentos
infinitamente distantes e infinito aqui natildeo deve ser interpretado como uma figura de linguagem
mas como refletindo exatamente o intervalo que nos separa desses momentos
A outra criacutetica possiacutevel eacute a de que Peirce postula a existecircncia de um caos de indeterminaccedilatildeo
e possibilidades sem contudo fornecer qualquer explicaccedilatildeo ao mesmo Formulada de outra
forma bastante proacutexima da criacutetica endereccedilada a Peirce por Paul Carus49 como explicar a
presenccedila desses elementos fundamentais indicados por Peirce como iniciadores do processo de
desenvolvimento evolutivo do universo isto eacute do caos inicial das reaccedilotildees ao acaso e da
tendecircncia ao haacutebito
Em 1892 no texto ldquoA doutrina da necessidade examinadardquo ao realizar a defesa da
existecircncia do acaso absoluto como um princiacutepio operante no desenvolvimento do cosmo Peirce
afirma que a lei eacute justamente aquilo que necessita de uma explicaccedilatildeo ao passo que exigir o
mesmo para o acaso seria um equiacutevoco O caos inicial natildeo eacute ou seja natildeo possui o predicado de
existecircncia visto que a potencialidade eacute sua uacutenica propriedade A existecircncia segundo a
abordagem peirceana eacute uma relaccedilatildeo de dois caracterizada pelo atrito e pela resistecircncia o caos
inicial eacute pura possibilidade de qualidade e enquanto tal apresenta apenas relaccedilotildees monaacutedicas
radicalmente livres Como afirma Hookway ldquo() o caos inicial - sendo um estado carente de
existecircncia ou realidade um estado de puro nada - natildeo eacute o tipo de coisa que precisa ser explicadordquo
(HOOKWAY 1985 p 274) Nem o caos inicial e nem mesmo os eventos puramente reativos ou
flashes necessitam de qualquer explicaccedilatildeo o mesmo natildeo se pode dizer contudo da tendecircncia agrave
aquisiccedilatildeo de haacutebitos que eacute uma regularidade Seguindo o mesmo raciociacutenio que fizemos
anteriormente se retornaacutessemos ao passado veriacuteamos o poder da tendecircncia agrave aquisiccedilatildeo de
haacutebitos diminuir cada vez mais contudo nunca chegariacuteamos a um momento em que estivesse
ausente dos ingredientes constituintes do cosmo E na medida em que eacute uma possibilidade a sua
49 Editor do The Monist jornal que recebeu muitas contribuiccedilotildees de Peirce
50
origem pode ser explicada a partir da espontaneidade do caos inicial
22 O ACASO
Para Peirce a adoccedilatildeo da noccedilatildeo de acaso eacute em primeiro lugar uma necessidade da proacutepria
teoria da explicaccedilatildeo A sua introduccedilatildeo eacute feita por meio da sujeiccedilatildeo a um imperativo loacutegico
alusivo agrave hipoacutetese peirceana de que toda questatildeo que possa ser formulada de modo inteligiacutevel
tem necessariamente que possuir uma resposta racional Como afirma em um texto de 1884
ldquoDesiacutegnio e acasordquo
() a hipoacutetese do acaso absoluto eacute parte e parcela da hipoacutetese de que tudo eacute
explicaacutevel natildeo absolutamente rigidamente sem a menor inexatidatildeo ou exceccedilatildeo
esporaacutedica pois esta eacute uma suposiccedilatildeo autocontraditoacuteria contudo explicaacutevel de
modo geral A capacidade de explicaccedilatildeo natildeo tem limite determinado amp absoluto
(W 4 p 549 1883-4)50
O imperativo que manda ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo tem nessas palavras
uma de suas traduccedilotildees Como aponta Peirce um dos principais defeitos das teorias deterministas
encontra-se no fato de que elas deixam sem explicaccedilatildeo uma seacuterie de aspectos do cosmo O que
dizer sobre a proacutepria origem das leis deterministas Por que o universo segue estas leis e natildeo
outras E quanto agrave diversidade observada no universo Como ela eacute possiacutevel Como do
indiferenciado pocircde surgir a diferenccedila por meio da atuaccedilatildeo de leis estritamente deterministas
que levam de causas idecircnticas a efeitos idecircnticos A resposta a estas questotildees expande o universo
da inteligibilidade humana Eacute justamente o que pretende Peirce com a elaboraccedilatildeo e exploraccedilatildeo da
50 () the hypothesis of absolute chance is part and parcel of the hypothesis that everything is explicable not
absolutely rigidly without the smallest inexactitude or sporadic exception for that is a self-contradictory supposition
but yet explicable in a general way Explicability has no determinate amp absolute limit
51
hipoacutetese do acaso como um ingrediente essencial da constituiccedilatildeo do universo tal qual o
percebemos
Um dos aspectos mais originais do pensamento de Charles S Peirce eacute a presenccedila de um
princiacutepio de indeterminaccedilatildeo como elemento fundador de sua cosmologia Contrariamente a
muitos que procuram insistentemente ancorar a realidade sobre a permanecircncia e a imutabilidade
de certos elementos Peirce assume de maneira inquestionaacutevel a liberdade e a falta de
necessidade do mundo ser como eacute Ainda que o processo de desenvolvimento se decirc em funccedilatildeo de
certos princiacutepios norteadores natildeo haacute impedimento algum que barre a irrupccedilatildeo da novidade
radical no rearranjo de seus constituintes Um fato que na visatildeo de Peirce natildeo pode ser ignorado
eacute o de que o universo demonstra um processo de contiacutenuo crescimento que propicia o aumento
da complexidade de forma irreversiacutevel
O acaso eacute o elemento central da tese peirceana do indeterminismo denominada de tiquismo
(ver REYNOLDS 2009 SALATIEL 2008) Com o tiquismo o autor afirma que haacute no mundo
um caraacuteter de real espontaneidade natildeo devido agrave nossa subjetividade ou incapacidade cognitiva
mas agrave sua proacutepria constituiccedilatildeo ontoloacutegica Esse elemento nega a possibilidade do
desenvolvimento necessaacuterio dos sistemas determinados pelas leis mecacircnicas e pelas condiccedilotildees
iniciais as quais soacute podem ser entendidas como estatiacutesticas Peirce explica dessa maneira que
pela atuaccedilatildeo do acaso surgem a novidade e a variedade no universo
A concorrecircncia desses dois ingredientes acaso e lei implica a elaboraccedilatildeo de uma
epistemologia falibilista ou seja natildeo haacute verdades absolutas na concepccedilatildeo peirceana apenas
aproximaccedilotildees O erro eacute sempre uma possibilidade presente na tentativa de compreensatildeo realizada
pelo homem Para o filoacutesofo
() o universo natildeo eacute um mero resultado mecacircnico da atuaccedilatildeo cega da lei O
mais oacutebvio de seus caracteres natildeo pode ser explicado Satildeo os numerosos fatos da
experiecircncia que nos mostra isso mas aquilo que abriu os nossos olhos para esses
52
fatos eacute o princiacutepio do falibilismo (CP 1 sect 162 1897)51
Peirce eacute bastante radical ao afirmar que natildeo haacute crenccedilas estabelecidas na ciecircncia Todas as
proposiccedilotildees aceitas estatildeo sujeitas ao confronto com a experiecircncia Nas palavras do autor
() ciecircncia pura natildeo tem nada a ver com accedilatildeo As proposiccedilotildees aceitas satildeo
meramente escritas na lista de premissas que se propotildee a usar Nada eacute vital para
a ciecircncia nada pode ser Suas proposiccedilotildees aceitas portanto natildeo satildeo mais que
opiniotildees e a lista toda eacute provisoacuteria O homem cientiacutefico natildeo estaacute minimamente
soldado agraves suas conclusotildees Ele nada arrisca por elas Permanece apto a
abandonar uma ou todas tatildeo logo a natureza a elas se oponha Algumas delas eu
concedo satildeo habitualmente chamadas de verdades estabelecidas mas isto
meramente indica proposiccedilotildees a que nenhum homem experiente se opotildee hoje
Parece que qualquer proposiccedilatildeo provaacutevel daquele tipo permaneceraacute por um
longo tempo na lista de proposiccedilotildees a serem admitidas Contudo ela pode ser
refutada amanhatilde e se for assim o homem cientiacutefico se alegraraacute de ter se livrado
de um erro Natildeo haacute desse modo na ciecircncia proposiccedilotildees que respondam pelo
conceito de crenccedila (CP 1 sect 635 1908)52
Para Peirce existe uma afinidade natural entre o princiacutepio de continuidade e a doutrina do
falibilismo nunca podemos estar certo da verdade de nossas crenccedilas pois natildeo podemos comparaacute-
las com os fatos natildeo mentais
51 () the universe is not a mere mechanical result of the operation of blind law The most obvious of all its
characters cannot be so explained It is the multitudinous facts of all experience that show us this but that which has
opened our eyes to these facts is the principle of fallibilism 52
() pure science has nothing at all to do with action The propositions it accepts it merely writes in the list of
premisses it proposes to use Nothing is vital for science nothing can be Its accepted propositions therefore are but
opinions at most and the whole list is provisional The scientific man is not in the least wedded to his conclusions
He risks nothing upon them He stands ready to abandon one or all as soon as experience opposes them Some of
them I grant he is in the habit of calling established truths but that merely means propositions to which no
competent man today demurs It seems probable that any given proposition of that sort will remain for a long time
upon the list of propositions to be admitted Still it may be refuted tomorrow and if so the scientific man will be
glad to have got rid of an error There is thus no proposition at all in science which answers to the conception of
belief
53
O princiacutepio da continuidade eacute a ideia do falibilismo objetivado Pois o
falibilismo eacute a doutrina de que o nosso conhecimento nunca eacute absoluto mas
sempre flutua como se estivesse em um contiacutenuo de incerteza e
indeterminaccedilatildeo A doutrina da continuidade eacute a de que todas as coisas flutuam da
mesma maneira no continuum (CP 1 sect 171 1897)53
A passagem da natildeo existecircncia do universo agrave existecircncia se daacute por meio da evoluccedilatildeo ou
crescimento da lei em um processo no qual interferem tanto a criatividade radical fornecida pelo
acaso quanto a proacutepria lei que se fortalece com sua proacutepria aplicaccedilatildeo
Em resumo podemos dizer que do ponto de vista cosmoloacutegico o desenrolar dos
acontecimentos no universo se processa de maneira contiacutenua Esse desenvolvimento que para
Peirce eacute bem caracterizado pelo termo bdquocrescimento‟ molda dentro de sua concepccedilatildeo
cosmoloacutegica todos os elementos constituintes de nosso universo desde o mais riacutegido dos
elementos ateacute aqueles mais volaacuteteis desde um diamante ateacute a proacutepria mente humana Esse
universo em crescimento encontra no acaso seu constituinte fundamental como uma
decorrecircncia loacutegica necessaacuteria do princiacutepio que manda natildeo postular o incognosciacutevel no seio da
natureza (cf CP 6 sect 64 1892) e que Peirce assume como uma regra do meacutetodo cientiacutefico Na
passagem do acaso primordial ao universo ordenado e regido por leis interfere um princiacutepio que o
autor denomina de lei da mente ou princiacutepio de aquisiccedilatildeo de haacutebitos
Eacute possiacutevel enxergar a elaboraccedilatildeo teoacuterica peirceana como a resultante de um diaacutelogo com a
Ciecircncia e a Matemaacutetica do seacuteculo XIX A leitura que Peirce fez da obra de Charles Darwin
(1809ndash1882) bem como os avanccedilos da teoria matemaacutetica da probabilidade e estatiacutestica e da
mecacircnica estatiacutestica com os quais teve iacutentimo contato forneceram as bases para pensar a
variaccedilatildeo e o acaso54 Eacute com base nesse conceito que Peirce proporaacute uma alternativa ao modelo de
53 The principle of continuity is the idea of fallibilism objectified For fallibilism is the doctrine that our knowledge is
never absolute but always swims as it were in a continuum of uncertainty and of indeterminacy Now the doctrine
of continuity is that all things so swim in continua 54
Os termos usados por Peirce para referenciar esse elemento de total liberdade existente no cosmo satildeo variation
sporting e chance que aparecem em vaacuterios momentos de sua obra principalmente apoacutes a leitura que realizou ainda
jovem da obra capital de Charles Darwin A origem das espeacutecies (1859)
54
cientificidade da eacutepoca que estava calcado em uma atitude fisicalista e determinista e defendia a
busca de leis mecacircnicas de alcance universal e necessaacuterio
23 A DOUTRINA DA NECESSIDADE
Em seu mais elaborado texto sobre sua posiccedilatildeo indeterminista A doutrina da necessidade
examinada Peirce inicia por apresentar a crenccedila bastante presente em seu tempo que seraacute objeto
de sua anaacutelise ldquo() que todo fato no universo eacute precisamente determinado por leirdquo (CP 6 sect 36
1892)55
Essa crenccedila que para muitos pode parecer bastante natural natildeo se impotildee a todas as
mentes racionais diraacute o autor A ideia de que haacute acontecimentos naturais que ocorrem sem
determinaccedilatildeo de uma lei eacute bastante difundida desde a origem da filosofia56 e estaacute presente ateacute
mesmo nos trabalhos de Aristoacuteteles57 Natildeo obstante estas constataccedilotildees a tese do determinismo
aparece como inquestionaacutevel para os cientistas de seu tempo e podemos dizer ainda manteacutem
cativos vaacuterios pensadores no presente seacuteculo Parafraseando Pierre Simon Laplace (1749 ndash 1827)
o fiacutesico francecircs do seacuteculo XVIII que popularizou esta teoria Peirce sintetiza a crenccedila no
determinismo nas seguintes palavras
A proposiccedilatildeo em questatildeo eacute a de que o estado das coisas existentes em qualquer
tempo junto com certas leis imutaacuteveis determina completamente o estado de
coisas em qualquer outro tempo (pois a limitaccedilatildeo do tempo futuro eacute
indefensaacutevel) Assim dado o estado do universo na neacutebula original e dadas as
leis da mecacircnica uma mente suficientemente poderosa poderia deduzir a partir
desses dados a forma precisa de qualquer volteio de qualquer letra que estou
55 () that every single fact in the universe is precisely determined by law
56 Basta ver o trabalho de Epicuro que tomando a doutrina dos atomistas afirma que os aacutetomos desviam-se de seu
curso sob a accedilatildeo do acaso espontacircneo 57
Segundo Peirce Aristoacuteteles condena as doutrinas deterministas afirmando que os eventos podem surgir de trecircs
modos diferentes ldquo(1) por compulsatildeo externa ou accedilatildeo de causas eficientes (2) por virtude da natureza interna ou
influecircncia de causas finais e (3) irregularmente sem qualquer causa definida soacute pelo acaso absolutordquo (CP 6 sect 36
1892)
55
agora escrevendo (CP 6 sect 37 1892)58
A abordagem dos deterministas eacute dita em termos da teoria das categorias peirceana
carregada da noccedilatildeo de secundidade Como aponta o autor a questatildeo natildeo precisa nem ser
colocada em termos da negaccedilatildeo da noccedilatildeo de primeiridade59
que poderia muito bem ser admitida
pelos defensores do determinismo no niacutevel atocircmico sem grandes implicaccedilotildees O que tais
defensores natildeo podem aceitar eacute ldquo() a atribuiccedilatildeo dessa primeiridade a coisas completamente
mortas e materiaisrdquo (CP 6 sect 201 1898)60
Aqueles que comungam do credo determinista utilizam-se de dois tipos principais de
argumentos para justificaacute-lo Em primeiro lugar afirmam que ele deve ser visto como um
postulado que possibilita a praacutetica e o desenvolvimento da ciecircncia e em segundo lugar
acrescentam que a observaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais fornece evidecircncias suficientes para a sua
defesa
Sigamos mais um pouco na anaacutelise realizada por Peirce enfocando cada uma das
justificaccedilotildees Quanto agrave primeira justificativa o autor se pergunta o que se entende por postulado e
responde que ldquoEacute a formulaccedilatildeo de um fato material o qual natildeo estamos autorizados a assumir
como uma premissa mas cuja verdade eacute necessaacuteria para a validade de uma inferecircnciardquo (CP 6 sect
41 1892)61
Assim um postulado pode ser um fato que obtemos ou natildeo em nossa experiecircncia
Caso faccedila parte do mundo vivido estariacuteamos autorizados a utilizaacute-lo como premissa caso natildeo
faccedila parte ele deve ser justificado pela possibilidade de ser de outra maneira do que a assumida
isto eacute o postulado eacute vaacutelido na medida em que a experiecircncia o justifica De qualquer modo ldquo()
58 The proposition in question is that the state of things existing at any time together with certain immutable laws
completely determine the state of things at every other time (for a limitation to future time is indefensible) Thus
given the state of the universe in the original nebula and given the laws of mechanics a sufficiently powerful mind
could deduce from these data the precise form of every curlicue of every letter I am now writing 59
Primeiridade ou firstness eacute uma das categorias fenomenoloacutegicas peirceana sua caracteriacutestica principal eacute a
liberdade e espontaneidade 60
() the attribution of this firstness to things perfectly dead and material 61
It is the formulation of a material fact which we are not entitled to assume as a premiss but the truth of which is
requisite to the validity of an inference
56
cada postulado eacute eliminado quer por serem provisoacuterios ou pela experiencialidade de nossa
inferecircnciardquo (CP 6 sect 41 1892)62
O que Peirce estaacute discutindo eacute o tipo de validade que podemos atribuir ao raciociacutenio
indutivo e o grau de certeza dele decorrente Ainda que esse tema tenha sido tratado de modo
mais demorado em outros momentos da sua produccedilatildeo reportaremos apenas aos elementos
contidos na elaboraccedilatildeo do texto em anaacutelise
Natildeo se pode negar a existecircncia e a utilidade do pensamento indutivo poreacutem o que se
coloca em questatildeo eacute a necessidade de suas conclusotildees Os indutivistas afirmam que se tomarmos
um conjunto de amostras sucessivas devolvendo cada uma ao conjunto antes que a proacutexima
amostra seja retirada verificar-se-aacute apoacutes certo nuacutemero de vezes a tendecircncia de que cada
elemento seraacute retirado com a mesma frequecircncia Ou seja que ldquo() a razatildeo do nuacutemero de vezes
nas quais quaisquer dois satildeo retirados aproximaraacute indefinidamente da unidaderdquo (CP 6 sect 41
1892)63
Mas isso natildeo acontece afirma Peirce pois o que eacute medido eacute a proacutepria razatildeo de cada
amostra e natildeo a razatildeo do conjunto que permanece latente e desconhecida que eacute justamente o que
se quer determinar Por outro lado basta consultar a experiecircncia para saber que os elementos
obtidos na primeira amostra seratildeo mais frequentes depois de uma grande quantidade de amostras
Os indutivistas dizem ainda que ldquo() sob circunstacircncias semelhantes eventos semelhantes
ocorreratildeo e que este postulado eacute na base o mesmo que o princiacutepio da causalidade universalrdquo
(CP 6 sect 41 1892)64
Segundo Peirce essa afirmaccedilatildeo natildeo passa de uma grande bobagem devido
a pensadores que acreditam que as respostas soacute possam ser dadas em termos absolutos de 0 ou 1
Existe uma infinidade de possibilidades entre esses dois valores que deve ser levada em
consideraccedilatildeo
Em resumo poderiacuteamos dizer que uma quantidade fiacutesica nunca eacute do tipo absoluto A
62 () every postulate is cut off either by the provisionality or by the experientiality of our inference
63 () that the ratio of the numbers of times in which any two are drawn will indefinitely approximate to unity
64 () under like circumstances like events will happen and that this postulate is at bottom the same as the principle
of universal causation
57
praacutetica laboratorial de Peirce como eacute por ele ressaltada vaacuterias vezes em sua obra mostrou-lhe
que as quantidades fiacutesicas satildeo sempre estatiacutesticas e podem ser representadas por um conjunto de
valores aproximados graficamente transcritos na curva-sino das equaccedilotildees estatiacutesticas
Quanto ao segundo tipo de justificaccedilatildeo Peirce afirma que eacute de um tipo especial e que se a
primeira justificativa puder ser rebatida com um argumento que qualquer ser racional possa
aceitar a referecircncia agrave observaccedilatildeo da natureza requer um tipo especial de anaacutelise que natildeo
obstante deveria convencer uma pessoa acostumada a pensar cientificamente
A essecircncia da argumentaccedilatildeo dos que julgam as leis da natureza necessaacuterias eacute de que ldquo()
certas quantidades contiacutenuas tecircm certos valores exatosrdquo (CP 6 sect 44 1892)65
mas como a
observaccedilatildeo poderia determinar o valor de tal quantidade com erro nulo ndash pergunta-se o autor Se
for possiacutevel encontrar um meacutetodo para se determinar um valor absoluto para as quantidades na
fiacutesica ele deveraacute ser buscado em uma esfera diferente daquela da observaccedilatildeo
Se natildeo conhecemos o conjunto completo do qual uma determinada amostra foi retirada
natildeo estamos autorizados a sustentar que natildeo haacute nele qualquer traccedilo de um elemento que
aparentemente encontra-se ausente Dessa maneira natildeo temos porque sustentar que natildeo haja
qualquer elemento de acaso ou desvios espontacircneos agindo em qualquer lei da natureza
A observaccedilatildeo que inicialmente eacute tida pelos deterministas como uma justificativa em favor
de suas teses eacute apropriada por Peirce que a transforma em um argumento favoraacutevel agrave sua proacutepria
posiccedilatildeo Por meio da observaccedilatildeo afirma o autor apenas se constata que haacute certas regularidades
agindo na natureza mas isso natildeo eacute suficiente para afirmar que essas regularidades possam ser
elevadas agrave condiccedilatildeo de leis absolutas e necessaacuterias Ao contraacuterio quanto mais acuradas forem as
observaccedilotildees mais ficaraacute demonstrado que haacute uma irregularidade reinante nos fatos naturais Nas
palavras de Peirce ldquoTente verificar qualquer lei da natureza e vocecirc apuraraacute que quanto mais
precisas forem suas observaccedilotildees mais certamente elas mostraratildeo desvios irregulares da leirdquo (CP
65 () certain continuous quantities have certain exact values
58
6 sect 46 1892)66
Mesmo aqueles que retrocederem nas cadeias causais dos fatos seratildeo forccedilados a
admitir que estes sejam sempre devidos a determinaccedilotildees arbitraacuterias ou ao acaso
Tendo rebatido as pretensotildees dos deterministas do modo que se viu Peirce passaraacute a expor
aquilo que nos interessa de maneira mais especiacutefica neste texto em que consiste e como pode ser
pensado o acaso absoluto
Procedendo de maneira bastante didaacutetica o autor defenderaacute sua concepccedilatildeo de acaso em
face dos principais argumentos que podem ser colocados contra a sua existecircncia Eacute novamente na
ciecircncia da sua eacutepoca que Peirce buscaraacute elementos para defesa de sua tese Ele diz que eacute natural
esperar que ldquo() se houve um elemento de acaso real no universo deve natildeo ocasionalmente ser
produtor de efeitos sinalizadores de tal forma que natildeo passariam sem observaccedilatildeordquo (CP 6 sect 47
1892)67
Aleacutem da grande quantidade de eventos que podem comprovar esta tese para quem estaacute
disposto a observar eacute a proacutepria ciecircncia que trata dos movimentos dos gases que aponta para o
fato de que o comportamento dos mesmos muitas vezes parece contrariar a segunda lei da
termodinacircmica indicando que se deslocam como que ao acaso promovendo certas concentraccedilotildees
que algumas vezes resultam em efeitos bastante explosivos Dessa maneira a observaccedilatildeo que eacute
utilizada para referendar a posiccedilatildeo determinista acaba por se tornar diante da argumentaccedilatildeo do
autor em uma defesa da noccedilatildeo de acaso
Outros defensores do determinismo insistem em sustentar que sua posiccedilatildeo eacute uma crenccedila
natural e que em geral as crenccedilas naturais satildeo confirmadas pela experiecircncia A esse argumento
Peirce responde dizendo que de fato as crenccedilas naturais devem ser analisadas com bastante
cuidado e purificadas a partir de suas primeiras formulaccedilotildees que em geral satildeo errocircneas A
aproximaccedilatildeo da verdade que tais crenccedilas parecem apresentar eacute o resultado da adaptaccedilatildeo de ldquo()
produtos geneacuteticos a utilidades reconheciacuteveis ou finsrdquo (CP 6 sect 50 1892)68
Mas esse tipo de
66 Try to verify any law of nature and you will find that the more precise your observations the more certain they
will be to show irregular departures from the law 67
() if there were an element of real chance in the universe it must not occasionally be productive of signal effects
such as could not pass unobserved 68
() genetic products to recognizable utilities or ends
59
adaptaccedilatildeo conquanto belo e maravilhoso demonstra natildeo ser exatamente perfeito ldquo() de tal
modo que o argumento eacute quase contra a exatidatildeo absoluta de qualquer crenccedila natural incluindo
aquela do princiacutepio de causalidaderdquo (CP 6 sect 50 1892)69
Outro argumento comumente utilizado eacute de que a noccedilatildeo de acaso absoluto eacute inconcebiacutevel
Esse tipo de desconsideraccedilatildeo a priori pode ser rebatido de maneira bastante simples afirma
Peirce Ora o termo acaso possui uma grande diversidade de significado e mesmo que se
especificasse o sentido do mesmo seria possiacutevel mostrar que natildeo se tem razatildeo para fazer tal
afirmaccedilatildeo sem contar o fato de que a inconceptibilidade (inconceivability) natildeo eacute um tipo de
atribuiccedilatildeo que implica na natildeo existecircncia do acaso
Um outro argumento a priori eacute o que defende a ideia de que o acaso absoluto eacute
ininteligiacutevel isto eacute
() enquanto ele talvez possa ser concebiacutevel ele natildeo abre o olho da razatildeo para o
como ou o porquecirc das coisas e uma vez que uma hipoacutetese somente pode ser
justificada na medida em que causa algum fenocircmeno inteligiacutevel nunca
poderemos ter qualquer razatildeo de supor o acaso absoluto como entrando na
produccedilatildeo de qualquer coisa na natureza (CP 6 sect 52 1892)70
Esse argumento como aponta Peirce estaacute em estreita conexatildeo com os outros dois
anteriores Em primeiro lugar indica que natildeo haacute qualquer fato que possa ser por ele explicado
sendo portanto desnecessaacuterio e indica na sequecircncia que jaacute que as variaccedilotildees na atuaccedilatildeo das leis
natildeo podem ser observadas inequivocamente o acaso absoluto natildeo pode ser vera causa natildeo
havendo um lugar para ele em nossos esquemas de explicaccedilatildeo dos acontecimentos naturais
Para rebater esse argumento Peirce cria um diaacutelogo imaginaacuterio com um defensor do
69 () so that the argument is quite against the absolute exactitude of any natural belief including that of the
principle of causation 70
() while it may perhaps be conceivable it does not disclose to the eye of reason the how or why of things and
since a hypothesis can only be justified so far as it renders some phenomenon intelligible we never can have any
right to suppose absolute chance to enter into the production of anything in nature
60
determinismo no qual deixa claro quais satildeo os elementos existentes na sua noccedilatildeo de acaso
absoluto bem como suas principais diferenccedilas com respeito agrave tese adversaacuteria
Em primeiro lugar a atuaccedilatildeo real do acaso como uma causa dos eventos naturais natildeo nega
a existecircncia de regularidades no mundo apenas requer que sejam interpretadas como estatiacutesticas
e natildeo absolutas Pois a defesa da existecircncia de regularidades absolutas ou seja da atuaccedilatildeo de
leis naturais necessaacuterias implicaria em afirmar que toda a diversidade e toda novidade que
podem ser constatadas em qualquer evento natural por mais simples que seja como por
exemplo o jogo de dados tenham sido introduzidas no universo de uma soacute vez no iniacutecio de tudo
Assim o incremento da diversidade da natureza seria apenas uma ilusatildeo jaacute que sob a accedilatildeo das
leis mecacircnicas nada de absolutamente novo poderia surgir
As leis mecacircnicas apresentam ainda uma caracteriacutestica que parece incompatiacutevel com os
fenocircmenos naturais tanto orgacircnicos quanto inorgacircnicos elas ignoram a flecha do tempo Como
aponta Andrew Reynolds (2002) um aspecto central da Fiacutesica de entatildeo pode ser encontrado no
uso de leis matemaacuteticas exatas para descrever o movimento
Uma caracteriacutestica da expressatildeo matemaacutetica das leis de Newton (em termos de
equaccedilotildees diferenciais que descrevem a taxa de variaccedilatildeo das quantidades fiacutesicas
como uma funccedilatildeo do tempo) eacute sua invariacircncia sob o que acarretaria uma
reversatildeo da direccedilatildeo do bdquofluxo‟ do tempo (REYNOLDS 2002 p 2)
Natildeo haacute segundo esta abordagem qualquer dificuldade fiacutesica na ocorrecircncia de um evento
que inverta a flecha do tempo Por exemplo
Natildeo haacute nada nas proacuteprias leis isso eacute que especifica que uma xiacutecara fria de cafeacute
com creme mexida uniformemente natildeo possa em seus proacuteprios termos
absorver calor do ambiente circundante e tornar-se uma xiacutecara de cafeacute quente
nem as leis proiacutebem que o creme poderia espontaneamente separar-se a si
proacuteprio do cafeacute e pular bdquode volta‟ no tubo de creme do qual ele veiordquo
(REYNOLDS 2002 p 3)
61
A descriccedilatildeo deste evento imaginaacuterio eacute totalmente contraacuteria agraves ocorrecircncias normais Peirce
aponta que a abordagem determinista dos eventos natildeo consegue explicar o porquecirc de a grande
maioria dos eventos ser experienciada em uma ordem irreversiacutevel de acontecimentos que seguem
do passado para o futuro e natildeo o contraacuterio
As razotildees que conduzem o autor a defender a ideia de que a diversidade do mundo tem
crescido continuamente e de que este fato natildeo pode ser explicado a partir da abordagem
determinista satildeo sintetizadas em cinco itens que passamos a elencar
(1) A natureza explicada segundo leis mecacircnicas prescinde do curso do tempo Aqui Peirce
sustenta sua ideia de crescimento contiacutenuo do universo apelando para as ciecircncias que tecircm
no tempo uma variaacutevel imprescindiacutevel para as suas elaboraccedilotildees e descobertas Basta
inquirir agrave paleontologia ou agrave geologia ou ateacute mesmo agrave astronomia para se constatar que
haacute um crescimento e aumento da complexidade em cada um de seus objetos de estudo
(2) A diversidade e a novidade existentes no mundo natildeo podem ser adequadamente
explicadas pela atuaccedilatildeo de leis mecacircnicas absolutas Pois eacute da essecircncia de uma lei que
causas idecircnticas sempre produzam os mesmos efeitos Desse modo uma hipoacutetese
razoaacutevel eacute que sejam os resultados das pequenas variaccedilotildees ocorridas no momento da
atuaccedilatildeo da lei os responsaacuteveis pelo crescimento da complexidade existente
(3) A hipoacutetese da existecircncia do acaso absoluto manifesto nas pequenas variaccedilotildees no
momento da atualizaccedilatildeo das leis permite explicar como a diversidade surge Permite
ainda a justificaccedilatildeo da atuaccedilatildeo de um outro tipo de causalidade a da lei da mente que
explica a formaccedilatildeo da uniformidade constatada no universo Afirmar por outro lado que
a diversidade e irregularidade bem como uniformidade e regularidade existentes no
universo natildeo podem ser explicadas e nem mesmo deveriam ser questionadas como
fazem os deterministas significa ferir a primeira lei da loacutegica que consiste em natildeo
bloquear a investigaccedilatildeo
62
(4) A partir da introduccedilatildeo da causalidade mental ou causalidade teleoloacutegica em seu esquema
explicativo possibilitado pela inserccedilatildeo do acaso absoluto Peirce afirma ser possiacutevel
explicar diversos fenocircmenos que de outra maneira adquiririam o caraacuteter de
fantasmagoacuterico como por exemplo a consciecircncia e correlatos
(5) A mais importante razatildeo que permaneceraacute natildeo desenvolvida no texto em anaacutelise eacute a de
que ldquoa hipoacutetese do acaso-espontaneidade eacute uma daquelas consequecircncias inevitaacuteveis
capazes de serem formuladas com precisatildeo matemaacutetica em consideraacutevel detalherdquo (CP 6 sect
62 1892)71
Tem-se desse modo uma defesa da presenccedila do acaso no mundo que natildeo apenas recebe o
suporte das observaccedilotildees e evidecircncias que estatildeo disponiacuteveis para quem as desejar constatar como
parece se impor como uma evidecircncia para todo aquele que estaacute familiarizado com a praacutetica
cientiacutefica E que ainda fornece uma hipoacutetese explicativa para os fenocircmenos naturais tanto da
diversidade como da uniformidade do mundo que impulsiona o desenvolvimento de futuras
pesquisas sem postular o incompreensiacutevel como constituinte da natureza
Resumindo podemos dizer que contra a argumentaccedilatildeo peirceana os deterministas soacute
poderiam responder de uma das trecircs maneiras elencadas abaixo
(1) O acaso eacute algo absolutamente ininteligiacutevel
(2) Natildeo haacute qualquer fenocircmeno no qual a atuaccedilatildeo do acaso possa ser observada de forma
inequiacutevoca
(3) O acaso natildeo pode ser uma vera causa
Quanto agrave objeccedilatildeo (1) Peirce indica que sua hipoacutetese do acaso absoluto diferentemente da
tese determinista fornece uma explicaccedilatildeo para o surgimento tanto das irregularidades quanto das
71 The hypothesis of chance-spontaneity is one whose inevitable consequences are capable of being traced out with
mathematical precision into considerable detail
63
uniformidades existentes no universo O que parece ser um ganho consideraacutevel uma vez que
desobstrui os caminhos da investigaccedilatildeo cientiacutefica Um aspecto como jaacute vimos que fornece um
suporte extra a esta hipoacutetese eacute o fato que ela daacute lugar agrave elaboraccedilatildeo da lei da mente O acaso uma
vez manifestado desenvolve-se segundo determinadas maneiras e natildeo de uma maneira qualquer eacute
sob a atuaccedilatildeo da lei da mente ou lei da aquisiccedilatildeo de haacutebito ou simplesmente lei do haacutebito que
ele produz consequecircncias ou permanece inerte
A objeccedilatildeo do tipo (2) eacute na visatildeo de Peirce bastante ingecircnua pois parece ignorar todos os
avanccedilos cientiacuteficos que se verificaram nas aacutereas de astronomia biologia ou geologia
permanecendo cega para os fenocircmenos de crescimento de diversidade ou evoluccedilatildeo Esses
fenocircmenos satildeo totalmente refrataacuterios agrave abordagem mecanicista no entender desse autor
Compondo com esses fenocircmenos aparece a consciecircncia como outro empecilho agraves pretensotildees dos
mecanicistas que se fiam unicamente na ideia de regularidade para compor o seu quadro
explicativo Com essa atitude a noccedilatildeo de regularidade absoluta serve apenas ldquo() para bloquear
o caminho da investigaccedilatildeordquo (CP 6 sect 64 1892)72
Agrave acusaccedilatildeo (3) de que o acaso natildeo pode ser considerado uma vera causa Peirce responde
dizendo que esta criacutetica natildeo pode ser aplicada a concepccedilotildees elementares Se levarmos a seacuterio esta
acusaccedilatildeo seria preciso reavaliar a proacutepria crenccedila na existecircncia do universo material uma vez que
a variedade eacute um fato que natildeo pode ser ignorado
Tendo assim defendido a existecircncia do acaso absoluto Peirce acredita que natildeo resta duacutevida
que as pesquisas devam ser refeitas e direcionadas para novas bases que levem em consideraccedilatildeo o
caraacuteter estatiacutestico das regularidades bem como o indeterminismo reinante no universo que em
uacuteltima instacircncia eacute a fonte de diversidade e novidade existentes
72 () to block the road of inquiry
64
3 A LEI
Se de um lado temos no acaso um dos constituintes fundamentais da realidade do outro
encontramos no continuum ou nas leis outro elemento de igual importacircncia A elaboraccedilatildeo que
Peirce oferece deste toacutepico estaacute em estreita conexatildeo com a matemaacutetica dos infinitesimais por ele
estudada Nosso interesse aqui natildeo eacute o de aprofundar tais concepccedilotildees que seratildeo analisadas em
capiacutetulo posterior procuramos apenas extrair algumas caracteriacutesticas de sua descriccedilatildeo que
suportem a nossa anaacutelise da lei da mente A questatildeo levantada por Peirce e que serviraacute de guia
para a nossa discussatildeo seraacute a de Como pode uma ideia passada estar presente (CP 6 sect 109
1892)73
A resposta por ele proposta eacute de que devemos estar diretamente conscientes das ideias
do passado imediato Caso houvesse uma lacuna entre nosso conhecimento presente e as ideias
do passado todo o nosso conhecimento do passado natildeo seria mais do que uma ilusatildeo Assim
como consequecircncia devemos estar conscientes do passado ldquoatraveacutes de um intervalo de tempo
infinitesimalrdquo (CP 6 sect 110 1892)74
Nessa mesma linha aponta Hausman ldquosomos levados a
concentrar nosso exame da experiecircncia de ser consciente atraveacutes de um fluxo de tempo que deve
ser compreendido em termos de componentes infinitesimaisrdquo (HAUSMAN 1993 p 179)
Natildeo temos por conseguinte uma apreensatildeo completa e definida de uma ideia em um
determinado instante do tempo A cogniccedilatildeo se daacute no continuum apenas atraveacutes de um processo
de imbricaccedilatildeo das ideias que ocorre por meio de uma sucessatildeo de intervalos infinitesimais no
tempo Durante tais intervalos diraacute Peirce ldquopercebemos diretamente a sequecircncia temporal de seu
iniacutecio meio e fim ndash natildeo naturalmente como uma recogniccedilatildeo pois a recogniccedilatildeo eacute unicamente do
passado mas como um sentimento imediatordquo (CP 6 sect 111 1892)75
Se em um primeiro instante temos acesso ao sentimento do imediato caracteriacutestico da
73 How can a past idea be present
74 () through an infinitesimal interval of time
75 In an infinitesimal interval we directly perceive the temporal sequence of its beginning middle and end -- not of
course in the way of recognition for recognition is only of the past but in the way of immediate feeling
65
categoria de primeiridade no segundo momento temos a percepccedilatildeo da passagem do tempo A
ligar esses dois temos um terceiro que indica uma direccedilatildeo e que requer uma interpretaccedilatildeo uma
inferecircncia na medida em que se obteacutem uma generalidade
Peirce continuaraacute dizendo que quando haacute ldquoum fluxo contiacutenuo de inferecircncias atraveacutes de um
tempo finitordquo o resultado ldquoseraacute uma consciecircncia objetiva mediata de tempo completo no
momento passadordquo (CP 6 sect 111 1892)76
Por meio desta anaacutelise o autor estaacute propondo uma
abordagem da relaccedilatildeo do fluxo temporal sentido e a interpretaccedilatildeo cognitiva do mesmo
A cogniccedilatildeo que eacute uma experiecircncia mediata requer a consideraccedilatildeo dos sentimentos
passados impondo a eles uma certa definiccedilatildeo de tal maneira que possam ser comparados o que
se daacute segundo um ato interpretativo Cada intervalo consiste em um momento da percepccedilatildeo
consciente de tal maneira que se pode afirmar que a proacutepria consciecircncia eacute contiacutenua
31 O IDEALISMO OBJETIVO
Peirce se autodenomina em algumas passagens de idealista objetivo afirmando a sua
diferenccedila com relaccedilatildeo ao monismo materialista Aponta que a diferenccedila entre os dois eacute que o
monista materialista toma a lei da mente como uma consequecircncia das leis da mateacuteria enquanto o
idealista objetivo toma as leis da mateacuteria como um resultado especial da lei da mente Um grande
problema para o materialista eacute explicar como as leis da mateacuteria que satildeo completamente cegas ou
natildeo teleoloacutegicas podem dar origem a uma mente que natildeo age cegamente mas que possui
propoacutesitos Peirce diraacute que o problema consiste em se compreender como a accedilatildeo teleoloacutegica ou
propositada pode ser um efeito secundaacuterio de uma accedilatildeo natildeo teleoloacutegica
76 Let there be not merely an indefinite succession but a continuous flow of inference through a finite time and the
result will be a mediate objective consciousness of the whole time in the last moment
66
A soluccedilatildeo para a questatildeo segue-se a partir da inspiraccedilatildeo darwiniana por meio da
combinaccedilatildeo de dois fatores as insensiacuteveis variaccedilotildees fortuitas e a destruiccedilatildeo das formas menos
aptas cujas transformaccedilotildees levam-nas aleacutem de certos limites O uacuteltimo desses fatores poderia ser
entendido como uma lei mecacircnica mas o que dizer do primeiro Pergunta-se Peirce
A necessidade de natildeo bloquear a via de investigaccedilatildeo como tantas vezes apontada pelo
autor natildeo eacute transgredida por esta pergunta irrespondiacutevel uma vez que seria um absurdo a
tentativa de explicaccedilatildeo do proacuteprio acaso pois as explicaccedilotildees se datildeo por meio de generalidades e
as variaccedilotildees fortuitas satildeo uacutenicas e autorreferentes Jaacute a lei da evoluccedilatildeo ou lei da mente necessita
de uma explicaccedilatildeo e pode ser aqui esboccedilada
32 A LEI DA MENTE
Peirce descreve a lei da mente como o fato de que as
() ideias tendem a se dispersar continuamente e a afetar certas outras que
permanecem em uma relaccedilatildeo peculiar de afetabilidade com relaccedilatildeo a ela Nesta
dispersatildeo elas perdem intensidade e especialmente o poder de afetar as outras
mas ganham em generalidade e se tornam amalgamadas com outras ideias (CP
6 sect 104 1892)77
Eacute natural atribuir a uma lei o caraacuteter de absoluta como o atribuiacutedo comumente agraves leis da
fiacutesica a lei da mente entretanto natildeo requer uma exata conformidade Como afirma Peirce ldquo() a
conformidade exata estaria em conflito inequiacutevoco com a lei uma vez que cristalizaria
instantaneamente o pensamento e impediria as formaccedilotildees posteriores de haacutebitosrdquo (CP 6 sect 23
77 () ideas tend to spread continuously and to affect certain others which stand to them in a peculiar relation of
affectibility In this spreading they lose intensity and especially the power of affecting others but gain generality
and become welded with other ideas
67
1891)78
A lei da mente apenas torna um certo sentimento mais provaacutevel (likely) Ou seja a lei da
mente inclina o curso futuro dos eventos a uma certa direccedilatildeo sem contudo determinaacute-lo
A partir dessas consideraccedilotildees Peirce conclui que o uacutenico tipo de causalidade primaacuteria deve
ser a causalidade final e que esta deve ser considerada uma lei de caraacuteter absoluto Assim sob a
atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um contiacutenuo crescimento da uniformidade
a partir das formas diferenciadas Mas as mudanccedilas divergentes da lei estatildeo agindo
perpetuamente a fim de aumentar a variedade do mundo e satildeo controladas por um tipo de seleccedilatildeo
natural ou de qualquer outro tipo (pois Peirce julga que a seleccedilatildeo natural natildeo seja por si soacute
suficiente) de tal forma que ldquo() o resultado geral deve ser descrito como bdquoheterogeneidade
organizada‟ ou melhor variedade racionalizadardquo (CP 6 sect 23 1891)79
O relato da hipoacutetese cosmoloacutegica elaborada por Peirce ressaltou a importacircncia fundamental
da noccedilatildeo de continuidade no interior de sua filosofia A compreensatildeo do sentido que a noccedilatildeo
adquire em sua obra tanto quanto da evoluccedilatildeo que sofreu conforme Peirce atingia sua
maturidade seratildeo de grande importacircncia para a compreensatildeo do modo de atuaccedilatildeo da causalidade
final Com o objetivo de compreender este tipo de causalidade faremos no proacuteximo capiacutetulo um
estudo mais aprofundado do sinequismo a teoria da continuidade elaborada pelo filoacutesofo
78 () exact conformity would be in downright conflict with the law since it would instantly crystallize thought and
prevent all further formation of habit 79
() the general result may be described as organized heterogeneity or better rationalized variety
68
CAPIacuteTULO 02
O SINEQUISMO
Infinity is nothing but a peculiar twist given to generality (CP 8 sect 268 1900)
69
Em funccedilatildeo da importacircncia adquirida pela noccedilatildeo de continuidade80
uma investigaccedilatildeo sobre
a teoria do sinequismo seraacute desenvolvida aqui definida por Peirce como ldquoaquela tendecircncia do
pensamento filosoacutefico que insiste sobre a ideia de continuidade como sendo de grande
importacircncia em filosofia e em particular sobre a necessidade de hipoacuteteses que envolvam
verdadeira continuidaderdquo (CP 1 sect 169 1902)81
Em carta a William James de 1900 Peirce
afirma que o sinequismo eacute ldquoa pedra angular do arcordquo (CP 8 sect 257 1900)82
isto eacute o ponto de
apoio que daacute sustentaccedilatildeo a toda sua filosofia
Diferentemente dos matemaacuteticos da eacutepoca que trataram a questatildeo da continuidade o
interesse de Peirce pelo toacutepico foi motivado principalmente por uma preocupaccedilatildeo loacutegica e
filosoacutefica e que natildeo decorre somente das questotildees suscitadas pela anaacutelise matemaacutetica Como
afirma em 1897
() uma abordagem loacutegica perfeitamente satisfatoacuteria da concepccedilatildeo de
continuidade eacute exigida O que envolve a definiccedilatildeo de um certo tipo de infinito
e a fim de tornaacute-lo um pouco mais claro eacute necessaacuterio comeccedilar por desenvolver
a doutrina loacutegica das grandezas infinitas Essa doutrina ainda permanece apoacutes
os trabalhos de Cantor Dedekind e outros em uma situaccedilatildeo incipiente Por
exemplo questotildees como as seguintes permanecem sem respostas eacute ou natildeo eacute
logicamente possiacutevel para duas coleccedilotildees serem de tal grandeza que nenhuma
delas possa ser colocada em correspondecircncia biuniacutevoca com a parte ou com o
todo da outra Resolver esse problema demanda natildeo uma mera aplicaccedilatildeo da
loacutegica mas um maior desenvolvimento da concepccedilatildeo de possibilidade loacutegica
(CP 3 sect 526 1897)83
80 Como jaacute foi indicado no primeiro capiacutetulo desta tese
81 [Synechism is] that tendency of philosophical thought which insists upon the idea of continuity as of prime
importance in philosophy and in particular upon the necessity of hypotheses involving true continuity 82
() synechism which is the keystone of the arch 83
() a perfectly satisfactory logical account of the conception of continuity is required This involves the definition
of a certain kind of infinity and in order to make that quite clear it is requisite to begin by developing the logical
doctrine of infinite multitude This doctrine still remains after the works of Cantor Dedekind and others in an
inchoate condition For example such a question remains unanswered as the following Is it or is it not logically
possible for two collections to be so multitudinous that neither can be put into a one-to-one correspondence with a
part or the whole of the other To resolve this problem demands not a mere application of logic but a further
development of the conception of logical possibility
70
De fato podemos identificar ao menos trecircs aspectos do pensamento de Peirce que soacute
poderiam ser desenvolvidos com consistecircncia a partir uma definiccedilatildeo mais precisa da noccedilatildeo de
continuum o loacutegico o semioacutetico e o cosmoloacutegico Nossas consideraccedilotildees aqui seratildeo
desenvolvidas a partir de uma investigaccedilatildeo do papel que o conceito de continuum desempenha na
construccedilatildeo da filosofia de Peirce em particular para a compreensatildeo do estatuto e do papel das
explicaccedilotildees teleoloacutegicas no seu sistema Antes contudo de passarmos a essa discussatildeo cabem
algumas palavras a respeito da motivaccedilatildeo de Peirce para o desenvolvimento do conceito de
continuum
Neste capiacutetulo procuraremos apurar as propriedades atribuiacutedas ao continuum atraveacutes da
abordagem de alguns aspectos da definiccedilatildeo matemaacutetica proposta por Peirce ainda que
apresentada de maneira descritiva e seletiva Do ponto de vista cosmoloacutegico pode-se afirmar que
a estrutura mais profunda e necessaacuteria do real eacute a sua continuidade Como o objetivo desta
investigaccedilatildeo eacute colher elementos que permitam entender o lugar e a necessidade da introduccedilatildeo de
explicaccedilotildees teleoloacutegicas para a compreensatildeo do crescimento do universo e de seus processos isto
eacute para entender a forma de desdobramento do continuum real tornado manifesto por meio da
evoluccedilatildeo do universo a exposiccedilatildeo desses toacutepicos natildeo pretende ser completa ou exaustiva sua
funccedilatildeo seraacute selecionar aspectos das teorias que permitam em primeiro lugar compreender a
necessidade da explicaccedilatildeo teleoloacutegica e em segundo lugar tornar plausiacutevel tanto quanto
possiacutevel a ideia de que o projeto filosoacutefico peirceano possui grande coerecircncia se tomarmos suas
teorias em conjunto apresentando aspectos da maneira pela qual Peirce as pensava como estando
relacionadas e como se esclarecem mutuamente visto serem expressatildeo do mesmo elemento de
continuidade
71
1 O CONTINUUM E A EPISTEMOLOGIA
Eacute preciso lembrar que ao lado da preocupaccedilatildeo matemaacutetica com a definiccedilatildeo de continuum
haacute nos trabalhos de Peirce uma profunda reflexatildeo sobre a sua ontologia surgida a partir de suas
pretensotildees mais gerais de realizaccedilatildeo de um projeto de fundamentaccedilatildeo de seu meacutetodo para
obtenccedilatildeo do conhecimento Essa primeira abordagem da continuidade a partir de uma
perspectiva descritiva adequada agrave cosmologia ou metafiacutesica dos processos evolutivos entretanto
natildeo se opotildee agrave abordagem matemaacutetica que em realidade a confirma Satildeo as conclusotildees desse
modo hipoteacutetico de investigaccedilatildeo que orientaram em grande parte sua abordagem matemaacutetica
A elaboraccedilatildeo da hipoacutetese do continuum eacute tomada como uma consequecircncia da primeira e
mais importante maacutexima loacutegica assumida por Peirce a de que natildeo se pode ldquobloquear o caminho
da investigaccedilatildeordquo (CP 1 sect 135 1899)
84 Ela eacute vista como um meio de ldquo() evitar a hipoacutetese de que
isso ou aquilo seja inexplicaacutevelrdquo (CP 6 sect 171 1902)85
Pois descontinuidades como pontos ou
instantes marcados nos quais o continuum de um geral eacute quebrado satildeo em si mesmos natildeo
explicaacuteveis afirma Peirce Soacute fazem sentido quando referidas a um contexto maior que eacute
fornecido pelo continuum Desse modo a principal justificativa para se insistir na hipoacutetese do
continuum eacute a de que ela fornece uma explicaccedilatildeo para os fenocircmenos
Os fenocircmenos se impotildeem ao homem e eacute preciso elaborar hipoacuteteses testaacuteveis para explicaacute-
los ou ao menos hipoacuteteses que levem tatildeo longe quanto possiacutevel o horizonte da inteligibilidade
ou seja que natildeo bloqueie o caminho da investigaccedilatildeo A afirmaccedilatildeo de que a postulaccedilatildeo do
incognosciacutevel como elemento constituinte da natureza eacute uma estrateacutegia que deve ser banida dos
procedimentos cientiacuteficos estaacute em consonacircncia com a filosofia peirceana
A simples observaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais destituiacuteda de qualquer prejulgamento
ensina-nos pelo menos duas coisas em primeiro lugar que haacute uma incriacutevel variabilidade no
84 Do not block the way of inquiry
85 () to avoid the hypothesis that this or that is inexplicable
72
modo como a natureza se manifesta e em segundo lugar que os processos naturais demonstram
certas regularidades Em face dessas duas caracteriacutesticas Peirce elabora duas teorias que tentam
responder como a realidade deveria ser para que nos aparecesse dessa maneira especiacutefica A
primeira referente agrave presenccedila da variabilidade na natureza daacute origem ao tiquismo86
hipoacutetese
explicativa que postula o acaso absoluto como ingrediente fundamental da realidade e serve de
matriz ontoloacutegica indeterminista A segunda concernente agraves regularidades daacute origem ao
sinequismo cuja principal categoria eacute a de lei e procura explicar de que maneira a partir do
acaso absoluto original surgiu o mundo que conhecemos Desse modo Peirce pretende ter
elaborado por meio da concorrecircncia desses dois fatores uma hipoacutetese explicativa que pretende
dar conta ateacute mesmo do surgimento das leis naturais e de todos os processos naturais deixando
de fora apenas o acaso que por sua proacutepria natureza eacute aquilo que natildeo necessita de explicaccedilatildeo
As alusotildees que Peirce faz agrave importacircncia de uma teoria da continuidade frequentemente
estatildeo relacionadas com o seu realismo em particular com a compreensatildeo do que significa a ideia
de generalidade Ele diz que a questatildeo de se os gerais satildeo reais eacute a mesma de se existem continua
verdadeiros No texto intitulado ldquoConsciecircnciardquo afirma que ldquocontinuidade regularidade e
significacircncia satildeo essencialmente a mesma ideia com diferenccedilas meramente subsidiaacuteriasrdquo (CP 7
sect 535)87
Para o realista como indica Hookway (1985) quando classificamos coisas sob o mesmo
termo geral estamos afirmando que existe algum princiacutepio geral ou natureza que elas
compartilham Em 1878 Peirce discute esse ponto a partir de um exemplo que envolve um
problema de classificaccedilatildeo rotineiramente enfrentado por um naturalista Ao coletar um bom
nuacutemero de espeacutecimes que possuem algumas similaridades ele pode colocar-se a questatildeo de como
classificaacute-los Em particular no referido caso o naturalista nota que as asas dos espeacutecimes
recolhidos embora natildeo idecircnticas podem servir como criteacuterio para dividi-los em dois tipos um
que reuacutene as asas que satildeo parecidas com um S e outro que reuacutene as que se parecem com um C A
questatildeo que ele pode colocar-se eacute de se haacute aiacute apenas uma duas ou mais espeacutecies Para Peirce a
soluccedilatildeo para o problema pode ser obtida a partir da verificaccedilatildeo de se haacute formas intermediaacuterias
86 Jaacute discutido no primeiro capiacutetulo deste trabalho
87 () continuity regularity and significance are essentially the same idea with merely subsidiary differences
73
entre uma e outra Caso haja elas devem ser consideradas como pertencentes a uma mesma
espeacutecie Caso isso natildeo se verifique eacute possiacutevel classificaacute-las em duas espeacutecies distintas A sugestatildeo
envolvida esclarece Hookway eacute a de que ldquo() se os espeacutecimes formam um tipo de classe
natural eles variam continuamente segundo alguma dimensatildeordquo (HOOKWAY 1985 p 175) A
questatildeo eacute se esta condiccedilatildeo de contiacutenua variaccedilatildeo pode ser encontrada em todo caso investigados
Outro aspecto do pensamento peirceano relacionado com a teoria do continuum aparece em
sua discussatildeo sobre os processos causais A atribuiccedilatildeo da relaccedilatildeo de causalidade entre dois
eventos pode ser entendida se encontramos uma ligaccedilatildeo contiacutenua por meio da qual o primeiro eacute
transmitido ao segundo caso contraacuterio haveria duacutevidas quanto agrave possibilidade de tal atribuiccedilatildeo
Tanto no primeiro quanto no segundo exemplo percebemos que por meio da mediaccedilatildeo da
continuidade os casos analisados sobre o pano de fundo de uma estrutura mais ampla satildeo
tornados compreensiacuteveis para noacutes Segundo Peirce os nominalistas negariam que haja alguma
explicaccedilatildeo sobre o motivo dos objetos serem classificados como satildeo e colocariam esses
agrupamentos naturais na categoria de um fato bruto cuja razatildeo natildeo poderiacuteamos jamais alcanccedilar
Essa posiccedilatildeo entretanto eacute a expressatildeo do mais grave pecado loacutegico no entender de Peirce ela
bloqueia o caminho da investigaccedilatildeo
A relaccedilatildeo entre continuum e generalidade88
eacute mais claramente apresentada por Hookway na
seguinte passagem
() nenhuma estrutura relacional captura a natureza do continuum e natildeo
podemos quantificar todos os elementos do continuum As estruturas relacionais
a respeito das quais pensamos satildeo em certo sentido determinadas pela natureza
do continuum a respeito do qual pensamos mas elas natildeo exaurem seu caraacuteter
Da mesma maneira que pensamos em uma lei como algo que determina um
nuacutemero de diferentes interaccedilotildees pensamos o continuum como determinando
um nuacutemero infinito embora relacionado de estruturas relacionais Podemos
pensar o continuum como um geral entatildeo no sentido em que determina
conjuntos infinitos de estruturas relacionais como sua ldquoextensatildeordquo Se pensamos
um processo como continuum entatildeo acreditamos que sempre seraacute possiacutevel
88 Eacute a generalidade pode-se reiterar que torna o mundo compreensiacutevel para noacutes
74
para noacutes produzir uma caracterizaccedilatildeo mais complexa de estruturas relacionais
que ldquose conformardquo ou satildeo ldquodeterminadas porrdquo aquele processo contiacutenuo
(HOOKWAY 1985 p 178)
11 OS INFINITESIMAIS E O CONTINUUM
Por volta da uacuteltima deacutecada do seacuteculo XIX Peirce estava trabalhando em sua concepccedilatildeo de
continuidade principalmente com referecircncia a sua constituiccedilatildeo isto eacute realizava uma investigaccedilatildeo
sobre quais poderiam ou deveriam ser os constituintes dos continua Peirce foi um dos primeiros
pensadores a argumentar em favor da existecircncia real de conjuntos infinitos Seu criteacuterio para
diferenciar os conjuntos finitos dos infinitos era o assim chamado ldquosilogismo da quantidade
transpostardquo introduzido por De Morgan e que eacute vaacutelido unicamente quando aplicado a conjuntos
finitos e invaacutelido quando aplicado a conjuntos infinitos Peirce oferece vaacuterias versotildees desse
silogismo uma delas eacute a seguinte
Todo texano mata um texano
Nenhum texano eacute morto por mais que um texano
Desse modo todo texano eacute morto por um texano
A partir da colocaccedilatildeo desse silogismo uma diferenccedila entre a abordagem de Peirce e as
demais abordagens realizadas na segunda metade do seacuteculo XIX pode ser evidenciada Mesmo
que inicialmente tenha investigado a possibilidade de compreender o continuum como uma
coleccedilatildeo ou conjunto aos poucos supera essa concepccedilatildeo Peirce afirma ldquoPois a uacutenica coisa que
excede a variedade de todos os conjuntos eacute um continuumrdquo (CP 4 sect 652 1909)89
Os seus
constituintes natildeo podem ser indiviacuteduos desse modo deve possuir alguma caracteriacutestica de
potencialidade Tal potencialidade como afirma Rosa
89 For the only thing that exceeds the manifoldness of all collections is a continuum
75
Eacute a possibilidade de inserir uma qualquer multitude a partir de uma multitude
dada Eacute um geral pois haacute sempre a possibilidade de determinar um nuacutemero de
indiviacuteduos maior que natildeo importa que nuacutemero de indiviacuteduos dados Um
possiacutevel eacute essa possibilidade inesgotaacutevel e indefinida de determinaccedilatildeo do
existente a potencialidade de ver natildeo eacute esgotada por aquele que exerce esse
poder (ROSA 2003 p 223)
Ora sejam quais forem os constituintes do continuum eles devem possuir a qualidade de
ldquopossibilidade de inesgotaacutevel determinaccedilatildeordquo Peirce eacute mais claro sobre o que entende por isso na
seguinte passagem
Aquilo que eacute possiacutevel eacute nessa medida geral e enquanto geral deixa de ser
individual Assim recordando que a palavra ldquopotencialrdquo significa
indeterminado mas passiacutevel de determinaccedilatildeo em cada caso especiacutefico pode
haver um agregado de casos potencial de todas as possibilidades que satildeo
consistentes com certas condiccedilotildees gerais e isto pode ser tal que dado um
qualquer conjunto de indiviacuteduos distintos um conjunto de maior multitude que
o conjunto dado pode ser atualizado a partir desse agregado potencial Portanto
o agregado potencial eacute estritamente maior em multitude do que qualquer
conjunto de indiviacuteduos Mas visto ser apenas um agregado potencial ele natildeo eacute
composto por qualquer nuacutemero de indiviacuteduos Ele apenas conteacutem condiccedilotildees
gerais que permitem a determinaccedilatildeo de indiviacuteduos (NEM 3 p 106 1898 grifo
nosso)90
Ao tratar da reta como modelo do continuum Peirce indica que o arqueacutetipo dessa ideia eacute a
curva fechada A cisatildeo da linha natildeo resulta em um mas em dois pontos distintos que estabelecem
90 That which is possible is in so far general and as general it ceases to be individual Hence remembering that the
word potential means indeterminate yet capable of determination in any special case there may be a potential
aggregate of all the possibilities that are consistent with certain general conditions and this may be such that given
any collection of distinct individuals whatsoever out of that potential aggregate there may be actualized a more
multitudinous collection than the given collection Thus the potential aggregate is with the strictest exactitude
greater in multitude than any possible multitude of individuals But being a potential aggregate only it does not
contain any individuals at all It only contains general conditions which permit the determination of individuals
76
uma fronteira no contiacutenuo original Como indica Peirce natildeo haacute um ponto na reta mas uma reta
cuja separaccedilatildeo realiza dois pontos (cf NEM 2 p 359) O fato de que por meio do corte o ponto
ideal daacute origem a dois pontos reais indica que os pontos da reta natildeo possuem identidade Esses
estados de fronteira satildeo denominados de vagos na nomenclatura peirceana Como indica Rosa
ldquoO vago ou indefinido eacute aquilo que escapa ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo () o predicado
manteacutem portanto seu valor de verdade mesmo se o negarmosrdquo (ROSA 2003 p 235) O vago
na definiccedilatildeo de Peirce eacute um signo que natildeo se exprime a si mesmo de forma suficiente e natildeo
permite uma interpretaccedilatildeo determinada indubitaacutevel (cf CP 5 sect 505 1905) de modo que a
existecircncia ou atualidade jamais eacute atingida
Os infinitesimais91
surgiram como uma alternativa promissora agrave resposta pelos constituintes
do continuum Em 1892 Peirce afirma que os constituintes do continuum satildeo os infinitesimais92
e
eacute muito cuidadoso ao tratar do toacutepico considerando-os sempre como uma hipoacutetese que se natildeo
for inconsistente seraacute muito uacutetil para a explicaccedilatildeo da realidade Mas podemos nos indagar sobre
qual o significado desta noccedilatildeo para Peirce Embora seja um toacutepico sobre o qual o autor natildeo tenha
sido muito claro em suas declaraccedilotildees podemos inferir a partir da relaccedilatildeo que a teoria do
continuum possui com as demais teorias que Peirce vinha desenvolvendo na mesma eacutepoca que os
infinitesimais podem ser interpretados como would be Ao explicar o que satildeo tais constituintes do
real Peirce toma o exemplo do dado e afirma
Dizer que um dado tem um ldquowould berdquo eacute dizer que ele tem uma propriedade
91 Um infinitesimal como aponta Putnam (1995) eacute o intervalo de uma linha cujo comprimento natildeo eacute zero mas eacute
menor do que qualquer real positivo Os infinitesimais acrescenta foram gradualmente esquecidos durante o seacuteculo
XIX voltaram agraves consideraccedilotildees matemaacuteticas apenas na deacutecada de sessenta do seacuteculo passado como um resultado dos
trabalhos de Abraham Robinson (1966) e outros e do desenvolvimento da chamada anaacutelise Non-Standard Em
funccedilatildeo das caracteriacutesticas presentes na anaacutelise que Peirce realiza da noccedilatildeo de infinitesimal algumas vezes eacute
considerado como um precursor desses trabalhos Apurar em que medida eacute correta essa atribuiccedilatildeo eacute contudo um
trabalho que ainda estaacute por ser feito e que demandaria um conhecimento matemaacutetico bastante mais aprofundado de
nossa parte 92
O autor afirma ldquoThere is one property of a continuous expanse that I must mention though I cannot venture to
trouble you with the demonstration of it It is that in a continuous expanse say a continuous line there are
continuous lines infinitely short In fact the whole line is made up of such infinitesimal parts (CP 1 sect 166 1897)
77
bastante anaacuteloga a qualquer haacutebito que um homem possa ter Unicamente que o
ldquowould berdquo do dado eacute presumivelmente muito mais simples e mais definido do
que o haacutebito de um homem como o dado tem composiccedilatildeo homogecircnea e
formato cuacutebico eacute mais simples do que a natureza do sistema nervoso e a alma
de um homem e da mesma maneira como seria necessaacuterio a fim de definir o
haacutebito de um homem descrever como ele o conduziria a se comportar e em que
tipo de ocasiatildeo ndash natildeo obstante esta afirmaccedilatildeo implicaria natildeo importa como
que o haacutebito consiste naquela accedilatildeo ndash entatildeo para definir o ldquowould berdquo do dado eacute
necessaacuterio dizer como ele levaria o dado a se comportar na ocasiatildeo em que
afloraria todas as consequecircncias do ldquowould berdquo e essa afirmaccedilatildeo natildeo implicaraacute
de si mesma que o ldquowould berdquo do dado consiste em tal comportamento (CP 2 sect
664 1910)93
Tentaremos agora tomando como exemplo a atividade mental explicar alguns elementos
da concepccedilatildeo de continuidade peirceana A atividade mental pode ser tomada como um exemplo
que cumpre uma tripla funccedilatildeo faz-nos pensar a definiccedilatildeo de contiacutenuo por meio da anaacutelise da
passagem do tempo mostra como os infinitesimais estatildeo presentes nesse processo e ao discutir
como se daacute a atividade mental mostra tambeacutem a estrutura fundamental do cosmo pois para o
Peirce a natureza do cosmo eacute mental esta tambeacutem uma decorrecircncia do princiacutepio de continuidade
como uma hipoacutetese explicativa dos fenocircmenos
A questatildeo levantada por Peirce e que serviraacute de guia para essa discussatildeo eacute a de ldquocomo uma
ideia passada pode estar presenterdquo (CP 6 sect 109 1892)94
A resposta por ele proposta eacute de que
devemos estar diretamente conscientes das ideias do passado imediato Caso houvesse uma
lacuna entre nosso conhecimento presente e as ideias do passado todo o nosso conhecimento do
passado natildeo seria mais do que uma ilusatildeo Ou seja Peirce afirma que a consciecircncia natildeo reteacutem
93 To say that a die has a would-be is to say that it has a property quite analogous to any habit that a man might
have Only the would-be of the die is presumably as much simpler and more definite than the mans habit as the
dies homogeneous composition and cubical shape is simpler than the nature of the mans nervous system and soul
and just as it would be necessary in order to define a mans habit to describe how it would lead him to behave and
upon what sort of occasion--albeit this statement would by no means imply that the habit consists in that action--so to
define the dies would-be it is necessary to say how it would lead the die to behave on an occasion that would
bring out the full consequence of the would-be and this statement will not of itself imply that the would-be of
the die consists in such behaviour 94
How can a past idea be present
78
uma ideia em um intervalo finito de tempo Assim como consequecircncia devemos estar
conscientes do passado ldquoatraveacutes de um intervalo de tempo infinitesimalrdquo (CP 6 sect 110 1892)95
Como aponta Hausman ldquosomos levados a um concentrado exame da experiecircncia de ser
consciente atraveacutes de um fluxo de tempo que deve ser compreendido em termos de componentes
infinitesimaisrdquo (HAUSMAN 1993 p 179)
Como diz Peirce ldquosomos conscientes unicamente do tempo presente o qual se daacute em um
instante se eacute que existe tal coisa chamada instante Mas no presente estamos conscientes do
fluxo do tempo natildeo haacute fluxo em um instante Desse modo o presente natildeo eacute um instanterdquo (NEM
3 p 126)96
2 OS QUATRO ESTAacuteGIOS DO DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE CONTINUUM
A ideia de continuum eacute o fio condutor e o elemento comum de qualquer interpretaccedilatildeo que
busque relacionar os diferentes aspectos da produccedilatildeo peirceana constituiacuteda por teorias que uma
parte dos criacuteticos97
insiste em afirmar natildeo podem ser compatibilizadas a fim de produzir um todo
coerente objetivo de Peirce que considerava como arquitetocircnica a construccedilatildeo do seu sistema
Teorias que segundo tais perspectivas natildeo possuem aquelas caracteriacutesticas que tornam a obra de
Peirce atual e a aproxima do fazer filosoacutefico contemporacircneo Nota-se uma tendecircncia a colocar em
oposiccedilatildeo as teorias que tratam da metodologia da linguagem bem como da loacutegica com aquelas
que satildeo o resultado de sua investigaccedilatildeo metafiacutesica
Peirce reconhece o deacutebito que possui com Kant sobre este aspecto ao discorrer sobre a
necessidade de se construir arquitetonicamente os sistemas de filosofia ele afirma
95 () through an infinitesimal interval of time
96 We are conscious only of the present time which is an instant if there be such thing as an instant But in the
present we are conscious of the flow of the time There is no flow in an instant Hence the present is not an instant 97
Por exemplo GALLIE 1952
79
Que os sistemas devem ser construiacutedos arquitetonicamente foi apregoado
desde Kant mas eu natildeo acho que a implicaccedilatildeo completa da maacutexima tenha
por qualquer modo sido apreendida O que eu recomendo eacute que cada
pessoa que queira formar uma opiniatildeo sobre os problemas fundamentais
deve antes de tudo fazer um levantamento completo do conhecimento
humano deve tomar nota de todas as ideacuteias valiosas em cada ramo da
ciecircncia deve observar exatamente com respeito a que cada uma tem sido
bem sucedida e onde tem falhado a fim de que agrave luz da familiaridade
aprofundada desse modo obtida dos materiais disponiacuteveis para uma teoria
filosoacutefica e da natureza e da forccedila de cada um ele pode avanccedilar para o
estudo do que o problema da filosofia consiste e da maneira correta de
resolvecirc-lo (CP 6 sect 9 1891)98
A teoria da continuidade peirceana passou por vaacuterias fases das quais tentaremos oferecer
uma descriccedilatildeo neste capiacutetulo o momento de sua elaboraccedilatildeo mais feacutertil e de resultado mais
duradouro pode ser localizado na deacutecada de 90 do seacuteculo XIX Esse resultado se encontra
sintetizado na ldquoLei da menterdquo de 1892 e nas ldquoConferecircncias de Cambridgerdquo de 1898 e ocorre
ao mesmo tempo em que desenvolvia a loacutegica dos grafos existenciais e a hipoacutetese cosmoloacutegica
Natildeo bastasse a coincidecircncia quanto ao momento da origem dessas trecircs teorias eacute o proacuteprio Peirce
que declara haver uma unidade de base entre os toacutepicos ldquoOs meus bdquoGrafos existenciais‟ tecircm uma
semelhanccedila notaacutevel com todos os meus pensamentos acerca de qualquer toacutepico da filosofiardquo (MS
620 p 09)
A relaccedilatildeo mais imediata que se pode estabelecer entre elas eacute a de que constituem diversos
aspectos da ideia de continuum a loacutegica dos grafos existenciais estaacute baseada no continuum
98 That systems ought to be constructed architectonically has been preached since Kant but I do not think the full
import of the maxim has by any means been apprehended What I would recommend is that every person who
wishes to form an opinion concerning fundamental problems should first of all make a complete survey of human
knowledge should take note of all the valuable ideas in each branch of science should observe in just what respect
each has been successful and where it has failed in order that in the light of the thorough acquaintance so attained of
the available materials for a philosophical theory and of the nature and strength of each he may proceed to the study
of what the problem of philosophy consists in and of the proper way of solving it (CP 6 sect 9 1891)
80
topoloacutegico como veremos brevemente abaixo A teoria do continuum por sua vez eacute a proacutepria
expressatildeo matemaacutetica do referido conceito e a hipoacutetese cosmoloacutegica consiste na explicitaccedilatildeo dos
princiacutepios de desenvolvimento do continuum real
A variedade de definiccedilotildees que Peirce oferece da ideia de continuum deve-se segundo nos
parece ao fato de que grande parte seus escritos jamais foi publicada Os textos disponiacuteveis em
sua maioria satildeo constituiacutedos por notas que tomava para si proacuteprio ou projetos de livros que
nunca chegaram a ser concluiacutedos Assim o que temos ao ler seus textos eacute um retrato do proacuteprio
desenvolvimento quase cotidiano de suas ideias99
Os textos nos quais Peirce trata da questatildeo
refletem sucessivas tentativas de tornar a ideia de continuum clara coerente e adequada agraves suas
motivaccedilotildees filosoacuteficas As voltas avanccedilos e retomadas fazem parte dessa maneira do retrato do
desenvolvimento do pensamento do filoacutesofo que de fato nunca foi concluiacutedo as modificaccedilotildees
de suas ideias sobre o tema se prolongaram ateacute pouco tempo antes de sua morte em 1914
Segundo Potter e Shields (1977) de 1880 ateacute 1911 periacuteodo no qual Peirce tentou oferecer
uma definiccedilatildeo matematicamente precisa do conceito de continuidade eacute possiacutevel reconhecer
quatro estaacutegios no seu pensamento quanto ao tema100
preacute-cantoriano (ateacute 1884) cantoriano
(1884 ndash 1894) kantiano (1895 ndash 1908) e poacutes-cantoriano (1908 ndash 1911)
99 Moore se refere a essa condiccedilatildeo afirmando que como a maioria das principais ideias de Peirce a ideia de
continuum pode ser vista como ldquowork in progressrdquo (cf MOORE 2007 p 425) 100
Moore (2007) por outro lado classifica em trecircs as fases do desenvolvimento de sua noccedilatildeo de continuum
denominados de (1) Fase germinal (1868 - 1892) na qual as motivaccedilotildees fundamentais para a teoria satildeo identificadas
e elaboradas (2) Fase semi-cantoriana (1892 - 1895) na qual a teoria de conjuntos de Cantor imperfeitamente
compreendida eacute usada como uma estrutura organizadora e (3) Fase peirceana (1895-1914) na qual a teoria de
coleccedilotildees elaborada por Peirce assume o papel organizador
81
21 O PERIacuteODO PREacute-CANTORIANO
O primeiro periacuteodo eacute marcado pela consciecircncia de que havia uma confusatildeo incomum entre
as noccedilotildees de continuidade e divisibilidade infinita mas natildeo ainda pela tentativa de solucionar os
problemas implicados Peirce afirma que ldquo() um continuum eacute precisamente isso toda parte dele
tem partes no mesmo sentidordquo (CP 5 sect 335 1868)101
essa caracteriacutestica ficou conhecida na
literatura sobre o tema como reflexividade Essa confusatildeo persistiu ateacute que 1884 quando Peirce
leu pela primeira vez o artigo ldquoGrundlagen einer allgemeinen Mannigfaltigkeitslehrerdquo (1883) de
Cantor
Entre as motivaccedilotildees para a elaboraccedilatildeo de uma teoria do continuum encontram-se a
necessidade de uma anaacutelise epistemologicamente adequada do tempo bem como a elaboraccedilatildeo de
uma resposta agrave criacutetica feita ao seu texto intitulado ldquoAlgumas consequecircncias de quatro
incapacidadesrdquo de 1868 no qual Peirce desenvolve uma nova concepccedilatildeo de mente que em
oposiccedilatildeo agrave concepccedilatildeo de mente cartesiana caracteriza-se por natildeo possuir qualquer faculdade de
apreensatildeo imediata dos objetos do conhecimento nesse texto ele afirma que toda cogniccedilatildeo eacute
determinada por uma cogniccedilatildeo preacutevia (cf CP 5 sect 284 1868) ou seja que as premissas de todo
raciociacutenio satildeo tambeacutem conclusotildees Sua resposta inicial eacute dada nos termos de uma analogia da
cogniccedilatildeo com um triacircngulo Peirce pede que imaginemos um triacircngulo com o veacutertice invertido e
que aos poucos eacute mergulhado na aacutegua Diz ele
Considere qualquer linha horizontal como representando uma cogniccedilatildeo e
considere que o comprimento da linha serve para medir (por assim dizer) a
vivacidade da consciecircncia daquela cogniccedilatildeo Um ponto natildeo tendo
comprimento representaraacute por este princiacutepio um objeto fora da consciecircncia
Considere que uma linha horizontal abaixo de outra representa uma cogniccedilatildeo
que determina a cogniccedilatildeo representada por aquela outra e que tenha o mesmo
101 () a continuum is precisely that every part of which has parts in the same sense
82
objeto que a uacuteltima Considere a distacircncia finita entre as duas linhas como
representando que elas sejam duas cogniccedilotildees diferentes (CP 5 sect 263 1868)102
Dada esta situaccedilatildeo Peirce potildee-se a investigar se haacute a necessidade de se admitir se ldquodeve
existir um primeirordquo Agrave medida que o triacircngulo mergulha na aacutegua linhas sucessivas formam-se
em sua superfiacutecie que resultam do contato com a superfiacutecie da aacutegua Dizer que haacute uma primeira
seria o mesmo que afirmar que haveria uma linha formada no triacircngulo abaixo da qual nenhuma
outra poderia ser traccedilada mas segundo Peirce baseado na ideia de continuum como infinita
divisibilidade podem ser traccediladas abaixo de qualquer linha tantas outras o quanto se desejar Se
tomarmos essas linhas como cogniccedilotildees veremos que natildeo haacute necessidade de uma primeira visto
que afirmar tal necessidade seria o mesmo que abandonar a geometria
Em um momento posterior no texto ldquoTempo e pensamentordquo provavelmente de 1873
Peirce argumenta novamente em favor da ideia de que o continuum natildeo possui partes uacuteltimas
atraveacutes da investigaccedilatildeo das condiccedilotildees necessaacuterias para a existecircncia de uma mente loacutegica O
filoacutesofo aponta que trecircs coisas devem ser encontradas em toda mente loacutegica ldquoPrimeiro ideias
segundo determinaccedilatildeo de ideias por ideias preacutevias terceiro determinaccedilatildeo de ideias por
processos preacuteviosrdquo (CP 7 sect 348 1873)103
Em um fragmento de 1873 Peirce afirma com mais
detalhes ldquoem toda mente loacutegica deve haver 1ordm ideias 2ordm regras gerais de acordo com as quais
uma ideia determina uma outra ou haacutebitos da mente que conectam ideias 3ordm processos por meio
dos quais tais conexotildees habituais satildeo estabelecidasrdquo (CP 7 sect 358 1873)104
102 Now let any horizontal line represent a cognition and let the length of the line serve to measure (so to speak) the
liveliness of consciousness in that cognition A point having no length will on this principle represent an object
quite out of consciousness Let one horizontal line below another represent a cognition which determines the
cognition represented by that other and which has the same object as the latter Let the finite distance between two
such lines represent that they are two different cognitions 103
First ideas second determinations of ideas by previous ideas third determinations of ideas by previous
processes 104
In every logical mind there must be 1st ideas 2nd general rules according to which one idea determines another
or habits of mind which connect ideas and 3rd processes whereby such habitual connections are established
83
Para que tais condiccedilotildees produzam o pensamento loacutegico as ideias natildeo se podem apresentar
agrave mente como entidades distintas Se tal ocorresse uma vez que a mente soacute se fixa no conteuacutedo
da ideia presente no momento que passa (passing moment) natildeo haveria como conceber a
implicaccedilatildeo entre ideias105
Aqui indica Moore (2007) Peirce se aproxima mas ainda natildeo
formula com clareza uma das propriedades que definem o continuum segundo sua concepccedilatildeo
mais elaborada a de que seus componentes natildeo se distinguem em entidades singulares mas se
apresentam como que fundidos uns aos outros enquanto natildeo se realizam como seres atuais Essa
propriedade receberaacute o nome de confusatildeo (confusion) Ressalta-se tambeacutem a oposiccedilatildeo entre o
continuum reflexivo e as entidades discretas denominadas por Peirce de quanta discretas que
possuem partes uacuteltimas cuja funccedilatildeo eacute a de tornar mais clara a reflexividade do continuum Ao
estudar a metafiacutesica das coleccedilotildees Peirce vislumbra uma abordagem alternativa para o problema
mas o seu ainda impreciso conhecimento sobre coleccedilotildees natildeo o deixa seguir adiante
22 PERIacuteODO CANTORIANO
Por volta de 1884 Peirce jaacute tinha consciecircncia da centralidade que a noccedilatildeo de continuidade
poderia desempenhar na elaboraccedilatildeo de sua filosofia mas ainda natildeo tinha obtido sucesso em
propor uma definiccedilatildeo que lhe fosse satisfatoacuteria Moore afirma que por essa eacutepoca
Ele atingira a ideia de reflexividade kantiana mas natildeo chegara ainda a uma
anaacutelise dos pontos e outros discreta que fosse claramente compatiacutevel com
aquela ideia Reconhecera a utilidade para uma filosofia epistemologicamente
adequada do tempo de alguma coisa como confusatildeo mas essas caracteriacutesticas
105 Percebemos nesta consideraccedilatildeo uma clara motivaccedilatildeo filosoacutefica para o desenvolvimento de uma concepccedilatildeo precisa
de continuidade e mais que isso vemos como questotildees relacionadas agrave epistemologia estatildeo determinando os
caminhos que Peirce toma para pensar as propriedades que tal concepccedilatildeo deve possuir afim de que o conhecimento
seja possiacutevel As condiccedilotildees enunciadas na nota acima abrem a possibilidade de pensar a causalidade final atuante no
processo de implicaccedilatildeo de ideias o que seraacute feita no uacuteltimo capiacutetulo desta tese
84
do seu continuum ndash reflexividade e confusatildeo ndash natildeo foram colocadas em uma
conexatildeo sistemaacutetica em sua definiccedilatildeo de continuum Tinha comeccedilado a brincar
com os infinitesimais mas um pouco agrave parte de seu pensamento sobre
continuidade (MOORE 2007 p 434)
Apoacutes 1884 Peirce adere agrave posiccedilatildeo de Cantor afirmando que a noccedilatildeo de continuidade
deveria ser definida independentemente de nossas concepccedilotildees de espaccedilo e tempo Contudo a
definiccedilatildeo de Cantor natildeo surtiu o efeito que Peirce desejava e nos anos seguintes continuou a
tentar novas definiccedilotildees Seu principal desacordo com a definiccedilatildeo proposta pelo matemaacutetico
consistia em sua insatisfaccedilatildeo com a ideia de que fosse possiacutevel uma abordagem meacutetrica do
continuum Neste periacuteodo de desenvolvimento do seu pensamento sobre a continuidade duas
propriedades do continuum tornam-se centrais a kanticidade (Kanticity) e a aristotelicidade
(Aristotelicity) conforme a nomenclatura peirceana A kanticidade de uma seacuteria faz referecircncia
agravequela ldquopropriedade de intermediaccedilatildeo ou divisibilidaderdquo (CP 4 sect 121)106
ou ainda que a
ldquokanticidade consiste em ter um ponto entre dois pontos quaisquerrdquo (CP 6 sect 166 1889)107
Quanto agrave segunda Peirce afirma que a ldquoaristotelicidade consiste em ter todo ponto que eacute um
limite a uma seacuterie infinita de pontos que pertencem ao sistemardquo (CP 6 sect 166 1889)108
ou ainda
que
A propriedade de aristotelicidade pode ser colocada em termos gerais do
seguinte modo um continuum conteacutem o ponto final que pertence a toda seria
infinita de pontos que ele conteacutem Um corolaacuterio oacutebvio eacute que todo continuum
conteacutem seus limites Mas usando esse princiacutepio eacute necessaacuterio observar que uma
seacuterie pode ser contiacutenua exceto nisto que ela omita um ou ambos os limites (CP
6 sect 123)109
106 property of infinite intermediety or divisibility
107 The Kanticity is having a point between any two points
108 The Aristotelicity is having every point that is a limit to an infinite series of points that belong to the system
109 The property of Aristotelicity may be roughly stated thus a continuum contains the end point belonging to every
endless series of points which it contains An obvious corollary is that every continuum contains its limits But in
using this principle it is necessary to observe that a series may be continuous except in this that it omits one or both
of the limits
85
Como afirma Potter amp Shields (1977) por volta de 1889 o impacto de Cantor sobre Peirce
jaacute era bastante visiacutevel na definiccedilatildeo de continuidade que apresenta para o Dicionaacuterio do Seacuteculo
escreve
[Continuidade significa] em matemaacutetica e filosofia uma conexatildeo de pontos (ou
outros elementos) tatildeo iacutentima como aquelas dos instantes ou intervalos de
tempo assim a continuidade do espaccedilo consiste nisso que um ponto pode
mover-se de qualquer posiccedilatildeo para qualquer outra de tal modo que em cada
instante ele teraacute uma posiccedilatildeo definida e distinta no espaccedilo Esta afirmaccedilatildeo natildeo
eacute entretanto uma definiccedilatildeo adequada de continuidade mas somente um
exemplo extraiacutedo do tempo As antigas definiccedilotildees ndash o fato que partes adjacentes
tecircm seus limites em comum (Aristoacuteteles) infinita divisibilidade (Kant) o fato
que entre quaisquer dois pontos haacute um terceiro (o que eacute verdade para o sistema
dos nuacutemeros racionais) ndash satildeo inadequadas A definiccedilatildeo menos insatisfatoacuteria eacute a
de G Cantor de que continuidade eacute a perfeita concatenaccedilatildeo de um sistema de
pontos ndash palavras que precisam ser entendidas em sentidos especiais (CP 6 sect
164 1889)110
Do ponto de vista filosoacutefico Peirce estava tentando fornecer uma concepccedilatildeo de continuum
que fosse adequada agrave defesa de seu falibilismo e ao estabelecimento de sua cosmologia
evolucionaacuteria Seu entusiasmo com tal ideia era claro ele confessa no texto Falibilismo
continuidade e evoluccedilatildeo de 1897 que ldquose eu tentasse descrever completamente para vocecircs toda a
beleza e verdade cientiacutefica que encontro no princiacutepio de continuidade teria que dizer na
linguagem simples de Matilda a engajada ldquoque a tumba se fecharia sobre mim antes que esse
110 [Continuous means] in mathematics and philosophy a connection of points (or other elements) as intimate as that
of the instants or points of an interval of time thus the continuity of space consists in this that a point can move
from any one position to any other so that at each instant it shall have a definite and distinct position in space This
statement is not however a proper definition of continuity but only an exemplification drawn from time The old
definitions -- the fact that adjacent parts have their limits in common (Aristotle) infinite divisibility (Kant) the fact
that between any two points there is a third (which is true of the system of rational numbers) -- are inadequatedagger2 The
less unsatisfactory definition is that of G Cantor that continuity is the perfect concatenation of a system of points --
words which must be understood in special senses
86
assunto fascinante fosse esgotadordquo ndash mas natildeo antes que minha plateia estivesse exausta (CP 1 sect
171 1897)111
23 PERIacuteODO KANTIANO112
Em meados da deacutecada de 90 motivado por uma reflexatildeo sobre a definiccedilatildeo proposta por
Kant113
de que continuum eacute ldquotudo aquilo cujas partes tecircm partes do mesmo tipordquo (CP 6 sect 168
1889) passa a considerar o continuum natildeo mais como infinita divisibilidade mas como aquilo
que natildeo tem partes uacuteltimas Nesse sentido endereccedila criacuteticas a Cantor insistindo em uma
abordagem natildeo meacutetrica do continuum passando a usar o termo ldquomultitude em suas formulaccedilotildees
Assim afirma que ldquo() a possibilidade de determinar mais do que qualquer dada grandeza dos
pontos ou em outras palavras o fato de que haacute lugar para qualquer grandeza em cada parte da
linha torna-a contiacutenuardquo (CP 3 sect 568 1900)114
Peirce afirma pois que continuidade eacute
totalmente diferente de qualquer coleccedilatildeo de elementos discretos e que por outro lado quanto
maior uma coleccedilatildeo se torna mais ela se parece com o continuum
As criacuteticas que havia endereccedilado a Cantor desde 1892115
expressavam o seu desacordo com
uma abordagem meacutetrica do continuum segundo Peirce a definiccedilatildeo proposta pelo matemaacutetico
ldquovoltava-se para consideraccedilotildees meacutetricas enquanto a distinccedilatildeo entre seacuteries contiacutenuas e
descontiacutenuas eacute manifestamente natildeo-meacutetricardquo (CP 6 sect 121 1982)116
Em termos mais
111 If I were to attempt to describe to you in full all the scientific beauty and truth that I find in the principle of
continuity I might say in the simple language of Matilda the Engaged the tomb would close over me eer the
entrancing topic were exhausted -- but not before my audience was exhausted 112
Moore (2007) denomina este periacuteodo de Fase peirceana argumentando que eacute nele que Peirce obteacutem a definiccedilatildeo
de continuum mais satisfatoacuteria com relaccedilatildeo agraves suas preocupaccedilotildees filosoacuteficas 113
Que natildeo deve ser confundida com a propriedade denominada kanticidade anteriormente indicada cujo significado
era somente o de infinita divisibilidade 114
(hellip) the possibility of determining more than any given multitude of points or in other words the fact that there
is room for any multitude at every part of the line makes it continuous 115
No texto A lei da mente 116
It turns upon metrical considerations while the distinction between a continuous and a discontinuous series is
87
compreensiacuteveis as questotildees que Peirce estava se colocando desde 1893 eram segundo Potter e
Shields (1977) do seguinte tipo como um continuum pode ser colorido quando suas proacuteprias
partes os pontos natildeo podem secirc-lo (cf CP 4 sect 127) A soluccedilatildeo encontrada por Peirce foi a de
natildeo mais considerar os pontos como constituintes do continuum em sua nova formulaccedilatildeo as
partes constituintes do continuum satildeo tambeacutem contiacutenuas Essa posiccedilatildeo perdura ateacute por volta de
1908 quando motivado por problemas no interior dessa abordagem Peirce procura uma nova
elaboraccedilatildeo
24 PERIacuteODO POacuteS-CANTORIANO
Em particular a partir da criacutetica a Cantor de que o continuum natildeo eacute realmente uma
coleccedilatildeo surge a necessidade de se explicar como as partes do continuum juntam-se num todo
pois o continuum claramente tem partes Em 1906 Peirce enfatiza que ldquotudo o que eacute contiacutenuo
tem partes materiaisrdquo e que portanto natildeo pode ser pensado como uma coleccedilatildeo de pontos (CP 6
sect 174 1906) O modo de conexatildeo de suas partes contribui para a natureza do todo Em uma
coleccedilatildeo o modo de conexatildeo eacute soacute o estar junto (co-being) mas no continuum ela deve consistir de
alguma coisa a mais Apenas em 1908 retomando a definiccedilatildeo de Kant de que ldquo() todas as
partes de um continuum perfeito tecircm a mesma dimensionalidade que o todordquo (CP 4 sect 642
1908)117
Peirce afirma que eacute uma decorrecircncia dessa definiccedilatildeo natildeo apenas que todas as partes
devem ter partes do mesmo tipo mas que as partes suficientemente pequenas devem ter um modo
uniforme de conexatildeo imediata O modo de conexatildeo imediata tem como paradigma a noccedilatildeo de
tempo Ou seja ao final Peirce retoma o que havia descartado em 1889 quando aderiu agrave
definiccedilatildeo de Cantor e passa a tratar o continuum em termos de semelhanccedila com a conexatildeo das
pequenas partes temporais
manifestly non-metrical 117
(hellip) all the parts of a perfect continuum have the same dimensionality as the whole
88
Retomando o argumento de Aquiles e a tartaruga proposto por Zenatildeo de Eleacutea para
demonstrar a impossibilidade do movimento Peirce afirma tratar-se de um argumento falacioso
que falha justamente por assumir como divisiacutevel o que natildeo pode secirc-lo
Como afirmam Potter e Shields (1977) a concepccedilatildeo final de continuidade de Peirce entatildeo
fica assim a definiccedilatildeo matemaacutetica de continuidade descreve um continuum imperfeito (CP 4 sect
642 1908) mas o verdadeiro continuum eacute alguma coisa diferente de qualquer relaccedilatildeo meacutetrica ou
da ordem dos elementos O verdadeiro continuum natildeo tem elementos reais embora natildeo seja
vazio (cf POTTER e SHIELDS 1961 p 139)
Uma vez demonstrada a importacircncia central da noccedilatildeo de continuidade para o pensamento
de Peirce e o modo como esse conceito estaacute ligado agraves variadas maneiras de expressatildeo do seu
pensamento contribuindo para o esclarecimento dos aspectos mais obscuros de suas formulaccedilotildees
cabe agora tentar compreender em particular a maneira pela qual a atuaccedilatildeo da causalidade final
se manifesta nos processos naturais tendo como pano de fundo o continuum Como jaacute foi
indicado a possibilidade do conhecimento do mundo estaacute intimamente ligada ao seu aspecto de
generalidade que por sua vez soacute adquire sentido sob o conceito de continuidade Do mesmo
modo as relaccedilotildees causais em geral e a final em particular envolvem continuidade No proacuteximo
capiacutetulo seraacute investigada a especificidade do modo de atuaccedilatildeo da causalidade final
89
CAPIacuteTULO 03
A EVOLUCcedilAtildeO
Boys grow into men but not men into boys It is thus an immediate corollary from the
doctrine of the conservation of energy that growth is not the effect of force alone (CP
6 sect 554 1887)
90
Este capiacutetulo procura evidenciar o modo pelo qual o desenvolvimento do continuum se
efetuou e tem se efetuado para dar origem ao universo atual segundo a concepccedilatildeo peirceana
Seu desenvolvimento como ressalta Peirce se daacute por meio da atuaccedilatildeo da causalidade final A
negaccedilatildeo da atuaccedilatildeo da causalidade final nos processos naturais eacute uma posiccedilatildeo que natildeo pode ser
sustentada consistentemente pois para Peirce natildeo soacute nos deparamos com uma miriacuteade de
fenocircmenos que a manifestam claramente em particular nos reinos orgacircnico e psiacutequico mas
tambeacutem no reino fiacutesico como por exemplo mais determinante ainda no processo que deu
origem e continua a atuar no crescimento do universo que soacute pode ser entendido a partir da
perspectiva que toma a causalidade final como um agente operante no universo Tal processo diz
Peirce eacute a evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902)
1 ASPECTOS EPISTEMOLOacuteGICOS DA HIPOacuteTESE EVOLUCIONAacuteRIA
Partiremos nesta investigaccedilatildeo de algumas consideraccedilotildees sobre a perspectiva
epistemoloacutegica peirceana para evidenciarmos o modo pelo qual suas consideraccedilotildees sobre a
evoluccedilatildeo satildeo determinantes para a possibilidade de realizaccedilatildeo de seu projeto de validaccedilatildeo do
empreendimento cientiacutefico Para tal fim teremos como ponto de partida as consideraccedilotildees
oferecidas por Christopher Hookway (1984 1985) O primeiro aspecto a ser considerado eacute a sua
adoccedilatildeo do princiacutepio que nega a existecircncia do inexplicaacutevel Uma consequecircncia desta adoccedilatildeo eacute o
estabelecimento de um criteacuterio para a identificaccedilatildeo do tipo de hipoacutetese que pode ser aceita como
candidata agrave verdade cientiacutefica e desse modo merecedora de investigaccedilatildeo Como jaacute foi dito
anteriormente eacute a regularidade na concepccedilatildeo de Peirce aquilo que requer uma explicaccedilatildeo
Como aponta o filoacutesofo natildeo nos surpreendemos e nem buscamos explicaccedilotildees para o resultado
que emerja de um lance de dados uma regularidade natildeo esperada a quebra de uma expectativa
(cf CP 7 sect 194 1901) por outro lado excita-nos a buscar uma explicaccedilatildeo do por que dos
eventos terem se sucedido daquela maneira precisa A maior parte das irregularidades natildeo nos
desperta o menor interesse Peirce diz
91
Estou () certo de que a mera irregularidade onde nenhuma regularidade
definida eacute esperada natildeo cria surpresa nem excita qualquer curiosidade Por que
deveria jaacute que a irregularidade eacute a regra absolutamente preponderante da
experiecircncia e a regularidade eacute somente uma estranha exceccedilatildeo Em que estado
de surpresa passaria minha vida se tentasse compreender por que natildeo haacute
regularidades conectando dias nos quais eu recebo um nuacutemero par de cartas pelo
correio e noites nas quais eu observo um nuacutemero par de estrelas cadentes Mas
quem procuraria por explicaccedilotildees para irregularidades como essas (CP 7 sect 189
1901)118
Uma explicaccedilatildeo no entanto eacute requerida sempre que uma expectativa criada por um haacutebito
que tem por base uma regularidade eacute quebrada A surpresa causada pela quebra de regularidade
motiva-nos a procurar uma explicaccedilatildeo para o comportamento natildeo esperado dos fenocircmenos A
maneira como Peirce entende o que seria uma explicaccedilatildeo eacute bem clara na seguinte passagem
() o que a explicaccedilatildeo de um fenocircmeno faz eacute fornecer uma proposiccedilatildeo que se
fosse conhecida como verdadeira antes do fenocircmeno se apresentar teria tornado
aquele fenocircmeno prediziacutevel se natildeo como certeza ao menos como algo de
ocorrecircncia muito provaacutevel Assim tornaria aquele fenocircmeno racional - isto eacute
tornaacute-lo-ia uma consequecircncia loacutegica necessaacuteria ou provaacutevel (CP 7 sect 197
1901)119
O problema com essa definiccedilatildeo de explicaccedilatildeo eacute que aparentemente implica em um regresso
ao infinito Se aceitarmos como Peirce que uma explicaccedilatildeo natildeo pode ter por base uma hipoacutetese
118 I am () confident that mere irregularity where no definite regularity is expected creates no surprise nor excites
any curiosity Why should it when irregularity is the overwhelmingly preponderant rule of experience and
regularity only the strange exception In what a state of amazement should I pass my life if I were to wonder why
there was no regularity connecting days upon which I receive an even number of letters by mail and nights on which
I notice an even number of shooting stars But who would seek explanations for irregularities like that
119 () what an explanation of a phenomenon does is to supply a proposition which if it had been known to be true
before the phenomenon presented itself would have rendered that phenomenon predictable if not with certainty at
least as something very likely to occur It thus renders that phenomenon rational -- that is makes it a logical
consequence necessary or probable
92
que natildeo seja ela proacutepria explicaacutevel veremos a necessidade de uma hierarquia de hipoacuteteses
segundo a sua generalidade que conduziria a explicaccedilatildeo de qualquer fenocircmeno por fim ao
fracasso uma vez que nenhum fenocircmeno poderia ser completamente conhecido
Barrar a regressatildeo ao infinito parece possiacutevel somente se encontrarmos uma lei que natildeo
necessite de explicaccedilatildeo que se imponha por si mesma Esse entretanto natildeo parece ter sido o
caminho trilhado por Peirce Eacute na tentativa de solucionar o problema da regressatildeo ao infinito das
explicaccedilotildees que encontraremos uma das motivaccedilotildees para a elaboraccedilatildeo de sua hipoacutetese
evolucionaacuteria Submeter uma regularidade a uma lei de maior generalidade natildeo parece ser o
uacutenico caminho para oferecer uma explicaccedilatildeo Uma rota alternativa consiste em oferecer uma
explicaccedilatildeo histoacuterica de como tais regularidades surgiram isto eacute uma explicaccedilatildeo geneacutetica Como
aponta Hookway ldquoEacute plausiacutevel ler Peirce como se estivesse tentando bloquear a regressatildeo de
explicaccedilotildees por meio dessa estrateacutegia a cosmologia evolucionaacuteria oferece uma estrutura para
compreensatildeo histoacuterica das leis que nos capacita a bloquear o regresso das explicaccedilotildeesrdquo
(Hookway 1985 p 267-68)
Aleacutem do bloqueio agrave regressatildeo das explicaccedilotildees Peirce vecirc na hipoacutetese evolucionaacuteria tomada
como um instrumento loacutegico uma resposta para as similaridades formais e materiais constataacuteveis
entre as leis que dirigem diferentes tipos de fenocircmenos da mesma maneira que a teoria da
seleccedilatildeo natural elaborada por Darwin (1809 - 1882) auxilia-nos na compreensatildeo das
semelhanccedilas morfoloacutegicas e comportamentais de diferentes populaccedilotildees
De maneira mais ambiciosa Peirce parece acreditar que a hipoacutetese evolucionaacuteria seria
capaz tambeacutem de explicar porque temos a experiecircncia de uma uniformidade na natureza Ele
afirma que ldquo() a uacutenica maneira possiacutevel de explicar as leis da natureza e a uniformidade em
geral eacute supocirc-las resultado da evoluccedilatildeordquo (CP 6 sect 13 1891)120
em outro momento afirma que
Queremos uma teoria da evoluccedilatildeo da lei fiacutesica Devemos supor que agrave medida
que voltamos ao passado indefinido natildeo meramente as leis especiais mas a lei
120 (hellip) the only possible way of accounting for the laws of nature and for uniformity in general is to suppose them
results of evolution This supposes them not to be absolute not to be obeyed precisely
93
ela mesma encontra-se cada vez menos determinada E como isso poderia
acontecer se a causalidade tivesse sido sempre tatildeo rigidamente necessaacuteria como
eacute agora (EP 1 p 218-9 1884)121
Hookway eacute quanto a esse ponto discordante da pretensatildeo de Peirce pois afirma que
A demanda de que expliquemos por que uma lei existe parece muitas vezes e
corretamente dificilmente inteligiacutevel Essa natildeo parece ser uma questatildeo
cientiacutefica e certamente natildeo eacute idecircntica como Peirce supotildee agrave mais razoaacutevel
afirmaccedilatildeo de que eacute a regularidade ou a uniformidade que nos impulsiona a
buscar por explicaccedilotildees (Hookway 1985 p 268)
Todavia de acordo com o espiacuterito do projeto epistemoloacutegico peirceano que busca eliminar
o incognosciacutevel do reino da natureza por meio da validaccedilatildeo de um meacutetodo eficaz para a ciecircncia e
agrave luz da sua cosmologia que fornece elementos para pensar cada aspecto do universo como o
resultado de um processo evolucionaacuterio a proacutepria existecircncia de leis como um fato bruto que se
impotildee agrave experiecircncia deve ser tomado como um problema que requer uma explicaccedilatildeo A
discordacircncia presente na opiniatildeo de Hookway parece implicar em uma distinccedilatildeo entre leis e
regularidades que natildeo se encontra no pensamento de Peirce senatildeo em graus
Ao lado das leis que governam os fenocircmenos como jaacute vimos no primeiro capiacutetulo Peirce
identifica o acaso absoluto como um ingrediente constitutivo da realidade e fator determinante
para que ela nos apareccedila da maneira como a percebemos isto eacute diversa e com constante
crescimento de complexidade
A partir de uma perspectiva geral que engloba a origem do universo passando pelo tempo
atual e se projetando no futuro infinitamente distante podemos perceber que a hipoacutetese
121 We want a theory of the evolution of physical law We ought to suppose that as we go back in the indefinite past
not merely special laws but law itself is found to be less and less determinate And how can that be if causation was
always as rigidly necessary as it is now
94
evolucionaacuteria de Peirce se compromete com a ideia de que por meio da passagem do tempo as
variaccedilotildees ao acaso tornam-se mais raras e as leis tecircm a sua influecircncia sobre o curso dos eventos
aumentada tornando desse modo o mundo mais e mais racional Central a essa ideia eacute a noccedilatildeo
de haacutebito tanto em seu caraacuteter psicoloacutegico que atua sobre noacutes determinando atraveacutes de
investigaccedilatildeo que adotemos expectativas mais confiaacuteveis isto eacute tornemo-nos mais
autocontrolados quanto em seu caraacuteter cosmoloacutegico que determina o crescimento da
razoabilidade concreta no universo
2 AS RAIacuteZES NA CIEcircNCIA DO SEacuteCULO XIX
Uma outra motivaccedilatildeo para a adoccedilatildeo da hipoacutetese evolucionaacuteria pode ser encontrada na
insatisfaccedilatildeo com o tratamento que a mecacircnica claacutessica legava a certos fenocircmenos considerados
por Peirce de primordial importacircncia os fenocircmenos irreversiacuteveis A caracteriacutestica distintiva do
mundo fenomecircnico eacute sua diversidade afirma Peirce (cf CP 6 sect 262 1892) Como entatildeo
podemos perguntar eacute possiacutevel conciliar esse aspecto do mundo com uma abordagem mecanicista
dos fenocircmenos Eacute para responder a esta questatildeo que Peirce desenvolve uma teoria da evoluccedilatildeo
como um princiacutepio da loacutegica que amplia seu horizonte de aplicaccedilatildeo para aleacutem do reino das
explicaccedilotildees bioloacutegicas alcanccedilando o reino das explicaccedilotildees fiacutesicas psiacutequicas almejando ateacute
mesmo a explicar a gecircnese das proacuteprias leis naturais Embora tenha sido com a obra de Darwin
que o conceito de evoluccedilatildeo foi deslocado para o centro das discussotildees cientiacuteficas na segunda
metade do seacuteculo XIX Peirce dota-o de um sentido diferente daquele entatildeo empregado isto eacute do
de uma metafiacutesica do progresso Como um princiacutepio da loacutegica trata-se de uma ideia reguladora
que tem por finalidade abranger de forma sistemaacutetica e racional a ciecircncia do seu tempo Seu
sentido nada mais eacute do que a hipoacutetese de que existe uma explicaccedilatildeo simples para um estado de
coisas complexas (cf W 4 p 547 1884) Enquanto tal Peirce supunha-o presente na elaboraccedilatildeo
teoacuterica de todo grande filoacutesofo Ele afirma que ldquoHoje todos satildeo evolucionistas Diz-se que eacute o
tempo do evolucionismo Mas a verdade eacute que todos os filoacutesofos desde o tempo de Fereacutecides
95
tecircm sido evolucionistasrdquo (NEM 4 p 140 ca 1898)122
O desafio principal enfrentado por Peirce eacute o de propor uma alternativa agrave abordagem
mecanicista que natildeo ignore a variedade e diversidade dos fenocircmenos De um ponto de vista mais
geral pode-se identificar nos esforccedilos empreendidos por Peirce a busca por uma teoria que
levasse em consideraccedilatildeo os fenocircmenos irreversiacuteveis tarefa que natildeo faria sentido dentro dos
paracircmetros da fiacutesica newtoniana na qual a direccedilatildeo da flecha do tempo eacute teoricamente reversiacutevel
A evoluccedilatildeo como um processo operante no cosmo aparece como a fonte dos problemas da
abordagem da mecacircnica claacutessica pois a irreversibilidade de seus processos natildeo pode ser
explicada Diz Peirce
Desse modo pela admissatildeo da pura espontaneidade ou vida como uma
caracteriacutestica de universo agindo sempre e em todo lugar ainda que restrita pelos
limites da lei continuamente produzindo variaccedilotildees infinitesimais com relaccedilatildeo agrave
lei e outras grandes com infinita infrequecircncia considero toda a variedade e
diversidade do universo no uacutenico sentido no qual o realmente sui generis e novo
pode ser considerado A visatildeo comum tem que admitir a inexauriacutevel e numerosa
variedade do mundo tem que admitir que sua lei mecacircnica natildeo consegue dar
conta disso ao final a variedade pode se originar unicamente da espontaneidade
e contudo nega sem qualquer evidecircncia ou razatildeo a existecircncia dessa
espontaneidade ou de outra forma voltam ao iniacutecio do tempo e supotildeem-na
morta desde sempre (CP 6 sect 59 1892)123
Como aponta Reynolds (2002 p 27) ldquoEra uma crenccedila comum entre os fiacutesicos ateacute por volta
da uacuteltima deacutecada do seacuteculo dezenove que todos os fenocircmenos fiacutesicos poderiam ser acomodados
dentro dos esquemas da apresentaccedilatildeo da ciecircncia da mecacircnica de Newtonrdquo Peirce tendia a aceitar
esta afirmaccedilatildeo com alguma reserva sua principal discordacircncia dizia respeito agrave impossibilidade de
122 Everybody today is evolutionist This is said to be the day of evolutionism But in truth every important
philosopher from Pherecydes down has always been evolutionist
123 By thus admitting pure spontaneity or life as a character of the universe acting always and everywhere though
restrained within narrow bounds by law producing infinitesimal departures from law continually and great ones
with infinite infrequency I account for all the variety and diversity of the universe in the only sense in which the
really sui generis and new can be said to be accounted for The ordinary view has to admit the inexhaustible
multitudinous variety of the world has to admit that its mechanical law cannot account for this in the least that
variety can spring only from spontaneity and yet denies without any evidence or reason the existence of this
spontaneity or else shoves it back to the beginning of time and supposes it dead ever since
96
se abordar os fenocircmenos irreversiacuteveis dentro desse esquema explicativo A esta posiccedilatildeo que
considerava passiacutevel de criacutetica ele atribuiu o nome de mecanicismo ou necessitarismo Eacute
interessante notar que Peirce definia a fiacutesica como ldquo() a ciecircncia dos princiacutepios operativos na
natureza inorgacircnica a ciecircncia das forccedilas ou formas de energiardquo (CD p 4465 ca 1889)124
A
fiacutesica segundo sua concepccedilatildeo poderia ser divida em trecircs ramos distintos
1 Fiacutesica molar Mecacircnica e gravitaccedilatildeo a ciecircncia da forccedila em geral com
desenvolvimentos matemaacuteticos extensivos
2 Fiacutesica molecular o estudo da constituiccedilatildeo da mateacuteria e das forccedilas interiores agraves
moleacuteculas incluindo a elasticidade e o calor (um aspecto indivisiacutevel) coesatildeo e forccedilas quiacutemicas e
3 A fiacutesica do eacuteter sendo o estudo da luz ou radiaccedilatildeo eletricidade e magnetismo (cf CP
1 sect 193 1903)
Eacute no segundo ramo o da fiacutesica molecular indica Reynolds (2002) que Peirce vecirc a maior
importacircncia que seu projeto loacutegicometafiacutesico poderia ter como um guia para as pesquisas Sua
insatisfaccedilatildeo com a incapacidade da mecacircnica newtoniana de tratar do tempo como um fluxo que
possui uma direccedilatildeo especiacutefica eacute atribuiacuteda ao caraacuteter formal da teoria mecanicista Como afirma
() as leis da dinacircmica permanecem em uma condiccedilatildeo um pouco diferente
daquela das leis da gravitaccedilatildeo elasticidade e similares As leis da dinacircmica satildeo
muito mais parecidas com princiacutepios loacutegicos se eacute que natildeo satildeo precisamente isso
Elas soacute dizem como os corpos se moveratildeo depois que se tenha dito o que as
forccedilas satildeo Elas permitem qualquer forccedila e portanto qualquer movimento (CP
1 sect 347 1903)125
124 () the science of the principles operative in nature the science of forces or forms of energy 125 () the laws of dynamics stand on quite a different footing from the laws of gravitation elasticity electricity
and the like The laws of dynamics are very much like logical principles if they are not precisely that They only say
how bodies will move after you have said what the forces are They permit any forces and therefore any motions
97
Dado o seu caraacuteter geral e abstrato essas leis natildeo conseguem dar conta dos processos
irreversiacuteveis que ocorrem na natureza uma vez que a direccedilatildeo da flecha do tempo tanto pode estar
apontada para o futuro quanto para o passado sem que nada de significativo seja alterado na
teoria No entanto os processos naturais visados por Peirce como objetos merecedores de
atenccedilatildeo e explicaccedilatildeo satildeo justamente aqueles nos quais a direccedilatildeo do tempo desempenha um papel
fundamental satildeo os processos irreversiacuteveis como a proacutepria evoluccedilatildeo que determina o
crescimento do universo como um todo
A discussatildeo do alcance e limite da abordagem mecanicista passa pela consideraccedilatildeo do que
ficou conhecido como a lei da vis viva126
que eacute descrita por Peirce como ldquo() o princiacutepio
segundo o qual quando unicamente forccedilas posicionais satildeo consideradas qualquer mudanccedila na
vis viva do sistema depende unicamente das situaccedilotildees inicial e final das partiacuteculasrdquo (CD p 6768
ca 1889)127
As forccedilas posicionais satildeo aquelas resultantes exclusivamente da posiccedilatildeo relativa dos
corpos envolvidos Uma vez que essas forccedilas mantecircm a quantidade de vis viva do sistema
inalterada elas satildeo chamadas de forccedilas conservativas Na definiccedilatildeo que Peirce oferece do termo
forccedila temos a definiccedilatildeo do que entendia por forccedila conservativa
Uma atraccedilatildeo ou repulsatildeo dependente da posiccedilatildeo relativa do par de corpos
implicados Acredita-se que todas as forccedilas fundamentais sejam conservativas
ou fixas Seja qual for o movimento que tenha origem sob a influecircncia
unicamente de forccedilas conservativas pode originar-se sob as mesmas forccedilas
precisamente na ordem reversa a velocidade sendo a mesma mas em direccedilatildeo
oposta (CD p 2319 ca 1889)128
126 Reynolds (2002 p 30) lembra que essa quantidade foi primeiramente defina por Leibniz (1646 - 1716) como
sendo igual ao produto da massa e o quadrado da velocidade de uma partiacutecula ou a soma desse modo de um grupo
de partiacuteculas
127 () the principle that when only positional forces are considered any changes in the vis viva of a system
depend only on the initial and final situations of the particles 128 An attraction or repulsion depending upon the relative position of the pair of bodies concerned All fundamental
forces are believed to be conservative or fixed Whatever motion takes place under the influence of conservative
forces alone might take place under the same forces in precisely the reverse order the velocities being the same but
opposite in direction
98
A consequecircncia eacute a de que todos os sistemas que contenham unicamente forccedilas de tipo
conservativo satildeo reversiacuteveis Ainda que a princiacutepio a lei da vis viva tivesse aplicaccedilatildeo restrita aos
sistemas mecacircnicos Helmholtz (1821 - 1894) se encarregou de estendecirc-la a todos os sistemas
fiacutesicos argumentando que todas as forccedilas fundamentais da natureza satildeo posicionais portanto
conservativas que interagem entre pares de pontos materiais O passo seguinte nessa mesma
direccedilatildeo foi a determinaccedilatildeo do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia mais abrangente que a lei da
vis viva na medida em que inclui todos os tipos de forccedilas existentes na natureza como afirma
Reynolds ldquoO que o princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia fez foi tornar o velho princiacutepio da
mecacircnica (a lei da vis viva) um princiacutepio geral da fiacutesica com aplicaccedilatildeo universal a todos os
sistemas fiacutesicosrdquo (Reynolds 2002 p 32)
As implicaccedilotildees do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia e a sua relaccedilatildeo com a vis viva satildeo
bem indicadas por Peirce na seguinte passagem
Tambeacutem pode ser argumentado que de acordo com a lei de conservaccedilatildeo de
energia natildeo haacute nada no universo fiacutesico que corresponda agrave nossa ideia de que o
preacutevio determina o subsequente em qualquer modo no qual o subsequente natildeo
determine o preacutevio () Assim sendo do quadrado de uma quantidade negativa
sendo positivo segue-se que se todas as velocidades fossem revertidas em
qualquer instante tudo permaneceria igual unicamente o tempo indo para traacutes
em relaccedilatildeo a como estava Tudo que tenha acontecido aconteceria novamente
na ordem reversa (CP 8 sect 320 1906)129
ou ainda
129 It may also be argued that according to the law of the conservation of energy there is nothing in the physical
universe corresponding to our idea that the previous determines the subsequent in any way in which the subsequent
does not determine the previous() Now the square of a negative quantity being positive it follows that if all the
velocities were reversed at any instant everything would go on just the same only time going backward as it were
Everything that had happened would happen again in reverse order
99
Eu pessoalmente acredito que as duas direccedilotildees do Tempo satildeo tatildeo diferentes
quanto as duas direccedilotildees ao longo de uma linha Pois a lei da conservaccedilatildeo de
energia eacute que a vis viva e consequentemente tambeacutem as forccedilas das partiacuteculas
natildeo depende de nada mutaacutevel exceto as posiccedilotildees relativas das partiacuteculas Desse
modo o diferencial do tempo entra na expressatildeo analiacutetica da vis viva 12
m(dsdt)2 bem como naquela de forccedila m d2s (dt)
2 unicamente como o
quadrado Uma vez que o quadrado de uma quantidade negativa eacute igual agravequele
da quantidade positiva correspondente as duas direccedilotildees do tempo satildeo
indiferentes na medida em que a lei de conservaccedilatildeo de energia valha (NEM 2
p 481)130
O que se depreende eacute que natildeo se pode entender por meio destes princiacutepios porque o
universo apresenta caracteriacutesticas de irreversibilidade uma vez que a partir dos mesmos natildeo se
pode compreender por que a flecha do tempo possuiria caracteriacutesticas especiais em uma de suas
direccedilotildees isto eacute por que o tempo flui do passado para o futuro e por que essa direccedilatildeo apresenta
aspectos de irreversibilidade Entretanto seria um equiacutevoco julgar que Peirce natildeo tinha uma
avaliaccedilatildeo positiva do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia ele proacuteprio afirma em vaacuterios
momentos que ldquoA descoberta desta lei [de conservaccedilatildeo de energia] eacute a maior que a ciecircncia jamais
fez e nada que possa ser descoberto no futuro (a menos que seja de caraacuteter sobrenatural) pode
igualaacute-la em importacircnciardquo (W 5 p 402)131
Natildeo obstante esta avaliaccedilatildeo Peirce parece em
algumas passagens um pouco hesitante quanto ao verdadeiro alcance e natureza do princiacutepio
A descoberta da conservaccedilatildeo de energia pode muito bem ser considerada como a
maior conquista da filosofia natural Contudo por fim nada sabemos ao seu
respeito com exceccedilatildeo daquilo que a experiecircncia nos ensina e suas verificaccedilotildees
experimentais com exceccedilatildeo de alguns casos simples natildeo obtecircm qualquer grau
130 I personally believe that the two directions of Time are as alike as the two directions along a line For the law of
the conservation of energy is that the vis viva and consequently also the forces of the particles depends upon
nothing mutable except the relative positions of the particles Now the differential of the time enters into the
analytical expression of the vis viva 12 m(dsdt)2 as well as into that of force m d2s (dt)
2 only as squared
Whence the square of a negative quantity being equal to that of the corresponding positive quantity the two
directions of time are indifferent as far as the action of the law of the conservation of energy goes 131 The discovery of this law [of the conservation of energy] is the greatest that science has ever made and nothing
that can be hereafter (unless it be of a supernatural kind) can equal it in importance
100
extraordinaacuterio de precisatildeo quando consideramos o trabalho muscular e a
atividade cerebral haacute pouco mais que analogia a nos guiar a pensaacute-la como uma
aproximaccedilatildeo da verdade Toda determinaccedilatildeo fiacutesica de uma quantidade contiacutenua
tem seu ldquoerro provaacutevelrdquo e o erro provaacutevel da equaccedilatildeo que expressa a
conservaccedilatildeo de energia eacute grande em comparaccedilatildeo com aqueles que expressam
por exemplo as trecircs leis do movimento Todavia frequentemente vemos os
ldquocientistasrdquo tratando a lei da conservaccedilatildeo de energia em suas aplicaccedilotildees
extremas as mais distantes de qualquer coisa que possamos medir como algo de
que seria absurdo duvidar (CN 1 p 176 1893)132
O problema que Peirce tem como pano de fundo de suas especulaccedilotildees e para cuja soluccedilatildeo
emprega seus maiores esforccedilos eacute como jaacute ficou claro o de propor uma abordagem cientiacutefica aos
fenocircmenos irreversiacuteveis Quando se refere a tais fenocircmenos Peirce pensa sobretudo naqueles
que satildeo fruto da evoluccedilatildeo mas tambeacutem em outros fenocircmenos fiacutesicos cujas caracteriacutesticas de
irreversibilidade jaacute lhe eram claras O filoacutesofo afirma que
(hellip) quase todos os fenocircmenos dos corpos aqui na terra que atraem a nossa
atenccedilatildeo satildeo natildeo conservativos isto eacute satildeo inexplicaacuteveis por meio da Lei de
Conservaccedilatildeo de Energia Pois satildeo accedilotildees que natildeo podem ser revertidas Na
linguagem dos fiacutesicos satildeo irreversiacuteveis Deste tipo satildeo por exemplo o
nascimento o crescimento a vida () todos os movimentos que sofrem a
resistecircncia da fricccedilatildeo ou da viscosidade dos fluidos () o trovatildeo a produccedilatildeo das
cores pelo prisma o fluxo dos rios a formaccedilatildeo de barreiras em suas
desembocaduras a vegetaccedilatildeo de seus canais enfim substancialmente tudo que a
experiecircncia ordinaacuteria revela (CP 6 sect 72 1898)133
132 The discovery of the conservation of energy may well be considered as the greatest achievement of natural
philosophy Yet after all we know nothing about it except what experience teaches us and the experiential
verifications of it except in a few simple cases do not attain any extraordinary degree of precision while in regard
to muscular work and brain activity there is little but analogy to lead us to think it so much as a close approximation
to the truth Every physical determination of a continuous quantity has its probable error and the probable error of
the equation which expresses the conservation of energy is large in comparison with those which express for
example the three laws of motion Nevertheless we often find the scientists treating the law of the conservation of
energy in its extremest applications the most remote from anything we can measure as something it would be
absurd to doubt
133 () almost all the phenomena of bodies here on earth which attract our familiar notice are non-conservative that
is are inexplicable by means of the Law of the Conservation of Energy For they are actions which cannot be
reversed In the language of physics they are irreversible Such for instance is birth growth life () all motion
resisted by friction or by the viscosity of fluids () the conduction of heat combustion capillarity diffusion of fluids
() the thunder bolt the production of high colors by a prism the flow of rivers the formations of bars at their
mouths the wearing of their channels in short substantially everything that ordinary experience reveals
101
Temos desta maneira como jaacute ficou indicado uma tensatildeo entre a quase ubiquidade do
caraacuteter de irreversibilidade nos fenocircmenos naturais e a descriccedilatildeo cientiacutefica que toma o universo
como um sistema reversiacutevel in toto A soluccedilatildeo encontrada por Peirce natildeo eacute uma formulaccedilatildeo
isolada e totalmente diferente do que a ciecircncia de seu tempo vinha produzindo Veremos agora
como as discussotildees que conduziram agrave formulaccedilatildeo da termodinacircmica inspirou as ideias de Peirce
A descriccedilatildeo de fenocircmenos como irreversiacuteveis natildeo era exclusividade de Peirce Sadi Carnot
(1796ndash1832) Rudolf Clausius (1822ndash1888) e Lord Kelvin (1824ndash1907) jaacute se ocupavam com a
tarefa de compreender alguns fenocircmenos caracteriacutesticos da irreversibilidade em particular o
calor que daria origem posteriormente agrave teoria termodinacircmica Nas afirmaccedilotildees de Clausius de
que (1) a energia do universo eacute constante e (2) a entropia do universo tende ao maacuteximo
encontramos uma clara afirmaccedilatildeo de que eacute o aumento de entropia o marcador que determina a
direccedilatildeo da flecha do tempo Como aponta Reynolds
Em uma tentativa de oferecer uma abordagem mecacircnica de tais processos
irreversiacuteveis tal como satildeo descritos pela segunda lei Clausius Maxwell
Boltzmann e outros desenvolveram a teoria cineacutetica dos gases na qual a teoria
da probabilidade e os princiacutepios da mecacircnica satildeo combinados para oferecer uma
abordagem estatiacutestica dos movimentos da miriacuteade de partiacuteculas do gaacutes O
tratamento estatiacutestico foi considerado necessaacuterio principalmente por causa do
vasto nuacutemero de moleacuteculas que se supocircs constituiacutea um gaacutes (Reynolds 2002 p
42)
Para os criadores da teoria cineacutetica dos gases o fato de que os gases tendam a preencher
todo o interior dos recipientes em que satildeo colocados e de que nunca se concentram em apenas
uma parte dos mesmos eacute explicado em funccedilatildeo da lei dos grandes nuacutemeros ou lei das
probabilidades Embora teoricamente possiacutevel a ocorrecircncia da concentraccedilatildeo espontacircnea das
partiacuteculas de um gaacutes nunca eacute verificada isso porque a probabilidade de sua difusatildeo eacute muito maior
do que a de sua concentraccedilatildeo dado o nuacutemero extremamente grande de partiacuteculas que o
102
compotildeem cujas interaccedilotildees satildeo tatildeo numerosas e tatildeo sutis que satildeo tomadas como sendo
determinadas pelo acaso
Quanto a esse tipo de explicaccedilatildeo Peirce declara ldquoPara aquelas explicaccedilotildees que os fiacutesicos
propotildeem para os fenocircmenos irreversiacuteveis por meio da doutrina da probabilidade (doctrine of
chances) aplicada a trilhotildees de moleacuteculas aceito-as integralmente como um dos resultados mais
sofisticados da ciecircnciardquo (CP 7 sect 470 1898)134
Contudo acrescenta mais abaixo no mesmo
paraacutegrafo
Sua explicaccedilatildeo dos fatos eacute em seu conjunto admiraacutevel e fortalecida por uma
variedade de novos fenocircmenos que natildeo eram conhecidos no momento em que a
teoria foi primeiramente proposta mas que se encaixam em seus lugares como as
peccedilas separadas de um mapa de crianccedila uma vez que ela tenha comeccedilado a unir
algumas delas corretamente Essa explicaccedilatildeo demonstra que a accedilatildeo da energia
estaacute disseminada por cada departamento do fenocircmeno fiacutesico Contudo em uma
coisa ela falha a saber em mostrar a ausecircncia de um tipo muito diferente de
accedilatildeo e natildeo falha apenas em mostrar sua ausecircncia mas por suprimir ateacute mesmo
os meios de provar a sua presenccedila (CP 7 sect 470 1898)135
Os fenocircmenos que satildeo ignorados e ateacute mesmo mascarados pelas teorias indicadas satildeo
denominados por Peirce de fenocircmenos natildeo conservativos e possuem duas caracteriacutesticas
principais
a) verifica-se em seu desenrolar uma determinada direccedilatildeo e uma tendecircncia assintoacutetica para
a realizaccedilatildeo de um estado de coisas final
134 As to those explanations which the physicists propose for irreversible phenomena by means of the doctrine of
chances as applied to trillions of molecules I accept them fully as one of the finest achievements of science
135 Its explanation of the facts is altogether admirable and is fortified by a variety of new phenomena which were
not known at the time the theory was first proposed but which fit into their places like the pieces of a boys dissected
map after he has once begun to put a few of them rightly together This explanation demonstrates that the agency of
energy is disseminated through every department of physical phenomena But in one thing it fails namely it fails to
show the absence of a very different kind of agency and it not only fails to show its absence but even supplies the
means of proving its presence
103
b) satildeo irreversiacuteveis (cf CP 7 sect 471 1898)
Temos aqui a afirmaccedilatildeo clara de que tais fenocircmenos se dirigem para um fim Peirce diz que
se teleoloacutegico eacute uma palavra muito forte para descrever esse processo talvez se possa inventar
uma outra palavra finista (finious) para expressar a sua tendecircncia em direccedilatildeo a um estado final
(cf CP 7 sect 471 1898)
Embora Peirce reconheccedila que a fricccedilatildeo seja o exemplo de um fenocircmeno natildeo conservativo
que simula a accedilatildeo conservativa (cf CP 7 sect 472 1898) a utilizaccedilatildeo de (a) e (b) acima como
criteacuterios indica a expectativa de Peirce de que os fenocircmenos que nos interessam neste capiacutetulo
isto eacute os fenocircmenos de crescimento ou evoluccedilatildeo podem ser explicados por meio da assimilaccedilatildeo
dos princiacutepios envolvidos na teoria cineacutetica dos gases Tais fenocircmenos satildeo irreversiacuteveis em
funccedilatildeo da operaccedilatildeo no mundo de um princiacutepio real de acaso Eacute a indeterminaccedilatildeo resultante da
interaccedilatildeo de um vasto nuacutemero de partiacuteculas e de seus movimentos que explicaria a
irreversibilidade constatada em certos fenocircmenos Todavia o proacuteprio tempo natildeo parece receber
este mesmo tipo de tratamento como veremos no capiacutetulo dedicado agrave causalidade final
Tendo visto como a proposta do acaso absoluto como um princiacutepio operante na natureza eacute
uma consequecircncia da leitura que Peirce faz da ciecircncia do seu tempo em particular da teoria
termodinacircmica passaremos agora a investigar as descriccedilotildees e classificaccedilotildees que Peirce oferece
ao fenocircmeno evolutivo Vale lembrar que com o termo bdquoevoluccedilatildeo‟ Peirce se refere aos fenocircmenos
de crescimento que satildeo portanto em seus proacuteprios termos irreversiacuteveis e finistas Os textos que
compotildeem a base desta investigaccedilatildeo satildeo da maturidade de Peirce e frutos de sua preocupaccedilatildeo com
a elaboraccedilatildeo de uma metafiacutesica adequada agrave nossa esperanccedila de tornar possiacutevel o desenvolvimento
da ciecircncia
104
3 OS TREcircS TIPOS DE EVOLUCcedilAtildeO
As ideias evolucionistas de Peirce aparecem de maneira mais pronunciada nos textos que
tratam de suas concepccedilotildees cosmoloacutegicas136
isto eacute em sua obra mais tardia ainda que possamos
encontrar elementos que demonstrem sua preocupaccedilatildeo com o tema desde o iniacutecio de sua carreira
intelectual Haacute relatos do proacuteprio autor que testemunham a impressatildeo marcante que a leitura da
Origem das espeacutecies de Charles Darwin jaacute no ano seguinte a sua publicaccedilatildeo causou em todo o
ciacuterculo de estudiosos de Cambridge em Massachusetts do qual Peirce fazia parte
Ainda que fosse grande admirador e leitor de primeira hora da obra de Darwin Peirce tinha
um olhar mais abrangente sobre os tipos de evoluccedilatildeo encontrados em atuaccedilatildeo no mundo
orgacircnico A evoluccedilatildeo descrita por Darwin seria apenas um dos tipos e natildeo o mais presente em
atuaccedilatildeo nos processos naturais A concepccedilatildeo peirceana prevecirc a existecircncia de trecircs tipos diferentes
de evoluccedilatildeo orgacircnica que podem ser usados como criteacuterios para a classificaccedilatildeo das teorias
propostas sobre o tema Em primeiro lugar observa-se a evoluccedilatildeo de tipo darwiniana na qual a
reproduccedilatildeo eacute indicada como o momento da ocorrecircncia de variaccedilotildees fortuitas que explicam o
desenvolvimento das espeacutecies da monera ao homem Segundo Peirce a evoluccedilatildeo darwiniana
ocorre como consequecircncia da atuaccedilatildeo de dois fatores a hereditariedade que faz a descendecircncia
assemelhar-se aos pais ainda que preserve espaccedilo para a ocorrecircncia de pequenas variaccedilotildees e a
destruiccedilatildeo de tipos ou de raccedilas que natildeo conseguem manter a taxa de natalidade maior do que a
taxa de mortalidade
Em segundo lugar tem-se a teoria de tipo lamarckiano na qual as modificaccedilotildees ocorridas
nas espeacutecies satildeo frutos dos desafios apresentados aos indiviacuteduos e respondidos durante a sua
vida por meio de esforccedilos e exerciacutecios com a intenccedilatildeo de fixar novos haacutebitos Segundo a
interpretaccedilatildeo oferecida por Peirce a teoria darwiniana diferencia-se da teoria lamarckiana na
136 As preocupaccedilotildees de Peirce com as teorias da evoluccedilatildeo bioloacutegicas parecem culminar no texto ldquoEvolucionary
loverdquo de 1893 mas em textos anteriores como ldquoDesign and chancerdquo de 1883-84 ldquoA guess at the riddlerdquo de 1887-88
e ldquoThe arquitecture of the theoriesrdquo de 1891 tambeacutem encontramos importantes indicaccedilotildees sobre o tema
105
medida em que esta atua sobre o indiviacuteduo enquanto aquela atua sobre a espeacutecie podendo dar
lugar ao surgimento de caracteriacutesticas beneacuteficas agrave espeacutecie mas deleteacuterias ao indiviacuteduo Peirce
afirma
Concebendo-se de maneira mais ampla e filosoacutefica a evoluccedilatildeo darwiniana eacute
evoluccedilatildeo pela operaccedilatildeo do acaso e a destruiccedilatildeo dos resultados ruins enquanto a
evoluccedilatildeo lamarckiana eacute evoluccedilatildeo por meio do efeito do haacutebito e do esforccedilo (CP
6 sect 16 1891)137
E em terceiro lugar encontra-se a teoria catacliacutesmica proposta por Clarence King de
acordo com a qual as modificaccedilotildees satildeo o resultado de mudanccedilas bruscas no ambiente Em face
dessas alteraccedilotildees ambientais os organismos aumentam enormemente a quantidade de variaccedilotildees
que ocorrem em suas reproduccedilotildees Assim notam-se alteraccedilotildees que natildeo satildeo imperceptiacuteveis ndash
como a evoluccedilatildeo darwiniana e a lamarckiana supotildeem ndash nem frutos do acaso nem do esforccedilo
individual mas respostas a mudanccedilas ambientais
Esse modo de evoluccedilatildeo por forccedilas externas e por meio da quebra de haacutebitos
parece ser requisitado por alguns dos mais amplos e importantes fatos da
biologia e da paleontologia ao mesmo tempo em que tem sido o principal fator
na evoluccedilatildeo histoacuterica de instituiccedilotildees tanto quanto na de ideias e possivelmente
natildeo pode recusar um lugar proeminente no processo de evoluccedilatildeo do universo em
geral (CP 6 sect 17 1891)138
137 But more broadly and philosophically conceived Darwinian evolution is evolution by the operation of chance
and the destruction of bad results while Lamarckian evolution is evolution by the effect of habit and effort
138 This mode of evolution by external forces and the breaking up of habits seems to be called for by some of the
broadest and most important facts of biology and paleontology while it certainly has been the chief factor in the
historical evolution of institutions as in that of ideas and cannot possibly be refused a very prominent place in the
process of evolution of the universe in general
106
4 OS TREcircS MODELOS DE EXPLICACcedilAtildeO
Um aspecto central e condiccedilatildeo de possibilidade da evoluccedilatildeo eacute a existecircncia de variaccedilotildees no
interior dos fenocircmenos naturais Nota-se na formulaccedilatildeo peirceana o reconhecimento do aspecto
eminentemente mutaacutevel da natureza Natildeo mais circunscrito apenas aos fenocircmenos bioloacutegicos
Peirce procura montar um quadro teoacuterico no qual a evoluccedilatildeo eacute o aspecto marcante de todos os
acontecimentos dos mais variados campos
A descriccedilatildeo dos tipos de evoluccedilatildeo orgacircnica conduziu Peirce a elaborar modelos de
explicaccedilatildeo para o modo como a histoacuteria e particularmente a histoacuteria da ciecircncia se desenvolveu
Nesse campo natildeo seria um erro afirmar que os trecircs tipos de evoluccedilatildeo encontram-se presentes e
concorrem para os resultados alcanccedilados Um exemplo fornecido por Peirce da atuaccedilatildeo da forma
darwiniana na evoluccedilatildeo da ciecircncia pode ser encontrado no modo como as teorias satildeo propostas Eacute
bastante plausiacutevel afirma Peirce que na elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses para a soluccedilatildeo de um
determinado problema os cientistas faccedilam um grande nuacutemero de tentativas mentais de
elaboraccedilatildeo de teorias diversas umas das outras de modo quase imperceptiacutevel ateacute que uma delas
seja vista como francamente impossiacutevel Essa hipoacutetese eacute rejeitada e a energia investigativa volta-
se para as outras formulaccedilotildees ateacute que uma delas se mostre mais apta a fornecer as respostas
almejadas e se torne cada vez mais forte na mente do cientista
A evoluccedilatildeo lamarckiana diz Peirce ldquo() toma a forma de uma modificaccedilatildeo perpeacutetua de
nossa opiniatildeo de modo a tornaacute-la mais representativa dos fatos conhecidos na medida em que
mais e mais observaccedilotildees satildeo coletadasrdquo (CP 1 sect 108 1896)139
Embora esse tipo de evoluccedilatildeo
natildeo explique os grandes avanccedilos da ciecircncia jaacute que implica em uma evoluccedilatildeo bastante gradual eacute
o responsaacutevel pelos avanccedilos que se notam apoacutes deacutecadas de pequenas contribuiccedilotildees individuais O
exemplo indicado por Peirce eacute a evoluccedilatildeo da classificaccedilatildeo dos elementos quiacutemicos que ocorreu
no lapso de tempo entre Jons Jakob Berzelius (1779 ndash 1848) e Dmitri Mendeleev (1834 ndash 1907)
139 () take the form of perpetually modifying our opinion in the effort to make that opinion represent the known
facts as more and more observations came to be collected
107
Os principais progressos cientiacuteficos entretanto ocorrem por saltos afirma Peirce e ldquo() o
impulso para cada salto eacute um novo recurso observacional ou algum novo modo de raciocinar
sobre as observaccedilotildeesrdquo (CP 1 sect 109 1896)140
Como exemplo o autor indica a descoberta dos
micro-organismos por Pasteur que desbancou a perspectiva metafiacutesica de Claude Bernard (1813 -
1878) ao indicar os agentes causadores das doenccedilas unindo novas ideias a novos meacutetodos
observacionais
5 A EVOLUCcedilAtildeO E A COSMOLOGIA
Ao reunir as caracteriacutesticas mais marcantes de cada um dos tipos de evoluccedilatildeo descritos
acima e abstrair suas caracteriacutesticas mais especiacuteficas determinadas em funccedilatildeo do seu campo de
aplicaccedilatildeo Peirce propotildee uma formulaccedilatildeo geral para os modos de evoluccedilatildeo em curso no universo
Nessa perspectiva distingue trecircs tipos de evoluccedilatildeo a evoluccedilatildeo causada por variaccedilatildeo fortuita
denominada de evoluccedilatildeo ticaacutestica ou ticasmo a evoluccedilatildeo que segue uma necessidade jaacute dada
denominada de evoluccedilatildeo anancaacutestica ou anancasmo e a evoluccedilatildeo marcada pela atuaccedilatildeo da
causalidade final denominada de evoluccedilatildeo agapaacutestica ou agapasmo Pode-se ver que agrave evoluccedilatildeo
ticaacutestica de desenvolvimento das ideias corresponde o modelo darwiniano e a evoluccedilatildeo orgacircnica
proposta por Darwin agrave evoluccedilatildeo anancaacutestica corresponde o modelo de rupturas e a evoluccedilatildeo por
cataclismos proposta por Clarence King para o reino orgacircnico e agrave evoluccedilatildeo agapaacutestica
corresponde o modelo lamarckiano e a evoluccedilatildeo lamarckiana
Os trecircs modos de evoluccedilatildeo satildeo compostos pelos mesmos elementos gerais diz o filoacutesofo
Uma geraccedilatildeo passa espontaneamente uma quantidade de bdquotalentos‟ para a geraccedilatildeo seguinte e essa
possui a disposiccedilatildeo de tomaacute-los e desenvolvecirc-los e dessa maneira servir a um propoacutesito geral
Esses elementos mostram-se mais claramente no agapasmo mas tambeacutem estatildeo presentes de
140 () and the impulse for each leap is either some new observational resource or some novel way of reasoning
about the observations
108
maneira diversa no ticasmo e no anancasmo Essas duas formas podem ser vistas como formas
degeneradas de agapasmo afirma o autor (cf CP 6 sect 303 1893)
Embora o ticasmo possa ser considerado uma forma degenerada de agapasmo possui
contudo caracteriacutesticas que lhe satildeo proacuteprias As variaccedilotildees que datildeo lugar ao crescimento soacute o
fazem por meio da distribuiccedilatildeo aleatoacuteria de talentos implicando que os rejeitados cedam o seu
lugar para aqueles que possuam mais disposiccedilatildeo Como exemplo Peirce usa os jogos de azar no
qual os jogadores arruinados deixam na mesa o seu dinheiro para tornar aqueles natildeo arruinados
ainda mais ricos enquanto no agapasmo ldquo() o progresso ocorre a partir da continuidade da
mente em virtude da simpatia positiva existente entre a descendecircncia criadardquo (CP 6 sect 304
1893)141
O anancasmo por sua vez eacute um modo de evoluccedilatildeo claramente afiliado ao agapasmo na
medida em que demonstra uma tendecircncia para o desenvolvimento em direccedilatildeo a uma preordenada
perfeiccedilatildeo Como exemplo Peirce cita a filosofia hegeliana O que a diferencia do agapasmo eacute o
fato de que ldquo() a liberdade viva eacute praticamente omitida de seu meacutetodordquo (CP 6 sect 305 1893)142
Apenas com a introduccedilatildeo de elementos ticaacutesticos dotando o sistema de liberdade vital o
hegelianismo poderia aproximar-se do verdadeiro agapasticismo que afirma Peirce Hegel estava
mirando
O processo de crescimento ou evoluccedilatildeo diraacute o autor deve ser explicado como estando
submetido aos mesmos princiacutepios a que todos os demais fenocircmenos estatildeo Assim faz-se
necessaacuterio encontrar uma lei que tenha na sua aplicaccedilatildeo o motor de seu fortalecimento ou seja
uma lei que possa crescer devido agrave sua proacutepria natureza Esta eacute a lei da mente Como afirma
Peirce ldquo() a uacutenica tendecircncia que pode crescer por sua proacutepria virtude [eacute] a tendecircncia de todas
as coisas adquirirem haacutebitosrdquo (CP 6 sect 100 1902)143
O filoacutesofo afirma que ldquo() a evoluccedilatildeo fiacutesica trabalha com vistas a fins do mesmo modo
141 () advance takes place by virtue of a positive sympathy among the created springing from continuity of mind
142 () living freedom is practically omitted from its method
143 () the only tendency which can grow by its own virtue the tendency of all things to take habits
109
que a accedilatildeo mental trabalha com vistas a fins e desse modo em um aspecto da questatildeo seria
perfeitamente verdadeiro dizer que a causalidade final eacute a uacutenica primaacuteriardquo (CP 6 sect 101 1902)144
Para Peirce ldquoA causa final natildeo determina de que modo particular algo se realizaraacute mas
unicamente que o resultado teraacute certo caraacuteter geralrdquo (CP 1 sect 211 1902)145
Eacute a causa final
acrescenta que atribui existecircncia a um objeto de uma classe Natildeo devemos todavia entender
essa atribuiccedilatildeo como algum tipo de produccedilatildeo miraculosa Eacute o proacuteprio autor que esclarece o
sentido preciso dessa atribuiccedilatildeo ldquoO que eu entendo pela ideia que confere existecircncia aos
membros individuais de uma classe eacute que ela lhes confere o poder de produzir resultados neste
mundo que ela lhes confere equivale dizer existecircncia orgacircnica ou em uma palavra vidardquo (CP
1 sect 220 1902)146
6 O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA EVOLUCcedilAtildeO
Peirce conclui que a causa primaacuteria atuante no universo em crescimento deve ser a causa
final mas que contudo eacute inoacutecua sem a atuaccedilatildeo da causa eficiente Como indica Silveira (1985
p 8) ldquo() o que o cosmo evolucionaacuterio exige para se efetivar na organizaccedilatildeo crescente que o
define eacute a presenccedila de duas causas cujo modo de operar eacute reciprocamente inverso a causa final e
a causa eficienterdquo Assim sob a atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um
contiacutenuo crescimento da uniformidade a partir das formas diferenciadas Entretanto como aponta
Peirce as divergecircncias agraves leis estatildeo agindo continuamente a fim de aumentar a variedade do
mundo (cf CP 6 sect 101 1902)
144 () the physical evolution works towards ends in the same way that mental action works towards ends and thus
in one aspect of the matter it would be perfectly true to say that final causation is alone primary 145 Final causation does not determine in what particular way it is to be brought about but only that the result shall
have a certain general character
146 What I mean by the ideas conferring existence upon the individual members of the class is that it confers upon
them the power of working out results in this world that it confers upon them that is to say organic existence or in
one word life
110
A ideia ou causa final atrairia os acontecimentos que se processariam em funccedilatildeo de um ser
in futuro Dizer que o futuro natildeo influencia o presente eacute uma doutrina inaceitaacutevel afirma Peirce
expressando uma ideia caracteriacutestica do pragmatismo americano (cf CP 2 sect 86 1902) A defesa
desta doutrina negaria a possibilidade da existecircncia de causas finais e fins que satildeo
imprescindiacuteveis para a constituiccedilatildeo do cosmo
Na evoluccedilatildeo agapaacutestica mais representativa da atuaccedilatildeo da causalidade final a proacutepria ideia
possui uma forccedila de atraccedilatildeo que conduz o pensamento para si A ideia encontra os veiacuteculos
adequados para sua realizaccedilatildeo Como afirma Peirce
O desenvolvimento agapaacutestico do pensamento eacute a adoccedilatildeo de certas tendecircncias
mentais natildeo totalmente descuidadas como no ticasmo nem completamente
cegas pela mera forccedila das circunstacircncias ou da loacutegica como no anancasmo mas
por uma imediata atraccedilatildeo da proacutepria ideia cuja natureza eacute adivinhada depois que
a mente a possui pelo poder da simpatia isto eacute por virtude da continuidade da
mente () (CP 6 sect 307 1893)147
Quando Peirce se refere ao pensamento este deve ser entendido como ldquo() o princiacutepio
primordial para a compreensatildeo natildeo soacute dos fenocircmenos do espiacuterito mas da totalidade do cosmordquo
(SILVEIRA p 75 1989) Sobre a mateacuteria Peirce afirma que
() em obediecircncia ao princiacutepio ou maacutexima da continuidade segundo o qual
devemos assumir que as coisas satildeo contiacutenuas tanto quanto possamos urge que
devamos supor uma continuidade entre os caracteres da mente e da mateacuteria de
tal forma que a mateacuteria natildeo seria mais do que mente que tendo haacutebitos de tal
modo empedernidos eacute levada a agir com um grau particularmente elevado de
147 The agapastic development of thought is the adoption of certain mental tendencies not altogether heedlessly as
in tychasm nor quite blindly by the mere force of circumstances or of logic as in anancasm but by an immediate
attraction for the idea itself whose nature is divined before the mind possesses it by the power of sympathy that is
by virtue of the continuity of mind ()
111
regularidade mecacircnica ou rotina (CP 6 sect 277 1893)148
Em decorrecircncia da aceitaccedilatildeo da ideia de continuidade entre a mente e a mateacuteria Peirce se
autodenomina em algumas passagens de idealista objetivo Afirma sua diferenccedila com relaccedilatildeo ao
monismo materialista indicando que ldquo(hellip) o primeiro [monista materialista] faz da lei da mente
um resultado especial das leis da mateacuteria enquanto o uacuteltimo [idealista objetivo] faz com que as
leis da mateacuteria sejam um resultado especial da lei da menterdquo (CN 1 p 200 1893)149
O princiacutepio de aquisiccedilatildeo de haacutebitos eacute tomado por Peirce como o motor da constituiccedilatildeo das
leis do cosmo Em outro momento o filoacutesofo diraacute que ldquo(hellip) estaacute claro que nada a natildeo ser o
princiacutepio do haacutebito ele mesmo devido ao crescimento de uma tendecircncia infinitesimal do acaso
em direccedilatildeo agrave aquisiccedilatildeo de haacutebitos eacute a uacutenica ponte que pode ligar o abismo entre o acaso do caos
e o cosmo da ordemrdquo (CP 6 sect 262 1879)150
Segundo Santaella (2004 p 248-9) ldquo() para
Peirce a tendecircncia do universo a adquirir novos haacutebitos tendecircncia esta que tem seu expoente na
mente humana eacute aquilo que permite o contiacutenuo crescimento da potencialidade da ideiardquo
7 EVOLUCcedilAtildeO E AUTOCONTROLE
No longo processo de evoluccedilatildeo do cosmos uma caracteriacutestica ausente em sua origem
tornou-se mais e mais poderosa com a atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos o autocontrole Nos
148 () in obedience to the principle or maxim of continuity that we ought to assume things to be continuous as
far as we can it has been urged that we ought to suppose a continuity between the characters of mind and matter so
that matter would be nothing but mind that had such indurated habits as to cause it to act with a peculiarly high
degree of mechanical regularity or routine
149 () the former makes the laws of mind a special result of the laws of matter while the latter makes the laws of
matter a special result of the laws of mind
150 () it is clear that nothing but a principle of habit itself due to the growth by habit of an infinitesimal chance
tendency toward habit-taking is the only bridge that can span the chasm between the chance-medley of chaos and
the cosmos of order and law
112
estaacutegios mais avanccedilados do processo evolutivo o homem torna-se cocriador do universo por
meio da aquisiccedilatildeo de uma conduta cada vez mais autocontrolada Como afirma Peirce ldquoEm seus
estaacutegios mais elevados a evoluccedilatildeo se daacute mais e mais amplamente por meio do autocontrole e
isto daacute ao pragmaticista um tipo de justificaccedilatildeo para fazer o propoacutesito racional ser geral (CP 5 sect
433 1905)151
Natildeo haacute segundo o autor evoluccedilatildeo sem mudanccedila de haacutebitos e tampouco mudanccedila
de haacutebitos sem evoluccedilatildeo O processo de mudanccedila de haacutebito eacute desencadeado segundo Peirce por
trecircs fatores surpresa necessidade e disposiccedilatildeo (readiness) que estatildeo relacionados com os trecircs
modos de evoluccedilatildeo descritos acima A surpresa entretanto natildeo eacute por si soacute suficiente para que a
mudanccedila de haacutebito se efetue eacute preciso o esforccedilo quando haacute a necessidade ou o amor que eacute
auxiliado pela disposiccedilatildeo
A disposiccedilatildeo eacute a marca dos haacutebitos conquistados deliberadamente Peirce diz ldquo[Disposiccedilatildeo]
para agir de um certo modo sob dadas circunstacircncias e quando afetado por um dado motivo eacute um
haacutebito e um haacutebito deliberado ou autocontrolado eacute precisamente uma crenccedilardquo (CP 5 sect 480)152
A evoluccedilatildeo marcada pela necessidade se caracteriza pela negaccedilatildeo da opccedilatildeo de se continuar
com os antigos haacutebitos Eacute por meio de um esforccedilo para vencer a resistecircncia quase sempre
acompanhado por um sentimento de dor segundo Peirce que os novos haacutebitos mais adequados
satildeo estabelecidos Peirce indica que
O sentimento de dor eacute um sintoma de um sentimento que nos repele o
sentimento de prazer eacute o sintoma de um sentimento atrativo Atraccedilatildeo e repulsatildeo
satildeo tipos de accedilatildeo Sentimentos satildeo prazerosos ou dolorosos de acordo com o
tipo de accedilatildeo que eles estimulam Em geral o bom eacute atrativo ndash natildeo para todo
mundo mas para um agente suficiente maduro e o mal eacute aquilo que lhe eacute
repulsivo (CP 5 sect 552 1906)153
151 In its higher stages evolution takes place more and more largely through self-control and this gives the
pragmaticist a sort of justification for making the rational purport to be general
152 [Readiness] to act in a certain way under given circumstances and when actuated by a given motive is a habit
and a deliberate or self-controlled habit is precisely a belief 153 The feeling of pain is a symptom of a feeling which repels us the feeling of pleasure is the symptom of an
attractive feeling Attraction and repulsion are kinds of action Feelings are pleasurable or painful according to the
113
Peirce afirma que a mais elevada qualidade da mente humana consiste em uma grande
disposiccedilatildeo para desenvolver haacutebitos e uma grande disposiccedilatildeo para perdecirc-los sendo que ldquoA mais
plaacutestica de todas as coisas eacute a mente humana ()rdquo (CP 7 sect 515 1898)154
pois apresenta em
maior grau a prontidatildeo tanto para adquirir como para perder haacutebitos No caso humano a vontade
desempenha um importante papel no processo de criaccedilatildeo de novos haacutebitos com a finalidade de
tornar a conduta mais autocontrolada e portanto racional
Embora natildeo tenha desenvolvido uma teoria completa da esteacutetica eacute nessa ciecircncia normativa
que Peirce busca os elementos para identificar a finalidade para qual tende o universo e para a
qual a mente humana estaacute apta a contribuir por meio do desenvolvimento do autocontrole O
objeto de estudo da esteacutetica eacute o admiraacutevel A eacutetica enquanto ciecircncia normativa da conduta visa
desenvolver regras para a accedilatildeo que possam ter como objetivo alcanccedilar o summum bonun em
outras palavras aquilo que possa ser admiraacutevel por si mesmo sem a consideraccedilatildeo de qualquer
outra ordem de motivos O admiraacutevel diraacute Peirce eacute a proacutepria razoabilidade em suas palavras
ldquo() o uacutenico bem uacuteltimo ao qual os fatos praacuteticos dirigem a atenccedilatildeo e ao qual podem se
subordinar eacute o maior desenvolvimento da razoabilidade concreta ()rdquo (CP 5 sect 3 1902)155
Quanto agrave loacutegica como a terceira ciecircncia normativa Peirce afirma que ldquo() pensar eacute uma espeacutecie
de conduta que estaacute largamente sujeita ao autocontrole Em todas as suas caracteriacutesticas () o
autocontrole loacutegico eacute um perfeito espelho do autocontrole eacutetico (CP 5 sect 419 1905)156
Cabe agrave
loacutegica fixar haacutebitos autocontrolados de pensamento que possam mirar a verdade (cf CP 1 sect 191
1903)
Desse modo o homem tem seu lugar identificado no processo evolutivo que deu origem ao
kind of action which they stimulate In general the good is the attractive -- not to everybody but to the sufficiently
matured agent and the evil is the repulsive to the same
154 The most plastic of all things is the human mind ()
155 () the only ultimate good which the practical facts to which it directs attention can subserve is to further the
development of concrete reasonableness ()
156 () thinking is a species of conduct which is largely subject to self-control In all their features hellip logical self-
control is a perfect mirror of ethical self-control
114
cosmos e a si mesmo como uma parte integrante e natildeo distinta tem tambeacutem indicada de modo
claro qual a sua funccedilatildeo como cientista Peirce eacute bastante expliacutecito ao dizer que todo trabalho
intelectual soacute pode ser realizado de forma frutiacutefera quando motivado por um ardente desejo de
obter a verdade
A criaccedilatildeo do universo que natildeo aconteceu durante uma certa semana atarefada
no ano 4004 A C mas que estaacute acontecendo hoje e que nunca estaraacute terminada
eacute o verdadeiro desenvolvimento da Razatildeo Natildeo consigo ver como algueacutem pode
ter um ideal admiraacutevel mais satisfatoacuterio do que o desenvolvimento da Razatildeo
assim entendido A uacutenica coisa cuja admirabilidade natildeo eacute devida a uma razatildeo
ulterior eacute a proacutepria Razatildeo compreendida em toda sua completude tanto quanto
podemos compreendecirc-la Sob esta concepccedilatildeo o ideal da conduta seraacute executar
nossa pequena funccedilatildeo na operaccedilatildeo de criaccedilatildeo dando uma matildeo para tornar o
mundo mais razoaacutevel sempre que como diz a giacuteria cabe a noacutes fazecirc-lo Na
loacutegica observar-se-aacute que o conhecimento eacute razoabilidade e o ideal de razatildeo seraacute
seguir tais meacutetodos para se desenvolver o conhecimento o mais rapidamente ()
(CP 4 sect 615 1903)157
157 The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in the year 4004 BC but is
going on today and never will be done is this very development of Reason I do not see how one can have a more
satisfying ideal of the admirable than the development of Reason so understood The one thing whose admirableness
is not due to an ulterior reason is Reason itself comprehended in all its fullness so far as we can comprehend it
Under this conception the ideal of conduct will be to execute our little function in the operation of the creation by
giving a hand toward rendering the world more reasonable whenever as the slang is it is up to us to do so In
logic it will be observed that knowledge is reasonableness and the ideal of reasoning will be to follow such methods
as must develop knowledge the most speedily ()
115
CAPIacuteTULO 04
A ABDUCcedilAtildeO
Enter your skiff of Musement push off into the lake of thought and leave the breath of
heaven to swell your sail With your eyes open awake to what is about or within you
and open conversation with yourself for such is all meditation It is however not a
conversation in words alone but is illustrated like a lecture with diagrams and with
experiments (CP 6 sect 461 1908)
116
1 ABDUCcedilAtildeO E CRIACcedilAtildeO DE HIPOacuteTESES EXPLICATIVAS
Haacute uma grande discussatildeo entre os inteacuterpretes da obra de Peirce quanto agrave continuidade ou
natildeo continuidade de suas ideias no conjunto da sua longa e intensa produccedilatildeo (ver GOUDGE
(1950) GALLIE (1952) MOORE and ROBIN (1964) WIENER (1964) HOOKWAY 1985
entre outros) Sem querer entrar no meacuterito das respostas apresentadas ao problema de se apurar a
quantidade de sistemas identificaacuteveis em sua obra na literatura especializada parece-nos todavia
que algumas questotildees tratadas pelo filoacutesofo satildeo particularmente presentes no conjunto de suas
ideias e datildeo sentido a muitas de suas teorias que conheceram a luz em momentos distintos de sua
reflexatildeo
A investigaccedilatildeo cientiacutefica eacute uma dessas questotildees Podemos identificar desde os seus
primeiros textos uma preocupaccedilatildeo clara quanto ao alcance legitimidade e modo de efetivaccedilatildeo do
empreendimento cientiacutefico mais especificamente quanto ao que ele chama pelo nome de loacutegica
da ciecircncia Em seus uacuteltimos trabalhos Peirce procura organizar e sistematizar a sua filosofia com
relaccedilatildeo a outras aacutereas do conhecimento o que lhe permite tornar claras a estrutura e as inter-
relaccedilotildees entre as vaacuterias partes do seu sistema filosoacutefico Eacute dessa maneira que identifica a loacutegica
como uma das trecircs ciecircncias normativas ao lado da esteacutetica e da eacutetica que lhe satildeo antecedentes
dependentes tanto da fenomenologia quanto da matemaacutetica Peirce a define como um raciociacutenio
autocontrolado cuja funccedilatildeo eacute promover o crescimento concreto da razoabilidade A loacutegica se
divide por sua vez em trecircs ramos denominados por Peirce de Gramaacutetica Filosoacutefica Loacutegica
Criacutetica e Metodecircutica
A Gramaacutetica Filosoacutefica trata das unidades baacutesicas de todos os raciociacutenios os signos Eacute
neste ramo da loacutegica que veremos Peirce desenvolver os estudos de semioacutetica A loacutegica criacutetica
tem por finalidade tratar das formas dos argumentos ou raciociacutenios Nestes estudos Peirce trata
dos trecircs tipos de inferecircncias a abduccedilatildeo a deduccedilatildeo e a induccedilatildeo A Metodecircutica por sua vez
compreende as teorias sobre a verdade e a investigaccedilatildeo cientiacutefica bem desenvolvidas na sua
abordagem pragmaticista O objetivo deste terceiro ramo da loacutegica eacute moldar a conduta a partir do
uso dos signos de tal forma que um estado de crenccedila estaacutevel seja alcanccedilado
117
Se como aponta Hookway (1985) eacute possiacutevel dar sentido agrave obra peirceana a partir da
perspectiva que a toma como a exploraccedilatildeo e o desenvolvimento de uma imagem bastante geral da
filosofia e seus problemas que se formou desde os seus primeiros escritos vemos na procura de
um meacutetodo adequado para a ciecircncia um objetivo que conduz Peirce no processo de sua reflexatildeo
Aos textos iniciais que discutem o modo adequado de obtenccedilatildeo e limite do conhecimento
seguem-se outros que agraves vezes com deacutecadas de intervalo retomam e desenvolvem aspectos
problemaacuteticos que ficaram anteriormente sem respostas ou que passaram a ser problematizados
com o desenvolvimento de novos instrumentos de anaacutelise Assim os temas centrais dos seus
textos iniciais que datam da deacutecada de 1860 e 70158 satildeo retomados e desenvolvidos em boa parte
de sua produccedilatildeo posterior quer diretamente sob o aspecto de uma nova formulaccedilatildeo e resposta
aos mesmos problemas quer indiretamente com a elaboraccedilatildeo de novas teorias implicadas por
essas mesmas concepccedilotildees
Pensar para Peirce eacute uma atividade que consiste em manipular signos e crer eacute
essencialmente possuir certas disposiccedilotildees para agir Essas duas concepccedilotildees satildeo fundamentais
para se compreender a sua filosofia Ambas as concepccedilotildees estatildeo localizadas no niacutevel mais
elementar de suas preocupaccedilotildees e teorias que satildeo construiacutedas como uma resposta e terapia agrave
abordagem equivocada legada pelo cartesianismo Se considerarmos que a filosofia de Peirce eacute
em grande parte uma tentativa de produccedilatildeo de um meacutetodo adequado agrave investigaccedilatildeo da verdade e
se atentarmos para o fato de que eacute com o pragmatismo que Peirce acredita ter oferecido sua
melhor resposta entatildeo percebemos a importacircncia capital que sua noccedilatildeo de crenccedila159 assume pois
eacute o proacuteprio filoacutesofo que afirma ldquoA partir desta definiccedilatildeo o pragmatismo eacute dificilmente mais do
que um corolaacuteriordquo (CP 5 sect 12 1906)160
A investigaccedilatildeo desta maneira torna-se um processo que permite a superaccedilatildeo de um estado
158 Nesses textos jaacute se encontra ainda que em germe as ideias de verdade como concordacircncia de investigadores a
longo prazo que o incognosciacutevel natildeo faz sentido que a induccedilatildeo eacute uma inferecircncia e um caminho para a verdade que
todo pensamento se realiza por meio de signos e de que eacute possiacutevel construir uma teoria de categorias melhor do que
as existentes Esses temas estaratildeo presentes em grande medida em toda a produccedilatildeo posterior de Peirce 159
Emprestada do filoacutesofo e psicoacutelogo escocecircs Alexander Bain (1818 ndash 1903) (cf CP 5 sect 12 1906) 160
From this definition pragmatism is scarce more than a corollary
118
de duacutevida autecircntica161
que paralisa a accedilatildeo por meio do estabelecimento de crenccedilas estaacuteveis e
verdadeiras Podemos dizer que A duacutevida que p se e somente se A eacute levado a acreditar em p e
em alguma outra proposiccedilatildeo q e A estaacute consciente de uma inconsistecircncia entre p e q Desde que
ldquoA acredita que prdquo significa que A tem disposiccedilotildees para agir de determinadas maneiras segue-se
que duvidar que p envolve a consciecircncia da parte de A de que possui a disposiccedilatildeo a agir de modos
incompatiacuteveis em uma dada situaccedilatildeo O que implica em uma suspensatildeo da accedilatildeo isto eacute uma
privaccedilatildeo de um haacutebito (cf MEYERS 1967 p 3) Para cumprir tal tarefa faz-se necessaacuteria a
utilizaccedilatildeo de um meacutetodo que permita realmente fixar tais crenccedilas (cf W 3 p 344 CP 5 sect 374
1877 CP 6 sect 496 1906) A essecircncia das crenccedilas obtidas por este meacutetodo eacute o estabelecimento de
um haacutebito cujos diferentes tipos se distinguem pelos diferentes modos de accedilatildeo que eles
produzem Peirce afirma ldquo() uma crenccedila genuiacutena ou opiniatildeo eacute alguma coisa com a qual um
homem estaacute preparado para agir e eacute por consequecircncia em um sentido geral um haacutebitordquo (CP 2 sect
148 1902)162
Com exceccedilatildeo de algumas poucas passagens nas quais eacute caracterizado como uma accedilatildeo do
tipo quasi-reflexa (cf CP 5 sect 373 1877 CP 5 sect 394 1877 CP 1 sect390 1890 CP 2 sect 711
1883) o haacutebito eacute apresentado como uma disposiccedilatildeo para a accedilatildeo caracterizada como
autocontrolada ou deliberada Como representante da terceiridade ele eacute indeterminado geral e
inteligente (cf CP 5 sect 400 1877 CP 6 sectsect 20-1 1891) natildeo podendo ser reduzido a um
processo meramente mecacircnico Sua indeterminaccedilatildeo eacute marca dos processos que se abrem para o
futuro
161 Peirce reprova a duacutevida cartesiana por dois motivos principais por ser fingida e por ser radical A atribuiccedilatildeo
desses dois qualificativos agrave duacutevida ignora segundo o autor tanto a natureza do sujeito que conhece quanto a
natureza do proacuteprio processo cognitivo A duacutevida eacute um estado causado pela surpresa de um evento inesperado desta
maneira sua origem eacute sempre exterior ao sujeito que a experiencia natildeo podendo ser criada a partir de um ato de
vontade Por outro lado ela natildeo pode ser radical visto que eacute da natureza do conhecimento repousar sobre um
conhecimento anterior (cf CP 5 sect 311 1868) 162
() a belief or opinion and a genuine belief or opinion is something on which a man is prepared to act and is
therefore in a general sense a habit
119
Pois todo haacutebito tem ou eacute uma lei geral Tudo o que eacute verdadeiramente geral
refere ao futuro indefinido pois o passado conteacutem unicamente uma certa
coleccedilatildeo de casos que ocorreram O passado eacute fato atual Mas o geral (fato) natildeo
pode ser completamente realizado Eacute uma potencialidade e seu modo de ser
eacute esse in futuro O futuro eacute potencial natildeo atual (CP 2 sect 148 1902)163
Toda crenccedila firmemente adotada eacute para seu possuidor algo de indubitaacutevel ainda que muitas
vezes inconsciente que dispensa qualquer tipo de justificaccedilatildeo racional Contudo faz-se
necessaacuterio encontrar uma maneira de selecionar as crenccedilas verdadeiras dentre aquelas que natildeo
passam de prejulgamentos Se por um lado o caraacuteter impositivo das crenccedilas se manifesta de
maneira clara por outro na medida em que eacute objetiva pode comportar a criacutetica e a deliberaccedilatildeo
desse modo o autocontrole
Como afirma Peirce ldquo() devemos comeccedilar nossa investigaccedilatildeo por aquilo cuja existecircncia eacute
indubitaacutevel ()rdquo (CP 5 sect 267 1868)164
Com esta frase jaacute de 1868 o autor indica uma
caracteriacutestica que marcaraacute toda a sua obra a adoccedilatildeo do senso comum criacutetico O investigador
principia pelo que toma como indubitaacutevel suas proacuteprias crenccedilas mas aos poucos passa a
questionaacute-las quanto ao seu conteuacutedo e assumir um aspecto mais normativo ao se preocupar com
aquilo sobre o que devemos nos interrogar Nas palavras de Claudine Tiercelin (1993 p 88) ldquoSe
as crenccedilas satildeo portanto intrinsecamente confiaacuteveis como descriccedilatildeo de nossa experiecircncia elas
podem ser faliacuteveis como descriccedilatildeo da realidaderdquo
O problema de se determinar a origem das premissas de qualquer raciociacutenio conduziu as
investigaccedilotildees de Peirce sobre esse toacutepico Segundo o filoacutesofo os juiacutezos perceptivos satildeo () as
primeiras premissas de todos os nossos raciociacutenios e natildeo podem ser colocados em questatildeo (CP
5 sect 116)165
uma vez que estatildeo totalmente aleacutem da possibilidade de controle O percepto como
163 For every habit has or is a general law Whatever is truly general refers to the indefinite future for the past
contains only a certain collection of such cases that have occurred The past is actual fact But a general (fact) cannot
be fully realized It is a potentiality and its mode of being is esse in futuro The future is potential not actual 164
() we must commence our inquiry must be one whose existence is indubitable () 165
() the first premisses of all our reasonings and that they cannot be called in question
120
Peirce o designa eacute uma instacircncia do processo cognitivo que se caracteriza pela impossibilidade
de controle O autor pergunta entatildeo onde tem iniacutecio a possibilidade de controlar o processo de
cogniccedilatildeo e responde da seguinte maneira
Certamente natildeo antes de o percepto estar formado Mesmo depois que ele se
forma existe uma operaccedilatildeo que me parece ser bastante incontrolaacutevel Eacute aquela
de julgar o que eacute que a pessoa percebe Um juiacutezo eacute um ato de formaccedilatildeo de uma
proposiccedilatildeo mental combinada com sua adoccedilatildeo ou um ato de afirmaacute-la Um
percepto por outro lado eacute uma imagem ou um quadro moacutevel ou outra figuraccedilatildeo
(CP 5 sect 115 1903)166
Temos nesta passagem a tematizaccedilatildeo do momento em que se daacute a relaccedilatildeo entre o sujeito
que investiga e o objeto investigado Eacute nessa relaccedilatildeo que devemos encontrar os elementos para
justificar a crenccedila peirceana na possibilidade de uma ciecircncia Eacute importante notar que o juiacutezo
perceptivo base para qualquer raciociacutenio eacute por um lado o resultado de um processo que natildeo
pode ser controlado jaacute que o objeto eacute real e resiste agrave vontade humana e ou ao menos esta eacute uma
boa hipoacutetese para explicar o modo que tais objetos nos aparecem na experiecircncia por outro que eacute
fruto de uma interpretaccedilatildeo Isto eacute se por um lado o juiacutezo perceptivo eacute formado a partir da reaccedilatildeo
da secundidade do mundo sobre noacutes ele comporta tambeacutem aspectos de terceiridade na medida
em que eacute fruto de uma interpretaccedilatildeo Parece-nos plausiacutevel pensar o juiacutezo perceptivo como livre o
suficiente para ser o resultado de uma adivinhaccedilatildeo mas contido dentro dos limites impostos pela
realidade do objeto O erro deste modo adquire o caraacuteter de uma possibilidade sempre presente
nesse processo
Como aponta Tiercelin verifica-se uma tensatildeo entre a filosofia peirceana e a filosofia do
senso comum escocesa a qual Peirce afirma estar na base de seu pragmatismo (cf TIERCELIN
166 Certainly not before the percept is formed Even after the percept is formed there is an operation which seems to
me to be quite uncontrollable It is that of judging what it is that the person perceives A judgment is an act of
formation of a mental proposition combined with an adoption of it or act of assent to it A percept on the other hand
is an image or moving picture or other exhibition
121
1993 p 88) As crenccedilas primeiras embora sejam indubitaacuteveis natildeo satildeo infaliacuteveis Elas
comportam a possibilidade de criacutetica que deve ser exercitada pelo filoacutesofo pragmaacutetico Para
penetrar nos poacuterticos da filosofia Peirce indica o meacutetodo cientiacutefico como o uacutenico caminho
efetivo (ver REILLY 1970)
Em um texto de 1877 ldquoA fixaccedilatildeo da crenccedilardquo Peirce faz uma descriccedilatildeo dos principais
meacutetodos identificaacuteveis utilizados para a obtenccedilatildeo do conhecimento O primeiro meacutetodo por ele
descrito eacute denominado de meacutetodo da tenacidade caracterizado como o mais econocircmico crer
naquilo que jaacute se crecirc Sua ineficaacutecia mostra que o homem possui grande dificuldade em manter
crenccedilas que estatildeo em desacordo com a realidade Da mesma maneira que eacute incapaz de fingir uma
duacutevida por um longo periacuteodo manter crenccedilas equivocadas ainda que sua substituiccedilatildeo possa
muitas vezes apenas criar uma cadeia de falsas crenccedilas que cedo ou tarde conduziratildeo o homem
agrave busca da tranquilidade propiciada somente pela detenccedilatildeo da crenccedila verdadeira As crenccedilas
assim mantidas satildeo claramente irracionais mas a principal criacutetica endereccedilada pelo autor natildeo
incide particularmente sobre esse caraacuteter mas sim sobre o fato de que tais crenccedilas acabam por
criar tensatildeo social em funccedilatildeo do choque que crenccedilas diferentes acabam por provocar e falhar na
tarefa de fixaacute-las Esse meacutetodo pode apenas atuar sobre a mente individual e temporariamente (cf
CP 5 sect 377 1877)
O segundo meacutetodo eacute denominado de meacutetodo da autoridade e distingue-se do primeiro por
levar em consideraccedilatildeo o impulso social Nele uma instituiccedilatildeo o Estado ou a Igreja por exemplo
toma para si o direito de doutrinar e defender certas crenccedilas de todos os perigos evitando a todo
custo o surgimento da duacutevida Embora seja um meacutetodo eficaz - a histoacuteria tem nos dado esta liccedilatildeo
afirma Peirce - falharaacute visto que eacute impossiacutevel gerenciar perfeitamente a opiniatildeo puacuteblica Cedo ou
tarde surgiratildeo indiviacuteduos que reclamaratildeo novas maneiras de estabelecer crenccedilas e uma vez com a
posse de novos meacutetodos voltar-se-atildeo contra a instituiccedilatildeo e terminaratildeo por sobrepujaacute-la Natildeo
basta um meacutetodo que apenas indique a maneira de fixar as crenccedilas sem determinar os conteuacutedos
das mesmas (cf CP 5 sect 382 1877)
O terceiro meacutetodo eacute aquele que assume como verdadeiro o que eacute agradaacutevel agrave razatildeo diz
122
Peirce diminuindo a importacircncia dos fatos Eacute o meacutetodo a priori Embora seja mais respeitaacutevel
que os outros dois na opiniatildeo de Peirce falha gravemente ao transformar a investigaccedilatildeo em uma
questatildeo de gosto (cf CP 5 sect 382 1877)
Esses trecircs meacutetodos Peirce reconhece possuem qualidades positivas O meacutetodo da
tenacidade demonstra grande forccedila simplicidade e caraacuteter direto o meacutetodo da autoridade ao
governar as massas humanas garante-lhes a paz o meacutetodo a priori por sua vez eacute confortaacutevel
(cf CP 5 sect 386 1877) Entretanto sejam quais forem suas qualidades os trecircs meacutetodos
terminam por se autodestruir pois o que eles produzem afirma Peirce natildeo satildeo crenccedilas mas
estados mentais diversos A verdadeira crenccedila natildeo pode ser fingida imposta ou desconsiderar a
experiecircncia natildeo ao menos para o homem de espiacuterito sadio (cf W 3 p 253 1877)
Diante do fracasso dos trecircs meacutetodos em cumprir a tarefa de fixar as crenccedilas167
cabe a
Peirce mostrar como o quarto meacutetodo denominado de meacutetodo cientiacutefico consegue estabelecer
crenccedilas estaacuteveis Como afirma o autor () eacute necessaacuterio encontrar um meacutetodo pelo qual nossas
crenccedilas natildeo sejam determinadas por nada de humano mas por alguma permanecircncia exterior ndash por
alguma coisa sobre a qual nosso pensamento natildeo tenha nenhum efeito (CP 5 sect 384 1877)168
e
acrescenta como nota em 1903 ldquoMas que por outro lado tende incessantemente a influenciar o
pensamento ou em outras palavras por algo Realrdquo (CP 5 notas 1877)169
O meacutetodo cientiacutefico eacute o uacutenico meacutetodo que considera com a devida atenccedilatildeo a experiecircncia
estabelece um diaacutelogo com a natureza o mundo real exterior ao homem e que pode pelo
processo de investigaccedilatildeo empiacuterica responder agraves duacutevidas e corrigir as crenccedilas dos cientistas A
vantagem determinante deste meacutetodo eacute a de que ele conduz os investigadores pelo processo de
investigaccedilatildeo puacuteblica agraves mesmas conclusotildees sobre qualquer questatildeo investigada Ele se
fundamenta sobre a realidade do universo e sobre o seu aspecto puacuteblico Eacute a secundidade reativa
refrataacuteria ao que dela possamos pensar a acircncora desse meacutetodo Com relaccedilatildeo aos pressupostos
167 O principal defeito dos trecircs meacutetodos consiste em sustentar a crenccedila com base na vontade humana
168 () it is necessary that a method should be found by which our beliefs may be determined by nothing human but
by some external permanency -- by something upon which our thinking has no effect 169
But which on the other hand unceasingly tends to influence thought or in other words by something Real
123
desse meacutetodo Peirce afirma que
Existem coisas Reais cujas caracteriacutesticas satildeo inteiramente independentes das
nossas opiniotildees sobre elas tais Reais afetam nossos sentidos de acordo com leis
regulares e ainda que nossas sensaccedilotildees sejam tatildeo diferentes quanto sejam
nossas relaccedilotildees com os objetos todavia fazendo uso das leis de percepccedilatildeo
podemos afirmar por meio do raciociacutenio como as coisas real e verdadeiramente
satildeo e qualquer homem desde que tenha experiecircncia suficiente e tenha refletido
o suficiente sobre isto seraacute conduzido agrave uacutenica conclusatildeo Verdadeira (CP 5 sect
384 1877)170
A grande vantagem do meacutetodo cientiacutefico reside no fato de que diferentemente dos
demais meacutetodos possui a capacidade de autocorreccedilatildeo Eacute nesta caracteriacutestica que Peirce deposita
suas mais altas esperanccedilas quanto agrave possibilidade de realizaccedilatildeo da ciecircncia Estaacute claro tambeacutem
que o preccedilo a se pagar para a efetividade do meacutetodo eacute bastante elevado Peirce se compromete
com uma hipoacutetese de base qual seja a de que existe uma realidade externa ao homem e que lhe eacute
resistente mas que ao mesmo tempo se mostra inteiramente na experiecircncia O incognosciacutevel
natildeo eacute uma alternativa viaacutevel pois o verdadeiro cientista tem como seu mais ardente desejo o
conhecimento da verdade e deve deste modo afastar como destituiacutedo de sentido qualquer
elemento que possa bloquear o caminho da investigaccedilatildeo Eacute fundamental para o bom
funcionamento do meacutetodo que os fatos investigados admitam ldquo() racionalizaccedilatildeo e
racionalizaccedilatildeo por noacutesrdquo (CP 7 sect 219 c 1901)171
Peirce afirma ldquoQue eles [os fatos] devam ser
[racionalizados por noacutes] pela mesma razatildeo que um general que tenha que capturar uma posiccedilatildeo
ou ver seu paiacutes arruinado deve insistir na hipoacutetese de que haacute algum modo pelo qual ele possa e
deva capturaacute-lardquo (CP 7 sect 219 c 1901)172
Esta eacute a justificaccedilatildeo para o lanccedilamento de uma
170 There are Real things whose characters are entirely independent of our opinions about them those Reals affect
our senses according to regular laws and though our sensations are as different as are our relations to the objects
yet by taking advantage of the laws of perception we can ascertain by reasoning how things really and truly are and
any man if he have sufficient experience and he reason enough about it will be led to the one True conclusion 171
() rationalization and of rationalization by us 172
That we must hope they do for the same reason that a general who has to capture a position or see his country
124
hipoacutetese seja qual for Eacute uma situaccedilatildeo extrema que exige uma aposta na sua possiacutevel soluccedilatildeo A
aposta na possibilidade da ciecircncia eacute feita radicalmente por Peirce que passaraacute seus anos
produtivos em busca de uma justificaccedilatildeo para a mesma bem como na tarefa de esclarecer os
mecanismos pelos quais a ciecircncia se constroacutei A defesa da hipoacutetese realista soacute pode ser
compreendida nos temos peirceanos como uma possibilidade de manter o projeto da ciecircncia
realizaacutevel
Embora seja um opositor radical a algumas das ideias de Descartes notadamente agrave ideia de
intuiccedilatildeo natildeo estaria longe da verdade dizer que Peirce retoma a sua agenda filosoacutefica ou ao
menos o seu moacutebil constituinte qual seja o de propor uma soluccedilatildeo para o problema do
conhecimento e o de expandir o horizonte da inteligibilidade tanto quanto possiacutevel173 Do mesmo
modo que Descartes seraacute no meacutetodo de obtenccedilatildeo e validaccedilatildeo do conhecimento que Peirce
buscaraacute sua resposta Agrave elaboraccedilatildeo deste meacutetodo que inicialmente eacute batizado de pragmatismo e
posteriormente de pragmaticismo Peirce dedicaraacute vaacuterios anos de sua vida Diferentemente de
outros metodoacutelogos Peirce entende que uma parte do seu meacutetodo deve ser dedicada agrave explicaccedilatildeo
de como as novas teorias ou fazendo uso de seu termo hipoacuteteses satildeo elaboradas O coraccedilatildeo desta
teoria eacute uma reflexatildeo sobre o processo de criaccedilatildeo cientiacutefica condensada no tipo de raciociacutenio que
Peirce denominou de abduccedilatildeo174
No plano da evoluccedilatildeo cosmoloacutegica o haacutebito ou a lei inclina a um desenvolvimento do
universo que tem como meta tornaacute-lo mais razoaacutevel Para bem compreendermos esse
desenvolvimento faz-se necessaacuteria uma incursatildeo na teoria das inferecircncias que Peirce
desenvolveu em particular no tipo de inferecircncia denominado de abduccedilatildeo ou retroduccedilatildeo ou
ainda hipoacutetese pois ldquo() um processo inferencial envolve a formaccedilatildeo de um haacutebitordquo (CP 2 sect
148 1902)175
Nos trabalhos produzidos entre 1865 e 1901 vemos Peirce aprofundar e desenvolver suas
ruined must go on the hypothesis that there is some way in which he can and shall capture it 173
Quanto a este aspecto na obra cartesiana ver PATY 1998 174
Ver IBRI 1994 ADERSON 1986 E 1995 175
() the inferential process involves the formation of a habit
125
anaacutelises e concepccedilotildees do processo de produccedilatildeo de inferecircncias culminando com a distinccedilatildeo de
trecircs tipos de raciociacutenios que se integram e concorrem para a realizaccedilatildeo do conhecer a induccedilatildeo a
deduccedilatildeo e a abduccedilatildeo
A anaacutelise do raciociacutenio abdutivo em sua obra eacute segundo nossa apreciaccedilatildeo fundamental em
muitos sentidos De iniacutecio a importacircncia de sua investigaccedilatildeo se justifica pelos possiacuteveis
esclarecimentos que possa trazer agrave proacutepria tarefa de compreensatildeo das ideias peirceanas no
interior das quais ocupa um lugar central Ao mesmo tempo se concordamos com Peirce essa
teoria parece iluminar aspectos pouco considerados do processo de criaccedilatildeo cientiacutefica quer seja
como insight ou como inferecircncia pois estaria na base e seria o elemento desencadeador da
formaccedilatildeo de qualquer juiacutezo sinteacutetico Acrescenta-se a isso a hipoacutetese central a esta investigaccedilatildeo
de que o modo como a abduccedilatildeo atua e a consideraccedilatildeo de suas implicaccedilotildees seraacute de grande auxiacutelio
para compreender com maior clareza as propriedades do continuum e de que maneira podemos
perceber a atuaccedilatildeo da causalidade final no momento da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese
Em contraste com a avaliaccedilatildeo positiva expressa nas expectativas acima elencadas alguns
comentadores de sua obra acusam-no de haver no tratamento dessa questatildeo confundido loacutegica
com psicologia afirmando que a abduccedilatildeo eacute por natureza um processo refrataacuterio agrave anaacutelise loacutegica
que seria fundamentalmente intuicionista como aponta Roth (1988) Uma avaliaccedilatildeo da validade
dessa criacutetica deve atentar para o desenvolvimento da abordagem que Peirce realiza da abduccedilatildeo
Para Peirce o indiviacuteduo natildeo constitui a unidade para a produccedilatildeo do conhecimento esta eacute
encontrada na comunidade Os juiacutezos perceptivos devem ser submetidos agrave criacutetica da comunidade
de investigadores para que as idiossincrasias sejam eliminadas e em um longo prazo possam
aproximar-se da verdade
A compreensatildeo dessa relaccedilatildeo coloca em pauta a investigaccedilatildeo do entrecruzamento da
epistemologia falibilista de Peirce e de sua ontologia indeterminista que constituem as condiccedilotildees
para o processo semioacutetico isto equivale dizer para o pensamento A relaccedilatildeo entre a abduccedilatildeo e os
juiacutezos perceptivos eacute enunciada da seguinte maneira
126
() a inferecircncia abdutiva transforma-se gradativamente no juiacutezo perceptivo sem
qualquer linha niacutetida de demarcaccedilatildeo entre eles ou em outras palavras nossas
primeiras premissas os juiacutezos perceptivos devem ser consideradas como um
caso extremo das inferecircncias abdutivas das quais diferem por estarem
absolutamente aleacutem da criacutetica (CP 5 sect 181 1903)176
Conforme ressalta Santaella (2004) a interpretaccedilatildeo da abduccedilatildeo tem sido um toacutepico
polecircmico entre os comentadores da obra de Peirce O que distingue esse processo inferencial eacute o
fato de ser ao mesmo tempo um processo instintivo e ter a natureza de uma inferecircncia loacutegica Eacute
por meio da abduccedilatildeo Peirce deixa claro que as novidades satildeo introduzidas no processo evolutivo
tanto da natureza em geral quanto e no conhecimento humano A dificuldade do tratamento e
compreensatildeo desse conceito fundamental eacute bem sintetizada por Santaella ao se perguntar ldquo() se
as hipoacuteteses satildeo frutos da maravilhosa faculdade imaginativa humana como podem elas se
acomodar dentro da forma de uma inferecircncia loacutegicardquo (SANTAELLA 2004 p 109)
A intuiccedilatildeo entendida como flash de criatividade eacute a base do processo de abduccedilatildeo que teraacute
como finalidade a produccedilatildeo de uma nova ideia ou forma que poderaacute dar lugar a uma inclinaccedilatildeo
geral ou haacutebito Em uma leitura raacutepida eacute tentador compreender esse flash como sendo de
natureza intuitiva semelhante agrave cartesiana Nada mais equivocado se levarmos em conta que a
principal criacutetica que Peirce endereccedila a Descartes refere-se justamente ao conceito de intuiccedilatildeo Se
natildeo haacute a possibilidade de uma cogniccedilatildeo sem a existecircncia de uma cogniccedilatildeo que a preceda como
entender o surgimento da novidade que a abduccedilatildeo potildee em cena
A soluccedilatildeo parece derivar do caraacuteter habitual do instinto Peirce afirma que todo instinto tem
o caraacuteter de um haacutebito e dessa forma distingue a accedilatildeo por ele produzida da reaccedilatildeo bruta e cega
Satildeo derivados da proacutepria evoluccedilatildeo a que estatildeo submetidos o cosmo e o homem como uma parte
176() abductive inference shades into perceptual judgment without any sharp line of demarcation between them or
in other words our first premisses the perceptual judgments are to be regarded as an extreme case of abductive
inferences from which they differ in being absolutely beyond criticism
127
integrante Santaella aponta que ldquo() do instinto peirceano germina a abduccedilatildeo fonte de todas as
iluminaccedilotildees e criaccedilotildees humanas mas tambeacutem o mais fraacutegil de todos os raciociacutenios o mais
faliacutevel sem nenhum poder de comprovaccedilatildeo necessitando da deduccedilatildeo e da induccedilatildeo para que
possa ter qualquer valor de verdaderdquo (SANTAELLA 2004 p 113-14)
A discussatildeo realizada sobre o raciociacutenio abdutivo jaacute foi identificada como uma das grandes
contribuiccedilotildees de Peirce para o debate filosoacutefico Jaakko Hintikka (cf 1999 p 91) afirma que se a
grandeza de um filoacutesofo eacute medida pelas contribuiccedilotildees inovadoras que fornece aos problemas
tradicionais da filosofia Peirce seria nesse sentido um dos maiores filoacutesofos na medida em que
cria um novo problema o da abduccedilatildeo Cabe ressaltar que em diversos momentos Peirce deixa
claro que o raciociacutenio abdutivo deteacutem exclusividade heuriacutestica em sua filosofia ldquoAbduccedilatildeo eacute o
processo de formaccedilatildeo de uma hipoacutetese explanatoacuteria Eacute a uacutenica operaccedilatildeo loacutegica que apresenta uma
ideia nova pois a induccedilatildeo nada faz aleacutem de determinar um valor e a deduccedilatildeo meramente
desenvolve as consequecircncias necessaacuterias de uma hipoacutetese purardquo (CP 5 sect 171 1903)177
Conforme ressalta Gallie (1952) a compreensatildeo do estatuto que Peirce daacute agrave abduccedilatildeo como
um processo inferencial eacute bastante facilitado se levamos em conta o significado que o filoacutesofo
atribui agrave noccedilatildeo de inferecircncia Peirce natildeo adota a concepccedilatildeo filosoacutefica tradicional de inferecircncia
como um processo mental Um argumento natildeo possui a funccedilatildeo de retratar para outro o que se
passou na mente do argumentador mas de provocar a concordacircncia do primeiro com o uacuteltimo
quanto ao conteuacutedo das premissas e conclusatildeo mobilizadas Ele emprega afirma Gallie ldquoUma
forma de falar cujo arranjo eacute tal que mostra que bdquose a proposiccedilatildeo-premissa for verdadeira entatildeo a
proposiccedilatildeo-conclusatildeo necessaacuteria ou naturalmente seraacute verdadeira‟rdquo (GALLIE 1952 p 96-7) O
argumento desta maneira tem a funccedilatildeo de mostrar ou lembrar o ouvinte deste fato a maneira
entretanto pela qual ele alcanccedila este resultado eacute algo totalmente irrelevante acrescenta Gallie
Peirce afirma em concordacircncia com esta interpretaccedilatildeo que ldquoDeve haver em funccedilatildeo de tudo que
noacutes sabemos ou nos importamos centenas de maneiras de pensar na passagem das premissas agraves
177 Abduction is the process of forming an explanatory hypothesis It is the only logical operation which introduces
any new idea for induction does nothing but determine a value and deduction merely evolves the necessary
consequences of a pure hypothesis
128
conclusotildeesrdquo (CP 2 sect 55 1902)178
e ainda ldquoInferecircncia () deve ser para natildeo dizer que
provavelmente eacute de uma construccedilatildeo inteiramente diferente do processo de pensamentordquo (CP 2 sect
54 1902)179
Gallie sintetiza de modo claro a relaccedilatildeo que se estabelece no pensamento peirceano entre
inferecircncia e investigaccedilatildeo ele diz
Em suma da mesma maneira que Peirce usa a palavra investigaccedilatildeo para
indicar natildeo algum processo mental descritiacutevel mas o fato que algumas de
nossas atividades podem ser guiadas por signos e siacutembolos que admitem
criticismo loacutegico da mesma maneira ele usa a palavra inferecircncia para indicar
natildeo alguma passagem da mente sentida (ou postulada) mas o fato que
usualmente quando fazemos uma asserccedilatildeo estamos na posiccedilatildeo de dar uma
razatildeo para ela (GALLIE 1952 p 96)
De acordo com esta concepccedilatildeo de inferecircncia natildeo eacute muito difiacutecil entender como e porque a
abduccedilatildeo ou o processo de elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses eacute considerado por Peirce como uma
inferecircncia loacutegica De fato como diz Gallie seria muito ldquoesquisitordquo ou ldquocompletamente inuacutetilrdquo
uma hipoacutetese para a qual natildeo pudeacutessemos fornecer qualquer tipo de razotildees que a justificassem
2 OS TREcircS TIPOS DE RACIOCIacuteNIO
Os trecircs tipos de inferecircncia considerados por Peirce satildeo a deduccedilatildeo a induccedilatildeo e da mesma
maneira a abduccedilatildeo Em um texto de 1903 satildeo caracterizados da seguinte maneira ressaltando-se
178 There may for aught we know or care be a hundred ways of thinking in passing from such a premiss to such a
conclusion 179
Still the inference or argument so far as logic can take any cognizance of it may be not to say probably is of an
entirely different construction from the thinking process
129
novamente que a uacutenica origem das ideias novas eacute o raciociacutenio abdutivo
A deduccedilatildeo eacute o uacutenico raciociacutenio necessaacuterio Ela eacute aquilo que constitui o
raciociacutenio da matemaacutetica Ela principia de uma hipoacutetese cuja verdade ou
falsidade nada tem a ver com o raciociacutenio oacutebvio eacute que suas conclusotildees satildeo
igualmente ideais () A induccedilatildeo eacute o teste experimental de uma teoria Sua
justificaccedilatildeo eacute que embora a conclusatildeo em qualquer estaacutegio da investigaccedilatildeo
possa ser mais ou menos errocircnea a aplicaccedilatildeo continuada do mesmo meacutetodo
deve corrigir o erro A uacutenica coisa que a induccedilatildeo perfaz eacute determinar o valor de
uma quantidade Ela parte de uma teoria e avalia seu grau de concordacircncia com
os fatos Ela nunca pode dar origem a qualquer ideia que seja Nem o pode fazer
a deduccedilatildeo Todas as ideias da ciecircncia surgem atraveacutes da abduccedilatildeo (CP 5 sect 145
1903)180
No texto Deduccedilatildeo induccedilatildeo e hipoacutetese de 1878 Peirce oferece por meio de exemplos uma
descriccedilatildeo clara do que ele entende por cada um dos tipos de raciociacutenio desse modo temos os
seguintes silogismos
Deduccedilatildeo
Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos
Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola
Resultado Estes feijotildees satildeo brancos
180 Deduction is the only necessary reasoning It is the reasoning of mathematics It starts from a hypothesis the truth
or falsity of which has nothing to do with the reasoning and of course its conclusions are equally ideal () Induction
is the experimental testing of a theory The justification of it is that although the conclusion at any stage of the
investigation may be more or less erroneous yet the further application of the same method must correct the error
The only thing that induction accomplishes is to determine the value of a quantity It sets out with a theory and it
measures the degree of concordance of that theory with fact It never can originate any idea whatever No more can
deduction All the ideas of science come to it by the way of Abduction
130
Induccedilatildeo
Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola
Resultado Estes feijotildees satildeo brancos
Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos
Hipoacutetese
Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos
Resultado Estes feijotildees satildeo brancos
Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola
Outra definiccedilatildeo mais ampla dada em 1903 quando Peirce jaacute havia superado a teoria
silogiacutestica e elaborado a loacutegica das relaccedilotildees pode ser encontrada no seguinte exemplo
ldquoObserva-se um fato surpreendente C
Mas se A fosse verdadeira C seria uma coisa corrente
Portanto haacute razotildees para suspeitar que A eacute verdadeirardquo (CP 5 sect 189 1903)181
Eacute preciso notar que no segundo esquema acima dois fatos chamam atenccedilatildeo e merecem
comentaacuterio Em primeiro lugar seguindo a interpretaccedilatildeo de Gallie vale ressaltar que a conclusatildeo
possui um caraacuteter meramente de tentativa O raciociacutenio meramente indica que vale a pena
181 The surprising fact C is observed But if A were true C would be a matter of course Hence there is reason to
suspect that A is true
131
consideraacute-la Em segundo lugar nota-se que o esquema abdutivo indica unicamente a direccedilatildeo em
que a pesquisa deve ser desenvolvida sem qualquer consideraccedilatildeo sobre a sustentaccedilatildeo ou
plausibilidade com relaccedilatildeo aos fatos que a hipoacutetese possa ter Essas consideraccedilotildees aparecem
posteriormente apoacutes a extraccedilatildeo dedutiva de consequecircncias experimentais e de sua confrontaccedilatildeo
com os fatos por meio da induccedilatildeo
Embora Peirce classifique a abduccedilatildeo como um tipo de raciociacutenio deixa claro que ela natildeo
estaacute submetida agraves mesmas regras da loacutegica criacutetica O seu enquadramento nessa classificaccedilatildeo
deve-se mais agrave ausecircncia de qualquer outra que lhe seja mais adequada182 suas caracteriacutesticas
indicam a liberdade proacutepria dos processos marcados pela categoria de primeiridade como diz
ldquoQualquer que seja o modo como o homem tenha adquirido sua faculdade de adivinhar os
caminhos da Natureza eacute certo que natildeo foi por meio de uma loacutegica criacutetica e autocontrolada (CP
5 sect 173 1903)183
O problema da abduccedilatildeo pode ser visto como o problema da elaboraccedilatildeo de juiacutezos
sinteacuteticos184
em 1868 o autor afirma
De acordo com Kant a questatildeo central da filosofia eacute Como satildeo possiacuteveis os
juiacutezos sinteacuteticos a priori Mas anteriormente a ela surge a questatildeo como os
juiacutezos sinteacuteticos em geral e mais amplamente como o raciociacutenio sinteacutetico eacute
absolutamente possiacutevel Quando a resposta ao problema geral for obtida a
particular seraacute comparativamente simples Este eacute o cadeado da porta da filosofia
(CP 5 sect 348 1868)185
182 Peirce esclarece quanto agrave classificaccedilatildeo da abduccedilatildeo como uma forma de raciociacutenio Any novice in logic may well
be surprised at my calling a guess an inference It is equally easy to define inference so as to exclude or include
abduction But all the object of the logic study have to be classified and it is found that there is no o-ther good class
in which to put abduction but that of inference (HP 2 p 899 1901) 183
However man may have acquired his faculty of divining the ways of Nature it has certainly not been by a self-
controlled and critical logic 184
Para uma discussatildeo da influencia de Kant em Peirce ver KRUSE 2010 e HAACK 2011 185
According to Kant the central question of philosophy is How are synthetical judgments a priori possible But
antecedently to this comes the question how synthetical judgments in general and still more generally how
synthetical reasoning is possible at all When the answer to the general problem has been obtained the particular one
will be comparatively simple This is the lock upon the door of philosophy
132
O cadeado da porta da filosofia consistiria dessa maneira em solucionar o problema
bastante antigo na histoacuteria da filosofia de conciliar o particular com o universal e garantir que a
partir do conteuacutedo da experiecircncia seja possiacutevel chegar ao estabelecimento de crenccedilas seguras que
no limite aproximar-se-iam mais e mais da verdade O encaminhamento da soluccedilatildeo desta
questatildeo realizado por Peirce tem na afirmaccedilatildeo do realismo sua pedra de toque Eacute a realidade
dos universais que torna qualquer pensamento mediado possiacutevel Ao lado de seu realismo
encontramos outra caracteriacutestica fundamental para a compreensatildeo do ecircxito na elaboraccedilatildeo de
hipoacuteteses a universalidade das categorias O problema de compatibilizar o universal da razatildeo do
sujeito com o particular do objeto se resolve ao considerar que tambeacutem no objeto captado por
meio da percepccedilatildeo encontra-se o universal fugindo definitivamente dessa maneira do
nominalismo A percepccedilatildeo eacute ela mesma um processo interpretativo resultado da criaccedilatildeo de
hipoacutetese e da resistecircncia do objeto A anaacutelise do tratamento realizado por Peirce desta questatildeo
conduziraacute ao cerne de sua teoria da criaccedilatildeo e da descoberta sejam elas cientiacuteficas ou natildeo
implicando a consideraccedilatildeo do entrelaccedilamento de dois aspectos de seu pensamento sua ontologia
e sua epistemologia
A teoria abdutiva desenvolvida por Peirce conheceu o mesmo percurso descrito acima
Desde os primeiros textos podemos verificar a presenccedila de uma preocupaccedilatildeo com os processos
de criaccedilatildeo e de tratamento de hipoacuteteses O desenvolvimento da abordagem que Peirce oferece do
tema reflete os avanccedilos de que ele obteve na loacutegica Como veremos adiante a ideia de abduccedilatildeo se
altera agrave medida em que o autor cria novos instrumentos de anaacutelise que ultrapassam a abordagem
loacutegica legada por Aristoacuteteles
Desde seus primeiros trabalhos em loacutegica Peirce se preocupou com o estudo dos
argumentos afirmando que sua classificaccedilatildeo eacute a principal tarefa dos loacutegicos pois todo teste
depende claramente da classificaccedilatildeo (cf EP 1 p 186 1878) Como aponta Chauvireacute (2003 p
31) ldquoNota-se que Peirce natildeo opotildee somente a deduccedilatildeo agrave induccedilatildeo mas introduz um terceiro tipo
de inferecircncia a abduccedilatildeo cuja definiccedilatildeo e cuja anaacutelise constituem um dos pontos mais originais
tanto da sua filosofia dos signos quanto da sua filosofia da ciecircnciardquo
133
Peirce indica ainda uma subdivisatildeo a que esta classificaccedilatildeo das inferecircncias estaacute sujeita
entre inferecircncias analiacuteticas na qual ele coloca a deduccedilatildeo e inferecircncias sinteacuteticas que
compreendem a induccedilatildeo e a hipoacutetese Deixando para outra ocasiatildeo o tratamento da inferecircncia
dedutiva186
dedicaraacute o texto em questatildeo agrave compreensatildeo e diferenciaccedilatildeo das inferecircncias indutivas
e hipoteacuteticas bem como agrave justificaccedilatildeo da necessidade de clareza quanto a esta distinccedilatildeo para a
elaboraccedilatildeo do meacutetodo cientiacutefico
Peirce argumenta que a diferenccedila entre a inferecircncia que formula uma hipoacutetese e aquela que
realiza uma induccedilatildeo eacute bastante clara na maioria dos casos analisados natildeo obstante seja ignorada
pelos estudiosos da loacutegica ou objeto de grande confusatildeo Embora nenhuma classificaccedilatildeo seja
perfeitamente satisfatoacuteria diz Peirce sendo sempre possiacutevel encontrar casos que se localizem na
fronteira entre as duas classes e que poderiam levar agrave primeira vista a uma certa duacutevida sobre
qual categoria a que dada inferecircncia pertence a anaacutelise da abduccedilatildeo e induccedilatildeo deixa claro as
suas diferenccedilas Quanto ao modo em que se realiza e quanto ao objetivo que almeja Peirce tece o
seguinte comentaacuterio
Pela induccedilatildeo concluiacutemos que fatos similares aos fatos observados satildeo
verdadeiros em casos natildeo examinados Pela hipoacutetese concluiacutemos a existecircncia de
um fato totalmente diferente de qualquer coisa observada a partir do qual de
acordo com as leis conhecidas alguma coisa observada necessariamente
resultaria O primeiro eacute um raciociacutenio dos particulares para a lei geral o uacuteltimo
do efeito para a causa O primeiro classifica o uacuteltimo explica (EP 1 p 194
1878)187
Com a finalidade de tornar a diferenccedila mais clara vejamos alguns exemplos de hipoacutetese
186 Realizado em 1880 em seu texto umlOn the Algebra of Logicuml e na definiccedilatildeo de umlsilogismouml para o seu Century
Dictionary 187
By induction we conclude that facts similar to observed facts are true in cases not examined By hypothesis we
conclude the existence of a fact quite different from anything observed from which according to known laws
something observed would necessarily result The former is reasoning from particulars to the general law the latter
from effect to cause The former classifies the latter explains
134
fornecidos por Peirce e a diferenccedila com relaccedilatildeo agrave induccedilatildeo em um deles O primeiro exemplo faz
referecircncia a uma viagem que Peirce realizou no ano de 1870 para a Turquia ele nos diz que
enquanto caminhava em direccedilatildeo a uma casa que iria visitar encontrou um homem montado em
um cavalo com quatro outros homens agrave cavalo ao seu redor e que seguravam uma tenda sobre sua
cabeccedila Como o governador da proviacutencia seria a uacutenica pessoa que poderia ter um tratamento tatildeo
honroso Peirce concluiu que se tratava do proacuteprio Esta eacute uma hipoacutetese acrescenta Do fato de se
encontrar foacutesseis de peixes e conchas no interior do paiacutes elabora-se a hipoacutetese de que o mar em
algum momento do passado tenha banhado aquelas terras Do fato de que inuacutemeros documentos
e monumentos faccedilam referecircncia a um conquistador chamado Napoleatildeo Bonaparte se conclui que
ele de fato existiu sendo esta conclusatildeo uma outra hipoacutetese Com respeito a esses exemplos
Peirce acrescenta que a hipoacutetese eacute um tipo fraco de argumento que mais inclina do que determina
o nosso julgamento em direccedilatildeo agrave afirmaccedilatildeo da verdade expressa nas respectivas hipoacuteteses
Para tornar clara a diferenccedila entre o raciociacutenio hipoteacutetico e raciociacutenio indutivo vejamos um
outro exemplo tambeacutem fornecido por Peirce Neste nos deparamos com um escrito anocircnimo
sobre uma folha de papel que foi arrancada de um bloco Haacute a suspeita de que o autor do escrito
seja uma determinada pessoa Sua mesa agrave qual somente ele tinha acesso eacute investigada e eacute
encontrado um bloco de papel com uma folha arrancada cujas bordas satildeo idecircnticas agraves da folha do
escrito anocircnimo A conclusatildeo de que o suspeito eacute realmente o autor do escrito eacute claramente uma
hipoacutetese Peirce acrescenta que a base para essa inferecircncia eacute de que seria muito improvaacutevel que
duas folhas de papel arrancadas ao acaso tivessem suas bordas exatamente iguais apenas por
acidente A razatildeo de uma conclusatildeo do tipo presente no exemplo acima eacute enunciada nos seguintes
termos por Peirce ldquoum nuacutemero de caracteres que pertence a uma certa classe eacute encontrado em
um certo objeto desse modo eacute inferido que todos os caracteres daquela classe pertencem ao
objeto em questatildeordquo (EP 1 p 192 1878)188
O princiacutepio de elaboraccedilatildeo da hipoacutetese neste caso
envolve o mesmo princiacutepio da induccedilatildeo a diferenccedila eacute que natildeo satildeo analisados uma quantidade
grande de caracteres e a conclusatildeo eacute bastante distinta A inferecircncia indutiva no exemplo acima
188 A number of characters belonging to a certain class are found in a certain object whence it is inferred that all the
characters of that class belong to the object in question
135
apenas nos autorizaria a concluir que se as folhas de papel possuem alguns caracteres que
correspondem entatildeo ela deve compartilhar outros concluir no entanto sobre o autor do escrito
na folha de papel a partir de algumas de suas caracteriacutesticas eacute algo de natureza completamente
diferentemente Peirce resume a diferenccedila entre os dois tipos de inferecircncia da seguinte maneira
ldquoa essecircncia de uma induccedilatildeo eacute que ela infere de um conjunto de fatos um outro conjunto de fatos
similares enquanto a hipoacutetese infere a partir de fatos de um tipo fatos de um outrordquo (EP 1 p
198)189
Pode-se perceber que uma das razotildees pelas quais Peirce elabora a reflexatildeo apresentada
neste texto eacute a de compreender o processo de produccedilatildeo do conhecimento Neste momento Peirce
ainda atribuiacutea tanto agrave inferecircncia indutiva quanto agrave inferecircncia hipoteacutetica o papel de produtor de
novas ideias na medida em que ambas satildeo classificadas como inferecircncias sinteacuteticas Posiccedilatildeo que
no futuro modificaraacute atribuindo a exclusividade heuriacutestica ao processo inferencial que receberaacute o
nome de abduccedilatildeo Mas a quecirc serve esta distinccedilatildeo Esta eacute uma pergunta que podemos nos colocar
e para a qual Peirce apresenta uma resposta retomada e aprimorada em vaacuterios textos posteriores
Em um texto de 1901 lemos
Nada tem contribuiacutedo tanto para apresentar ideias da loacutegica da ciecircncia caoacuteticas
ou errocircneas como a falha em distinguir os caracteres essencialmente diferentes
de diferentes elementos do raciociacutenio cientiacutefico e uma das piores dessas
confusotildees bem como uma das mais comuns consiste em ver a abduccedilatildeo e a
induccedilatildeo tomadas juntas (frequentemente misturadas tambeacutem com a deduccedilatildeo)
como um uacutenico argumento (CP 7 sect 218 1901)190
189 But the essence of an induction is that it infers from one set of facts another set of similar facts whereas
hypothesis infers from facts of one kind to facts of another 190
Nothing has so much contributed to present chaotic or erroneous ideas of the logic of science as failure to
distinguish the essentially different characters of different elements of scientific reasoning and one of the worst of
these confusions as well as one of the commonest consists in regarding abduction and induction taken together
(often mixed also with deduction) as a simple argument
136
No texto de 1878 Peirce oferece algumas razotildees segundo as quais a distinccedilatildeo em questatildeo
seria de grande importacircncia O valor desta distinccedilatildeo segundo o autor deve ser testado por suas
aplicaccedilotildees Em primeiro lugar encontra-se o fato de que a induccedilatildeo eacute um tipo de inferecircncia bem
mais forte do que a hipoacutetese A impossibilidade de se inferir indutivamente conclusotildees hipoteacuteticas
eacute apontada como a segunda razatildeo Do ponto de vista psicoloacutegico ou fisioloacutegico tambeacutem se
verifica uma distinccedilatildeo quanto ao modo de apreensatildeo dos fatos que eacute apontado como a terceira
razatildeo para se insistir sobre a sua distinccedilatildeo A induccedilatildeo eacute o procedimento loacutegico da formaccedilatildeo de um
haacutebito jaacute que ela realiza a inferecircncia de uma regra e toda regra eacute de natureza habitual enquanto a
hipoacutetese realiza a unificaccedilatildeo de vaacuterios predicados em uma uacutenica concepccedilatildeo Peirce tenta
esclarecer a particularidade do processo de elaboraccedilatildeo de hipoacutetese fazendo uso de uma analogia
ldquoos vaacuterios sons produzidos pelos instrumentos de uma orquestra incidem sobre o ouvido e o
resultado eacute uma peculiar emoccedilatildeo musical bem distinta dos proacuteprios sonsrdquo (EP 1 199 1878)191
A partir dessa constataccedilatildeo Peirce afirma que a hipoacutetese representa o elemento sensiacutevel do
pensamento enquanto a induccedilatildeo responde por seu elemento habitual Um outro meacuterito dessa
distinccedilatildeo eacute o de permitir uma classificaccedilatildeo natural das ciecircncias e das mentes que as realizam
segundo os diferentes modos de raciociacutenio E por fim Peirce deixa as demais vantagens aos
leitores que dominarem a habilidade de distinguir entre os vaacuterios tipos de inferecircncias a tarefa de
descobrir
Para Peirce antes da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese que eacute por ele considerada como o
primeiro estaacutegio do meacutetodo cientiacutefico o cientista deve ter se nutrido da observaccedilatildeo do mundo A
experiecircncia eacute o iniacutecio necessaacuterio para todo conhecimento humano de modo que natildeo existe
conhecimento que natildeo esteja embasado na experiecircncia ele diz ldquoTodo conhecimento seja qual
for vem da observaccedilatildeordquo (CP 1 sect 238 1902)192
Ainda que a observaccedilatildeo natildeo possa ser
considerada como uma parte do meacutetodo cientiacutefico ela eacute um preacute-requisito fundamental para o seu
sucesso Com a finalidade de estabelecer uma conversaccedilatildeo com a natureza a observaccedilatildeo preacutevia
191 The various sounds made by the instruments of an orchestra strike upon the ear and the result is a peculiar
musical emotion quite distinct from the sounds themselves 192
All knowledge whatever comes from observation
137
do cientista deve ser ativa e natildeo passiva Ela natildeo eacute pura sensaccedilatildeo mas experimentaccedilatildeo
inteligente Para que a conversa seja produtiva o investigador deve apresentar as questotildees
apropriadas Sobre a observaccedilatildeo Peirce afirma que se trata ldquode uma experiecircncia voluntariamente
atenta habitualmente com algum frequentemente com a necessidade de um grande esforccedilordquo e
acrescenta que a ldquoexperiecircncia supotildee que seu objeto reaja sobre noacutes com alguma forccedila muita ou
pouca de tal maneira que ela tenha um certo grau de realidade ou independecircncia de nosso esforccedilo
cognitivordquo (CP 2 sect 605 1902)193
Tal esforccedilo soacute eacute verdadeiramente realizado uma vez que
alguma coisa de inesperado surja no desenrolar dos acontecimentos fenomecircnicos isto eacute quando o
curso dos eventos se mostra de alguma maneira surpreendente para o investigador
A experiecircncia eacute portanto uma operaccedilatildeo cognitiva Ela implica a consciecircncia de um objeto
externo que eacute resistente ao sujeito A observaccedilatildeo com a qual a pesquisa cientiacutefica tem seu iniacutecio eacute
sempre a quebra de uma expectativa e eacute esta caracteriacutestica inesperada que forccedila o cientista a ter
consciecircncia da externalidade do objeto e que o conduz agrave procura de uma explicaccedilatildeo
A pesquisa cientiacutefica propriamente dita inicia-se com a hipoacutetese uma conjectura que tenta
explicar o fenocircmeno surpreendente (cf CP 6 sect 469 1908) O meacutetodo cientiacutefico compreende
para Peirce trecircs estaacutegios distintos abduccedilatildeo ou hipoacutetese deduccedilatildeo e induccedilatildeo ou teste
Diferentemente de outros filoacutesofos da ciecircncia Peirce compreende que uma parte de seu meacutetodo
deve ser dedicada agrave explicaccedilatildeo de como as novas hipoacuteteses satildeo elaboradas O coraccedilatildeo desta teoria
eacute uma reflexatildeo sobre o processo de criaccedilatildeo cientiacutefica condensado no raciociacutenio abdutivo Uma
vez elaborada e selecionada a hipoacutetese dever testada Com esta finalidade Peirce indica a
necessidade de se deduzir as consequecircncias praacuteticas da hipoacutetese e por meio da induccedilatildeo proceder
agrave sua verificaccedilatildeo confrontando-a com a experiecircncia Nota-se que mesmo mantendo o nome
induccedilatildeo para este procedimento de teste ele natildeo reteacutem mais nada da sua significaccedilatildeo original
empregada na histoacuteria da filosofia Natildeo se trata do procedimento de obtenccedilatildeo de uma lei geral por
193 Attentive experience especially an act of voluntarily attentive experience usually with some often with great
effort () experience supposes that its object reacts upon us with some strength much or little so that it has a certain
grade of reality or independence of our cognitive exertion
138
meio dos casos particulares mas de verificar se as consequecircncias de uma conjectura geral satildeo
conformes agrave experiecircncia
As duas principais funccedilotildees da ciecircncia satildeo a elaboraccedilatildeo e o teste de conjecturas A ciecircncia
somente seraacute possiacutevel se ao se realizar essas duas funccedilotildees o resultado seja a verdade ou se por
meio delas nos aproximamos do conhecimento real Durante deacutecadas Peirce se dedicou
agrave compreensatildeo dos mecanismos da induccedilatildeo visando compreender como ela durante a
investigaccedilatildeo cientiacutefica teria o poder de conduzir agrave verdade por meio de um processo de
autocorreccedilatildeo Seus esforccedilos todavia indicaram que a menos que a conjectura jaacute tenha colocado o
investigador na boa direccedilatildeo a ciecircncia natildeo conseguiria atingir seu objetivo Desta maneira este
estranho tipo de inferecircncia chamado de abduccedilatildeo deveria ser a chave para o progresso que se
verifica na ciecircncia De fato a abduccedilatildeo eacute uma espeacutecie de adivinhaccedilatildeo da boa hipoacutetese
A abduccedilatildeo compreende dois momentos a elaboraccedilatildeo e a eleiccedilatildeo das hipoacuteteses a serem
testadas O primeiro momento eacute marcado pela criatividade e o segundo pelas exigecircncias da
economia da pesquisa cientiacutefica Na anaacutelise do primeiro momento o da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese
um aspecto bastante proacuteprio do pensamento peirceano eacute ressaltado o papel que a imaginaccedilatildeo
desempenha neste estaacutegio Peirce diz
Quando um homem deseja ardentemente conhecer a verdade seu primeiro
esforccedilo eacute de imaginar aquilo que tal verdade poderia ser () eacute verdade que apoacutes
tudo nada aleacutem da imaginaccedilatildeo pode lhe fornecer a pista da verdade Ele pode
fixar estupidamente o olhar sobre os fenocircmenos mas sem a imaginaccedilatildeo eles natildeo
se ligaratildeo de maneira racional (CP 1 sect 46 1896)194
194 When a man desires ardently to know the truth his first effort will be to imagine what that truth can be () it
remains true that there is after all nothing but imagination that can ever supply him an inkling of the truth He can
stare stupidly at phenomena but in the absence of imagination they will not connect themselves together in any
rational way
139
A imaginaccedilatildeo do cientista natildeo obstante eacute aquela que sonha com explicaccedilotildees e com leis (cf
CP 1 sect 49 1896) a conjectura deve portanto ser de tal maneira que elimine o aspecto
surpreendente e coloque o cientista em harmonia com o curso dos fenocircmenos Uma vez de posse
das conjecturas Peirce indica os criteacuterios que devem ser utilizados para selecionar aquelas que
devem ser submetidas a teste e em que ordem afim de que o trabalho de investigaccedilatildeo cientiacutefica
tenha o melhor desempenho possiacutevel As principais condiccedilotildees de admissibilidade de hipoacuteteses
que Peirce estabelece satildeo
1 A hipoacutetese deve ser experimentalmente testaacutevel
2 Ela deve explicar os fatos surpreendentes aos quais nos confrontamos
3 A seleccedilatildeo e classificaccedilatildeo das hipoacuteteses a serem testadas devem ser realizadas em funccedilatildeo
do princiacutepio de economia da pesquisa
A testabilidade de uma hipoacutetese consiste em que devemos poder tirar dela por deduccedilatildeo um
certo nuacutemero de consequecircncias ou prediccedilotildees suscetiacutevel de ser comparado com os resultados de
uma experiecircncia provocada por esta razatildeo ldquouma hipoacutetese da qual natildeo se pode fundar nenhuma
prediccedilatildeo natildeo deveria ser aceitardquo (CP 5 sect 599 1903)195
Explicar um fenocircmeno para Peirce eacute fazecirc-lo aparecer como dedutiacutevel de uma lei ou de uma
teoria isto eacute como previsiacutevel Peirce caracteriza a explicaccedilatildeo como uma forma de reduccedilatildeo do
diverso agrave unidade explicar eacute sintetizar uma multiplicidade de predicados ou ainda substituir
uma pluralidade de proposiccedilotildees por uma soacute proposiccedilatildeo de um grau de generalidade superior (cf
CHAUVIREacute 2003 p 84)
E por fim a terceira condiccedilatildeo indica que as hipoacuteteses de conteuacutedos mais abrangentes
devem ser preferidas bem como aquelas que natildeo exijam muito tempo recursos materiais ou
esforccedilo em seus testes
195 A hypothesis on which no verifiable predictions can be based should never be accepted
140
CAPIacuteTULO 05
A CAUSALIDADE FINAL
Thus whether you accept the opinion or not you must see that it is a perfectly
intelligible opinion that ideas are not all mere creations of this or that mind but on the
contrary have a power of finding or creating their vehicles and having found them of
conferring upon them the ability to transform the face of the earth (CP 1 sect 217 1902)
141
Este capiacutetulo eacute dedicado agrave apresentaccedilatildeo e discussatildeo das principais caracteriacutesticas atribuiacutedas
agrave ideia de causa final na obra de Peirce Iniciaremos por uma exposiccedilatildeo das questotildees envolvidas
e resgatando elementos presentes nos capiacutetulos anteriores desta tese faremos uma comparaccedilatildeo
da concepccedilatildeo peirceana com a aristoteacutelica para realccedilar aquilo que Peirce acrescenta de original
Como este eacute o uacuteltimo capiacutetulo deste trabalho sua funccedilatildeo eacute a de tambeacutem ressaltar o papel central
que a ideia de causa final desempenha em outros campos da produccedilatildeo peirceana afins ao recorte
proposto no todo desta tese
Para Peirce a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais fornecida apenas com base na atuaccedilatildeo da
causa eficiente eacute claramente insuficiente A causalidade final eacute necessaacuteria para a construccedilatildeo de
esquemas de explicaccedilatildeo que possam oferecer uma imagem adequada do real portanto eacute essencial
do ponto de vista epistemoloacutegico O mesmo pode ser afirmado no que diz respeito ao ponto de
vista ontoloacutegico pois Peirce a considera como causa real atuante nos processos de constituiccedilatildeo
do universo ou seja na evoluccedilatildeo ou crescimento do cosmo Como indica T L Short ldquo() A
teleologia de Peirce natildeo eacute somente metodoloacutegica ela inclui reivindicaccedilotildees ontoloacutegicasrdquo (1981b
p 377) O banimento desta modalidade causal da ciecircncia ao menos desde Bacon196
eacute visto pelo
filoacutesofo como uma fonte de equiacutevocos Em um texto de 1903 Peirce afirma
() o natildeo reconhecimento da causalidade final () tem sido e ainda eacute produtor
de mais erros filosoacuteficos e de absurdos do que qualquer outra fonte de erro e de
absurdos Se haacute uma deusa do absurdo isso deve ser sua assombraccedilatildeo (MS
478)197
Como aponta Andrew Woodfield em seu livro sobre a teleologia ldquoA ciecircncia moderna eacute no
seu todo hostil agraves explicaccedilotildees teleoloacutegicasrdquo (WOODFIELD 1976 p03) Hawkins (2007 p 522)
196 Como aponta Bacon a investigaccedilatildeo sobre causas finais eacute esteacuteril e como uma virgem consagrada a Deus nada
produz (cf BACON F De Augmentis Scientiarum III 5) 197
() the non-recognition of final causation () has been and still is productive of more philosophical error and
nonsense than any or every other source of error or nonsense If there is any goddess of nonsense this must be her
haunt (apud HULSWIT 1996 p 182)
142
afirma que embora filoacutesofos contemporacircneos como Russell e Quine tenham afirmado que ateacute
mesmo a causalidade eficiente eacute metafisicamente suspeita ela continua a gozar de popularidade
junto ao senso comum e de respeito entre os filoacutesofos Aquele que defende a existecircncia de causas
eficientes atuando na natureza pode estar errado mas ningueacutem o chamaria de louco como
acontece com aqueles que insistem na pertinecircncia da inclusatildeo da causalidade final nos esquemas
explicativos ou como elemento atuante no mundo Hawkins (2007 p 522) faz um bom resumo
da situaccedilatildeo atual
() muitos filoacutesofos contemporacircneos consideram a causalidade final na melhor
das hipoacuteteses como uma reliacutequia de um encantado mundo preacute-moderno Na pior
das hipoacuteteses a causalidade final eacute um pensamento metafiacutesico clandestino na
barcaccedila antifundacionalista conduzida por Quine e seus companheiros Mesmo
os filoacutesofos Continentais (por exemplo Heidegger Deleuze) tendem a
suspeitar da causalidade final Para eles a causa final eacute um conceito
incompatiacutevel com a nossa experiecircncia de liberdade e novidade () Por fim nem
mesmo o senso comum parece endossar a causalidade final De acordo com a
compreensatildeo preacute-filosoacuteficas as causas satildeo temporalmente preacutevias aos efeitos
Contudo os defensores da causalidade final parecem negar precisamente essa
prioridade O caraacuteter de uma coisa no presente eacute de alguma forma pensado
como determinado pelo que ela seraacute no futuro seu fim (telos) Para os natildeo
filoacutesofos a alegaccedilatildeo de que a causalidade pode atuar nesse sentido pode parecer
incompreensiacutevel
Satildeo comuns afirmaccedilotildees de que natildeo existem causas finais atuando no universo e de que os
fenocircmenos que satildeo descritos por meio de uma linguagem teleoloacutegica podem e seratildeo no futuro
descritos unicamente por meio da utilizaccedilatildeo de esquemas de explicaccedilatildeo que faccedilam uso exclusivo
da causalidade eficiente Se por um lado o projeto de reduccedilatildeo das explicaccedilotildees teleoloacutegicas a
explicaccedilotildees com base em causalidade eficiente ainda natildeo foi plenamente realizado por outro a
proacutepria noccedilatildeo de causalidade final natildeo estaacute inteiramente esclarecida Como aponta Hulswit ldquoAteacute
o presente momento nenhuma teoria clara dos processos teleoloacutegicos estaacute disponiacutevelrdquo
143
(HULSWIT 1996 P 183)198
Esperamos que a anaacutelise e exposiccedilatildeo das ideias peirceanas sobre o
tema possam constituir uma contribuiccedilatildeo efetiva para a elaboraccedilatildeo de uma teoria mais adequada
e clara sobre a maneira de atuaccedilatildeo da causalidade teleoloacutegica A principal justificativa para a sua
inclusatildeo eacute como ressalta o autor o papel essencial que desempenha na completude das
descriccedilotildees e nas explicaccedilotildees dos fenocircmenos
1 O MODO DE ATUACcedilAtildeO DA CAUSALIDADE FINAL
Ao explicar os modos de causalidade atuantes no universo199
Peirce daacute tanto agrave causalidade
final quanto agrave causalidade eficiente praticamente a mesma importacircncia natildeo escondendo todavia
certa primazia da primeira Quando Peirce fala em causalidade final estaacute pensando na maneira
como foi definida por Aristoacuteteles
O significado da expressatildeo bdquocausa final‟ deve ser determinado pelo seu uso na
declaraccedilatildeo de Aristoacuteteles de que todas as causas se dividem em dois grandes
ramos o das eficientes ou eneacutergicas e o das ideais ou finais Se preservarmos a
verdade da declaraccedilatildeo devemos compreender por causa final o modo de realizar
fatos de acordo com o qual uma descriccedilatildeo geral do resultado eacute obtida quase sem
consideraccedilatildeo por qualquer compulsatildeo para ela se realizar deste ou daquele modo
particular embora o significado possa estar adaptado a um fim O resultado
geral deve ser realizado de um modo em uma vez e de outra em outra A causa
final natildeo determina em qual modo particular se realizaraacute mas unicamente que o
resultado teraacute um certo caraacuteter geral (CP 1 sect 211 1902)200
198 Aleacutem do texto citado ver tambeacutem HULSWIT 1997 1998 2001 e 2003 PAPE 1993 e 1997
199 Para uma discussatildeo da causalidade final no interior da semioacutetica ver SHORT 1981a 1982 e 1996
200 ldquoThe signification of the phrase final cause must be determined by its use in the statement of Aristotle that all
causation divides into two grand branches the efficient or forceful and the ideal or final If we are to conserve the
truth of that statement we must understand by final causation that mode of bringing facts about according to which a
general description of result is made to come about quite irrespective of any compulsion for it to come about in this
or that particular way although the means may be adapted to the end The general result may be brought about at one
time in one way and at another time in another way Final causation does not determine in what particular way it is
to be brought about but only that the result shall have a certain general characterrdquo (CP 1 sect 211 1902) Uma
144
Jaacute o significado de causa eficiente Peirce indica em outra passagem nos seguintes termos
A causalidade eficiente por outro lado eacute uma compulsatildeo determinada pela
condiccedilatildeo particular de coisas e eacute uma compulsatildeo agindo para fazer certa
situaccedilatildeo comeccedilar a mudar de uma forma perfeitamente determinada e seja qual
for o caraacuteter geral do resultado de modo algum diz respeito agrave causaccedilatildeo eficiente
Por exemplo eu atiro na asa de uma aacuteguia e uma vez que o meu propoacutesito - um
tipo especial de causa final ou ideal - eacute acertar a ave eu natildeo atiro diretamente
nela mas um pouco agrave sua frente tendo em conta a mudanccedila de posiccedilatildeo no
momento em que a bala chegar agravequela distacircncia Ateacute esse momento trata-se de
um caso de causaccedilatildeo final Mas apoacutes a bala sair do rifle o caso eacute entregue agrave
estuacutepida causalidade eficiente e se a aacuteguia fizer uma volta em outra direccedilatildeo a
bala natildeo alteraraacute sua trajetoacuteria em nada a causalidade eficiente natildeo tem qualquer
relaccedilatildeo com os resultados mas simplesmente obedece cegamente a ordens Eacute
verdade que a forccedila da bala estaacute em conformidade com uma lei e a lei eacute algo
geral Mas por isso mesmo a lei natildeo eacute uma forccedila Pois forccedila eacute compulsatildeo e
compulsatildeo eacute hic et nunc (CP 1 sect 212 1902)201
Embora sejam diametralmente opostas causa final e causa eficiente se relacionam de
maneira complementar Peirce enfatiza este aspecto nos seguintes termos
comparaccedilatildeo do conceito de causa final presente na obra peirceana com aquele presente na obra aristoteacutelica seraacute
realizada na pesquisa com a intenccedilatildeo de oferecer uma melhor compreensatildeo da definiccedilatildeo peirceana A despeito da
afirmaccedilatildeo de identidade entre uma definiccedilatildeo e outra estabelecido acima haacute elementos presentes na metafiacutesica
peirceana que sugerem alteraccedilotildees no conceito e invalidam essa identidade A investigaccedilatildeo desse toacutepico colocaraacute em
relevo essas diferenccedilas 201
Efficient causation on the other hand is a compulsion determined by the particular condition of things and is a
compulsion acting to make that situation begin to change in a perfectly determinate way and what the general
character of the result may be in no way concerns the efficient causation For example I shoot at an eagle on the
wing and since my purpose -- a special sort of final or ideal cause -- is to hit the bird I do not shoot directly at it
but a little ahead of it making allowance for the change of place by the time the bullet gets to that distance So far it
is an affair of final causation But after the bullet leaves the rifle the affair is turned over to the stupid efficient
causation and should the eagle make a swoop in another direction the bullet does not swerve in the least efficient
causation having no regard whatsoever for results but simply obeying orders blindly It is true that the force of the
bullet conforms to a law and the law is something general But for that very reason the law is not a force For force
is compulsion and compulsion is hic et nunc
145
Causalidade eficiente eacute aquele tipo de causalidade atraveacutes do qual as partes
compotildeem o todo causalidade final eacute aquele tipo de causalidade pelo qual o todo
chama por suas partes Causa final sem causa eficiente eacute inoacutecua um mero
chamar por partes eacute o que qualquer soldado ou homem pode fazer mas elas natildeo
viratildeo sem a causa eficiente Causa eficiente sem causa final entretanto eacute pior do
que inoacutecuo eacute mero caos e o caos natildeo eacute nem mesmo caos sem causa final eacute um
nada vazio (CP 1 sect 211 1902)202
A tarefa que nos propomos aqui eacute a de entender como Peirce um cientista familiarizado
com as principais teorias cientiacuteficas do seu tempo e formado dentro dos rigores do meacutetodo
experimental pocircde atribuir tal relevacircncia agrave causalidade final Ao mesmo tempo investigaremos
de que modo se daacute a atuaccedilatildeo deste tipo de causalidade na natureza segundo a concepccedilatildeo
peirceana Ou seja nosso objetivo eacute o de compreender o papel epistemoloacutegico e ontoloacutegico
desempenhado pela causa final no sistema peirceano
Uma das questotildees que conduziu inicialmente esta investigaccedilatildeo jaacute pode ser colocada se a
causalidade final eacute atuante em todo o universo e natildeo apenas nos fenocircmenos bioloacutegicos como ela
pode se manifestar sem a postulaccedilatildeo de um plano de criaccedilatildeo ou seja sem um reino de fins
Poder-se-ia julgar por meio da descriccedilatildeo oferecida da lei da mente ou causa final que a
sua aplicaccedilatildeo restringe-se ao acircmbito dos fenocircmenos mentais particularmente aos dos humanos A
fim de evitar esse equiacutevoco fazem-se necessaacuterias algumas palavras a respeito da distinccedilatildeo
elaborada por Peirce entre causa final e propoacutesito A causa final possui uma abrangecircncia muito
maior do que o propoacutesito sendo este apenas o tipo de causa final a que estamos mais habituados
Em um texto de 1902 Peirce esclarece que ldquoUm propoacutesito eacute um desejo operativordquo (CP 1 sect 205
1902)203
Ainda que para os seres humanos o propoacutesito se apresente como uma conduccedilatildeo
autocontrolada que mira algum ser in futuro que aparece como desejaacutevel quando consideramos a
202 Efficient causation is that kind of causation whereby the parts compose the whole final causation is that kind of
causation whereby the whole calls out its parts Final causation without efficient causation is helpless mere calling
for parts is what a Hotspur or any man may do but they will not come without efficient causation Efficient
causation without final causation however is worse than helpless by far it is mere chaos and chaos is not even so
much as chaos without final causation it is blank nothing 203
A purpose is an operative desire
146
atuaccedilatildeo da causa final em seu sentido mais amplo constatamos que o significado do termo natildeo
reteacutem nada de sua interpretaccedilatildeo psicoloacutegica
Os exemplos da atuaccedilatildeo da causa final satildeo muitos afirma Peirce No que tange ao
pensamento particularmente em sua atividade teoacuterico-criativa a presenccedila do ser in futuro como
um bdquoatrator‟ eacute inequiacutevoca Procedemos agrave verificaccedilatildeo de nossas candidatas a leis gerais por meio
de experimentos afirma Peirce Variamos gradualmente as condiccedilotildees de nossos experimentos
para constatar o que acontece Se estivermos no caminho errado uma enfaacutetica negativa faraacute com
que reconsideremos nossas hipoacuteteses de tal modo que em um longo prazo (a long run) elas se
tornaratildeo cada vez mais adequadas e corretas Ou seja ldquoIsto equivale a dizer que conjeturamos as
leis pedaccedilo por pedaccedilordquo (CP 1 sect 86 1896)204
Temos nesse ponto o retorno de uma outra questatildeo jaacute debatida no primeiro capiacutetulo desta
tese a justificaccedilatildeo oferecida pelo autor da presenccedila de um caraacuteter tatildeo marcadamente
antropomoacuterfico em suas explicaccedilotildees Como vimos Peirce salienta em algumas passagens que
isso natildeo poderia ser evitado sendo uma das caracteriacutesticas da nossa compreensatildeo do mundo e
marca de uma inteligecircncia que aprende com a experiecircncia O filoacutesofo chega ateacute mesmo a afirmar
que tudo que eacute racional deve ser antropomoacuterfico Como diz
Toda explicaccedilatildeo cientiacutefica de um fenocircmeno natural eacute uma hipoacutetese de que haacute
alguma coisa na natureza agrave qual a razatildeo humana eacute anaacuteloga e que realmente eacute
assim todo o sucesso da ciecircncia em suas aplicaccedilotildees para a conveniecircncia humana
satildeo testemunhas (CP 1 sect 316 1903)205
Eacute natural portanto que as teorias explicativas dos processos que ocorrem na natureza
tenham a marca do humano A proacutepria noccedilatildeo de causalidade diz Peirce expressa essa
204 This is to say we guess out the laws bit by bit
205 Every scientific explanation of a natural phenomenon is a hypothesis that there is something in nature to which
the human reason is analogous and that it really is so all the success of science in its application to human
convenience are witness
147
caracteriacutestica do pensamento inteligiacutevel ele afirma que sua origem ldquo() estaacute em nossa tendecircncia
a procurar relaccedilotildees na natureza anaacutelogas agraves relaccedilotildees intelectuaisrdquo (MS 963 c1893)206
Como
afirma Hulswit
() todas as ideias teoacutericas de um modo ou de outro se originam e se referem agrave
experiecircncia humana Se assim natildeo o fizessem elas natildeo teriam sentido ora se
elas tecircm que ter algum sentido deve haver algum tipo de relaccedilatildeo entre elas e
nossa experiecircncia humana cotidiana Consequentemente longe de ser um
problema o antropomorfismo eacute uma necessidade pura (HULSWIT 1996 p
184)
A elaboraccedilatildeo de teorias que espelham aquilo que eacute familiar aos seres humanos natildeo pode ser
considerada dessa maneira como um defeito da proposta peirceana mas deve ser entendida
como um requisito necessaacuterio agravequilo que pode ser compreendido como objeto da inteligibilidade
humana Uma consequecircncia podemos dizer da hipoacutetese que fundamenta a atividade cientiacutefica
que eacute a de considerar que o mundo eacute em princiacutepio passiacutevel de ser conhecido racionalmente ndash
uma esperanccedila reguladora para o exerciacutecio de toda investigaccedilatildeo
O modelo que nos eacute mais familiar da atuaccedilatildeo da causalidade final eacute a accedilatildeo propositada que
naturalmente eacute realizada com o objetivo de se obter algum resultado No entanto nos adverte o
autor este eacute apenas um tipo de causa final e natildeo o mais expressivo mas mesmo ele jaacute coloca em
evidecircncia a primeira caracteriacutestica que Peirce atribui agrave causa final e que natildeo eacute reconhecida pelos
detratores dessa noccedilatildeo ela a causa final natildeo eacute nunca um fato concreto mas eacute sempre geral
Consideraacute-la como um evento concreto no futuro que exerce uma influecircncia sobre o desenrolar
dos processos de acontecimentos do presente dirigindo-os para um determinado fim eacute um erro
categorial
Podemos nos perguntar todavia quais as consequecircncias dessa caracterizaccedilatildeo da noccedilatildeo de
206 () has its origin in our tendency to seek relations in nature analogous to intellectual relations
148
causa final como um geral A resposta a esta pergunta envolve a dissoluccedilatildeo de certa confusatildeo
presente na ideia de causalidade final que a perspectiva cientiacutefica moderna adotou Esta noccedilatildeo
aparece aos cientistas e filoacutesofos da ciecircncia como sendo possuidora de trecircs caracteriacutesticas que a
torna incompatiacutevel com os criteacuterios de cientificidade vigentes e refrataacuteria aos seus procedimentos
de teste Segundo esta perspectiva a causa final possuiria trecircs caracteriacutesticas intrataacuteveis e
inaceitaacuteveis do ponto de vista cientiacutefico em primeiro lugar ela teria como condiccedilatildeo para sua
atuaccedilatildeo a existecircncia de eventos individuais e concretos no futuro que em segundo lugar
exerceriam algum tipo de influecircncia causal sobre o presente determinando em terceiro lugar um
curso preciso de accedilatildeo a fim de que pudessem ser realizados (cf HULSWIT 1996 p 200-2)
Vejamos em que medida essas caracteriacutesticas podem ser de fato atribuiacutedas agrave noccedilatildeo de causa final
que extraiacutemos da obra do filoacutesofo Como foi indicado acima Peirce nega que exista qualquer
evento no futuro constituinte da causa final Ela eacute sempre um geral e como tal difere
categoricamente dos eventos que podem ser classificados no acircmbito dos fatos individuais e
concretos
Um exemplo simples talvez possa ser de alguma ajuda para iluminar o que Peirce estaacute
afirmando Retomando o caso da accedilatildeo humana propositada podemos dizer que a causa final natildeo
eacute o proacuteprio objetivo da accedilatildeo que natildeo passa de um desejo operativo nas palavras de Peirce mas
eacute antes uma certa classe de objetos que possuem certo tipo geral de caracteriacutesticas Assim se o
desejo que me move eacute o de tomar um sorvete a causa final natildeo seria o proacuteprio desejo mas uma
classe geral na qual os sorvetes estatildeo subsumidos Ainda que possamos especificar o quanto
quisermos o tipo de sorvete o sabor a procedecircncia os modos de fabricaccedilatildeo ainda assim
continuariacuteamos a ter como atrator da nossa accedilatildeo certa classe geral dificilmente um objeto
definido e concreto
Em segundo lugar207
embora as causas finais natildeo sejam eventos futuros elas exercem certa
influecircncia a partir do futuro eacute preciso natildeo esquecer que a distinccedilatildeo entre passado presente e
207 Aqui discordamos da interpretaccedilatildeo de Hulswit que nega a possibilidade de atribuir agrave causalidade final qualquer
tipo de influecircncia sobre o presente a partir do futuro Em sua concepccedilatildeo as causas finais satildeo ldquogeneral types which
may be realized in the future These general types are no actual existences but general (physical) possibilities for
149
futuro realizada por Peirce deixa claro que cada momento estaacute imerso em um fluxo contiacutenuo
cujas fronteiras natildeo estatildeo determinadas de forma precisa e absoluta O modo de efetivaccedilatildeo dessas
trecircs componentes do tempo eacute no entanto bastante diferente O passado se impotildee e determina
natildeo de maneira absoluta o modo que o presente se efetiva a essa influecircncia Peirce daacute o nome de
Obsistecircncia (sugerindo como indica o autor obviar objeto obstinado obstaacuteculo insistecircncia
resistecircncia etc) O presente se efetiva como possibilidade sempre aberta ao novo Peirce atribui
o nome de Originalidade que eacute ser tal como aquele ser eacute independentemente de qualquer outra
coisa O modo de efetivaccedilatildeo do futuro eacute a Transuasatildeo (sugerindo translaccedilatildeo transfusatildeo
transcendental etc) eacute mediaccedilatildeo ou a modificaccedilatildeo da originalidade e da obsistecircncia pela
mediaccedilatildeo
Se existisse apenas a atuaccedilatildeo do passado na determinaccedilatildeo dos eventos presentes teriacuteamos
um mundo bastante diferente do atual no qual as regularidades seriam absolutas o que equivale a
dizer que das mesmas causas os mesmos efeitos seguir-se-iam formando um sistema
perfeitamente adequado agrave descriccedilatildeo mecanicista Fosse o presente absolutamente indeterminado
teriacuteamos apenas a manifestaccedilatildeo de potencialidades absolutamente livres sem a possibilidade de
estabelecimento de qualquer relaccedilatildeo entre duas ou mais realizaccedilotildees que ademais nem mesmo
poderiam ser descritas como espaciais ou temporais que satildeo formas de mediaccedilatildeo e portanto
expressotildees do geral Em uma palavra teriacuteamos o caos o mesmo que Peirce descreve como
condiccedilatildeo original e necessaacuteria do cosmo Essas satildeo imagens possiacuteveis e ateacute mesmo coerentes
mas inadequadas para a descriccedilatildeo do mundo que a experiecircncia nos revela estar em constante
processo de vir a ser descrito por Peirce como evolucionaacuterio ou em crescimento A atuaccedilatildeo da
causalidade final eacute uma hipoacutetese necessaacuteria para podermos compreender o desenvolvimento dos
processos naturais A mediaccedilatildeo que a ideia geral realiza entre a imposiccedilatildeo cega do passado e a
originalidade ilimitada do presente eacute sintetizada pelo autor na ideia de um ser in futuro Nas
palavras de Peirce
future realizationrdquo (HULSWIT 1996 P 185) Embora reconheccedilamos a dificuldade em integrar esta caracteriacutestica a
uma visatildeo cientificamente aceitaacutevel da noccedilatildeo natildeo podemos ignorar as declaraccedilotildees enfaacuteticas encontradas nos textos
de Peirce acerca da realidade da influecircncia que o futuro exerce sobre o desenrolar dos acontecimentos no presente
150
Vamos agora considerar o ser in futuro Como em outros casos isto eacute apenas
uma avenida que leva a uma apreensatildeo mais pura do elemento que ele conteacutem
Uma concepccedilatildeo absolutamente pura de uma categoria estaacute fora de questatildeo Ser
in futuro aparece em formas mentais intenccedilotildees e expectativas A memoacuteria nos
fornece um conhecimento do passado por uma espeacutecie de forccedila bruta uma accedilatildeo
bastante binaacuteria sem qualquer raciociacutenio Mas todo o nosso conhecimento do
futuro eacute obtido por meio de outra coisa (CP 2 sect 88 1902)208
O ser in futuro eacute deixemos claro fundamental para a possibilidade de constituiccedilatildeo efetiva
de uma ciecircncia que possa natildeo apenas explicar o mundo da nossa experiecircncia presente mas
tambeacutem servir de guia ao estabelecimento da nossa conduta autocontrolada
Peirce indica que o modo de efetivaccedilatildeo da causa final eacute semelhante ao de uma sugestatildeo ou
inclinaccedilatildeo nunca determina o modo exato por meio do qual o resultado desejado seraacute obtido Em
suas palavras
Por uma tendecircncia a um fim quero dizer que um determinado resultado seraacute
realizado ou aproximado de tal maneira que se dentro de certos limites sua
realizaccedilatildeo por meio de uma linha de causalidade mecacircnica for impedida ele seraacute
realizado ou aproximado por uma linha independente de causalidade mecacircnica
(NEM 4 p 66 1902)209
208 Let us now take up being in futuro As in the other cases this is merely an avenue leading to a purer apprehension
of the element it contains An absolutely pure conception of a Category is out of the question Being in futuro appears
in mental forms intentions and expectations Memory supplies us knowledge of the past by a sort of brute force a
quite binary action without any reasoning But all our knowledge of the future is obtained through the medium of
something else 209
By a tendency to an end I mean that a certain result will be brought about or approached and in such a way that
if within limits its being brought about by one line of mechanical causation be prevented it will be brought about
or approached by an independent line of mechanical causation
151
2 CAUSALIDADE FINAL E CAUSALIDADE EFICIENTE
A noccedilatildeo de causalidade assumida pelo filoacutesofo eacute claramente mais ampla do que aquela
restrita agrave causalidade eficiente Hulswit indica que ele retoma o sentido original de causa tal
como definido por Aristoacuteteles de acordo com quem uma causa eacute algum tipo de condiccedilatildeo sem a
qual uma coisa natildeo seria o que eacute A causa final dessa maneira eacute determinante do modo de vir a
ser das coisas Ou seja constitui um elemento indispensaacutevel para a criaccedilatildeo de um mundo ndash o da
nossa experiecircncia ndash que se encontra a meio caminho entre a rigidez intransigente e esteacuteril do
mecanicismo e a pura espontaneidade do caos
Como indicado no capiacutetulo sobre evoluccedilatildeo uma das motivaccedilotildees para o desenvolvimento de
uma abordagem teleoloacutegica por parte de Peirce foi a constataccedilatildeo da existecircncia dos assim
chamados fenocircmenos irreversiacuteveis descritos pela termodinacircmica A insuficiecircncia da mecacircnica
claacutessica se mostrava patente no tratamento deste tipo de fenocircmeno Como diz o filoacutesofo
Essas accedilotildees natildeo conservativas que parecem violar a lei de energia e que a fiacutesica
sempre explica como sendo devidas agrave accedilatildeo ao acaso entre trilhotildees de moleacuteculas
satildeo cada uma e todas marcadas por dois caracteres A primeira eacute que eles atuam
em uma direccedilatildeo determinada e tendem assintoticamente em direccedilatildeo agrave realizaccedilatildeo
de um estado uacuteltimo de coisas Se teleoloacutegica eacute uma palavra muito forte para
aplicar a eles podemos inventar a palavra finista para expressar a sua tendecircncia
em direccedilatildeo a um estado final A outra caracteriacutestica das accedilotildees natildeo conservativas
eacute que elas satildeo irreversiacuteveis (CP 7 sect 471 1898)210
As accedilotildees teleoloacutegicas ou finistas como denomina Peirce possuem desse modo duas
caracteriacutesticas elas tendem para um estado final de coisa e elas satildeo irreversiacuteveis Estaacute impliacutecita
aqui uma espeacutecie de superioridade da causa final em relaccedilatildeo agrave causa eficiente A primeira
210 Those non-conservative actions which seem to violate the law of energy and which physics explains away as due
to chance action among trillions of molecules are one and all marked by two characters The first is that they act in
one determinate direction and tend asymptotically toward bringing about an ultimate state of things If teleological is
too strong a word to apply to them we might invent the word finious to express their tendency toward a final state
The other character of non-conservative action is that they are irreversible
152
controla a uacuteltima afim de que um resultado com certo caraacuteter geral seja obtido Ou dito de outra
maneira as causas finais determinam as causas eficientes de tal modo que elas proacuteprias (as
causas finais) se realizem As ideias diz o autor possuem a capacidade de criar as condiccedilotildees para
a sua realizaccedilatildeo Segundo o texto
Desse modo quer aceite ou natildeo a opiniatildeo vocecirc deve ver que eacute uma opiniatildeo
perfeitamente inteligiacutevel a de que as ideias natildeo satildeo meras criaccedilotildees desta ou
daquela mente mas pelo contraacuterio tecircm um poder de encontrar ou criar os seus
veiacuteculos e tendo-os encontrado conferem-lhes a capacidade de transformar a
face da terra (CP 1 sect 217 1902)211
Vemos assim que a causa final definida dessa forma estaacute em estreita relaccedilatildeo com a ideia
a que Peirce se referia por meio da expressatildeo ldquolei da menterdquo Ele afirma que a lei da mente
apenas torna um certo sentimento mais provaacutevel (likely) Em outras palavras podemos dizer que
a lei da mente inclina o curso futuro dos eventos a uma certa direccedilatildeo sem contudo determinaacute-lo
Como afirma Peirce ldquoA causa final natildeo determina de que modo particular algo se realizaraacute mas
unicamente que o resultado teraacute um certo caraacuteter geralrdquo (CP 1 sect 211 1902)212
Eacute a causa final
diz Peirce que atribui existecircncia a um objeto de uma classe Natildeo devemos todavia entender essa
atribuiccedilatildeo como algum tipo de produccedilatildeo miraculosa Eacute o proacuteprio autor que esclarece em qual
sentido preciso entende essa atribuiccedilatildeo ldquoO que eu entendo pela ideia conferindo existecircncia aos
membros individuais de uma classe eacute que ela lhes confere o poder de produzir resultados neste
mundo que ela lhes confere equivale dizer existecircncia orgacircnica ou em uma palavra vidardquo (CP
1 sect 220 1902)213
Para tornar mais evidente a ideia de que a causa final eacute uma espeacutecie de lei viva Peirce
211 Thus whether you accept the opinion or not you must see that it is a perfectly intelligible opinion that ideas are
not all mere creations of this or that mind but on the contrary have a power of finding or creating their vehicles and
having found them of conferring upon them the ability to transform the face of the earth 212
Final causation does not determine in what particular way it is to be brought about but only that the result shall
have a certain general character 213
What I mean by the ideas conferring existence upon the individual members of the class is that it confers upon
them the power of working out results in this world that it confers upon them that is to say organic existence or in
one word life
153
apresenta um exemplo que foca a distinccedilatildeo entre o homem e a mateacuteria que o compotildee Essa
distinccedilatildeo se cristaliza na frase ldquoum homem eacute uma onda mas natildeo um voacuterticerdquo (CP 1 sect 220
1902)214
Ainda que ele seja indissociaacutevel das partiacuteculas que o compotildee nem todas as
propriedades que lhe podem ser atribuiacutedas satildeo adequadas a elas Vejamos o exemplo fornecido
por Peirce
Tome um cadaacutever disseque-o mais perfeitamente do que jamais foi dissecado
Tome todo o sistema de veias sanguiacuteneas como noacutes as vemos desenhadas nos
livros Trate o sistema de nervos espinal e simpateacutetico o sistema alimentar com
os seus adjuvantes o sistema muscular o sistema oacutesseo da mesma maneira
Coloque-os todos em uma cabine de tal modo que de um certo ponto de vista
cada um aparece superposto ao outro em seu lugar proacuteprio Este seria um
espeacutecime singularmente instrutivo Mas chamaacute-lo de homem seria algo que
ningueacutem faria ou sonharia nem mesmo por um instante Todavia a melhor
definiccedilatildeo que poderia ser elaborada seria uma dissecaccedilatildeo similar Ela realmente
natildeo atuaria no mundo como o objeto definido faria Isto nos habilita a ver como
as coisas funcionam na medida em que nos mostra a causa eficiente A causa
final que caracteriza o definitum natildeo eacute abordada (CP 1 sect 220 1902)215
A partir deste exemplo Peirce aprofunda a distinccedilatildeo entre causa eficiente e causa final que
jaacute indicamos anteriormente A causa eficiente eacute aquela na qual as partes compotildeem o todo
enquanto na causa final percebemos o todo chamando por suas partes (cf CP 1 sect 220 1902)
Como indica Silveira ldquo() o que o cosmo evolucionaacuterio exige para se efetivar na organizaccedilatildeo
crescente que o define eacute a presenccedila de duas causas cujo modo de operar eacute reciprocamente
inverso causa final e causa eficienterdquo (SILVEIRA 1985 p 8) Assim sob a atuaccedilatildeo da lei de
214 A man is a wave but not a vortex
215 Take a corpse dissect it more perfectly than it ever was dissected Take out the whole system of blood vessels
entire as we see them figured in the books Treat the whole systems of spinal and sympathetic nerves the alimentary
canal with its adjuvants the muscular system the osseous system in the same way Hang these all in a cabinet so
that from a certain point of view each appears superposed over the others in its proper place That would be a
singularly instructive specimen But to call it a man would be what nobody would for an instant do or dream Now
the best definition that ever was framed is at best but a similar dissection It will not really work in the world as the
object defined will It will enable us to see how the thing works in so far as it shows the efficient causation The final
causation which is what characterizes the definitum it leaves out of account
154
aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um contiacutenuo crescimento da uniformidade a partir das
formas diferenciadas Como indica o autor
Mas as mudanccedilas divergentes agrave lei estatildeo agindo perpetuamente a fim de
aumentar a variedade do mundo e satildeo controladas por um tipo de seleccedilatildeo
natural ou de qualquer outro tipo de tal forma que o resultado geral deve ser
descrito como bdquoheterogeneidade organizada‟ ou melhor bdquovariedade racionalizada‟
(CP 6 sect 23 1891)216
A ideia ou causa final atuaria desse modo como um atrator para a realizaccedilatildeo de um
determinado curso de eventos inclinando agrave realizaccedilatildeo de acontecimentos que se processariam em
funccedilatildeo de um ser in futuro Esta atraccedilatildeo pode ser entendida como um criteacuterio para a seleccedilatildeo das
hipoacuteteses a serem testadas no caso de um processo de investigaccedilatildeo ou dos caminhos ou
estrateacutegias a serem adotados para a realizaccedilatildeo de qualquer objetivo praacutetico A sua atuaccedilatildeo se
manifesta natildeo soacute na eleiccedilatildeo dos modos de conduta racional e autocontrolada do homem mas estaacute
presente tambeacutem ainda que de forma degenerada na determinaccedilatildeo de qualquer evento natural
como por exemplo na determinaccedilatildeo do curso que a aacutegua da chuva percorre ao descer uma
montanha A maneira pela qual o futuro atua sobre o presente se distingue daquela efetuada pelo
passado O passado atua de maneira direta dualista enquanto o futuro necessita de um meio ou
uma maquinaria como diz o autor atraveacutes do qual possa exercer sua influecircncia Silveira
esclarece que ldquoenquanto esta uacuteltima [causa eficiente] atualiza-o pela forccedila a primeira [causa
final] muito mais genuiacutena faz derivar o proacuteprio cosmo de uma ideia antecipa o todo agraves partes
cabendo agrave causa eficiente a composiccedilatildeo efetiva ndash e de algum modo defectiva ndash do todo pela
accedilatildeo reciacuteproca das partesrdquo (SILVEIRA 1985 p 8)
Neste contexto cabem algumas palavras sobre a ceacutelebre imagem do xerife e do tribunal
216 But the chance divergences from law are perpetually acting to increase the variety of the world and are checked
by a sort of natural selection and otherwise (for the writer does not think the selective principle sufficient) so that the
general result may be described as organized heterogeneity or better rationalized variety
155
criada por Peirce para a explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre causalidade final e causalidade eficiente
ressaltando a sua complementaridade
A Lei sem a forccedila para se fazer cumprir seria como um tribunal sem um xerife e
todas as suas decisotildees seriam apenas ditos arrogantes (CP 1 sect 212 1902) () O
tribunal natildeo pode ser imaginado sem um xerife Causalidade final natildeo pode ser
imaginada sem causalidade eficiente mas nenhum pouquinho a menos naquele
exemplo satildeo os seus modos de accedilatildeo contraacuterios polares O xerife ainda teria seu
punho mesmo que natildeo houvesse nenhum tribunal mas uma causa eficiente
destacada de uma causa final na forma de uma lei nem sequer possuiria
eficiecircncia ela pode exercitar-se e algo pode seguir post hoc mas natildeo propter
hoc pois propter implica regularidade potencial (CP 1 213 1902)217
A implicaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo acima eacute a de que natildeo haacute em nenhum acircmbito dos processos
naturais qualquer ato de causaccedilatildeo que natildeo contenha ao mesmo tempo componentes causais
eficientes e finais Peirce eacute mais expliacutecito em outra passagem utilizando a mesma imagem do
xerife e do tribunal
A lei da natureza entregue a si mesma seria bastante semelhante a um tribunal
sem um xerife Um tribunal em tal situaccedilatildeo poderia ser capaz de induzir algum
cidadatildeo a atuar como um xerife mas ateacute que ela tenha se provido de um oficial
que ao contraacuterio de si natildeo poderia discursar com autoridade mas que poderia
estender o braccedilo forte sua lei poderia ser a perfeiccedilatildeo da razatildeo humana mas
permaneceria meros fogos de artifiacutecio brutum Fulmen (CP 5 sect 48 1903)218
217 Law without force to carry it out would be a court without a sheriff and all its dicta would be vaporings () The
court cannot be imagined without a sheriff Final causality cannot be imagined without efficient causality but no
whit the less on that account are their modes of action polar contraries The sheriff would still have his fist even if
there were no court but an efficient cause detached from a final cause in the form of a law would not even possess
efficiency it might exert itself and something might follow post hoc but not propter hoc for propter implies
potential regularity 218
A law of nature left to itself would be quite analogous to a court without a sheriff A court in that predicament
might probable be able to induce some citizen to act as a sheriff but until it had so provided with an officer who
unlike itself could not discourse authoritatively but who could put forth the strong arm its law might be the
perfection of human reason but remain mere fireworks brutum fulmen
156
A metaacutefora distingue claramente o tribunal e o xerife o primeiro toma decisotildees e o segundo
as executa O tribunal guia e direciona e o xerife age Como indica Potter
Juntos eles obtecircm a ordem e mantecircm a paz separados um eacute impotente e o outro
brutal Natildeo obstante nem o tribunal nem o xerife satildeo imaginaacuteveis a natildeo ser em
referecircncia de um com o outro e contudo eles e suas atividades permanecem
sempre claramente distintos Da mesma forma acontece com causalidade
eficiente e final (POTTER 1997 p114)
Para sermos mais precisos com a concepccedilatildeo peirceana em cada ato causal estatildeo envolvidos
trecircs elementos causa eficiente causa final e acaso Temos aqui portanto o modo de vir a ser de
tudo o que eacute em outras palavras este eacute o princiacutepio de individuaccedilatildeo Natildeo poderia dessa maneira
existir fenocircmenos puramente mecacircnicos no cosmo peirceano pois tal possibilidade entraria em
confronto com a proacutepria tese da continuidade criando uma dualidade que natildeo pode ser
consistentemente integrada ao sistema Peirce diz que
O sinequismo mesmo em suas formas menos robustas nunca poderaacute tolerar o
dualismo propriamente assim denominado Ele natildeo quer exterminar a
concepccedilatildeo de duplicidade nem pode qualquer um desses malucos que pregam
cruzadas filosoacuteficas contra esta ou aquela concepccedilatildeo fundamental encontrar o
menor conforto nesta doutrina Mas o dualismo em seu mais amplo e legiacutetimo
significado como a filosofia que realiza as suas anaacutelises com um machado
deixando como elementos finais pedaccedilos do ser sem qualquer relaccedilatildeo isto eacute o
mais hostil ao sinequismo Em particular o sinequista natildeo admitiraacute que os
fenocircmenos fiacutesicos e psiacutequicos sejam inteiramente distintos - seja como
pertencendo a diferentes categorias de substacircncia ou como lados inteiramente
separados de um escudo - mas insistiraacute que todos os fenocircmenos satildeo de um soacute
caraacuteter embora alguns sejam mais mentais e espontacircneos outros mais materiais
e regulares Ainda assim todos similarmente apresentam aquela mistura de
liberdade e restriccedilatildeo que permite que eles sejam ou melhor faz com que sejam
teleoloacutegicos ou propositados (CP 7 sect 570 1892)219
219 Synechism even in its less stalwart forms can never abide dualism properly so called It does not wish to
exterminate the conception of twoness nor can any of these philosophic cranks who preach crusades against this or
that fundamental conception find the slightest comfort in this doctrine But dualism in its broadest legitimate
meaning as the philosophy which performs its analyses with an axe leaving as the ultimate elements unrelated
chunks of being this is most hostile to synechism In particular the synechist will not admit that physical and
157
Como Peirce deixa claro em outra passagem eacute da mistura da restriccedilatildeo com a liberdade que
os fenocircmenos teleoloacutegicos surgem Ele diz que esta ldquomistura de liberdade e restriccedilotildeesrdquo acarreta
ldquoresultados teleoloacutegicos inevitaacuteveisrdquo (EP 1 p 236 1885)220
A combinaccedilatildeo dos trecircs fatores eacute a
chave para se compreender a consequecircncia que Peirce indica ser a caracteriacutestica mais presente
em todos os fenocircmenos naturais qual seja a variaccedilatildeo que se processa dentro de certos limites e
que eacute o germe que possibilita a criaccedilatildeo de tudo que eacute novo e original O autor indica em outro
texto
Eacute curioso como certos fatos nos escapam porque satildeo tatildeo penetrantes e
onipresentes exatamente como os antigos imaginavam que a muacutesica das esferas
natildeo era ouvida porque era ouvida o tempo todo Mas seraacute que algueacutem
gentilmente natildeo diraacute ao resto do auditoacuterio qual eacute o caraacuteter mais marcante e
intrusivo da natureza Eacute claro que me refiro agrave sua variedade (CP 1 sect 159
1897)221
A variaccedilatildeo fruto da atuaccedilatildeo do acaso como jaacute ficou claro no primeiro capiacutetulo desta tese
natildeo eacute uma ocorrecircncia rara que surge vez ou outra no curso dos eventos mas estaacute presente em
toda atualizaccedilatildeo que se processa deste modo em funccedilatildeo das imposiccedilotildees cegas do passado das
restriccedilotildees criadas pela lei e da manifestaccedilatildeo da livre espontaneidade Peirce eacute enfaacutetico ao
descrever a tessitura da realidade
Assim pela admissatildeo da espontaneidade pura ou vida como uma caracteriacutestica
do universo agindo sempre e em toda parte embora contida dentro dos estreitos
psychical phenomena are entirely distinct -- whether as belonging to different categories of substance or as entirely
separate sides of one shield -- but will insist that all phenomena are of one character though some are more mental
and spontaneous others more material and regular Still all alike present that mixture of freedom and constraint
which allows them to be nay makes them to be teleological or purposive 220
Mixture of freedom and constraint () inevitable teleological results 221
It is curious how certain facts escape us because they are so pervading and ubiquitous just as the ancients
imagined the music of the spheres was not heard because it was heard all the time But will not somebody kindly tell
the rest of the audience what is the most marked and obtrusive character of nature Of course I mean the variety of
nature
158
limites da lei produzindo continuamente divergecircncias infinitesimais da lei e as
grandes com infinita infrequecircncia dou conta de toda a variedade e diversidade
do universo no uacutenico sentido em que o realmente sui generis e o novo pode ser
compreendido A visatildeo comum tem que admitir a inesgotaacutevel e incontaacutevel
variedade do mundo tem que admitir que a sua lei mecacircnica natildeo pode
minimamente dar conta disso que a variedade pode brotar apenas da
espontaneidade e ainda nega sem qualquer evidecircncia ou razatildeo a existecircncia
desta espontaneidade ou entatildeo a remete de volta para o iniacutecio do tempo e supotildee-
na morta desde entatildeo A loacutegica superior do meu ponto de vista natildeo me parece
facilmente refutada (CP 6 sect 59 1892)222
Peirce refere-se aos infinitesimais nesta passagem como vimos no capiacutetulo sobre a
continuidade Natildeo eacute possiacutevel compreender adequadamente a noccedilatildeo de continuum sem
introduzirmos a noccedilatildeo de infinitesimal nessas duas noccedilotildees estaacute implicada a relaccedilatildeo entre a lei e o
acaso entre a regularidade e a espontaneidade Como jaacute mencionamos acima eacute dessa relaccedilatildeo que
a causa final surge Em um texto de 1898 Peirce traccedila a relaccedilatildeo aqui indicada
O que eacute possiacutevel eacute na mesma medida geral e como geral deixa de ser
individual Assim lembrando que a palavra potencial significa indeterminado
contudo ainda capaz de determinaccedilatildeo em qualquer caso especial pode haver um
agregado potencial de todas as possibilidades que satildeo consistentes com certas
condiccedilotildees gerais e isso pode ser tal que dado qualquer coleccedilatildeo de indiviacuteduos
distintos seja qual for a partir daquele agregado potencial pode ser realizado
uma coleccedilatildeo mais numerosa do que a coleccedilatildeo dada Assim o potencial agregado
eacute com a mais estrita exatidatildeo maior em magnitude do que qualquer magnitude
possiacutevel de indiviacuteduos Mas sendo apenas um agregado potencial ele natildeo
conteacutem quaisquer indiviacuteduos Ele conteacutem apenas as condiccedilotildees gerais que
permitem a determinaccedilatildeo dos indiviacuteduos (CP 6 sect 185 1898)223
222 By thus admitting pure spontaneity or life as a character of the universe acting always and everywhere though
restrained within narrow bounds by law producing infinitesimal departures from law continually and great ones
with infinite infrequency I account for all the variety and diversity of the universe in the only sense in which the
really sui generis and new can be said to be accounted for The ordinary view has to admit the inexhaustible
multitudinous variety of the world has to admit that its mechanical law cannot account for this in the least that
variety can spring only from spontaneity and yet denies without any evidence or reason the existence of this
spontaneity or else shoves it back to the beginning of time and supposes it dead ever since The superior logic of my
view appears to me not easily controverted 223
That which is possible is in so far general and as general it ceases to be individual Hence remembering that the
word potential means indeterminate yet capable of determination in any special case there may be a potential
159
A causalidade teleoloacutegica na concepccedilatildeo peirceana possui uma caracteriacutestica de
criatividade que a distingue de outras concepccedilotildees em particular da de Aristoacuteteles como veremos
abaixo A criatividade do processo de qualquer crescimento seja ela o de uma ideia na mente de
um investigador ou do proacuteprio cosmo eacute descrito perfeitamente pelo termo evoluccedilatildeo que como jaacute
foi indicado natildeo eacute nada mais do que um princiacutepio loacutegico Faremos agora uma retomada de
algumas das caracteriacutesticas mais marcantes do processo evolutivo descrito por Peirce e nos
concentraremos naquele denominado de agapasmo por se tratar da forma original de evoluccedilatildeo
3 CAUSA FINAL E EVOLUCcedilAtildeO ndash AacuteGAPE OU O AMOR CRIATIVO
Para melhor ilustrar a presenccedila da causa final no cosmo podemos lembrar que a sua
atuaccedilatildeo natildeo eacute outra coisa que a evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902) Nota-se na formulaccedilatildeo
peirceana um alargamento das fronteiras tradicionalmente consideradas como limitantes da accedilatildeo
da evoluccedilatildeo Natildeo soacute o reino orgacircnico cresce com a evoluccedilatildeo mas todo o cosmo assim procede
Peirce procuraraacute montar um quadro teoacuterico no qual a evoluccedilatildeo eacute o aspecto marcante de todos os
acontecimentos nos mais variados campos
A evoluccedilatildeo pode ser aplicada ateacute mesmo agrave proacutepria causa final no texto A lei da mente de
1892 Peirce caracteriza a teleologia como tambeacutem submetida a um processo de desenvolvimento
(developmental) indicando que no processo de atuaccedilatildeo da causa final o tipo geral de resultado
pode sofrer alteraccedilotildees em funccedilatildeo das variaccedilotildees surgidas na experiecircncia como indica Hausman
aggregate of all the possibilities that are consistent with certain general conditions and this may be such that given
any collection of distinct individuals whatsoever out of that potential aggregate there may be actualized a more
multitudinous collection than the given collection Thus the potential aggregate is with the strictest exactitude
greater in multitude than any possible multitude of individuals But being a potential aggregate only it does not
contain any individuals at all It only contains general conditions which permit the determination of individuals
160
esta eacute ldquoA visatildeo de que existem propoacutesitos que podem evoluir espontaneamenterdquo (HAUSMAN
1993 p 175) Tomando como exemplo de evoluccedilatildeo a constituiccedilatildeo da personalidade de um
indiviacuteduo Peirce afirma que
() ela implica uma harmonia teleoloacutegica nas ideias e no caso da personalidade
esta teleologia eacute mais do que uma mera procura propositada de um fim preacute-
determinado eacute uma teleologia em desenvolvimento Este eacute o caraacuteter pessoal A
ideia geral viva e consciente agora jaacute eacute determinante de atos no futuro em uma
medida que natildeo eacute agora consciente (CP 6 sect 156 1892)224
Natildeo obstante o propoacutesito natildeo pode ser estaacutetico pois o desenvolvimento em conformidade
com um propoacutesito preacute-determinado seria contraacuterio agrave proacutepria noccedilatildeo de processo criativo que
caracteriza segundo Peirce a atuaccedilatildeo da causalidade final Caso o propoacutesito se mantivesse
inalterado natildeo teriacuteamos nada aleacutem do que um desenvolvimento mecacircnico o que eliminaria a
proacutepria possibilidade de constituiccedilatildeo da personalidade como algo em desenvolvimento em
crescimento e vivo Embora Peirce na passagem acima esteja se referindo ao desenvolvimento
da personalidade humana eacute possiacutevel estender esta caracterizaccedilatildeo para todos os fenocircmenos
teleoloacutegicos variando sua atuaccedilatildeo exclusivamente em funccedilatildeo dos graus de liberdade que lhes
sejam inerentes Quanto mais livre ou seja quanto mais autocontrolado for um sistema mais
variaccedilatildeo pode existir no desenvolvimento de uma certa finalidade mas isso natildeo exclui a
possibilidade que mesmo no acircmbito da cosmologia as causas finais isto eacute as leis gerais de
desenvolvimento possam ser alteradas pela accedilatildeo do acaso Como indica Short ldquoA causaccedilatildeo final
desse modo resulta natildeo na uniformidade morta de um uacutenico plano mas na heterogeneidade
imprevisiacutevel de empresas personalidades e espeacutecies que preenchem o nosso mundordquo (SHORT
1994 p 406)
224 () it implies a teleological harmony in ideas and in the case of personality this teleology is more than a mere
purposive pursuit of a predeterminate end it is a developmental teleology This is personal character A general idea
living and conscious now it is already determinative of acts in the future to an extent to which it is not now
conscious
161
Enquanto a variaccedilatildeo fruto do acaso absoluto eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria para a evoluccedilatildeo
como jaacute vimos a proacutepria evoluccedilatildeo parece pressupor um outro agente como determinante do seu
processo de desenvolvimento A tal agente Peirce daacute o nome de Aacutegape Consciente das
limitaccedilotildees do tiquismo extraiacutedo da teoria de Darwin o filoacutesofo procura desenvolver uma noccedilatildeo
de evoluccedilatildeo mais geral tendo por base a evoluccedilatildeo do tipo lamarckiano Como aponta Hausman
O agente da evoluccedilatildeo distinto do agente do desvio da diversidade e da
complexidade sozinha tem uma funccedilatildeo teleoloacutegica ndash natildeo para uma teleologia do
tipo tradicional do tempo de Peirce mas uma teleologia em desenvolvimento
uma teleologia de acordo com a qual novos propoacutesitos fins podem emergir
(HAUSMAN 1998 p 630)
A evoluccedilatildeo do cosmo entretanto diz Peirce se daacute pela antecipaccedilatildeo da ideia a ser realizada
por meio de uma adivinhaccedilatildeo que soacute eacute possiacutevel como resultante da continuidade entre as coisas
O universo antecipa abdutivamente por meio da causa final a ideia a ser realizada Nas palavras
de Peirce ldquoA adoccedilatildeo de certas tendecircncias mentais () por uma atraccedilatildeo imediata da ideia em si
cuja natureza eacute adivinhada antes que a mente a possua pelo poder de simpatia ou seja pela
virtude da continuidade da menterdquo (CP 6 307 1893)225
Eacute o amor afirma Peirce o grande agente evolucionaacuterio do universo fato reconhecido desde
a mais tenra idade da filosofia Eacute aacutegape que conduz o processo de desenvolvimento do universo
possibilitando que em um longo prazo ele se torne mais e mais razoaacutevel fazendo com que
aquilo que Peirce chama de razoabilidade concreta possa crescer Quanto ao seu modo de atuar
Peirce afirma que ldquoO movimento do amor eacute circular em um e mesmo impulso projeta criaccedilotildees
em independecircncia e as reuacutene em harmonia Parece complicado quando dito desta maneira mas eacute
completamente sintetizado na foacutermula simples que denominamos a Regra Douradardquo (CP 6 sect
225 The adoption of certain mental tendencies () by an immediate attraction of the idea itself whose nature is
divined before the mind possesses it by the power of sympathy that is by the virtue of the continuity of the mind
162
288 1893)226
Sua funccedilatildeo eacute a de tornar harmoniosos os frutos das criaccedilotildees que constituem o
universo Poeticamente Peirce afirma que aacutegape eacute capaz de ateacute mesmo ldquo() reconhecer os
germes de amor no oacutedio gradualmente trazecirc-los para a vida e tornaacute-los amaacuteveisrdquo (CP 6 sect 289
1893)227
Do ponto de vista mais geral como aponta Silveira (2003) levando-se em conta a
hierarquia estabelecida por Peirce entre as ciecircncias na qual a loacutegica tem por base a eacutetica que por
sua vez tem por base a esteacutetica a uacutenica ideia que pode atuar como forccedila atratora do desenrolar
dos acontecimentos eacute a proacutepria ideia de razoabilidade A razoabilidade eacute o uacutenico bem admiraacutevel
por si mesmo
O proacuteprio ser do geral da Razatildeo consiste em seu governo sobre eventos
individuais Assim entatildeo a essecircncia da razatildeo eacute tal que nunca seu ser pode ter
sido completamente aperfeiccediloado Ele sempre deve estar em um estado de
incipiecircncia de crescimento Eacute como o caraacuteter de um homem que consiste nas
ideias que ele vai conceber e nos esforccedilos que faraacute e que soacute se desenvolve na
medida em que as ocasiotildees realmente surgem No entanto em toda a sua vida
nenhum filho de Adatildeo jamais manifestou plenamente o que havia em si Assim
entatildeo o desenvolvimento da razatildeo requer como uma parte de si a ocorrecircncia de
mais eventos individuais do que jamais pode ocorrer Requer tambeacutem todas as
cores de todas as qualidades de sentimento incluindo o prazer em seu devido
lugar entre os demais Este desenvolvimento da razatildeo consiste vocecirc observaraacute
em encarnaccedilatildeo isto eacute em manifestaccedilatildeo A criaccedilatildeo do universo que natildeo teve
lugar durante uma certa ocupada semana no ano 4004 AC mas que estaacute
acontecendo hoje e nunca estaraacute terminada eacute o verdadeiro desenvolvimento da
Razatildeo Natildeo vejo como se possa ter um ideal mais satisfatoacuterio do admiraacutevel do
que o desenvolvimento da razatildeo assim entendida A uacutenica coisa cuja
admirabilidade natildeo eacute devida a um motivo ulterior eacute a proacutepria razatildeo
compreendida em toda sua plenitude tanto quanto podemos compreendecirc-la Sob
esta concepccedilatildeo o ideal de conduta seraacute o de executar a nossa pequena funccedilatildeo na
operaccedilatildeo da criaccedilatildeo dando uma ajuda para tornar o mundo mais razoaacutevel
sempre que como diz a giacuteria cabe a noacutes fazecirc-lo Em loacutegica pode-se observar
que o conhecimento eacute a razoabilidade e o ideal do raciociacutenio seraacute seguir os
meacutetodos como se deve para desenvolver o conhecimento mais rapidamente (CP
1 sect 615 1903)228
226 The movement of love is circular at the one and the same impulse projecting creations into independency and
drawing them into harmony This seems complicated when stated so but it is fully summed up in the simple formula
we call the Golden rule 227
() recognizing germs of loveliness in the hateful gradually warms it in to life and make it lovely 228
The very being of the General of Reason consists in its governing individual events So then the essence of
Reason is such that its being never can have been completely perfected It always must be in a state of incipiency of
growth It is like the character of a man which consists in the ideas that he will conceive and in the efforts that he will
make and which only develops as the occasions actually arise Yet in all his life long no son of Adam has ever fully
163
Podemos nos utilizar de um esquema proposto por Potter (1997) para sintetizarmos o modo
de desenvolvimento ou crescimento influenciado pela atuaccedilatildeo da evoluccedilatildeo agapaacutestica
O desenvolvimento Agapaacutestico (terceiridade) novas ideias satildeo adotadas nem
descuidadamente nem cegamente mas por uma atraccedilatildeo imediata pela ideia em
si adivinhada antes mesmo de a mente possuir a ideia conscientemente pelo
poder da simpatia ou afinidade (continuidade da mente) tanto
a) pela comunidade que possui a ideia na personalidade coletiva e a passa aos
indiviacuteduos que de outra forma satildeo incapazes de alcanccedilaacute-la ou
b) Por um indiviacuteduo que descobre a ideia por si mesmo mas soacute porque estaacute em
simpatia com a comunidade e essa simpatia permitiu que ele experimentasse a
atratividade da ideia ou
c) Por um indiviacuteduo que descobre a ideia por si mesmo independentemente de
seus afetos humanos simplesmente em virtude da atratividade da ideia em si
(POTTER 1997 p 187)
4 A ORIGINALIDADE DA CAUSA FINAL PEIRCEANA
Uma vez delineado o papel da causalidade final na obra peirceana resta-nos enfatizar suas
principais caracteriacutesticas e apontar em que consiste a sua originalidade Para tanto indicaremos
em que medida sua concepccedilatildeo se distingue daquela proposta por Aristoacuteteles Peirce como jaacute foi
manifested what there was in him So then the development of Reason requires as a part of it the occurrence of
more individual events than ever can occur It requires too all the coloring of all qualities of feeling including
pleasure in its proper place among the rest This development of Reason consists you will observe in embodiment
that is in manifestation The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in the
year 4004 BC but is going on today and never will be done is this very development of Reason I do not see how
one can have a more satisfying ideal of the admirable than the development of Reason so understood The one thing
whose admirableness is not due to an ulterior reason is Reason itself comprehended in all its fullness so far as we
can comprehend it Under this conception the ideal of conduct will be to execute our little function in the operation
of the creation by giving a hand toward rendering the world more reasonable whenever as the slang is it is up to
us to do so In logic it will be observed that knowledge is reasonableness and the ideal of reasoning will be to
follow such methods as must develop knowledge the most speedily
164
dito considerava-se um seguidor da noccedilatildeo aristoteacutelica de causa final juiacutezo que natildeo nos parece
ser totalmente preciso Indicaremos a seguir para efeito de comparaccedilatildeo alguns aspectos
presentes em ambas as noccedilotildees
Natildeo eacute pretensatildeo deste trabalho realizar um estudo que compreenda o todo da noccedilatildeo de
causalidade final presente na obra aristoteacutelica A quantidade de estudos sobre esse toacutepico eacute
bastante grande de tal maneira que propor uma interpretaccedilatildeo da noccedilatildeo sem o estabelecimento de
um diaacutelogo com essa produccedilatildeo seria visto como suspeito Todavia dada a proximidade entre as
ideias sobre causalidade final dos dois filoacutesofos reconhecida por Peirce e pelos estudiosos de sua
obra cabe aqui apenas a indicaccedilatildeo daqueles aspectos que satildeo semelhantes em ambas as
concepccedilotildees e aqueles que diferenciam a concepccedilatildeo peirceana e expressam sua originalidade
Para contrastar com a concepccedilatildeo peirceana veremos o que Aristoacuteteles diz no segundo livro
da Fiacutesica texto claacutessico para a compreensatildeo da noccedilatildeo de causa final no autor Para o que nos
interessa neste momento podemos perceber que Aristoacuteteles busca responder agraves seguintes
questotildees que podem ser colocadas na forma de um dilema ldquoa natureza procede apenas por
necessidade e natildeo com vista de finsrdquo ou ldquoa natureza aleacutem de proceder por necessidade opera
tambeacutem teleologicamenterdquo como indica Angioni (2006 p 37) Tendo estabelecido que as coisas
acontecem por necessidade na natureza mas tambeacutem motivadas pelo acaso o que acaba por
produzir acontecimentos que satildeo frutos natildeo da necessidade mas do encontro de cadeias causais
necessaacuterias independentes Cabe perguntar qual a causa do encontro dessas cadeias
independentes de eventos Angioni indica que Aristoacuteteles reconhece duas possibilidades ou as
coisas se datildeo por concomitacircncia isto eacute ldquoas seacuteries causais se agrupam bdquoespontaneamente‟ () sem
que nenhuma causa anterior explique por que tal conjunccedilatildeo de seacuteries viria a ser necessaacuteriardquo
(2006 p 42) e acrescenta ldquoou tais seacuteries compotildeem-se entre si sob um princiacutepio anterior que
exige a composiccedilatildeo das mesmas sob certa ordemrdquo (ANGIONI 2006 p 46)
O exemplo da parede de pedra pode ajudar na compreensatildeo da relaccedilatildeo entre aquilo que
acontece por natureza isto eacute necessariamente e aquilo que ocorre em vista de um fim Na
parede as pedras e alicerces naturalmente pesados tecircm a tendecircncia a se deslocar para baixo e
165
constituem a base e acima deles se encontram as estruturas de madeira que sendo mais leves tecircm
a tendecircncia de se deslocarem para o alto (com relaccedilatildeo agraves pedras) A parede seraacute necessariamente
construiacuteda com pedras que teratildeo a tendecircncia de se deslocar para baixo As caracteriacutesticas
inerentes aos materiais como a pedra e a funccedilatildeo a ser desempenhada pela parede se combinam de
modo que podemos dizer que haacute uma necessidade que ela seja desse modo Aristoacuteteles diz que
ldquoessas coisas natildeo se geram sem os itens que possuem uma natureza necessaacuteria mas natildeo satildeo
devido a esses itens a natildeo ser como mateacuteria mas satildeo em vista de algordquo (ARISTOacuteTELES 2002
200a 7-10) Haacute portanto um plano de desenvolvimento conduzido pela necessidade de
acabamento que natildeo pode se dar a natildeo ser com a junccedilatildeo com aquilo que eacute necessaacuterio As quatro
causas atuariam concomitantemente sendo a mais primordial a causa final ou acabamento
Angioni indica que para Aristoacuteteles ldquoa causa final () deve receber mais atenccedilatildeo porque ela eacute
bdquocausa da mateacuteria‟ natildeo o inverso ()rdquo (ANGIONI 2006 P 54)
A partir da diferenciaccedilatildeo das causas em quatro tipos distintos proposta por Aristoacuteteles
(Fiacutesica 194b15-195b30) Peirce elabora uma aplicaccedilatildeo das noccedilotildees agraves suas proacuteprias ideias e
afirma
A causa interna de individuaccedilatildeo eacute chamada a causa material Assim partes
integrantes de um assunto ou de um fato formam sua mateacuteria ou causa
material A causa externa de individuaccedilatildeo eacute chamada de eficiente ou a causa
eficiente e o causatum eacute chamado de efeito A causa interna de definiccedilatildeo eacute
chamada causa formal ou forma Todos estes fatos que constituem a definiccedilatildeo
de um assunto ou fato compotildeem sua forma A causa externa de definiccedilatildeo eacute
chamada de causa final ou fim Espera-se que estas declaraccedilotildees seratildeo
consideradas mais certeiras do que aquelas de Aristoacuteteles e os escolaacutesticos como
o alvo que eles miravam (EP 2 315-6 1904)229
229 The individuating internal cause is called the material cause Thus the integrant parts of a subject or fact form its
matter or material cause The individuating external cause is called the efficient or efficient cause and the causatum
is called the effect The defining internal cause is called the formal cause or form All these facts which constitute
the definition of a subject or fact make up its form The defining external cause is called the final cause or end It is
hoped that these statements will be found to hit a little more squarely than did those of Aristotle and the scholastics
the bull‟s eye at which they aimed (EP 2 p 315-6 1904)
166
Assim como a de Aristoacuteteles a noccedilatildeo de causa final peirceana eacute explicitamente
antropomoacuterfica Como jaacute indicamos anteriormente Peirce reconhecia esse aspecto de sua teoria e
o endossava indicando que natildeo poderia ser de outra forma A principal justificativa para esta
forma de exposiccedilatildeo reside na ideia de que tudo o que pode ser conhecido tudo que eacute
compreensiacutevel para o homem deve ter a sua marca Isso no entanto natildeo significa que a accedilatildeo
propositada a forma de causalidade final mais familiar aos homens seja sua uacutenica expressatildeo A
causalidade final eacute como vimos na obra de Peirce ubiacutequa
Toda causalidade final eacute um tipo ideal para ambos os filoacutesofos aquilo que exerce o poder
causal do tipo final natildeo pode ser algo atual ou individual mas antes eacute a expressatildeo de certas
potencialidades jaacute delineadas no presente Natildeo existe qualquer evento real futuro que exerccedila
algum tipo de atraccedilatildeo sobre o desenrolar dos eventos conduzindo-os a um predeterminado fim
Causalidade final e causalidade eficiente natildeo podem existir de maneira autocircnoma a
consciecircncia desta complementaridade eacute ainda mais viva em Peirce Como vimos todas as
instacircncias de atuaccedilatildeo causal recebem a influecircncia de trecircs diferentes forccedilas causais da causa
eficiente do acaso e da causa final
Por outro lado para Aristoacuteteles eacute como indica Short (1981b p 371) ldquoUm tipo geral eacute uma
causa final por causa do bem que caracterizaccedilatildeo qualquer uma de suas atualizaccedilotildeesrdquo Haacute na obra
Aristoteacutelica uma relaccedilatildeo estreita entre causa final e a realizaccedilatildeo do bem supremo de cada ser ou
objeto Esse aspecto natildeo se encontra presente nas consideraccedilotildees de Peirce a causalidade final natildeo
atua em funccedilatildeo da atualizaccedilatildeo de algum elemento substancial Embora natildeo possa existir qualquer
processo do qual ela esteja ausente isso natildeo implica para Peirce que ela tenha que estar definida
com algum grau de precisatildeo desde o princiacutepio Haacute reconhece o filoacutesofo a possibilidade de que
no decorrer do processo a proacutepria causa final se altere e gere novos resultados em funccedilatildeo de
novos elementos ou situaccedilotildees que podem ter sido colocados em cena pela atuaccedilatildeo do acaso
Como vimos a atuaccedilatildeo do acaso eacute uma condiccedilatildeo para a existecircncia de causas finais na concepccedilatildeo
peirceana e nisto elas se distinguem do conceito aristoteacutelico pois para o estagirita a atuaccedilatildeo do
167
acaso implica na ausecircncia de causa final Pode-se acrescentar a essas diferenccedilas a ideia peirceana
de que aacutegape ndash ou amor criativo ndash eacute a mais pura expressatildeo da causalidade final
5 CAUSA FINAL E CLASSIFICACcedilAtildeO NATURAL
O esforccedilo para tornar a causalidade final compreensiacutevel e a defesa do seu lugar nos eventos
do cosmo respondem a uma necessidade bastante presente nos vaacuterios periacuteodos da produccedilatildeo
peirceana o de tornar a ciecircncia um empreendimento possiacutevel e natildeo uma mera ficccedilatildeo arbitraacuteria O
problema da relaccedilatildeo do homem com o mundo tambeacutem denominado de problema da existecircncia do
mundo exterior eacute o objeto da inquietaccedilatildeo de Peirce Esse aspecto da justificaccedilatildeo da causalidade
final ficaraacute mais claro ao tratarmos das ideias de Peirce quanto agrave classificaccedilatildeo natural (cf
HULSWIT 1997)
Hawkins (2007) afirma que o tratamento que Peirce dispensa agrave classificaccedilatildeo natural no
texto On science and natural classes de 1902 pode parecer estranho pois ldquoEm vez de comeccedilar
com os elementos baacutesicos do mundo fiacutesico tratados como se o caraacuteter que ele nos parece ter seja
de fato o seu caraacuteter independente de nossa observaccedilatildeo (em si mesmos) Peirce comeccedila com a
questatildeo de como o mundo da cientista se revela para elardquo (HAWKINS 2007 p 530) E a
resposta a partir da qual Peirce desenvolve seu texto eacute a de que o mundo se revela natildeo como um
caos desordenado mas antes se apresenta pleno de regularidades que permite ao cientista dividi-
lo em grupos distintos
Eacute a causa final o princiacutepio que permite ao cientista agrupar os diferentes aspectos do
mundo Em particular ldquo() o desejo [como vimos a mais familiar forma de causa final] cria
classes e classes extremamente amplasrdquo (EP 2 p 118 1902)230
Ao tratar da classificaccedilatildeo
natural das ciecircncias Peirce afirma que se queremos conhecer em quais classes as ciecircncias estatildeo
230 () desire creates classes and extremely broad classes
168
naturalmente divididas basta consultar uma lista dos perioacutedicos existentes O que cria as classes
eacute o desejo de conhecer dos cientistas Esse desejo contudo natildeo eacute o produtor de uma lista
arbitraacuteria o mundo impotildee limites Embora algueacutem possa querer inventar uma ciecircncia que ainda
natildeo exista ela soacute sobreviveraacute se espelhar alguns aspectos do mundo que lhe resiste O mundo eacute
definido por Peirce da seguinte maneira
() o mundo externo (isto eacute o mundo que eacute comparativamente externo) natildeo
consiste apenas de objetos existentes nem apenas destes e de suas reaccedilotildees mas
ao contraacuterio seus mais importantes reais tecircm o modo de ser daquilo que o
nominalista chama de meras palavras isto eacute tipos gerais e would-bes O
nominalista estaacute certo em dizer que eles satildeo substancialmente da natureza das
palavras mas o seu bdquomero‟ revela uma completa incompreensatildeo do que o nosso
mundo cotidiano consiste (CP 8 sect 191 1904)231
Para finalizar Peirce indica que as causas finais possuem trecircs caracteriacutesticas elas satildeo
sempre gerais sempre vagas e sempre possuem certa amplitude (longitude) Satildeo gerais como jaacute
vimos porque aquilo que atrai os acontecimentos eacute sempre de certo tipo fruto da mediaccedilatildeo Satildeo
vagas porque nem o modo de sua realizaccedilatildeo nem o resultado estatildeo determinados de antematildeo
Finalmente satildeo amplas porque ainda quando natildeo realizadas plenamente qualquer outra
possibilidade que dela se aproxima jaacute eacute aceitaacutevel
231 () the external world (that is the world that is comparatively external) does not consist of existent objects
merely nor merely of these and their reactions but on the contrary its most important reals have the mode of being
of what the nominalist calls mere words that is general types and would-bes The nominalist is right in saying that
they are substantially of the nature of words but his mere reveals a complete misunderstanding of what our
everyday world consists of
169
CONCLUSAtildeO
() the only possible justification for a hypothesis is that it renders the facts
comprehensible (CP 8 sect 168 1903)
170
A descriccedilatildeo da cosmogonia elaborada por Peirce como uma hipoacutetese que permite ampliar o
horizonte da inteligibilidade humana e garantir a possibilidade da elaboraccedilatildeo de teorias
cientiacuteficas exitosas forneceu os elementos iniciais para a compreensatildeo de sua filosofia Criada
sob a maacutexima loacutegica mais fundamental sintetizada na expressatildeo ldquonatildeo bloquear o caminho da
investigaccedilatildeordquo a cosmogonia peirceana identifica e nomeia as trecircs categorias metafiacutesicas
formadoras do seu sistema ndash acaso existente e lei ndash e a maneira como se combinam para
constituir a realidade revelada pela experiecircncia Tais categorias satildeo os correlatos hipoteacuteticos das
categorias faneroscoacutepicas232
reveladas pela experiecircncia ndash primeiridade secundidade e
terceiridade Uma boa hipoacutetese explicativa que torna o mundo da experiecircncia ndash tal como o
exprerienciamos ndash compreensiacutevel agrave nossa inteligecircncia eacute a de pensaacute-lo como originaacuterio de um
processo evolutivo a partir do acaso absoluto e cujo desenvolvimento se daacute sob a influecircncia da
lei da mente e da causalidade final
Uma consequecircncia dessa hipoacutetese eacute a de que os fenocircmenos satildeo sem exceccedilatildeo o resultado
de um processo contiacutenuo de aumento da complexidade e da regularidade do mundo Peirce indica
que sua filosofia eacute construiacuteda sobre a hipoacutetese de que todos os fenocircmenos satildeo partes de um
continuum Agrave apresentaccedilatildeo das consequecircncias desta hipoacutetese e a teoria assim constituiacuteda o
filoacutesofo daacute o nome de sinequismo e indica que ela sintetiza sua filosofia em uma uacutenica palavra
(cf CP 4 sect 584 1906) A adoccedilatildeo do sinequismo como de qualquer hipoacutetese tem por motivaccedilatildeo
a esperanccedila de tornar os fenocircmenos inteligiacuteveis sendo esta diz Peirce sua principal justificaccedilatildeo
A ideia de continuidade desenvolvida por Peirce eacute original ainda que elaborada a partir da
reflexatildeo das definiccedilotildees presentes nas obras de Aristoacuteteles e Kant e faz uso da noccedilatildeo de
infinitesimal como seu constituinte fundamental O continuum pensado por Peirce natildeo possui
pontos atuais mas apenas pontos virtuais denominados de infinitesimais a partir dos quais
continuidades podem ser desenvolvidas infinitamente O modelo principal do continuum eacute o
tempo e o espaccedilo
232 Peirce por vezes denomina a ciecircncia do que nos aparece como faneroscopia e em outras de fenomenologia
171
O modo de desenvolvimento ou crescimento do continuum recebe o nome de evoluccedilatildeo O
processo evolutivo faz surgir um universo que apresenta caracteriacutesticas de espontaneidade e
liberdade manifestas em sua grande variedade e novidade mas tambeacutem regularidade expressa
por suas leis Como vimos essas duas caracteriacutesticas cuja origem encontra-se no acaso e na lei
da mente ou lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos satildeo necessaacuterias para que se possa construir teorias que
natildeo postulem o incognosciacutevel nem produzam uma imagem congelada do universo como aquela
oferecida pelo mecanicismo De um lado a diversidade e a novidade satildeo constatadas tanto por
meio de certas ciecircncias como a biologia e a paleontologia mas tambeacutem pela atitude de qualquer
pessoa que olhe para o mundo com atenccedilatildeo e sem preconceitos A diversidade diz Peirce eacute o
aspecto mais marcante que a experiecircncia nos revela Do outro lado as regularidades tambeacutem se
impotildeem na observaccedilatildeo principalmente para aqueles que desenvolveram grande poder de
abstraccedilatildeo e aprenderam a reconhecer nos mais variados fenocircmenos certos traccedilos que se repetem
Contudo ainda que as regularidades estejam atuando continuamente e sob o efeito da lei da
mente tornando-se mais e mais regular nunca atingem o status de absolutas A atualizaccedilatildeo de
qualquer lei eacute o momento da interferecircncia do acaso que pode ser imperceptiacutevel em certos
fenocircmenos e marcante em outros
A possibilidade de pensarmos um universo que se desenvolve sob a atuaccedilatildeo de princiacutepios
incognosciacuteveis eacute um caminho vedado pela filosofia peirceana Na medida em que a filosofia eacute
uma atividade intelectual que procura tornar a experiecircncia compreensiacutevel a postulaccedilatildeo do
incognosciacutevel eacute a negaccedilatildeo do proacuteprio empreendimento racional Se o universo entretanto fosse
tal como descrito pelo mecanicismo ou bdquonecessitarismo‟ segundo o termo empregado pelo autor
isto eacute completamente determinado por leis absolutas natildeo poderia apresentar as caracteriacutesticas
reveladas pela experiecircncia
Em acreacutescimo agrave tarefa de tornar o mundo em todos os seus detalhes inteligiacutevel pode-se
verificar no surgimento de teorias cientiacuteficas que tratam especificamente de fenocircmenos
irreversiacuteveis uma outra fonte de motivaccedilatildeo para a constituiccedilatildeo de uma filosofia evolutiva que
tem por base uma matriz ontoloacutegica indeterminista como vimos no terceiro capiacutetulo desta tese
172
Uma das tarefas a que nos propomos realizar neste trabalho foi a de compreender o lugar da
cosmogonia proposta por Peirce no interior de seu sistema filosoacutefico A hipoacutetese que motivou
essa investigaccedilatildeo foi a de que sua cosmogonia desempenha um papel importante na validaccedilatildeo do
empreendimento cientiacutefico A constituiccedilatildeo de uma ciecircncia adequada agrave determinaccedilatildeo de uma
conduta racional para o futuro pareceu-nos desde o iniacutecio o alvo que Peirce mirava Vimos no
capiacutetulo trecircs sobre a evoluccedilatildeo de que maneira essa hipoacutetese serve ao propoacutesito de impedir o
regresso infinito das explicaccedilotildees substituindo uma perspectiva (que poderiacuteamos denominar de
bdquofundacionista‟) por outra mais adequada construiacuteda em moldes geneacuteticos
Outro grande problema sobre o qual Peirce se debruccedilou durante muitos anos de sua
investigaccedilatildeo foi o de justificar a esperanccedila de que as hipoacuteteses poderiam de alguma maneira ser
refinadas a ponto de proporem explicaccedilotildees aceitaacuteveis para os fenocircmenos da experiecircncia O
primeiro candidato proposto como capaz de desempenhar esta funccedilatildeo foi a induccedilatildeo que no
entanto apoacutes uma vigorosa anaacutelise mostrou-se muito eficaz quanto agrave tarefa de eliminar hipoacuteteses
equivocadas mas completamente ineficaz quanto agrave tarefa de nos deixar mais proacuteximos de uma
explicaccedilatildeo verdadeira do mundo da experiecircncia A abduccedilatildeo surge entatildeo como a uacutenica esperanccedila
para a realizaccedilatildeo da ciecircncia Se a ciecircncia eacute possiacutevel eacute no momento da elaboraccedilatildeo das hipoacuteteses a
serem testadas que a capacidade humana de conhecer deve se manifestar Eacute a hipoacutetese ela
mesma que deve nos colocar na boa direccedilatildeo A suposta capacidade autocorretiva da induccedilatildeo
mostrou-se uma ilusatildeo
A abduccedilatildeo eacute descrita como um dos trecircs tipos de raciociacutenios loacutegicos contudo Peirce eacute muito
claro na indicaccedilatildeo de que ela natildeo passa de uma espeacutecie de adivinhaccedilatildeo desse modo
eminentemente faliacutevel sem qualquer garantia de que a hipoacutetese proposta seraacute a melhor
Entretanto o filoacutesofo jaacute constatava os avanccedilos que a ciecircncia do seu tempo havia atingido e natildeo
poderia haver outra fonte aleacutem da abduccedilatildeo que possui exclusividade heuriacutestica no seu sistema A
efetividade da abduccedilatildeo eacute explicada de iniacutecio a partir de uma perspectiva evolucionista um
instinto para o conhecimento que teria se desenvolvido a partir da necessidade de modelar a
conduta adequada para a sobrevivecircncia
173
A perspectiva evolutiva no entanto dificilmente pode ser aceita como uma explicaccedilatildeo
adequada para a elaboraccedilatildeo de teorias que vatildeo muito aleacutem daquilo que diz respeito agrave necessidade
de sobrevivecircncia humana A causa final entendida como o tipo de causalidade no qual o todo
chama por suas partes (cf CP 1 sect 220 1902) ou evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902) pode ser vista
natildeo apenas como o princiacutepio que deu origem e continua atuando atualmente na constituiccedilatildeo do
universo como tambeacutem o princiacutepio por meio do qual o ser humano fruto do mesmo processo
evolutivo consegue adivinhar as boas hipoacuteteses explicativas
Desse modo o que Peirce faz ao elaborar a hipoacutetese que explica a origem a
desenvolvimento do universo vai aleacutem da criaccedilatildeo de uma cosmogonia O filoacutesofo identifica um
princiacutepio sob o qual o universo se desenvolveu ndash a causalidade final cujo principal efeito indica
Peirce eacute a de tornar o universo mais razoaacutevel desenvolver a sua razoabilidade concreta (cf CP
1 sect 602 1903 CP 1 sect 615 1903)
A perspectiva evolucionaacuteria de Peirce prevecirc que quanto ao ser humano o futuro traraacute por
meio do desenvolvimento do conhecimento racional do mundo a possibilidade do
estabelecimento de condutas mais e mais autocontroladas quanto ao universo o futuro muito
mais amplo traraacute a crescente influecircncia da lei na determinaccedilatildeo de cada evento Em um futuro
suficiente distante as regularidades estaratildeo tatildeo presentes que impossibilitaratildeo a existecircncia da
vida manifestaccedilatildeo por excelecircncia da espontaneidade cada acontecimento seraacute fundamentalmente
determinado pela atuaccedilatildeo das leis em um universo que poderia ser comparado a um imenso
cristal Essa descriccedilatildeo como vimos eacute apresentada por Peirce em sua cosmogonia (cf CP 6 sect 33
1891) e parece indicar que a cristalizaccedilatildeo dos haacutebitos no futuro distante do universo corresponde
agrave realizaccedilatildeo da razoabilidade concreta Entretanto se esta interpretaccedilatildeo estaacute correta o estado
final a que tende o universo eacute aquele descrito pelos necessitarista e muito criticado por Peirce
como vimos A alternativa que nos parece mais adequada e coerente ao conjunto das ideias
peirceanas algumas delas apresentadas neste trabalho eacute a de pensar as categorias como
inesgotaacuteveis e atuantes em qualquer momento do desenvolvimento do universo propiciando o
infinito crescimento da ordem e da diversidade A filosofia de Peirce pode ser entendida como a
tentativa de mostrar o modo como essas duas caracteriacutesticas inerentes agrave nossa experiecircncia do
174
mundo ndash a diversidade e a regularidade ndash satildeo compatibilizadas na concepccedilatildeo de uma matriz
ontoloacutegica indeterminista mas geradora de ordem
175
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Autorizo a reproduccedilatildeo e divulgaccedilatildeo total ou parcial deste trabalho por
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pesquisa desde que citada a fonte
Vicentini Max Rogeacuterio
O papel da causalidade final na cosmologia de Charles Sanders
Peirce Max Rogeacuterio Vicentini - 2011-
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Tese (Doutorado) Universidade de Satildeo Paulo 2011 Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo
Orient Prof Dr Pablo Rubeacuten Mariconda
1 Cosmologia
Nome VICENTINI Max Rogeacuterio
Tiacutetulo O papel da causalidade final na cosmologia de Charles Sanders Peirce
Tese apresentada agrave Faculdade de Filosofia Letras
e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo
Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em
Filosofia
Aprovado em
Banca Examinadora
Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________
Julgamento ___________ Assinatura ______________
Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________
Julgamento ___________ Assinatura ______________
Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________
Julgamento ___________ Assinatura ______________
Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________
Julgamento ___________ Assinatura ______________
Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________
Julgamento ___________ Assinatura ______________
DEDICATOacuteRIA
Ao meu pai Armando Vicentini in memoriam
agrave minha matildee Aparecida Giraldeli Vicentini
e aos amigos presentes e ausentes
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo ao Professor Dr Pablo Rubeacuten Mariconda pelo tempo dedicado a minha
orientaccedilatildeo e ao professor Dr Michel Paty cujos cursos e conversas expandiram a minha
compreensatildeo sobre o tema desta tese e suas relaccedilotildees com problemas mais amplos e atuais bem
como por sua disposiccedilatildeo em me orientar no periacuteodo de pesquisa junto agrave Universiteacute Paris VII ndash
Denis Diderot e agrave equipe Sphere
Agrave CAPES pela bolsa que me permitiu passar um ano pesquisando em Paris
Aos membros da banca de qualificaccedilatildeo pela disponibilidade leitura atenta e boas sugestotildees
Ao setor de capacitaccedilatildeo docente da Proacute-Reitora de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo e aos
professores do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Maringaacute que apoiaram e
aceitaram meu pedido de afastamento para a realizaccedilatildeo desta tese
Aos meus antigos professores Lauro Nice e Betty cujas influecircncias foram decisivas para a
realizaccedilatildeo deste trabalho
Aos meus amigos pelo incentivo leitura e discussotildees do texto aqui apresentado Aos
integrantes do Grupo de Pesquisa coordenado pelo Prof Pablo especialmente a Adriana
Belmonte
Agrave minha matildee Aparecida e minhas irmatildes pela alegria que sempre acontece quando estamos
juntos
Quero agradecer especialmente ao Douglas Ameacutelia Sandro Liacutegia Bima Wagner Nei
Ivan Ernane e Rosacircngela que tornaram esses anos de pesquisas mais leves ou mais intensos ou
ambos
RESUMO
VICENTINI M R O papel da causalidade final na cosmologia de Charles Sanders Peirce
2011 182 f Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas
Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2011
Trata-se de uma proposta de investigaccedilatildeo das ideias cosmoloacutegicas de Charles S Peirce
particularmente das que dizem respeito agrave pertinecircncia da inclusatildeo de esquemas de explicaccedilatildeo que
faccedilam uso da causalidade final como instacircncia determinante do desenvolvimento dos fenocircmenos
naturais Anterior agrave avaliaccedilatildeo desse tipo de explicaccedilatildeo cabe uma investigaccedilatildeo sobre as
caracteriacutesticas mais relevantes de seu pensamento que o proacuteprio autor julgava construiacutedo
arquitetonicamente Com esse objetivo centramos a anaacutelise no conceito de continuum que pode
ser visto como fundamental para o desenvolvimento da obra de Peirce Eacute o estudo do continuum
que permitiraacute e conduziraacute a investigaccedilatildeo das categorias ontoloacutegicas peirceanas acaso existente e
lei A passagem do acaso agrave lei isto eacute a proacutepria origem do cosmos se daacute por um processo
evolutivo que tem na lei da mente seu principal motor A lei da mente por sua vez atua de modo
finaliacutestico tornando mais provaacutevel o desenvolvimento dos fenocircmenos em certas direccedilotildees
restringindo assim o horizonte das possibilidades sem contudo esgotaacute-lo
Palavras-chave cosmologia sinequismo abduccedilatildeo teleologia
ABSTRACT
VICENTINI M R The role of final causality in the cosmology of Charles Sanders Peirce
2011 182 f Thesis (PhD) - Faculty of Philosophy Letters and Sciences University of Sao
Paulo Sao Paulo 2011
This thesis is about the cosmological ideas of Charles S Peirce particularly those concerning the
relevance of the inclusion of explanatory schemes that make use of final causality as an instance
determinant of the development of natural phenomena Before the evaluation of this type of
explanation it is important to perform an investigation into the most relevant features of his
thought which the author believed was architecturally built With this aim we focus on the
concept of the continuum which can be seen as fundamental to the development of the work of
Peirce It is the study of the continuum that will lead to investigation of Peirces ontological
categories chance existent and law The passage of chance to law that is the very origin of the
cosmos is given by an evolutionary process in which the law of the mind is its main engine The
law of the mind in turn acts in a finalistic way making more probable the development of
phenomena in certain directions thus restricting the horizon of possibilities without however
exhausting it
Keywords cosmology synechism abduction teleology
LISTA DE ABREVIACcedilOtildeES
CP x sect y - CCollected Papers of Charles Sanders Peirce volume x paraacutegrafo y ano de composiccedilatildeo
W x p y - Writings of Charles S Peirce A Chronological Edition volume x p y ano de
composiccedilatildeo
CN x p y
MS x
-
-
Contributions to The Nation volume x p y (Alguns estudiosos usam N)
Manuscritos nuacutemero do manuscrito
EP x p y - The Essential Peirce Selected Philosophical Writings volume x p y
HP x py - Historical Perspectives on Peirces Logic of Science A History of Science volume x
p y
NEM x p y - The New Elements of Mathematics by Charles S Peirce volume x p y (Alguns
estudiosos usam NE)
CD p x Century Dictionary p x (Alguns estudiosos usam C)
Sumaacuterio
INTRODUCcedilAtildeO 11
CAPIacuteTULO 1 - A HIPOacuteTESE COSMOLOacuteGICA 28
11 NAtildeO BLOQUEAR O CAMINHO DA INVESTIGACcedilAtildeO 29
12 UMA ESTOacuteRIA BIZARRA 38
121 O NADA 41
122 O ACASO 50
123 A DOUTRINA DA NECESSIDADE 54
13 A LEI 64
131 O IDEALISMO OBJETIVO 65
132 A LEI DA MENTE 66
CAPIacuteTULO 2 - O SINEQUISMO 68
21 O CONTINUUM E A EPISTEMOLOGIA 71
211 OS INFINITESIMAIS E O CONTINUUM 74
22 OS QUATRO ESTAacuteGIOS DO DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE CONTINUUM 78
221 O PERIacuteODO PREacute-CANTORIANO 81
222 PERIacuteODO CANTORIANO 83
223 PERIacuteODO KANTIANO 86
CAPIacuteTULO 3 - A EVOLUCcedilAtildeO 89
31 ASPECTOS EPISTEMOLOacuteGICOS DA HIPOacuteTESE EVOLUCIONAacuteRIA 90
32 AS RAIacuteZES NA CIEcircNCIA DO SEacuteCULO XIX 94
33 OS TREcircS TIPOS DE EVOLUCcedilAtildeO 104
34 OS TREcircS MODELOS DE EXPLICACcedilAtildeO 106
35 A EVOLUCcedilAtildeO E A COSMOLOGIA 107
36 O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA EVOLUCcedilAtildeO 109
37 EVOLUCcedilAtildeO E AUTOCONTROLE 111
CAPIacuteTULO 4 - A ABDUCcedilAtildeO 115
41 ABDUCcedilAtildeO E CRIACcedilAtildeO DE HIPOacuteTESES EXPLICATIVAS 116
42 OS TREcircS TIPOS DE RACIOCIacuteNIO 128
CAPIacuteTULO 5 - A CAUSALIDADE FINAL 140
51 O MODO DE ATUACcedilAtildeO DA CAUSALIDADE FINAL 143
52 CAUSALIDADE FINAL E CAUSALIDADE EFICIENTE 151
53 CAUSA FINAL E EVOLUCcedilAtildeO ndash AacuteGAPE OU O AMOR CRIATIVO 159
54 A ORIGINALIDADE DA CAUSA FINAL PEIRCEANA 163
55 CAUSA FINAL E CLASSIFICACcedilAtildeO NATURAL 167
CONCLUSAtildeO 169
REFEREcircNCIAS 175
11
INTRODUCcedilAtildeO
Hume whose cogitations led up to the recognition of Association as the one law of
mind most judiciously remarks This uniting principle among ideas is not to be
considered as an inseparable connexion for that has been already excluded from the
imagination Nor yet are we to conclude that without it the mind cannot join two
ideas for nothing is more free than that faculty but we are only to regard it as a gentle
force which commonly prevailsrdquo That phrase a gentle force which commonly
prevails describes the phenomenon to perfection (CP 7 sect 389 1893)
12
A obra de Charles Sanders Peirce (1839 ndash 1914) eacute admiraacutevel pela complexidade rigor e
abrangecircncia Peirce eacute considerado um dos maiores senatildeo o maior dos filoacutesofos americanos e
poucos foram os campos que permaneceram fora de seu interesse Mesmo tendo se formado em
Quiacutemica e trabalhado durante muitos anos na United States Coast and Geodetic Survey1 Peirce
foi uma dessas mentes inquietas que sobre tudo investigou e que sobre quase tudo escreveu
fazendo contribuiccedilotildees originais e relevantes para vaacuterias aacutereas do saber
Como intelectual Peirce considerava-se um loacutegico tido pelos historiadores como um dos
pais da loacutegica moderna desenvolveu a loacutegica das relaccedilotildees e formulou a loacutegica dos grafos
existenciais mas destacou-se tambeacutem nos estudos da matemaacutetica (teoria da probabilidade) e
sobretudo na filosofia das ciecircncias para a qual contribuiu com uma nova teoria dos argumentos
dedutivos indutivos e abdutivos Fundador do pragmatismo norte-americano sua grande
contribuiccedilatildeo agrave filosofia foi a criaccedilatildeo da semioacutetica ou a loacutegica segundo seu entendimento
Como aponta Silveira (1982 p 78) Peirce foi antes de tudo um cientista Um cientista
entretanto com algumas peculiaridades proacuteprias inclusive na formaccedilatildeo que se recebia a sua
eacutepoca Antes da universidade recebera o ensino claacutessico e como era comum as atividades em
casa sobrepujavam as desenvolvidas na escola Filho de um professor de Matemaacutetica de Harvard
desde cedo habituou-se agrave investigaccedilatildeo e agrave reflexatildeo sob a orientaccedilatildeo de seu proacuteprio pai que via
nele o potencial de um gecircnio
Peirce foi nomeado professor da entatildeo receacutem-fundada Universidade John Hopkins em 1879
mas em 1884 teve seu contrato de trabalho sumariamente cancelado em circunstacircncias obscuras
Natildeo tendo mais conseguido manter qualquer posto acadecircmico isso em prejuiacutezo segundo Nagel
(1982) do desenvolvimento da Filosofia posterior e de sua proacutepria Filosofia Peirce tinha entatildeo
quarenta e quatro anos
1 Eacute uma agecircncia federal dos Estados Unidos que define e gerencia um sistema de coordenadas nacional fornecendo a
base para o transporte e a comunicaccedilatildeo elaborando mapas e graacuteficos e um grande nuacutemero de aplicaccedilotildees da ciecircncia e
da engenharia Nela Peirce trabalhou de 1859 a 1891
13
O conjunto de suas ideias jaacute foi algumas vezes comparado a um labirinto com muitas
entradas cujo fio de Ariadne que pode conduzir o leitor a salvo por entre suas diferentes
estruturas foi indicado pelo proacuteprio autor como sendo o sinequismo2 a teoria que identifica a
continuidade como uma hipoacutetese fundamental para toda investigaccedilatildeo nas palavras de Peirce
ldquo() a chave mestra que dizem-nos os adeptos destranca os misteacuterios da filosofiardquo (CP 1 sect 163
1897)3
Nesta introduccedilatildeo faremos um esboccedilo do mapa que nos conduziu durante essa investigaccedilatildeo
O alvo determinado desde o iniacutecio foi o de compreender o papel que a causalidade final
desempenha na cosmologia de Peirce A aproximaccedilatildeo natildeo se deu de modo direto se o alvo estava
determinado o mesmo natildeo se poderia dizer do caminho que foi sendo construiacutedo aos poucos
sedimentando-se ao longo dos anos da pesquisa A eleiccedilatildeo dos temas a proacutepria investigaccedilatildeo e a
sua apresentaccedilatildeo foram objeto de longa reflexatildeo O caminho mostrou-se cheio de surpresas e de
natildeo raros momentos de indecisotildees O resultado que agora apresento nesta tese traz a marca da
falibilidade que Peirce considerava caracteriacutestica tanto dos nossos processos de pensamento
quanto daqueles que deram origem e permanecem atuando na constituiccedilatildeo dos mais diferentes
aspectos do cosmos e que eacute intriacutenseco agrave proacutepria maneira de atuaccedilatildeo da causalidade final como
veremos agrave frente O processo de criaccedilatildeo de empatia com a obra de Peirce constituiu-se
lentamente e as boas hipoacuteteses de interpretaccedilatildeo ndash ao menos eacute nossa esperanccedila de que as que aqui
lanccedilamos o sejam ndash surgiram aos poucos
Eacute possiacutevel extrair das ideias de Peirce importantes indicaccedilotildees sobre a maneira pela qual
uma investigaccedilatildeo deve ser conduzida Natildeo podemos esquecer que sua grande realizaccedilatildeo consiste
na elaboraccedilatildeo de um meacutetodo adequado para orientar a conduta dos investigadores nos mais
variados campos incluindo aiacute o da pesquisa acadecircmica Essa caracterizaccedilatildeo parece ser de grande
auxiacutelio para compreendermos o desenvolvimento de sua proacutepria obra bem como para lanccedilar
alguma luz sobre o proacuteprio processo de elaboraccedilatildeo deste trabalho Toda investigaccedilatildeo eacute marcada
2 Sinequismo do grego synecheacutes eacute o nome que Peirce daacute agrave sua teoria da continuidade bem como ao seu sistema
filosoacutefico 3 () it is the master key which adepts tell us unlocks the arcana of philosophy
14
pelo objetivo que pode ou natildeo estar determinado de maneira clara A determinaccedilatildeo preacutevia natildeo
significa que o caminho e o resultado especiacutefico possam ser traccedilados e previstos nos miacutenimos
detalhes As surpresas que podem produzir desvios da rota eacute tambeacutem condiccedilatildeo para o crescimento
da compreensatildeo do tema ou das ideias do autor Natildeo se fechar ao inesperado eacute condiccedilatildeo para a
realizaccedilatildeo da pesquisa
Estar disposto a abrir matildeo de suas conclusotildees e ideias tatildeo logo a experiecircncia mostre que satildeo
inadequadas eacute a atitude mais honesta do verdadeiro cientista aquele que investiga por um
ldquoardente amor agrave verdaderdquo como diria Peirce (CP 8 notas 1900) Eacute desse modo que a
compreensatildeo aqui apresentada das ideias peirceanas sobre a causalidade final foi sendo formada
natildeo sem surpresas e desvios O mesmo movimento pode ser visto na obra do autor que natildeo se
nega a dialogar com as evidecircncias ainda que contraacuterias e em redefinir suas ideias com fins agrave
determinaccedilatildeo de um meio mais adequado ao fim almejado Na interpretaccedilatildeo aqui defendida o
fim maior de obra de Peirce eacute a defesa da possibilidade de uma ciecircncia feita a partir da
experiecircncia com todas as dificuldades envolvidas nas duas ideias
Embora se definisse como um loacutegico e tenha tido formaccedilatildeo em Quiacutemica poucas aacutereas do
saber entre as jaacute estabelecidas em seu tempo ou em processo de constituiccedilatildeo ficaram fora do
escopo de seu interesse e investigaccedilatildeo Essa caracteriacutestica estaacute em conformidade com a maacutexima
que anima seu pensamento ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo (CP 6 sect 64 1892 sect 273
1893) Podemos indicar dois traccedilos caracteriacutesticos de sua produccedilatildeo de um lado percebemos que
para Peirce nada pode ser aceito como um dado (cf CP 6 sectsect 35-65 1892) resistente portanto a
toda investigaccedilatildeo ou seja isso equivale a dizer que a pesquisa natildeo conhece limites e que para
tudo que possa ser problematizado deve haver um processo adequado de investigaccedilatildeo por meio
do qual uma resposta possa ser obtida Naturalmente uma consequecircncia desta tese eacute a de que seu
alcance ultrapassa o puramente epistemoloacutegico e indica que a ontologia dos processos naturais
possua em si mesma um aspecto noeacutetico De outro lado a busca do meacutetodo adequado (cf CP 5
sectsect 358-87 1877) e sua aplicaccedilatildeo aos diferentes campos do saber em estreita relaccedilatildeo com a tese
sinequista ao lado de sua inesgotaacutevel curiosidade sugerem uma hipoacutetese explicativa para a
abrangecircncia dos objetos estudados pelo autor
15
O rigor necessaacuterio ao meacutetodo que deve garantir a possibilidade de realizaccedilatildeo da ciecircncia
parece-nos ser o propoacutesito primaacuterio e sempre presente no desenvolvimento do pensamento
peirceano Em funccedilatildeo dessa preocupaccedilatildeo que eacute uma caracteriacutestica recorrente em muitos de seus
escritos e em consonacircncia com o juiacutezo que o proacuteprio autor fazia de sua obra discordamos
daqueles inteacuterpretes que encontram dificuldade em atribuir-lhe uma unidade (cf GOUDGE
1950 GALLIE 1952 MOORE and ROBIN 1964 WIENER 1964 entre outros) Natildeo haacute duacutevida
de que o seu pensamento evoluiu de que suas teorias sofreram alteraccedilotildees e de que suas hipoacuteteses
amadureceram no periacuteodo que compreende sua intensa produccedilatildeo e que se estende por mais de
cinquenta anos Natildeo obstante a unidade que lhe pode ser atribuiacuteda natildeo eacute a de um sistema cujos
axiomas encontram-se presentes desde os primeiros escritos e cujas implicaccedilotildees satildeo apenas
apresentadas de maneira mais clara agrave medida que sua obra vai se constituindo Como descrito
acima na atividade do cientista que natildeo se furta ao embate com a experiecircncia quando submete
suas ideias agrave prova dos experimentos agraves vezes se depara com resultados que a princiacutepio natildeo
haviam sido cogitados Peirce natildeo os ignora e ao elaborar novos instrumentos para trataacute-los vecirc-se
na situaccedilatildeo em que tem de abrir matildeo de certos aspectos de seu pensamento inicial com o objetivo
de tornar seu sistema coerente Assim a unidade que se encontra eacute decorrente da atitude frente
aos objetos do conhecimento mais do que daquela referente aos conteuacutedos de suas teorias que
como reconhece o autor como um homem de ciecircncia satildeo sempre provisoacuterios e hipoteacuteticos
Em alguns momentos do periacuteodo que compreende sua longa e extensa produccedilatildeo o meacutetodo
eacute diretamente tematizado e em outros parece estar ausente de suas preocupaccedilotildees mais imediatas
para depois de alguns anos surgir novamente Quanto a este aspecto Peirce parece retomar o
projeto da filosofia moderna Como veremos em seus primeiros textos debate diretamente com
Descartes a quem critica principalmente o estabelecimento da intuiccedilatildeo imediata clara e distinta
dos objetos como criteacuterio de distinccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso e como fundamento de toda
atividade cognitiva (cf CP 5 sectsect 264-5 1868 CP 5 sectsect 389-92 1878) Um de seus primeiros
passos em direccedilatildeo agrave compreensatildeo do pensamento cientiacutefico eacute a elaboraccedilatildeo de uma nova teoria da
accedilatildeo mental baseada na ideia de que toda cogniccedilatildeo eacute mediada (cf CP 5 sect 4 1868) Como natildeo
temos acesso imediato aos objetos nosso conhecimento traraacute a marca do provisoacuterio e do faliacutevel
fruto de uma seacuteria infinita de interpretaccedilotildees e ao mesmo tempo implicando que o objeto natildeo
16
pode ser absolutamente conhecido jaacute que o seu modo de ser eacute vago (cf CHAUVIREacute 1995 e
TIERCELIN 1993a e 1993b) As teorias produzidas pelo ser humano seratildeo deste modo faliacuteveis
e construiacutedas a partir de sua proacutepria experiecircncia do mundo tanto o externo que se lhe impotildee e
resiste como o interno cujos processos de constituiccedilatildeo natildeo satildeo de maneira alguma heterogecircneos
Aqui a hipoacutetese do continuum requer a coerecircncia do autor Natildeo haacute descontinuidade entre o
mundo do pensamento e o mundo real Ateacute mesmo esta distinccedilatildeo soa artificial e inadequada O
elemento central na perspectiva peirceana eacute o pensamento (cf CN 1 p 200 1893) A fim de fazer
avanccedilar sua compreensatildeo dos processos naturais e confirmar suas hipoacuteteses acerca do
funcionamento dos processos de constituiccedilatildeo de nossas teorias Peirce encontra no haacutebito ou
tendecircncia agrave aquisiccedilatildeo de haacutebitos um elemento unificador fundamental e que elimina a
descontinuidade entre as leis do pensamento e as leis da natureza que segundo essa perspectiva
natildeo diferem senatildeo pelos diferentes graus de rigidez do haacutebito que ambas em uacuteltima instacircncia
satildeo diante da unicidade existente entre homem e mundo a construccedilatildeo da ciecircncia eacute o
desenvolvimento de uma capacidade que nos eacute natural Em um texto de 1893 Peirce diz que ldquo()
minha longa investigaccedilatildeo dos processos do raciociacutenio cientiacutefico conduziu-me muitos anos atraacutes
agrave conclusatildeo de que a ciecircncia natildeo eacute nada mais do que o desenvolvimento de nossos instintos
naturaisrdquo (CP 6 sect 604 1893)4
Muitas ideias propostas ou retomadas por Peirce tecircm o dom de surpreender o leitor que se
aproxima de sua obra pela primeira vez e mesmo agravequeles que dela tecircm um conhecimento parcial
Entre essas ideias julgamos apropriado incluir a de causalidade final (cf CP 1 sect 211 sect 250 sect
269 1902 CP 6 sect 66 sect 101 1898) O espanto ao ler em seus textos uma defesa da necessidade
da causalidade final natildeo apenas no acircmbito das explicaccedilotildees mas tambeacutem como princiacutepio atuante
nos processos naturais eacute decorrente de certa imagem fixada na tradiccedilatildeo ocidental ao menos
desde Bacon5 de julgaacute-la obscurantista e contraacuteria ao empirismo Andrew Woodfield (1976 p 3)
4 () my long investigation of the logical process of scientific reasoning led me many years ago to the conclusion
that science is nothing but a development of our natural instincts 5 Como aponta Bacon a investigaccedilatildeo sobre causas finais eacute esteacuteril e como uma virgem consagrada a Deus nada
produz (cf SPEDDING 1989 p 571)
17
afirma que ldquoA ciecircncia moderna eacute no seu todo hostil agraves explicaccedilotildees teleoloacutegicasrdquo6 Se
considerarmos que Peirce foi educado desde muito jovem como loacutegico e cientista e que desse
modo estava familiarizado com o meacutetodo cientiacutefico que vigorava em seu tempo sua insistecircncia
na realidade da causalidade final pode parece fora de lugar
Se o juiacutezo de Aristoacuteteles sobre a causalidade final era de que ela consistia em um aspecto
inerente ao mundo (cf CP 1 sect 211 1902) o mesmo natildeo se pode dizer do juiacutezo de um cientista
do seacuteculo XIX Para os cientistas do seacuteculo XIX como para os cientistas do nosso tempo a
causalidade final parece envolver ao menos trecircs aspectos que lhe dificultam a concessatildeo da
cidadania cientiacutefica parece que ela envolve a ideia de (1) que existem eventos individuais no
futuro (2) que exercem algum tipo de influecircncia causal sobre o presente e (3) que tecircm o poder de
determinar um curso preciso de accedilatildeo a fim de que possam ser realizados (cf HULSWIT 1996 p
200-2) em outras palavras pode-se notar que os aspectos aqui levantados sinalizam para a
concepccedilatildeo de causalidade final como causalidade eficiente invertida
Segundo a compreensatildeo de Peirce (cf EP 2 p 315-6 1904 CP 1 sect 211 1902) as causas
podem ser divididas em dois grandes grupos como afirma jaacute havia sido indicado por
Aristoacuteteles aquele que compreende as eficientes ou eneacutergicas e aquele que compreende as ideais
ou finais A insuficiecircncia da utilizaccedilatildeo de esquemas explicativos que faccedilam uso de apenas um dos
dois grupos eacute claramente apontada por Peirce Em 1902 no texto ldquoA detailed classification of the
Sciencerdquo afirma que ldquoA causa final sem a causa eficiente eacute inoacutecua () A causa eficiente sem a
causa final entretanto eacute pior do que inoacutecua em muito eacute mero caos e o caos natildeo eacute nem mesmo
caos sem a causa final eacute um nada vaziordquo (CP 1 sect 211 1902)7
Ao tratar da causa final reconhece sua diacutevida com Aristoacuteteles e julga modestamente ser um
seguidor do grande filoacutesofo Poreacutem o juiacutezo que faz da filiaccedilatildeo de suas ideias natildeo parece ser
6 Modern Science is on the whole hostile to teleological explanation
7 Final causation without efficient causation is helpless () Efficient causation without final causation however is
worse than helpless by far it is mere chaos and chaos is not even so much as chaos without final causation is blank
nothing
18
totalmente correto Sob alguns aspectos podemos afirmar que Peirce construiu uma concepccedilatildeo
original de causalidade final A apresentaccedilatildeo da originalidade de seu conceito e do papel que
desempenha no interior de sua cosmologia eacute o objetivo desta tese e que espero ter conseguido
realizar na exposiccedilatildeo que se segue Mostro neste trabalho que a causalidade final desempenha um
papel duplo ao mesmo tempo em que eacute uma exigecircncia da teoria da explicaccedilatildeo cientiacutefica tambeacutem
eacute um agente real do crescimento do universo pois atuante na determinaccedilatildeo de vaacuterios processos
naturais Dessa forma a investigaccedilatildeo tem a pretensatildeo de abarcar suas implicaccedilotildees tanto para a
epistemologia peirceana quanto para sua cosmologia
O objetivo do primeiro capiacutetulo eacute apresentar a hipoacutetese cosmoloacutegica peirceana considerada
por alguns comentadores como a ovelha negra ou o elefante branco do seu sistema (cf GALLIE
1952 p 215) localizaacute-la no interior de sua obra e selecionar os aspectos que melhor ilustram a
atuaccedilatildeo da causalidade final na constituiccedilatildeo do cosmo Jaacute nesse capiacutetulo apresentamos a hipoacutetese
que identifica a causalidade final como elemento necessaacuterio para a possibilidade de constituiccedilatildeo
de procedimentos cientiacuteficos que nos permitam conhecer a natureza e ao mesmo tempo moldar
uma conduta adequada para o futuro por meio da nossa capacidade de autocontrole (cf CP 5 sect
538 1902)
O imperativo que manda ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo sintetiza um aspecto
central do projeto de Peirce A primeira lei da loacutegica8 como o autor costuma denominaacute-la
expressa sua insatisfaccedilatildeo com relaccedilatildeo ao posicionamento da ciecircncia de seu tempo frente a alguns
princiacutepios isto eacute as leis naturais que eram entatildeo tomados como dados portanto
inquestionaacuteveis e alheios agrave investigaccedilatildeo Peirce reclama principalmente uma abordagem racional
para o estatuto das leis cientiacuteficas tomadas entatildeo como princiacutepios a partir dos quais as ciecircncias
satildeo construiacutedas mas que permaneciam de fora desse processo Ora para fornecer uma explicaccedilatildeo
racional do porquecirc de tais e tais leis atuarem no nosso universo ou seja para que a sua
8 Nota-se que o termo bdquoloacutegica‟ na obra peirceana tem um sentido bem mais amplo do que aquele hoje vigente Peirce
incluiacutea em seus estudos trecircs diferentes ramos por ele denominados de Gramaacutetica Filosoacutefica Loacutegica Criacutetica e
Metodecircutica (cf CP 2 sect 93 1902)
19
postulaccedilatildeo pura e simples natildeo bloqueie o caminho da investigaccedilatildeo o filoacutesofo expande o conceito
de evoluccedilatildeo9 e o utiliza como um princiacutepio loacutegico constituinte de sua hipoacutetese cosmoloacutegica A
hipoacutetese de um cosmo que evolui a partir do puro acaso do nada inicial ndash um continuum de
possibilidades infinitas ndash eacute a que permite explicar as caracteriacutesticas do universo atual sem a
necessidade de tomar seus constituintes como dados como eacute o caso das leis que passam a ser
explicadas como fruto do processo de aquisiccedilatildeo de haacutebitos a que todo universo estaacute submetido
Veremos entatildeo como a hipoacutetese cosmoloacutegica eacute uma consequecircncia da teoria da explicaccedilatildeo e qual
dentro dessa perspectiva eacute seu papel natildeo soacute como um subsiacutedio para o projeto de tornar a ciecircncia
possiacutevel mas tambeacutem como hipoacutetese que torna compreensiacutevel certos fenocircmenos como as accedilotildees
natildeo conservativas de difiacutecil explicaccedilatildeo para a ciecircncia mecanicista (cf CP 7 sect 471-83 1898)
como veremos no capiacutetulo sobre evoluccedilatildeo
A hipoacutetese cosmoloacutegica que eacute apresentada na forma de uma cosmogonia descreve a
passagem de um continuum de possibilidades absolutamente indeterminadas para outro
continuum o do geral Aqui entra em cena o elemento da continuidade que receberaacute nesse
capiacutetulo uma primeira descriccedilatildeo
No segundo capiacutetulo trataremos especificamente da hipoacutetese do continuum que assim
como havia acontecido com a hipoacutetese evolutiva eacute tomada como um princiacutepio da loacutegica (cf CP
6 sect 173 1902) Essa hipoacutetese estaacute desse modo a subsumida agrave tarefa de garantir a
inteligibilidade da natureza A esta doutrina metafiacutesica Peirce daacute o nome de sinequismo Como
aponta Hausman ldquoo sinequismo de Peirce eacute inseparaacutevel da ideia de Peirce de que a condiccedilatildeo
fundamental de inteligibilidade eacute mediaccedilatildeo generalidade e continuidaderdquo (HAUSMAN 1998 p
630) Considerar todas as coisas como sendo contiacutenuas umas agraves outras tem como uma de suas
consequecircncias a de que a individualidade absoluta eacute apenas uma ilusatildeo Desta forma nenhuma
quantidade absoluta pode ser apurada tudo estaacute mergulhado em um mar de indeterminaccedilatildeo cujo
princiacutepio constituinte eacute diz-nos Peirce o acaso (cf CP 1 sectsect 163-75 1897) Assim duas das
9 Veremos adiante (capiacutetulo III desta tese) que embora a leitura da Origem das espeacutecies de Charles Darwin tenha
exercido uma grande influecircncia sobre o jovem Peirce sua concepccedilatildeo de evoluccedilatildeo era muito mais ampla podendo ser
classificada em trecircs tipos ticaacutestica anancaacutestica e agapaacutestica
20
principais teorias da obra peirceana satildeo relacionadas o tiquismo10
e o sinequismo O problema eacute
colocado de maneira bastante clara por Esposito (1973 p 65) na forma de um dilema ldquoou o
crescimento era real e a filosofia mecacircnica insuficiente ou era uma ilusatildeo e a filosofia
cosmogocircnica ndash o sinequismo ndash desnecessaacuteriardquo
A principal justificativa do sinequismo encontra-se no fato de que fornece uma boa
explicaccedilatildeo para os fenocircmenos serem como satildeo As descontinuidades satildeo vistas por Peirce como
inexplicaacuteveis A hipoacutetese do continuum ajuda entatildeo a evitar a postulaccedilatildeo do incompreensiacutevel no
seio da natureza que algo deva ser considerado como um dado ou um fato uacuteltimo e
consequentemente que a investigaccedilatildeo deva ser suspensa (cf CP 1 sect 175 1897) Aleacutem disso
indica o filoacutesofo ela promove o progresso da ciecircncia na medida em que encoraja os
pesquisadores a natildeo desesperarem diante dos misteacuterios da natureza facultando uma nova maneira
de tratar os fenocircmenos ou seja a aplicaccedilatildeo dos meacutetodos e conceitos de uma ciecircncia a outras Da
mesma forma que vimos no primeiro capiacutetulo Peirce fazer ao empregar conceitos da biologia e
matemaacutetica como princiacutepios da loacutegica
O sinequismo eacute tido por Peirce como uma esperanccedila reguladora (regulative hope) isto eacute
algo cuja existecircncia ainda que natildeo possa ser provada eacute necessaacuteria para a possibilidade da
atividade cientiacutefica Enquanto um princiacutepio da loacutegica ele estabelece um criteacuterio para o tipo de
hipoacutetese que deve ser selecionado para o teste Ele estaacute diretamente relacionado com o princiacutepio
metodoloacutegico que diz que eacute sempre melhor escolher hipoacuteteses que abram espaccedilo para o maior
nuacutemero de possibilidades (cf CP 7 sect 221 1901) Natildeo se trata portanto de uma doutrina
metafiacutesica uacuteltima mas uma hipoacutetese eleita por razotildees metodoloacutegicas e que poderaacute vir a ser
substituiacuteda por alguma formulaccedilatildeo mais fraca caso a experiecircncia assim o exija Ainda assim seria
preferiacutevel diz Peirce uma hipoacutetese que afirme que ldquo() um continuum eacute meramente uma seacuterie
descontiacutenua com possibilidades adicionaisrdquo (CP 1 sect 170 1893)11
agravequela que afirma a existecircncia
de descontinuidades radicais
10 Tiquismo do grego Tycheacute eacute o nome que Peirce daacute agrave sua teoria do acaso como um princiacutepio operante na natureza
(tal como seraacute apresentado no primeiro capiacutetulo desta tese) 11
() a continuum is merely a discontinuous series with additional possibilities
21
A necessidade de introduzir a hipoacutetese do sinequismo indica Esposito (1973) natildeo decorre
da defesa de qualquer tese holista como se poderia pensar antes sua funccedilatildeo primordial eacute
permitir uma abordagem coerente do fenocircmeno do crescimento presente nas mais variadas
expressotildees do que chamamos de universo O crescimento eacute apenas uma outra palavra para
designar a evoluccedilatildeo Se por um lado Peirce exige a continuidade como condiccedilatildeo para a
inteligibilidade por outro funda sua ontologia sobre uma matriz indeterminista que tem no
acaso entendido como vera causa seu princiacutepio de constituiccedilatildeo necessaacuterio agrave abordagem dos
fenocircmenos evolutivos A intromissatildeo do acaso no continuum processo criativo espontacircneo
responsaacutevel pela introduccedilatildeo de novidade no universo produz descontinuidades
A maneira de conciliar esses dois aspectos aparentemente conflitantes mas necessaacuterios agrave
abordagem peirceana parece ser realizada por meio da noccedilatildeo de infinitesimal (cf CP 6 sect 86
1898) Como aponta Hausman (1998) o papel desempenhado pelos infinitesimais na origem da
evoluccedilatildeo tem sido subestimado pelos comentadores de Peirce Ele afirma ldquoO que eacute
imediatamente importante eacute que a noccedilatildeo de infinitesimal parece ser necessaacuteria para tratar dos
componentes constitutivos dos continua que podem evoluir de acordo com uma teleologia
evolucionaacuteriardquo (HAUSMAN 1998 p 630) O problema portanto que devemos tratar eacute o de
conciliar o continuum fonte de inteligibilidade com a presenccedila do acaso introdutora de
novidades o que implica em descontinuidades Uma vez que o continuum eacute sempre geral ou
seja seus componentes natildeo podem ser individuais uma soluccedilatildeo parece ser a de consideraacute-los
como sendo infinitesimais que se tornam dessa maneira portadores da espontaneidade e da
liberdade do acaso Esse processo envolve uma antiga e difiacutecil questatildeo a saber como o geral
produz os particulares ou melhor dizendo como universal e particular se relacionam Sob este
aspecto concordamos com Hausman que faz uma siacutentese do processo ao dizer que
A sugestatildeo de Peirce que indica a maneira pela qual os dois princiacutepios
aparentemente contraacuterios podem ser mantidos eacute propor que os contiacutenuos satildeo
compostos de infinitesimais que satildeo possibilidades (Primeiros) que podem
tornar-se potencialidades ndash que podem tornar-se pontos que podem fugir da
identidade do continuum ao qual eles pertencem antes de tornarem-se
22
potencialidades (HAUSMAN 1998 p 631)
Esta sugestatildeo envolve a distinccedilatildeo natildeo muito frequente entre possiacutevel e potencial que seraacute
elaborada com mais detalhes nesse capiacutetulo Ela parece-nos eacute fundamental para compreender a
relaccedilatildeo entre a continuidade e a causalidade final o objeto de nossa investigaccedilatildeo A discussatildeo do
princiacutepio de individuaccedilatildeo que estaacute aiacute envolvido parece necessitar da consideraccedilatildeo de outro
ingrediente presente na cosmologia peirceana o amor criativo ou aacutegape como eacute denominado por
Peirce (cf CP 6 sect 287 1893)
Chegamos assim ao tema do terceiro capiacutetulo desta tese que trata da evoluccedilatildeo A hipoacutetese
evolucionaacuteria atende em primeiro lugar a uma necessidade de barrar a regressatildeo infinita das
explicaccedilotildees e de alargar tanto quanto possiacutevel o horizonte da inteligibilidade humana portanto
subsumida agrave maacutexima que ordena natildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeo A estrateacutegia de
produzir explicaccedilatildeo com base em conhecimentos jaacute garantidos gera um regresso ao infinito na
medida em que tais conhecimentos tambeacutem devem ser explicados em funccedilatildeo de outros
conhecimentos preacutevios e assim sucessivamente se natildeo se quiser postular arbitrariamente um
fundamento que seria ele proacuteprio carente de explicaccedilatildeo e desse modo refrataacuterio agrave
inteligibilidade A alternativa sugerida por Peirce eacute de considerar os elementos formadores das
explicaccedilotildees como objetos histoacutericos e dessa maneira a hipoacutetese da cosmologia evolutiva eacute
utilizada para garantir a inteligibilidade dos elementos ao propor uma explicaccedilatildeo de sua
formaccedilatildeo isto eacute uma explicaccedilatildeo geneacutetica Especialmente as leis e suas similaridades diz Peirce
soacute podem ser explicadas a partir de uma perspectiva evolutiva (cf CP 6 sect 13 1891)
A evoluccedilatildeo eacute o modo pelo qual o universo cresce fato que se impotildee agrave experiecircncia e
segundo Peirce as explicaccedilotildees que tecircm por base apenas a atuaccedilatildeo da causalidade eficiente satildeo
incapazes de abarcaacute-lo (CP 1 sect 220 1902) O modo de efetivaccedilatildeo da evoluccedilatildeo confunde-se
assim com a proacutepria maneira da causalidade final atuar Compreendendo o processo de evoluccedilatildeo
seja do cosmo ou de qualquer outro fenocircmeno irreversiacutevel compreenderemos a concepccedilatildeo
23
original de causalidade final empregada pelo filoacutesofo Eacute nos fenocircmenos irreversiacuteveis e no
tratamento insatisfatoacuterio que o mecanicismo (cf CP 6 sect 555 1887 CP 6 sect 614 1893)12
lhes
dispensava que vamos encontrar outra motivaccedilatildeo para a proposiccedilatildeo de uma filosofia evolutiva
aliado ao ideal de ciecircncia que procura natildeo deixar sem explicaccedilatildeo aquilo que pode ser
compreendido por uma hipoacutetese mais abrangente (cf CP 6 sect 60 1892)
Levando-se em conta o sinequismo (cf CP 6 sectsect 169-73 1902)e o evolucionismo (cf CP
1 sectsect 103-9 1896) propostos por Peirce chegamos ao tema do quarto capiacutetulo desta tese o
raciociacutenio abdutivo Jaacute que uma das consequecircncias do sinequismo eacute a de que entre o homem e o
cosmo natildeo haacute qualquer descontinuidade radical que ambos satildeo expressotildees de um mesmo
processo expressotildees que possuem apenas diferenccedila de graus e de que o princiacutepio constituinte das
transformaccedilotildees que ambos sofrem eacute a evoluccedilatildeo temos assim os elementos necessaacuterios para a
compreensatildeo do modo de crescimento do proacuteprio conhecimento humano isto eacute temos condiccedilotildees
de entender porque para Peirce a ciecircncia eacute um projeto realizaacutevel uma vez desconsideradas as
questotildees sobre o tempo que o empreendimento possa tomar para se realizar (cf CP 5 sect409
1878)
O projeto peirceano inicial era o de fundar o meacutetodo de investigaccedilatildeo cientiacutefica na induccedilatildeo
entendida como processo de verificaccedilatildeo empiacuterica de hipoacuteteses Vejamos uma declaraccedilatildeo na qual
Peirce expressa sua esperanccedila na capacidade autocorretiva da induccedilatildeo
Tambeacutem natildeo devemos perder de vista a tendecircncia constante do processo
indutivo para corrigir a si mesmo Isso eacute da sua essecircncia Esta eacute a sua maravilha
A probabilidade de sua conclusatildeo soacute consiste no fato de que se o valor
verdadeiro da relaccedilatildeo procurada natildeo tiver sido alcanccedilado uma extensatildeo do
processo indutivo levaraacute a uma maior aproximaccedilatildeo (CP 2 sect 729 1883)13
12 O objetivo aqui eacute indicar a maneira que Peirce se referia ao mecanicismo e como pretendeu superaacute-lo natildeo entrarei
na discussatildeo sobre a pertinecircncia histoacuterica de suas criacuteticas 13
Nor must we lose sight of the constant tendency of the inductive process to correct itself This is of its essence
This is the marvel of it The probability of its conclusion only consists in the fact that if the true value of the ratio
sought has not been reached an extension of the inductive process will lead to a closer approximation
24
Nessa perspectiva Peirce esperava confirmar a tese de que as correccedilotildees que o processo
indutivo ocasionaria nas hipoacuteteses por meio do confronto com a experiecircncia levariam a um
refinamento das teorias conduzindo a um niacutevel de precisatildeo e seguranccedila que facultaria a
qualificaccedilatildeo das mesmas como verdadeiras No entanto apoacutes uma profunda anaacutelise o filoacutesofo
constatou que a esperanccedila de que esse processo de raciociacutenio pudesse ser autocorretivo e assim
levasse por si soacute a um desenvolvimento contiacutenuo do conhecimento mostrou-se irrealizaacutevel (cf
SKAGESTAD 1981)
A hipoacutetese desencadeadora do processo de investigaccedilatildeo deveria ela proacutepria colocar o
cientista na boa direccedilatildeo caso isso natildeo se verificasse o processo de autocorreccedilatildeo natildeo garantiria o
ecircxito da empresa como afirma o filoacutesofo ldquoUma abduccedilatildeo () eacute a uacutenica esperanccedila possiacutevel de
regulaccedilatildeo racional de nossa conduta futura ()rdquo (CP 2 sect 270 1897)14
Peirce afirma que a
atividade de lanccedilar hipoacuteteses embora faliacutevel e perfeitamente descrito como adivinhaccedilatildeo ou
palpite eacute um processo de inferecircncia loacutegica Seu significado praacutetico eacute o de que devemos agir
animados pela esperanccedila de que o homem adivinha naturalmente as melhores hipoacuteteses para
testar embora como veremos isso natildeo queira dizer que acerte sempre ou que acerte na maioria
das vezes e nem que criteacuterios para a seleccedilatildeo das hipoacuteteses a serem testadas sejam dispensaacuteveis
(cf CP 7 sect 219 1901) Essa sintonia natural entre o homem e o cosmo pode ser vista com o
resultado de um processo de seleccedilatildeo natural que concedeu aos homens essa vantagem evolutiva
para a sobrevivecircncia e da continuidade da mente mas isso natildeo explica tudo pois o alcance da
inteligibilidade humana eacute muito mais amplo do que o acircmbito restrito daqueles conhecimentos que
poderiam ter relevacircncia para a sua sobrevivecircncia (cf 6 sect 307 1893)
Explicar como a abduccedilatildeo funciona para aleacutem das circunstacircncias imediatas e cotidianas
requer a abordagem de outra importante ideia desenvolvida por Peirce de maneira original a sua
concepccedilatildeo de causalidade final o que nos leva ao tema do uacuteltimo capiacutetulo desta tese no qual se
14 An Abduction is (hellip) the only possible hope of regulating our future conduct rationally (hellip)
25
trata especificamente da causalidade final ressaltando a originalidade da concepccedilatildeo peirceana
Para tanto discutiremos em um primeiro momento a insuficiecircncia da utilizaccedilatildeo exclusiva da
causalidade eficiente nos esquemas explicativos dos processos naturais ressaltando segundo a
concepccedilatildeo de Peirce a complementariedade entre causalidade final e causalidade eficiente (cf
CP 1 sectsect 211-2 1902) Aqui se verifica que a causalidade final cumpre um duplo papel a
necessidade de sua inclusatildeo pode ser verificada tanto por razotildees epistemoloacutegicas quanto
ontoloacutegicas Seraacute realizada uma anaacutelise da hostilidade com que tal tipo de causalidade eacute tratado
pela ciecircncia moderna cujas principais objeccedilotildees jaacute foram indicadas acima (cf p 17)15
Uma vez que natildeo podemos ter acesso aos objetos externos agrave nossa experiecircncia cuja
realidade natildeo eacute mais que uma hipoacutetese que torna explicaacutevel o como e o porquecirc de termos do
mundo a experiecircncia que temos dadas as caracteriacutesticas de variaccedilatildeo e regularidade da natureza
a causalidade final eacute uma outra hipoacutetese necessaacuteria na medida em que torna o empreendimento
cientiacutefico possiacutevel isto eacute uma esperanccedila de que possamos produzir expectativas para o futuro e
comportamentos adequados moldados pelo autocontrole (cf CP 2 sect 270 1897)
Para que a ciecircncia seja possiacutevel torna-se fundamental a tarefa de bem classificar os objetos
da experiecircncia Mas qual criteacuterio adotar A escolha injustificada do criteacuterio tornaria ciecircncia uma
espeacutecie de ficccedilatildeo ou ilusatildeo A classificaccedilatildeo natural diraacute Peirce soacute pode ser obtida se
considerarmos a causa final de cada fenocircmeno ainda que isso seja um tanto vago (cf CP 1 sect
204 216 1902) Eacute a causalidade final o criteacuterio correto para a constituiccedilatildeo das diferentes classes
da experiecircncia Ora entretanto natildeo eacute no objeto externo ao homem que o criteacuterio deve ser
buscado mas na proacutepria tendecircncia de desenvolvimento dos fenocircmenos que se observa na
experiecircncia Desse modo a uacutenica ciecircncia possiacutevel eacute uma aposta que se faz um palpite que
enquanto tal eacute eminentemente faliacutevel (cf CP 1 sect 14 sect171 1897)
Como jaacute foi dito Peirce considera a ciecircncia um empreendimento eminentemente faliacutevel
15 Embora natildeo desconheccedilamos a existecircncia de uma grande bibliografia sobre o tratamento das questotildees referentes agrave
causalidade final em outros acircmbitos notadamente na biologia concentramos nossa atenccedilatildeo nesta tese somente na
discussatildeo do conceito no interior da cosmologia peirceana
26
mas ao mesmo tempo absolutamente abrangente O que nos deve guiar na elaboraccedilatildeo de nossas
teorias cientiacuteficas eacute o rigor e a completude com que explicamos o mundo da experiecircncia
A hipoacutetese que encontra na causalidade final uma importante noccedilatildeo para a possibilidade da
realizaccedilatildeo da ciecircncia que eacute marcada pela falibilidade mas ao mesmo tempo em que visa total
abrangecircncia explicativa pode ser vista como uma das etapas das tentativas realizadas por Peirce
para tornar compreensiacutevel a proacutepria existecircncia das leis isto eacute a maneira que percebemos o
mundo e um princiacutepio que nos permite controlar adequadamente a nossa conduta Concordamos
com Short quando afirma que ldquoa intenccedilatildeo da cosmologia era ser uma abordagem evolucionaacuteria
fundamental da lei per serdquo (2011 p 535)
Eacute como aponta Short (cf 2011 p 532) no periacuteodo cosmoloacutegico que Peirce desenvolve a
doutrina do idealismo objetivo (ver TIERCELIN 1998) que afirma que a mente isto eacute o
sentimento eacute anterior agrave mateacuteria Peirce indica que ldquoa uacutenica teoria inteligiacutevel do universo eacute o
idealismo objetivo que a mateacuteria eacute mente empedernida haacutebitos inveterados tornam-se leis
fiacutesicasrdquo (EP 1 p 293 1891)16
O universo desse modo eacute o resultado de um processo que tendo
se originado espontaneamente de uma neacutebula de possibilidades no iniacutecio infinitamente remoto
desenvolveu-se por meio da atuaccedilatildeo de um princiacutepio que Peirce inicialmente denominou de lei da
mente e que posteriormente natildeo sem alteraccedilotildees denominou de causalidade final ou teleologia
Retomemos as palavras do proacuteprio autor
A hipoacutetese sugerida pelo presente escritor eacute a de que todas as leis satildeo resultadas
da evoluccedilatildeo que subjacente a todas as outras leis estaacute a uacutenica tendecircncia que
pode crescer por sua proacutepria virtude a tendecircncia de todas as coisas a adquir
haacutebitos Uma vez que essa mesma tendecircncia eacute a uacutenica lei fundamental da mente
segue-se que a evoluccedilatildeo fiacutesica trabalha segundo fins da mesma forma que a accedilatildeo
mental trabalha segundo fins e portanto em um aspecto da questatildeo seria
perfeitamente correto dizer que causaccedilatildeo final eacute a uacutenica primaacuteria No entanto
por outro lado a lei de haacutebito eacute uma simples lei formal uma lei da causalidade
eficiente de modo que uma ou outra maneira de considerar o assunto eacute
16 The one intelligible theory of the universe is that of objective idealism that matter is effete mind inveterate habits
becoming physical laws
27
igualmente verdadeira embora a primeira seja mais plenamente inteligente (CP
6 sect 101 1902)17
As hipoacuteteses do caos original da lei da mente e da causalidade final podem ser vistas como
etapas em um processo de investigaccedilatildeo realizado com a finalidade de tornar compreensiacutevel o
processo pelo qual o universo se desenvolveu ateacute o momento atual e de constituir-se em um
instrumento heuriacutestico para descoberta futura de leis
17 The hypothesis suggested by the present writer is that all laws are results of evolution that underlying all other
laws is the only tendency which can grow by its own virtue the tendency of all things to take habits Now since this
same tendency is the one sole fundamental law of mind it follows that the physical evolution works towards ends in
the same way that mental action works towards ends and thus in one aspect of the matter it would be perfectly true
to say that final causation is alone primary Yet on the other hand the law of habit is a simple formal law a law of
efficient causation so that either way of regarding the matter is equally true although the former is more fully
intelligent
28
CAPIacuteTULO 01
A HIPOacuteTESE COSMOLOacuteGICA
The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in
the year 4004 BC but is going on today and never will be done is this very
development of Reason (CP 1 sect 615 1903)
29
Neste capiacutetulo seraacute feita uma apresentaccedilatildeo da hipoacutetese cosmoloacutegica peirceana e uma
discussatildeo inicial dos elementos que a constituem Partiremos da apresentaccedilatildeo da teoria da
explicaccedilatildeo desenvolvida por Charles S Peirce na qual a hipoacutetese evolucionaacuteria possui um papel
central e mostraremos como o empreendimento cristalizado na forma da hipoacutetese cosmoloacutegica
poder ser visto como um fruto tardio e necessaacuterio do seu grande projeto de garantir a realizaccedilatildeo
do empreendimento cientiacutefico e de expansatildeo do horizonte da inteligibilidade humana Esse
projeto tem sua mais importante sustentaccedilatildeo como indica o proacuteprio autor na ideia de
continuidade a qual tambeacutem receberaacute aqui uma primeira caracterizaccedilatildeo O conceito de
continuum assume no estudo de sua obra o papel de um fio condutor por meio do qual nos
moveremos entre as estruturas que datildeo sustentaccedilatildeo e encontram-se na origem do cosmo
peirceano cuja pretensatildeo eacute a de ser uma hipoacutetese explicativa do modo de ser atual do universo
Por meio da hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce apresenta os elementos principais de sua
metafiacutesica ou dito de maneira mais direta a metafiacutesica peirceana assume a forma de uma
cosmologia e mais particularmente de uma cosmogonia Eacute a maneira de pensar moldada pela
evoluccedilatildeo que daacute origem agrave apresentaccedilatildeo sob a forma de cosmogonia dos elementos de sua
hipoacutetese cosmoloacutegica
1 NAtildeO BLOQUEAR O CAMINHO DA INVESTIGACcedilAtildeO
Encontra-se presente na obra de Peirce desde seus escritos de juventude uma preocupaccedilatildeo
com a elaboraccedilatildeo de um meacutetodo adequado que nos possa conduzir com ecircxito agrave obtenccedilatildeo da
verdade nos mais variados campos da investigaccedilatildeo humana em particular no cientiacutefico (cf CP
5 sectsect 358-87 1877 5 sectsect 388-410 1878) Neste sentido a agenda de problemas com a qual se
ocupa apresenta uma motivaccedilatildeo inicial que natildeo difere muito daquela proposta e desenvolvida
pelos filoacutesofos modernos em particular por Descartes As diferenccedilas e particularidades do projeto
30
peirceano de elaboraccedilatildeo metodoloacutegica entretanto natildeo tardaratildeo a aparecer
Na seacuterie de textos de 1868-69 conhecida como ldquoseacuterie sobre cogniccedilatildeordquo vemos Peirce
analisar e criticar de maneira bastante contundente os pressupostos da filosofia cartesiana O
principal alvo da criacutetica ali desenvolvida eacute a noccedilatildeo de conhecimento intuitivo ou seja da
afirmaccedilatildeo de que temos a possibilidade de apreender de forma imediata certos tipos de ideias
Sua criacutetica consiste em mostrar que mesmo se tiveacutessemos tal tipo de apreensatildeo natildeo teriacuteamos
condiccedilatildeo de distingui-lo em meio agraves demais cogniccedilotildees que satildeo frutos da mediaccedilatildeo
representacional e desse modo da experiecircncia (cf CP 5 sectsect 283-309 1868) Em outras palavras
enquanto Descartes julgava possiacutevel a obtenccedilatildeo de conhecimento certo e seguro por meio de
premissas que natildeo eram elas proacuteprias conclusotildees Peirce afirma uma nova concepccedilatildeo da accedilatildeo
mental na qual toda premissa eacute ao mesmo tempo conclusatildeo (cf CP 5 sect 213 1868) Jaacute nesses
textos Peirce afirmava a necessidade de se pensar a cogniccedilatildeo como um processo contiacutenuo e
faliacutevel pois ainda que pudessem existir cogniccedilotildees intuitivas natildeo teriacuteamos como reconhececirc-las
(cf CP 5 sectsect 238-43 1868) O resultado de sua anaacutelise foi sintetizado que ele denominou de as
quatro incapacidades humanas
1 Natildeo temos poder de Introspecccedilatildeo todo conhecimento do mundo interno eacute
derivado do nosso conhecimento de fatos externos por raciociacutenio hipoteacutetico
2 Natildeo temos poder de Intuiccedilatildeo mas toda cogniccedilatildeo eacute determinada logicamente
por cogniccedilotildees preacutevias
3 Natildeo temos poder de pensar sem signos
4 Natildeo temos concepccedilatildeo do absolutamente incognosciacutevel (CP 5 sect 4 1868)18
18 1 We have no power of Introspection but all knowledge of the internal world is derived by hypothetical
reasoning from our knowledge of external facts
2 We have no power of Intuition but every cognition is determined logically by previous cognitions
3 We have no power of thinking without signs
4 We have no conception of the absolutely incognizable
31
Obviamente levando-se em conta essas incapacidades a afirmaccedilatildeo do conhecimento
intuitivo implica uma contradiccedilatildeo em termos que Peirce indica da seguinte maneira
() todas as faculdades cognitivas que conhecemos satildeo relativas e
consequentemente os seus produtos satildeo relaccedilotildees Mas a cogniccedilatildeo de uma relaccedilatildeo
eacute determinada por cogniccedilotildees preacutevias Nenhuma cogniccedilatildeo natildeo determinada por
uma cogniccedilatildeo preacutevia portanto pode ser conhecida Ela natildeo existe portanto em
primeiro lugar porque eacute absolutamente incognosciacutevel em segundo porque a
cogniccedilatildeo existe unicamente na medida em que eacute conhecida (EP 1 p 26
1868)19
Do ponto de vista peirceano o projeto de Descartes embora vigoroso e respeitaacutevel20
natildeo
parte de uma visatildeo realista do que eacute o homem enquanto sujeito do conhecimento para Peirce a
caracteriacutestica mais geral daqueles para os quais seu meacutetodo eacute adequado eacute o fato de serem
inteligecircncias que aprendem com a experiecircncia (cf CP 3 sect 428 1896) Eacute a partir da criacutetica a
Descartes que Peirce abre o caminho para a constituiccedilatildeo do seu proacuteprio meacutetodo de investigaccedilatildeo
tarefa que nunca abandonou Mesmo em seus escritos mais tardios podemos encontrar novas
tentativas de elaboraccedilatildeo de provas para o que veio a chamar ldquopragmatismordquo e posteriormente
ldquopragmaticismordquo
Na tentativa de escapar ao regresso das explicaccedilotildees ou da postulaccedilatildeo infundada de um
primeiro ponto de partida para a cogniccedilatildeo Peirce busca no conceito de evoluccedilatildeo presente de
maneira muito pronunciada na ciecircncia da segunda metade do seacuteculo XIX21
um outro caminho
para a fundamentaccedilatildeo do conhecimento Tal conceito assume em sua obra o caraacuteter de ldquoum
postulado da loacutegicardquo (EP 1 p 218 1884) e apenas indica que deve haver uma explicaccedilatildeo simples
19 () all the cognitive faculties we know of are relative and consequently their products are relations But the
cognition of a relation is determined by previous cognitions No cognition not determined by a previous cognition
then can be known It does not exist then first because it is absolutely incognizable and second because a
cognition only exists so far as it is known 20
Veremos posteriormente p 119 desta tese que ao classificar os tipos de meacutetodos de investigaccedilatildeo Peirce expressa
respeito com relaccedilatildeo ao meacutetodo a priori seguido por Descartes 21
Principalmente por meio do trabalho de Charles Darwin
32
para um estado de coisas complexo (cf W 4 p 547) Como um postulado22 o princiacutepio
evolucionista indica um ponto de vista sobre as coisas que se escolhe com a finalidade de
fornecer uma explicaccedilatildeo geral De uma maneira mais simples podemos dizer que a evoluccedilatildeo
representa a escolha de uma perspectiva que atende agrave necessidade de natildeo admitir que fatos
uacuteltimos sejam inexplicaacuteveis (cf CP 6 sect 604 1893) Sua funccedilatildeo enquanto princiacutepio regulador eacute
a de indicar que tipo de hipoacuteteses deve ser escolhido para satisfazer agrave necessidade expressa
acima Como afirma Rosa (2003 p 268) ldquo() eacute enquanto exigecircncia de explicabilidade que a
evoluccedilatildeo eacute um postulado da loacutegicardquo
O objeto a ser explicado por esse princiacutepio regulador natildeo eacute o contingente mas o geral
Dessa maneira o fim buscado eacute a explicaccedilatildeo do universo como uma entidade global Ele tem por
objetivo a explicaccedilatildeo das regularidades do universo ou seja busca uma explicaccedilatildeo para a
existecircncia e para a homogeneidade das leis naturais Eacute em funccedilatildeo dessa caracteriacutestica que
podemos dizer que existe uma cosmologia peirceana Peirce natildeo estava satisfeito com a
incapacidade das teorias aceitas na eacutepoca em fornecer uma explicaccedilatildeo para as leis naturais que
eram tratadas como dados aceitos sem qualquer questionamento A lei como disse em um texto
de 1891 eacute justamente aquilo que necessita de uma razatildeo (cf CP 6 sect 12 1891 1 sect 406 1890)
Na medida em que as leis naturais demonstram regularidades na sua forma de atuar colocam-se
como objeto de uma investigaccedilatildeo cuja finalidade eacute apurar por que razatildeo elas se constituiacuteram
daquela maneira As regularidades satildeo reconhece Peirce em consonacircncia com os cientistas da sua
eacutepoca o objeto de explicaccedilatildeo da ciecircncia aquele entretanto que esperasse o mesmo tratamento
para as leis teria suas expectativas frustradas de modo surpreendente
Toda investigaccedilatildeo afirma Peirce parte de uma surpresa da quebra de uma expectativa real
Em 1877 afirma ainda em oposiccedilatildeo a Descartes
Alguns filoacutesofos imaginaram que para comeccedilar uma investigaccedilatildeo soacute era
necessaacuterio proferir uma questatildeo seja oralmente ou colocando-a em uma folha de
22 Peirce afirma que os grandes avanccedilos cientiacuteficos que ainda estavam por vir seriam frutos da aplicaccedilatildeo de teorias
meacutetodos ou conceitos de uma determinada aacuterea do saber a outras Podemos ver que eacute exatamente o que estaacute fazendo
aqui ao tomar um conceito posto em evidecircncia pela teoria darwiniana como um postulado da loacutegica Esta afirmaccedilatildeo
pode ser vista como uma consequecircncia da tese sinequista
33
papel e ateacute mesmo recomendaram-nos a comeccedilar nossos estudos duvidando de
tudo Mas a mera colocaccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo na forma interrogativa natildeo
estimula a mente a batalhar pela crenccedila Deve existir uma duacutevida real e viacutevida e
sem isso toda discussatildeo eacute vatilde (CP 5 sect 376 1877)23
Esse fato conduz agrave elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses explicativas que se verdadeiras eliminariam a
surpresa do evento Esse processo como indica o filoacutesofo parte do consequente e procura
encontrar um antecedente que o explique O antecedente generaliza os dados dispersos no
consequente Ao tipo de raciociacutenio que nos possibilita criar hipoacuteteses Peirce daacute o nome de
abduccedilatildeo Conforme Rosa (2003 p 269) ldquo() o raciociacutenio abdutivo consiste no processo
imaginativo que parte do particular e procura o universal que o subsume de forma a poder
deduzir o particular a partir do universal dadordquo
A caracteriacutestica mais marcante da generalidade segundo Peirce eacute a continuidade que seraacute
investigada mais detidamente no capiacutetulo dois desta tese (cf CP 4 sect 642 1908) As ideias do
filoacutesofo acerca deste toacutepico estatildeo concentradas na doutrina chamada por ele de doutrina do
sinequismo (cf CP 6 sect 103 1892) Eacute a continuidade que daraacute sustentaccedilatildeo agrave tese evolucionista e
por meio dela agrave hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce trata o sinequismo como um princiacutepio regulador da
loacutegica da mesma maneira que havia feito com a evoluccedilatildeo
O sinequismo natildeo eacute uma doutrina metafiacutesica uacuteltima e absoluta eacute um princiacutepio
regulador da loacutegica prescrevendo que tipo de hipoacutetese eacute adequado agrave
consideraccedilatildeo e ao exame () Em resumo o sinequismo soma ao princiacutepio
segundo o qual as inexplicabilidades natildeo podem ser consideradas como
explicaccedilotildees possiacuteveis (CP 6 sect 173 1902)24
23 Some philosophers have imagined that to start an inquiry it was only necessary to utter a question or set in down
upon paper and have even recommended us to begin our studies with questioning everything But the mere putting
of a proposition into the interrogative form does not stimulate the mind to any struggle after belief There must be a
real and living doubt and without this all discussion is idle 24
Synechism is not an ultimate and absolute metaphysical doctrine it is a regulative principle of logic prescribing
what sort of hypothesis is fit to be entertained and examined () In short synechism amounts to the principle that
inexplicabilities are not to be considered as possible explanations
34
Outra formulaccedilatildeo da hipoacutetese do continuum ou uma de suas consequecircncias eacute aquela
encontrada na afirmaccedilatildeo de que os processos da natureza e os processos da mente humana satildeo
similares (cf 6 sect 289 1893) por esta razatildeo veremos o conceito de haacutebito assumir grande
importacircncia na elaboraccedilatildeo peirceana
Como ficaraacute evidente na proacutexima seccedilatildeo a exposiccedilatildeo dos elementos constituintes e dos
processos de desenvolvimento do cosmo bem como a identificaccedilatildeo do seu princiacutepio geral de
constituiccedilatildeo na lei de aquisiccedilatildeo de haacutebito ou lei da mente assume a forma de uma cosmogonia
que descreve o cosmo em termos antropomoacuterficos Ventimiglia eacute bastante direto ao afirmar que o
caraacuteter antropomoacuterfico da cosmologia peirceana a desqualifica como hipoacutetese cientiacutefica ele
afirma que ldquoa cosmologia de Charles Peirce tem tradicionalmente estado entre os menos
celebrados aspectos de seu pensamento Eacute tipicamente considerada excessivamente
antropomoacuterfica para ser uma seacuteria contribuiccedilatildeo a nossa compreensatildeo da evoluccedilatildeo da realidadeldquo
(VENTIMIGLIA 2008 p 661) Natildeo podemos portanto prosseguir sem antes considerarmos
ainda que brevemente o problema colocado por essa abordagem A dificuldade consiste em
justificar a atribuiccedilatildeo de caracteres humanos a seres ou coisas que natildeo satildeo humanos Em primeiro
lugar eacute preciso notar que Peirce estava consciente dessa dificuldade e respondeu aos seus criacuteticos
nos seguintes termos
Ouccedilo vocecirc dizer bdquoIsto cheira demais a uma concepccedilatildeo antropomoacuterfica‟
Respondo que cada explicaccedilatildeo cientiacutefica de um fenocircmeno natural eacute uma
hipoacutetese de que haacute algo na natureza ao qual a razatildeo humana eacute anaacuteloga e que
realmente eacute assim todos os sucessos da ciecircncia em suas aplicaccedilotildees agrave
conveniecircncia humanas satildeo testemunhas (CP 1 sect 316 1903)25
25 I hear you say This smacks too much of an anthropomorphic conception I reply that every scientific
explanation of a natural phenomenon is a hypothesis that there is something in nature to which the human reason is
analogous and that it really is so all the successes of science in its applications to human convenience are witnesses
35
Como inteligecircncias que aprendem com a experiecircncia e que natildeo possuem outra fonte da qual
retirar o material de seus pensamentos os humanos soacute podem compreender aquilo que tem a
forma da experiecircncia humana A proacutepria ideia de que os acontecimentos naturais se processam
segundo leis pode ser visto como uma projeccedilatildeo do modo pelo qual raciocinamos Diz Peirce
Costumamos conceber a Natureza como estando perpetuamente realizando
deduccedilotildees em Barbara Esta eacute a nossa metafiacutesica natural e antropomoacuterfica
Concebemos que haacute Leis da Natureza que satildeo as suas Regras ou premissas
maiores Concebemos que Casos surgem sob estas leis estes casos consistem na
predicaccedilatildeo ou ocorrecircncia de causas que satildeo os termos meacutedios dos silogismos
E finalmente concebemos que a ocorrecircncia destas causas em virtude das leis
da Natureza resulta em efeitos que satildeo as conclusotildees dos silogismos Conceber
a natureza dessa maneira leva-nos naturalmente a conceber a ciecircncia como tendo
trecircs tarefas - (1) a descoberta de Leis que eacute realizada por induccedilatildeo (2) a
descoberta de Causas que eacute realizado por inferecircncia hipoteacutetica e (3) a prediccedilatildeo
dos Efeitos que eacute realizada por deduccedilatildeo Parece-me ser muito uacutetil selecionar um
sistema de loacutegica que preserve todas essas concepccedilotildees natural (CP 2 sect 713
1883)26
Peirce sugere que a tarefa da ciecircncia eacute definida em funccedilatildeo daquilo que nos eacute mais familiar e
mais sistematizado ou seja o modo de realizar inferecircncia descrito por Aristoacuteteles Essa descriccedilatildeo
prescreve aquilo que se espera seja a tarefa da ciecircncia projetando sobre o mundo categorias que
satildeo proacuteprias do pensamento O que anima a realizaccedilatildeo da ciecircncia como descrita acima eacute a
esperanccedilas de que a natureza proceda de forma loacutegica e isso natildeo eacute nada mais do que uma
concepccedilatildeo antropomoacuterfica
26 We usually conceive Nature to be perpetually making deductions in Barbara This is our natural and
anthropomorphic metaphysics We conceive that there are Laws of Nature which are her Rules or major premisses
We conceive that Cases arise under these laws these cases consist in the predication or occurrence of causes which
are the middle terms of the syllogisms And finally we conceive that the occurrence of these causes by virtue of the
laws of Nature results in effects which are the conclusions of the syllogisms Conceiving of nature in this way we
naturally conceive of science as having three tasks--(1) the discovery of Laws which is accomplished by induction
(2) the discovery of Causes which is accomplished by hypothetic inference and (3) the predictio of Effects which is
accomplished by deduction It appears to me to be highly useful to select a system of logic which shall preserve all
these natural conceptions
36
A criacutetica de antropomorfismo tambeacutem foi endereccedilada agrave teoria darwinista em particular ao
seu conceito de luta (struggle) o qual informa Peirce foi acusado de ser muito antropomoacuterfico
para ser cientiacutefico (cf CP 5 sect 46 1903) Sua resposta foi dada nos seguintes termos
Mas quanto a sua natildeo cientificidade porque eacute antropomoacuterfico eacute uma objeccedilatildeo de
um tipo muito superficial que surge a partir de preconceitos com base em
consideraccedilotildees demasiado estreitas Antropomoacuterfico eacute o que praticamente todas
as concepccedilotildees satildeo na base caso contraacuterio outras raiacutezes para as palavras com as
quais satildeo expressas diferentes das velhas raiacutezes arianas teriam que ser
encontradas E com relaccedilatildeo a qualquer preferecircncia por um tipo de teoria sobre
outro eacute bom lembrar que cada verdade da ciecircncia eacute devida agrave afinidade da alma
humana com a alma do universo imperfeita como tal afinidade sem duacutevida eacute
Dizer portanto que uma concepccedilatildeo eacute natural ao homem eacute praticamente a
mesma coisa que dizer que eacute antropomoacuterfica essa eacute mais elevada das
recomendaccedilotildees que se poderia lhe dar aos olhos de um Loacutegico Exato (CP 5 sect
47 1903)27
Peirce natildeo somente estaacute consciente do aspecto antropomoacuterfico de sua teoria mas tambeacutem
elabora uma defesa das teorias que apresentam esta caracteriacutestica O antropomorfismo eacute uma
decorrecircncia da maneira como entende a possibilidade dos homens adquirirem conhecimento ou
em outras palavras da sua concepccedilatildeo de que a natureza primaacuteria do universo eacute a mente
concepccedilatildeo que pode ser sintetizada sob o roacutetulo que Peirce agraves vezes atribui ao sistema filosoacutefico
de idealismo objetivo (cf CP 6 sectsect 24-5 1891) A relaccedilatildeo entre antropomorfismo experiecircncia e
possibilidade de conhecimento eacute estabelecida nos seguintes termos
27 But as to its being unscientific because anthropomorphic that is an objection of a very shallow kind that arises
from prejudices based upon much too narrow considerations Anthropomorphic is what pretty much all
conceptions are at bottom otherwise other roots for the words in which to express them than the old Aryan roots
would have to be found And in regard to any preference for one kind of theory over another it is well to remember
that every single truth of science is due to the affinity of the human soul to the soul of the universe imperfect as that
affinity no doubt is To say therefore that a conception is one natural to man which comes to just about the same
thing as to say that it is anthropomorphic is as high a recommendation as one could give to it in the eyes of an Exact
Logician
37
() se vocecirc tivesse dito antropomorfismo eu deveria ter respondido que eu
sinceramente abraccedilo a maioria das claacuteusulas dessa doutrina se algum direito a
uma interpretaccedilatildeo particular me for permitido Eu defendo por exemplo que o
homem eacute tatildeo completamente envolvido pelos limites de sua experiecircncia praacutetica
possiacutevel sua mente eacute tatildeo restrita a ser o instrumento de suas necessidades que
ele natildeo pode nem remotamente compreender algo que transcenda aqueles
limites A consequecircncia estrita disto eacute a de que eacute absurdo dizer-lhe que natildeo deve
pensar desta ou daquela forma porque fazecirc-lo seria transcender os limites de
uma experiecircncia possiacutevel Deixe-o tentar empenhadamente pensar qualquer
coisa que esteja aleacutem desse limite isso simplesmente natildeo pode ser feito Assim
como vocecirc pode aprovar uma lei de que nenhum homem deve saltar sobre a lua
isso natildeo lhe proibiria de saltar tatildeo alto quanto possivelmente pudesse (CP 5 536
1905)28
O filoacutesofo chega a afirmar que entre duas concepccedilotildees quaisquer uma com caraacuteter
antropomoacuterfico e outra natildeo preferiria a primeira pois ldquo() outras coisas permanecendo iguais
uma concepccedilatildeo antropomoacuterfica quer faccedila o melhor nuacutecleo para uma hipoacutetese de trabalho
cientiacutefico ou natildeo eacute muito mais provaacutevel que seja aproximadamente verdadeira do que aquela que
natildeo eacute antropomoacuterficaldquo (CP 5 notas 1903)29
Os elementos de todo conceito diz o autor entram
no pensamento loacutegico pela percepccedilatildeo e saem na forma de uma accedilatildeo propositada aqueles que
ldquo() natildeo podem apresentar seus passaportes nos dois portotildees devem ser detidos como natildeo
autorizados pela razatildeoldquo (CP 5 sect 212 1903)30
A exigecircncia de compreensibilidade eacute a principal
caracteriacutestica de toda hipoacutetese desse modo eacute natural que o aspecto antropomoacuterfico confira-lhes
de saiacuteda uma maior recomendaccedilatildeo Diz Peirce ldquo() que a uacutenica justificaccedilatildeo possiacutevel para uma
hipoacutetese eacute que ela torna os fatos compreensiacuteveis e que supocirc-los absolutamente incompreensiacuteveis
28 () if you had said Anthropomorphism I should have replied that I heartily embrace most of the clauses of that
doctrine if some right of private interpretation be allowed me I hold for instance that man is so completely
hemmed in by the bounds of his possible practical experience his mind is so restricted to being the instrument of his
needs that he cannot in the least mean anything that transcends those limits The strict consequence of this is that it
is all nonsense to tell him that he must not think in this or that way because to do so would be to transcend the limits
of a possible experience For let him try ever so hard to think anything about what is beyond that limit it simply
cannot be done You might as well pass a law that no man shall jump over the moon it wouldnt forbid him to jump
just as high as he possibly could 29
() other things being equal an anthropomorphic conception whether it makes the best nucleus for a scientific
working hypothesis or not is far more likely to be approximately true than one that is not anthropomorphic 30
() and whatever cannot show its passports at both those two gates is to be arrested as unauthorized by reason
38
(que eacute o que a doutrina do incognosciacutevel faz) eacute natildeo os tornar compreensiacuteveisldquo (CP 1 sect 316
1903)31
A fim de natildeo introduzir o inexplicaacutevel na natureza Peirce reconhece a necessidade de se
perguntar sobre a proacutepria origem das leis naturais que nas teorias necessitaristas32
entatildeo aceitas
como dissemos satildeo consideradas como dados inquestionaacuteveis
2 UMA ESTOacuteRIA BIZARRA
A centralidade do conceito de haacutebito na filosofia de Charles S Peirce eacute amplamente
reconhecida da mesma forma que o significado peculiar que este lhe atribui A partir de 1890
tendo conseguido vaacuterios avanccedilos no estabelecimento das categorias da experiecircncia Peirce
oferece uma interpretaccedilatildeo da noccedilatildeo de haacutebito por meio da qual lhe eacute conferida um estatuto
ontoloacutegico distanciando-a dessa maneira tanto da noccedilatildeo humeana como daquela utilizada pelos
psicoacutelogos do iniacutecio do seacuteculo XX Como afirma Bortolotti (2003 p 1) ldquo() o haacutebito passa a ser
a categoria universal da lei dotado de objetividaderdquo Como uma lei geral o haacutebito se entranha na
proacutepria constituiccedilatildeo do cosmo Eacute por meio do estabelecimento crescente do haacutebito tanto nos
homens quanto na natureza que se explica a diminuiccedilatildeo das variaccedilotildees e o aumento das
regularidades tanto quanto o incremento do poder humano de compreender o mundo e produzir
um comportamento autocontrolado
Por meio dos haacutebitos a capacidade humana de criar expectativas eacute desenvolvida e pelo
mesmo movimento produz-se um incremento no controle de suas proacuteprias experiecircncias Em um
texto de 1902 Peirce traccedila um quadro no qual eacute definida a noccedilatildeo de haacutebito e sua relaccedilatildeo com
31 () that the only possible justification for a hypothesis is that it renders the facts comprehensible and that to
suppose them absolutely incomprehensible (which is what the doctrine of the Unknowable comes to) is not rendering
them comprehensible 32
Necessitaristas eacute o adjetivo que Peirce utiliza para se referir aos adeptos do mecanicismo cuja principal
caracteriacutestica na opiniatildeo do autor eacute a afirmaccedilatildeo de que cada fato singular do universo eacute precisamente determinado
por lei (cf CP 6 sect 36 1892)
39
uma seacuterie de conceitos que lhe satildeo proacuteximos nele o autor declara
Uma expectativa eacute um haacutebito de imaginaccedilatildeo Um haacutebito natildeo eacute uma afecccedilatildeo da
consciecircncia eacute uma lei geral de accedilatildeo de tal forma que em certo tipo geral de
ocasiatildeo um homem estaraacute mais ou menos apto a agir de certo modo geral Uma
imaginaccedilatildeo eacute uma afecccedilatildeo da consciecircncia que pode ser diretamente comparada
com um percepto com respeito a alguma caracteriacutestica especial e ser
considerada em acordo ou desacordo com ele () Naturalmente cada
expectativa eacute uma questatildeo de inferecircncia () Para nosso objetivo presente eacute
suficiente dizer que um processo inferencial envolve a formaccedilatildeo de um haacutebito
Pois ele produz uma crenccedila ou opiniatildeo e uma crenccedila ou opiniatildeo genuiacutena eacute
algo sobre cujo conteuacutedo o homem estaacute preparado para agir e eacute portanto em um
sentido geral um haacutebito () Pois cada haacutebito tem ou eacute uma lei geral Tudo o
que eacute verdadeiramente geral refere-se ao futuro indefinido pois o passado
conteacutem unicamente uma certa coleccedilatildeo daqueles casos que ocorreram O passado
eacute fato real Mas o (fato) geral natildeo pode ser completamente realizado Eacute uma
potencialidade e o seu modo de ser eacute esse in futuro (CP 2 sect 148 1902)33
Percebemos na longa citaccedilatildeo acima que Peirce deixa claro que a noccedilatildeo de haacutebito estaacute
estreitamente ligada agrave noccedilatildeo de geral que por sua vez eacute outra maneira de fazer referecircncia agraves leis
Toda lei eacute geral e desse modo um haacutebito A noccedilatildeo de haacutebito ultrapassa o aspecto psicoloacutegico
para tornar-se uma categoria ontoloacutegica a de lei
Segundo a teoria do sinequismo reconhecida como a pedra fundamental da arquitetocircnica
peirceana todo geral eacute um continuum Peirce afirma que ldquo() continuidade e generalidade satildeo
dois nomes para a mesma falta de distinccedilatildeo de indiviacuteduosrdquo (CP 4 sect 172 1897)34
Assim ao
falarmos de haacutebitos gerais e em suas constituiccedilotildees estamos referindo agrave proacutepria origem e
33 An expectation is a habit of imagining A habit is not an affection of consciousness it is a general law of action
such that on a certain general kind of occasion a man will be more or less apt to act in a certain general way An
imagination is an affection of consciousness which can be directly compared with a percept in some special feature
and be pronounced to accord or disaccord with it () Of course every expectation is a matter of inference () For
our present purpose it is sufficient to say that the inferential process involves the formation of a habit For it produces
a belief or opinion and a genuine belief or opinion is something on which a man is prepared to act and is
therefore in a general sense a habit () For every habit has or is a general law Whatever is truly general refers to
the indefinite future for the past contains only a certain collection of such cases that have occurred The past is
actual fact But a general (fact) cannot be fully realized It is a potentiality and its mode of being is esse in futuro 34
() continuity and generality are two names for the same absence of distinction of individuals
40
constituiccedilatildeo das leis em particular e para os interesses deste texto das leis naturais ou seja
deslocamo-nos para o campo das discussotildees cosmoloacutegicas e cosmogocircnicas Coerente com sua
determinaccedilatildeo de banir o inexplicaacutevel do reino da ciecircncia Peirce ataca o problema da origem do
universo que usualmente era deixado sem explicaccedilatildeo Para aleacutem da origem a maacutexima que
ordena expandir o horizonte da inteligibilidade cientiacutefica requer uma explicaccedilatildeo da proacutepria
passagem da natildeo-existecircncia para a existecircncia
A maneira como o haacutebito se instaura e cresce eacute propriamente o modo por meio do qual a
cosmogonia peirceana explica o surgimento do cosmo A estrutura mais geral de cosmologia
peirceana eacute indicada pelo filoacutesofo na seguinte passagem
() no iniacutecio - infinitamente remoto - havia um caos de sentimentos impessoais
o qual sem conexatildeo ou regularidade seria propriamente carente de existecircncia
Esse sentimento variando aqui e ali na pura arbitrariedade teria iniciado o
germe da tendecircncia generalizante Suas outras variaccedilotildees poderiam ser
evanescentes mas esta teria uma virtude de crescimento Assim a tendecircncia ao
haacutebito teria comeccedilado e a partir daiacute com os outros princiacutepios de evoluccedilatildeo todas
as regularidades do universo teriam se desenvolvido Em qualquer tempo
entretanto um elemento de puro acaso sobrevive e permaneceraacute ateacute que o
mundo se torne um sistema absolutamente perfeito racional e simeacutetrico no qual
a mente eacute por fim cristalizada em um futuro infinitamente distante (CP 6 sect 33
1891)35
Esta citaccedilatildeo apresenta de forma condensada a narraccedilatildeo do iniacutecio do universo O trabalho
deste capiacutetulo eacute o de compreender os elementos aqui apresentados e as teorias que sustentam esta
abordagem Nota-se que uma vez iniciado o processo de crescimento do universo tanto a accedilatildeo do
acaso como a atuaccedilatildeo das regularidades e ateacute mesmo os eventos catastroacuteficos atuaratildeo para
35 () in the beginning -- infinitely remote -- there was a chaos of unpersonalized feeling which being without
connection or regularity would properly be without existence This feeling sporting here and there in pure
arbitrariness would have started the germ of a generalizing tendency Its other sportings would be evanescent but
this would have a growing virtue Thus the tendency to habit would be started and from this with the other
principles of evolution all the regularities of the universe would be evolved At any time however an element of
pure chance survives and will remain until the world becomes an absolutely perfect rational and symmetrical
system in which mind is at last crystallized in the infinitely distant future
41
formar o universo que conhecemos por meio da experiecircncia
21 O NADA
Peirce como indica Rosa identifica um processo que ocorre antes da proacutepria existecircncia do
universo Um processo de diferenciaccedilatildeo que ocorre no interior do nada e o distingue em dois
tipos um nada caoacutetico e um nada ainda mais primitivo Nas palavras de Rosa
O nada primitivo eacute um estado em que o ldquouniverso natildeo existiardquo um ldquoabsoluto
nadardquo Contudo esse Nada absoluto tem propriedades notaacuteveis na medida em
que a totalidade do universo atual jaacute se encontrava nele em germe com efeito
ele representa a totalidade das possibilidades (ROSA 2003 p 291)
Esse nada pode ser entendido como uma entidade loacutegica constituiacuteda por predicados que
sejam compatiacuteveis Nesse nada portanto encontram-se fundidas todas as possibilidades
consistentes do universo Ele eacute como Peirce indicou o mundo platocircnico (cf CP 6 sect 192 1892)
a partir do qual o mundo surgiu por meio de uma determinaccedilatildeo arbitraacuteria Em outro texto ao
introduzir a hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce afirma
Devemos supor que haacute alguma coisa como uma folha de papel vazia ou com um
espaccedilo vazio sobre o qual um signo interpretante possa ser escrito Qual a
natureza desse vazio Ao permitir a escrita de um siacutembolo ele eacute ipso facto um
siacutembolo embora de um tipo completamente vago (NEM 4 p 260)36
36 We must suppose that there is something like a sheet of paper blank or with a blank space upon it upon which an
interpretant sign may be written What is the nature of this blank In affording room for the writing of a symbol it is
ipso facto itself a symbol although a wholly vague one
42
Esse vazio soacute pode ser um continuum completamente vago37 no qual todas as
possibilidades coerentes estatildeo completamente fundidas O nada eacute nessa etapa um continuum de
infinitas dimensotildees potenciais natildeo distintas (cf CP 6 sect 132 1892 CP 6 sect 193 1898 CP 6 sect
203 1898)
Do nada assim descrito por um processo de contraccedilatildeo da potencialidade em generalidade
surgem as diferentes dimensotildees qualitativas por meio da evoluccedilatildeo que tem lugar antes mesmo
da existecircncia do universo Como afirma Peirce ldquoO processo evolucionaacuterio eacute portanto natildeo uma
mera evoluccedilatildeo do universo existente mas antes um processo pelo qual as proacuteprias formas
platocircnicas se desenvolveram ou se desenvolvemrdquo (CP 6 sect 194 1898)38
Nessa evoluccedilatildeo o
possiacutevel contrai-se no geral por meio de um processo de diferenciaccedilatildeo
A evoluccedilatildeo das formas tem iniacutecio ou em alguma medida possui em seu estaacutegio
inicial uma vaga possibilidade e que eacute ou eacute seguido por um continuum de
formas que possui uma quantidade de dimensotildees muito grande para que a
dimensatildeo individual seja distinta Deve ser a partir da contraccedilatildeo da vagueza
daquela potencialidade de tudo em geral mas de nada em particular que o
mundo das formas surge () e as relaccedilotildees de suas dimensotildees tornam-se
definidas e contraiacutedas (CP 6 sectsect 196-7 1898)39
Do ponto de vista cosmoloacutegico cada dimensatildeo constitui uma qualidade una Aqui temos a
origem do princiacutepio de contradiccedilatildeo no momento da definiccedilatildeo dessas dimensotildees qualitativas
37 A natureza desse continuum potencial merece alguma atenccedilatildeo pois a continuidade presente na origem eacute distinta
daquela recuperada em termos de lei apoacutes o processo evolucionaacuterio entrar em cena Aparentemente a relaccedilatildeo entre
continuidade e lei natildeo eacute simeacutetrica toda lei tem a natureza de um continuum mas natildeo se pode dizer que o inverso seja
verdadeiro Eacute por meio da transformaccedilatildeo do continuum inicial no continuum atual que as formas individuais podem
se estabelecer 38
The evolutionary process is therefore not a mere evolution of the existing universe but rather a process by which
the very Platonic forms themselves have become or are becoming developed 39
The evolution of forms begins or at any rate has for an early stage of it a vague potentiality and that either is or
is followed by a continuum of forms having a multitude of dimensions too great for the individual dimensions to be
distinct It must be by a contraction of the vagueness of that potentiality of everything in general but of nothing in
particular that the world of forms comes about () the relations of its dimensions became definite and contracted
43
Peirce diz ldquoO Agora eacute uno e apenas uno O princiacutepio de contradiccedilatildeo pode ser visto como um
resultado formal da mesma coisa Qualquer objeto A natildeo pode ser azul e natildeo azul ao mesmo
tempordquo (CP 6 sect 231 1898)40
O estado desse nada caoacutetico de n dimensotildees eacute algo que natildeo podemos conceber claramente
mas o processo de formaccedilatildeo das qualidades distintas eacute descrito por Peirce da seguinte maneira
Atualmente jaacute natildeo podemos formar senatildeo uma tecircnue concepccedilatildeo acerca da
continuidade das qualidades intriacutensecas de sentimento O desenvolvimento da
mente humana extinguiu praticamente todos os sentimentos exceto algumas
espeacutecies esporaacutedicas como sons cores cheiros calor etc as quais aparecem
agora desconectadas e diferentes No caso das cores haacute uma difusatildeo
tridimensional de sentimentos Originariamente todos os sentimentos podem ter
estado conectados da mesma forma e a suposiccedilatildeo consiste em que o nuacutemero de
dimensotildees era infinito Na verdade o desenvolvimento envolve de modo
essencial uma limitaccedilatildeo de possibilidade (CP 6 sect 132 1892)41
Na medida em que o continuum inicial vai sendo cindido em n dimensotildees tem iniacutecio um
processo de resistecircncia reciacuteproca entre as dimensotildees Vemos aiacute a atuaccedilatildeo de duas tendecircncias que
se colocavam como meras potencialidades no nada original a tendecircncia agrave diversificaccedilatildeo e a
tendecircncia agrave generalizaccedilatildeo que garante a permanecircncia das dimensotildees e elimina a diversificaccedilatildeo Eacute
a atuaccedilatildeo dessas duas tendecircncias que permite a Peirce estabelecer um importante princiacutepio o
princiacutepio de semelhanccedila e contraste
A semelhanccedila eacute determinada pela posiccedilatildeo que a qualidade ocupa no continuum Peirce diz
que
40 The Now is one and but one The principle of contradiction may be regarded as a formalistic result of the same
thing Any object A cannot be blue and not blue at once 41
Of the continuity of intrinsic qualities of feeling we can now form but a feeble conception The development of the
human mind has practically extinguished all feelings except a few sporadic kinds sound colours smells warmth
etc which now appear to be disconnected and disparate In the case of colours there is a tridimensional spread of
feelings Originally all feelings may have been connected in the same way and the presumption is that the number
of dimensions was endless For development essentially involves a limitation of possibilities
44
Apesar das qualidades naquilo que elas satildeo para si mesmas cada uma sendo um
mero nada para qualquer outra natildeo estarem relacionadas umas com as outras
elas formam contudo um continuum no qual por causa da posiccedilatildeo que nele
ocupam adquirem mais ou menos semelhanccedila e contraste umas em relaccedilatildeo agraves
outras (NEM 4 p 137 ca 1898)42
Eacute a partir da semelhanccedila e contraste que Peirce enuncia a lei da mente a qual seraacute discutida
em mais detalhes na sequecircncia Uma primeira definiccedilatildeo de lei da mente pode ser encontrada nas
seguintes palavras de Peirce
() as ideias tendem a difundir-se continuamente e a afetar certas outras que se
encontram com elas em uma peculiar relaccedilatildeo de afetabilidade Nessa difusatildeo
elas perdem intensidade e especialmente o poder de afetar outras mas adquirem
generalidade e ficam fundidas com outras ideias (CP 6 sect 104 1892)43
Em siacutentese deixando de lado os pormenores da formulaccedilatildeo peirceana pode-se resumir a
hipoacutetese da origem do universo da maneira que se segue Identificam-se trecircs estaacutegios dessa
origem em um primeiro no iniacutecio absoluto antes da proacutepria existecircncia do universo encontra-se
o puro nada segundo a descriccedilatildeo fornecida por Peirce
A condiccedilatildeo inicial antes da existecircncia do universo natildeo foi o estado de um ser
puro e abstrato Ao contraacuterio foi o estado de um absoluto nada nem mesmo um
estado de vazio pois mesmo o vazio eacute alguma coisa Se vamos proceder de um
modo loacutegico e cientiacutefico devemos a fim de considerar todo o universo supor
42 But just as the qualities which as they are for themselves are equally unrelated to one other each being mere
nothing for any other yet form a continuum in which and because of their situation in which they acquire more or
less resemblance and contrast with one and other 43
() ideas tend to spread continuously and to affect certain others which stand to them in a peculiar relation of
affectability In this spreading they lose intensity and especially the power of affecting others but gain generality
and become welded with other ideas
45
uma condiccedilatildeo inicial na qual o universo completo era carente de existecircncia e
assim um estado de absoluto nada (CP 6 sect 215 1898)44
e acrescenta
Natildeo haacute coisa individual nenhuma compulsatildeo externa ou interna nenhuma lei
Eacute o nada germinal no qual todo o universo estaacute envolvido ou prenunciado
Como tal ele eacute possibilidade absolutamente indefinida e ilimitada ndash
possibilidade sem fronteiras Natildeo haacute compulsatildeo nem lei Eacute a liberdade sem
fronteiras (CP 6 sect 217 1898)45
O nada assim descrito eacute um estado indiferenciado de qualidade de sentimento sem relaccedilatildeo
com qualquer outra coisa nos termos peirceanos o sentimento eacute monaacutedico46
A existecircncia do
universo nesse momento era apenas uma das possibilidades tatildeo provaacutevel quanto a sua natildeo
existecircncia O segundo estaacutegio caracterizado pela reaccedilatildeo surge de uma singularidade no interior
do estado de indiferenciaccedilatildeo Peirce fala de reaccedilotildees acidentais ou bdquoflashesrsquo entre os eventos (cf
CP 3 sect 412 1890) isto eacute do surgimento de relaccedilotildees diaacutedicas expressas por reaccedilotildees brutas O
terceiro estaacutegio surge por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo de uma das possibilidades que tem na sua
atualizaccedilatildeo a virtude do seu proacuteprio crescimento isto eacute de tornar mais provaacutevel a sua repeticcedilatildeo
na sequecircncia dos eventos No iniacutecio essas regularidades seriam bastante deacutebeis mas com o
reforccedilo promovido pelo aumento da possibilidade de sua repeticcedilatildeo futura elas se tornariam cada
vez mais fortes ateacute transformarem-se em um haacutebito A regularidade estabelece um tipo de relaccedilatildeo
44 The initial condition before the universe existed was not a state of pure abstract being On the contrary it was a
state of just nothing at all not even a state of emptiness for even emptiness is something If we are to proceed in a
logical and scientific manner we must in order to account for the whole universe suppose an initial condition in
which the whole universe was non-existent and therefore a state of absolute nothing 45
There is no individual thing no compulsion outward nor inward no law It is the germinal nothing in which the
whole universe is involved or foreshadowed As such it is absolutely undefined and unlimited possibility --
boundless possibility There is no compulsion and no law It is boundless freedom 46
Peirce pretende ter provado que todas as relaccedilotildees podem ser reduzidas a trecircs tipos baacutesicos monaacutedicas nas quais os
elementos natildeo possuem quaisquer relaccedilotildees a natildeo ser com eles mesmos eacute o sentimento em sua mais pura expressatildeo
diaacutedicas que eacute a relaccedilatildeo entre dois agraves vezes descrita como atrito ou resistecircncia e triaacutedicas relaccedilatildeo de mediaccedilatildeo
46
triaacutedica caracterizada por um terceiro que faz a mediaccedilatildeo entre um primeiro e um segundo47
Em uma passagem um pouco longa mas muito esclarecedora Peirce traccedila as relaccedilotildees entre
os trecircs elementos constituintes do cosmo e como diante deles o homem pode compreender o
mundo e falar sobre ele
() de acordo com meu modo de ver haacute trecircs categorias de ser ideias de
sentimentos atos de reaccedilatildeo e haacutebitos Haacutebitos satildeo haacutebitos a respeito de
ideias de sentimentos ou haacutebitos a respeito de atos de reaccedilatildeo O conjunto
de todos os haacutebitos a respeito de ideias de sentimentos constitui um
grande haacutebito que eacute um Mundo e o conjunto de todos os haacutebitos a
respeito de haacutebitos de reaccedilatildeo constitui um segundo grande haacutebito que eacute
outro Mundo O primeiro eacute o Mundo Interior o mundo das formas de
Platatildeo O outro eacute o Mundo Exterior ou universo da existecircncia A mente
do homem estaacute adaptada agrave realidade do ser De acordo com isso haacute dois
modos de associaccedilatildeo de ideias associaccedilatildeo interior baseada em haacutebitos do
Mundo Interior e associaccedilatildeo exterior baseada em haacutebitos do Universo A
primeira eacute comumente chamada associaccedilatildeo por semelhanccedila mas em
minha opiniatildeo natildeo eacute a semelhanccedila que causa a associaccedilatildeo mas a
associaccedilatildeo que constitui a semelhanccedila Uma ideia de um sentimento eacute
como ela eacute em si mesma sem quaisquer elementos ou relaccedilotildees Um matiz
de vermelho em si mesmo natildeo se assemelha a outro matiz de vermelho
De fato quando falamos de um matiz de vermelho natildeo eacute da ideia de
sentimento que estamos falando mas de um conjunto de tais ideias Essa
unificaccedilatildeo no Mundo Interior que constitui o que apreendemos e a que
denominamos sua semelhanccedila Estando nossas mentes consideravelmente
adaptadas ao Mundo Interior as ideias de sentimentos atraem-se umas agraves
outras em nossas mentes e no curso de nossa experiecircncia do Mundo
Interior desenvolvem conceitos gerais A tais conjuntos chamamos
qualidades sensiacuteveis Associaccedilotildees de nossos pensamentos tendo por base
os atos de reaccedilatildeo satildeo denominadas associaccedilotildees por contiguidade uma
expressatildeo com a qual natildeo discutirei pois somente os atos de reaccedilatildeo
podem ser contiacuteguos Pois ser contiacuteguo eacute estar proacuteximo no espaccedilo e em
um soacute tempo e somente um ato de reaccedilatildeo pode preencher um espaccedilo por
ele mesmo A mente por sua adaptaccedilatildeo instintiva ao Mundo Exterior
representa as coisas como estando no espaccedilo o qual eacute sua representaccedilatildeo
intuitiva da conjunccedilatildeo de reaccedilotildees ou para usar uma frase mais familiar
um centro de forccedilas Consequentemente desse duplo modo de associaccedilatildeo
de ideias quando algueacutem chega a formar uma linguagem produz palavras
de duas classes palavras que denominam coisas coisas essas que ele
identifica pela uniatildeo de suas reaccedilotildees essas palavras satildeo nomes proacuteprios e
47 Temos por meio da narraccedilatildeo acima uma caracterizaccedilatildeo inicial das categorias fenomenoloacutegicas peirceana
primeiridade caracterizada por relaccedilotildees monaacutedicas secundidade caracterizada por relaccedilotildees diaacutedicas e terceiridade
caracterizada por relaccedilotildees triaacutedicas (cf IBRI 1992)
47
palavras que significam ou querem dizer qualidades que satildeo fotografias
compostas de ideias de sentimentos e tais palavras satildeo verbos ou porccedilotildees
de verbos tais como satildeo os adjetivos os substantivos comuns etc (CP 4
sect 157 1897)48
A espontaneidade potencial ou puro sentimento deu origem ao universo atual que
continua em crescimento Entre as possibilidades uma destacou-se por ter a cada realizaccedilatildeo o
incremento da possibilidade de suas realizaccedilotildees futuras Peirce denomina essa possibilidade
peculiar de princiacutepio motor responsaacutevel pela origem e desenvolvimento das regularidades de lei
da mente lei de associaccedilatildeo de ideias ou lei do haacutebito Rosa (2003) tece o seguinte comentaacuterio a
respeito da origem do universo segundo a cosmologia peirceana
O comeccedilo do processo cosmogocircnico consiste precisamente num processo que
parte de uma alta intensidade de grande espontaneidade e que tende a anular
essa intensidade atraveacutes de ideias gerais As ideias gerais reduzem a intensidade
na medida em que satildeo atractores para outras ideias situadas na sua vizinhanccedila
Noutros termos houve um momento em que uma grande quantidade de
48 () according to my view there are three categories of being ideas of feelings acts of reaction and habits Habits
are either habits about ideas of feelings or habits about acts of reaction The ensemble of all habits about ideas of
feeling constitutes one great habit which is a World and the ensemble of all habits about acts of reaction constitutes
a second great habit which is another World The former is the Inner World the world of Platos forms The other is
the Outer World or universe of existence The mind of man is adapted to the reality of being Accordingly there are
two modes of association of ideas inner association based on the habits of the inner world and outer association
based on the habits of the universe The former is commonly called association by resemblance but in my opinion it
is not the resemblance which causes the association but the association which constitutes the resemblance An idea
of a feeling is such as it is within itself without any elements or relations One shade of red does not in itself
resemble another shade of red Indeed when we speak of a shade of red it is already not the idea of the feeling of
which we are speaking but of a cluster of such ideas It is their clustering together in the Inner World that constitutes
what we apprehend and name as their resemblance Our minds being considerably adapted to the inner world the
ideas of feelings attract one another in our minds and in the course of our experience of the inner world develop
general concepts What we call sensible qualities are such clusters Associations of our thoughts based on the habits
of acts of reaction are called associations by contiguity an expression with which I will not quarrel since nothing
can be contiguous but acts of reaction For to be contiguous means to be near in space at one time and nothing can
crowd a place for itself but an act of reaction The mind by its instinctive adaptation to the Outer World represents
things as being in space which is its intuitive representation of the clustering of reactions What we call a Thing is a
cluster or habit of reactions or to use a more familiar phrase is a centre of forces In consequence of this double
mode of association of ideas when man comes to form a language he makes words of two classes words which
denominate things which things he identifies by the clustering of their reactions and such words are proper names
and words which signify or mean qualities which are composite photographs of ideas of feelings and such words
are verbs or portions of verbs such as are adjectives common nouns etc
48
sentimento estava associada a cada qualidade era um estado de espontaneidade
ilimitada das qualidades um sentimento muito intenso presente em cada
variaccedilatildeo infinitesimal Essa espontaneidade diminui assim que deixa de haver o
sentimento de variaccedilotildees ldquomuito pequenasrdquo da qualidade (CP 6 sect 136 1892) Jaacute
natildeo eacute a passagem do Nada inicial para qualquer coisa de definido mas sim do
que Peirce chamava o caos inicial das qualidades para uma generalizaccedilatildeo cada
vez maior (ROSA 2003 p 297-8)
A narraccedilatildeo da origem do universo pode parecer para muitos algo bastante estranho e em
desacordo com o todo da obra peirceana Um de seus comentadores a denominou de ldquoestoacuteria
bizarrardquo (cf HOOKWAY 1997) A leitura dessa narrativa faz surgir de imediato duas criacuteticas
Em primeiro lugar pode argumentar-se que as categorias peirceanas de primeiridade
secundidade e terceiridade natildeo satildeo universais uma vez que natildeo estatildeo presentes desde o iniacutecio (cf
HOOKWAY 1985 p 273) A categoria de terceiridade soacute teria surgido depois que a tendecircncia ao
estabelecimento de haacutebitos estivesse operante e no iniacutecio absoluto natildeo haveria sequer a
secundidade Uma maneira de evitar essa criacutetica eacute lembrar que para Peirce a sequecircncia descrita
acima eacute loacutegica (cf CP 6 sect 214 1898) e natildeo cronoloacutegica aliaacutes como deixa bastante claro o
tempo eacute um continuum e desse modo soacute entra em cena apoacutes o estabelecimento da terceiridade Eacute
o processo loacutegico descrito acima que lhe daacute origem Por meio desse raciociacutenio a universalidade
de suas categorias eacute preservada ainda que sua limitaccedilatildeo neste caso talvez fosse um preccedilo que
Peirce estivesse disposto a pagar Esta resposta pode ser enriquecida com a consideraccedilatildeo de que eacute
impossiacutevel atingir o iniacutecio absoluto Mesmo se pudeacutessemos voltar no tempo veriacuteamos as leis se
tornarem mais e mais deacutebeis e a variedade crescer constantemente afirma Peirce Contudo ainda
que a aproximaccedilatildeo do iniacutecio absoluto se tornasse cada vez maior natildeo poderiacuteamos atingi-lo
Como aponta Hookway
Ainda que nunca atingiacutessemos o caos inicial de sentimentos ainda assim
poderiacuteamos ficar arbitrariamente proacuteximos dele se continuaacutessemos por um
tempo suficiente longo o caos eacute algo que a histoacuteria poderia abordar como um
limite e o pensamos como o ponto limite dessa histoacuteria (HOOKWAY 1985 p
273)
49
Do mesmo modo pensar o fim uacuteltimo do universo como um estado absolutamente
ordenado e regular eacute tambeacutem um limite ao qual podemos apenas nos aproximar mais e mais sem
contudo alcanccedilar Quando Peirce se refere a tais estados limites coloca-os em momentos
infinitamente distantes e infinito aqui natildeo deve ser interpretado como uma figura de linguagem
mas como refletindo exatamente o intervalo que nos separa desses momentos
A outra criacutetica possiacutevel eacute a de que Peirce postula a existecircncia de um caos de indeterminaccedilatildeo
e possibilidades sem contudo fornecer qualquer explicaccedilatildeo ao mesmo Formulada de outra
forma bastante proacutexima da criacutetica endereccedilada a Peirce por Paul Carus49 como explicar a
presenccedila desses elementos fundamentais indicados por Peirce como iniciadores do processo de
desenvolvimento evolutivo do universo isto eacute do caos inicial das reaccedilotildees ao acaso e da
tendecircncia ao haacutebito
Em 1892 no texto ldquoA doutrina da necessidade examinadardquo ao realizar a defesa da
existecircncia do acaso absoluto como um princiacutepio operante no desenvolvimento do cosmo Peirce
afirma que a lei eacute justamente aquilo que necessita de uma explicaccedilatildeo ao passo que exigir o
mesmo para o acaso seria um equiacutevoco O caos inicial natildeo eacute ou seja natildeo possui o predicado de
existecircncia visto que a potencialidade eacute sua uacutenica propriedade A existecircncia segundo a
abordagem peirceana eacute uma relaccedilatildeo de dois caracterizada pelo atrito e pela resistecircncia o caos
inicial eacute pura possibilidade de qualidade e enquanto tal apresenta apenas relaccedilotildees monaacutedicas
radicalmente livres Como afirma Hookway ldquo() o caos inicial - sendo um estado carente de
existecircncia ou realidade um estado de puro nada - natildeo eacute o tipo de coisa que precisa ser explicadordquo
(HOOKWAY 1985 p 274) Nem o caos inicial e nem mesmo os eventos puramente reativos ou
flashes necessitam de qualquer explicaccedilatildeo o mesmo natildeo se pode dizer contudo da tendecircncia agrave
aquisiccedilatildeo de haacutebitos que eacute uma regularidade Seguindo o mesmo raciociacutenio que fizemos
anteriormente se retornaacutessemos ao passado veriacuteamos o poder da tendecircncia agrave aquisiccedilatildeo de
haacutebitos diminuir cada vez mais contudo nunca chegariacuteamos a um momento em que estivesse
ausente dos ingredientes constituintes do cosmo E na medida em que eacute uma possibilidade a sua
49 Editor do The Monist jornal que recebeu muitas contribuiccedilotildees de Peirce
50
origem pode ser explicada a partir da espontaneidade do caos inicial
22 O ACASO
Para Peirce a adoccedilatildeo da noccedilatildeo de acaso eacute em primeiro lugar uma necessidade da proacutepria
teoria da explicaccedilatildeo A sua introduccedilatildeo eacute feita por meio da sujeiccedilatildeo a um imperativo loacutegico
alusivo agrave hipoacutetese peirceana de que toda questatildeo que possa ser formulada de modo inteligiacutevel
tem necessariamente que possuir uma resposta racional Como afirma em um texto de 1884
ldquoDesiacutegnio e acasordquo
() a hipoacutetese do acaso absoluto eacute parte e parcela da hipoacutetese de que tudo eacute
explicaacutevel natildeo absolutamente rigidamente sem a menor inexatidatildeo ou exceccedilatildeo
esporaacutedica pois esta eacute uma suposiccedilatildeo autocontraditoacuteria contudo explicaacutevel de
modo geral A capacidade de explicaccedilatildeo natildeo tem limite determinado amp absoluto
(W 4 p 549 1883-4)50
O imperativo que manda ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo tem nessas palavras
uma de suas traduccedilotildees Como aponta Peirce um dos principais defeitos das teorias deterministas
encontra-se no fato de que elas deixam sem explicaccedilatildeo uma seacuterie de aspectos do cosmo O que
dizer sobre a proacutepria origem das leis deterministas Por que o universo segue estas leis e natildeo
outras E quanto agrave diversidade observada no universo Como ela eacute possiacutevel Como do
indiferenciado pocircde surgir a diferenccedila por meio da atuaccedilatildeo de leis estritamente deterministas
que levam de causas idecircnticas a efeitos idecircnticos A resposta a estas questotildees expande o universo
da inteligibilidade humana Eacute justamente o que pretende Peirce com a elaboraccedilatildeo e exploraccedilatildeo da
50 () the hypothesis of absolute chance is part and parcel of the hypothesis that everything is explicable not
absolutely rigidly without the smallest inexactitude or sporadic exception for that is a self-contradictory supposition
but yet explicable in a general way Explicability has no determinate amp absolute limit
51
hipoacutetese do acaso como um ingrediente essencial da constituiccedilatildeo do universo tal qual o
percebemos
Um dos aspectos mais originais do pensamento de Charles S Peirce eacute a presenccedila de um
princiacutepio de indeterminaccedilatildeo como elemento fundador de sua cosmologia Contrariamente a
muitos que procuram insistentemente ancorar a realidade sobre a permanecircncia e a imutabilidade
de certos elementos Peirce assume de maneira inquestionaacutevel a liberdade e a falta de
necessidade do mundo ser como eacute Ainda que o processo de desenvolvimento se decirc em funccedilatildeo de
certos princiacutepios norteadores natildeo haacute impedimento algum que barre a irrupccedilatildeo da novidade
radical no rearranjo de seus constituintes Um fato que na visatildeo de Peirce natildeo pode ser ignorado
eacute o de que o universo demonstra um processo de contiacutenuo crescimento que propicia o aumento
da complexidade de forma irreversiacutevel
O acaso eacute o elemento central da tese peirceana do indeterminismo denominada de tiquismo
(ver REYNOLDS 2009 SALATIEL 2008) Com o tiquismo o autor afirma que haacute no mundo
um caraacuteter de real espontaneidade natildeo devido agrave nossa subjetividade ou incapacidade cognitiva
mas agrave sua proacutepria constituiccedilatildeo ontoloacutegica Esse elemento nega a possibilidade do
desenvolvimento necessaacuterio dos sistemas determinados pelas leis mecacircnicas e pelas condiccedilotildees
iniciais as quais soacute podem ser entendidas como estatiacutesticas Peirce explica dessa maneira que
pela atuaccedilatildeo do acaso surgem a novidade e a variedade no universo
A concorrecircncia desses dois ingredientes acaso e lei implica a elaboraccedilatildeo de uma
epistemologia falibilista ou seja natildeo haacute verdades absolutas na concepccedilatildeo peirceana apenas
aproximaccedilotildees O erro eacute sempre uma possibilidade presente na tentativa de compreensatildeo realizada
pelo homem Para o filoacutesofo
() o universo natildeo eacute um mero resultado mecacircnico da atuaccedilatildeo cega da lei O
mais oacutebvio de seus caracteres natildeo pode ser explicado Satildeo os numerosos fatos da
experiecircncia que nos mostra isso mas aquilo que abriu os nossos olhos para esses
52
fatos eacute o princiacutepio do falibilismo (CP 1 sect 162 1897)51
Peirce eacute bastante radical ao afirmar que natildeo haacute crenccedilas estabelecidas na ciecircncia Todas as
proposiccedilotildees aceitas estatildeo sujeitas ao confronto com a experiecircncia Nas palavras do autor
() ciecircncia pura natildeo tem nada a ver com accedilatildeo As proposiccedilotildees aceitas satildeo
meramente escritas na lista de premissas que se propotildee a usar Nada eacute vital para
a ciecircncia nada pode ser Suas proposiccedilotildees aceitas portanto natildeo satildeo mais que
opiniotildees e a lista toda eacute provisoacuteria O homem cientiacutefico natildeo estaacute minimamente
soldado agraves suas conclusotildees Ele nada arrisca por elas Permanece apto a
abandonar uma ou todas tatildeo logo a natureza a elas se oponha Algumas delas eu
concedo satildeo habitualmente chamadas de verdades estabelecidas mas isto
meramente indica proposiccedilotildees a que nenhum homem experiente se opotildee hoje
Parece que qualquer proposiccedilatildeo provaacutevel daquele tipo permaneceraacute por um
longo tempo na lista de proposiccedilotildees a serem admitidas Contudo ela pode ser
refutada amanhatilde e se for assim o homem cientiacutefico se alegraraacute de ter se livrado
de um erro Natildeo haacute desse modo na ciecircncia proposiccedilotildees que respondam pelo
conceito de crenccedila (CP 1 sect 635 1908)52
Para Peirce existe uma afinidade natural entre o princiacutepio de continuidade e a doutrina do
falibilismo nunca podemos estar certo da verdade de nossas crenccedilas pois natildeo podemos comparaacute-
las com os fatos natildeo mentais
51 () the universe is not a mere mechanical result of the operation of blind law The most obvious of all its
characters cannot be so explained It is the multitudinous facts of all experience that show us this but that which has
opened our eyes to these facts is the principle of fallibilism 52
() pure science has nothing at all to do with action The propositions it accepts it merely writes in the list of
premisses it proposes to use Nothing is vital for science nothing can be Its accepted propositions therefore are but
opinions at most and the whole list is provisional The scientific man is not in the least wedded to his conclusions
He risks nothing upon them He stands ready to abandon one or all as soon as experience opposes them Some of
them I grant he is in the habit of calling established truths but that merely means propositions to which no
competent man today demurs It seems probable that any given proposition of that sort will remain for a long time
upon the list of propositions to be admitted Still it may be refuted tomorrow and if so the scientific man will be
glad to have got rid of an error There is thus no proposition at all in science which answers to the conception of
belief
53
O princiacutepio da continuidade eacute a ideia do falibilismo objetivado Pois o
falibilismo eacute a doutrina de que o nosso conhecimento nunca eacute absoluto mas
sempre flutua como se estivesse em um contiacutenuo de incerteza e
indeterminaccedilatildeo A doutrina da continuidade eacute a de que todas as coisas flutuam da
mesma maneira no continuum (CP 1 sect 171 1897)53
A passagem da natildeo existecircncia do universo agrave existecircncia se daacute por meio da evoluccedilatildeo ou
crescimento da lei em um processo no qual interferem tanto a criatividade radical fornecida pelo
acaso quanto a proacutepria lei que se fortalece com sua proacutepria aplicaccedilatildeo
Em resumo podemos dizer que do ponto de vista cosmoloacutegico o desenrolar dos
acontecimentos no universo se processa de maneira contiacutenua Esse desenvolvimento que para
Peirce eacute bem caracterizado pelo termo bdquocrescimento‟ molda dentro de sua concepccedilatildeo
cosmoloacutegica todos os elementos constituintes de nosso universo desde o mais riacutegido dos
elementos ateacute aqueles mais volaacuteteis desde um diamante ateacute a proacutepria mente humana Esse
universo em crescimento encontra no acaso seu constituinte fundamental como uma
decorrecircncia loacutegica necessaacuteria do princiacutepio que manda natildeo postular o incognosciacutevel no seio da
natureza (cf CP 6 sect 64 1892) e que Peirce assume como uma regra do meacutetodo cientiacutefico Na
passagem do acaso primordial ao universo ordenado e regido por leis interfere um princiacutepio que o
autor denomina de lei da mente ou princiacutepio de aquisiccedilatildeo de haacutebitos
Eacute possiacutevel enxergar a elaboraccedilatildeo teoacuterica peirceana como a resultante de um diaacutelogo com a
Ciecircncia e a Matemaacutetica do seacuteculo XIX A leitura que Peirce fez da obra de Charles Darwin
(1809ndash1882) bem como os avanccedilos da teoria matemaacutetica da probabilidade e estatiacutestica e da
mecacircnica estatiacutestica com os quais teve iacutentimo contato forneceram as bases para pensar a
variaccedilatildeo e o acaso54 Eacute com base nesse conceito que Peirce proporaacute uma alternativa ao modelo de
53 The principle of continuity is the idea of fallibilism objectified For fallibilism is the doctrine that our knowledge is
never absolute but always swims as it were in a continuum of uncertainty and of indeterminacy Now the doctrine
of continuity is that all things so swim in continua 54
Os termos usados por Peirce para referenciar esse elemento de total liberdade existente no cosmo satildeo variation
sporting e chance que aparecem em vaacuterios momentos de sua obra principalmente apoacutes a leitura que realizou ainda
jovem da obra capital de Charles Darwin A origem das espeacutecies (1859)
54
cientificidade da eacutepoca que estava calcado em uma atitude fisicalista e determinista e defendia a
busca de leis mecacircnicas de alcance universal e necessaacuterio
23 A DOUTRINA DA NECESSIDADE
Em seu mais elaborado texto sobre sua posiccedilatildeo indeterminista A doutrina da necessidade
examinada Peirce inicia por apresentar a crenccedila bastante presente em seu tempo que seraacute objeto
de sua anaacutelise ldquo() que todo fato no universo eacute precisamente determinado por leirdquo (CP 6 sect 36
1892)55
Essa crenccedila que para muitos pode parecer bastante natural natildeo se impotildee a todas as
mentes racionais diraacute o autor A ideia de que haacute acontecimentos naturais que ocorrem sem
determinaccedilatildeo de uma lei eacute bastante difundida desde a origem da filosofia56 e estaacute presente ateacute
mesmo nos trabalhos de Aristoacuteteles57 Natildeo obstante estas constataccedilotildees a tese do determinismo
aparece como inquestionaacutevel para os cientistas de seu tempo e podemos dizer ainda manteacutem
cativos vaacuterios pensadores no presente seacuteculo Parafraseando Pierre Simon Laplace (1749 ndash 1827)
o fiacutesico francecircs do seacuteculo XVIII que popularizou esta teoria Peirce sintetiza a crenccedila no
determinismo nas seguintes palavras
A proposiccedilatildeo em questatildeo eacute a de que o estado das coisas existentes em qualquer
tempo junto com certas leis imutaacuteveis determina completamente o estado de
coisas em qualquer outro tempo (pois a limitaccedilatildeo do tempo futuro eacute
indefensaacutevel) Assim dado o estado do universo na neacutebula original e dadas as
leis da mecacircnica uma mente suficientemente poderosa poderia deduzir a partir
desses dados a forma precisa de qualquer volteio de qualquer letra que estou
55 () that every single fact in the universe is precisely determined by law
56 Basta ver o trabalho de Epicuro que tomando a doutrina dos atomistas afirma que os aacutetomos desviam-se de seu
curso sob a accedilatildeo do acaso espontacircneo 57
Segundo Peirce Aristoacuteteles condena as doutrinas deterministas afirmando que os eventos podem surgir de trecircs
modos diferentes ldquo(1) por compulsatildeo externa ou accedilatildeo de causas eficientes (2) por virtude da natureza interna ou
influecircncia de causas finais e (3) irregularmente sem qualquer causa definida soacute pelo acaso absolutordquo (CP 6 sect 36
1892)
55
agora escrevendo (CP 6 sect 37 1892)58
A abordagem dos deterministas eacute dita em termos da teoria das categorias peirceana
carregada da noccedilatildeo de secundidade Como aponta o autor a questatildeo natildeo precisa nem ser
colocada em termos da negaccedilatildeo da noccedilatildeo de primeiridade59
que poderia muito bem ser admitida
pelos defensores do determinismo no niacutevel atocircmico sem grandes implicaccedilotildees O que tais
defensores natildeo podem aceitar eacute ldquo() a atribuiccedilatildeo dessa primeiridade a coisas completamente
mortas e materiaisrdquo (CP 6 sect 201 1898)60
Aqueles que comungam do credo determinista utilizam-se de dois tipos principais de
argumentos para justificaacute-lo Em primeiro lugar afirmam que ele deve ser visto como um
postulado que possibilita a praacutetica e o desenvolvimento da ciecircncia e em segundo lugar
acrescentam que a observaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais fornece evidecircncias suficientes para a sua
defesa
Sigamos mais um pouco na anaacutelise realizada por Peirce enfocando cada uma das
justificaccedilotildees Quanto agrave primeira justificativa o autor se pergunta o que se entende por postulado e
responde que ldquoEacute a formulaccedilatildeo de um fato material o qual natildeo estamos autorizados a assumir
como uma premissa mas cuja verdade eacute necessaacuteria para a validade de uma inferecircnciardquo (CP 6 sect
41 1892)61
Assim um postulado pode ser um fato que obtemos ou natildeo em nossa experiecircncia
Caso faccedila parte do mundo vivido estariacuteamos autorizados a utilizaacute-lo como premissa caso natildeo
faccedila parte ele deve ser justificado pela possibilidade de ser de outra maneira do que a assumida
isto eacute o postulado eacute vaacutelido na medida em que a experiecircncia o justifica De qualquer modo ldquo()
58 The proposition in question is that the state of things existing at any time together with certain immutable laws
completely determine the state of things at every other time (for a limitation to future time is indefensible) Thus
given the state of the universe in the original nebula and given the laws of mechanics a sufficiently powerful mind
could deduce from these data the precise form of every curlicue of every letter I am now writing 59
Primeiridade ou firstness eacute uma das categorias fenomenoloacutegicas peirceana sua caracteriacutestica principal eacute a
liberdade e espontaneidade 60
() the attribution of this firstness to things perfectly dead and material 61
It is the formulation of a material fact which we are not entitled to assume as a premiss but the truth of which is
requisite to the validity of an inference
56
cada postulado eacute eliminado quer por serem provisoacuterios ou pela experiencialidade de nossa
inferecircnciardquo (CP 6 sect 41 1892)62
O que Peirce estaacute discutindo eacute o tipo de validade que podemos atribuir ao raciociacutenio
indutivo e o grau de certeza dele decorrente Ainda que esse tema tenha sido tratado de modo
mais demorado em outros momentos da sua produccedilatildeo reportaremos apenas aos elementos
contidos na elaboraccedilatildeo do texto em anaacutelise
Natildeo se pode negar a existecircncia e a utilidade do pensamento indutivo poreacutem o que se
coloca em questatildeo eacute a necessidade de suas conclusotildees Os indutivistas afirmam que se tomarmos
um conjunto de amostras sucessivas devolvendo cada uma ao conjunto antes que a proacutexima
amostra seja retirada verificar-se-aacute apoacutes certo nuacutemero de vezes a tendecircncia de que cada
elemento seraacute retirado com a mesma frequecircncia Ou seja que ldquo() a razatildeo do nuacutemero de vezes
nas quais quaisquer dois satildeo retirados aproximaraacute indefinidamente da unidaderdquo (CP 6 sect 41
1892)63
Mas isso natildeo acontece afirma Peirce pois o que eacute medido eacute a proacutepria razatildeo de cada
amostra e natildeo a razatildeo do conjunto que permanece latente e desconhecida que eacute justamente o que
se quer determinar Por outro lado basta consultar a experiecircncia para saber que os elementos
obtidos na primeira amostra seratildeo mais frequentes depois de uma grande quantidade de amostras
Os indutivistas dizem ainda que ldquo() sob circunstacircncias semelhantes eventos semelhantes
ocorreratildeo e que este postulado eacute na base o mesmo que o princiacutepio da causalidade universalrdquo
(CP 6 sect 41 1892)64
Segundo Peirce essa afirmaccedilatildeo natildeo passa de uma grande bobagem devido
a pensadores que acreditam que as respostas soacute possam ser dadas em termos absolutos de 0 ou 1
Existe uma infinidade de possibilidades entre esses dois valores que deve ser levada em
consideraccedilatildeo
Em resumo poderiacuteamos dizer que uma quantidade fiacutesica nunca eacute do tipo absoluto A
62 () every postulate is cut off either by the provisionality or by the experientiality of our inference
63 () that the ratio of the numbers of times in which any two are drawn will indefinitely approximate to unity
64 () under like circumstances like events will happen and that this postulate is at bottom the same as the principle
of universal causation
57
praacutetica laboratorial de Peirce como eacute por ele ressaltada vaacuterias vezes em sua obra mostrou-lhe
que as quantidades fiacutesicas satildeo sempre estatiacutesticas e podem ser representadas por um conjunto de
valores aproximados graficamente transcritos na curva-sino das equaccedilotildees estatiacutesticas
Quanto ao segundo tipo de justificaccedilatildeo Peirce afirma que eacute de um tipo especial e que se a
primeira justificativa puder ser rebatida com um argumento que qualquer ser racional possa
aceitar a referecircncia agrave observaccedilatildeo da natureza requer um tipo especial de anaacutelise que natildeo
obstante deveria convencer uma pessoa acostumada a pensar cientificamente
A essecircncia da argumentaccedilatildeo dos que julgam as leis da natureza necessaacuterias eacute de que ldquo()
certas quantidades contiacutenuas tecircm certos valores exatosrdquo (CP 6 sect 44 1892)65
mas como a
observaccedilatildeo poderia determinar o valor de tal quantidade com erro nulo ndash pergunta-se o autor Se
for possiacutevel encontrar um meacutetodo para se determinar um valor absoluto para as quantidades na
fiacutesica ele deveraacute ser buscado em uma esfera diferente daquela da observaccedilatildeo
Se natildeo conhecemos o conjunto completo do qual uma determinada amostra foi retirada
natildeo estamos autorizados a sustentar que natildeo haacute nele qualquer traccedilo de um elemento que
aparentemente encontra-se ausente Dessa maneira natildeo temos porque sustentar que natildeo haja
qualquer elemento de acaso ou desvios espontacircneos agindo em qualquer lei da natureza
A observaccedilatildeo que inicialmente eacute tida pelos deterministas como uma justificativa em favor
de suas teses eacute apropriada por Peirce que a transforma em um argumento favoraacutevel agrave sua proacutepria
posiccedilatildeo Por meio da observaccedilatildeo afirma o autor apenas se constata que haacute certas regularidades
agindo na natureza mas isso natildeo eacute suficiente para afirmar que essas regularidades possam ser
elevadas agrave condiccedilatildeo de leis absolutas e necessaacuterias Ao contraacuterio quanto mais acuradas forem as
observaccedilotildees mais ficaraacute demonstrado que haacute uma irregularidade reinante nos fatos naturais Nas
palavras de Peirce ldquoTente verificar qualquer lei da natureza e vocecirc apuraraacute que quanto mais
precisas forem suas observaccedilotildees mais certamente elas mostraratildeo desvios irregulares da leirdquo (CP
65 () certain continuous quantities have certain exact values
58
6 sect 46 1892)66
Mesmo aqueles que retrocederem nas cadeias causais dos fatos seratildeo forccedilados a
admitir que estes sejam sempre devidos a determinaccedilotildees arbitraacuterias ou ao acaso
Tendo rebatido as pretensotildees dos deterministas do modo que se viu Peirce passaraacute a expor
aquilo que nos interessa de maneira mais especiacutefica neste texto em que consiste e como pode ser
pensado o acaso absoluto
Procedendo de maneira bastante didaacutetica o autor defenderaacute sua concepccedilatildeo de acaso em
face dos principais argumentos que podem ser colocados contra a sua existecircncia Eacute novamente na
ciecircncia da sua eacutepoca que Peirce buscaraacute elementos para defesa de sua tese Ele diz que eacute natural
esperar que ldquo() se houve um elemento de acaso real no universo deve natildeo ocasionalmente ser
produtor de efeitos sinalizadores de tal forma que natildeo passariam sem observaccedilatildeordquo (CP 6 sect 47
1892)67
Aleacutem da grande quantidade de eventos que podem comprovar esta tese para quem estaacute
disposto a observar eacute a proacutepria ciecircncia que trata dos movimentos dos gases que aponta para o
fato de que o comportamento dos mesmos muitas vezes parece contrariar a segunda lei da
termodinacircmica indicando que se deslocam como que ao acaso promovendo certas concentraccedilotildees
que algumas vezes resultam em efeitos bastante explosivos Dessa maneira a observaccedilatildeo que eacute
utilizada para referendar a posiccedilatildeo determinista acaba por se tornar diante da argumentaccedilatildeo do
autor em uma defesa da noccedilatildeo de acaso
Outros defensores do determinismo insistem em sustentar que sua posiccedilatildeo eacute uma crenccedila
natural e que em geral as crenccedilas naturais satildeo confirmadas pela experiecircncia A esse argumento
Peirce responde dizendo que de fato as crenccedilas naturais devem ser analisadas com bastante
cuidado e purificadas a partir de suas primeiras formulaccedilotildees que em geral satildeo errocircneas A
aproximaccedilatildeo da verdade que tais crenccedilas parecem apresentar eacute o resultado da adaptaccedilatildeo de ldquo()
produtos geneacuteticos a utilidades reconheciacuteveis ou finsrdquo (CP 6 sect 50 1892)68
Mas esse tipo de
66 Try to verify any law of nature and you will find that the more precise your observations the more certain they
will be to show irregular departures from the law 67
() if there were an element of real chance in the universe it must not occasionally be productive of signal effects
such as could not pass unobserved 68
() genetic products to recognizable utilities or ends
59
adaptaccedilatildeo conquanto belo e maravilhoso demonstra natildeo ser exatamente perfeito ldquo() de tal
modo que o argumento eacute quase contra a exatidatildeo absoluta de qualquer crenccedila natural incluindo
aquela do princiacutepio de causalidaderdquo (CP 6 sect 50 1892)69
Outro argumento comumente utilizado eacute de que a noccedilatildeo de acaso absoluto eacute inconcebiacutevel
Esse tipo de desconsideraccedilatildeo a priori pode ser rebatido de maneira bastante simples afirma
Peirce Ora o termo acaso possui uma grande diversidade de significado e mesmo que se
especificasse o sentido do mesmo seria possiacutevel mostrar que natildeo se tem razatildeo para fazer tal
afirmaccedilatildeo sem contar o fato de que a inconceptibilidade (inconceivability) natildeo eacute um tipo de
atribuiccedilatildeo que implica na natildeo existecircncia do acaso
Um outro argumento a priori eacute o que defende a ideia de que o acaso absoluto eacute
ininteligiacutevel isto eacute
() enquanto ele talvez possa ser concebiacutevel ele natildeo abre o olho da razatildeo para o
como ou o porquecirc das coisas e uma vez que uma hipoacutetese somente pode ser
justificada na medida em que causa algum fenocircmeno inteligiacutevel nunca
poderemos ter qualquer razatildeo de supor o acaso absoluto como entrando na
produccedilatildeo de qualquer coisa na natureza (CP 6 sect 52 1892)70
Esse argumento como aponta Peirce estaacute em estreita conexatildeo com os outros dois
anteriores Em primeiro lugar indica que natildeo haacute qualquer fato que possa ser por ele explicado
sendo portanto desnecessaacuterio e indica na sequecircncia que jaacute que as variaccedilotildees na atuaccedilatildeo das leis
natildeo podem ser observadas inequivocamente o acaso absoluto natildeo pode ser vera causa natildeo
havendo um lugar para ele em nossos esquemas de explicaccedilatildeo dos acontecimentos naturais
Para rebater esse argumento Peirce cria um diaacutelogo imaginaacuterio com um defensor do
69 () so that the argument is quite against the absolute exactitude of any natural belief including that of the
principle of causation 70
() while it may perhaps be conceivable it does not disclose to the eye of reason the how or why of things and
since a hypothesis can only be justified so far as it renders some phenomenon intelligible we never can have any
right to suppose absolute chance to enter into the production of anything in nature
60
determinismo no qual deixa claro quais satildeo os elementos existentes na sua noccedilatildeo de acaso
absoluto bem como suas principais diferenccedilas com respeito agrave tese adversaacuteria
Em primeiro lugar a atuaccedilatildeo real do acaso como uma causa dos eventos naturais natildeo nega
a existecircncia de regularidades no mundo apenas requer que sejam interpretadas como estatiacutesticas
e natildeo absolutas Pois a defesa da existecircncia de regularidades absolutas ou seja da atuaccedilatildeo de
leis naturais necessaacuterias implicaria em afirmar que toda a diversidade e toda novidade que
podem ser constatadas em qualquer evento natural por mais simples que seja como por
exemplo o jogo de dados tenham sido introduzidas no universo de uma soacute vez no iniacutecio de tudo
Assim o incremento da diversidade da natureza seria apenas uma ilusatildeo jaacute que sob a accedilatildeo das
leis mecacircnicas nada de absolutamente novo poderia surgir
As leis mecacircnicas apresentam ainda uma caracteriacutestica que parece incompatiacutevel com os
fenocircmenos naturais tanto orgacircnicos quanto inorgacircnicos elas ignoram a flecha do tempo Como
aponta Andrew Reynolds (2002) um aspecto central da Fiacutesica de entatildeo pode ser encontrado no
uso de leis matemaacuteticas exatas para descrever o movimento
Uma caracteriacutestica da expressatildeo matemaacutetica das leis de Newton (em termos de
equaccedilotildees diferenciais que descrevem a taxa de variaccedilatildeo das quantidades fiacutesicas
como uma funccedilatildeo do tempo) eacute sua invariacircncia sob o que acarretaria uma
reversatildeo da direccedilatildeo do bdquofluxo‟ do tempo (REYNOLDS 2002 p 2)
Natildeo haacute segundo esta abordagem qualquer dificuldade fiacutesica na ocorrecircncia de um evento
que inverta a flecha do tempo Por exemplo
Natildeo haacute nada nas proacuteprias leis isso eacute que especifica que uma xiacutecara fria de cafeacute
com creme mexida uniformemente natildeo possa em seus proacuteprios termos
absorver calor do ambiente circundante e tornar-se uma xiacutecara de cafeacute quente
nem as leis proiacutebem que o creme poderia espontaneamente separar-se a si
proacuteprio do cafeacute e pular bdquode volta‟ no tubo de creme do qual ele veiordquo
(REYNOLDS 2002 p 3)
61
A descriccedilatildeo deste evento imaginaacuterio eacute totalmente contraacuteria agraves ocorrecircncias normais Peirce
aponta que a abordagem determinista dos eventos natildeo consegue explicar o porquecirc de a grande
maioria dos eventos ser experienciada em uma ordem irreversiacutevel de acontecimentos que seguem
do passado para o futuro e natildeo o contraacuterio
As razotildees que conduzem o autor a defender a ideia de que a diversidade do mundo tem
crescido continuamente e de que este fato natildeo pode ser explicado a partir da abordagem
determinista satildeo sintetizadas em cinco itens que passamos a elencar
(1) A natureza explicada segundo leis mecacircnicas prescinde do curso do tempo Aqui Peirce
sustenta sua ideia de crescimento contiacutenuo do universo apelando para as ciecircncias que tecircm
no tempo uma variaacutevel imprescindiacutevel para as suas elaboraccedilotildees e descobertas Basta
inquirir agrave paleontologia ou agrave geologia ou ateacute mesmo agrave astronomia para se constatar que
haacute um crescimento e aumento da complexidade em cada um de seus objetos de estudo
(2) A diversidade e a novidade existentes no mundo natildeo podem ser adequadamente
explicadas pela atuaccedilatildeo de leis mecacircnicas absolutas Pois eacute da essecircncia de uma lei que
causas idecircnticas sempre produzam os mesmos efeitos Desse modo uma hipoacutetese
razoaacutevel eacute que sejam os resultados das pequenas variaccedilotildees ocorridas no momento da
atuaccedilatildeo da lei os responsaacuteveis pelo crescimento da complexidade existente
(3) A hipoacutetese da existecircncia do acaso absoluto manifesto nas pequenas variaccedilotildees no
momento da atualizaccedilatildeo das leis permite explicar como a diversidade surge Permite
ainda a justificaccedilatildeo da atuaccedilatildeo de um outro tipo de causalidade a da lei da mente que
explica a formaccedilatildeo da uniformidade constatada no universo Afirmar por outro lado que
a diversidade e irregularidade bem como uniformidade e regularidade existentes no
universo natildeo podem ser explicadas e nem mesmo deveriam ser questionadas como
fazem os deterministas significa ferir a primeira lei da loacutegica que consiste em natildeo
bloquear a investigaccedilatildeo
62
(4) A partir da introduccedilatildeo da causalidade mental ou causalidade teleoloacutegica em seu esquema
explicativo possibilitado pela inserccedilatildeo do acaso absoluto Peirce afirma ser possiacutevel
explicar diversos fenocircmenos que de outra maneira adquiririam o caraacuteter de
fantasmagoacuterico como por exemplo a consciecircncia e correlatos
(5) A mais importante razatildeo que permaneceraacute natildeo desenvolvida no texto em anaacutelise eacute a de
que ldquoa hipoacutetese do acaso-espontaneidade eacute uma daquelas consequecircncias inevitaacuteveis
capazes de serem formuladas com precisatildeo matemaacutetica em consideraacutevel detalherdquo (CP 6 sect
62 1892)71
Tem-se desse modo uma defesa da presenccedila do acaso no mundo que natildeo apenas recebe o
suporte das observaccedilotildees e evidecircncias que estatildeo disponiacuteveis para quem as desejar constatar como
parece se impor como uma evidecircncia para todo aquele que estaacute familiarizado com a praacutetica
cientiacutefica E que ainda fornece uma hipoacutetese explicativa para os fenocircmenos naturais tanto da
diversidade como da uniformidade do mundo que impulsiona o desenvolvimento de futuras
pesquisas sem postular o incompreensiacutevel como constituinte da natureza
Resumindo podemos dizer que contra a argumentaccedilatildeo peirceana os deterministas soacute
poderiam responder de uma das trecircs maneiras elencadas abaixo
(1) O acaso eacute algo absolutamente ininteligiacutevel
(2) Natildeo haacute qualquer fenocircmeno no qual a atuaccedilatildeo do acaso possa ser observada de forma
inequiacutevoca
(3) O acaso natildeo pode ser uma vera causa
Quanto agrave objeccedilatildeo (1) Peirce indica que sua hipoacutetese do acaso absoluto diferentemente da
tese determinista fornece uma explicaccedilatildeo para o surgimento tanto das irregularidades quanto das
71 The hypothesis of chance-spontaneity is one whose inevitable consequences are capable of being traced out with
mathematical precision into considerable detail
63
uniformidades existentes no universo O que parece ser um ganho consideraacutevel uma vez que
desobstrui os caminhos da investigaccedilatildeo cientiacutefica Um aspecto como jaacute vimos que fornece um
suporte extra a esta hipoacutetese eacute o fato que ela daacute lugar agrave elaboraccedilatildeo da lei da mente O acaso uma
vez manifestado desenvolve-se segundo determinadas maneiras e natildeo de uma maneira qualquer eacute
sob a atuaccedilatildeo da lei da mente ou lei da aquisiccedilatildeo de haacutebito ou simplesmente lei do haacutebito que
ele produz consequecircncias ou permanece inerte
A objeccedilatildeo do tipo (2) eacute na visatildeo de Peirce bastante ingecircnua pois parece ignorar todos os
avanccedilos cientiacuteficos que se verificaram nas aacutereas de astronomia biologia ou geologia
permanecendo cega para os fenocircmenos de crescimento de diversidade ou evoluccedilatildeo Esses
fenocircmenos satildeo totalmente refrataacuterios agrave abordagem mecanicista no entender desse autor
Compondo com esses fenocircmenos aparece a consciecircncia como outro empecilho agraves pretensotildees dos
mecanicistas que se fiam unicamente na ideia de regularidade para compor o seu quadro
explicativo Com essa atitude a noccedilatildeo de regularidade absoluta serve apenas ldquo() para bloquear
o caminho da investigaccedilatildeordquo (CP 6 sect 64 1892)72
Agrave acusaccedilatildeo (3) de que o acaso natildeo pode ser considerado uma vera causa Peirce responde
dizendo que esta criacutetica natildeo pode ser aplicada a concepccedilotildees elementares Se levarmos a seacuterio esta
acusaccedilatildeo seria preciso reavaliar a proacutepria crenccedila na existecircncia do universo material uma vez que
a variedade eacute um fato que natildeo pode ser ignorado
Tendo assim defendido a existecircncia do acaso absoluto Peirce acredita que natildeo resta duacutevida
que as pesquisas devam ser refeitas e direcionadas para novas bases que levem em consideraccedilatildeo o
caraacuteter estatiacutestico das regularidades bem como o indeterminismo reinante no universo que em
uacuteltima instacircncia eacute a fonte de diversidade e novidade existentes
72 () to block the road of inquiry
64
3 A LEI
Se de um lado temos no acaso um dos constituintes fundamentais da realidade do outro
encontramos no continuum ou nas leis outro elemento de igual importacircncia A elaboraccedilatildeo que
Peirce oferece deste toacutepico estaacute em estreita conexatildeo com a matemaacutetica dos infinitesimais por ele
estudada Nosso interesse aqui natildeo eacute o de aprofundar tais concepccedilotildees que seratildeo analisadas em
capiacutetulo posterior procuramos apenas extrair algumas caracteriacutesticas de sua descriccedilatildeo que
suportem a nossa anaacutelise da lei da mente A questatildeo levantada por Peirce e que serviraacute de guia
para a nossa discussatildeo seraacute a de Como pode uma ideia passada estar presente (CP 6 sect 109
1892)73
A resposta por ele proposta eacute de que devemos estar diretamente conscientes das ideias
do passado imediato Caso houvesse uma lacuna entre nosso conhecimento presente e as ideias
do passado todo o nosso conhecimento do passado natildeo seria mais do que uma ilusatildeo Assim
como consequecircncia devemos estar conscientes do passado ldquoatraveacutes de um intervalo de tempo
infinitesimalrdquo (CP 6 sect 110 1892)74
Nessa mesma linha aponta Hausman ldquosomos levados a
concentrar nosso exame da experiecircncia de ser consciente atraveacutes de um fluxo de tempo que deve
ser compreendido em termos de componentes infinitesimaisrdquo (HAUSMAN 1993 p 179)
Natildeo temos por conseguinte uma apreensatildeo completa e definida de uma ideia em um
determinado instante do tempo A cogniccedilatildeo se daacute no continuum apenas atraveacutes de um processo
de imbricaccedilatildeo das ideias que ocorre por meio de uma sucessatildeo de intervalos infinitesimais no
tempo Durante tais intervalos diraacute Peirce ldquopercebemos diretamente a sequecircncia temporal de seu
iniacutecio meio e fim ndash natildeo naturalmente como uma recogniccedilatildeo pois a recogniccedilatildeo eacute unicamente do
passado mas como um sentimento imediatordquo (CP 6 sect 111 1892)75
Se em um primeiro instante temos acesso ao sentimento do imediato caracteriacutestico da
73 How can a past idea be present
74 () through an infinitesimal interval of time
75 In an infinitesimal interval we directly perceive the temporal sequence of its beginning middle and end -- not of
course in the way of recognition for recognition is only of the past but in the way of immediate feeling
65
categoria de primeiridade no segundo momento temos a percepccedilatildeo da passagem do tempo A
ligar esses dois temos um terceiro que indica uma direccedilatildeo e que requer uma interpretaccedilatildeo uma
inferecircncia na medida em que se obteacutem uma generalidade
Peirce continuaraacute dizendo que quando haacute ldquoum fluxo contiacutenuo de inferecircncias atraveacutes de um
tempo finitordquo o resultado ldquoseraacute uma consciecircncia objetiva mediata de tempo completo no
momento passadordquo (CP 6 sect 111 1892)76
Por meio desta anaacutelise o autor estaacute propondo uma
abordagem da relaccedilatildeo do fluxo temporal sentido e a interpretaccedilatildeo cognitiva do mesmo
A cogniccedilatildeo que eacute uma experiecircncia mediata requer a consideraccedilatildeo dos sentimentos
passados impondo a eles uma certa definiccedilatildeo de tal maneira que possam ser comparados o que
se daacute segundo um ato interpretativo Cada intervalo consiste em um momento da percepccedilatildeo
consciente de tal maneira que se pode afirmar que a proacutepria consciecircncia eacute contiacutenua
31 O IDEALISMO OBJETIVO
Peirce se autodenomina em algumas passagens de idealista objetivo afirmando a sua
diferenccedila com relaccedilatildeo ao monismo materialista Aponta que a diferenccedila entre os dois eacute que o
monista materialista toma a lei da mente como uma consequecircncia das leis da mateacuteria enquanto o
idealista objetivo toma as leis da mateacuteria como um resultado especial da lei da mente Um grande
problema para o materialista eacute explicar como as leis da mateacuteria que satildeo completamente cegas ou
natildeo teleoloacutegicas podem dar origem a uma mente que natildeo age cegamente mas que possui
propoacutesitos Peirce diraacute que o problema consiste em se compreender como a accedilatildeo teleoloacutegica ou
propositada pode ser um efeito secundaacuterio de uma accedilatildeo natildeo teleoloacutegica
76 Let there be not merely an indefinite succession but a continuous flow of inference through a finite time and the
result will be a mediate objective consciousness of the whole time in the last moment
66
A soluccedilatildeo para a questatildeo segue-se a partir da inspiraccedilatildeo darwiniana por meio da
combinaccedilatildeo de dois fatores as insensiacuteveis variaccedilotildees fortuitas e a destruiccedilatildeo das formas menos
aptas cujas transformaccedilotildees levam-nas aleacutem de certos limites O uacuteltimo desses fatores poderia ser
entendido como uma lei mecacircnica mas o que dizer do primeiro Pergunta-se Peirce
A necessidade de natildeo bloquear a via de investigaccedilatildeo como tantas vezes apontada pelo
autor natildeo eacute transgredida por esta pergunta irrespondiacutevel uma vez que seria um absurdo a
tentativa de explicaccedilatildeo do proacuteprio acaso pois as explicaccedilotildees se datildeo por meio de generalidades e
as variaccedilotildees fortuitas satildeo uacutenicas e autorreferentes Jaacute a lei da evoluccedilatildeo ou lei da mente necessita
de uma explicaccedilatildeo e pode ser aqui esboccedilada
32 A LEI DA MENTE
Peirce descreve a lei da mente como o fato de que as
() ideias tendem a se dispersar continuamente e a afetar certas outras que
permanecem em uma relaccedilatildeo peculiar de afetabilidade com relaccedilatildeo a ela Nesta
dispersatildeo elas perdem intensidade e especialmente o poder de afetar as outras
mas ganham em generalidade e se tornam amalgamadas com outras ideias (CP
6 sect 104 1892)77
Eacute natural atribuir a uma lei o caraacuteter de absoluta como o atribuiacutedo comumente agraves leis da
fiacutesica a lei da mente entretanto natildeo requer uma exata conformidade Como afirma Peirce ldquo() a
conformidade exata estaria em conflito inequiacutevoco com a lei uma vez que cristalizaria
instantaneamente o pensamento e impediria as formaccedilotildees posteriores de haacutebitosrdquo (CP 6 sect 23
77 () ideas tend to spread continuously and to affect certain others which stand to them in a peculiar relation of
affectibility In this spreading they lose intensity and especially the power of affecting others but gain generality
and become welded with other ideas
67
1891)78
A lei da mente apenas torna um certo sentimento mais provaacutevel (likely) Ou seja a lei da
mente inclina o curso futuro dos eventos a uma certa direccedilatildeo sem contudo determinaacute-lo
A partir dessas consideraccedilotildees Peirce conclui que o uacutenico tipo de causalidade primaacuteria deve
ser a causalidade final e que esta deve ser considerada uma lei de caraacuteter absoluto Assim sob a
atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um contiacutenuo crescimento da uniformidade
a partir das formas diferenciadas Mas as mudanccedilas divergentes da lei estatildeo agindo
perpetuamente a fim de aumentar a variedade do mundo e satildeo controladas por um tipo de seleccedilatildeo
natural ou de qualquer outro tipo (pois Peirce julga que a seleccedilatildeo natural natildeo seja por si soacute
suficiente) de tal forma que ldquo() o resultado geral deve ser descrito como bdquoheterogeneidade
organizada‟ ou melhor variedade racionalizadardquo (CP 6 sect 23 1891)79
O relato da hipoacutetese cosmoloacutegica elaborada por Peirce ressaltou a importacircncia fundamental
da noccedilatildeo de continuidade no interior de sua filosofia A compreensatildeo do sentido que a noccedilatildeo
adquire em sua obra tanto quanto da evoluccedilatildeo que sofreu conforme Peirce atingia sua
maturidade seratildeo de grande importacircncia para a compreensatildeo do modo de atuaccedilatildeo da causalidade
final Com o objetivo de compreender este tipo de causalidade faremos no proacuteximo capiacutetulo um
estudo mais aprofundado do sinequismo a teoria da continuidade elaborada pelo filoacutesofo
78 () exact conformity would be in downright conflict with the law since it would instantly crystallize thought and
prevent all further formation of habit 79
() the general result may be described as organized heterogeneity or better rationalized variety
68
CAPIacuteTULO 02
O SINEQUISMO
Infinity is nothing but a peculiar twist given to generality (CP 8 sect 268 1900)
69
Em funccedilatildeo da importacircncia adquirida pela noccedilatildeo de continuidade80
uma investigaccedilatildeo sobre
a teoria do sinequismo seraacute desenvolvida aqui definida por Peirce como ldquoaquela tendecircncia do
pensamento filosoacutefico que insiste sobre a ideia de continuidade como sendo de grande
importacircncia em filosofia e em particular sobre a necessidade de hipoacuteteses que envolvam
verdadeira continuidaderdquo (CP 1 sect 169 1902)81
Em carta a William James de 1900 Peirce
afirma que o sinequismo eacute ldquoa pedra angular do arcordquo (CP 8 sect 257 1900)82
isto eacute o ponto de
apoio que daacute sustentaccedilatildeo a toda sua filosofia
Diferentemente dos matemaacuteticos da eacutepoca que trataram a questatildeo da continuidade o
interesse de Peirce pelo toacutepico foi motivado principalmente por uma preocupaccedilatildeo loacutegica e
filosoacutefica e que natildeo decorre somente das questotildees suscitadas pela anaacutelise matemaacutetica Como
afirma em 1897
() uma abordagem loacutegica perfeitamente satisfatoacuteria da concepccedilatildeo de
continuidade eacute exigida O que envolve a definiccedilatildeo de um certo tipo de infinito
e a fim de tornaacute-lo um pouco mais claro eacute necessaacuterio comeccedilar por desenvolver
a doutrina loacutegica das grandezas infinitas Essa doutrina ainda permanece apoacutes
os trabalhos de Cantor Dedekind e outros em uma situaccedilatildeo incipiente Por
exemplo questotildees como as seguintes permanecem sem respostas eacute ou natildeo eacute
logicamente possiacutevel para duas coleccedilotildees serem de tal grandeza que nenhuma
delas possa ser colocada em correspondecircncia biuniacutevoca com a parte ou com o
todo da outra Resolver esse problema demanda natildeo uma mera aplicaccedilatildeo da
loacutegica mas um maior desenvolvimento da concepccedilatildeo de possibilidade loacutegica
(CP 3 sect 526 1897)83
80 Como jaacute foi indicado no primeiro capiacutetulo desta tese
81 [Synechism is] that tendency of philosophical thought which insists upon the idea of continuity as of prime
importance in philosophy and in particular upon the necessity of hypotheses involving true continuity 82
() synechism which is the keystone of the arch 83
() a perfectly satisfactory logical account of the conception of continuity is required This involves the definition
of a certain kind of infinity and in order to make that quite clear it is requisite to begin by developing the logical
doctrine of infinite multitude This doctrine still remains after the works of Cantor Dedekind and others in an
inchoate condition For example such a question remains unanswered as the following Is it or is it not logically
possible for two collections to be so multitudinous that neither can be put into a one-to-one correspondence with a
part or the whole of the other To resolve this problem demands not a mere application of logic but a further
development of the conception of logical possibility
70
De fato podemos identificar ao menos trecircs aspectos do pensamento de Peirce que soacute
poderiam ser desenvolvidos com consistecircncia a partir uma definiccedilatildeo mais precisa da noccedilatildeo de
continuum o loacutegico o semioacutetico e o cosmoloacutegico Nossas consideraccedilotildees aqui seratildeo
desenvolvidas a partir de uma investigaccedilatildeo do papel que o conceito de continuum desempenha na
construccedilatildeo da filosofia de Peirce em particular para a compreensatildeo do estatuto e do papel das
explicaccedilotildees teleoloacutegicas no seu sistema Antes contudo de passarmos a essa discussatildeo cabem
algumas palavras a respeito da motivaccedilatildeo de Peirce para o desenvolvimento do conceito de
continuum
Neste capiacutetulo procuraremos apurar as propriedades atribuiacutedas ao continuum atraveacutes da
abordagem de alguns aspectos da definiccedilatildeo matemaacutetica proposta por Peirce ainda que
apresentada de maneira descritiva e seletiva Do ponto de vista cosmoloacutegico pode-se afirmar que
a estrutura mais profunda e necessaacuteria do real eacute a sua continuidade Como o objetivo desta
investigaccedilatildeo eacute colher elementos que permitam entender o lugar e a necessidade da introduccedilatildeo de
explicaccedilotildees teleoloacutegicas para a compreensatildeo do crescimento do universo e de seus processos isto
eacute para entender a forma de desdobramento do continuum real tornado manifesto por meio da
evoluccedilatildeo do universo a exposiccedilatildeo desses toacutepicos natildeo pretende ser completa ou exaustiva sua
funccedilatildeo seraacute selecionar aspectos das teorias que permitam em primeiro lugar compreender a
necessidade da explicaccedilatildeo teleoloacutegica e em segundo lugar tornar plausiacutevel tanto quanto
possiacutevel a ideia de que o projeto filosoacutefico peirceano possui grande coerecircncia se tomarmos suas
teorias em conjunto apresentando aspectos da maneira pela qual Peirce as pensava como estando
relacionadas e como se esclarecem mutuamente visto serem expressatildeo do mesmo elemento de
continuidade
71
1 O CONTINUUM E A EPISTEMOLOGIA
Eacute preciso lembrar que ao lado da preocupaccedilatildeo matemaacutetica com a definiccedilatildeo de continuum
haacute nos trabalhos de Peirce uma profunda reflexatildeo sobre a sua ontologia surgida a partir de suas
pretensotildees mais gerais de realizaccedilatildeo de um projeto de fundamentaccedilatildeo de seu meacutetodo para
obtenccedilatildeo do conhecimento Essa primeira abordagem da continuidade a partir de uma
perspectiva descritiva adequada agrave cosmologia ou metafiacutesica dos processos evolutivos entretanto
natildeo se opotildee agrave abordagem matemaacutetica que em realidade a confirma Satildeo as conclusotildees desse
modo hipoteacutetico de investigaccedilatildeo que orientaram em grande parte sua abordagem matemaacutetica
A elaboraccedilatildeo da hipoacutetese do continuum eacute tomada como uma consequecircncia da primeira e
mais importante maacutexima loacutegica assumida por Peirce a de que natildeo se pode ldquobloquear o caminho
da investigaccedilatildeordquo (CP 1 sect 135 1899)
84 Ela eacute vista como um meio de ldquo() evitar a hipoacutetese de que
isso ou aquilo seja inexplicaacutevelrdquo (CP 6 sect 171 1902)85
Pois descontinuidades como pontos ou
instantes marcados nos quais o continuum de um geral eacute quebrado satildeo em si mesmos natildeo
explicaacuteveis afirma Peirce Soacute fazem sentido quando referidas a um contexto maior que eacute
fornecido pelo continuum Desse modo a principal justificativa para se insistir na hipoacutetese do
continuum eacute a de que ela fornece uma explicaccedilatildeo para os fenocircmenos
Os fenocircmenos se impotildeem ao homem e eacute preciso elaborar hipoacuteteses testaacuteveis para explicaacute-
los ou ao menos hipoacuteteses que levem tatildeo longe quanto possiacutevel o horizonte da inteligibilidade
ou seja que natildeo bloqueie o caminho da investigaccedilatildeo A afirmaccedilatildeo de que a postulaccedilatildeo do
incognosciacutevel como elemento constituinte da natureza eacute uma estrateacutegia que deve ser banida dos
procedimentos cientiacuteficos estaacute em consonacircncia com a filosofia peirceana
A simples observaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais destituiacuteda de qualquer prejulgamento
ensina-nos pelo menos duas coisas em primeiro lugar que haacute uma incriacutevel variabilidade no
84 Do not block the way of inquiry
85 () to avoid the hypothesis that this or that is inexplicable
72
modo como a natureza se manifesta e em segundo lugar que os processos naturais demonstram
certas regularidades Em face dessas duas caracteriacutesticas Peirce elabora duas teorias que tentam
responder como a realidade deveria ser para que nos aparecesse dessa maneira especiacutefica A
primeira referente agrave presenccedila da variabilidade na natureza daacute origem ao tiquismo86
hipoacutetese
explicativa que postula o acaso absoluto como ingrediente fundamental da realidade e serve de
matriz ontoloacutegica indeterminista A segunda concernente agraves regularidades daacute origem ao
sinequismo cuja principal categoria eacute a de lei e procura explicar de que maneira a partir do
acaso absoluto original surgiu o mundo que conhecemos Desse modo Peirce pretende ter
elaborado por meio da concorrecircncia desses dois fatores uma hipoacutetese explicativa que pretende
dar conta ateacute mesmo do surgimento das leis naturais e de todos os processos naturais deixando
de fora apenas o acaso que por sua proacutepria natureza eacute aquilo que natildeo necessita de explicaccedilatildeo
As alusotildees que Peirce faz agrave importacircncia de uma teoria da continuidade frequentemente
estatildeo relacionadas com o seu realismo em particular com a compreensatildeo do que significa a ideia
de generalidade Ele diz que a questatildeo de se os gerais satildeo reais eacute a mesma de se existem continua
verdadeiros No texto intitulado ldquoConsciecircnciardquo afirma que ldquocontinuidade regularidade e
significacircncia satildeo essencialmente a mesma ideia com diferenccedilas meramente subsidiaacuteriasrdquo (CP 7
sect 535)87
Para o realista como indica Hookway (1985) quando classificamos coisas sob o mesmo
termo geral estamos afirmando que existe algum princiacutepio geral ou natureza que elas
compartilham Em 1878 Peirce discute esse ponto a partir de um exemplo que envolve um
problema de classificaccedilatildeo rotineiramente enfrentado por um naturalista Ao coletar um bom
nuacutemero de espeacutecimes que possuem algumas similaridades ele pode colocar-se a questatildeo de como
classificaacute-los Em particular no referido caso o naturalista nota que as asas dos espeacutecimes
recolhidos embora natildeo idecircnticas podem servir como criteacuterio para dividi-los em dois tipos um
que reuacutene as asas que satildeo parecidas com um S e outro que reuacutene as que se parecem com um C A
questatildeo que ele pode colocar-se eacute de se haacute aiacute apenas uma duas ou mais espeacutecies Para Peirce a
soluccedilatildeo para o problema pode ser obtida a partir da verificaccedilatildeo de se haacute formas intermediaacuterias
86 Jaacute discutido no primeiro capiacutetulo deste trabalho
87 () continuity regularity and significance are essentially the same idea with merely subsidiary differences
73
entre uma e outra Caso haja elas devem ser consideradas como pertencentes a uma mesma
espeacutecie Caso isso natildeo se verifique eacute possiacutevel classificaacute-las em duas espeacutecies distintas A sugestatildeo
envolvida esclarece Hookway eacute a de que ldquo() se os espeacutecimes formam um tipo de classe
natural eles variam continuamente segundo alguma dimensatildeordquo (HOOKWAY 1985 p 175) A
questatildeo eacute se esta condiccedilatildeo de contiacutenua variaccedilatildeo pode ser encontrada em todo caso investigados
Outro aspecto do pensamento peirceano relacionado com a teoria do continuum aparece em
sua discussatildeo sobre os processos causais A atribuiccedilatildeo da relaccedilatildeo de causalidade entre dois
eventos pode ser entendida se encontramos uma ligaccedilatildeo contiacutenua por meio da qual o primeiro eacute
transmitido ao segundo caso contraacuterio haveria duacutevidas quanto agrave possibilidade de tal atribuiccedilatildeo
Tanto no primeiro quanto no segundo exemplo percebemos que por meio da mediaccedilatildeo da
continuidade os casos analisados sobre o pano de fundo de uma estrutura mais ampla satildeo
tornados compreensiacuteveis para noacutes Segundo Peirce os nominalistas negariam que haja alguma
explicaccedilatildeo sobre o motivo dos objetos serem classificados como satildeo e colocariam esses
agrupamentos naturais na categoria de um fato bruto cuja razatildeo natildeo poderiacuteamos jamais alcanccedilar
Essa posiccedilatildeo entretanto eacute a expressatildeo do mais grave pecado loacutegico no entender de Peirce ela
bloqueia o caminho da investigaccedilatildeo
A relaccedilatildeo entre continuum e generalidade88
eacute mais claramente apresentada por Hookway na
seguinte passagem
() nenhuma estrutura relacional captura a natureza do continuum e natildeo
podemos quantificar todos os elementos do continuum As estruturas relacionais
a respeito das quais pensamos satildeo em certo sentido determinadas pela natureza
do continuum a respeito do qual pensamos mas elas natildeo exaurem seu caraacuteter
Da mesma maneira que pensamos em uma lei como algo que determina um
nuacutemero de diferentes interaccedilotildees pensamos o continuum como determinando
um nuacutemero infinito embora relacionado de estruturas relacionais Podemos
pensar o continuum como um geral entatildeo no sentido em que determina
conjuntos infinitos de estruturas relacionais como sua ldquoextensatildeordquo Se pensamos
um processo como continuum entatildeo acreditamos que sempre seraacute possiacutevel
88 Eacute a generalidade pode-se reiterar que torna o mundo compreensiacutevel para noacutes
74
para noacutes produzir uma caracterizaccedilatildeo mais complexa de estruturas relacionais
que ldquose conformardquo ou satildeo ldquodeterminadas porrdquo aquele processo contiacutenuo
(HOOKWAY 1985 p 178)
11 OS INFINITESIMAIS E O CONTINUUM
Por volta da uacuteltima deacutecada do seacuteculo XIX Peirce estava trabalhando em sua concepccedilatildeo de
continuidade principalmente com referecircncia a sua constituiccedilatildeo isto eacute realizava uma investigaccedilatildeo
sobre quais poderiam ou deveriam ser os constituintes dos continua Peirce foi um dos primeiros
pensadores a argumentar em favor da existecircncia real de conjuntos infinitos Seu criteacuterio para
diferenciar os conjuntos finitos dos infinitos era o assim chamado ldquosilogismo da quantidade
transpostardquo introduzido por De Morgan e que eacute vaacutelido unicamente quando aplicado a conjuntos
finitos e invaacutelido quando aplicado a conjuntos infinitos Peirce oferece vaacuterias versotildees desse
silogismo uma delas eacute a seguinte
Todo texano mata um texano
Nenhum texano eacute morto por mais que um texano
Desse modo todo texano eacute morto por um texano
A partir da colocaccedilatildeo desse silogismo uma diferenccedila entre a abordagem de Peirce e as
demais abordagens realizadas na segunda metade do seacuteculo XIX pode ser evidenciada Mesmo
que inicialmente tenha investigado a possibilidade de compreender o continuum como uma
coleccedilatildeo ou conjunto aos poucos supera essa concepccedilatildeo Peirce afirma ldquoPois a uacutenica coisa que
excede a variedade de todos os conjuntos eacute um continuumrdquo (CP 4 sect 652 1909)89
Os seus
constituintes natildeo podem ser indiviacuteduos desse modo deve possuir alguma caracteriacutestica de
potencialidade Tal potencialidade como afirma Rosa
89 For the only thing that exceeds the manifoldness of all collections is a continuum
75
Eacute a possibilidade de inserir uma qualquer multitude a partir de uma multitude
dada Eacute um geral pois haacute sempre a possibilidade de determinar um nuacutemero de
indiviacuteduos maior que natildeo importa que nuacutemero de indiviacuteduos dados Um
possiacutevel eacute essa possibilidade inesgotaacutevel e indefinida de determinaccedilatildeo do
existente a potencialidade de ver natildeo eacute esgotada por aquele que exerce esse
poder (ROSA 2003 p 223)
Ora sejam quais forem os constituintes do continuum eles devem possuir a qualidade de
ldquopossibilidade de inesgotaacutevel determinaccedilatildeordquo Peirce eacute mais claro sobre o que entende por isso na
seguinte passagem
Aquilo que eacute possiacutevel eacute nessa medida geral e enquanto geral deixa de ser
individual Assim recordando que a palavra ldquopotencialrdquo significa
indeterminado mas passiacutevel de determinaccedilatildeo em cada caso especiacutefico pode
haver um agregado de casos potencial de todas as possibilidades que satildeo
consistentes com certas condiccedilotildees gerais e isto pode ser tal que dado um
qualquer conjunto de indiviacuteduos distintos um conjunto de maior multitude que
o conjunto dado pode ser atualizado a partir desse agregado potencial Portanto
o agregado potencial eacute estritamente maior em multitude do que qualquer
conjunto de indiviacuteduos Mas visto ser apenas um agregado potencial ele natildeo eacute
composto por qualquer nuacutemero de indiviacuteduos Ele apenas conteacutem condiccedilotildees
gerais que permitem a determinaccedilatildeo de indiviacuteduos (NEM 3 p 106 1898 grifo
nosso)90
Ao tratar da reta como modelo do continuum Peirce indica que o arqueacutetipo dessa ideia eacute a
curva fechada A cisatildeo da linha natildeo resulta em um mas em dois pontos distintos que estabelecem
90 That which is possible is in so far general and as general it ceases to be individual Hence remembering that the
word potential means indeterminate yet capable of determination in any special case there may be a potential
aggregate of all the possibilities that are consistent with certain general conditions and this may be such that given
any collection of distinct individuals whatsoever out of that potential aggregate there may be actualized a more
multitudinous collection than the given collection Thus the potential aggregate is with the strictest exactitude
greater in multitude than any possible multitude of individuals But being a potential aggregate only it does not
contain any individuals at all It only contains general conditions which permit the determination of individuals
76
uma fronteira no contiacutenuo original Como indica Peirce natildeo haacute um ponto na reta mas uma reta
cuja separaccedilatildeo realiza dois pontos (cf NEM 2 p 359) O fato de que por meio do corte o ponto
ideal daacute origem a dois pontos reais indica que os pontos da reta natildeo possuem identidade Esses
estados de fronteira satildeo denominados de vagos na nomenclatura peirceana Como indica Rosa
ldquoO vago ou indefinido eacute aquilo que escapa ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo () o predicado
manteacutem portanto seu valor de verdade mesmo se o negarmosrdquo (ROSA 2003 p 235) O vago
na definiccedilatildeo de Peirce eacute um signo que natildeo se exprime a si mesmo de forma suficiente e natildeo
permite uma interpretaccedilatildeo determinada indubitaacutevel (cf CP 5 sect 505 1905) de modo que a
existecircncia ou atualidade jamais eacute atingida
Os infinitesimais91
surgiram como uma alternativa promissora agrave resposta pelos constituintes
do continuum Em 1892 Peirce afirma que os constituintes do continuum satildeo os infinitesimais92
e
eacute muito cuidadoso ao tratar do toacutepico considerando-os sempre como uma hipoacutetese que se natildeo
for inconsistente seraacute muito uacutetil para a explicaccedilatildeo da realidade Mas podemos nos indagar sobre
qual o significado desta noccedilatildeo para Peirce Embora seja um toacutepico sobre o qual o autor natildeo tenha
sido muito claro em suas declaraccedilotildees podemos inferir a partir da relaccedilatildeo que a teoria do
continuum possui com as demais teorias que Peirce vinha desenvolvendo na mesma eacutepoca que os
infinitesimais podem ser interpretados como would be Ao explicar o que satildeo tais constituintes do
real Peirce toma o exemplo do dado e afirma
Dizer que um dado tem um ldquowould berdquo eacute dizer que ele tem uma propriedade
91 Um infinitesimal como aponta Putnam (1995) eacute o intervalo de uma linha cujo comprimento natildeo eacute zero mas eacute
menor do que qualquer real positivo Os infinitesimais acrescenta foram gradualmente esquecidos durante o seacuteculo
XIX voltaram agraves consideraccedilotildees matemaacuteticas apenas na deacutecada de sessenta do seacuteculo passado como um resultado dos
trabalhos de Abraham Robinson (1966) e outros e do desenvolvimento da chamada anaacutelise Non-Standard Em
funccedilatildeo das caracteriacutesticas presentes na anaacutelise que Peirce realiza da noccedilatildeo de infinitesimal algumas vezes eacute
considerado como um precursor desses trabalhos Apurar em que medida eacute correta essa atribuiccedilatildeo eacute contudo um
trabalho que ainda estaacute por ser feito e que demandaria um conhecimento matemaacutetico bastante mais aprofundado de
nossa parte 92
O autor afirma ldquoThere is one property of a continuous expanse that I must mention though I cannot venture to
trouble you with the demonstration of it It is that in a continuous expanse say a continuous line there are
continuous lines infinitely short In fact the whole line is made up of such infinitesimal parts (CP 1 sect 166 1897)
77
bastante anaacuteloga a qualquer haacutebito que um homem possa ter Unicamente que o
ldquowould berdquo do dado eacute presumivelmente muito mais simples e mais definido do
que o haacutebito de um homem como o dado tem composiccedilatildeo homogecircnea e
formato cuacutebico eacute mais simples do que a natureza do sistema nervoso e a alma
de um homem e da mesma maneira como seria necessaacuterio a fim de definir o
haacutebito de um homem descrever como ele o conduziria a se comportar e em que
tipo de ocasiatildeo ndash natildeo obstante esta afirmaccedilatildeo implicaria natildeo importa como
que o haacutebito consiste naquela accedilatildeo ndash entatildeo para definir o ldquowould berdquo do dado eacute
necessaacuterio dizer como ele levaria o dado a se comportar na ocasiatildeo em que
afloraria todas as consequecircncias do ldquowould berdquo e essa afirmaccedilatildeo natildeo implicaraacute
de si mesma que o ldquowould berdquo do dado consiste em tal comportamento (CP 2 sect
664 1910)93
Tentaremos agora tomando como exemplo a atividade mental explicar alguns elementos
da concepccedilatildeo de continuidade peirceana A atividade mental pode ser tomada como um exemplo
que cumpre uma tripla funccedilatildeo faz-nos pensar a definiccedilatildeo de contiacutenuo por meio da anaacutelise da
passagem do tempo mostra como os infinitesimais estatildeo presentes nesse processo e ao discutir
como se daacute a atividade mental mostra tambeacutem a estrutura fundamental do cosmo pois para o
Peirce a natureza do cosmo eacute mental esta tambeacutem uma decorrecircncia do princiacutepio de continuidade
como uma hipoacutetese explicativa dos fenocircmenos
A questatildeo levantada por Peirce e que serviraacute de guia para essa discussatildeo eacute a de ldquocomo uma
ideia passada pode estar presenterdquo (CP 6 sect 109 1892)94
A resposta por ele proposta eacute de que
devemos estar diretamente conscientes das ideias do passado imediato Caso houvesse uma
lacuna entre nosso conhecimento presente e as ideias do passado todo o nosso conhecimento do
passado natildeo seria mais do que uma ilusatildeo Ou seja Peirce afirma que a consciecircncia natildeo reteacutem
93 To say that a die has a would-be is to say that it has a property quite analogous to any habit that a man might
have Only the would-be of the die is presumably as much simpler and more definite than the mans habit as the
dies homogeneous composition and cubical shape is simpler than the nature of the mans nervous system and soul
and just as it would be necessary in order to define a mans habit to describe how it would lead him to behave and
upon what sort of occasion--albeit this statement would by no means imply that the habit consists in that action--so to
define the dies would-be it is necessary to say how it would lead the die to behave on an occasion that would
bring out the full consequence of the would-be and this statement will not of itself imply that the would-be of
the die consists in such behaviour 94
How can a past idea be present
78
uma ideia em um intervalo finito de tempo Assim como consequecircncia devemos estar
conscientes do passado ldquoatraveacutes de um intervalo de tempo infinitesimalrdquo (CP 6 sect 110 1892)95
Como aponta Hausman ldquosomos levados a um concentrado exame da experiecircncia de ser
consciente atraveacutes de um fluxo de tempo que deve ser compreendido em termos de componentes
infinitesimaisrdquo (HAUSMAN 1993 p 179)
Como diz Peirce ldquosomos conscientes unicamente do tempo presente o qual se daacute em um
instante se eacute que existe tal coisa chamada instante Mas no presente estamos conscientes do
fluxo do tempo natildeo haacute fluxo em um instante Desse modo o presente natildeo eacute um instanterdquo (NEM
3 p 126)96
2 OS QUATRO ESTAacuteGIOS DO DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE CONTINUUM
A ideia de continuum eacute o fio condutor e o elemento comum de qualquer interpretaccedilatildeo que
busque relacionar os diferentes aspectos da produccedilatildeo peirceana constituiacuteda por teorias que uma
parte dos criacuteticos97
insiste em afirmar natildeo podem ser compatibilizadas a fim de produzir um todo
coerente objetivo de Peirce que considerava como arquitetocircnica a construccedilatildeo do seu sistema
Teorias que segundo tais perspectivas natildeo possuem aquelas caracteriacutesticas que tornam a obra de
Peirce atual e a aproxima do fazer filosoacutefico contemporacircneo Nota-se uma tendecircncia a colocar em
oposiccedilatildeo as teorias que tratam da metodologia da linguagem bem como da loacutegica com aquelas
que satildeo o resultado de sua investigaccedilatildeo metafiacutesica
Peirce reconhece o deacutebito que possui com Kant sobre este aspecto ao discorrer sobre a
necessidade de se construir arquitetonicamente os sistemas de filosofia ele afirma
95 () through an infinitesimal interval of time
96 We are conscious only of the present time which is an instant if there be such thing as an instant But in the
present we are conscious of the flow of the time There is no flow in an instant Hence the present is not an instant 97
Por exemplo GALLIE 1952
79
Que os sistemas devem ser construiacutedos arquitetonicamente foi apregoado
desde Kant mas eu natildeo acho que a implicaccedilatildeo completa da maacutexima tenha
por qualquer modo sido apreendida O que eu recomendo eacute que cada
pessoa que queira formar uma opiniatildeo sobre os problemas fundamentais
deve antes de tudo fazer um levantamento completo do conhecimento
humano deve tomar nota de todas as ideacuteias valiosas em cada ramo da
ciecircncia deve observar exatamente com respeito a que cada uma tem sido
bem sucedida e onde tem falhado a fim de que agrave luz da familiaridade
aprofundada desse modo obtida dos materiais disponiacuteveis para uma teoria
filosoacutefica e da natureza e da forccedila de cada um ele pode avanccedilar para o
estudo do que o problema da filosofia consiste e da maneira correta de
resolvecirc-lo (CP 6 sect 9 1891)98
A teoria da continuidade peirceana passou por vaacuterias fases das quais tentaremos oferecer
uma descriccedilatildeo neste capiacutetulo o momento de sua elaboraccedilatildeo mais feacutertil e de resultado mais
duradouro pode ser localizado na deacutecada de 90 do seacuteculo XIX Esse resultado se encontra
sintetizado na ldquoLei da menterdquo de 1892 e nas ldquoConferecircncias de Cambridgerdquo de 1898 e ocorre
ao mesmo tempo em que desenvolvia a loacutegica dos grafos existenciais e a hipoacutetese cosmoloacutegica
Natildeo bastasse a coincidecircncia quanto ao momento da origem dessas trecircs teorias eacute o proacuteprio Peirce
que declara haver uma unidade de base entre os toacutepicos ldquoOs meus bdquoGrafos existenciais‟ tecircm uma
semelhanccedila notaacutevel com todos os meus pensamentos acerca de qualquer toacutepico da filosofiardquo (MS
620 p 09)
A relaccedilatildeo mais imediata que se pode estabelecer entre elas eacute a de que constituem diversos
aspectos da ideia de continuum a loacutegica dos grafos existenciais estaacute baseada no continuum
98 That systems ought to be constructed architectonically has been preached since Kant but I do not think the full
import of the maxim has by any means been apprehended What I would recommend is that every person who
wishes to form an opinion concerning fundamental problems should first of all make a complete survey of human
knowledge should take note of all the valuable ideas in each branch of science should observe in just what respect
each has been successful and where it has failed in order that in the light of the thorough acquaintance so attained of
the available materials for a philosophical theory and of the nature and strength of each he may proceed to the study
of what the problem of philosophy consists in and of the proper way of solving it (CP 6 sect 9 1891)
80
topoloacutegico como veremos brevemente abaixo A teoria do continuum por sua vez eacute a proacutepria
expressatildeo matemaacutetica do referido conceito e a hipoacutetese cosmoloacutegica consiste na explicitaccedilatildeo dos
princiacutepios de desenvolvimento do continuum real
A variedade de definiccedilotildees que Peirce oferece da ideia de continuum deve-se segundo nos
parece ao fato de que grande parte seus escritos jamais foi publicada Os textos disponiacuteveis em
sua maioria satildeo constituiacutedos por notas que tomava para si proacuteprio ou projetos de livros que
nunca chegaram a ser concluiacutedos Assim o que temos ao ler seus textos eacute um retrato do proacuteprio
desenvolvimento quase cotidiano de suas ideias99
Os textos nos quais Peirce trata da questatildeo
refletem sucessivas tentativas de tornar a ideia de continuum clara coerente e adequada agraves suas
motivaccedilotildees filosoacuteficas As voltas avanccedilos e retomadas fazem parte dessa maneira do retrato do
desenvolvimento do pensamento do filoacutesofo que de fato nunca foi concluiacutedo as modificaccedilotildees
de suas ideias sobre o tema se prolongaram ateacute pouco tempo antes de sua morte em 1914
Segundo Potter e Shields (1977) de 1880 ateacute 1911 periacuteodo no qual Peirce tentou oferecer
uma definiccedilatildeo matematicamente precisa do conceito de continuidade eacute possiacutevel reconhecer
quatro estaacutegios no seu pensamento quanto ao tema100
preacute-cantoriano (ateacute 1884) cantoriano
(1884 ndash 1894) kantiano (1895 ndash 1908) e poacutes-cantoriano (1908 ndash 1911)
99 Moore se refere a essa condiccedilatildeo afirmando que como a maioria das principais ideias de Peirce a ideia de
continuum pode ser vista como ldquowork in progressrdquo (cf MOORE 2007 p 425) 100
Moore (2007) por outro lado classifica em trecircs as fases do desenvolvimento de sua noccedilatildeo de continuum
denominados de (1) Fase germinal (1868 - 1892) na qual as motivaccedilotildees fundamentais para a teoria satildeo identificadas
e elaboradas (2) Fase semi-cantoriana (1892 - 1895) na qual a teoria de conjuntos de Cantor imperfeitamente
compreendida eacute usada como uma estrutura organizadora e (3) Fase peirceana (1895-1914) na qual a teoria de
coleccedilotildees elaborada por Peirce assume o papel organizador
81
21 O PERIacuteODO PREacute-CANTORIANO
O primeiro periacuteodo eacute marcado pela consciecircncia de que havia uma confusatildeo incomum entre
as noccedilotildees de continuidade e divisibilidade infinita mas natildeo ainda pela tentativa de solucionar os
problemas implicados Peirce afirma que ldquo() um continuum eacute precisamente isso toda parte dele
tem partes no mesmo sentidordquo (CP 5 sect 335 1868)101
essa caracteriacutestica ficou conhecida na
literatura sobre o tema como reflexividade Essa confusatildeo persistiu ateacute que 1884 quando Peirce
leu pela primeira vez o artigo ldquoGrundlagen einer allgemeinen Mannigfaltigkeitslehrerdquo (1883) de
Cantor
Entre as motivaccedilotildees para a elaboraccedilatildeo de uma teoria do continuum encontram-se a
necessidade de uma anaacutelise epistemologicamente adequada do tempo bem como a elaboraccedilatildeo de
uma resposta agrave criacutetica feita ao seu texto intitulado ldquoAlgumas consequecircncias de quatro
incapacidadesrdquo de 1868 no qual Peirce desenvolve uma nova concepccedilatildeo de mente que em
oposiccedilatildeo agrave concepccedilatildeo de mente cartesiana caracteriza-se por natildeo possuir qualquer faculdade de
apreensatildeo imediata dos objetos do conhecimento nesse texto ele afirma que toda cogniccedilatildeo eacute
determinada por uma cogniccedilatildeo preacutevia (cf CP 5 sect 284 1868) ou seja que as premissas de todo
raciociacutenio satildeo tambeacutem conclusotildees Sua resposta inicial eacute dada nos termos de uma analogia da
cogniccedilatildeo com um triacircngulo Peirce pede que imaginemos um triacircngulo com o veacutertice invertido e
que aos poucos eacute mergulhado na aacutegua Diz ele
Considere qualquer linha horizontal como representando uma cogniccedilatildeo e
considere que o comprimento da linha serve para medir (por assim dizer) a
vivacidade da consciecircncia daquela cogniccedilatildeo Um ponto natildeo tendo
comprimento representaraacute por este princiacutepio um objeto fora da consciecircncia
Considere que uma linha horizontal abaixo de outra representa uma cogniccedilatildeo
que determina a cogniccedilatildeo representada por aquela outra e que tenha o mesmo
101 () a continuum is precisely that every part of which has parts in the same sense
82
objeto que a uacuteltima Considere a distacircncia finita entre as duas linhas como
representando que elas sejam duas cogniccedilotildees diferentes (CP 5 sect 263 1868)102
Dada esta situaccedilatildeo Peirce potildee-se a investigar se haacute a necessidade de se admitir se ldquodeve
existir um primeirordquo Agrave medida que o triacircngulo mergulha na aacutegua linhas sucessivas formam-se
em sua superfiacutecie que resultam do contato com a superfiacutecie da aacutegua Dizer que haacute uma primeira
seria o mesmo que afirmar que haveria uma linha formada no triacircngulo abaixo da qual nenhuma
outra poderia ser traccedilada mas segundo Peirce baseado na ideia de continuum como infinita
divisibilidade podem ser traccediladas abaixo de qualquer linha tantas outras o quanto se desejar Se
tomarmos essas linhas como cogniccedilotildees veremos que natildeo haacute necessidade de uma primeira visto
que afirmar tal necessidade seria o mesmo que abandonar a geometria
Em um momento posterior no texto ldquoTempo e pensamentordquo provavelmente de 1873
Peirce argumenta novamente em favor da ideia de que o continuum natildeo possui partes uacuteltimas
atraveacutes da investigaccedilatildeo das condiccedilotildees necessaacuterias para a existecircncia de uma mente loacutegica O
filoacutesofo aponta que trecircs coisas devem ser encontradas em toda mente loacutegica ldquoPrimeiro ideias
segundo determinaccedilatildeo de ideias por ideias preacutevias terceiro determinaccedilatildeo de ideias por
processos preacuteviosrdquo (CP 7 sect 348 1873)103
Em um fragmento de 1873 Peirce afirma com mais
detalhes ldquoem toda mente loacutegica deve haver 1ordm ideias 2ordm regras gerais de acordo com as quais
uma ideia determina uma outra ou haacutebitos da mente que conectam ideias 3ordm processos por meio
dos quais tais conexotildees habituais satildeo estabelecidasrdquo (CP 7 sect 358 1873)104
102 Now let any horizontal line represent a cognition and let the length of the line serve to measure (so to speak) the
liveliness of consciousness in that cognition A point having no length will on this principle represent an object
quite out of consciousness Let one horizontal line below another represent a cognition which determines the
cognition represented by that other and which has the same object as the latter Let the finite distance between two
such lines represent that they are two different cognitions 103
First ideas second determinations of ideas by previous ideas third determinations of ideas by previous
processes 104
In every logical mind there must be 1st ideas 2nd general rules according to which one idea determines another
or habits of mind which connect ideas and 3rd processes whereby such habitual connections are established
83
Para que tais condiccedilotildees produzam o pensamento loacutegico as ideias natildeo se podem apresentar
agrave mente como entidades distintas Se tal ocorresse uma vez que a mente soacute se fixa no conteuacutedo
da ideia presente no momento que passa (passing moment) natildeo haveria como conceber a
implicaccedilatildeo entre ideias105
Aqui indica Moore (2007) Peirce se aproxima mas ainda natildeo
formula com clareza uma das propriedades que definem o continuum segundo sua concepccedilatildeo
mais elaborada a de que seus componentes natildeo se distinguem em entidades singulares mas se
apresentam como que fundidos uns aos outros enquanto natildeo se realizam como seres atuais Essa
propriedade receberaacute o nome de confusatildeo (confusion) Ressalta-se tambeacutem a oposiccedilatildeo entre o
continuum reflexivo e as entidades discretas denominadas por Peirce de quanta discretas que
possuem partes uacuteltimas cuja funccedilatildeo eacute a de tornar mais clara a reflexividade do continuum Ao
estudar a metafiacutesica das coleccedilotildees Peirce vislumbra uma abordagem alternativa para o problema
mas o seu ainda impreciso conhecimento sobre coleccedilotildees natildeo o deixa seguir adiante
22 PERIacuteODO CANTORIANO
Por volta de 1884 Peirce jaacute tinha consciecircncia da centralidade que a noccedilatildeo de continuidade
poderia desempenhar na elaboraccedilatildeo de sua filosofia mas ainda natildeo tinha obtido sucesso em
propor uma definiccedilatildeo que lhe fosse satisfatoacuteria Moore afirma que por essa eacutepoca
Ele atingira a ideia de reflexividade kantiana mas natildeo chegara ainda a uma
anaacutelise dos pontos e outros discreta que fosse claramente compatiacutevel com
aquela ideia Reconhecera a utilidade para uma filosofia epistemologicamente
adequada do tempo de alguma coisa como confusatildeo mas essas caracteriacutesticas
105 Percebemos nesta consideraccedilatildeo uma clara motivaccedilatildeo filosoacutefica para o desenvolvimento de uma concepccedilatildeo precisa
de continuidade e mais que isso vemos como questotildees relacionadas agrave epistemologia estatildeo determinando os
caminhos que Peirce toma para pensar as propriedades que tal concepccedilatildeo deve possuir afim de que o conhecimento
seja possiacutevel As condiccedilotildees enunciadas na nota acima abrem a possibilidade de pensar a causalidade final atuante no
processo de implicaccedilatildeo de ideias o que seraacute feita no uacuteltimo capiacutetulo desta tese
84
do seu continuum ndash reflexividade e confusatildeo ndash natildeo foram colocadas em uma
conexatildeo sistemaacutetica em sua definiccedilatildeo de continuum Tinha comeccedilado a brincar
com os infinitesimais mas um pouco agrave parte de seu pensamento sobre
continuidade (MOORE 2007 p 434)
Apoacutes 1884 Peirce adere agrave posiccedilatildeo de Cantor afirmando que a noccedilatildeo de continuidade
deveria ser definida independentemente de nossas concepccedilotildees de espaccedilo e tempo Contudo a
definiccedilatildeo de Cantor natildeo surtiu o efeito que Peirce desejava e nos anos seguintes continuou a
tentar novas definiccedilotildees Seu principal desacordo com a definiccedilatildeo proposta pelo matemaacutetico
consistia em sua insatisfaccedilatildeo com a ideia de que fosse possiacutevel uma abordagem meacutetrica do
continuum Neste periacuteodo de desenvolvimento do seu pensamento sobre a continuidade duas
propriedades do continuum tornam-se centrais a kanticidade (Kanticity) e a aristotelicidade
(Aristotelicity) conforme a nomenclatura peirceana A kanticidade de uma seacuteria faz referecircncia
agravequela ldquopropriedade de intermediaccedilatildeo ou divisibilidaderdquo (CP 4 sect 121)106
ou ainda que a
ldquokanticidade consiste em ter um ponto entre dois pontos quaisquerrdquo (CP 6 sect 166 1889)107
Quanto agrave segunda Peirce afirma que a ldquoaristotelicidade consiste em ter todo ponto que eacute um
limite a uma seacuterie infinita de pontos que pertencem ao sistemardquo (CP 6 sect 166 1889)108
ou ainda
que
A propriedade de aristotelicidade pode ser colocada em termos gerais do
seguinte modo um continuum conteacutem o ponto final que pertence a toda seria
infinita de pontos que ele conteacutem Um corolaacuterio oacutebvio eacute que todo continuum
conteacutem seus limites Mas usando esse princiacutepio eacute necessaacuterio observar que uma
seacuterie pode ser contiacutenua exceto nisto que ela omita um ou ambos os limites (CP
6 sect 123)109
106 property of infinite intermediety or divisibility
107 The Kanticity is having a point between any two points
108 The Aristotelicity is having every point that is a limit to an infinite series of points that belong to the system
109 The property of Aristotelicity may be roughly stated thus a continuum contains the end point belonging to every
endless series of points which it contains An obvious corollary is that every continuum contains its limits But in
using this principle it is necessary to observe that a series may be continuous except in this that it omits one or both
of the limits
85
Como afirma Potter amp Shields (1977) por volta de 1889 o impacto de Cantor sobre Peirce
jaacute era bastante visiacutevel na definiccedilatildeo de continuidade que apresenta para o Dicionaacuterio do Seacuteculo
escreve
[Continuidade significa] em matemaacutetica e filosofia uma conexatildeo de pontos (ou
outros elementos) tatildeo iacutentima como aquelas dos instantes ou intervalos de
tempo assim a continuidade do espaccedilo consiste nisso que um ponto pode
mover-se de qualquer posiccedilatildeo para qualquer outra de tal modo que em cada
instante ele teraacute uma posiccedilatildeo definida e distinta no espaccedilo Esta afirmaccedilatildeo natildeo
eacute entretanto uma definiccedilatildeo adequada de continuidade mas somente um
exemplo extraiacutedo do tempo As antigas definiccedilotildees ndash o fato que partes adjacentes
tecircm seus limites em comum (Aristoacuteteles) infinita divisibilidade (Kant) o fato
que entre quaisquer dois pontos haacute um terceiro (o que eacute verdade para o sistema
dos nuacutemeros racionais) ndash satildeo inadequadas A definiccedilatildeo menos insatisfatoacuteria eacute a
de G Cantor de que continuidade eacute a perfeita concatenaccedilatildeo de um sistema de
pontos ndash palavras que precisam ser entendidas em sentidos especiais (CP 6 sect
164 1889)110
Do ponto de vista filosoacutefico Peirce estava tentando fornecer uma concepccedilatildeo de continuum
que fosse adequada agrave defesa de seu falibilismo e ao estabelecimento de sua cosmologia
evolucionaacuteria Seu entusiasmo com tal ideia era claro ele confessa no texto Falibilismo
continuidade e evoluccedilatildeo de 1897 que ldquose eu tentasse descrever completamente para vocecircs toda a
beleza e verdade cientiacutefica que encontro no princiacutepio de continuidade teria que dizer na
linguagem simples de Matilda a engajada ldquoque a tumba se fecharia sobre mim antes que esse
110 [Continuous means] in mathematics and philosophy a connection of points (or other elements) as intimate as that
of the instants or points of an interval of time thus the continuity of space consists in this that a point can move
from any one position to any other so that at each instant it shall have a definite and distinct position in space This
statement is not however a proper definition of continuity but only an exemplification drawn from time The old
definitions -- the fact that adjacent parts have their limits in common (Aristotle) infinite divisibility (Kant) the fact
that between any two points there is a third (which is true of the system of rational numbers) -- are inadequatedagger2 The
less unsatisfactory definition is that of G Cantor that continuity is the perfect concatenation of a system of points --
words which must be understood in special senses
86
assunto fascinante fosse esgotadordquo ndash mas natildeo antes que minha plateia estivesse exausta (CP 1 sect
171 1897)111
23 PERIacuteODO KANTIANO112
Em meados da deacutecada de 90 motivado por uma reflexatildeo sobre a definiccedilatildeo proposta por
Kant113
de que continuum eacute ldquotudo aquilo cujas partes tecircm partes do mesmo tipordquo (CP 6 sect 168
1889) passa a considerar o continuum natildeo mais como infinita divisibilidade mas como aquilo
que natildeo tem partes uacuteltimas Nesse sentido endereccedila criacuteticas a Cantor insistindo em uma
abordagem natildeo meacutetrica do continuum passando a usar o termo ldquomultitude em suas formulaccedilotildees
Assim afirma que ldquo() a possibilidade de determinar mais do que qualquer dada grandeza dos
pontos ou em outras palavras o fato de que haacute lugar para qualquer grandeza em cada parte da
linha torna-a contiacutenuardquo (CP 3 sect 568 1900)114
Peirce afirma pois que continuidade eacute
totalmente diferente de qualquer coleccedilatildeo de elementos discretos e que por outro lado quanto
maior uma coleccedilatildeo se torna mais ela se parece com o continuum
As criacuteticas que havia endereccedilado a Cantor desde 1892115
expressavam o seu desacordo com
uma abordagem meacutetrica do continuum segundo Peirce a definiccedilatildeo proposta pelo matemaacutetico
ldquovoltava-se para consideraccedilotildees meacutetricas enquanto a distinccedilatildeo entre seacuteries contiacutenuas e
descontiacutenuas eacute manifestamente natildeo-meacutetricardquo (CP 6 sect 121 1982)116
Em termos mais
111 If I were to attempt to describe to you in full all the scientific beauty and truth that I find in the principle of
continuity I might say in the simple language of Matilda the Engaged the tomb would close over me eer the
entrancing topic were exhausted -- but not before my audience was exhausted 112
Moore (2007) denomina este periacuteodo de Fase peirceana argumentando que eacute nele que Peirce obteacutem a definiccedilatildeo
de continuum mais satisfatoacuteria com relaccedilatildeo agraves suas preocupaccedilotildees filosoacuteficas 113
Que natildeo deve ser confundida com a propriedade denominada kanticidade anteriormente indicada cujo significado
era somente o de infinita divisibilidade 114
(hellip) the possibility of determining more than any given multitude of points or in other words the fact that there
is room for any multitude at every part of the line makes it continuous 115
No texto A lei da mente 116
It turns upon metrical considerations while the distinction between a continuous and a discontinuous series is
87
compreensiacuteveis as questotildees que Peirce estava se colocando desde 1893 eram segundo Potter e
Shields (1977) do seguinte tipo como um continuum pode ser colorido quando suas proacuteprias
partes os pontos natildeo podem secirc-lo (cf CP 4 sect 127) A soluccedilatildeo encontrada por Peirce foi a de
natildeo mais considerar os pontos como constituintes do continuum em sua nova formulaccedilatildeo as
partes constituintes do continuum satildeo tambeacutem contiacutenuas Essa posiccedilatildeo perdura ateacute por volta de
1908 quando motivado por problemas no interior dessa abordagem Peirce procura uma nova
elaboraccedilatildeo
24 PERIacuteODO POacuteS-CANTORIANO
Em particular a partir da criacutetica a Cantor de que o continuum natildeo eacute realmente uma
coleccedilatildeo surge a necessidade de se explicar como as partes do continuum juntam-se num todo
pois o continuum claramente tem partes Em 1906 Peirce enfatiza que ldquotudo o que eacute contiacutenuo
tem partes materiaisrdquo e que portanto natildeo pode ser pensado como uma coleccedilatildeo de pontos (CP 6
sect 174 1906) O modo de conexatildeo de suas partes contribui para a natureza do todo Em uma
coleccedilatildeo o modo de conexatildeo eacute soacute o estar junto (co-being) mas no continuum ela deve consistir de
alguma coisa a mais Apenas em 1908 retomando a definiccedilatildeo de Kant de que ldquo() todas as
partes de um continuum perfeito tecircm a mesma dimensionalidade que o todordquo (CP 4 sect 642
1908)117
Peirce afirma que eacute uma decorrecircncia dessa definiccedilatildeo natildeo apenas que todas as partes
devem ter partes do mesmo tipo mas que as partes suficientemente pequenas devem ter um modo
uniforme de conexatildeo imediata O modo de conexatildeo imediata tem como paradigma a noccedilatildeo de
tempo Ou seja ao final Peirce retoma o que havia descartado em 1889 quando aderiu agrave
definiccedilatildeo de Cantor e passa a tratar o continuum em termos de semelhanccedila com a conexatildeo das
pequenas partes temporais
manifestly non-metrical 117
(hellip) all the parts of a perfect continuum have the same dimensionality as the whole
88
Retomando o argumento de Aquiles e a tartaruga proposto por Zenatildeo de Eleacutea para
demonstrar a impossibilidade do movimento Peirce afirma tratar-se de um argumento falacioso
que falha justamente por assumir como divisiacutevel o que natildeo pode secirc-lo
Como afirmam Potter e Shields (1977) a concepccedilatildeo final de continuidade de Peirce entatildeo
fica assim a definiccedilatildeo matemaacutetica de continuidade descreve um continuum imperfeito (CP 4 sect
642 1908) mas o verdadeiro continuum eacute alguma coisa diferente de qualquer relaccedilatildeo meacutetrica ou
da ordem dos elementos O verdadeiro continuum natildeo tem elementos reais embora natildeo seja
vazio (cf POTTER e SHIELDS 1961 p 139)
Uma vez demonstrada a importacircncia central da noccedilatildeo de continuidade para o pensamento
de Peirce e o modo como esse conceito estaacute ligado agraves variadas maneiras de expressatildeo do seu
pensamento contribuindo para o esclarecimento dos aspectos mais obscuros de suas formulaccedilotildees
cabe agora tentar compreender em particular a maneira pela qual a atuaccedilatildeo da causalidade final
se manifesta nos processos naturais tendo como pano de fundo o continuum Como jaacute foi
indicado a possibilidade do conhecimento do mundo estaacute intimamente ligada ao seu aspecto de
generalidade que por sua vez soacute adquire sentido sob o conceito de continuidade Do mesmo
modo as relaccedilotildees causais em geral e a final em particular envolvem continuidade No proacuteximo
capiacutetulo seraacute investigada a especificidade do modo de atuaccedilatildeo da causalidade final
89
CAPIacuteTULO 03
A EVOLUCcedilAtildeO
Boys grow into men but not men into boys It is thus an immediate corollary from the
doctrine of the conservation of energy that growth is not the effect of force alone (CP
6 sect 554 1887)
90
Este capiacutetulo procura evidenciar o modo pelo qual o desenvolvimento do continuum se
efetuou e tem se efetuado para dar origem ao universo atual segundo a concepccedilatildeo peirceana
Seu desenvolvimento como ressalta Peirce se daacute por meio da atuaccedilatildeo da causalidade final A
negaccedilatildeo da atuaccedilatildeo da causalidade final nos processos naturais eacute uma posiccedilatildeo que natildeo pode ser
sustentada consistentemente pois para Peirce natildeo soacute nos deparamos com uma miriacuteade de
fenocircmenos que a manifestam claramente em particular nos reinos orgacircnico e psiacutequico mas
tambeacutem no reino fiacutesico como por exemplo mais determinante ainda no processo que deu
origem e continua a atuar no crescimento do universo que soacute pode ser entendido a partir da
perspectiva que toma a causalidade final como um agente operante no universo Tal processo diz
Peirce eacute a evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902)
1 ASPECTOS EPISTEMOLOacuteGICOS DA HIPOacuteTESE EVOLUCIONAacuteRIA
Partiremos nesta investigaccedilatildeo de algumas consideraccedilotildees sobre a perspectiva
epistemoloacutegica peirceana para evidenciarmos o modo pelo qual suas consideraccedilotildees sobre a
evoluccedilatildeo satildeo determinantes para a possibilidade de realizaccedilatildeo de seu projeto de validaccedilatildeo do
empreendimento cientiacutefico Para tal fim teremos como ponto de partida as consideraccedilotildees
oferecidas por Christopher Hookway (1984 1985) O primeiro aspecto a ser considerado eacute a sua
adoccedilatildeo do princiacutepio que nega a existecircncia do inexplicaacutevel Uma consequecircncia desta adoccedilatildeo eacute o
estabelecimento de um criteacuterio para a identificaccedilatildeo do tipo de hipoacutetese que pode ser aceita como
candidata agrave verdade cientiacutefica e desse modo merecedora de investigaccedilatildeo Como jaacute foi dito
anteriormente eacute a regularidade na concepccedilatildeo de Peirce aquilo que requer uma explicaccedilatildeo
Como aponta o filoacutesofo natildeo nos surpreendemos e nem buscamos explicaccedilotildees para o resultado
que emerja de um lance de dados uma regularidade natildeo esperada a quebra de uma expectativa
(cf CP 7 sect 194 1901) por outro lado excita-nos a buscar uma explicaccedilatildeo do por que dos
eventos terem se sucedido daquela maneira precisa A maior parte das irregularidades natildeo nos
desperta o menor interesse Peirce diz
91
Estou () certo de que a mera irregularidade onde nenhuma regularidade
definida eacute esperada natildeo cria surpresa nem excita qualquer curiosidade Por que
deveria jaacute que a irregularidade eacute a regra absolutamente preponderante da
experiecircncia e a regularidade eacute somente uma estranha exceccedilatildeo Em que estado
de surpresa passaria minha vida se tentasse compreender por que natildeo haacute
regularidades conectando dias nos quais eu recebo um nuacutemero par de cartas pelo
correio e noites nas quais eu observo um nuacutemero par de estrelas cadentes Mas
quem procuraria por explicaccedilotildees para irregularidades como essas (CP 7 sect 189
1901)118
Uma explicaccedilatildeo no entanto eacute requerida sempre que uma expectativa criada por um haacutebito
que tem por base uma regularidade eacute quebrada A surpresa causada pela quebra de regularidade
motiva-nos a procurar uma explicaccedilatildeo para o comportamento natildeo esperado dos fenocircmenos A
maneira como Peirce entende o que seria uma explicaccedilatildeo eacute bem clara na seguinte passagem
() o que a explicaccedilatildeo de um fenocircmeno faz eacute fornecer uma proposiccedilatildeo que se
fosse conhecida como verdadeira antes do fenocircmeno se apresentar teria tornado
aquele fenocircmeno prediziacutevel se natildeo como certeza ao menos como algo de
ocorrecircncia muito provaacutevel Assim tornaria aquele fenocircmeno racional - isto eacute
tornaacute-lo-ia uma consequecircncia loacutegica necessaacuteria ou provaacutevel (CP 7 sect 197
1901)119
O problema com essa definiccedilatildeo de explicaccedilatildeo eacute que aparentemente implica em um regresso
ao infinito Se aceitarmos como Peirce que uma explicaccedilatildeo natildeo pode ter por base uma hipoacutetese
118 I am () confident that mere irregularity where no definite regularity is expected creates no surprise nor excites
any curiosity Why should it when irregularity is the overwhelmingly preponderant rule of experience and
regularity only the strange exception In what a state of amazement should I pass my life if I were to wonder why
there was no regularity connecting days upon which I receive an even number of letters by mail and nights on which
I notice an even number of shooting stars But who would seek explanations for irregularities like that
119 () what an explanation of a phenomenon does is to supply a proposition which if it had been known to be true
before the phenomenon presented itself would have rendered that phenomenon predictable if not with certainty at
least as something very likely to occur It thus renders that phenomenon rational -- that is makes it a logical
consequence necessary or probable
92
que natildeo seja ela proacutepria explicaacutevel veremos a necessidade de uma hierarquia de hipoacuteteses
segundo a sua generalidade que conduziria a explicaccedilatildeo de qualquer fenocircmeno por fim ao
fracasso uma vez que nenhum fenocircmeno poderia ser completamente conhecido
Barrar a regressatildeo ao infinito parece possiacutevel somente se encontrarmos uma lei que natildeo
necessite de explicaccedilatildeo que se imponha por si mesma Esse entretanto natildeo parece ter sido o
caminho trilhado por Peirce Eacute na tentativa de solucionar o problema da regressatildeo ao infinito das
explicaccedilotildees que encontraremos uma das motivaccedilotildees para a elaboraccedilatildeo de sua hipoacutetese
evolucionaacuteria Submeter uma regularidade a uma lei de maior generalidade natildeo parece ser o
uacutenico caminho para oferecer uma explicaccedilatildeo Uma rota alternativa consiste em oferecer uma
explicaccedilatildeo histoacuterica de como tais regularidades surgiram isto eacute uma explicaccedilatildeo geneacutetica Como
aponta Hookway ldquoEacute plausiacutevel ler Peirce como se estivesse tentando bloquear a regressatildeo de
explicaccedilotildees por meio dessa estrateacutegia a cosmologia evolucionaacuteria oferece uma estrutura para
compreensatildeo histoacuterica das leis que nos capacita a bloquear o regresso das explicaccedilotildeesrdquo
(Hookway 1985 p 267-68)
Aleacutem do bloqueio agrave regressatildeo das explicaccedilotildees Peirce vecirc na hipoacutetese evolucionaacuteria tomada
como um instrumento loacutegico uma resposta para as similaridades formais e materiais constataacuteveis
entre as leis que dirigem diferentes tipos de fenocircmenos da mesma maneira que a teoria da
seleccedilatildeo natural elaborada por Darwin (1809 - 1882) auxilia-nos na compreensatildeo das
semelhanccedilas morfoloacutegicas e comportamentais de diferentes populaccedilotildees
De maneira mais ambiciosa Peirce parece acreditar que a hipoacutetese evolucionaacuteria seria
capaz tambeacutem de explicar porque temos a experiecircncia de uma uniformidade na natureza Ele
afirma que ldquo() a uacutenica maneira possiacutevel de explicar as leis da natureza e a uniformidade em
geral eacute supocirc-las resultado da evoluccedilatildeordquo (CP 6 sect 13 1891)120
em outro momento afirma que
Queremos uma teoria da evoluccedilatildeo da lei fiacutesica Devemos supor que agrave medida
que voltamos ao passado indefinido natildeo meramente as leis especiais mas a lei
120 (hellip) the only possible way of accounting for the laws of nature and for uniformity in general is to suppose them
results of evolution This supposes them not to be absolute not to be obeyed precisely
93
ela mesma encontra-se cada vez menos determinada E como isso poderia
acontecer se a causalidade tivesse sido sempre tatildeo rigidamente necessaacuteria como
eacute agora (EP 1 p 218-9 1884)121
Hookway eacute quanto a esse ponto discordante da pretensatildeo de Peirce pois afirma que
A demanda de que expliquemos por que uma lei existe parece muitas vezes e
corretamente dificilmente inteligiacutevel Essa natildeo parece ser uma questatildeo
cientiacutefica e certamente natildeo eacute idecircntica como Peirce supotildee agrave mais razoaacutevel
afirmaccedilatildeo de que eacute a regularidade ou a uniformidade que nos impulsiona a
buscar por explicaccedilotildees (Hookway 1985 p 268)
Todavia de acordo com o espiacuterito do projeto epistemoloacutegico peirceano que busca eliminar
o incognosciacutevel do reino da natureza por meio da validaccedilatildeo de um meacutetodo eficaz para a ciecircncia e
agrave luz da sua cosmologia que fornece elementos para pensar cada aspecto do universo como o
resultado de um processo evolucionaacuterio a proacutepria existecircncia de leis como um fato bruto que se
impotildee agrave experiecircncia deve ser tomado como um problema que requer uma explicaccedilatildeo A
discordacircncia presente na opiniatildeo de Hookway parece implicar em uma distinccedilatildeo entre leis e
regularidades que natildeo se encontra no pensamento de Peirce senatildeo em graus
Ao lado das leis que governam os fenocircmenos como jaacute vimos no primeiro capiacutetulo Peirce
identifica o acaso absoluto como um ingrediente constitutivo da realidade e fator determinante
para que ela nos apareccedila da maneira como a percebemos isto eacute diversa e com constante
crescimento de complexidade
A partir de uma perspectiva geral que engloba a origem do universo passando pelo tempo
atual e se projetando no futuro infinitamente distante podemos perceber que a hipoacutetese
121 We want a theory of the evolution of physical law We ought to suppose that as we go back in the indefinite past
not merely special laws but law itself is found to be less and less determinate And how can that be if causation was
always as rigidly necessary as it is now
94
evolucionaacuteria de Peirce se compromete com a ideia de que por meio da passagem do tempo as
variaccedilotildees ao acaso tornam-se mais raras e as leis tecircm a sua influecircncia sobre o curso dos eventos
aumentada tornando desse modo o mundo mais e mais racional Central a essa ideia eacute a noccedilatildeo
de haacutebito tanto em seu caraacuteter psicoloacutegico que atua sobre noacutes determinando atraveacutes de
investigaccedilatildeo que adotemos expectativas mais confiaacuteveis isto eacute tornemo-nos mais
autocontrolados quanto em seu caraacuteter cosmoloacutegico que determina o crescimento da
razoabilidade concreta no universo
2 AS RAIacuteZES NA CIEcircNCIA DO SEacuteCULO XIX
Uma outra motivaccedilatildeo para a adoccedilatildeo da hipoacutetese evolucionaacuteria pode ser encontrada na
insatisfaccedilatildeo com o tratamento que a mecacircnica claacutessica legava a certos fenocircmenos considerados
por Peirce de primordial importacircncia os fenocircmenos irreversiacuteveis A caracteriacutestica distintiva do
mundo fenomecircnico eacute sua diversidade afirma Peirce (cf CP 6 sect 262 1892) Como entatildeo
podemos perguntar eacute possiacutevel conciliar esse aspecto do mundo com uma abordagem mecanicista
dos fenocircmenos Eacute para responder a esta questatildeo que Peirce desenvolve uma teoria da evoluccedilatildeo
como um princiacutepio da loacutegica que amplia seu horizonte de aplicaccedilatildeo para aleacutem do reino das
explicaccedilotildees bioloacutegicas alcanccedilando o reino das explicaccedilotildees fiacutesicas psiacutequicas almejando ateacute
mesmo a explicar a gecircnese das proacuteprias leis naturais Embora tenha sido com a obra de Darwin
que o conceito de evoluccedilatildeo foi deslocado para o centro das discussotildees cientiacuteficas na segunda
metade do seacuteculo XIX Peirce dota-o de um sentido diferente daquele entatildeo empregado isto eacute do
de uma metafiacutesica do progresso Como um princiacutepio da loacutegica trata-se de uma ideia reguladora
que tem por finalidade abranger de forma sistemaacutetica e racional a ciecircncia do seu tempo Seu
sentido nada mais eacute do que a hipoacutetese de que existe uma explicaccedilatildeo simples para um estado de
coisas complexas (cf W 4 p 547 1884) Enquanto tal Peirce supunha-o presente na elaboraccedilatildeo
teoacuterica de todo grande filoacutesofo Ele afirma que ldquoHoje todos satildeo evolucionistas Diz-se que eacute o
tempo do evolucionismo Mas a verdade eacute que todos os filoacutesofos desde o tempo de Fereacutecides
95
tecircm sido evolucionistasrdquo (NEM 4 p 140 ca 1898)122
O desafio principal enfrentado por Peirce eacute o de propor uma alternativa agrave abordagem
mecanicista que natildeo ignore a variedade e diversidade dos fenocircmenos De um ponto de vista mais
geral pode-se identificar nos esforccedilos empreendidos por Peirce a busca por uma teoria que
levasse em consideraccedilatildeo os fenocircmenos irreversiacuteveis tarefa que natildeo faria sentido dentro dos
paracircmetros da fiacutesica newtoniana na qual a direccedilatildeo da flecha do tempo eacute teoricamente reversiacutevel
A evoluccedilatildeo como um processo operante no cosmo aparece como a fonte dos problemas da
abordagem da mecacircnica claacutessica pois a irreversibilidade de seus processos natildeo pode ser
explicada Diz Peirce
Desse modo pela admissatildeo da pura espontaneidade ou vida como uma
caracteriacutestica de universo agindo sempre e em todo lugar ainda que restrita pelos
limites da lei continuamente produzindo variaccedilotildees infinitesimais com relaccedilatildeo agrave
lei e outras grandes com infinita infrequecircncia considero toda a variedade e
diversidade do universo no uacutenico sentido no qual o realmente sui generis e novo
pode ser considerado A visatildeo comum tem que admitir a inexauriacutevel e numerosa
variedade do mundo tem que admitir que sua lei mecacircnica natildeo consegue dar
conta disso ao final a variedade pode se originar unicamente da espontaneidade
e contudo nega sem qualquer evidecircncia ou razatildeo a existecircncia dessa
espontaneidade ou de outra forma voltam ao iniacutecio do tempo e supotildeem-na
morta desde sempre (CP 6 sect 59 1892)123
Como aponta Reynolds (2002 p 27) ldquoEra uma crenccedila comum entre os fiacutesicos ateacute por volta
da uacuteltima deacutecada do seacuteculo dezenove que todos os fenocircmenos fiacutesicos poderiam ser acomodados
dentro dos esquemas da apresentaccedilatildeo da ciecircncia da mecacircnica de Newtonrdquo Peirce tendia a aceitar
esta afirmaccedilatildeo com alguma reserva sua principal discordacircncia dizia respeito agrave impossibilidade de
122 Everybody today is evolutionist This is said to be the day of evolutionism But in truth every important
philosopher from Pherecydes down has always been evolutionist
123 By thus admitting pure spontaneity or life as a character of the universe acting always and everywhere though
restrained within narrow bounds by law producing infinitesimal departures from law continually and great ones
with infinite infrequency I account for all the variety and diversity of the universe in the only sense in which the
really sui generis and new can be said to be accounted for The ordinary view has to admit the inexhaustible
multitudinous variety of the world has to admit that its mechanical law cannot account for this in the least that
variety can spring only from spontaneity and yet denies without any evidence or reason the existence of this
spontaneity or else shoves it back to the beginning of time and supposes it dead ever since
96
se abordar os fenocircmenos irreversiacuteveis dentro desse esquema explicativo A esta posiccedilatildeo que
considerava passiacutevel de criacutetica ele atribuiu o nome de mecanicismo ou necessitarismo Eacute
interessante notar que Peirce definia a fiacutesica como ldquo() a ciecircncia dos princiacutepios operativos na
natureza inorgacircnica a ciecircncia das forccedilas ou formas de energiardquo (CD p 4465 ca 1889)124
A
fiacutesica segundo sua concepccedilatildeo poderia ser divida em trecircs ramos distintos
1 Fiacutesica molar Mecacircnica e gravitaccedilatildeo a ciecircncia da forccedila em geral com
desenvolvimentos matemaacuteticos extensivos
2 Fiacutesica molecular o estudo da constituiccedilatildeo da mateacuteria e das forccedilas interiores agraves
moleacuteculas incluindo a elasticidade e o calor (um aspecto indivisiacutevel) coesatildeo e forccedilas quiacutemicas e
3 A fiacutesica do eacuteter sendo o estudo da luz ou radiaccedilatildeo eletricidade e magnetismo (cf CP
1 sect 193 1903)
Eacute no segundo ramo o da fiacutesica molecular indica Reynolds (2002) que Peirce vecirc a maior
importacircncia que seu projeto loacutegicometafiacutesico poderia ter como um guia para as pesquisas Sua
insatisfaccedilatildeo com a incapacidade da mecacircnica newtoniana de tratar do tempo como um fluxo que
possui uma direccedilatildeo especiacutefica eacute atribuiacuteda ao caraacuteter formal da teoria mecanicista Como afirma
() as leis da dinacircmica permanecem em uma condiccedilatildeo um pouco diferente
daquela das leis da gravitaccedilatildeo elasticidade e similares As leis da dinacircmica satildeo
muito mais parecidas com princiacutepios loacutegicos se eacute que natildeo satildeo precisamente isso
Elas soacute dizem como os corpos se moveratildeo depois que se tenha dito o que as
forccedilas satildeo Elas permitem qualquer forccedila e portanto qualquer movimento (CP
1 sect 347 1903)125
124 () the science of the principles operative in nature the science of forces or forms of energy 125 () the laws of dynamics stand on quite a different footing from the laws of gravitation elasticity electricity
and the like The laws of dynamics are very much like logical principles if they are not precisely that They only say
how bodies will move after you have said what the forces are They permit any forces and therefore any motions
97
Dado o seu caraacuteter geral e abstrato essas leis natildeo conseguem dar conta dos processos
irreversiacuteveis que ocorrem na natureza uma vez que a direccedilatildeo da flecha do tempo tanto pode estar
apontada para o futuro quanto para o passado sem que nada de significativo seja alterado na
teoria No entanto os processos naturais visados por Peirce como objetos merecedores de
atenccedilatildeo e explicaccedilatildeo satildeo justamente aqueles nos quais a direccedilatildeo do tempo desempenha um papel
fundamental satildeo os processos irreversiacuteveis como a proacutepria evoluccedilatildeo que determina o
crescimento do universo como um todo
A discussatildeo do alcance e limite da abordagem mecanicista passa pela consideraccedilatildeo do que
ficou conhecido como a lei da vis viva126
que eacute descrita por Peirce como ldquo() o princiacutepio
segundo o qual quando unicamente forccedilas posicionais satildeo consideradas qualquer mudanccedila na
vis viva do sistema depende unicamente das situaccedilotildees inicial e final das partiacuteculasrdquo (CD p 6768
ca 1889)127
As forccedilas posicionais satildeo aquelas resultantes exclusivamente da posiccedilatildeo relativa dos
corpos envolvidos Uma vez que essas forccedilas mantecircm a quantidade de vis viva do sistema
inalterada elas satildeo chamadas de forccedilas conservativas Na definiccedilatildeo que Peirce oferece do termo
forccedila temos a definiccedilatildeo do que entendia por forccedila conservativa
Uma atraccedilatildeo ou repulsatildeo dependente da posiccedilatildeo relativa do par de corpos
implicados Acredita-se que todas as forccedilas fundamentais sejam conservativas
ou fixas Seja qual for o movimento que tenha origem sob a influecircncia
unicamente de forccedilas conservativas pode originar-se sob as mesmas forccedilas
precisamente na ordem reversa a velocidade sendo a mesma mas em direccedilatildeo
oposta (CD p 2319 ca 1889)128
126 Reynolds (2002 p 30) lembra que essa quantidade foi primeiramente defina por Leibniz (1646 - 1716) como
sendo igual ao produto da massa e o quadrado da velocidade de uma partiacutecula ou a soma desse modo de um grupo
de partiacuteculas
127 () the principle that when only positional forces are considered any changes in the vis viva of a system
depend only on the initial and final situations of the particles 128 An attraction or repulsion depending upon the relative position of the pair of bodies concerned All fundamental
forces are believed to be conservative or fixed Whatever motion takes place under the influence of conservative
forces alone might take place under the same forces in precisely the reverse order the velocities being the same but
opposite in direction
98
A consequecircncia eacute a de que todos os sistemas que contenham unicamente forccedilas de tipo
conservativo satildeo reversiacuteveis Ainda que a princiacutepio a lei da vis viva tivesse aplicaccedilatildeo restrita aos
sistemas mecacircnicos Helmholtz (1821 - 1894) se encarregou de estendecirc-la a todos os sistemas
fiacutesicos argumentando que todas as forccedilas fundamentais da natureza satildeo posicionais portanto
conservativas que interagem entre pares de pontos materiais O passo seguinte nessa mesma
direccedilatildeo foi a determinaccedilatildeo do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia mais abrangente que a lei da
vis viva na medida em que inclui todos os tipos de forccedilas existentes na natureza como afirma
Reynolds ldquoO que o princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia fez foi tornar o velho princiacutepio da
mecacircnica (a lei da vis viva) um princiacutepio geral da fiacutesica com aplicaccedilatildeo universal a todos os
sistemas fiacutesicosrdquo (Reynolds 2002 p 32)
As implicaccedilotildees do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia e a sua relaccedilatildeo com a vis viva satildeo
bem indicadas por Peirce na seguinte passagem
Tambeacutem pode ser argumentado que de acordo com a lei de conservaccedilatildeo de
energia natildeo haacute nada no universo fiacutesico que corresponda agrave nossa ideia de que o
preacutevio determina o subsequente em qualquer modo no qual o subsequente natildeo
determine o preacutevio () Assim sendo do quadrado de uma quantidade negativa
sendo positivo segue-se que se todas as velocidades fossem revertidas em
qualquer instante tudo permaneceria igual unicamente o tempo indo para traacutes
em relaccedilatildeo a como estava Tudo que tenha acontecido aconteceria novamente
na ordem reversa (CP 8 sect 320 1906)129
ou ainda
129 It may also be argued that according to the law of the conservation of energy there is nothing in the physical
universe corresponding to our idea that the previous determines the subsequent in any way in which the subsequent
does not determine the previous() Now the square of a negative quantity being positive it follows that if all the
velocities were reversed at any instant everything would go on just the same only time going backward as it were
Everything that had happened would happen again in reverse order
99
Eu pessoalmente acredito que as duas direccedilotildees do Tempo satildeo tatildeo diferentes
quanto as duas direccedilotildees ao longo de uma linha Pois a lei da conservaccedilatildeo de
energia eacute que a vis viva e consequentemente tambeacutem as forccedilas das partiacuteculas
natildeo depende de nada mutaacutevel exceto as posiccedilotildees relativas das partiacuteculas Desse
modo o diferencial do tempo entra na expressatildeo analiacutetica da vis viva 12
m(dsdt)2 bem como naquela de forccedila m d2s (dt)
2 unicamente como o
quadrado Uma vez que o quadrado de uma quantidade negativa eacute igual agravequele
da quantidade positiva correspondente as duas direccedilotildees do tempo satildeo
indiferentes na medida em que a lei de conservaccedilatildeo de energia valha (NEM 2
p 481)130
O que se depreende eacute que natildeo se pode entender por meio destes princiacutepios porque o
universo apresenta caracteriacutesticas de irreversibilidade uma vez que a partir dos mesmos natildeo se
pode compreender por que a flecha do tempo possuiria caracteriacutesticas especiais em uma de suas
direccedilotildees isto eacute por que o tempo flui do passado para o futuro e por que essa direccedilatildeo apresenta
aspectos de irreversibilidade Entretanto seria um equiacutevoco julgar que Peirce natildeo tinha uma
avaliaccedilatildeo positiva do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia ele proacuteprio afirma em vaacuterios
momentos que ldquoA descoberta desta lei [de conservaccedilatildeo de energia] eacute a maior que a ciecircncia jamais
fez e nada que possa ser descoberto no futuro (a menos que seja de caraacuteter sobrenatural) pode
igualaacute-la em importacircnciardquo (W 5 p 402)131
Natildeo obstante esta avaliaccedilatildeo Peirce parece em
algumas passagens um pouco hesitante quanto ao verdadeiro alcance e natureza do princiacutepio
A descoberta da conservaccedilatildeo de energia pode muito bem ser considerada como a
maior conquista da filosofia natural Contudo por fim nada sabemos ao seu
respeito com exceccedilatildeo daquilo que a experiecircncia nos ensina e suas verificaccedilotildees
experimentais com exceccedilatildeo de alguns casos simples natildeo obtecircm qualquer grau
130 I personally believe that the two directions of Time are as alike as the two directions along a line For the law of
the conservation of energy is that the vis viva and consequently also the forces of the particles depends upon
nothing mutable except the relative positions of the particles Now the differential of the time enters into the
analytical expression of the vis viva 12 m(dsdt)2 as well as into that of force m d2s (dt)
2 only as squared
Whence the square of a negative quantity being equal to that of the corresponding positive quantity the two
directions of time are indifferent as far as the action of the law of the conservation of energy goes 131 The discovery of this law [of the conservation of energy] is the greatest that science has ever made and nothing
that can be hereafter (unless it be of a supernatural kind) can equal it in importance
100
extraordinaacuterio de precisatildeo quando consideramos o trabalho muscular e a
atividade cerebral haacute pouco mais que analogia a nos guiar a pensaacute-la como uma
aproximaccedilatildeo da verdade Toda determinaccedilatildeo fiacutesica de uma quantidade contiacutenua
tem seu ldquoerro provaacutevelrdquo e o erro provaacutevel da equaccedilatildeo que expressa a
conservaccedilatildeo de energia eacute grande em comparaccedilatildeo com aqueles que expressam
por exemplo as trecircs leis do movimento Todavia frequentemente vemos os
ldquocientistasrdquo tratando a lei da conservaccedilatildeo de energia em suas aplicaccedilotildees
extremas as mais distantes de qualquer coisa que possamos medir como algo de
que seria absurdo duvidar (CN 1 p 176 1893)132
O problema que Peirce tem como pano de fundo de suas especulaccedilotildees e para cuja soluccedilatildeo
emprega seus maiores esforccedilos eacute como jaacute ficou claro o de propor uma abordagem cientiacutefica aos
fenocircmenos irreversiacuteveis Quando se refere a tais fenocircmenos Peirce pensa sobretudo naqueles
que satildeo fruto da evoluccedilatildeo mas tambeacutem em outros fenocircmenos fiacutesicos cujas caracteriacutesticas de
irreversibilidade jaacute lhe eram claras O filoacutesofo afirma que
(hellip) quase todos os fenocircmenos dos corpos aqui na terra que atraem a nossa
atenccedilatildeo satildeo natildeo conservativos isto eacute satildeo inexplicaacuteveis por meio da Lei de
Conservaccedilatildeo de Energia Pois satildeo accedilotildees que natildeo podem ser revertidas Na
linguagem dos fiacutesicos satildeo irreversiacuteveis Deste tipo satildeo por exemplo o
nascimento o crescimento a vida () todos os movimentos que sofrem a
resistecircncia da fricccedilatildeo ou da viscosidade dos fluidos () o trovatildeo a produccedilatildeo das
cores pelo prisma o fluxo dos rios a formaccedilatildeo de barreiras em suas
desembocaduras a vegetaccedilatildeo de seus canais enfim substancialmente tudo que a
experiecircncia ordinaacuteria revela (CP 6 sect 72 1898)133
132 The discovery of the conservation of energy may well be considered as the greatest achievement of natural
philosophy Yet after all we know nothing about it except what experience teaches us and the experiential
verifications of it except in a few simple cases do not attain any extraordinary degree of precision while in regard
to muscular work and brain activity there is little but analogy to lead us to think it so much as a close approximation
to the truth Every physical determination of a continuous quantity has its probable error and the probable error of
the equation which expresses the conservation of energy is large in comparison with those which express for
example the three laws of motion Nevertheless we often find the scientists treating the law of the conservation of
energy in its extremest applications the most remote from anything we can measure as something it would be
absurd to doubt
133 () almost all the phenomena of bodies here on earth which attract our familiar notice are non-conservative that
is are inexplicable by means of the Law of the Conservation of Energy For they are actions which cannot be
reversed In the language of physics they are irreversible Such for instance is birth growth life () all motion
resisted by friction or by the viscosity of fluids () the conduction of heat combustion capillarity diffusion of fluids
() the thunder bolt the production of high colors by a prism the flow of rivers the formations of bars at their
mouths the wearing of their channels in short substantially everything that ordinary experience reveals
101
Temos desta maneira como jaacute ficou indicado uma tensatildeo entre a quase ubiquidade do
caraacuteter de irreversibilidade nos fenocircmenos naturais e a descriccedilatildeo cientiacutefica que toma o universo
como um sistema reversiacutevel in toto A soluccedilatildeo encontrada por Peirce natildeo eacute uma formulaccedilatildeo
isolada e totalmente diferente do que a ciecircncia de seu tempo vinha produzindo Veremos agora
como as discussotildees que conduziram agrave formulaccedilatildeo da termodinacircmica inspirou as ideias de Peirce
A descriccedilatildeo de fenocircmenos como irreversiacuteveis natildeo era exclusividade de Peirce Sadi Carnot
(1796ndash1832) Rudolf Clausius (1822ndash1888) e Lord Kelvin (1824ndash1907) jaacute se ocupavam com a
tarefa de compreender alguns fenocircmenos caracteriacutesticos da irreversibilidade em particular o
calor que daria origem posteriormente agrave teoria termodinacircmica Nas afirmaccedilotildees de Clausius de
que (1) a energia do universo eacute constante e (2) a entropia do universo tende ao maacuteximo
encontramos uma clara afirmaccedilatildeo de que eacute o aumento de entropia o marcador que determina a
direccedilatildeo da flecha do tempo Como aponta Reynolds
Em uma tentativa de oferecer uma abordagem mecacircnica de tais processos
irreversiacuteveis tal como satildeo descritos pela segunda lei Clausius Maxwell
Boltzmann e outros desenvolveram a teoria cineacutetica dos gases na qual a teoria
da probabilidade e os princiacutepios da mecacircnica satildeo combinados para oferecer uma
abordagem estatiacutestica dos movimentos da miriacuteade de partiacuteculas do gaacutes O
tratamento estatiacutestico foi considerado necessaacuterio principalmente por causa do
vasto nuacutemero de moleacuteculas que se supocircs constituiacutea um gaacutes (Reynolds 2002 p
42)
Para os criadores da teoria cineacutetica dos gases o fato de que os gases tendam a preencher
todo o interior dos recipientes em que satildeo colocados e de que nunca se concentram em apenas
uma parte dos mesmos eacute explicado em funccedilatildeo da lei dos grandes nuacutemeros ou lei das
probabilidades Embora teoricamente possiacutevel a ocorrecircncia da concentraccedilatildeo espontacircnea das
partiacuteculas de um gaacutes nunca eacute verificada isso porque a probabilidade de sua difusatildeo eacute muito maior
do que a de sua concentraccedilatildeo dado o nuacutemero extremamente grande de partiacuteculas que o
102
compotildeem cujas interaccedilotildees satildeo tatildeo numerosas e tatildeo sutis que satildeo tomadas como sendo
determinadas pelo acaso
Quanto a esse tipo de explicaccedilatildeo Peirce declara ldquoPara aquelas explicaccedilotildees que os fiacutesicos
propotildeem para os fenocircmenos irreversiacuteveis por meio da doutrina da probabilidade (doctrine of
chances) aplicada a trilhotildees de moleacuteculas aceito-as integralmente como um dos resultados mais
sofisticados da ciecircnciardquo (CP 7 sect 470 1898)134
Contudo acrescenta mais abaixo no mesmo
paraacutegrafo
Sua explicaccedilatildeo dos fatos eacute em seu conjunto admiraacutevel e fortalecida por uma
variedade de novos fenocircmenos que natildeo eram conhecidos no momento em que a
teoria foi primeiramente proposta mas que se encaixam em seus lugares como as
peccedilas separadas de um mapa de crianccedila uma vez que ela tenha comeccedilado a unir
algumas delas corretamente Essa explicaccedilatildeo demonstra que a accedilatildeo da energia
estaacute disseminada por cada departamento do fenocircmeno fiacutesico Contudo em uma
coisa ela falha a saber em mostrar a ausecircncia de um tipo muito diferente de
accedilatildeo e natildeo falha apenas em mostrar sua ausecircncia mas por suprimir ateacute mesmo
os meios de provar a sua presenccedila (CP 7 sect 470 1898)135
Os fenocircmenos que satildeo ignorados e ateacute mesmo mascarados pelas teorias indicadas satildeo
denominados por Peirce de fenocircmenos natildeo conservativos e possuem duas caracteriacutesticas
principais
a) verifica-se em seu desenrolar uma determinada direccedilatildeo e uma tendecircncia assintoacutetica para
a realizaccedilatildeo de um estado de coisas final
134 As to those explanations which the physicists propose for irreversible phenomena by means of the doctrine of
chances as applied to trillions of molecules I accept them fully as one of the finest achievements of science
135 Its explanation of the facts is altogether admirable and is fortified by a variety of new phenomena which were
not known at the time the theory was first proposed but which fit into their places like the pieces of a boys dissected
map after he has once begun to put a few of them rightly together This explanation demonstrates that the agency of
energy is disseminated through every department of physical phenomena But in one thing it fails namely it fails to
show the absence of a very different kind of agency and it not only fails to show its absence but even supplies the
means of proving its presence
103
b) satildeo irreversiacuteveis (cf CP 7 sect 471 1898)
Temos aqui a afirmaccedilatildeo clara de que tais fenocircmenos se dirigem para um fim Peirce diz que
se teleoloacutegico eacute uma palavra muito forte para descrever esse processo talvez se possa inventar
uma outra palavra finista (finious) para expressar a sua tendecircncia em direccedilatildeo a um estado final
(cf CP 7 sect 471 1898)
Embora Peirce reconheccedila que a fricccedilatildeo seja o exemplo de um fenocircmeno natildeo conservativo
que simula a accedilatildeo conservativa (cf CP 7 sect 472 1898) a utilizaccedilatildeo de (a) e (b) acima como
criteacuterios indica a expectativa de Peirce de que os fenocircmenos que nos interessam neste capiacutetulo
isto eacute os fenocircmenos de crescimento ou evoluccedilatildeo podem ser explicados por meio da assimilaccedilatildeo
dos princiacutepios envolvidos na teoria cineacutetica dos gases Tais fenocircmenos satildeo irreversiacuteveis em
funccedilatildeo da operaccedilatildeo no mundo de um princiacutepio real de acaso Eacute a indeterminaccedilatildeo resultante da
interaccedilatildeo de um vasto nuacutemero de partiacuteculas e de seus movimentos que explicaria a
irreversibilidade constatada em certos fenocircmenos Todavia o proacuteprio tempo natildeo parece receber
este mesmo tipo de tratamento como veremos no capiacutetulo dedicado agrave causalidade final
Tendo visto como a proposta do acaso absoluto como um princiacutepio operante na natureza eacute
uma consequecircncia da leitura que Peirce faz da ciecircncia do seu tempo em particular da teoria
termodinacircmica passaremos agora a investigar as descriccedilotildees e classificaccedilotildees que Peirce oferece
ao fenocircmeno evolutivo Vale lembrar que com o termo bdquoevoluccedilatildeo‟ Peirce se refere aos fenocircmenos
de crescimento que satildeo portanto em seus proacuteprios termos irreversiacuteveis e finistas Os textos que
compotildeem a base desta investigaccedilatildeo satildeo da maturidade de Peirce e frutos de sua preocupaccedilatildeo com
a elaboraccedilatildeo de uma metafiacutesica adequada agrave nossa esperanccedila de tornar possiacutevel o desenvolvimento
da ciecircncia
104
3 OS TREcircS TIPOS DE EVOLUCcedilAtildeO
As ideias evolucionistas de Peirce aparecem de maneira mais pronunciada nos textos que
tratam de suas concepccedilotildees cosmoloacutegicas136
isto eacute em sua obra mais tardia ainda que possamos
encontrar elementos que demonstrem sua preocupaccedilatildeo com o tema desde o iniacutecio de sua carreira
intelectual Haacute relatos do proacuteprio autor que testemunham a impressatildeo marcante que a leitura da
Origem das espeacutecies de Charles Darwin jaacute no ano seguinte a sua publicaccedilatildeo causou em todo o
ciacuterculo de estudiosos de Cambridge em Massachusetts do qual Peirce fazia parte
Ainda que fosse grande admirador e leitor de primeira hora da obra de Darwin Peirce tinha
um olhar mais abrangente sobre os tipos de evoluccedilatildeo encontrados em atuaccedilatildeo no mundo
orgacircnico A evoluccedilatildeo descrita por Darwin seria apenas um dos tipos e natildeo o mais presente em
atuaccedilatildeo nos processos naturais A concepccedilatildeo peirceana prevecirc a existecircncia de trecircs tipos diferentes
de evoluccedilatildeo orgacircnica que podem ser usados como criteacuterios para a classificaccedilatildeo das teorias
propostas sobre o tema Em primeiro lugar observa-se a evoluccedilatildeo de tipo darwiniana na qual a
reproduccedilatildeo eacute indicada como o momento da ocorrecircncia de variaccedilotildees fortuitas que explicam o
desenvolvimento das espeacutecies da monera ao homem Segundo Peirce a evoluccedilatildeo darwiniana
ocorre como consequecircncia da atuaccedilatildeo de dois fatores a hereditariedade que faz a descendecircncia
assemelhar-se aos pais ainda que preserve espaccedilo para a ocorrecircncia de pequenas variaccedilotildees e a
destruiccedilatildeo de tipos ou de raccedilas que natildeo conseguem manter a taxa de natalidade maior do que a
taxa de mortalidade
Em segundo lugar tem-se a teoria de tipo lamarckiano na qual as modificaccedilotildees ocorridas
nas espeacutecies satildeo frutos dos desafios apresentados aos indiviacuteduos e respondidos durante a sua
vida por meio de esforccedilos e exerciacutecios com a intenccedilatildeo de fixar novos haacutebitos Segundo a
interpretaccedilatildeo oferecida por Peirce a teoria darwiniana diferencia-se da teoria lamarckiana na
136 As preocupaccedilotildees de Peirce com as teorias da evoluccedilatildeo bioloacutegicas parecem culminar no texto ldquoEvolucionary
loverdquo de 1893 mas em textos anteriores como ldquoDesign and chancerdquo de 1883-84 ldquoA guess at the riddlerdquo de 1887-88
e ldquoThe arquitecture of the theoriesrdquo de 1891 tambeacutem encontramos importantes indicaccedilotildees sobre o tema
105
medida em que esta atua sobre o indiviacuteduo enquanto aquela atua sobre a espeacutecie podendo dar
lugar ao surgimento de caracteriacutesticas beneacuteficas agrave espeacutecie mas deleteacuterias ao indiviacuteduo Peirce
afirma
Concebendo-se de maneira mais ampla e filosoacutefica a evoluccedilatildeo darwiniana eacute
evoluccedilatildeo pela operaccedilatildeo do acaso e a destruiccedilatildeo dos resultados ruins enquanto a
evoluccedilatildeo lamarckiana eacute evoluccedilatildeo por meio do efeito do haacutebito e do esforccedilo (CP
6 sect 16 1891)137
E em terceiro lugar encontra-se a teoria catacliacutesmica proposta por Clarence King de
acordo com a qual as modificaccedilotildees satildeo o resultado de mudanccedilas bruscas no ambiente Em face
dessas alteraccedilotildees ambientais os organismos aumentam enormemente a quantidade de variaccedilotildees
que ocorrem em suas reproduccedilotildees Assim notam-se alteraccedilotildees que natildeo satildeo imperceptiacuteveis ndash
como a evoluccedilatildeo darwiniana e a lamarckiana supotildeem ndash nem frutos do acaso nem do esforccedilo
individual mas respostas a mudanccedilas ambientais
Esse modo de evoluccedilatildeo por forccedilas externas e por meio da quebra de haacutebitos
parece ser requisitado por alguns dos mais amplos e importantes fatos da
biologia e da paleontologia ao mesmo tempo em que tem sido o principal fator
na evoluccedilatildeo histoacuterica de instituiccedilotildees tanto quanto na de ideias e possivelmente
natildeo pode recusar um lugar proeminente no processo de evoluccedilatildeo do universo em
geral (CP 6 sect 17 1891)138
137 But more broadly and philosophically conceived Darwinian evolution is evolution by the operation of chance
and the destruction of bad results while Lamarckian evolution is evolution by the effect of habit and effort
138 This mode of evolution by external forces and the breaking up of habits seems to be called for by some of the
broadest and most important facts of biology and paleontology while it certainly has been the chief factor in the
historical evolution of institutions as in that of ideas and cannot possibly be refused a very prominent place in the
process of evolution of the universe in general
106
4 OS TREcircS MODELOS DE EXPLICACcedilAtildeO
Um aspecto central e condiccedilatildeo de possibilidade da evoluccedilatildeo eacute a existecircncia de variaccedilotildees no
interior dos fenocircmenos naturais Nota-se na formulaccedilatildeo peirceana o reconhecimento do aspecto
eminentemente mutaacutevel da natureza Natildeo mais circunscrito apenas aos fenocircmenos bioloacutegicos
Peirce procura montar um quadro teoacuterico no qual a evoluccedilatildeo eacute o aspecto marcante de todos os
acontecimentos dos mais variados campos
A descriccedilatildeo dos tipos de evoluccedilatildeo orgacircnica conduziu Peirce a elaborar modelos de
explicaccedilatildeo para o modo como a histoacuteria e particularmente a histoacuteria da ciecircncia se desenvolveu
Nesse campo natildeo seria um erro afirmar que os trecircs tipos de evoluccedilatildeo encontram-se presentes e
concorrem para os resultados alcanccedilados Um exemplo fornecido por Peirce da atuaccedilatildeo da forma
darwiniana na evoluccedilatildeo da ciecircncia pode ser encontrado no modo como as teorias satildeo propostas Eacute
bastante plausiacutevel afirma Peirce que na elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses para a soluccedilatildeo de um
determinado problema os cientistas faccedilam um grande nuacutemero de tentativas mentais de
elaboraccedilatildeo de teorias diversas umas das outras de modo quase imperceptiacutevel ateacute que uma delas
seja vista como francamente impossiacutevel Essa hipoacutetese eacute rejeitada e a energia investigativa volta-
se para as outras formulaccedilotildees ateacute que uma delas se mostre mais apta a fornecer as respostas
almejadas e se torne cada vez mais forte na mente do cientista
A evoluccedilatildeo lamarckiana diz Peirce ldquo() toma a forma de uma modificaccedilatildeo perpeacutetua de
nossa opiniatildeo de modo a tornaacute-la mais representativa dos fatos conhecidos na medida em que
mais e mais observaccedilotildees satildeo coletadasrdquo (CP 1 sect 108 1896)139
Embora esse tipo de evoluccedilatildeo
natildeo explique os grandes avanccedilos da ciecircncia jaacute que implica em uma evoluccedilatildeo bastante gradual eacute
o responsaacutevel pelos avanccedilos que se notam apoacutes deacutecadas de pequenas contribuiccedilotildees individuais O
exemplo indicado por Peirce eacute a evoluccedilatildeo da classificaccedilatildeo dos elementos quiacutemicos que ocorreu
no lapso de tempo entre Jons Jakob Berzelius (1779 ndash 1848) e Dmitri Mendeleev (1834 ndash 1907)
139 () take the form of perpetually modifying our opinion in the effort to make that opinion represent the known
facts as more and more observations came to be collected
107
Os principais progressos cientiacuteficos entretanto ocorrem por saltos afirma Peirce e ldquo() o
impulso para cada salto eacute um novo recurso observacional ou algum novo modo de raciocinar
sobre as observaccedilotildeesrdquo (CP 1 sect 109 1896)140
Como exemplo o autor indica a descoberta dos
micro-organismos por Pasteur que desbancou a perspectiva metafiacutesica de Claude Bernard (1813 -
1878) ao indicar os agentes causadores das doenccedilas unindo novas ideias a novos meacutetodos
observacionais
5 A EVOLUCcedilAtildeO E A COSMOLOGIA
Ao reunir as caracteriacutesticas mais marcantes de cada um dos tipos de evoluccedilatildeo descritos
acima e abstrair suas caracteriacutesticas mais especiacuteficas determinadas em funccedilatildeo do seu campo de
aplicaccedilatildeo Peirce propotildee uma formulaccedilatildeo geral para os modos de evoluccedilatildeo em curso no universo
Nessa perspectiva distingue trecircs tipos de evoluccedilatildeo a evoluccedilatildeo causada por variaccedilatildeo fortuita
denominada de evoluccedilatildeo ticaacutestica ou ticasmo a evoluccedilatildeo que segue uma necessidade jaacute dada
denominada de evoluccedilatildeo anancaacutestica ou anancasmo e a evoluccedilatildeo marcada pela atuaccedilatildeo da
causalidade final denominada de evoluccedilatildeo agapaacutestica ou agapasmo Pode-se ver que agrave evoluccedilatildeo
ticaacutestica de desenvolvimento das ideias corresponde o modelo darwiniano e a evoluccedilatildeo orgacircnica
proposta por Darwin agrave evoluccedilatildeo anancaacutestica corresponde o modelo de rupturas e a evoluccedilatildeo por
cataclismos proposta por Clarence King para o reino orgacircnico e agrave evoluccedilatildeo agapaacutestica
corresponde o modelo lamarckiano e a evoluccedilatildeo lamarckiana
Os trecircs modos de evoluccedilatildeo satildeo compostos pelos mesmos elementos gerais diz o filoacutesofo
Uma geraccedilatildeo passa espontaneamente uma quantidade de bdquotalentos‟ para a geraccedilatildeo seguinte e essa
possui a disposiccedilatildeo de tomaacute-los e desenvolvecirc-los e dessa maneira servir a um propoacutesito geral
Esses elementos mostram-se mais claramente no agapasmo mas tambeacutem estatildeo presentes de
140 () and the impulse for each leap is either some new observational resource or some novel way of reasoning
about the observations
108
maneira diversa no ticasmo e no anancasmo Essas duas formas podem ser vistas como formas
degeneradas de agapasmo afirma o autor (cf CP 6 sect 303 1893)
Embora o ticasmo possa ser considerado uma forma degenerada de agapasmo possui
contudo caracteriacutesticas que lhe satildeo proacuteprias As variaccedilotildees que datildeo lugar ao crescimento soacute o
fazem por meio da distribuiccedilatildeo aleatoacuteria de talentos implicando que os rejeitados cedam o seu
lugar para aqueles que possuam mais disposiccedilatildeo Como exemplo Peirce usa os jogos de azar no
qual os jogadores arruinados deixam na mesa o seu dinheiro para tornar aqueles natildeo arruinados
ainda mais ricos enquanto no agapasmo ldquo() o progresso ocorre a partir da continuidade da
mente em virtude da simpatia positiva existente entre a descendecircncia criadardquo (CP 6 sect 304
1893)141
O anancasmo por sua vez eacute um modo de evoluccedilatildeo claramente afiliado ao agapasmo na
medida em que demonstra uma tendecircncia para o desenvolvimento em direccedilatildeo a uma preordenada
perfeiccedilatildeo Como exemplo Peirce cita a filosofia hegeliana O que a diferencia do agapasmo eacute o
fato de que ldquo() a liberdade viva eacute praticamente omitida de seu meacutetodordquo (CP 6 sect 305 1893)142
Apenas com a introduccedilatildeo de elementos ticaacutesticos dotando o sistema de liberdade vital o
hegelianismo poderia aproximar-se do verdadeiro agapasticismo que afirma Peirce Hegel estava
mirando
O processo de crescimento ou evoluccedilatildeo diraacute o autor deve ser explicado como estando
submetido aos mesmos princiacutepios a que todos os demais fenocircmenos estatildeo Assim faz-se
necessaacuterio encontrar uma lei que tenha na sua aplicaccedilatildeo o motor de seu fortalecimento ou seja
uma lei que possa crescer devido agrave sua proacutepria natureza Esta eacute a lei da mente Como afirma
Peirce ldquo() a uacutenica tendecircncia que pode crescer por sua proacutepria virtude [eacute] a tendecircncia de todas
as coisas adquirirem haacutebitosrdquo (CP 6 sect 100 1902)143
O filoacutesofo afirma que ldquo() a evoluccedilatildeo fiacutesica trabalha com vistas a fins do mesmo modo
141 () advance takes place by virtue of a positive sympathy among the created springing from continuity of mind
142 () living freedom is practically omitted from its method
143 () the only tendency which can grow by its own virtue the tendency of all things to take habits
109
que a accedilatildeo mental trabalha com vistas a fins e desse modo em um aspecto da questatildeo seria
perfeitamente verdadeiro dizer que a causalidade final eacute a uacutenica primaacuteriardquo (CP 6 sect 101 1902)144
Para Peirce ldquoA causa final natildeo determina de que modo particular algo se realizaraacute mas
unicamente que o resultado teraacute certo caraacuteter geralrdquo (CP 1 sect 211 1902)145
Eacute a causa final
acrescenta que atribui existecircncia a um objeto de uma classe Natildeo devemos todavia entender
essa atribuiccedilatildeo como algum tipo de produccedilatildeo miraculosa Eacute o proacuteprio autor que esclarece o
sentido preciso dessa atribuiccedilatildeo ldquoO que eu entendo pela ideia que confere existecircncia aos
membros individuais de uma classe eacute que ela lhes confere o poder de produzir resultados neste
mundo que ela lhes confere equivale dizer existecircncia orgacircnica ou em uma palavra vidardquo (CP
1 sect 220 1902)146
6 O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA EVOLUCcedilAtildeO
Peirce conclui que a causa primaacuteria atuante no universo em crescimento deve ser a causa
final mas que contudo eacute inoacutecua sem a atuaccedilatildeo da causa eficiente Como indica Silveira (1985
p 8) ldquo() o que o cosmo evolucionaacuterio exige para se efetivar na organizaccedilatildeo crescente que o
define eacute a presenccedila de duas causas cujo modo de operar eacute reciprocamente inverso a causa final e
a causa eficienterdquo Assim sob a atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um
contiacutenuo crescimento da uniformidade a partir das formas diferenciadas Entretanto como aponta
Peirce as divergecircncias agraves leis estatildeo agindo continuamente a fim de aumentar a variedade do
mundo (cf CP 6 sect 101 1902)
144 () the physical evolution works towards ends in the same way that mental action works towards ends and thus
in one aspect of the matter it would be perfectly true to say that final causation is alone primary 145 Final causation does not determine in what particular way it is to be brought about but only that the result shall
have a certain general character
146 What I mean by the ideas conferring existence upon the individual members of the class is that it confers upon
them the power of working out results in this world that it confers upon them that is to say organic existence or in
one word life
110
A ideia ou causa final atrairia os acontecimentos que se processariam em funccedilatildeo de um ser
in futuro Dizer que o futuro natildeo influencia o presente eacute uma doutrina inaceitaacutevel afirma Peirce
expressando uma ideia caracteriacutestica do pragmatismo americano (cf CP 2 sect 86 1902) A defesa
desta doutrina negaria a possibilidade da existecircncia de causas finais e fins que satildeo
imprescindiacuteveis para a constituiccedilatildeo do cosmo
Na evoluccedilatildeo agapaacutestica mais representativa da atuaccedilatildeo da causalidade final a proacutepria ideia
possui uma forccedila de atraccedilatildeo que conduz o pensamento para si A ideia encontra os veiacuteculos
adequados para sua realizaccedilatildeo Como afirma Peirce
O desenvolvimento agapaacutestico do pensamento eacute a adoccedilatildeo de certas tendecircncias
mentais natildeo totalmente descuidadas como no ticasmo nem completamente
cegas pela mera forccedila das circunstacircncias ou da loacutegica como no anancasmo mas
por uma imediata atraccedilatildeo da proacutepria ideia cuja natureza eacute adivinhada depois que
a mente a possui pelo poder da simpatia isto eacute por virtude da continuidade da
mente () (CP 6 sect 307 1893)147
Quando Peirce se refere ao pensamento este deve ser entendido como ldquo() o princiacutepio
primordial para a compreensatildeo natildeo soacute dos fenocircmenos do espiacuterito mas da totalidade do cosmordquo
(SILVEIRA p 75 1989) Sobre a mateacuteria Peirce afirma que
() em obediecircncia ao princiacutepio ou maacutexima da continuidade segundo o qual
devemos assumir que as coisas satildeo contiacutenuas tanto quanto possamos urge que
devamos supor uma continuidade entre os caracteres da mente e da mateacuteria de
tal forma que a mateacuteria natildeo seria mais do que mente que tendo haacutebitos de tal
modo empedernidos eacute levada a agir com um grau particularmente elevado de
147 The agapastic development of thought is the adoption of certain mental tendencies not altogether heedlessly as
in tychasm nor quite blindly by the mere force of circumstances or of logic as in anancasm but by an immediate
attraction for the idea itself whose nature is divined before the mind possesses it by the power of sympathy that is
by virtue of the continuity of mind ()
111
regularidade mecacircnica ou rotina (CP 6 sect 277 1893)148
Em decorrecircncia da aceitaccedilatildeo da ideia de continuidade entre a mente e a mateacuteria Peirce se
autodenomina em algumas passagens de idealista objetivo Afirma sua diferenccedila com relaccedilatildeo ao
monismo materialista indicando que ldquo(hellip) o primeiro [monista materialista] faz da lei da mente
um resultado especial das leis da mateacuteria enquanto o uacuteltimo [idealista objetivo] faz com que as
leis da mateacuteria sejam um resultado especial da lei da menterdquo (CN 1 p 200 1893)149
O princiacutepio de aquisiccedilatildeo de haacutebitos eacute tomado por Peirce como o motor da constituiccedilatildeo das
leis do cosmo Em outro momento o filoacutesofo diraacute que ldquo(hellip) estaacute claro que nada a natildeo ser o
princiacutepio do haacutebito ele mesmo devido ao crescimento de uma tendecircncia infinitesimal do acaso
em direccedilatildeo agrave aquisiccedilatildeo de haacutebitos eacute a uacutenica ponte que pode ligar o abismo entre o acaso do caos
e o cosmo da ordemrdquo (CP 6 sect 262 1879)150
Segundo Santaella (2004 p 248-9) ldquo() para
Peirce a tendecircncia do universo a adquirir novos haacutebitos tendecircncia esta que tem seu expoente na
mente humana eacute aquilo que permite o contiacutenuo crescimento da potencialidade da ideiardquo
7 EVOLUCcedilAtildeO E AUTOCONTROLE
No longo processo de evoluccedilatildeo do cosmos uma caracteriacutestica ausente em sua origem
tornou-se mais e mais poderosa com a atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos o autocontrole Nos
148 () in obedience to the principle or maxim of continuity that we ought to assume things to be continuous as
far as we can it has been urged that we ought to suppose a continuity between the characters of mind and matter so
that matter would be nothing but mind that had such indurated habits as to cause it to act with a peculiarly high
degree of mechanical regularity or routine
149 () the former makes the laws of mind a special result of the laws of matter while the latter makes the laws of
matter a special result of the laws of mind
150 () it is clear that nothing but a principle of habit itself due to the growth by habit of an infinitesimal chance
tendency toward habit-taking is the only bridge that can span the chasm between the chance-medley of chaos and
the cosmos of order and law
112
estaacutegios mais avanccedilados do processo evolutivo o homem torna-se cocriador do universo por
meio da aquisiccedilatildeo de uma conduta cada vez mais autocontrolada Como afirma Peirce ldquoEm seus
estaacutegios mais elevados a evoluccedilatildeo se daacute mais e mais amplamente por meio do autocontrole e
isto daacute ao pragmaticista um tipo de justificaccedilatildeo para fazer o propoacutesito racional ser geral (CP 5 sect
433 1905)151
Natildeo haacute segundo o autor evoluccedilatildeo sem mudanccedila de haacutebitos e tampouco mudanccedila
de haacutebitos sem evoluccedilatildeo O processo de mudanccedila de haacutebito eacute desencadeado segundo Peirce por
trecircs fatores surpresa necessidade e disposiccedilatildeo (readiness) que estatildeo relacionados com os trecircs
modos de evoluccedilatildeo descritos acima A surpresa entretanto natildeo eacute por si soacute suficiente para que a
mudanccedila de haacutebito se efetue eacute preciso o esforccedilo quando haacute a necessidade ou o amor que eacute
auxiliado pela disposiccedilatildeo
A disposiccedilatildeo eacute a marca dos haacutebitos conquistados deliberadamente Peirce diz ldquo[Disposiccedilatildeo]
para agir de um certo modo sob dadas circunstacircncias e quando afetado por um dado motivo eacute um
haacutebito e um haacutebito deliberado ou autocontrolado eacute precisamente uma crenccedilardquo (CP 5 sect 480)152
A evoluccedilatildeo marcada pela necessidade se caracteriza pela negaccedilatildeo da opccedilatildeo de se continuar
com os antigos haacutebitos Eacute por meio de um esforccedilo para vencer a resistecircncia quase sempre
acompanhado por um sentimento de dor segundo Peirce que os novos haacutebitos mais adequados
satildeo estabelecidos Peirce indica que
O sentimento de dor eacute um sintoma de um sentimento que nos repele o
sentimento de prazer eacute o sintoma de um sentimento atrativo Atraccedilatildeo e repulsatildeo
satildeo tipos de accedilatildeo Sentimentos satildeo prazerosos ou dolorosos de acordo com o
tipo de accedilatildeo que eles estimulam Em geral o bom eacute atrativo ndash natildeo para todo
mundo mas para um agente suficiente maduro e o mal eacute aquilo que lhe eacute
repulsivo (CP 5 sect 552 1906)153
151 In its higher stages evolution takes place more and more largely through self-control and this gives the
pragmaticist a sort of justification for making the rational purport to be general
152 [Readiness] to act in a certain way under given circumstances and when actuated by a given motive is a habit
and a deliberate or self-controlled habit is precisely a belief 153 The feeling of pain is a symptom of a feeling which repels us the feeling of pleasure is the symptom of an
attractive feeling Attraction and repulsion are kinds of action Feelings are pleasurable or painful according to the
113
Peirce afirma que a mais elevada qualidade da mente humana consiste em uma grande
disposiccedilatildeo para desenvolver haacutebitos e uma grande disposiccedilatildeo para perdecirc-los sendo que ldquoA mais
plaacutestica de todas as coisas eacute a mente humana ()rdquo (CP 7 sect 515 1898)154
pois apresenta em
maior grau a prontidatildeo tanto para adquirir como para perder haacutebitos No caso humano a vontade
desempenha um importante papel no processo de criaccedilatildeo de novos haacutebitos com a finalidade de
tornar a conduta mais autocontrolada e portanto racional
Embora natildeo tenha desenvolvido uma teoria completa da esteacutetica eacute nessa ciecircncia normativa
que Peirce busca os elementos para identificar a finalidade para qual tende o universo e para a
qual a mente humana estaacute apta a contribuir por meio do desenvolvimento do autocontrole O
objeto de estudo da esteacutetica eacute o admiraacutevel A eacutetica enquanto ciecircncia normativa da conduta visa
desenvolver regras para a accedilatildeo que possam ter como objetivo alcanccedilar o summum bonun em
outras palavras aquilo que possa ser admiraacutevel por si mesmo sem a consideraccedilatildeo de qualquer
outra ordem de motivos O admiraacutevel diraacute Peirce eacute a proacutepria razoabilidade em suas palavras
ldquo() o uacutenico bem uacuteltimo ao qual os fatos praacuteticos dirigem a atenccedilatildeo e ao qual podem se
subordinar eacute o maior desenvolvimento da razoabilidade concreta ()rdquo (CP 5 sect 3 1902)155
Quanto agrave loacutegica como a terceira ciecircncia normativa Peirce afirma que ldquo() pensar eacute uma espeacutecie
de conduta que estaacute largamente sujeita ao autocontrole Em todas as suas caracteriacutesticas () o
autocontrole loacutegico eacute um perfeito espelho do autocontrole eacutetico (CP 5 sect 419 1905)156
Cabe agrave
loacutegica fixar haacutebitos autocontrolados de pensamento que possam mirar a verdade (cf CP 1 sect 191
1903)
Desse modo o homem tem seu lugar identificado no processo evolutivo que deu origem ao
kind of action which they stimulate In general the good is the attractive -- not to everybody but to the sufficiently
matured agent and the evil is the repulsive to the same
154 The most plastic of all things is the human mind ()
155 () the only ultimate good which the practical facts to which it directs attention can subserve is to further the
development of concrete reasonableness ()
156 () thinking is a species of conduct which is largely subject to self-control In all their features hellip logical self-
control is a perfect mirror of ethical self-control
114
cosmos e a si mesmo como uma parte integrante e natildeo distinta tem tambeacutem indicada de modo
claro qual a sua funccedilatildeo como cientista Peirce eacute bastante expliacutecito ao dizer que todo trabalho
intelectual soacute pode ser realizado de forma frutiacutefera quando motivado por um ardente desejo de
obter a verdade
A criaccedilatildeo do universo que natildeo aconteceu durante uma certa semana atarefada
no ano 4004 A C mas que estaacute acontecendo hoje e que nunca estaraacute terminada
eacute o verdadeiro desenvolvimento da Razatildeo Natildeo consigo ver como algueacutem pode
ter um ideal admiraacutevel mais satisfatoacuterio do que o desenvolvimento da Razatildeo
assim entendido A uacutenica coisa cuja admirabilidade natildeo eacute devida a uma razatildeo
ulterior eacute a proacutepria Razatildeo compreendida em toda sua completude tanto quanto
podemos compreendecirc-la Sob esta concepccedilatildeo o ideal da conduta seraacute executar
nossa pequena funccedilatildeo na operaccedilatildeo de criaccedilatildeo dando uma matildeo para tornar o
mundo mais razoaacutevel sempre que como diz a giacuteria cabe a noacutes fazecirc-lo Na
loacutegica observar-se-aacute que o conhecimento eacute razoabilidade e o ideal de razatildeo seraacute
seguir tais meacutetodos para se desenvolver o conhecimento o mais rapidamente ()
(CP 4 sect 615 1903)157
157 The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in the year 4004 BC but is
going on today and never will be done is this very development of Reason I do not see how one can have a more
satisfying ideal of the admirable than the development of Reason so understood The one thing whose admirableness
is not due to an ulterior reason is Reason itself comprehended in all its fullness so far as we can comprehend it
Under this conception the ideal of conduct will be to execute our little function in the operation of the creation by
giving a hand toward rendering the world more reasonable whenever as the slang is it is up to us to do so In
logic it will be observed that knowledge is reasonableness and the ideal of reasoning will be to follow such methods
as must develop knowledge the most speedily ()
115
CAPIacuteTULO 04
A ABDUCcedilAtildeO
Enter your skiff of Musement push off into the lake of thought and leave the breath of
heaven to swell your sail With your eyes open awake to what is about or within you
and open conversation with yourself for such is all meditation It is however not a
conversation in words alone but is illustrated like a lecture with diagrams and with
experiments (CP 6 sect 461 1908)
116
1 ABDUCcedilAtildeO E CRIACcedilAtildeO DE HIPOacuteTESES EXPLICATIVAS
Haacute uma grande discussatildeo entre os inteacuterpretes da obra de Peirce quanto agrave continuidade ou
natildeo continuidade de suas ideias no conjunto da sua longa e intensa produccedilatildeo (ver GOUDGE
(1950) GALLIE (1952) MOORE and ROBIN (1964) WIENER (1964) HOOKWAY 1985
entre outros) Sem querer entrar no meacuterito das respostas apresentadas ao problema de se apurar a
quantidade de sistemas identificaacuteveis em sua obra na literatura especializada parece-nos todavia
que algumas questotildees tratadas pelo filoacutesofo satildeo particularmente presentes no conjunto de suas
ideias e datildeo sentido a muitas de suas teorias que conheceram a luz em momentos distintos de sua
reflexatildeo
A investigaccedilatildeo cientiacutefica eacute uma dessas questotildees Podemos identificar desde os seus
primeiros textos uma preocupaccedilatildeo clara quanto ao alcance legitimidade e modo de efetivaccedilatildeo do
empreendimento cientiacutefico mais especificamente quanto ao que ele chama pelo nome de loacutegica
da ciecircncia Em seus uacuteltimos trabalhos Peirce procura organizar e sistematizar a sua filosofia com
relaccedilatildeo a outras aacutereas do conhecimento o que lhe permite tornar claras a estrutura e as inter-
relaccedilotildees entre as vaacuterias partes do seu sistema filosoacutefico Eacute dessa maneira que identifica a loacutegica
como uma das trecircs ciecircncias normativas ao lado da esteacutetica e da eacutetica que lhe satildeo antecedentes
dependentes tanto da fenomenologia quanto da matemaacutetica Peirce a define como um raciociacutenio
autocontrolado cuja funccedilatildeo eacute promover o crescimento concreto da razoabilidade A loacutegica se
divide por sua vez em trecircs ramos denominados por Peirce de Gramaacutetica Filosoacutefica Loacutegica
Criacutetica e Metodecircutica
A Gramaacutetica Filosoacutefica trata das unidades baacutesicas de todos os raciociacutenios os signos Eacute
neste ramo da loacutegica que veremos Peirce desenvolver os estudos de semioacutetica A loacutegica criacutetica
tem por finalidade tratar das formas dos argumentos ou raciociacutenios Nestes estudos Peirce trata
dos trecircs tipos de inferecircncias a abduccedilatildeo a deduccedilatildeo e a induccedilatildeo A Metodecircutica por sua vez
compreende as teorias sobre a verdade e a investigaccedilatildeo cientiacutefica bem desenvolvidas na sua
abordagem pragmaticista O objetivo deste terceiro ramo da loacutegica eacute moldar a conduta a partir do
uso dos signos de tal forma que um estado de crenccedila estaacutevel seja alcanccedilado
117
Se como aponta Hookway (1985) eacute possiacutevel dar sentido agrave obra peirceana a partir da
perspectiva que a toma como a exploraccedilatildeo e o desenvolvimento de uma imagem bastante geral da
filosofia e seus problemas que se formou desde os seus primeiros escritos vemos na procura de
um meacutetodo adequado para a ciecircncia um objetivo que conduz Peirce no processo de sua reflexatildeo
Aos textos iniciais que discutem o modo adequado de obtenccedilatildeo e limite do conhecimento
seguem-se outros que agraves vezes com deacutecadas de intervalo retomam e desenvolvem aspectos
problemaacuteticos que ficaram anteriormente sem respostas ou que passaram a ser problematizados
com o desenvolvimento de novos instrumentos de anaacutelise Assim os temas centrais dos seus
textos iniciais que datam da deacutecada de 1860 e 70158 satildeo retomados e desenvolvidos em boa parte
de sua produccedilatildeo posterior quer diretamente sob o aspecto de uma nova formulaccedilatildeo e resposta
aos mesmos problemas quer indiretamente com a elaboraccedilatildeo de novas teorias implicadas por
essas mesmas concepccedilotildees
Pensar para Peirce eacute uma atividade que consiste em manipular signos e crer eacute
essencialmente possuir certas disposiccedilotildees para agir Essas duas concepccedilotildees satildeo fundamentais
para se compreender a sua filosofia Ambas as concepccedilotildees estatildeo localizadas no niacutevel mais
elementar de suas preocupaccedilotildees e teorias que satildeo construiacutedas como uma resposta e terapia agrave
abordagem equivocada legada pelo cartesianismo Se considerarmos que a filosofia de Peirce eacute
em grande parte uma tentativa de produccedilatildeo de um meacutetodo adequado agrave investigaccedilatildeo da verdade e
se atentarmos para o fato de que eacute com o pragmatismo que Peirce acredita ter oferecido sua
melhor resposta entatildeo percebemos a importacircncia capital que sua noccedilatildeo de crenccedila159 assume pois
eacute o proacuteprio filoacutesofo que afirma ldquoA partir desta definiccedilatildeo o pragmatismo eacute dificilmente mais do
que um corolaacuteriordquo (CP 5 sect 12 1906)160
A investigaccedilatildeo desta maneira torna-se um processo que permite a superaccedilatildeo de um estado
158 Nesses textos jaacute se encontra ainda que em germe as ideias de verdade como concordacircncia de investigadores a
longo prazo que o incognosciacutevel natildeo faz sentido que a induccedilatildeo eacute uma inferecircncia e um caminho para a verdade que
todo pensamento se realiza por meio de signos e de que eacute possiacutevel construir uma teoria de categorias melhor do que
as existentes Esses temas estaratildeo presentes em grande medida em toda a produccedilatildeo posterior de Peirce 159
Emprestada do filoacutesofo e psicoacutelogo escocecircs Alexander Bain (1818 ndash 1903) (cf CP 5 sect 12 1906) 160
From this definition pragmatism is scarce more than a corollary
118
de duacutevida autecircntica161
que paralisa a accedilatildeo por meio do estabelecimento de crenccedilas estaacuteveis e
verdadeiras Podemos dizer que A duacutevida que p se e somente se A eacute levado a acreditar em p e
em alguma outra proposiccedilatildeo q e A estaacute consciente de uma inconsistecircncia entre p e q Desde que
ldquoA acredita que prdquo significa que A tem disposiccedilotildees para agir de determinadas maneiras segue-se
que duvidar que p envolve a consciecircncia da parte de A de que possui a disposiccedilatildeo a agir de modos
incompatiacuteveis em uma dada situaccedilatildeo O que implica em uma suspensatildeo da accedilatildeo isto eacute uma
privaccedilatildeo de um haacutebito (cf MEYERS 1967 p 3) Para cumprir tal tarefa faz-se necessaacuteria a
utilizaccedilatildeo de um meacutetodo que permita realmente fixar tais crenccedilas (cf W 3 p 344 CP 5 sect 374
1877 CP 6 sect 496 1906) A essecircncia das crenccedilas obtidas por este meacutetodo eacute o estabelecimento de
um haacutebito cujos diferentes tipos se distinguem pelos diferentes modos de accedilatildeo que eles
produzem Peirce afirma ldquo() uma crenccedila genuiacutena ou opiniatildeo eacute alguma coisa com a qual um
homem estaacute preparado para agir e eacute por consequecircncia em um sentido geral um haacutebitordquo (CP 2 sect
148 1902)162
Com exceccedilatildeo de algumas poucas passagens nas quais eacute caracterizado como uma accedilatildeo do
tipo quasi-reflexa (cf CP 5 sect 373 1877 CP 5 sect 394 1877 CP 1 sect390 1890 CP 2 sect 711
1883) o haacutebito eacute apresentado como uma disposiccedilatildeo para a accedilatildeo caracterizada como
autocontrolada ou deliberada Como representante da terceiridade ele eacute indeterminado geral e
inteligente (cf CP 5 sect 400 1877 CP 6 sectsect 20-1 1891) natildeo podendo ser reduzido a um
processo meramente mecacircnico Sua indeterminaccedilatildeo eacute marca dos processos que se abrem para o
futuro
161 Peirce reprova a duacutevida cartesiana por dois motivos principais por ser fingida e por ser radical A atribuiccedilatildeo
desses dois qualificativos agrave duacutevida ignora segundo o autor tanto a natureza do sujeito que conhece quanto a
natureza do proacuteprio processo cognitivo A duacutevida eacute um estado causado pela surpresa de um evento inesperado desta
maneira sua origem eacute sempre exterior ao sujeito que a experiencia natildeo podendo ser criada a partir de um ato de
vontade Por outro lado ela natildeo pode ser radical visto que eacute da natureza do conhecimento repousar sobre um
conhecimento anterior (cf CP 5 sect 311 1868) 162
() a belief or opinion and a genuine belief or opinion is something on which a man is prepared to act and is
therefore in a general sense a habit
119
Pois todo haacutebito tem ou eacute uma lei geral Tudo o que eacute verdadeiramente geral
refere ao futuro indefinido pois o passado conteacutem unicamente uma certa
coleccedilatildeo de casos que ocorreram O passado eacute fato atual Mas o geral (fato) natildeo
pode ser completamente realizado Eacute uma potencialidade e seu modo de ser
eacute esse in futuro O futuro eacute potencial natildeo atual (CP 2 sect 148 1902)163
Toda crenccedila firmemente adotada eacute para seu possuidor algo de indubitaacutevel ainda que muitas
vezes inconsciente que dispensa qualquer tipo de justificaccedilatildeo racional Contudo faz-se
necessaacuterio encontrar uma maneira de selecionar as crenccedilas verdadeiras dentre aquelas que natildeo
passam de prejulgamentos Se por um lado o caraacuteter impositivo das crenccedilas se manifesta de
maneira clara por outro na medida em que eacute objetiva pode comportar a criacutetica e a deliberaccedilatildeo
desse modo o autocontrole
Como afirma Peirce ldquo() devemos comeccedilar nossa investigaccedilatildeo por aquilo cuja existecircncia eacute
indubitaacutevel ()rdquo (CP 5 sect 267 1868)164
Com esta frase jaacute de 1868 o autor indica uma
caracteriacutestica que marcaraacute toda a sua obra a adoccedilatildeo do senso comum criacutetico O investigador
principia pelo que toma como indubitaacutevel suas proacuteprias crenccedilas mas aos poucos passa a
questionaacute-las quanto ao seu conteuacutedo e assumir um aspecto mais normativo ao se preocupar com
aquilo sobre o que devemos nos interrogar Nas palavras de Claudine Tiercelin (1993 p 88) ldquoSe
as crenccedilas satildeo portanto intrinsecamente confiaacuteveis como descriccedilatildeo de nossa experiecircncia elas
podem ser faliacuteveis como descriccedilatildeo da realidaderdquo
O problema de se determinar a origem das premissas de qualquer raciociacutenio conduziu as
investigaccedilotildees de Peirce sobre esse toacutepico Segundo o filoacutesofo os juiacutezos perceptivos satildeo () as
primeiras premissas de todos os nossos raciociacutenios e natildeo podem ser colocados em questatildeo (CP
5 sect 116)165
uma vez que estatildeo totalmente aleacutem da possibilidade de controle O percepto como
163 For every habit has or is a general law Whatever is truly general refers to the indefinite future for the past
contains only a certain collection of such cases that have occurred The past is actual fact But a general (fact) cannot
be fully realized It is a potentiality and its mode of being is esse in futuro The future is potential not actual 164
() we must commence our inquiry must be one whose existence is indubitable () 165
() the first premisses of all our reasonings and that they cannot be called in question
120
Peirce o designa eacute uma instacircncia do processo cognitivo que se caracteriza pela impossibilidade
de controle O autor pergunta entatildeo onde tem iniacutecio a possibilidade de controlar o processo de
cogniccedilatildeo e responde da seguinte maneira
Certamente natildeo antes de o percepto estar formado Mesmo depois que ele se
forma existe uma operaccedilatildeo que me parece ser bastante incontrolaacutevel Eacute aquela
de julgar o que eacute que a pessoa percebe Um juiacutezo eacute um ato de formaccedilatildeo de uma
proposiccedilatildeo mental combinada com sua adoccedilatildeo ou um ato de afirmaacute-la Um
percepto por outro lado eacute uma imagem ou um quadro moacutevel ou outra figuraccedilatildeo
(CP 5 sect 115 1903)166
Temos nesta passagem a tematizaccedilatildeo do momento em que se daacute a relaccedilatildeo entre o sujeito
que investiga e o objeto investigado Eacute nessa relaccedilatildeo que devemos encontrar os elementos para
justificar a crenccedila peirceana na possibilidade de uma ciecircncia Eacute importante notar que o juiacutezo
perceptivo base para qualquer raciociacutenio eacute por um lado o resultado de um processo que natildeo
pode ser controlado jaacute que o objeto eacute real e resiste agrave vontade humana e ou ao menos esta eacute uma
boa hipoacutetese para explicar o modo que tais objetos nos aparecem na experiecircncia por outro que eacute
fruto de uma interpretaccedilatildeo Isto eacute se por um lado o juiacutezo perceptivo eacute formado a partir da reaccedilatildeo
da secundidade do mundo sobre noacutes ele comporta tambeacutem aspectos de terceiridade na medida
em que eacute fruto de uma interpretaccedilatildeo Parece-nos plausiacutevel pensar o juiacutezo perceptivo como livre o
suficiente para ser o resultado de uma adivinhaccedilatildeo mas contido dentro dos limites impostos pela
realidade do objeto O erro deste modo adquire o caraacuteter de uma possibilidade sempre presente
nesse processo
Como aponta Tiercelin verifica-se uma tensatildeo entre a filosofia peirceana e a filosofia do
senso comum escocesa a qual Peirce afirma estar na base de seu pragmatismo (cf TIERCELIN
166 Certainly not before the percept is formed Even after the percept is formed there is an operation which seems to
me to be quite uncontrollable It is that of judging what it is that the person perceives A judgment is an act of
formation of a mental proposition combined with an adoption of it or act of assent to it A percept on the other hand
is an image or moving picture or other exhibition
121
1993 p 88) As crenccedilas primeiras embora sejam indubitaacuteveis natildeo satildeo infaliacuteveis Elas
comportam a possibilidade de criacutetica que deve ser exercitada pelo filoacutesofo pragmaacutetico Para
penetrar nos poacuterticos da filosofia Peirce indica o meacutetodo cientiacutefico como o uacutenico caminho
efetivo (ver REILLY 1970)
Em um texto de 1877 ldquoA fixaccedilatildeo da crenccedilardquo Peirce faz uma descriccedilatildeo dos principais
meacutetodos identificaacuteveis utilizados para a obtenccedilatildeo do conhecimento O primeiro meacutetodo por ele
descrito eacute denominado de meacutetodo da tenacidade caracterizado como o mais econocircmico crer
naquilo que jaacute se crecirc Sua ineficaacutecia mostra que o homem possui grande dificuldade em manter
crenccedilas que estatildeo em desacordo com a realidade Da mesma maneira que eacute incapaz de fingir uma
duacutevida por um longo periacuteodo manter crenccedilas equivocadas ainda que sua substituiccedilatildeo possa
muitas vezes apenas criar uma cadeia de falsas crenccedilas que cedo ou tarde conduziratildeo o homem
agrave busca da tranquilidade propiciada somente pela detenccedilatildeo da crenccedila verdadeira As crenccedilas
assim mantidas satildeo claramente irracionais mas a principal criacutetica endereccedilada pelo autor natildeo
incide particularmente sobre esse caraacuteter mas sim sobre o fato de que tais crenccedilas acabam por
criar tensatildeo social em funccedilatildeo do choque que crenccedilas diferentes acabam por provocar e falhar na
tarefa de fixaacute-las Esse meacutetodo pode apenas atuar sobre a mente individual e temporariamente (cf
CP 5 sect 377 1877)
O segundo meacutetodo eacute denominado de meacutetodo da autoridade e distingue-se do primeiro por
levar em consideraccedilatildeo o impulso social Nele uma instituiccedilatildeo o Estado ou a Igreja por exemplo
toma para si o direito de doutrinar e defender certas crenccedilas de todos os perigos evitando a todo
custo o surgimento da duacutevida Embora seja um meacutetodo eficaz - a histoacuteria tem nos dado esta liccedilatildeo
afirma Peirce - falharaacute visto que eacute impossiacutevel gerenciar perfeitamente a opiniatildeo puacuteblica Cedo ou
tarde surgiratildeo indiviacuteduos que reclamaratildeo novas maneiras de estabelecer crenccedilas e uma vez com a
posse de novos meacutetodos voltar-se-atildeo contra a instituiccedilatildeo e terminaratildeo por sobrepujaacute-la Natildeo
basta um meacutetodo que apenas indique a maneira de fixar as crenccedilas sem determinar os conteuacutedos
das mesmas (cf CP 5 sect 382 1877)
O terceiro meacutetodo eacute aquele que assume como verdadeiro o que eacute agradaacutevel agrave razatildeo diz
122
Peirce diminuindo a importacircncia dos fatos Eacute o meacutetodo a priori Embora seja mais respeitaacutevel
que os outros dois na opiniatildeo de Peirce falha gravemente ao transformar a investigaccedilatildeo em uma
questatildeo de gosto (cf CP 5 sect 382 1877)
Esses trecircs meacutetodos Peirce reconhece possuem qualidades positivas O meacutetodo da
tenacidade demonstra grande forccedila simplicidade e caraacuteter direto o meacutetodo da autoridade ao
governar as massas humanas garante-lhes a paz o meacutetodo a priori por sua vez eacute confortaacutevel
(cf CP 5 sect 386 1877) Entretanto sejam quais forem suas qualidades os trecircs meacutetodos
terminam por se autodestruir pois o que eles produzem afirma Peirce natildeo satildeo crenccedilas mas
estados mentais diversos A verdadeira crenccedila natildeo pode ser fingida imposta ou desconsiderar a
experiecircncia natildeo ao menos para o homem de espiacuterito sadio (cf W 3 p 253 1877)
Diante do fracasso dos trecircs meacutetodos em cumprir a tarefa de fixar as crenccedilas167
cabe a
Peirce mostrar como o quarto meacutetodo denominado de meacutetodo cientiacutefico consegue estabelecer
crenccedilas estaacuteveis Como afirma o autor () eacute necessaacuterio encontrar um meacutetodo pelo qual nossas
crenccedilas natildeo sejam determinadas por nada de humano mas por alguma permanecircncia exterior ndash por
alguma coisa sobre a qual nosso pensamento natildeo tenha nenhum efeito (CP 5 sect 384 1877)168
e
acrescenta como nota em 1903 ldquoMas que por outro lado tende incessantemente a influenciar o
pensamento ou em outras palavras por algo Realrdquo (CP 5 notas 1877)169
O meacutetodo cientiacutefico eacute o uacutenico meacutetodo que considera com a devida atenccedilatildeo a experiecircncia
estabelece um diaacutelogo com a natureza o mundo real exterior ao homem e que pode pelo
processo de investigaccedilatildeo empiacuterica responder agraves duacutevidas e corrigir as crenccedilas dos cientistas A
vantagem determinante deste meacutetodo eacute a de que ele conduz os investigadores pelo processo de
investigaccedilatildeo puacuteblica agraves mesmas conclusotildees sobre qualquer questatildeo investigada Ele se
fundamenta sobre a realidade do universo e sobre o seu aspecto puacuteblico Eacute a secundidade reativa
refrataacuteria ao que dela possamos pensar a acircncora desse meacutetodo Com relaccedilatildeo aos pressupostos
167 O principal defeito dos trecircs meacutetodos consiste em sustentar a crenccedila com base na vontade humana
168 () it is necessary that a method should be found by which our beliefs may be determined by nothing human but
by some external permanency -- by something upon which our thinking has no effect 169
But which on the other hand unceasingly tends to influence thought or in other words by something Real
123
desse meacutetodo Peirce afirma que
Existem coisas Reais cujas caracteriacutesticas satildeo inteiramente independentes das
nossas opiniotildees sobre elas tais Reais afetam nossos sentidos de acordo com leis
regulares e ainda que nossas sensaccedilotildees sejam tatildeo diferentes quanto sejam
nossas relaccedilotildees com os objetos todavia fazendo uso das leis de percepccedilatildeo
podemos afirmar por meio do raciociacutenio como as coisas real e verdadeiramente
satildeo e qualquer homem desde que tenha experiecircncia suficiente e tenha refletido
o suficiente sobre isto seraacute conduzido agrave uacutenica conclusatildeo Verdadeira (CP 5 sect
384 1877)170
A grande vantagem do meacutetodo cientiacutefico reside no fato de que diferentemente dos
demais meacutetodos possui a capacidade de autocorreccedilatildeo Eacute nesta caracteriacutestica que Peirce deposita
suas mais altas esperanccedilas quanto agrave possibilidade de realizaccedilatildeo da ciecircncia Estaacute claro tambeacutem
que o preccedilo a se pagar para a efetividade do meacutetodo eacute bastante elevado Peirce se compromete
com uma hipoacutetese de base qual seja a de que existe uma realidade externa ao homem e que lhe eacute
resistente mas que ao mesmo tempo se mostra inteiramente na experiecircncia O incognosciacutevel
natildeo eacute uma alternativa viaacutevel pois o verdadeiro cientista tem como seu mais ardente desejo o
conhecimento da verdade e deve deste modo afastar como destituiacutedo de sentido qualquer
elemento que possa bloquear o caminho da investigaccedilatildeo Eacute fundamental para o bom
funcionamento do meacutetodo que os fatos investigados admitam ldquo() racionalizaccedilatildeo e
racionalizaccedilatildeo por noacutesrdquo (CP 7 sect 219 c 1901)171
Peirce afirma ldquoQue eles [os fatos] devam ser
[racionalizados por noacutes] pela mesma razatildeo que um general que tenha que capturar uma posiccedilatildeo
ou ver seu paiacutes arruinado deve insistir na hipoacutetese de que haacute algum modo pelo qual ele possa e
deva capturaacute-lardquo (CP 7 sect 219 c 1901)172
Esta eacute a justificaccedilatildeo para o lanccedilamento de uma
170 There are Real things whose characters are entirely independent of our opinions about them those Reals affect
our senses according to regular laws and though our sensations are as different as are our relations to the objects
yet by taking advantage of the laws of perception we can ascertain by reasoning how things really and truly are and
any man if he have sufficient experience and he reason enough about it will be led to the one True conclusion 171
() rationalization and of rationalization by us 172
That we must hope they do for the same reason that a general who has to capture a position or see his country
124
hipoacutetese seja qual for Eacute uma situaccedilatildeo extrema que exige uma aposta na sua possiacutevel soluccedilatildeo A
aposta na possibilidade da ciecircncia eacute feita radicalmente por Peirce que passaraacute seus anos
produtivos em busca de uma justificaccedilatildeo para a mesma bem como na tarefa de esclarecer os
mecanismos pelos quais a ciecircncia se constroacutei A defesa da hipoacutetese realista soacute pode ser
compreendida nos temos peirceanos como uma possibilidade de manter o projeto da ciecircncia
realizaacutevel
Embora seja um opositor radical a algumas das ideias de Descartes notadamente agrave ideia de
intuiccedilatildeo natildeo estaria longe da verdade dizer que Peirce retoma a sua agenda filosoacutefica ou ao
menos o seu moacutebil constituinte qual seja o de propor uma soluccedilatildeo para o problema do
conhecimento e o de expandir o horizonte da inteligibilidade tanto quanto possiacutevel173 Do mesmo
modo que Descartes seraacute no meacutetodo de obtenccedilatildeo e validaccedilatildeo do conhecimento que Peirce
buscaraacute sua resposta Agrave elaboraccedilatildeo deste meacutetodo que inicialmente eacute batizado de pragmatismo e
posteriormente de pragmaticismo Peirce dedicaraacute vaacuterios anos de sua vida Diferentemente de
outros metodoacutelogos Peirce entende que uma parte do seu meacutetodo deve ser dedicada agrave explicaccedilatildeo
de como as novas teorias ou fazendo uso de seu termo hipoacuteteses satildeo elaboradas O coraccedilatildeo desta
teoria eacute uma reflexatildeo sobre o processo de criaccedilatildeo cientiacutefica condensada no tipo de raciociacutenio que
Peirce denominou de abduccedilatildeo174
No plano da evoluccedilatildeo cosmoloacutegica o haacutebito ou a lei inclina a um desenvolvimento do
universo que tem como meta tornaacute-lo mais razoaacutevel Para bem compreendermos esse
desenvolvimento faz-se necessaacuteria uma incursatildeo na teoria das inferecircncias que Peirce
desenvolveu em particular no tipo de inferecircncia denominado de abduccedilatildeo ou retroduccedilatildeo ou
ainda hipoacutetese pois ldquo() um processo inferencial envolve a formaccedilatildeo de um haacutebitordquo (CP 2 sect
148 1902)175
Nos trabalhos produzidos entre 1865 e 1901 vemos Peirce aprofundar e desenvolver suas
ruined must go on the hypothesis that there is some way in which he can and shall capture it 173
Quanto a este aspecto na obra cartesiana ver PATY 1998 174
Ver IBRI 1994 ADERSON 1986 E 1995 175
() the inferential process involves the formation of a habit
125
anaacutelises e concepccedilotildees do processo de produccedilatildeo de inferecircncias culminando com a distinccedilatildeo de
trecircs tipos de raciociacutenios que se integram e concorrem para a realizaccedilatildeo do conhecer a induccedilatildeo a
deduccedilatildeo e a abduccedilatildeo
A anaacutelise do raciociacutenio abdutivo em sua obra eacute segundo nossa apreciaccedilatildeo fundamental em
muitos sentidos De iniacutecio a importacircncia de sua investigaccedilatildeo se justifica pelos possiacuteveis
esclarecimentos que possa trazer agrave proacutepria tarefa de compreensatildeo das ideias peirceanas no
interior das quais ocupa um lugar central Ao mesmo tempo se concordamos com Peirce essa
teoria parece iluminar aspectos pouco considerados do processo de criaccedilatildeo cientiacutefica quer seja
como insight ou como inferecircncia pois estaria na base e seria o elemento desencadeador da
formaccedilatildeo de qualquer juiacutezo sinteacutetico Acrescenta-se a isso a hipoacutetese central a esta investigaccedilatildeo
de que o modo como a abduccedilatildeo atua e a consideraccedilatildeo de suas implicaccedilotildees seraacute de grande auxiacutelio
para compreender com maior clareza as propriedades do continuum e de que maneira podemos
perceber a atuaccedilatildeo da causalidade final no momento da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese
Em contraste com a avaliaccedilatildeo positiva expressa nas expectativas acima elencadas alguns
comentadores de sua obra acusam-no de haver no tratamento dessa questatildeo confundido loacutegica
com psicologia afirmando que a abduccedilatildeo eacute por natureza um processo refrataacuterio agrave anaacutelise loacutegica
que seria fundamentalmente intuicionista como aponta Roth (1988) Uma avaliaccedilatildeo da validade
dessa criacutetica deve atentar para o desenvolvimento da abordagem que Peirce realiza da abduccedilatildeo
Para Peirce o indiviacuteduo natildeo constitui a unidade para a produccedilatildeo do conhecimento esta eacute
encontrada na comunidade Os juiacutezos perceptivos devem ser submetidos agrave criacutetica da comunidade
de investigadores para que as idiossincrasias sejam eliminadas e em um longo prazo possam
aproximar-se da verdade
A compreensatildeo dessa relaccedilatildeo coloca em pauta a investigaccedilatildeo do entrecruzamento da
epistemologia falibilista de Peirce e de sua ontologia indeterminista que constituem as condiccedilotildees
para o processo semioacutetico isto equivale dizer para o pensamento A relaccedilatildeo entre a abduccedilatildeo e os
juiacutezos perceptivos eacute enunciada da seguinte maneira
126
() a inferecircncia abdutiva transforma-se gradativamente no juiacutezo perceptivo sem
qualquer linha niacutetida de demarcaccedilatildeo entre eles ou em outras palavras nossas
primeiras premissas os juiacutezos perceptivos devem ser consideradas como um
caso extremo das inferecircncias abdutivas das quais diferem por estarem
absolutamente aleacutem da criacutetica (CP 5 sect 181 1903)176
Conforme ressalta Santaella (2004) a interpretaccedilatildeo da abduccedilatildeo tem sido um toacutepico
polecircmico entre os comentadores da obra de Peirce O que distingue esse processo inferencial eacute o
fato de ser ao mesmo tempo um processo instintivo e ter a natureza de uma inferecircncia loacutegica Eacute
por meio da abduccedilatildeo Peirce deixa claro que as novidades satildeo introduzidas no processo evolutivo
tanto da natureza em geral quanto e no conhecimento humano A dificuldade do tratamento e
compreensatildeo desse conceito fundamental eacute bem sintetizada por Santaella ao se perguntar ldquo() se
as hipoacuteteses satildeo frutos da maravilhosa faculdade imaginativa humana como podem elas se
acomodar dentro da forma de uma inferecircncia loacutegicardquo (SANTAELLA 2004 p 109)
A intuiccedilatildeo entendida como flash de criatividade eacute a base do processo de abduccedilatildeo que teraacute
como finalidade a produccedilatildeo de uma nova ideia ou forma que poderaacute dar lugar a uma inclinaccedilatildeo
geral ou haacutebito Em uma leitura raacutepida eacute tentador compreender esse flash como sendo de
natureza intuitiva semelhante agrave cartesiana Nada mais equivocado se levarmos em conta que a
principal criacutetica que Peirce endereccedila a Descartes refere-se justamente ao conceito de intuiccedilatildeo Se
natildeo haacute a possibilidade de uma cogniccedilatildeo sem a existecircncia de uma cogniccedilatildeo que a preceda como
entender o surgimento da novidade que a abduccedilatildeo potildee em cena
A soluccedilatildeo parece derivar do caraacuteter habitual do instinto Peirce afirma que todo instinto tem
o caraacuteter de um haacutebito e dessa forma distingue a accedilatildeo por ele produzida da reaccedilatildeo bruta e cega
Satildeo derivados da proacutepria evoluccedilatildeo a que estatildeo submetidos o cosmo e o homem como uma parte
176() abductive inference shades into perceptual judgment without any sharp line of demarcation between them or
in other words our first premisses the perceptual judgments are to be regarded as an extreme case of abductive
inferences from which they differ in being absolutely beyond criticism
127
integrante Santaella aponta que ldquo() do instinto peirceano germina a abduccedilatildeo fonte de todas as
iluminaccedilotildees e criaccedilotildees humanas mas tambeacutem o mais fraacutegil de todos os raciociacutenios o mais
faliacutevel sem nenhum poder de comprovaccedilatildeo necessitando da deduccedilatildeo e da induccedilatildeo para que
possa ter qualquer valor de verdaderdquo (SANTAELLA 2004 p 113-14)
A discussatildeo realizada sobre o raciociacutenio abdutivo jaacute foi identificada como uma das grandes
contribuiccedilotildees de Peirce para o debate filosoacutefico Jaakko Hintikka (cf 1999 p 91) afirma que se a
grandeza de um filoacutesofo eacute medida pelas contribuiccedilotildees inovadoras que fornece aos problemas
tradicionais da filosofia Peirce seria nesse sentido um dos maiores filoacutesofos na medida em que
cria um novo problema o da abduccedilatildeo Cabe ressaltar que em diversos momentos Peirce deixa
claro que o raciociacutenio abdutivo deteacutem exclusividade heuriacutestica em sua filosofia ldquoAbduccedilatildeo eacute o
processo de formaccedilatildeo de uma hipoacutetese explanatoacuteria Eacute a uacutenica operaccedilatildeo loacutegica que apresenta uma
ideia nova pois a induccedilatildeo nada faz aleacutem de determinar um valor e a deduccedilatildeo meramente
desenvolve as consequecircncias necessaacuterias de uma hipoacutetese purardquo (CP 5 sect 171 1903)177
Conforme ressalta Gallie (1952) a compreensatildeo do estatuto que Peirce daacute agrave abduccedilatildeo como
um processo inferencial eacute bastante facilitado se levamos em conta o significado que o filoacutesofo
atribui agrave noccedilatildeo de inferecircncia Peirce natildeo adota a concepccedilatildeo filosoacutefica tradicional de inferecircncia
como um processo mental Um argumento natildeo possui a funccedilatildeo de retratar para outro o que se
passou na mente do argumentador mas de provocar a concordacircncia do primeiro com o uacuteltimo
quanto ao conteuacutedo das premissas e conclusatildeo mobilizadas Ele emprega afirma Gallie ldquoUma
forma de falar cujo arranjo eacute tal que mostra que bdquose a proposiccedilatildeo-premissa for verdadeira entatildeo a
proposiccedilatildeo-conclusatildeo necessaacuteria ou naturalmente seraacute verdadeira‟rdquo (GALLIE 1952 p 96-7) O
argumento desta maneira tem a funccedilatildeo de mostrar ou lembrar o ouvinte deste fato a maneira
entretanto pela qual ele alcanccedila este resultado eacute algo totalmente irrelevante acrescenta Gallie
Peirce afirma em concordacircncia com esta interpretaccedilatildeo que ldquoDeve haver em funccedilatildeo de tudo que
noacutes sabemos ou nos importamos centenas de maneiras de pensar na passagem das premissas agraves
177 Abduction is the process of forming an explanatory hypothesis It is the only logical operation which introduces
any new idea for induction does nothing but determine a value and deduction merely evolves the necessary
consequences of a pure hypothesis
128
conclusotildeesrdquo (CP 2 sect 55 1902)178
e ainda ldquoInferecircncia () deve ser para natildeo dizer que
provavelmente eacute de uma construccedilatildeo inteiramente diferente do processo de pensamentordquo (CP 2 sect
54 1902)179
Gallie sintetiza de modo claro a relaccedilatildeo que se estabelece no pensamento peirceano entre
inferecircncia e investigaccedilatildeo ele diz
Em suma da mesma maneira que Peirce usa a palavra investigaccedilatildeo para
indicar natildeo algum processo mental descritiacutevel mas o fato que algumas de
nossas atividades podem ser guiadas por signos e siacutembolos que admitem
criticismo loacutegico da mesma maneira ele usa a palavra inferecircncia para indicar
natildeo alguma passagem da mente sentida (ou postulada) mas o fato que
usualmente quando fazemos uma asserccedilatildeo estamos na posiccedilatildeo de dar uma
razatildeo para ela (GALLIE 1952 p 96)
De acordo com esta concepccedilatildeo de inferecircncia natildeo eacute muito difiacutecil entender como e porque a
abduccedilatildeo ou o processo de elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses eacute considerado por Peirce como uma
inferecircncia loacutegica De fato como diz Gallie seria muito ldquoesquisitordquo ou ldquocompletamente inuacutetilrdquo
uma hipoacutetese para a qual natildeo pudeacutessemos fornecer qualquer tipo de razotildees que a justificassem
2 OS TREcircS TIPOS DE RACIOCIacuteNIO
Os trecircs tipos de inferecircncia considerados por Peirce satildeo a deduccedilatildeo a induccedilatildeo e da mesma
maneira a abduccedilatildeo Em um texto de 1903 satildeo caracterizados da seguinte maneira ressaltando-se
178 There may for aught we know or care be a hundred ways of thinking in passing from such a premiss to such a
conclusion 179
Still the inference or argument so far as logic can take any cognizance of it may be not to say probably is of an
entirely different construction from the thinking process
129
novamente que a uacutenica origem das ideias novas eacute o raciociacutenio abdutivo
A deduccedilatildeo eacute o uacutenico raciociacutenio necessaacuterio Ela eacute aquilo que constitui o
raciociacutenio da matemaacutetica Ela principia de uma hipoacutetese cuja verdade ou
falsidade nada tem a ver com o raciociacutenio oacutebvio eacute que suas conclusotildees satildeo
igualmente ideais () A induccedilatildeo eacute o teste experimental de uma teoria Sua
justificaccedilatildeo eacute que embora a conclusatildeo em qualquer estaacutegio da investigaccedilatildeo
possa ser mais ou menos errocircnea a aplicaccedilatildeo continuada do mesmo meacutetodo
deve corrigir o erro A uacutenica coisa que a induccedilatildeo perfaz eacute determinar o valor de
uma quantidade Ela parte de uma teoria e avalia seu grau de concordacircncia com
os fatos Ela nunca pode dar origem a qualquer ideia que seja Nem o pode fazer
a deduccedilatildeo Todas as ideias da ciecircncia surgem atraveacutes da abduccedilatildeo (CP 5 sect 145
1903)180
No texto Deduccedilatildeo induccedilatildeo e hipoacutetese de 1878 Peirce oferece por meio de exemplos uma
descriccedilatildeo clara do que ele entende por cada um dos tipos de raciociacutenio desse modo temos os
seguintes silogismos
Deduccedilatildeo
Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos
Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola
Resultado Estes feijotildees satildeo brancos
180 Deduction is the only necessary reasoning It is the reasoning of mathematics It starts from a hypothesis the truth
or falsity of which has nothing to do with the reasoning and of course its conclusions are equally ideal () Induction
is the experimental testing of a theory The justification of it is that although the conclusion at any stage of the
investigation may be more or less erroneous yet the further application of the same method must correct the error
The only thing that induction accomplishes is to determine the value of a quantity It sets out with a theory and it
measures the degree of concordance of that theory with fact It never can originate any idea whatever No more can
deduction All the ideas of science come to it by the way of Abduction
130
Induccedilatildeo
Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola
Resultado Estes feijotildees satildeo brancos
Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos
Hipoacutetese
Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos
Resultado Estes feijotildees satildeo brancos
Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola
Outra definiccedilatildeo mais ampla dada em 1903 quando Peirce jaacute havia superado a teoria
silogiacutestica e elaborado a loacutegica das relaccedilotildees pode ser encontrada no seguinte exemplo
ldquoObserva-se um fato surpreendente C
Mas se A fosse verdadeira C seria uma coisa corrente
Portanto haacute razotildees para suspeitar que A eacute verdadeirardquo (CP 5 sect 189 1903)181
Eacute preciso notar que no segundo esquema acima dois fatos chamam atenccedilatildeo e merecem
comentaacuterio Em primeiro lugar seguindo a interpretaccedilatildeo de Gallie vale ressaltar que a conclusatildeo
possui um caraacuteter meramente de tentativa O raciociacutenio meramente indica que vale a pena
181 The surprising fact C is observed But if A were true C would be a matter of course Hence there is reason to
suspect that A is true
131
consideraacute-la Em segundo lugar nota-se que o esquema abdutivo indica unicamente a direccedilatildeo em
que a pesquisa deve ser desenvolvida sem qualquer consideraccedilatildeo sobre a sustentaccedilatildeo ou
plausibilidade com relaccedilatildeo aos fatos que a hipoacutetese possa ter Essas consideraccedilotildees aparecem
posteriormente apoacutes a extraccedilatildeo dedutiva de consequecircncias experimentais e de sua confrontaccedilatildeo
com os fatos por meio da induccedilatildeo
Embora Peirce classifique a abduccedilatildeo como um tipo de raciociacutenio deixa claro que ela natildeo
estaacute submetida agraves mesmas regras da loacutegica criacutetica O seu enquadramento nessa classificaccedilatildeo
deve-se mais agrave ausecircncia de qualquer outra que lhe seja mais adequada182 suas caracteriacutesticas
indicam a liberdade proacutepria dos processos marcados pela categoria de primeiridade como diz
ldquoQualquer que seja o modo como o homem tenha adquirido sua faculdade de adivinhar os
caminhos da Natureza eacute certo que natildeo foi por meio de uma loacutegica criacutetica e autocontrolada (CP
5 sect 173 1903)183
O problema da abduccedilatildeo pode ser visto como o problema da elaboraccedilatildeo de juiacutezos
sinteacuteticos184
em 1868 o autor afirma
De acordo com Kant a questatildeo central da filosofia eacute Como satildeo possiacuteveis os
juiacutezos sinteacuteticos a priori Mas anteriormente a ela surge a questatildeo como os
juiacutezos sinteacuteticos em geral e mais amplamente como o raciociacutenio sinteacutetico eacute
absolutamente possiacutevel Quando a resposta ao problema geral for obtida a
particular seraacute comparativamente simples Este eacute o cadeado da porta da filosofia
(CP 5 sect 348 1868)185
182 Peirce esclarece quanto agrave classificaccedilatildeo da abduccedilatildeo como uma forma de raciociacutenio Any novice in logic may well
be surprised at my calling a guess an inference It is equally easy to define inference so as to exclude or include
abduction But all the object of the logic study have to be classified and it is found that there is no o-ther good class
in which to put abduction but that of inference (HP 2 p 899 1901) 183
However man may have acquired his faculty of divining the ways of Nature it has certainly not been by a self-
controlled and critical logic 184
Para uma discussatildeo da influencia de Kant em Peirce ver KRUSE 2010 e HAACK 2011 185
According to Kant the central question of philosophy is How are synthetical judgments a priori possible But
antecedently to this comes the question how synthetical judgments in general and still more generally how
synthetical reasoning is possible at all When the answer to the general problem has been obtained the particular one
will be comparatively simple This is the lock upon the door of philosophy
132
O cadeado da porta da filosofia consistiria dessa maneira em solucionar o problema
bastante antigo na histoacuteria da filosofia de conciliar o particular com o universal e garantir que a
partir do conteuacutedo da experiecircncia seja possiacutevel chegar ao estabelecimento de crenccedilas seguras que
no limite aproximar-se-iam mais e mais da verdade O encaminhamento da soluccedilatildeo desta
questatildeo realizado por Peirce tem na afirmaccedilatildeo do realismo sua pedra de toque Eacute a realidade
dos universais que torna qualquer pensamento mediado possiacutevel Ao lado de seu realismo
encontramos outra caracteriacutestica fundamental para a compreensatildeo do ecircxito na elaboraccedilatildeo de
hipoacuteteses a universalidade das categorias O problema de compatibilizar o universal da razatildeo do
sujeito com o particular do objeto se resolve ao considerar que tambeacutem no objeto captado por
meio da percepccedilatildeo encontra-se o universal fugindo definitivamente dessa maneira do
nominalismo A percepccedilatildeo eacute ela mesma um processo interpretativo resultado da criaccedilatildeo de
hipoacutetese e da resistecircncia do objeto A anaacutelise do tratamento realizado por Peirce desta questatildeo
conduziraacute ao cerne de sua teoria da criaccedilatildeo e da descoberta sejam elas cientiacuteficas ou natildeo
implicando a consideraccedilatildeo do entrelaccedilamento de dois aspectos de seu pensamento sua ontologia
e sua epistemologia
A teoria abdutiva desenvolvida por Peirce conheceu o mesmo percurso descrito acima
Desde os primeiros textos podemos verificar a presenccedila de uma preocupaccedilatildeo com os processos
de criaccedilatildeo e de tratamento de hipoacuteteses O desenvolvimento da abordagem que Peirce oferece do
tema reflete os avanccedilos de que ele obteve na loacutegica Como veremos adiante a ideia de abduccedilatildeo se
altera agrave medida em que o autor cria novos instrumentos de anaacutelise que ultrapassam a abordagem
loacutegica legada por Aristoacuteteles
Desde seus primeiros trabalhos em loacutegica Peirce se preocupou com o estudo dos
argumentos afirmando que sua classificaccedilatildeo eacute a principal tarefa dos loacutegicos pois todo teste
depende claramente da classificaccedilatildeo (cf EP 1 p 186 1878) Como aponta Chauvireacute (2003 p
31) ldquoNota-se que Peirce natildeo opotildee somente a deduccedilatildeo agrave induccedilatildeo mas introduz um terceiro tipo
de inferecircncia a abduccedilatildeo cuja definiccedilatildeo e cuja anaacutelise constituem um dos pontos mais originais
tanto da sua filosofia dos signos quanto da sua filosofia da ciecircnciardquo
133
Peirce indica ainda uma subdivisatildeo a que esta classificaccedilatildeo das inferecircncias estaacute sujeita
entre inferecircncias analiacuteticas na qual ele coloca a deduccedilatildeo e inferecircncias sinteacuteticas que
compreendem a induccedilatildeo e a hipoacutetese Deixando para outra ocasiatildeo o tratamento da inferecircncia
dedutiva186
dedicaraacute o texto em questatildeo agrave compreensatildeo e diferenciaccedilatildeo das inferecircncias indutivas
e hipoteacuteticas bem como agrave justificaccedilatildeo da necessidade de clareza quanto a esta distinccedilatildeo para a
elaboraccedilatildeo do meacutetodo cientiacutefico
Peirce argumenta que a diferenccedila entre a inferecircncia que formula uma hipoacutetese e aquela que
realiza uma induccedilatildeo eacute bastante clara na maioria dos casos analisados natildeo obstante seja ignorada
pelos estudiosos da loacutegica ou objeto de grande confusatildeo Embora nenhuma classificaccedilatildeo seja
perfeitamente satisfatoacuteria diz Peirce sendo sempre possiacutevel encontrar casos que se localizem na
fronteira entre as duas classes e que poderiam levar agrave primeira vista a uma certa duacutevida sobre
qual categoria a que dada inferecircncia pertence a anaacutelise da abduccedilatildeo e induccedilatildeo deixa claro as
suas diferenccedilas Quanto ao modo em que se realiza e quanto ao objetivo que almeja Peirce tece o
seguinte comentaacuterio
Pela induccedilatildeo concluiacutemos que fatos similares aos fatos observados satildeo
verdadeiros em casos natildeo examinados Pela hipoacutetese concluiacutemos a existecircncia de
um fato totalmente diferente de qualquer coisa observada a partir do qual de
acordo com as leis conhecidas alguma coisa observada necessariamente
resultaria O primeiro eacute um raciociacutenio dos particulares para a lei geral o uacuteltimo
do efeito para a causa O primeiro classifica o uacuteltimo explica (EP 1 p 194
1878)187
Com a finalidade de tornar a diferenccedila mais clara vejamos alguns exemplos de hipoacutetese
186 Realizado em 1880 em seu texto umlOn the Algebra of Logicuml e na definiccedilatildeo de umlsilogismouml para o seu Century
Dictionary 187
By induction we conclude that facts similar to observed facts are true in cases not examined By hypothesis we
conclude the existence of a fact quite different from anything observed from which according to known laws
something observed would necessarily result The former is reasoning from particulars to the general law the latter
from effect to cause The former classifies the latter explains
134
fornecidos por Peirce e a diferenccedila com relaccedilatildeo agrave induccedilatildeo em um deles O primeiro exemplo faz
referecircncia a uma viagem que Peirce realizou no ano de 1870 para a Turquia ele nos diz que
enquanto caminhava em direccedilatildeo a uma casa que iria visitar encontrou um homem montado em
um cavalo com quatro outros homens agrave cavalo ao seu redor e que seguravam uma tenda sobre sua
cabeccedila Como o governador da proviacutencia seria a uacutenica pessoa que poderia ter um tratamento tatildeo
honroso Peirce concluiu que se tratava do proacuteprio Esta eacute uma hipoacutetese acrescenta Do fato de se
encontrar foacutesseis de peixes e conchas no interior do paiacutes elabora-se a hipoacutetese de que o mar em
algum momento do passado tenha banhado aquelas terras Do fato de que inuacutemeros documentos
e monumentos faccedilam referecircncia a um conquistador chamado Napoleatildeo Bonaparte se conclui que
ele de fato existiu sendo esta conclusatildeo uma outra hipoacutetese Com respeito a esses exemplos
Peirce acrescenta que a hipoacutetese eacute um tipo fraco de argumento que mais inclina do que determina
o nosso julgamento em direccedilatildeo agrave afirmaccedilatildeo da verdade expressa nas respectivas hipoacuteteses
Para tornar clara a diferenccedila entre o raciociacutenio hipoteacutetico e raciociacutenio indutivo vejamos um
outro exemplo tambeacutem fornecido por Peirce Neste nos deparamos com um escrito anocircnimo
sobre uma folha de papel que foi arrancada de um bloco Haacute a suspeita de que o autor do escrito
seja uma determinada pessoa Sua mesa agrave qual somente ele tinha acesso eacute investigada e eacute
encontrado um bloco de papel com uma folha arrancada cujas bordas satildeo idecircnticas agraves da folha do
escrito anocircnimo A conclusatildeo de que o suspeito eacute realmente o autor do escrito eacute claramente uma
hipoacutetese Peirce acrescenta que a base para essa inferecircncia eacute de que seria muito improvaacutevel que
duas folhas de papel arrancadas ao acaso tivessem suas bordas exatamente iguais apenas por
acidente A razatildeo de uma conclusatildeo do tipo presente no exemplo acima eacute enunciada nos seguintes
termos por Peirce ldquoum nuacutemero de caracteres que pertence a uma certa classe eacute encontrado em
um certo objeto desse modo eacute inferido que todos os caracteres daquela classe pertencem ao
objeto em questatildeordquo (EP 1 p 192 1878)188
O princiacutepio de elaboraccedilatildeo da hipoacutetese neste caso
envolve o mesmo princiacutepio da induccedilatildeo a diferenccedila eacute que natildeo satildeo analisados uma quantidade
grande de caracteres e a conclusatildeo eacute bastante distinta A inferecircncia indutiva no exemplo acima
188 A number of characters belonging to a certain class are found in a certain object whence it is inferred that all the
characters of that class belong to the object in question
135
apenas nos autorizaria a concluir que se as folhas de papel possuem alguns caracteres que
correspondem entatildeo ela deve compartilhar outros concluir no entanto sobre o autor do escrito
na folha de papel a partir de algumas de suas caracteriacutesticas eacute algo de natureza completamente
diferentemente Peirce resume a diferenccedila entre os dois tipos de inferecircncia da seguinte maneira
ldquoa essecircncia de uma induccedilatildeo eacute que ela infere de um conjunto de fatos um outro conjunto de fatos
similares enquanto a hipoacutetese infere a partir de fatos de um tipo fatos de um outrordquo (EP 1 p
198)189
Pode-se perceber que uma das razotildees pelas quais Peirce elabora a reflexatildeo apresentada
neste texto eacute a de compreender o processo de produccedilatildeo do conhecimento Neste momento Peirce
ainda atribuiacutea tanto agrave inferecircncia indutiva quanto agrave inferecircncia hipoteacutetica o papel de produtor de
novas ideias na medida em que ambas satildeo classificadas como inferecircncias sinteacuteticas Posiccedilatildeo que
no futuro modificaraacute atribuindo a exclusividade heuriacutestica ao processo inferencial que receberaacute o
nome de abduccedilatildeo Mas a quecirc serve esta distinccedilatildeo Esta eacute uma pergunta que podemos nos colocar
e para a qual Peirce apresenta uma resposta retomada e aprimorada em vaacuterios textos posteriores
Em um texto de 1901 lemos
Nada tem contribuiacutedo tanto para apresentar ideias da loacutegica da ciecircncia caoacuteticas
ou errocircneas como a falha em distinguir os caracteres essencialmente diferentes
de diferentes elementos do raciociacutenio cientiacutefico e uma das piores dessas
confusotildees bem como uma das mais comuns consiste em ver a abduccedilatildeo e a
induccedilatildeo tomadas juntas (frequentemente misturadas tambeacutem com a deduccedilatildeo)
como um uacutenico argumento (CP 7 sect 218 1901)190
189 But the essence of an induction is that it infers from one set of facts another set of similar facts whereas
hypothesis infers from facts of one kind to facts of another 190
Nothing has so much contributed to present chaotic or erroneous ideas of the logic of science as failure to
distinguish the essentially different characters of different elements of scientific reasoning and one of the worst of
these confusions as well as one of the commonest consists in regarding abduction and induction taken together
(often mixed also with deduction) as a simple argument
136
No texto de 1878 Peirce oferece algumas razotildees segundo as quais a distinccedilatildeo em questatildeo
seria de grande importacircncia O valor desta distinccedilatildeo segundo o autor deve ser testado por suas
aplicaccedilotildees Em primeiro lugar encontra-se o fato de que a induccedilatildeo eacute um tipo de inferecircncia bem
mais forte do que a hipoacutetese A impossibilidade de se inferir indutivamente conclusotildees hipoteacuteticas
eacute apontada como a segunda razatildeo Do ponto de vista psicoloacutegico ou fisioloacutegico tambeacutem se
verifica uma distinccedilatildeo quanto ao modo de apreensatildeo dos fatos que eacute apontado como a terceira
razatildeo para se insistir sobre a sua distinccedilatildeo A induccedilatildeo eacute o procedimento loacutegico da formaccedilatildeo de um
haacutebito jaacute que ela realiza a inferecircncia de uma regra e toda regra eacute de natureza habitual enquanto a
hipoacutetese realiza a unificaccedilatildeo de vaacuterios predicados em uma uacutenica concepccedilatildeo Peirce tenta
esclarecer a particularidade do processo de elaboraccedilatildeo de hipoacutetese fazendo uso de uma analogia
ldquoos vaacuterios sons produzidos pelos instrumentos de uma orquestra incidem sobre o ouvido e o
resultado eacute uma peculiar emoccedilatildeo musical bem distinta dos proacuteprios sonsrdquo (EP 1 199 1878)191
A partir dessa constataccedilatildeo Peirce afirma que a hipoacutetese representa o elemento sensiacutevel do
pensamento enquanto a induccedilatildeo responde por seu elemento habitual Um outro meacuterito dessa
distinccedilatildeo eacute o de permitir uma classificaccedilatildeo natural das ciecircncias e das mentes que as realizam
segundo os diferentes modos de raciociacutenio E por fim Peirce deixa as demais vantagens aos
leitores que dominarem a habilidade de distinguir entre os vaacuterios tipos de inferecircncias a tarefa de
descobrir
Para Peirce antes da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese que eacute por ele considerada como o
primeiro estaacutegio do meacutetodo cientiacutefico o cientista deve ter se nutrido da observaccedilatildeo do mundo A
experiecircncia eacute o iniacutecio necessaacuterio para todo conhecimento humano de modo que natildeo existe
conhecimento que natildeo esteja embasado na experiecircncia ele diz ldquoTodo conhecimento seja qual
for vem da observaccedilatildeordquo (CP 1 sect 238 1902)192
Ainda que a observaccedilatildeo natildeo possa ser
considerada como uma parte do meacutetodo cientiacutefico ela eacute um preacute-requisito fundamental para o seu
sucesso Com a finalidade de estabelecer uma conversaccedilatildeo com a natureza a observaccedilatildeo preacutevia
191 The various sounds made by the instruments of an orchestra strike upon the ear and the result is a peculiar
musical emotion quite distinct from the sounds themselves 192
All knowledge whatever comes from observation
137
do cientista deve ser ativa e natildeo passiva Ela natildeo eacute pura sensaccedilatildeo mas experimentaccedilatildeo
inteligente Para que a conversa seja produtiva o investigador deve apresentar as questotildees
apropriadas Sobre a observaccedilatildeo Peirce afirma que se trata ldquode uma experiecircncia voluntariamente
atenta habitualmente com algum frequentemente com a necessidade de um grande esforccedilordquo e
acrescenta que a ldquoexperiecircncia supotildee que seu objeto reaja sobre noacutes com alguma forccedila muita ou
pouca de tal maneira que ela tenha um certo grau de realidade ou independecircncia de nosso esforccedilo
cognitivordquo (CP 2 sect 605 1902)193
Tal esforccedilo soacute eacute verdadeiramente realizado uma vez que
alguma coisa de inesperado surja no desenrolar dos acontecimentos fenomecircnicos isto eacute quando o
curso dos eventos se mostra de alguma maneira surpreendente para o investigador
A experiecircncia eacute portanto uma operaccedilatildeo cognitiva Ela implica a consciecircncia de um objeto
externo que eacute resistente ao sujeito A observaccedilatildeo com a qual a pesquisa cientiacutefica tem seu iniacutecio eacute
sempre a quebra de uma expectativa e eacute esta caracteriacutestica inesperada que forccedila o cientista a ter
consciecircncia da externalidade do objeto e que o conduz agrave procura de uma explicaccedilatildeo
A pesquisa cientiacutefica propriamente dita inicia-se com a hipoacutetese uma conjectura que tenta
explicar o fenocircmeno surpreendente (cf CP 6 sect 469 1908) O meacutetodo cientiacutefico compreende
para Peirce trecircs estaacutegios distintos abduccedilatildeo ou hipoacutetese deduccedilatildeo e induccedilatildeo ou teste
Diferentemente de outros filoacutesofos da ciecircncia Peirce compreende que uma parte de seu meacutetodo
deve ser dedicada agrave explicaccedilatildeo de como as novas hipoacuteteses satildeo elaboradas O coraccedilatildeo desta teoria
eacute uma reflexatildeo sobre o processo de criaccedilatildeo cientiacutefica condensado no raciociacutenio abdutivo Uma
vez elaborada e selecionada a hipoacutetese dever testada Com esta finalidade Peirce indica a
necessidade de se deduzir as consequecircncias praacuteticas da hipoacutetese e por meio da induccedilatildeo proceder
agrave sua verificaccedilatildeo confrontando-a com a experiecircncia Nota-se que mesmo mantendo o nome
induccedilatildeo para este procedimento de teste ele natildeo reteacutem mais nada da sua significaccedilatildeo original
empregada na histoacuteria da filosofia Natildeo se trata do procedimento de obtenccedilatildeo de uma lei geral por
193 Attentive experience especially an act of voluntarily attentive experience usually with some often with great
effort () experience supposes that its object reacts upon us with some strength much or little so that it has a certain
grade of reality or independence of our cognitive exertion
138
meio dos casos particulares mas de verificar se as consequecircncias de uma conjectura geral satildeo
conformes agrave experiecircncia
As duas principais funccedilotildees da ciecircncia satildeo a elaboraccedilatildeo e o teste de conjecturas A ciecircncia
somente seraacute possiacutevel se ao se realizar essas duas funccedilotildees o resultado seja a verdade ou se por
meio delas nos aproximamos do conhecimento real Durante deacutecadas Peirce se dedicou
agrave compreensatildeo dos mecanismos da induccedilatildeo visando compreender como ela durante a
investigaccedilatildeo cientiacutefica teria o poder de conduzir agrave verdade por meio de um processo de
autocorreccedilatildeo Seus esforccedilos todavia indicaram que a menos que a conjectura jaacute tenha colocado o
investigador na boa direccedilatildeo a ciecircncia natildeo conseguiria atingir seu objetivo Desta maneira este
estranho tipo de inferecircncia chamado de abduccedilatildeo deveria ser a chave para o progresso que se
verifica na ciecircncia De fato a abduccedilatildeo eacute uma espeacutecie de adivinhaccedilatildeo da boa hipoacutetese
A abduccedilatildeo compreende dois momentos a elaboraccedilatildeo e a eleiccedilatildeo das hipoacuteteses a serem
testadas O primeiro momento eacute marcado pela criatividade e o segundo pelas exigecircncias da
economia da pesquisa cientiacutefica Na anaacutelise do primeiro momento o da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese
um aspecto bastante proacuteprio do pensamento peirceano eacute ressaltado o papel que a imaginaccedilatildeo
desempenha neste estaacutegio Peirce diz
Quando um homem deseja ardentemente conhecer a verdade seu primeiro
esforccedilo eacute de imaginar aquilo que tal verdade poderia ser () eacute verdade que apoacutes
tudo nada aleacutem da imaginaccedilatildeo pode lhe fornecer a pista da verdade Ele pode
fixar estupidamente o olhar sobre os fenocircmenos mas sem a imaginaccedilatildeo eles natildeo
se ligaratildeo de maneira racional (CP 1 sect 46 1896)194
194 When a man desires ardently to know the truth his first effort will be to imagine what that truth can be () it
remains true that there is after all nothing but imagination that can ever supply him an inkling of the truth He can
stare stupidly at phenomena but in the absence of imagination they will not connect themselves together in any
rational way
139
A imaginaccedilatildeo do cientista natildeo obstante eacute aquela que sonha com explicaccedilotildees e com leis (cf
CP 1 sect 49 1896) a conjectura deve portanto ser de tal maneira que elimine o aspecto
surpreendente e coloque o cientista em harmonia com o curso dos fenocircmenos Uma vez de posse
das conjecturas Peirce indica os criteacuterios que devem ser utilizados para selecionar aquelas que
devem ser submetidas a teste e em que ordem afim de que o trabalho de investigaccedilatildeo cientiacutefica
tenha o melhor desempenho possiacutevel As principais condiccedilotildees de admissibilidade de hipoacuteteses
que Peirce estabelece satildeo
1 A hipoacutetese deve ser experimentalmente testaacutevel
2 Ela deve explicar os fatos surpreendentes aos quais nos confrontamos
3 A seleccedilatildeo e classificaccedilatildeo das hipoacuteteses a serem testadas devem ser realizadas em funccedilatildeo
do princiacutepio de economia da pesquisa
A testabilidade de uma hipoacutetese consiste em que devemos poder tirar dela por deduccedilatildeo um
certo nuacutemero de consequecircncias ou prediccedilotildees suscetiacutevel de ser comparado com os resultados de
uma experiecircncia provocada por esta razatildeo ldquouma hipoacutetese da qual natildeo se pode fundar nenhuma
prediccedilatildeo natildeo deveria ser aceitardquo (CP 5 sect 599 1903)195
Explicar um fenocircmeno para Peirce eacute fazecirc-lo aparecer como dedutiacutevel de uma lei ou de uma
teoria isto eacute como previsiacutevel Peirce caracteriza a explicaccedilatildeo como uma forma de reduccedilatildeo do
diverso agrave unidade explicar eacute sintetizar uma multiplicidade de predicados ou ainda substituir
uma pluralidade de proposiccedilotildees por uma soacute proposiccedilatildeo de um grau de generalidade superior (cf
CHAUVIREacute 2003 p 84)
E por fim a terceira condiccedilatildeo indica que as hipoacuteteses de conteuacutedos mais abrangentes
devem ser preferidas bem como aquelas que natildeo exijam muito tempo recursos materiais ou
esforccedilo em seus testes
195 A hypothesis on which no verifiable predictions can be based should never be accepted
140
CAPIacuteTULO 05
A CAUSALIDADE FINAL
Thus whether you accept the opinion or not you must see that it is a perfectly
intelligible opinion that ideas are not all mere creations of this or that mind but on the
contrary have a power of finding or creating their vehicles and having found them of
conferring upon them the ability to transform the face of the earth (CP 1 sect 217 1902)
141
Este capiacutetulo eacute dedicado agrave apresentaccedilatildeo e discussatildeo das principais caracteriacutesticas atribuiacutedas
agrave ideia de causa final na obra de Peirce Iniciaremos por uma exposiccedilatildeo das questotildees envolvidas
e resgatando elementos presentes nos capiacutetulos anteriores desta tese faremos uma comparaccedilatildeo
da concepccedilatildeo peirceana com a aristoteacutelica para realccedilar aquilo que Peirce acrescenta de original
Como este eacute o uacuteltimo capiacutetulo deste trabalho sua funccedilatildeo eacute a de tambeacutem ressaltar o papel central
que a ideia de causa final desempenha em outros campos da produccedilatildeo peirceana afins ao recorte
proposto no todo desta tese
Para Peirce a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais fornecida apenas com base na atuaccedilatildeo da
causa eficiente eacute claramente insuficiente A causalidade final eacute necessaacuteria para a construccedilatildeo de
esquemas de explicaccedilatildeo que possam oferecer uma imagem adequada do real portanto eacute essencial
do ponto de vista epistemoloacutegico O mesmo pode ser afirmado no que diz respeito ao ponto de
vista ontoloacutegico pois Peirce a considera como causa real atuante nos processos de constituiccedilatildeo
do universo ou seja na evoluccedilatildeo ou crescimento do cosmo Como indica T L Short ldquo() A
teleologia de Peirce natildeo eacute somente metodoloacutegica ela inclui reivindicaccedilotildees ontoloacutegicasrdquo (1981b
p 377) O banimento desta modalidade causal da ciecircncia ao menos desde Bacon196
eacute visto pelo
filoacutesofo como uma fonte de equiacutevocos Em um texto de 1903 Peirce afirma
() o natildeo reconhecimento da causalidade final () tem sido e ainda eacute produtor
de mais erros filosoacuteficos e de absurdos do que qualquer outra fonte de erro e de
absurdos Se haacute uma deusa do absurdo isso deve ser sua assombraccedilatildeo (MS
478)197
Como aponta Andrew Woodfield em seu livro sobre a teleologia ldquoA ciecircncia moderna eacute no
seu todo hostil agraves explicaccedilotildees teleoloacutegicasrdquo (WOODFIELD 1976 p03) Hawkins (2007 p 522)
196 Como aponta Bacon a investigaccedilatildeo sobre causas finais eacute esteacuteril e como uma virgem consagrada a Deus nada
produz (cf BACON F De Augmentis Scientiarum III 5) 197
() the non-recognition of final causation () has been and still is productive of more philosophical error and
nonsense than any or every other source of error or nonsense If there is any goddess of nonsense this must be her
haunt (apud HULSWIT 1996 p 182)
142
afirma que embora filoacutesofos contemporacircneos como Russell e Quine tenham afirmado que ateacute
mesmo a causalidade eficiente eacute metafisicamente suspeita ela continua a gozar de popularidade
junto ao senso comum e de respeito entre os filoacutesofos Aquele que defende a existecircncia de causas
eficientes atuando na natureza pode estar errado mas ningueacutem o chamaria de louco como
acontece com aqueles que insistem na pertinecircncia da inclusatildeo da causalidade final nos esquemas
explicativos ou como elemento atuante no mundo Hawkins (2007 p 522) faz um bom resumo
da situaccedilatildeo atual
() muitos filoacutesofos contemporacircneos consideram a causalidade final na melhor
das hipoacuteteses como uma reliacutequia de um encantado mundo preacute-moderno Na pior
das hipoacuteteses a causalidade final eacute um pensamento metafiacutesico clandestino na
barcaccedila antifundacionalista conduzida por Quine e seus companheiros Mesmo
os filoacutesofos Continentais (por exemplo Heidegger Deleuze) tendem a
suspeitar da causalidade final Para eles a causa final eacute um conceito
incompatiacutevel com a nossa experiecircncia de liberdade e novidade () Por fim nem
mesmo o senso comum parece endossar a causalidade final De acordo com a
compreensatildeo preacute-filosoacuteficas as causas satildeo temporalmente preacutevias aos efeitos
Contudo os defensores da causalidade final parecem negar precisamente essa
prioridade O caraacuteter de uma coisa no presente eacute de alguma forma pensado
como determinado pelo que ela seraacute no futuro seu fim (telos) Para os natildeo
filoacutesofos a alegaccedilatildeo de que a causalidade pode atuar nesse sentido pode parecer
incompreensiacutevel
Satildeo comuns afirmaccedilotildees de que natildeo existem causas finais atuando no universo e de que os
fenocircmenos que satildeo descritos por meio de uma linguagem teleoloacutegica podem e seratildeo no futuro
descritos unicamente por meio da utilizaccedilatildeo de esquemas de explicaccedilatildeo que faccedilam uso exclusivo
da causalidade eficiente Se por um lado o projeto de reduccedilatildeo das explicaccedilotildees teleoloacutegicas a
explicaccedilotildees com base em causalidade eficiente ainda natildeo foi plenamente realizado por outro a
proacutepria noccedilatildeo de causalidade final natildeo estaacute inteiramente esclarecida Como aponta Hulswit ldquoAteacute
o presente momento nenhuma teoria clara dos processos teleoloacutegicos estaacute disponiacutevelrdquo
143
(HULSWIT 1996 P 183)198
Esperamos que a anaacutelise e exposiccedilatildeo das ideias peirceanas sobre o
tema possam constituir uma contribuiccedilatildeo efetiva para a elaboraccedilatildeo de uma teoria mais adequada
e clara sobre a maneira de atuaccedilatildeo da causalidade teleoloacutegica A principal justificativa para a sua
inclusatildeo eacute como ressalta o autor o papel essencial que desempenha na completude das
descriccedilotildees e nas explicaccedilotildees dos fenocircmenos
1 O MODO DE ATUACcedilAtildeO DA CAUSALIDADE FINAL
Ao explicar os modos de causalidade atuantes no universo199
Peirce daacute tanto agrave causalidade
final quanto agrave causalidade eficiente praticamente a mesma importacircncia natildeo escondendo todavia
certa primazia da primeira Quando Peirce fala em causalidade final estaacute pensando na maneira
como foi definida por Aristoacuteteles
O significado da expressatildeo bdquocausa final‟ deve ser determinado pelo seu uso na
declaraccedilatildeo de Aristoacuteteles de que todas as causas se dividem em dois grandes
ramos o das eficientes ou eneacutergicas e o das ideais ou finais Se preservarmos a
verdade da declaraccedilatildeo devemos compreender por causa final o modo de realizar
fatos de acordo com o qual uma descriccedilatildeo geral do resultado eacute obtida quase sem
consideraccedilatildeo por qualquer compulsatildeo para ela se realizar deste ou daquele modo
particular embora o significado possa estar adaptado a um fim O resultado
geral deve ser realizado de um modo em uma vez e de outra em outra A causa
final natildeo determina em qual modo particular se realizaraacute mas unicamente que o
resultado teraacute um certo caraacuteter geral (CP 1 sect 211 1902)200
198 Aleacutem do texto citado ver tambeacutem HULSWIT 1997 1998 2001 e 2003 PAPE 1993 e 1997
199 Para uma discussatildeo da causalidade final no interior da semioacutetica ver SHORT 1981a 1982 e 1996
200 ldquoThe signification of the phrase final cause must be determined by its use in the statement of Aristotle that all
causation divides into two grand branches the efficient or forceful and the ideal or final If we are to conserve the
truth of that statement we must understand by final causation that mode of bringing facts about according to which a
general description of result is made to come about quite irrespective of any compulsion for it to come about in this
or that particular way although the means may be adapted to the end The general result may be brought about at one
time in one way and at another time in another way Final causation does not determine in what particular way it is
to be brought about but only that the result shall have a certain general characterrdquo (CP 1 sect 211 1902) Uma
144
Jaacute o significado de causa eficiente Peirce indica em outra passagem nos seguintes termos
A causalidade eficiente por outro lado eacute uma compulsatildeo determinada pela
condiccedilatildeo particular de coisas e eacute uma compulsatildeo agindo para fazer certa
situaccedilatildeo comeccedilar a mudar de uma forma perfeitamente determinada e seja qual
for o caraacuteter geral do resultado de modo algum diz respeito agrave causaccedilatildeo eficiente
Por exemplo eu atiro na asa de uma aacuteguia e uma vez que o meu propoacutesito - um
tipo especial de causa final ou ideal - eacute acertar a ave eu natildeo atiro diretamente
nela mas um pouco agrave sua frente tendo em conta a mudanccedila de posiccedilatildeo no
momento em que a bala chegar agravequela distacircncia Ateacute esse momento trata-se de
um caso de causaccedilatildeo final Mas apoacutes a bala sair do rifle o caso eacute entregue agrave
estuacutepida causalidade eficiente e se a aacuteguia fizer uma volta em outra direccedilatildeo a
bala natildeo alteraraacute sua trajetoacuteria em nada a causalidade eficiente natildeo tem qualquer
relaccedilatildeo com os resultados mas simplesmente obedece cegamente a ordens Eacute
verdade que a forccedila da bala estaacute em conformidade com uma lei e a lei eacute algo
geral Mas por isso mesmo a lei natildeo eacute uma forccedila Pois forccedila eacute compulsatildeo e
compulsatildeo eacute hic et nunc (CP 1 sect 212 1902)201
Embora sejam diametralmente opostas causa final e causa eficiente se relacionam de
maneira complementar Peirce enfatiza este aspecto nos seguintes termos
comparaccedilatildeo do conceito de causa final presente na obra peirceana com aquele presente na obra aristoteacutelica seraacute
realizada na pesquisa com a intenccedilatildeo de oferecer uma melhor compreensatildeo da definiccedilatildeo peirceana A despeito da
afirmaccedilatildeo de identidade entre uma definiccedilatildeo e outra estabelecido acima haacute elementos presentes na metafiacutesica
peirceana que sugerem alteraccedilotildees no conceito e invalidam essa identidade A investigaccedilatildeo desse toacutepico colocaraacute em
relevo essas diferenccedilas 201
Efficient causation on the other hand is a compulsion determined by the particular condition of things and is a
compulsion acting to make that situation begin to change in a perfectly determinate way and what the general
character of the result may be in no way concerns the efficient causation For example I shoot at an eagle on the
wing and since my purpose -- a special sort of final or ideal cause -- is to hit the bird I do not shoot directly at it
but a little ahead of it making allowance for the change of place by the time the bullet gets to that distance So far it
is an affair of final causation But after the bullet leaves the rifle the affair is turned over to the stupid efficient
causation and should the eagle make a swoop in another direction the bullet does not swerve in the least efficient
causation having no regard whatsoever for results but simply obeying orders blindly It is true that the force of the
bullet conforms to a law and the law is something general But for that very reason the law is not a force For force
is compulsion and compulsion is hic et nunc
145
Causalidade eficiente eacute aquele tipo de causalidade atraveacutes do qual as partes
compotildeem o todo causalidade final eacute aquele tipo de causalidade pelo qual o todo
chama por suas partes Causa final sem causa eficiente eacute inoacutecua um mero
chamar por partes eacute o que qualquer soldado ou homem pode fazer mas elas natildeo
viratildeo sem a causa eficiente Causa eficiente sem causa final entretanto eacute pior do
que inoacutecuo eacute mero caos e o caos natildeo eacute nem mesmo caos sem causa final eacute um
nada vazio (CP 1 sect 211 1902)202
A tarefa que nos propomos aqui eacute a de entender como Peirce um cientista familiarizado
com as principais teorias cientiacuteficas do seu tempo e formado dentro dos rigores do meacutetodo
experimental pocircde atribuir tal relevacircncia agrave causalidade final Ao mesmo tempo investigaremos
de que modo se daacute a atuaccedilatildeo deste tipo de causalidade na natureza segundo a concepccedilatildeo
peirceana Ou seja nosso objetivo eacute o de compreender o papel epistemoloacutegico e ontoloacutegico
desempenhado pela causa final no sistema peirceano
Uma das questotildees que conduziu inicialmente esta investigaccedilatildeo jaacute pode ser colocada se a
causalidade final eacute atuante em todo o universo e natildeo apenas nos fenocircmenos bioloacutegicos como ela
pode se manifestar sem a postulaccedilatildeo de um plano de criaccedilatildeo ou seja sem um reino de fins
Poder-se-ia julgar por meio da descriccedilatildeo oferecida da lei da mente ou causa final que a
sua aplicaccedilatildeo restringe-se ao acircmbito dos fenocircmenos mentais particularmente aos dos humanos A
fim de evitar esse equiacutevoco fazem-se necessaacuterias algumas palavras a respeito da distinccedilatildeo
elaborada por Peirce entre causa final e propoacutesito A causa final possui uma abrangecircncia muito
maior do que o propoacutesito sendo este apenas o tipo de causa final a que estamos mais habituados
Em um texto de 1902 Peirce esclarece que ldquoUm propoacutesito eacute um desejo operativordquo (CP 1 sect 205
1902)203
Ainda que para os seres humanos o propoacutesito se apresente como uma conduccedilatildeo
autocontrolada que mira algum ser in futuro que aparece como desejaacutevel quando consideramos a
202 Efficient causation is that kind of causation whereby the parts compose the whole final causation is that kind of
causation whereby the whole calls out its parts Final causation without efficient causation is helpless mere calling
for parts is what a Hotspur or any man may do but they will not come without efficient causation Efficient
causation without final causation however is worse than helpless by far it is mere chaos and chaos is not even so
much as chaos without final causation it is blank nothing 203
A purpose is an operative desire
146
atuaccedilatildeo da causa final em seu sentido mais amplo constatamos que o significado do termo natildeo
reteacutem nada de sua interpretaccedilatildeo psicoloacutegica
Os exemplos da atuaccedilatildeo da causa final satildeo muitos afirma Peirce No que tange ao
pensamento particularmente em sua atividade teoacuterico-criativa a presenccedila do ser in futuro como
um bdquoatrator‟ eacute inequiacutevoca Procedemos agrave verificaccedilatildeo de nossas candidatas a leis gerais por meio
de experimentos afirma Peirce Variamos gradualmente as condiccedilotildees de nossos experimentos
para constatar o que acontece Se estivermos no caminho errado uma enfaacutetica negativa faraacute com
que reconsideremos nossas hipoacuteteses de tal modo que em um longo prazo (a long run) elas se
tornaratildeo cada vez mais adequadas e corretas Ou seja ldquoIsto equivale a dizer que conjeturamos as
leis pedaccedilo por pedaccedilordquo (CP 1 sect 86 1896)204
Temos nesse ponto o retorno de uma outra questatildeo jaacute debatida no primeiro capiacutetulo desta
tese a justificaccedilatildeo oferecida pelo autor da presenccedila de um caraacuteter tatildeo marcadamente
antropomoacuterfico em suas explicaccedilotildees Como vimos Peirce salienta em algumas passagens que
isso natildeo poderia ser evitado sendo uma das caracteriacutesticas da nossa compreensatildeo do mundo e
marca de uma inteligecircncia que aprende com a experiecircncia O filoacutesofo chega ateacute mesmo a afirmar
que tudo que eacute racional deve ser antropomoacuterfico Como diz
Toda explicaccedilatildeo cientiacutefica de um fenocircmeno natural eacute uma hipoacutetese de que haacute
alguma coisa na natureza agrave qual a razatildeo humana eacute anaacuteloga e que realmente eacute
assim todo o sucesso da ciecircncia em suas aplicaccedilotildees para a conveniecircncia humana
satildeo testemunhas (CP 1 sect 316 1903)205
Eacute natural portanto que as teorias explicativas dos processos que ocorrem na natureza
tenham a marca do humano A proacutepria noccedilatildeo de causalidade diz Peirce expressa essa
204 This is to say we guess out the laws bit by bit
205 Every scientific explanation of a natural phenomenon is a hypothesis that there is something in nature to which
the human reason is analogous and that it really is so all the success of science in its application to human
convenience are witness
147
caracteriacutestica do pensamento inteligiacutevel ele afirma que sua origem ldquo() estaacute em nossa tendecircncia
a procurar relaccedilotildees na natureza anaacutelogas agraves relaccedilotildees intelectuaisrdquo (MS 963 c1893)206
Como
afirma Hulswit
() todas as ideias teoacutericas de um modo ou de outro se originam e se referem agrave
experiecircncia humana Se assim natildeo o fizessem elas natildeo teriam sentido ora se
elas tecircm que ter algum sentido deve haver algum tipo de relaccedilatildeo entre elas e
nossa experiecircncia humana cotidiana Consequentemente longe de ser um
problema o antropomorfismo eacute uma necessidade pura (HULSWIT 1996 p
184)
A elaboraccedilatildeo de teorias que espelham aquilo que eacute familiar aos seres humanos natildeo pode ser
considerada dessa maneira como um defeito da proposta peirceana mas deve ser entendida
como um requisito necessaacuterio agravequilo que pode ser compreendido como objeto da inteligibilidade
humana Uma consequecircncia podemos dizer da hipoacutetese que fundamenta a atividade cientiacutefica
que eacute a de considerar que o mundo eacute em princiacutepio passiacutevel de ser conhecido racionalmente ndash
uma esperanccedila reguladora para o exerciacutecio de toda investigaccedilatildeo
O modelo que nos eacute mais familiar da atuaccedilatildeo da causalidade final eacute a accedilatildeo propositada que
naturalmente eacute realizada com o objetivo de se obter algum resultado No entanto nos adverte o
autor este eacute apenas um tipo de causa final e natildeo o mais expressivo mas mesmo ele jaacute coloca em
evidecircncia a primeira caracteriacutestica que Peirce atribui agrave causa final e que natildeo eacute reconhecida pelos
detratores dessa noccedilatildeo ela a causa final natildeo eacute nunca um fato concreto mas eacute sempre geral
Consideraacute-la como um evento concreto no futuro que exerce uma influecircncia sobre o desenrolar
dos processos de acontecimentos do presente dirigindo-os para um determinado fim eacute um erro
categorial
Podemos nos perguntar todavia quais as consequecircncias dessa caracterizaccedilatildeo da noccedilatildeo de
206 () has its origin in our tendency to seek relations in nature analogous to intellectual relations
148
causa final como um geral A resposta a esta pergunta envolve a dissoluccedilatildeo de certa confusatildeo
presente na ideia de causalidade final que a perspectiva cientiacutefica moderna adotou Esta noccedilatildeo
aparece aos cientistas e filoacutesofos da ciecircncia como sendo possuidora de trecircs caracteriacutesticas que a
torna incompatiacutevel com os criteacuterios de cientificidade vigentes e refrataacuteria aos seus procedimentos
de teste Segundo esta perspectiva a causa final possuiria trecircs caracteriacutesticas intrataacuteveis e
inaceitaacuteveis do ponto de vista cientiacutefico em primeiro lugar ela teria como condiccedilatildeo para sua
atuaccedilatildeo a existecircncia de eventos individuais e concretos no futuro que em segundo lugar
exerceriam algum tipo de influecircncia causal sobre o presente determinando em terceiro lugar um
curso preciso de accedilatildeo a fim de que pudessem ser realizados (cf HULSWIT 1996 p 200-2)
Vejamos em que medida essas caracteriacutesticas podem ser de fato atribuiacutedas agrave noccedilatildeo de causa final
que extraiacutemos da obra do filoacutesofo Como foi indicado acima Peirce nega que exista qualquer
evento no futuro constituinte da causa final Ela eacute sempre um geral e como tal difere
categoricamente dos eventos que podem ser classificados no acircmbito dos fatos individuais e
concretos
Um exemplo simples talvez possa ser de alguma ajuda para iluminar o que Peirce estaacute
afirmando Retomando o caso da accedilatildeo humana propositada podemos dizer que a causa final natildeo
eacute o proacuteprio objetivo da accedilatildeo que natildeo passa de um desejo operativo nas palavras de Peirce mas
eacute antes uma certa classe de objetos que possuem certo tipo geral de caracteriacutesticas Assim se o
desejo que me move eacute o de tomar um sorvete a causa final natildeo seria o proacuteprio desejo mas uma
classe geral na qual os sorvetes estatildeo subsumidos Ainda que possamos especificar o quanto
quisermos o tipo de sorvete o sabor a procedecircncia os modos de fabricaccedilatildeo ainda assim
continuariacuteamos a ter como atrator da nossa accedilatildeo certa classe geral dificilmente um objeto
definido e concreto
Em segundo lugar207
embora as causas finais natildeo sejam eventos futuros elas exercem certa
influecircncia a partir do futuro eacute preciso natildeo esquecer que a distinccedilatildeo entre passado presente e
207 Aqui discordamos da interpretaccedilatildeo de Hulswit que nega a possibilidade de atribuir agrave causalidade final qualquer
tipo de influecircncia sobre o presente a partir do futuro Em sua concepccedilatildeo as causas finais satildeo ldquogeneral types which
may be realized in the future These general types are no actual existences but general (physical) possibilities for
149
futuro realizada por Peirce deixa claro que cada momento estaacute imerso em um fluxo contiacutenuo
cujas fronteiras natildeo estatildeo determinadas de forma precisa e absoluta O modo de efetivaccedilatildeo dessas
trecircs componentes do tempo eacute no entanto bastante diferente O passado se impotildee e determina
natildeo de maneira absoluta o modo que o presente se efetiva a essa influecircncia Peirce daacute o nome de
Obsistecircncia (sugerindo como indica o autor obviar objeto obstinado obstaacuteculo insistecircncia
resistecircncia etc) O presente se efetiva como possibilidade sempre aberta ao novo Peirce atribui
o nome de Originalidade que eacute ser tal como aquele ser eacute independentemente de qualquer outra
coisa O modo de efetivaccedilatildeo do futuro eacute a Transuasatildeo (sugerindo translaccedilatildeo transfusatildeo
transcendental etc) eacute mediaccedilatildeo ou a modificaccedilatildeo da originalidade e da obsistecircncia pela
mediaccedilatildeo
Se existisse apenas a atuaccedilatildeo do passado na determinaccedilatildeo dos eventos presentes teriacuteamos
um mundo bastante diferente do atual no qual as regularidades seriam absolutas o que equivale a
dizer que das mesmas causas os mesmos efeitos seguir-se-iam formando um sistema
perfeitamente adequado agrave descriccedilatildeo mecanicista Fosse o presente absolutamente indeterminado
teriacuteamos apenas a manifestaccedilatildeo de potencialidades absolutamente livres sem a possibilidade de
estabelecimento de qualquer relaccedilatildeo entre duas ou mais realizaccedilotildees que ademais nem mesmo
poderiam ser descritas como espaciais ou temporais que satildeo formas de mediaccedilatildeo e portanto
expressotildees do geral Em uma palavra teriacuteamos o caos o mesmo que Peirce descreve como
condiccedilatildeo original e necessaacuteria do cosmo Essas satildeo imagens possiacuteveis e ateacute mesmo coerentes
mas inadequadas para a descriccedilatildeo do mundo que a experiecircncia nos revela estar em constante
processo de vir a ser descrito por Peirce como evolucionaacuterio ou em crescimento A atuaccedilatildeo da
causalidade final eacute uma hipoacutetese necessaacuteria para podermos compreender o desenvolvimento dos
processos naturais A mediaccedilatildeo que a ideia geral realiza entre a imposiccedilatildeo cega do passado e a
originalidade ilimitada do presente eacute sintetizada pelo autor na ideia de um ser in futuro Nas
palavras de Peirce
future realizationrdquo (HULSWIT 1996 P 185) Embora reconheccedilamos a dificuldade em integrar esta caracteriacutestica a
uma visatildeo cientificamente aceitaacutevel da noccedilatildeo natildeo podemos ignorar as declaraccedilotildees enfaacuteticas encontradas nos textos
de Peirce acerca da realidade da influecircncia que o futuro exerce sobre o desenrolar dos acontecimentos no presente
150
Vamos agora considerar o ser in futuro Como em outros casos isto eacute apenas
uma avenida que leva a uma apreensatildeo mais pura do elemento que ele conteacutem
Uma concepccedilatildeo absolutamente pura de uma categoria estaacute fora de questatildeo Ser
in futuro aparece em formas mentais intenccedilotildees e expectativas A memoacuteria nos
fornece um conhecimento do passado por uma espeacutecie de forccedila bruta uma accedilatildeo
bastante binaacuteria sem qualquer raciociacutenio Mas todo o nosso conhecimento do
futuro eacute obtido por meio de outra coisa (CP 2 sect 88 1902)208
O ser in futuro eacute deixemos claro fundamental para a possibilidade de constituiccedilatildeo efetiva
de uma ciecircncia que possa natildeo apenas explicar o mundo da nossa experiecircncia presente mas
tambeacutem servir de guia ao estabelecimento da nossa conduta autocontrolada
Peirce indica que o modo de efetivaccedilatildeo da causa final eacute semelhante ao de uma sugestatildeo ou
inclinaccedilatildeo nunca determina o modo exato por meio do qual o resultado desejado seraacute obtido Em
suas palavras
Por uma tendecircncia a um fim quero dizer que um determinado resultado seraacute
realizado ou aproximado de tal maneira que se dentro de certos limites sua
realizaccedilatildeo por meio de uma linha de causalidade mecacircnica for impedida ele seraacute
realizado ou aproximado por uma linha independente de causalidade mecacircnica
(NEM 4 p 66 1902)209
208 Let us now take up being in futuro As in the other cases this is merely an avenue leading to a purer apprehension
of the element it contains An absolutely pure conception of a Category is out of the question Being in futuro appears
in mental forms intentions and expectations Memory supplies us knowledge of the past by a sort of brute force a
quite binary action without any reasoning But all our knowledge of the future is obtained through the medium of
something else 209
By a tendency to an end I mean that a certain result will be brought about or approached and in such a way that
if within limits its being brought about by one line of mechanical causation be prevented it will be brought about
or approached by an independent line of mechanical causation
151
2 CAUSALIDADE FINAL E CAUSALIDADE EFICIENTE
A noccedilatildeo de causalidade assumida pelo filoacutesofo eacute claramente mais ampla do que aquela
restrita agrave causalidade eficiente Hulswit indica que ele retoma o sentido original de causa tal
como definido por Aristoacuteteles de acordo com quem uma causa eacute algum tipo de condiccedilatildeo sem a
qual uma coisa natildeo seria o que eacute A causa final dessa maneira eacute determinante do modo de vir a
ser das coisas Ou seja constitui um elemento indispensaacutevel para a criaccedilatildeo de um mundo ndash o da
nossa experiecircncia ndash que se encontra a meio caminho entre a rigidez intransigente e esteacuteril do
mecanicismo e a pura espontaneidade do caos
Como indicado no capiacutetulo sobre evoluccedilatildeo uma das motivaccedilotildees para o desenvolvimento de
uma abordagem teleoloacutegica por parte de Peirce foi a constataccedilatildeo da existecircncia dos assim
chamados fenocircmenos irreversiacuteveis descritos pela termodinacircmica A insuficiecircncia da mecacircnica
claacutessica se mostrava patente no tratamento deste tipo de fenocircmeno Como diz o filoacutesofo
Essas accedilotildees natildeo conservativas que parecem violar a lei de energia e que a fiacutesica
sempre explica como sendo devidas agrave accedilatildeo ao acaso entre trilhotildees de moleacuteculas
satildeo cada uma e todas marcadas por dois caracteres A primeira eacute que eles atuam
em uma direccedilatildeo determinada e tendem assintoticamente em direccedilatildeo agrave realizaccedilatildeo
de um estado uacuteltimo de coisas Se teleoloacutegica eacute uma palavra muito forte para
aplicar a eles podemos inventar a palavra finista para expressar a sua tendecircncia
em direccedilatildeo a um estado final A outra caracteriacutestica das accedilotildees natildeo conservativas
eacute que elas satildeo irreversiacuteveis (CP 7 sect 471 1898)210
As accedilotildees teleoloacutegicas ou finistas como denomina Peirce possuem desse modo duas
caracteriacutesticas elas tendem para um estado final de coisa e elas satildeo irreversiacuteveis Estaacute impliacutecita
aqui uma espeacutecie de superioridade da causa final em relaccedilatildeo agrave causa eficiente A primeira
210 Those non-conservative actions which seem to violate the law of energy and which physics explains away as due
to chance action among trillions of molecules are one and all marked by two characters The first is that they act in
one determinate direction and tend asymptotically toward bringing about an ultimate state of things If teleological is
too strong a word to apply to them we might invent the word finious to express their tendency toward a final state
The other character of non-conservative action is that they are irreversible
152
controla a uacuteltima afim de que um resultado com certo caraacuteter geral seja obtido Ou dito de outra
maneira as causas finais determinam as causas eficientes de tal modo que elas proacuteprias (as
causas finais) se realizem As ideias diz o autor possuem a capacidade de criar as condiccedilotildees para
a sua realizaccedilatildeo Segundo o texto
Desse modo quer aceite ou natildeo a opiniatildeo vocecirc deve ver que eacute uma opiniatildeo
perfeitamente inteligiacutevel a de que as ideias natildeo satildeo meras criaccedilotildees desta ou
daquela mente mas pelo contraacuterio tecircm um poder de encontrar ou criar os seus
veiacuteculos e tendo-os encontrado conferem-lhes a capacidade de transformar a
face da terra (CP 1 sect 217 1902)211
Vemos assim que a causa final definida dessa forma estaacute em estreita relaccedilatildeo com a ideia
a que Peirce se referia por meio da expressatildeo ldquolei da menterdquo Ele afirma que a lei da mente
apenas torna um certo sentimento mais provaacutevel (likely) Em outras palavras podemos dizer que
a lei da mente inclina o curso futuro dos eventos a uma certa direccedilatildeo sem contudo determinaacute-lo
Como afirma Peirce ldquoA causa final natildeo determina de que modo particular algo se realizaraacute mas
unicamente que o resultado teraacute um certo caraacuteter geralrdquo (CP 1 sect 211 1902)212
Eacute a causa final
diz Peirce que atribui existecircncia a um objeto de uma classe Natildeo devemos todavia entender essa
atribuiccedilatildeo como algum tipo de produccedilatildeo miraculosa Eacute o proacuteprio autor que esclarece em qual
sentido preciso entende essa atribuiccedilatildeo ldquoO que eu entendo pela ideia conferindo existecircncia aos
membros individuais de uma classe eacute que ela lhes confere o poder de produzir resultados neste
mundo que ela lhes confere equivale dizer existecircncia orgacircnica ou em uma palavra vidardquo (CP
1 sect 220 1902)213
Para tornar mais evidente a ideia de que a causa final eacute uma espeacutecie de lei viva Peirce
211 Thus whether you accept the opinion or not you must see that it is a perfectly intelligible opinion that ideas are
not all mere creations of this or that mind but on the contrary have a power of finding or creating their vehicles and
having found them of conferring upon them the ability to transform the face of the earth 212
Final causation does not determine in what particular way it is to be brought about but only that the result shall
have a certain general character 213
What I mean by the ideas conferring existence upon the individual members of the class is that it confers upon
them the power of working out results in this world that it confers upon them that is to say organic existence or in
one word life
153
apresenta um exemplo que foca a distinccedilatildeo entre o homem e a mateacuteria que o compotildee Essa
distinccedilatildeo se cristaliza na frase ldquoum homem eacute uma onda mas natildeo um voacuterticerdquo (CP 1 sect 220
1902)214
Ainda que ele seja indissociaacutevel das partiacuteculas que o compotildee nem todas as
propriedades que lhe podem ser atribuiacutedas satildeo adequadas a elas Vejamos o exemplo fornecido
por Peirce
Tome um cadaacutever disseque-o mais perfeitamente do que jamais foi dissecado
Tome todo o sistema de veias sanguiacuteneas como noacutes as vemos desenhadas nos
livros Trate o sistema de nervos espinal e simpateacutetico o sistema alimentar com
os seus adjuvantes o sistema muscular o sistema oacutesseo da mesma maneira
Coloque-os todos em uma cabine de tal modo que de um certo ponto de vista
cada um aparece superposto ao outro em seu lugar proacuteprio Este seria um
espeacutecime singularmente instrutivo Mas chamaacute-lo de homem seria algo que
ningueacutem faria ou sonharia nem mesmo por um instante Todavia a melhor
definiccedilatildeo que poderia ser elaborada seria uma dissecaccedilatildeo similar Ela realmente
natildeo atuaria no mundo como o objeto definido faria Isto nos habilita a ver como
as coisas funcionam na medida em que nos mostra a causa eficiente A causa
final que caracteriza o definitum natildeo eacute abordada (CP 1 sect 220 1902)215
A partir deste exemplo Peirce aprofunda a distinccedilatildeo entre causa eficiente e causa final que
jaacute indicamos anteriormente A causa eficiente eacute aquela na qual as partes compotildeem o todo
enquanto na causa final percebemos o todo chamando por suas partes (cf CP 1 sect 220 1902)
Como indica Silveira ldquo() o que o cosmo evolucionaacuterio exige para se efetivar na organizaccedilatildeo
crescente que o define eacute a presenccedila de duas causas cujo modo de operar eacute reciprocamente
inverso causa final e causa eficienterdquo (SILVEIRA 1985 p 8) Assim sob a atuaccedilatildeo da lei de
214 A man is a wave but not a vortex
215 Take a corpse dissect it more perfectly than it ever was dissected Take out the whole system of blood vessels
entire as we see them figured in the books Treat the whole systems of spinal and sympathetic nerves the alimentary
canal with its adjuvants the muscular system the osseous system in the same way Hang these all in a cabinet so
that from a certain point of view each appears superposed over the others in its proper place That would be a
singularly instructive specimen But to call it a man would be what nobody would for an instant do or dream Now
the best definition that ever was framed is at best but a similar dissection It will not really work in the world as the
object defined will It will enable us to see how the thing works in so far as it shows the efficient causation The final
causation which is what characterizes the definitum it leaves out of account
154
aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um contiacutenuo crescimento da uniformidade a partir das
formas diferenciadas Como indica o autor
Mas as mudanccedilas divergentes agrave lei estatildeo agindo perpetuamente a fim de
aumentar a variedade do mundo e satildeo controladas por um tipo de seleccedilatildeo
natural ou de qualquer outro tipo de tal forma que o resultado geral deve ser
descrito como bdquoheterogeneidade organizada‟ ou melhor bdquovariedade racionalizada‟
(CP 6 sect 23 1891)216
A ideia ou causa final atuaria desse modo como um atrator para a realizaccedilatildeo de um
determinado curso de eventos inclinando agrave realizaccedilatildeo de acontecimentos que se processariam em
funccedilatildeo de um ser in futuro Esta atraccedilatildeo pode ser entendida como um criteacuterio para a seleccedilatildeo das
hipoacuteteses a serem testadas no caso de um processo de investigaccedilatildeo ou dos caminhos ou
estrateacutegias a serem adotados para a realizaccedilatildeo de qualquer objetivo praacutetico A sua atuaccedilatildeo se
manifesta natildeo soacute na eleiccedilatildeo dos modos de conduta racional e autocontrolada do homem mas estaacute
presente tambeacutem ainda que de forma degenerada na determinaccedilatildeo de qualquer evento natural
como por exemplo na determinaccedilatildeo do curso que a aacutegua da chuva percorre ao descer uma
montanha A maneira pela qual o futuro atua sobre o presente se distingue daquela efetuada pelo
passado O passado atua de maneira direta dualista enquanto o futuro necessita de um meio ou
uma maquinaria como diz o autor atraveacutes do qual possa exercer sua influecircncia Silveira
esclarece que ldquoenquanto esta uacuteltima [causa eficiente] atualiza-o pela forccedila a primeira [causa
final] muito mais genuiacutena faz derivar o proacuteprio cosmo de uma ideia antecipa o todo agraves partes
cabendo agrave causa eficiente a composiccedilatildeo efetiva ndash e de algum modo defectiva ndash do todo pela
accedilatildeo reciacuteproca das partesrdquo (SILVEIRA 1985 p 8)
Neste contexto cabem algumas palavras sobre a ceacutelebre imagem do xerife e do tribunal
216 But the chance divergences from law are perpetually acting to increase the variety of the world and are checked
by a sort of natural selection and otherwise (for the writer does not think the selective principle sufficient) so that the
general result may be described as organized heterogeneity or better rationalized variety
155
criada por Peirce para a explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre causalidade final e causalidade eficiente
ressaltando a sua complementaridade
A Lei sem a forccedila para se fazer cumprir seria como um tribunal sem um xerife e
todas as suas decisotildees seriam apenas ditos arrogantes (CP 1 sect 212 1902) () O
tribunal natildeo pode ser imaginado sem um xerife Causalidade final natildeo pode ser
imaginada sem causalidade eficiente mas nenhum pouquinho a menos naquele
exemplo satildeo os seus modos de accedilatildeo contraacuterios polares O xerife ainda teria seu
punho mesmo que natildeo houvesse nenhum tribunal mas uma causa eficiente
destacada de uma causa final na forma de uma lei nem sequer possuiria
eficiecircncia ela pode exercitar-se e algo pode seguir post hoc mas natildeo propter
hoc pois propter implica regularidade potencial (CP 1 213 1902)217
A implicaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo acima eacute a de que natildeo haacute em nenhum acircmbito dos processos
naturais qualquer ato de causaccedilatildeo que natildeo contenha ao mesmo tempo componentes causais
eficientes e finais Peirce eacute mais expliacutecito em outra passagem utilizando a mesma imagem do
xerife e do tribunal
A lei da natureza entregue a si mesma seria bastante semelhante a um tribunal
sem um xerife Um tribunal em tal situaccedilatildeo poderia ser capaz de induzir algum
cidadatildeo a atuar como um xerife mas ateacute que ela tenha se provido de um oficial
que ao contraacuterio de si natildeo poderia discursar com autoridade mas que poderia
estender o braccedilo forte sua lei poderia ser a perfeiccedilatildeo da razatildeo humana mas
permaneceria meros fogos de artifiacutecio brutum Fulmen (CP 5 sect 48 1903)218
217 Law without force to carry it out would be a court without a sheriff and all its dicta would be vaporings () The
court cannot be imagined without a sheriff Final causality cannot be imagined without efficient causality but no
whit the less on that account are their modes of action polar contraries The sheriff would still have his fist even if
there were no court but an efficient cause detached from a final cause in the form of a law would not even possess
efficiency it might exert itself and something might follow post hoc but not propter hoc for propter implies
potential regularity 218
A law of nature left to itself would be quite analogous to a court without a sheriff A court in that predicament
might probable be able to induce some citizen to act as a sheriff but until it had so provided with an officer who
unlike itself could not discourse authoritatively but who could put forth the strong arm its law might be the
perfection of human reason but remain mere fireworks brutum fulmen
156
A metaacutefora distingue claramente o tribunal e o xerife o primeiro toma decisotildees e o segundo
as executa O tribunal guia e direciona e o xerife age Como indica Potter
Juntos eles obtecircm a ordem e mantecircm a paz separados um eacute impotente e o outro
brutal Natildeo obstante nem o tribunal nem o xerife satildeo imaginaacuteveis a natildeo ser em
referecircncia de um com o outro e contudo eles e suas atividades permanecem
sempre claramente distintos Da mesma forma acontece com causalidade
eficiente e final (POTTER 1997 p114)
Para sermos mais precisos com a concepccedilatildeo peirceana em cada ato causal estatildeo envolvidos
trecircs elementos causa eficiente causa final e acaso Temos aqui portanto o modo de vir a ser de
tudo o que eacute em outras palavras este eacute o princiacutepio de individuaccedilatildeo Natildeo poderia dessa maneira
existir fenocircmenos puramente mecacircnicos no cosmo peirceano pois tal possibilidade entraria em
confronto com a proacutepria tese da continuidade criando uma dualidade que natildeo pode ser
consistentemente integrada ao sistema Peirce diz que
O sinequismo mesmo em suas formas menos robustas nunca poderaacute tolerar o
dualismo propriamente assim denominado Ele natildeo quer exterminar a
concepccedilatildeo de duplicidade nem pode qualquer um desses malucos que pregam
cruzadas filosoacuteficas contra esta ou aquela concepccedilatildeo fundamental encontrar o
menor conforto nesta doutrina Mas o dualismo em seu mais amplo e legiacutetimo
significado como a filosofia que realiza as suas anaacutelises com um machado
deixando como elementos finais pedaccedilos do ser sem qualquer relaccedilatildeo isto eacute o
mais hostil ao sinequismo Em particular o sinequista natildeo admitiraacute que os
fenocircmenos fiacutesicos e psiacutequicos sejam inteiramente distintos - seja como
pertencendo a diferentes categorias de substacircncia ou como lados inteiramente
separados de um escudo - mas insistiraacute que todos os fenocircmenos satildeo de um soacute
caraacuteter embora alguns sejam mais mentais e espontacircneos outros mais materiais
e regulares Ainda assim todos similarmente apresentam aquela mistura de
liberdade e restriccedilatildeo que permite que eles sejam ou melhor faz com que sejam
teleoloacutegicos ou propositados (CP 7 sect 570 1892)219
219 Synechism even in its less stalwart forms can never abide dualism properly so called It does not wish to
exterminate the conception of twoness nor can any of these philosophic cranks who preach crusades against this or
that fundamental conception find the slightest comfort in this doctrine But dualism in its broadest legitimate
meaning as the philosophy which performs its analyses with an axe leaving as the ultimate elements unrelated
chunks of being this is most hostile to synechism In particular the synechist will not admit that physical and
157
Como Peirce deixa claro em outra passagem eacute da mistura da restriccedilatildeo com a liberdade que
os fenocircmenos teleoloacutegicos surgem Ele diz que esta ldquomistura de liberdade e restriccedilotildeesrdquo acarreta
ldquoresultados teleoloacutegicos inevitaacuteveisrdquo (EP 1 p 236 1885)220
A combinaccedilatildeo dos trecircs fatores eacute a
chave para se compreender a consequecircncia que Peirce indica ser a caracteriacutestica mais presente
em todos os fenocircmenos naturais qual seja a variaccedilatildeo que se processa dentro de certos limites e
que eacute o germe que possibilita a criaccedilatildeo de tudo que eacute novo e original O autor indica em outro
texto
Eacute curioso como certos fatos nos escapam porque satildeo tatildeo penetrantes e
onipresentes exatamente como os antigos imaginavam que a muacutesica das esferas
natildeo era ouvida porque era ouvida o tempo todo Mas seraacute que algueacutem
gentilmente natildeo diraacute ao resto do auditoacuterio qual eacute o caraacuteter mais marcante e
intrusivo da natureza Eacute claro que me refiro agrave sua variedade (CP 1 sect 159
1897)221
A variaccedilatildeo fruto da atuaccedilatildeo do acaso como jaacute ficou claro no primeiro capiacutetulo desta tese
natildeo eacute uma ocorrecircncia rara que surge vez ou outra no curso dos eventos mas estaacute presente em
toda atualizaccedilatildeo que se processa deste modo em funccedilatildeo das imposiccedilotildees cegas do passado das
restriccedilotildees criadas pela lei e da manifestaccedilatildeo da livre espontaneidade Peirce eacute enfaacutetico ao
descrever a tessitura da realidade
Assim pela admissatildeo da espontaneidade pura ou vida como uma caracteriacutestica
do universo agindo sempre e em toda parte embora contida dentro dos estreitos
psychical phenomena are entirely distinct -- whether as belonging to different categories of substance or as entirely
separate sides of one shield -- but will insist that all phenomena are of one character though some are more mental
and spontaneous others more material and regular Still all alike present that mixture of freedom and constraint
which allows them to be nay makes them to be teleological or purposive 220
Mixture of freedom and constraint () inevitable teleological results 221
It is curious how certain facts escape us because they are so pervading and ubiquitous just as the ancients
imagined the music of the spheres was not heard because it was heard all the time But will not somebody kindly tell
the rest of the audience what is the most marked and obtrusive character of nature Of course I mean the variety of
nature
158
limites da lei produzindo continuamente divergecircncias infinitesimais da lei e as
grandes com infinita infrequecircncia dou conta de toda a variedade e diversidade
do universo no uacutenico sentido em que o realmente sui generis e o novo pode ser
compreendido A visatildeo comum tem que admitir a inesgotaacutevel e incontaacutevel
variedade do mundo tem que admitir que a sua lei mecacircnica natildeo pode
minimamente dar conta disso que a variedade pode brotar apenas da
espontaneidade e ainda nega sem qualquer evidecircncia ou razatildeo a existecircncia
desta espontaneidade ou entatildeo a remete de volta para o iniacutecio do tempo e supotildee-
na morta desde entatildeo A loacutegica superior do meu ponto de vista natildeo me parece
facilmente refutada (CP 6 sect 59 1892)222
Peirce refere-se aos infinitesimais nesta passagem como vimos no capiacutetulo sobre a
continuidade Natildeo eacute possiacutevel compreender adequadamente a noccedilatildeo de continuum sem
introduzirmos a noccedilatildeo de infinitesimal nessas duas noccedilotildees estaacute implicada a relaccedilatildeo entre a lei e o
acaso entre a regularidade e a espontaneidade Como jaacute mencionamos acima eacute dessa relaccedilatildeo que
a causa final surge Em um texto de 1898 Peirce traccedila a relaccedilatildeo aqui indicada
O que eacute possiacutevel eacute na mesma medida geral e como geral deixa de ser
individual Assim lembrando que a palavra potencial significa indeterminado
contudo ainda capaz de determinaccedilatildeo em qualquer caso especial pode haver um
agregado potencial de todas as possibilidades que satildeo consistentes com certas
condiccedilotildees gerais e isso pode ser tal que dado qualquer coleccedilatildeo de indiviacuteduos
distintos seja qual for a partir daquele agregado potencial pode ser realizado
uma coleccedilatildeo mais numerosa do que a coleccedilatildeo dada Assim o potencial agregado
eacute com a mais estrita exatidatildeo maior em magnitude do que qualquer magnitude
possiacutevel de indiviacuteduos Mas sendo apenas um agregado potencial ele natildeo
conteacutem quaisquer indiviacuteduos Ele conteacutem apenas as condiccedilotildees gerais que
permitem a determinaccedilatildeo dos indiviacuteduos (CP 6 sect 185 1898)223
222 By thus admitting pure spontaneity or life as a character of the universe acting always and everywhere though
restrained within narrow bounds by law producing infinitesimal departures from law continually and great ones
with infinite infrequency I account for all the variety and diversity of the universe in the only sense in which the
really sui generis and new can be said to be accounted for The ordinary view has to admit the inexhaustible
multitudinous variety of the world has to admit that its mechanical law cannot account for this in the least that
variety can spring only from spontaneity and yet denies without any evidence or reason the existence of this
spontaneity or else shoves it back to the beginning of time and supposes it dead ever since The superior logic of my
view appears to me not easily controverted 223
That which is possible is in so far general and as general it ceases to be individual Hence remembering that the
word potential means indeterminate yet capable of determination in any special case there may be a potential
159
A causalidade teleoloacutegica na concepccedilatildeo peirceana possui uma caracteriacutestica de
criatividade que a distingue de outras concepccedilotildees em particular da de Aristoacuteteles como veremos
abaixo A criatividade do processo de qualquer crescimento seja ela o de uma ideia na mente de
um investigador ou do proacuteprio cosmo eacute descrito perfeitamente pelo termo evoluccedilatildeo que como jaacute
foi indicado natildeo eacute nada mais do que um princiacutepio loacutegico Faremos agora uma retomada de
algumas das caracteriacutesticas mais marcantes do processo evolutivo descrito por Peirce e nos
concentraremos naquele denominado de agapasmo por se tratar da forma original de evoluccedilatildeo
3 CAUSA FINAL E EVOLUCcedilAtildeO ndash AacuteGAPE OU O AMOR CRIATIVO
Para melhor ilustrar a presenccedila da causa final no cosmo podemos lembrar que a sua
atuaccedilatildeo natildeo eacute outra coisa que a evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902) Nota-se na formulaccedilatildeo
peirceana um alargamento das fronteiras tradicionalmente consideradas como limitantes da accedilatildeo
da evoluccedilatildeo Natildeo soacute o reino orgacircnico cresce com a evoluccedilatildeo mas todo o cosmo assim procede
Peirce procuraraacute montar um quadro teoacuterico no qual a evoluccedilatildeo eacute o aspecto marcante de todos os
acontecimentos nos mais variados campos
A evoluccedilatildeo pode ser aplicada ateacute mesmo agrave proacutepria causa final no texto A lei da mente de
1892 Peirce caracteriza a teleologia como tambeacutem submetida a um processo de desenvolvimento
(developmental) indicando que no processo de atuaccedilatildeo da causa final o tipo geral de resultado
pode sofrer alteraccedilotildees em funccedilatildeo das variaccedilotildees surgidas na experiecircncia como indica Hausman
aggregate of all the possibilities that are consistent with certain general conditions and this may be such that given
any collection of distinct individuals whatsoever out of that potential aggregate there may be actualized a more
multitudinous collection than the given collection Thus the potential aggregate is with the strictest exactitude
greater in multitude than any possible multitude of individuals But being a potential aggregate only it does not
contain any individuals at all It only contains general conditions which permit the determination of individuals
160
esta eacute ldquoA visatildeo de que existem propoacutesitos que podem evoluir espontaneamenterdquo (HAUSMAN
1993 p 175) Tomando como exemplo de evoluccedilatildeo a constituiccedilatildeo da personalidade de um
indiviacuteduo Peirce afirma que
() ela implica uma harmonia teleoloacutegica nas ideias e no caso da personalidade
esta teleologia eacute mais do que uma mera procura propositada de um fim preacute-
determinado eacute uma teleologia em desenvolvimento Este eacute o caraacuteter pessoal A
ideia geral viva e consciente agora jaacute eacute determinante de atos no futuro em uma
medida que natildeo eacute agora consciente (CP 6 sect 156 1892)224
Natildeo obstante o propoacutesito natildeo pode ser estaacutetico pois o desenvolvimento em conformidade
com um propoacutesito preacute-determinado seria contraacuterio agrave proacutepria noccedilatildeo de processo criativo que
caracteriza segundo Peirce a atuaccedilatildeo da causalidade final Caso o propoacutesito se mantivesse
inalterado natildeo teriacuteamos nada aleacutem do que um desenvolvimento mecacircnico o que eliminaria a
proacutepria possibilidade de constituiccedilatildeo da personalidade como algo em desenvolvimento em
crescimento e vivo Embora Peirce na passagem acima esteja se referindo ao desenvolvimento
da personalidade humana eacute possiacutevel estender esta caracterizaccedilatildeo para todos os fenocircmenos
teleoloacutegicos variando sua atuaccedilatildeo exclusivamente em funccedilatildeo dos graus de liberdade que lhes
sejam inerentes Quanto mais livre ou seja quanto mais autocontrolado for um sistema mais
variaccedilatildeo pode existir no desenvolvimento de uma certa finalidade mas isso natildeo exclui a
possibilidade que mesmo no acircmbito da cosmologia as causas finais isto eacute as leis gerais de
desenvolvimento possam ser alteradas pela accedilatildeo do acaso Como indica Short ldquoA causaccedilatildeo final
desse modo resulta natildeo na uniformidade morta de um uacutenico plano mas na heterogeneidade
imprevisiacutevel de empresas personalidades e espeacutecies que preenchem o nosso mundordquo (SHORT
1994 p 406)
224 () it implies a teleological harmony in ideas and in the case of personality this teleology is more than a mere
purposive pursuit of a predeterminate end it is a developmental teleology This is personal character A general idea
living and conscious now it is already determinative of acts in the future to an extent to which it is not now
conscious
161
Enquanto a variaccedilatildeo fruto do acaso absoluto eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria para a evoluccedilatildeo
como jaacute vimos a proacutepria evoluccedilatildeo parece pressupor um outro agente como determinante do seu
processo de desenvolvimento A tal agente Peirce daacute o nome de Aacutegape Consciente das
limitaccedilotildees do tiquismo extraiacutedo da teoria de Darwin o filoacutesofo procura desenvolver uma noccedilatildeo
de evoluccedilatildeo mais geral tendo por base a evoluccedilatildeo do tipo lamarckiano Como aponta Hausman
O agente da evoluccedilatildeo distinto do agente do desvio da diversidade e da
complexidade sozinha tem uma funccedilatildeo teleoloacutegica ndash natildeo para uma teleologia do
tipo tradicional do tempo de Peirce mas uma teleologia em desenvolvimento
uma teleologia de acordo com a qual novos propoacutesitos fins podem emergir
(HAUSMAN 1998 p 630)
A evoluccedilatildeo do cosmo entretanto diz Peirce se daacute pela antecipaccedilatildeo da ideia a ser realizada
por meio de uma adivinhaccedilatildeo que soacute eacute possiacutevel como resultante da continuidade entre as coisas
O universo antecipa abdutivamente por meio da causa final a ideia a ser realizada Nas palavras
de Peirce ldquoA adoccedilatildeo de certas tendecircncias mentais () por uma atraccedilatildeo imediata da ideia em si
cuja natureza eacute adivinhada antes que a mente a possua pelo poder de simpatia ou seja pela
virtude da continuidade da menterdquo (CP 6 307 1893)225
Eacute o amor afirma Peirce o grande agente evolucionaacuterio do universo fato reconhecido desde
a mais tenra idade da filosofia Eacute aacutegape que conduz o processo de desenvolvimento do universo
possibilitando que em um longo prazo ele se torne mais e mais razoaacutevel fazendo com que
aquilo que Peirce chama de razoabilidade concreta possa crescer Quanto ao seu modo de atuar
Peirce afirma que ldquoO movimento do amor eacute circular em um e mesmo impulso projeta criaccedilotildees
em independecircncia e as reuacutene em harmonia Parece complicado quando dito desta maneira mas eacute
completamente sintetizado na foacutermula simples que denominamos a Regra Douradardquo (CP 6 sect
225 The adoption of certain mental tendencies () by an immediate attraction of the idea itself whose nature is
divined before the mind possesses it by the power of sympathy that is by the virtue of the continuity of the mind
162
288 1893)226
Sua funccedilatildeo eacute a de tornar harmoniosos os frutos das criaccedilotildees que constituem o
universo Poeticamente Peirce afirma que aacutegape eacute capaz de ateacute mesmo ldquo() reconhecer os
germes de amor no oacutedio gradualmente trazecirc-los para a vida e tornaacute-los amaacuteveisrdquo (CP 6 sect 289
1893)227
Do ponto de vista mais geral como aponta Silveira (2003) levando-se em conta a
hierarquia estabelecida por Peirce entre as ciecircncias na qual a loacutegica tem por base a eacutetica que por
sua vez tem por base a esteacutetica a uacutenica ideia que pode atuar como forccedila atratora do desenrolar
dos acontecimentos eacute a proacutepria ideia de razoabilidade A razoabilidade eacute o uacutenico bem admiraacutevel
por si mesmo
O proacuteprio ser do geral da Razatildeo consiste em seu governo sobre eventos
individuais Assim entatildeo a essecircncia da razatildeo eacute tal que nunca seu ser pode ter
sido completamente aperfeiccediloado Ele sempre deve estar em um estado de
incipiecircncia de crescimento Eacute como o caraacuteter de um homem que consiste nas
ideias que ele vai conceber e nos esforccedilos que faraacute e que soacute se desenvolve na
medida em que as ocasiotildees realmente surgem No entanto em toda a sua vida
nenhum filho de Adatildeo jamais manifestou plenamente o que havia em si Assim
entatildeo o desenvolvimento da razatildeo requer como uma parte de si a ocorrecircncia de
mais eventos individuais do que jamais pode ocorrer Requer tambeacutem todas as
cores de todas as qualidades de sentimento incluindo o prazer em seu devido
lugar entre os demais Este desenvolvimento da razatildeo consiste vocecirc observaraacute
em encarnaccedilatildeo isto eacute em manifestaccedilatildeo A criaccedilatildeo do universo que natildeo teve
lugar durante uma certa ocupada semana no ano 4004 AC mas que estaacute
acontecendo hoje e nunca estaraacute terminada eacute o verdadeiro desenvolvimento da
Razatildeo Natildeo vejo como se possa ter um ideal mais satisfatoacuterio do admiraacutevel do
que o desenvolvimento da razatildeo assim entendida A uacutenica coisa cuja
admirabilidade natildeo eacute devida a um motivo ulterior eacute a proacutepria razatildeo
compreendida em toda sua plenitude tanto quanto podemos compreendecirc-la Sob
esta concepccedilatildeo o ideal de conduta seraacute o de executar a nossa pequena funccedilatildeo na
operaccedilatildeo da criaccedilatildeo dando uma ajuda para tornar o mundo mais razoaacutevel
sempre que como diz a giacuteria cabe a noacutes fazecirc-lo Em loacutegica pode-se observar
que o conhecimento eacute a razoabilidade e o ideal do raciociacutenio seraacute seguir os
meacutetodos como se deve para desenvolver o conhecimento mais rapidamente (CP
1 sect 615 1903)228
226 The movement of love is circular at the one and the same impulse projecting creations into independency and
drawing them into harmony This seems complicated when stated so but it is fully summed up in the simple formula
we call the Golden rule 227
() recognizing germs of loveliness in the hateful gradually warms it in to life and make it lovely 228
The very being of the General of Reason consists in its governing individual events So then the essence of
Reason is such that its being never can have been completely perfected It always must be in a state of incipiency of
growth It is like the character of a man which consists in the ideas that he will conceive and in the efforts that he will
make and which only develops as the occasions actually arise Yet in all his life long no son of Adam has ever fully
163
Podemos nos utilizar de um esquema proposto por Potter (1997) para sintetizarmos o modo
de desenvolvimento ou crescimento influenciado pela atuaccedilatildeo da evoluccedilatildeo agapaacutestica
O desenvolvimento Agapaacutestico (terceiridade) novas ideias satildeo adotadas nem
descuidadamente nem cegamente mas por uma atraccedilatildeo imediata pela ideia em
si adivinhada antes mesmo de a mente possuir a ideia conscientemente pelo
poder da simpatia ou afinidade (continuidade da mente) tanto
a) pela comunidade que possui a ideia na personalidade coletiva e a passa aos
indiviacuteduos que de outra forma satildeo incapazes de alcanccedilaacute-la ou
b) Por um indiviacuteduo que descobre a ideia por si mesmo mas soacute porque estaacute em
simpatia com a comunidade e essa simpatia permitiu que ele experimentasse a
atratividade da ideia ou
c) Por um indiviacuteduo que descobre a ideia por si mesmo independentemente de
seus afetos humanos simplesmente em virtude da atratividade da ideia em si
(POTTER 1997 p 187)
4 A ORIGINALIDADE DA CAUSA FINAL PEIRCEANA
Uma vez delineado o papel da causalidade final na obra peirceana resta-nos enfatizar suas
principais caracteriacutesticas e apontar em que consiste a sua originalidade Para tanto indicaremos
em que medida sua concepccedilatildeo se distingue daquela proposta por Aristoacuteteles Peirce como jaacute foi
manifested what there was in him So then the development of Reason requires as a part of it the occurrence of
more individual events than ever can occur It requires too all the coloring of all qualities of feeling including
pleasure in its proper place among the rest This development of Reason consists you will observe in embodiment
that is in manifestation The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in the
year 4004 BC but is going on today and never will be done is this very development of Reason I do not see how
one can have a more satisfying ideal of the admirable than the development of Reason so understood The one thing
whose admirableness is not due to an ulterior reason is Reason itself comprehended in all its fullness so far as we
can comprehend it Under this conception the ideal of conduct will be to execute our little function in the operation
of the creation by giving a hand toward rendering the world more reasonable whenever as the slang is it is up to
us to do so In logic it will be observed that knowledge is reasonableness and the ideal of reasoning will be to
follow such methods as must develop knowledge the most speedily
164
dito considerava-se um seguidor da noccedilatildeo aristoteacutelica de causa final juiacutezo que natildeo nos parece
ser totalmente preciso Indicaremos a seguir para efeito de comparaccedilatildeo alguns aspectos
presentes em ambas as noccedilotildees
Natildeo eacute pretensatildeo deste trabalho realizar um estudo que compreenda o todo da noccedilatildeo de
causalidade final presente na obra aristoteacutelica A quantidade de estudos sobre esse toacutepico eacute
bastante grande de tal maneira que propor uma interpretaccedilatildeo da noccedilatildeo sem o estabelecimento de
um diaacutelogo com essa produccedilatildeo seria visto como suspeito Todavia dada a proximidade entre as
ideias sobre causalidade final dos dois filoacutesofos reconhecida por Peirce e pelos estudiosos de sua
obra cabe aqui apenas a indicaccedilatildeo daqueles aspectos que satildeo semelhantes em ambas as
concepccedilotildees e aqueles que diferenciam a concepccedilatildeo peirceana e expressam sua originalidade
Para contrastar com a concepccedilatildeo peirceana veremos o que Aristoacuteteles diz no segundo livro
da Fiacutesica texto claacutessico para a compreensatildeo da noccedilatildeo de causa final no autor Para o que nos
interessa neste momento podemos perceber que Aristoacuteteles busca responder agraves seguintes
questotildees que podem ser colocadas na forma de um dilema ldquoa natureza procede apenas por
necessidade e natildeo com vista de finsrdquo ou ldquoa natureza aleacutem de proceder por necessidade opera
tambeacutem teleologicamenterdquo como indica Angioni (2006 p 37) Tendo estabelecido que as coisas
acontecem por necessidade na natureza mas tambeacutem motivadas pelo acaso o que acaba por
produzir acontecimentos que satildeo frutos natildeo da necessidade mas do encontro de cadeias causais
necessaacuterias independentes Cabe perguntar qual a causa do encontro dessas cadeias
independentes de eventos Angioni indica que Aristoacuteteles reconhece duas possibilidades ou as
coisas se datildeo por concomitacircncia isto eacute ldquoas seacuteries causais se agrupam bdquoespontaneamente‟ () sem
que nenhuma causa anterior explique por que tal conjunccedilatildeo de seacuteries viria a ser necessaacuteriardquo
(2006 p 42) e acrescenta ldquoou tais seacuteries compotildeem-se entre si sob um princiacutepio anterior que
exige a composiccedilatildeo das mesmas sob certa ordemrdquo (ANGIONI 2006 p 46)
O exemplo da parede de pedra pode ajudar na compreensatildeo da relaccedilatildeo entre aquilo que
acontece por natureza isto eacute necessariamente e aquilo que ocorre em vista de um fim Na
parede as pedras e alicerces naturalmente pesados tecircm a tendecircncia a se deslocar para baixo e
165
constituem a base e acima deles se encontram as estruturas de madeira que sendo mais leves tecircm
a tendecircncia de se deslocarem para o alto (com relaccedilatildeo agraves pedras) A parede seraacute necessariamente
construiacuteda com pedras que teratildeo a tendecircncia de se deslocar para baixo As caracteriacutesticas
inerentes aos materiais como a pedra e a funccedilatildeo a ser desempenhada pela parede se combinam de
modo que podemos dizer que haacute uma necessidade que ela seja desse modo Aristoacuteteles diz que
ldquoessas coisas natildeo se geram sem os itens que possuem uma natureza necessaacuteria mas natildeo satildeo
devido a esses itens a natildeo ser como mateacuteria mas satildeo em vista de algordquo (ARISTOacuteTELES 2002
200a 7-10) Haacute portanto um plano de desenvolvimento conduzido pela necessidade de
acabamento que natildeo pode se dar a natildeo ser com a junccedilatildeo com aquilo que eacute necessaacuterio As quatro
causas atuariam concomitantemente sendo a mais primordial a causa final ou acabamento
Angioni indica que para Aristoacuteteles ldquoa causa final () deve receber mais atenccedilatildeo porque ela eacute
bdquocausa da mateacuteria‟ natildeo o inverso ()rdquo (ANGIONI 2006 P 54)
A partir da diferenciaccedilatildeo das causas em quatro tipos distintos proposta por Aristoacuteteles
(Fiacutesica 194b15-195b30) Peirce elabora uma aplicaccedilatildeo das noccedilotildees agraves suas proacuteprias ideias e
afirma
A causa interna de individuaccedilatildeo eacute chamada a causa material Assim partes
integrantes de um assunto ou de um fato formam sua mateacuteria ou causa
material A causa externa de individuaccedilatildeo eacute chamada de eficiente ou a causa
eficiente e o causatum eacute chamado de efeito A causa interna de definiccedilatildeo eacute
chamada causa formal ou forma Todos estes fatos que constituem a definiccedilatildeo
de um assunto ou fato compotildeem sua forma A causa externa de definiccedilatildeo eacute
chamada de causa final ou fim Espera-se que estas declaraccedilotildees seratildeo
consideradas mais certeiras do que aquelas de Aristoacuteteles e os escolaacutesticos como
o alvo que eles miravam (EP 2 315-6 1904)229
229 The individuating internal cause is called the material cause Thus the integrant parts of a subject or fact form its
matter or material cause The individuating external cause is called the efficient or efficient cause and the causatum
is called the effect The defining internal cause is called the formal cause or form All these facts which constitute
the definition of a subject or fact make up its form The defining external cause is called the final cause or end It is
hoped that these statements will be found to hit a little more squarely than did those of Aristotle and the scholastics
the bull‟s eye at which they aimed (EP 2 p 315-6 1904)
166
Assim como a de Aristoacuteteles a noccedilatildeo de causa final peirceana eacute explicitamente
antropomoacuterfica Como jaacute indicamos anteriormente Peirce reconhecia esse aspecto de sua teoria e
o endossava indicando que natildeo poderia ser de outra forma A principal justificativa para esta
forma de exposiccedilatildeo reside na ideia de que tudo o que pode ser conhecido tudo que eacute
compreensiacutevel para o homem deve ter a sua marca Isso no entanto natildeo significa que a accedilatildeo
propositada a forma de causalidade final mais familiar aos homens seja sua uacutenica expressatildeo A
causalidade final eacute como vimos na obra de Peirce ubiacutequa
Toda causalidade final eacute um tipo ideal para ambos os filoacutesofos aquilo que exerce o poder
causal do tipo final natildeo pode ser algo atual ou individual mas antes eacute a expressatildeo de certas
potencialidades jaacute delineadas no presente Natildeo existe qualquer evento real futuro que exerccedila
algum tipo de atraccedilatildeo sobre o desenrolar dos eventos conduzindo-os a um predeterminado fim
Causalidade final e causalidade eficiente natildeo podem existir de maneira autocircnoma a
consciecircncia desta complementaridade eacute ainda mais viva em Peirce Como vimos todas as
instacircncias de atuaccedilatildeo causal recebem a influecircncia de trecircs diferentes forccedilas causais da causa
eficiente do acaso e da causa final
Por outro lado para Aristoacuteteles eacute como indica Short (1981b p 371) ldquoUm tipo geral eacute uma
causa final por causa do bem que caracterizaccedilatildeo qualquer uma de suas atualizaccedilotildeesrdquo Haacute na obra
Aristoteacutelica uma relaccedilatildeo estreita entre causa final e a realizaccedilatildeo do bem supremo de cada ser ou
objeto Esse aspecto natildeo se encontra presente nas consideraccedilotildees de Peirce a causalidade final natildeo
atua em funccedilatildeo da atualizaccedilatildeo de algum elemento substancial Embora natildeo possa existir qualquer
processo do qual ela esteja ausente isso natildeo implica para Peirce que ela tenha que estar definida
com algum grau de precisatildeo desde o princiacutepio Haacute reconhece o filoacutesofo a possibilidade de que
no decorrer do processo a proacutepria causa final se altere e gere novos resultados em funccedilatildeo de
novos elementos ou situaccedilotildees que podem ter sido colocados em cena pela atuaccedilatildeo do acaso
Como vimos a atuaccedilatildeo do acaso eacute uma condiccedilatildeo para a existecircncia de causas finais na concepccedilatildeo
peirceana e nisto elas se distinguem do conceito aristoteacutelico pois para o estagirita a atuaccedilatildeo do
167
acaso implica na ausecircncia de causa final Pode-se acrescentar a essas diferenccedilas a ideia peirceana
de que aacutegape ndash ou amor criativo ndash eacute a mais pura expressatildeo da causalidade final
5 CAUSA FINAL E CLASSIFICACcedilAtildeO NATURAL
O esforccedilo para tornar a causalidade final compreensiacutevel e a defesa do seu lugar nos eventos
do cosmo respondem a uma necessidade bastante presente nos vaacuterios periacuteodos da produccedilatildeo
peirceana o de tornar a ciecircncia um empreendimento possiacutevel e natildeo uma mera ficccedilatildeo arbitraacuteria O
problema da relaccedilatildeo do homem com o mundo tambeacutem denominado de problema da existecircncia do
mundo exterior eacute o objeto da inquietaccedilatildeo de Peirce Esse aspecto da justificaccedilatildeo da causalidade
final ficaraacute mais claro ao tratarmos das ideias de Peirce quanto agrave classificaccedilatildeo natural (cf
HULSWIT 1997)
Hawkins (2007) afirma que o tratamento que Peirce dispensa agrave classificaccedilatildeo natural no
texto On science and natural classes de 1902 pode parecer estranho pois ldquoEm vez de comeccedilar
com os elementos baacutesicos do mundo fiacutesico tratados como se o caraacuteter que ele nos parece ter seja
de fato o seu caraacuteter independente de nossa observaccedilatildeo (em si mesmos) Peirce comeccedila com a
questatildeo de como o mundo da cientista se revela para elardquo (HAWKINS 2007 p 530) E a
resposta a partir da qual Peirce desenvolve seu texto eacute a de que o mundo se revela natildeo como um
caos desordenado mas antes se apresenta pleno de regularidades que permite ao cientista dividi-
lo em grupos distintos
Eacute a causa final o princiacutepio que permite ao cientista agrupar os diferentes aspectos do
mundo Em particular ldquo() o desejo [como vimos a mais familiar forma de causa final] cria
classes e classes extremamente amplasrdquo (EP 2 p 118 1902)230
Ao tratar da classificaccedilatildeo
natural das ciecircncias Peirce afirma que se queremos conhecer em quais classes as ciecircncias estatildeo
230 () desire creates classes and extremely broad classes
168
naturalmente divididas basta consultar uma lista dos perioacutedicos existentes O que cria as classes
eacute o desejo de conhecer dos cientistas Esse desejo contudo natildeo eacute o produtor de uma lista
arbitraacuteria o mundo impotildee limites Embora algueacutem possa querer inventar uma ciecircncia que ainda
natildeo exista ela soacute sobreviveraacute se espelhar alguns aspectos do mundo que lhe resiste O mundo eacute
definido por Peirce da seguinte maneira
() o mundo externo (isto eacute o mundo que eacute comparativamente externo) natildeo
consiste apenas de objetos existentes nem apenas destes e de suas reaccedilotildees mas
ao contraacuterio seus mais importantes reais tecircm o modo de ser daquilo que o
nominalista chama de meras palavras isto eacute tipos gerais e would-bes O
nominalista estaacute certo em dizer que eles satildeo substancialmente da natureza das
palavras mas o seu bdquomero‟ revela uma completa incompreensatildeo do que o nosso
mundo cotidiano consiste (CP 8 sect 191 1904)231
Para finalizar Peirce indica que as causas finais possuem trecircs caracteriacutesticas elas satildeo
sempre gerais sempre vagas e sempre possuem certa amplitude (longitude) Satildeo gerais como jaacute
vimos porque aquilo que atrai os acontecimentos eacute sempre de certo tipo fruto da mediaccedilatildeo Satildeo
vagas porque nem o modo de sua realizaccedilatildeo nem o resultado estatildeo determinados de antematildeo
Finalmente satildeo amplas porque ainda quando natildeo realizadas plenamente qualquer outra
possibilidade que dela se aproxima jaacute eacute aceitaacutevel
231 () the external world (that is the world that is comparatively external) does not consist of existent objects
merely nor merely of these and their reactions but on the contrary its most important reals have the mode of being
of what the nominalist calls mere words that is general types and would-bes The nominalist is right in saying that
they are substantially of the nature of words but his mere reveals a complete misunderstanding of what our
everyday world consists of
169
CONCLUSAtildeO
() the only possible justification for a hypothesis is that it renders the facts
comprehensible (CP 8 sect 168 1903)
170
A descriccedilatildeo da cosmogonia elaborada por Peirce como uma hipoacutetese que permite ampliar o
horizonte da inteligibilidade humana e garantir a possibilidade da elaboraccedilatildeo de teorias
cientiacuteficas exitosas forneceu os elementos iniciais para a compreensatildeo de sua filosofia Criada
sob a maacutexima loacutegica mais fundamental sintetizada na expressatildeo ldquonatildeo bloquear o caminho da
investigaccedilatildeordquo a cosmogonia peirceana identifica e nomeia as trecircs categorias metafiacutesicas
formadoras do seu sistema ndash acaso existente e lei ndash e a maneira como se combinam para
constituir a realidade revelada pela experiecircncia Tais categorias satildeo os correlatos hipoteacuteticos das
categorias faneroscoacutepicas232
reveladas pela experiecircncia ndash primeiridade secundidade e
terceiridade Uma boa hipoacutetese explicativa que torna o mundo da experiecircncia ndash tal como o
exprerienciamos ndash compreensiacutevel agrave nossa inteligecircncia eacute a de pensaacute-lo como originaacuterio de um
processo evolutivo a partir do acaso absoluto e cujo desenvolvimento se daacute sob a influecircncia da
lei da mente e da causalidade final
Uma consequecircncia dessa hipoacutetese eacute a de que os fenocircmenos satildeo sem exceccedilatildeo o resultado
de um processo contiacutenuo de aumento da complexidade e da regularidade do mundo Peirce indica
que sua filosofia eacute construiacuteda sobre a hipoacutetese de que todos os fenocircmenos satildeo partes de um
continuum Agrave apresentaccedilatildeo das consequecircncias desta hipoacutetese e a teoria assim constituiacuteda o
filoacutesofo daacute o nome de sinequismo e indica que ela sintetiza sua filosofia em uma uacutenica palavra
(cf CP 4 sect 584 1906) A adoccedilatildeo do sinequismo como de qualquer hipoacutetese tem por motivaccedilatildeo
a esperanccedila de tornar os fenocircmenos inteligiacuteveis sendo esta diz Peirce sua principal justificaccedilatildeo
A ideia de continuidade desenvolvida por Peirce eacute original ainda que elaborada a partir da
reflexatildeo das definiccedilotildees presentes nas obras de Aristoacuteteles e Kant e faz uso da noccedilatildeo de
infinitesimal como seu constituinte fundamental O continuum pensado por Peirce natildeo possui
pontos atuais mas apenas pontos virtuais denominados de infinitesimais a partir dos quais
continuidades podem ser desenvolvidas infinitamente O modelo principal do continuum eacute o
tempo e o espaccedilo
232 Peirce por vezes denomina a ciecircncia do que nos aparece como faneroscopia e em outras de fenomenologia
171
O modo de desenvolvimento ou crescimento do continuum recebe o nome de evoluccedilatildeo O
processo evolutivo faz surgir um universo que apresenta caracteriacutesticas de espontaneidade e
liberdade manifestas em sua grande variedade e novidade mas tambeacutem regularidade expressa
por suas leis Como vimos essas duas caracteriacutesticas cuja origem encontra-se no acaso e na lei
da mente ou lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos satildeo necessaacuterias para que se possa construir teorias que
natildeo postulem o incognosciacutevel nem produzam uma imagem congelada do universo como aquela
oferecida pelo mecanicismo De um lado a diversidade e a novidade satildeo constatadas tanto por
meio de certas ciecircncias como a biologia e a paleontologia mas tambeacutem pela atitude de qualquer
pessoa que olhe para o mundo com atenccedilatildeo e sem preconceitos A diversidade diz Peirce eacute o
aspecto mais marcante que a experiecircncia nos revela Do outro lado as regularidades tambeacutem se
impotildeem na observaccedilatildeo principalmente para aqueles que desenvolveram grande poder de
abstraccedilatildeo e aprenderam a reconhecer nos mais variados fenocircmenos certos traccedilos que se repetem
Contudo ainda que as regularidades estejam atuando continuamente e sob o efeito da lei da
mente tornando-se mais e mais regular nunca atingem o status de absolutas A atualizaccedilatildeo de
qualquer lei eacute o momento da interferecircncia do acaso que pode ser imperceptiacutevel em certos
fenocircmenos e marcante em outros
A possibilidade de pensarmos um universo que se desenvolve sob a atuaccedilatildeo de princiacutepios
incognosciacuteveis eacute um caminho vedado pela filosofia peirceana Na medida em que a filosofia eacute
uma atividade intelectual que procura tornar a experiecircncia compreensiacutevel a postulaccedilatildeo do
incognosciacutevel eacute a negaccedilatildeo do proacuteprio empreendimento racional Se o universo entretanto fosse
tal como descrito pelo mecanicismo ou bdquonecessitarismo‟ segundo o termo empregado pelo autor
isto eacute completamente determinado por leis absolutas natildeo poderia apresentar as caracteriacutesticas
reveladas pela experiecircncia
Em acreacutescimo agrave tarefa de tornar o mundo em todos os seus detalhes inteligiacutevel pode-se
verificar no surgimento de teorias cientiacuteficas que tratam especificamente de fenocircmenos
irreversiacuteveis uma outra fonte de motivaccedilatildeo para a constituiccedilatildeo de uma filosofia evolutiva que
tem por base uma matriz ontoloacutegica indeterminista como vimos no terceiro capiacutetulo desta tese
172
Uma das tarefas a que nos propomos realizar neste trabalho foi a de compreender o lugar da
cosmogonia proposta por Peirce no interior de seu sistema filosoacutefico A hipoacutetese que motivou
essa investigaccedilatildeo foi a de que sua cosmogonia desempenha um papel importante na validaccedilatildeo do
empreendimento cientiacutefico A constituiccedilatildeo de uma ciecircncia adequada agrave determinaccedilatildeo de uma
conduta racional para o futuro pareceu-nos desde o iniacutecio o alvo que Peirce mirava Vimos no
capiacutetulo trecircs sobre a evoluccedilatildeo de que maneira essa hipoacutetese serve ao propoacutesito de impedir o
regresso infinito das explicaccedilotildees substituindo uma perspectiva (que poderiacuteamos denominar de
bdquofundacionista‟) por outra mais adequada construiacuteda em moldes geneacuteticos
Outro grande problema sobre o qual Peirce se debruccedilou durante muitos anos de sua
investigaccedilatildeo foi o de justificar a esperanccedila de que as hipoacuteteses poderiam de alguma maneira ser
refinadas a ponto de proporem explicaccedilotildees aceitaacuteveis para os fenocircmenos da experiecircncia O
primeiro candidato proposto como capaz de desempenhar esta funccedilatildeo foi a induccedilatildeo que no
entanto apoacutes uma vigorosa anaacutelise mostrou-se muito eficaz quanto agrave tarefa de eliminar hipoacuteteses
equivocadas mas completamente ineficaz quanto agrave tarefa de nos deixar mais proacuteximos de uma
explicaccedilatildeo verdadeira do mundo da experiecircncia A abduccedilatildeo surge entatildeo como a uacutenica esperanccedila
para a realizaccedilatildeo da ciecircncia Se a ciecircncia eacute possiacutevel eacute no momento da elaboraccedilatildeo das hipoacuteteses a
serem testadas que a capacidade humana de conhecer deve se manifestar Eacute a hipoacutetese ela
mesma que deve nos colocar na boa direccedilatildeo A suposta capacidade autocorretiva da induccedilatildeo
mostrou-se uma ilusatildeo
A abduccedilatildeo eacute descrita como um dos trecircs tipos de raciociacutenios loacutegicos contudo Peirce eacute muito
claro na indicaccedilatildeo de que ela natildeo passa de uma espeacutecie de adivinhaccedilatildeo desse modo
eminentemente faliacutevel sem qualquer garantia de que a hipoacutetese proposta seraacute a melhor
Entretanto o filoacutesofo jaacute constatava os avanccedilos que a ciecircncia do seu tempo havia atingido e natildeo
poderia haver outra fonte aleacutem da abduccedilatildeo que possui exclusividade heuriacutestica no seu sistema A
efetividade da abduccedilatildeo eacute explicada de iniacutecio a partir de uma perspectiva evolucionista um
instinto para o conhecimento que teria se desenvolvido a partir da necessidade de modelar a
conduta adequada para a sobrevivecircncia
173
A perspectiva evolutiva no entanto dificilmente pode ser aceita como uma explicaccedilatildeo
adequada para a elaboraccedilatildeo de teorias que vatildeo muito aleacutem daquilo que diz respeito agrave necessidade
de sobrevivecircncia humana A causa final entendida como o tipo de causalidade no qual o todo
chama por suas partes (cf CP 1 sect 220 1902) ou evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902) pode ser vista
natildeo apenas como o princiacutepio que deu origem e continua atuando atualmente na constituiccedilatildeo do
universo como tambeacutem o princiacutepio por meio do qual o ser humano fruto do mesmo processo
evolutivo consegue adivinhar as boas hipoacuteteses explicativas
Desse modo o que Peirce faz ao elaborar a hipoacutetese que explica a origem a
desenvolvimento do universo vai aleacutem da criaccedilatildeo de uma cosmogonia O filoacutesofo identifica um
princiacutepio sob o qual o universo se desenvolveu ndash a causalidade final cujo principal efeito indica
Peirce eacute a de tornar o universo mais razoaacutevel desenvolver a sua razoabilidade concreta (cf CP
1 sect 602 1903 CP 1 sect 615 1903)
A perspectiva evolucionaacuteria de Peirce prevecirc que quanto ao ser humano o futuro traraacute por
meio do desenvolvimento do conhecimento racional do mundo a possibilidade do
estabelecimento de condutas mais e mais autocontroladas quanto ao universo o futuro muito
mais amplo traraacute a crescente influecircncia da lei na determinaccedilatildeo de cada evento Em um futuro
suficiente distante as regularidades estaratildeo tatildeo presentes que impossibilitaratildeo a existecircncia da
vida manifestaccedilatildeo por excelecircncia da espontaneidade cada acontecimento seraacute fundamentalmente
determinado pela atuaccedilatildeo das leis em um universo que poderia ser comparado a um imenso
cristal Essa descriccedilatildeo como vimos eacute apresentada por Peirce em sua cosmogonia (cf CP 6 sect 33
1891) e parece indicar que a cristalizaccedilatildeo dos haacutebitos no futuro distante do universo corresponde
agrave realizaccedilatildeo da razoabilidade concreta Entretanto se esta interpretaccedilatildeo estaacute correta o estado
final a que tende o universo eacute aquele descrito pelos necessitarista e muito criticado por Peirce
como vimos A alternativa que nos parece mais adequada e coerente ao conjunto das ideias
peirceanas algumas delas apresentadas neste trabalho eacute a de pensar as categorias como
inesgotaacuteveis e atuantes em qualquer momento do desenvolvimento do universo propiciando o
infinito crescimento da ordem e da diversidade A filosofia de Peirce pode ser entendida como a
tentativa de mostrar o modo como essas duas caracteriacutesticas inerentes agrave nossa experiecircncia do
174
mundo ndash a diversidade e a regularidade ndash satildeo compatibilizadas na concepccedilatildeo de uma matriz
ontoloacutegica indeterminista mas geradora de ordem
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Nome VICENTINI Max Rogeacuterio
Tiacutetulo O papel da causalidade final na cosmologia de Charles Sanders Peirce
Tese apresentada agrave Faculdade de Filosofia Letras
e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo
Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em
Filosofia
Aprovado em
Banca Examinadora
Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________
Julgamento ___________ Assinatura ______________
Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________
Julgamento ___________ Assinatura ______________
Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________
Julgamento ___________ Assinatura ______________
Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________
Julgamento ___________ Assinatura ______________
Prof Dr _____________Instituiccedilatildeo ______________
Julgamento ___________ Assinatura ______________
DEDICATOacuteRIA
Ao meu pai Armando Vicentini in memoriam
agrave minha matildee Aparecida Giraldeli Vicentini
e aos amigos presentes e ausentes
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo ao Professor Dr Pablo Rubeacuten Mariconda pelo tempo dedicado a minha
orientaccedilatildeo e ao professor Dr Michel Paty cujos cursos e conversas expandiram a minha
compreensatildeo sobre o tema desta tese e suas relaccedilotildees com problemas mais amplos e atuais bem
como por sua disposiccedilatildeo em me orientar no periacuteodo de pesquisa junto agrave Universiteacute Paris VII ndash
Denis Diderot e agrave equipe Sphere
Agrave CAPES pela bolsa que me permitiu passar um ano pesquisando em Paris
Aos membros da banca de qualificaccedilatildeo pela disponibilidade leitura atenta e boas sugestotildees
Ao setor de capacitaccedilatildeo docente da Proacute-Reitora de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo e aos
professores do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Maringaacute que apoiaram e
aceitaram meu pedido de afastamento para a realizaccedilatildeo desta tese
Aos meus antigos professores Lauro Nice e Betty cujas influecircncias foram decisivas para a
realizaccedilatildeo deste trabalho
Aos meus amigos pelo incentivo leitura e discussotildees do texto aqui apresentado Aos
integrantes do Grupo de Pesquisa coordenado pelo Prof Pablo especialmente a Adriana
Belmonte
Agrave minha matildee Aparecida e minhas irmatildes pela alegria que sempre acontece quando estamos
juntos
Quero agradecer especialmente ao Douglas Ameacutelia Sandro Liacutegia Bima Wagner Nei
Ivan Ernane e Rosacircngela que tornaram esses anos de pesquisas mais leves ou mais intensos ou
ambos
RESUMO
VICENTINI M R O papel da causalidade final na cosmologia de Charles Sanders Peirce
2011 182 f Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas
Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2011
Trata-se de uma proposta de investigaccedilatildeo das ideias cosmoloacutegicas de Charles S Peirce
particularmente das que dizem respeito agrave pertinecircncia da inclusatildeo de esquemas de explicaccedilatildeo que
faccedilam uso da causalidade final como instacircncia determinante do desenvolvimento dos fenocircmenos
naturais Anterior agrave avaliaccedilatildeo desse tipo de explicaccedilatildeo cabe uma investigaccedilatildeo sobre as
caracteriacutesticas mais relevantes de seu pensamento que o proacuteprio autor julgava construiacutedo
arquitetonicamente Com esse objetivo centramos a anaacutelise no conceito de continuum que pode
ser visto como fundamental para o desenvolvimento da obra de Peirce Eacute o estudo do continuum
que permitiraacute e conduziraacute a investigaccedilatildeo das categorias ontoloacutegicas peirceanas acaso existente e
lei A passagem do acaso agrave lei isto eacute a proacutepria origem do cosmos se daacute por um processo
evolutivo que tem na lei da mente seu principal motor A lei da mente por sua vez atua de modo
finaliacutestico tornando mais provaacutevel o desenvolvimento dos fenocircmenos em certas direccedilotildees
restringindo assim o horizonte das possibilidades sem contudo esgotaacute-lo
Palavras-chave cosmologia sinequismo abduccedilatildeo teleologia
ABSTRACT
VICENTINI M R The role of final causality in the cosmology of Charles Sanders Peirce
2011 182 f Thesis (PhD) - Faculty of Philosophy Letters and Sciences University of Sao
Paulo Sao Paulo 2011
This thesis is about the cosmological ideas of Charles S Peirce particularly those concerning the
relevance of the inclusion of explanatory schemes that make use of final causality as an instance
determinant of the development of natural phenomena Before the evaluation of this type of
explanation it is important to perform an investigation into the most relevant features of his
thought which the author believed was architecturally built With this aim we focus on the
concept of the continuum which can be seen as fundamental to the development of the work of
Peirce It is the study of the continuum that will lead to investigation of Peirces ontological
categories chance existent and law The passage of chance to law that is the very origin of the
cosmos is given by an evolutionary process in which the law of the mind is its main engine The
law of the mind in turn acts in a finalistic way making more probable the development of
phenomena in certain directions thus restricting the horizon of possibilities without however
exhausting it
Keywords cosmology synechism abduction teleology
LISTA DE ABREVIACcedilOtildeES
CP x sect y - CCollected Papers of Charles Sanders Peirce volume x paraacutegrafo y ano de composiccedilatildeo
W x p y - Writings of Charles S Peirce A Chronological Edition volume x p y ano de
composiccedilatildeo
CN x p y
MS x
-
-
Contributions to The Nation volume x p y (Alguns estudiosos usam N)
Manuscritos nuacutemero do manuscrito
EP x p y - The Essential Peirce Selected Philosophical Writings volume x p y
HP x py - Historical Perspectives on Peirces Logic of Science A History of Science volume x
p y
NEM x p y - The New Elements of Mathematics by Charles S Peirce volume x p y (Alguns
estudiosos usam NE)
CD p x Century Dictionary p x (Alguns estudiosos usam C)
Sumaacuterio
INTRODUCcedilAtildeO 11
CAPIacuteTULO 1 - A HIPOacuteTESE COSMOLOacuteGICA 28
11 NAtildeO BLOQUEAR O CAMINHO DA INVESTIGACcedilAtildeO 29
12 UMA ESTOacuteRIA BIZARRA 38
121 O NADA 41
122 O ACASO 50
123 A DOUTRINA DA NECESSIDADE 54
13 A LEI 64
131 O IDEALISMO OBJETIVO 65
132 A LEI DA MENTE 66
CAPIacuteTULO 2 - O SINEQUISMO 68
21 O CONTINUUM E A EPISTEMOLOGIA 71
211 OS INFINITESIMAIS E O CONTINUUM 74
22 OS QUATRO ESTAacuteGIOS DO DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE CONTINUUM 78
221 O PERIacuteODO PREacute-CANTORIANO 81
222 PERIacuteODO CANTORIANO 83
223 PERIacuteODO KANTIANO 86
CAPIacuteTULO 3 - A EVOLUCcedilAtildeO 89
31 ASPECTOS EPISTEMOLOacuteGICOS DA HIPOacuteTESE EVOLUCIONAacuteRIA 90
32 AS RAIacuteZES NA CIEcircNCIA DO SEacuteCULO XIX 94
33 OS TREcircS TIPOS DE EVOLUCcedilAtildeO 104
34 OS TREcircS MODELOS DE EXPLICACcedilAtildeO 106
35 A EVOLUCcedilAtildeO E A COSMOLOGIA 107
36 O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA EVOLUCcedilAtildeO 109
37 EVOLUCcedilAtildeO E AUTOCONTROLE 111
CAPIacuteTULO 4 - A ABDUCcedilAtildeO 115
41 ABDUCcedilAtildeO E CRIACcedilAtildeO DE HIPOacuteTESES EXPLICATIVAS 116
42 OS TREcircS TIPOS DE RACIOCIacuteNIO 128
CAPIacuteTULO 5 - A CAUSALIDADE FINAL 140
51 O MODO DE ATUACcedilAtildeO DA CAUSALIDADE FINAL 143
52 CAUSALIDADE FINAL E CAUSALIDADE EFICIENTE 151
53 CAUSA FINAL E EVOLUCcedilAtildeO ndash AacuteGAPE OU O AMOR CRIATIVO 159
54 A ORIGINALIDADE DA CAUSA FINAL PEIRCEANA 163
55 CAUSA FINAL E CLASSIFICACcedilAtildeO NATURAL 167
CONCLUSAtildeO 169
REFEREcircNCIAS 175
11
INTRODUCcedilAtildeO
Hume whose cogitations led up to the recognition of Association as the one law of
mind most judiciously remarks This uniting principle among ideas is not to be
considered as an inseparable connexion for that has been already excluded from the
imagination Nor yet are we to conclude that without it the mind cannot join two
ideas for nothing is more free than that faculty but we are only to regard it as a gentle
force which commonly prevailsrdquo That phrase a gentle force which commonly
prevails describes the phenomenon to perfection (CP 7 sect 389 1893)
12
A obra de Charles Sanders Peirce (1839 ndash 1914) eacute admiraacutevel pela complexidade rigor e
abrangecircncia Peirce eacute considerado um dos maiores senatildeo o maior dos filoacutesofos americanos e
poucos foram os campos que permaneceram fora de seu interesse Mesmo tendo se formado em
Quiacutemica e trabalhado durante muitos anos na United States Coast and Geodetic Survey1 Peirce
foi uma dessas mentes inquietas que sobre tudo investigou e que sobre quase tudo escreveu
fazendo contribuiccedilotildees originais e relevantes para vaacuterias aacutereas do saber
Como intelectual Peirce considerava-se um loacutegico tido pelos historiadores como um dos
pais da loacutegica moderna desenvolveu a loacutegica das relaccedilotildees e formulou a loacutegica dos grafos
existenciais mas destacou-se tambeacutem nos estudos da matemaacutetica (teoria da probabilidade) e
sobretudo na filosofia das ciecircncias para a qual contribuiu com uma nova teoria dos argumentos
dedutivos indutivos e abdutivos Fundador do pragmatismo norte-americano sua grande
contribuiccedilatildeo agrave filosofia foi a criaccedilatildeo da semioacutetica ou a loacutegica segundo seu entendimento
Como aponta Silveira (1982 p 78) Peirce foi antes de tudo um cientista Um cientista
entretanto com algumas peculiaridades proacuteprias inclusive na formaccedilatildeo que se recebia a sua
eacutepoca Antes da universidade recebera o ensino claacutessico e como era comum as atividades em
casa sobrepujavam as desenvolvidas na escola Filho de um professor de Matemaacutetica de Harvard
desde cedo habituou-se agrave investigaccedilatildeo e agrave reflexatildeo sob a orientaccedilatildeo de seu proacuteprio pai que via
nele o potencial de um gecircnio
Peirce foi nomeado professor da entatildeo receacutem-fundada Universidade John Hopkins em 1879
mas em 1884 teve seu contrato de trabalho sumariamente cancelado em circunstacircncias obscuras
Natildeo tendo mais conseguido manter qualquer posto acadecircmico isso em prejuiacutezo segundo Nagel
(1982) do desenvolvimento da Filosofia posterior e de sua proacutepria Filosofia Peirce tinha entatildeo
quarenta e quatro anos
1 Eacute uma agecircncia federal dos Estados Unidos que define e gerencia um sistema de coordenadas nacional fornecendo a
base para o transporte e a comunicaccedilatildeo elaborando mapas e graacuteficos e um grande nuacutemero de aplicaccedilotildees da ciecircncia e
da engenharia Nela Peirce trabalhou de 1859 a 1891
13
O conjunto de suas ideias jaacute foi algumas vezes comparado a um labirinto com muitas
entradas cujo fio de Ariadne que pode conduzir o leitor a salvo por entre suas diferentes
estruturas foi indicado pelo proacuteprio autor como sendo o sinequismo2 a teoria que identifica a
continuidade como uma hipoacutetese fundamental para toda investigaccedilatildeo nas palavras de Peirce
ldquo() a chave mestra que dizem-nos os adeptos destranca os misteacuterios da filosofiardquo (CP 1 sect 163
1897)3
Nesta introduccedilatildeo faremos um esboccedilo do mapa que nos conduziu durante essa investigaccedilatildeo
O alvo determinado desde o iniacutecio foi o de compreender o papel que a causalidade final
desempenha na cosmologia de Peirce A aproximaccedilatildeo natildeo se deu de modo direto se o alvo estava
determinado o mesmo natildeo se poderia dizer do caminho que foi sendo construiacutedo aos poucos
sedimentando-se ao longo dos anos da pesquisa A eleiccedilatildeo dos temas a proacutepria investigaccedilatildeo e a
sua apresentaccedilatildeo foram objeto de longa reflexatildeo O caminho mostrou-se cheio de surpresas e de
natildeo raros momentos de indecisotildees O resultado que agora apresento nesta tese traz a marca da
falibilidade que Peirce considerava caracteriacutestica tanto dos nossos processos de pensamento
quanto daqueles que deram origem e permanecem atuando na constituiccedilatildeo dos mais diferentes
aspectos do cosmos e que eacute intriacutenseco agrave proacutepria maneira de atuaccedilatildeo da causalidade final como
veremos agrave frente O processo de criaccedilatildeo de empatia com a obra de Peirce constituiu-se
lentamente e as boas hipoacuteteses de interpretaccedilatildeo ndash ao menos eacute nossa esperanccedila de que as que aqui
lanccedilamos o sejam ndash surgiram aos poucos
Eacute possiacutevel extrair das ideias de Peirce importantes indicaccedilotildees sobre a maneira pela qual
uma investigaccedilatildeo deve ser conduzida Natildeo podemos esquecer que sua grande realizaccedilatildeo consiste
na elaboraccedilatildeo de um meacutetodo adequado para orientar a conduta dos investigadores nos mais
variados campos incluindo aiacute o da pesquisa acadecircmica Essa caracterizaccedilatildeo parece ser de grande
auxiacutelio para compreendermos o desenvolvimento de sua proacutepria obra bem como para lanccedilar
alguma luz sobre o proacuteprio processo de elaboraccedilatildeo deste trabalho Toda investigaccedilatildeo eacute marcada
2 Sinequismo do grego synecheacutes eacute o nome que Peirce daacute agrave sua teoria da continuidade bem como ao seu sistema
filosoacutefico 3 () it is the master key which adepts tell us unlocks the arcana of philosophy
14
pelo objetivo que pode ou natildeo estar determinado de maneira clara A determinaccedilatildeo preacutevia natildeo
significa que o caminho e o resultado especiacutefico possam ser traccedilados e previstos nos miacutenimos
detalhes As surpresas que podem produzir desvios da rota eacute tambeacutem condiccedilatildeo para o crescimento
da compreensatildeo do tema ou das ideias do autor Natildeo se fechar ao inesperado eacute condiccedilatildeo para a
realizaccedilatildeo da pesquisa
Estar disposto a abrir matildeo de suas conclusotildees e ideias tatildeo logo a experiecircncia mostre que satildeo
inadequadas eacute a atitude mais honesta do verdadeiro cientista aquele que investiga por um
ldquoardente amor agrave verdaderdquo como diria Peirce (CP 8 notas 1900) Eacute desse modo que a
compreensatildeo aqui apresentada das ideias peirceanas sobre a causalidade final foi sendo formada
natildeo sem surpresas e desvios O mesmo movimento pode ser visto na obra do autor que natildeo se
nega a dialogar com as evidecircncias ainda que contraacuterias e em redefinir suas ideias com fins agrave
determinaccedilatildeo de um meio mais adequado ao fim almejado Na interpretaccedilatildeo aqui defendida o
fim maior de obra de Peirce eacute a defesa da possibilidade de uma ciecircncia feita a partir da
experiecircncia com todas as dificuldades envolvidas nas duas ideias
Embora se definisse como um loacutegico e tenha tido formaccedilatildeo em Quiacutemica poucas aacutereas do
saber entre as jaacute estabelecidas em seu tempo ou em processo de constituiccedilatildeo ficaram fora do
escopo de seu interesse e investigaccedilatildeo Essa caracteriacutestica estaacute em conformidade com a maacutexima
que anima seu pensamento ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo (CP 6 sect 64 1892 sect 273
1893) Podemos indicar dois traccedilos caracteriacutesticos de sua produccedilatildeo de um lado percebemos que
para Peirce nada pode ser aceito como um dado (cf CP 6 sectsect 35-65 1892) resistente portanto a
toda investigaccedilatildeo ou seja isso equivale a dizer que a pesquisa natildeo conhece limites e que para
tudo que possa ser problematizado deve haver um processo adequado de investigaccedilatildeo por meio
do qual uma resposta possa ser obtida Naturalmente uma consequecircncia desta tese eacute a de que seu
alcance ultrapassa o puramente epistemoloacutegico e indica que a ontologia dos processos naturais
possua em si mesma um aspecto noeacutetico De outro lado a busca do meacutetodo adequado (cf CP 5
sectsect 358-87 1877) e sua aplicaccedilatildeo aos diferentes campos do saber em estreita relaccedilatildeo com a tese
sinequista ao lado de sua inesgotaacutevel curiosidade sugerem uma hipoacutetese explicativa para a
abrangecircncia dos objetos estudados pelo autor
15
O rigor necessaacuterio ao meacutetodo que deve garantir a possibilidade de realizaccedilatildeo da ciecircncia
parece-nos ser o propoacutesito primaacuterio e sempre presente no desenvolvimento do pensamento
peirceano Em funccedilatildeo dessa preocupaccedilatildeo que eacute uma caracteriacutestica recorrente em muitos de seus
escritos e em consonacircncia com o juiacutezo que o proacuteprio autor fazia de sua obra discordamos
daqueles inteacuterpretes que encontram dificuldade em atribuir-lhe uma unidade (cf GOUDGE
1950 GALLIE 1952 MOORE and ROBIN 1964 WIENER 1964 entre outros) Natildeo haacute duacutevida
de que o seu pensamento evoluiu de que suas teorias sofreram alteraccedilotildees e de que suas hipoacuteteses
amadureceram no periacuteodo que compreende sua intensa produccedilatildeo e que se estende por mais de
cinquenta anos Natildeo obstante a unidade que lhe pode ser atribuiacuteda natildeo eacute a de um sistema cujos
axiomas encontram-se presentes desde os primeiros escritos e cujas implicaccedilotildees satildeo apenas
apresentadas de maneira mais clara agrave medida que sua obra vai se constituindo Como descrito
acima na atividade do cientista que natildeo se furta ao embate com a experiecircncia quando submete
suas ideias agrave prova dos experimentos agraves vezes se depara com resultados que a princiacutepio natildeo
haviam sido cogitados Peirce natildeo os ignora e ao elaborar novos instrumentos para trataacute-los vecirc-se
na situaccedilatildeo em que tem de abrir matildeo de certos aspectos de seu pensamento inicial com o objetivo
de tornar seu sistema coerente Assim a unidade que se encontra eacute decorrente da atitude frente
aos objetos do conhecimento mais do que daquela referente aos conteuacutedos de suas teorias que
como reconhece o autor como um homem de ciecircncia satildeo sempre provisoacuterios e hipoteacuteticos
Em alguns momentos do periacuteodo que compreende sua longa e extensa produccedilatildeo o meacutetodo
eacute diretamente tematizado e em outros parece estar ausente de suas preocupaccedilotildees mais imediatas
para depois de alguns anos surgir novamente Quanto a este aspecto Peirce parece retomar o
projeto da filosofia moderna Como veremos em seus primeiros textos debate diretamente com
Descartes a quem critica principalmente o estabelecimento da intuiccedilatildeo imediata clara e distinta
dos objetos como criteacuterio de distinccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso e como fundamento de toda
atividade cognitiva (cf CP 5 sectsect 264-5 1868 CP 5 sectsect 389-92 1878) Um de seus primeiros
passos em direccedilatildeo agrave compreensatildeo do pensamento cientiacutefico eacute a elaboraccedilatildeo de uma nova teoria da
accedilatildeo mental baseada na ideia de que toda cogniccedilatildeo eacute mediada (cf CP 5 sect 4 1868) Como natildeo
temos acesso imediato aos objetos nosso conhecimento traraacute a marca do provisoacuterio e do faliacutevel
fruto de uma seacuteria infinita de interpretaccedilotildees e ao mesmo tempo implicando que o objeto natildeo
16
pode ser absolutamente conhecido jaacute que o seu modo de ser eacute vago (cf CHAUVIREacute 1995 e
TIERCELIN 1993a e 1993b) As teorias produzidas pelo ser humano seratildeo deste modo faliacuteveis
e construiacutedas a partir de sua proacutepria experiecircncia do mundo tanto o externo que se lhe impotildee e
resiste como o interno cujos processos de constituiccedilatildeo natildeo satildeo de maneira alguma heterogecircneos
Aqui a hipoacutetese do continuum requer a coerecircncia do autor Natildeo haacute descontinuidade entre o
mundo do pensamento e o mundo real Ateacute mesmo esta distinccedilatildeo soa artificial e inadequada O
elemento central na perspectiva peirceana eacute o pensamento (cf CN 1 p 200 1893) A fim de fazer
avanccedilar sua compreensatildeo dos processos naturais e confirmar suas hipoacuteteses acerca do
funcionamento dos processos de constituiccedilatildeo de nossas teorias Peirce encontra no haacutebito ou
tendecircncia agrave aquisiccedilatildeo de haacutebitos um elemento unificador fundamental e que elimina a
descontinuidade entre as leis do pensamento e as leis da natureza que segundo essa perspectiva
natildeo diferem senatildeo pelos diferentes graus de rigidez do haacutebito que ambas em uacuteltima instacircncia
satildeo diante da unicidade existente entre homem e mundo a construccedilatildeo da ciecircncia eacute o
desenvolvimento de uma capacidade que nos eacute natural Em um texto de 1893 Peirce diz que ldquo()
minha longa investigaccedilatildeo dos processos do raciociacutenio cientiacutefico conduziu-me muitos anos atraacutes
agrave conclusatildeo de que a ciecircncia natildeo eacute nada mais do que o desenvolvimento de nossos instintos
naturaisrdquo (CP 6 sect 604 1893)4
Muitas ideias propostas ou retomadas por Peirce tecircm o dom de surpreender o leitor que se
aproxima de sua obra pela primeira vez e mesmo agravequeles que dela tecircm um conhecimento parcial
Entre essas ideias julgamos apropriado incluir a de causalidade final (cf CP 1 sect 211 sect 250 sect
269 1902 CP 6 sect 66 sect 101 1898) O espanto ao ler em seus textos uma defesa da necessidade
da causalidade final natildeo apenas no acircmbito das explicaccedilotildees mas tambeacutem como princiacutepio atuante
nos processos naturais eacute decorrente de certa imagem fixada na tradiccedilatildeo ocidental ao menos
desde Bacon5 de julgaacute-la obscurantista e contraacuteria ao empirismo Andrew Woodfield (1976 p 3)
4 () my long investigation of the logical process of scientific reasoning led me many years ago to the conclusion
that science is nothing but a development of our natural instincts 5 Como aponta Bacon a investigaccedilatildeo sobre causas finais eacute esteacuteril e como uma virgem consagrada a Deus nada
produz (cf SPEDDING 1989 p 571)
17
afirma que ldquoA ciecircncia moderna eacute no seu todo hostil agraves explicaccedilotildees teleoloacutegicasrdquo6 Se
considerarmos que Peirce foi educado desde muito jovem como loacutegico e cientista e que desse
modo estava familiarizado com o meacutetodo cientiacutefico que vigorava em seu tempo sua insistecircncia
na realidade da causalidade final pode parece fora de lugar
Se o juiacutezo de Aristoacuteteles sobre a causalidade final era de que ela consistia em um aspecto
inerente ao mundo (cf CP 1 sect 211 1902) o mesmo natildeo se pode dizer do juiacutezo de um cientista
do seacuteculo XIX Para os cientistas do seacuteculo XIX como para os cientistas do nosso tempo a
causalidade final parece envolver ao menos trecircs aspectos que lhe dificultam a concessatildeo da
cidadania cientiacutefica parece que ela envolve a ideia de (1) que existem eventos individuais no
futuro (2) que exercem algum tipo de influecircncia causal sobre o presente e (3) que tecircm o poder de
determinar um curso preciso de accedilatildeo a fim de que possam ser realizados (cf HULSWIT 1996 p
200-2) em outras palavras pode-se notar que os aspectos aqui levantados sinalizam para a
concepccedilatildeo de causalidade final como causalidade eficiente invertida
Segundo a compreensatildeo de Peirce (cf EP 2 p 315-6 1904 CP 1 sect 211 1902) as causas
podem ser divididas em dois grandes grupos como afirma jaacute havia sido indicado por
Aristoacuteteles aquele que compreende as eficientes ou eneacutergicas e aquele que compreende as ideais
ou finais A insuficiecircncia da utilizaccedilatildeo de esquemas explicativos que faccedilam uso de apenas um dos
dois grupos eacute claramente apontada por Peirce Em 1902 no texto ldquoA detailed classification of the
Sciencerdquo afirma que ldquoA causa final sem a causa eficiente eacute inoacutecua () A causa eficiente sem a
causa final entretanto eacute pior do que inoacutecua em muito eacute mero caos e o caos natildeo eacute nem mesmo
caos sem a causa final eacute um nada vaziordquo (CP 1 sect 211 1902)7
Ao tratar da causa final reconhece sua diacutevida com Aristoacuteteles e julga modestamente ser um
seguidor do grande filoacutesofo Poreacutem o juiacutezo que faz da filiaccedilatildeo de suas ideias natildeo parece ser
6 Modern Science is on the whole hostile to teleological explanation
7 Final causation without efficient causation is helpless () Efficient causation without final causation however is
worse than helpless by far it is mere chaos and chaos is not even so much as chaos without final causation is blank
nothing
18
totalmente correto Sob alguns aspectos podemos afirmar que Peirce construiu uma concepccedilatildeo
original de causalidade final A apresentaccedilatildeo da originalidade de seu conceito e do papel que
desempenha no interior de sua cosmologia eacute o objetivo desta tese e que espero ter conseguido
realizar na exposiccedilatildeo que se segue Mostro neste trabalho que a causalidade final desempenha um
papel duplo ao mesmo tempo em que eacute uma exigecircncia da teoria da explicaccedilatildeo cientiacutefica tambeacutem
eacute um agente real do crescimento do universo pois atuante na determinaccedilatildeo de vaacuterios processos
naturais Dessa forma a investigaccedilatildeo tem a pretensatildeo de abarcar suas implicaccedilotildees tanto para a
epistemologia peirceana quanto para sua cosmologia
O objetivo do primeiro capiacutetulo eacute apresentar a hipoacutetese cosmoloacutegica peirceana considerada
por alguns comentadores como a ovelha negra ou o elefante branco do seu sistema (cf GALLIE
1952 p 215) localizaacute-la no interior de sua obra e selecionar os aspectos que melhor ilustram a
atuaccedilatildeo da causalidade final na constituiccedilatildeo do cosmo Jaacute nesse capiacutetulo apresentamos a hipoacutetese
que identifica a causalidade final como elemento necessaacuterio para a possibilidade de constituiccedilatildeo
de procedimentos cientiacuteficos que nos permitam conhecer a natureza e ao mesmo tempo moldar
uma conduta adequada para o futuro por meio da nossa capacidade de autocontrole (cf CP 5 sect
538 1902)
O imperativo que manda ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo sintetiza um aspecto
central do projeto de Peirce A primeira lei da loacutegica8 como o autor costuma denominaacute-la
expressa sua insatisfaccedilatildeo com relaccedilatildeo ao posicionamento da ciecircncia de seu tempo frente a alguns
princiacutepios isto eacute as leis naturais que eram entatildeo tomados como dados portanto
inquestionaacuteveis e alheios agrave investigaccedilatildeo Peirce reclama principalmente uma abordagem racional
para o estatuto das leis cientiacuteficas tomadas entatildeo como princiacutepios a partir dos quais as ciecircncias
satildeo construiacutedas mas que permaneciam de fora desse processo Ora para fornecer uma explicaccedilatildeo
racional do porquecirc de tais e tais leis atuarem no nosso universo ou seja para que a sua
8 Nota-se que o termo bdquoloacutegica‟ na obra peirceana tem um sentido bem mais amplo do que aquele hoje vigente Peirce
incluiacutea em seus estudos trecircs diferentes ramos por ele denominados de Gramaacutetica Filosoacutefica Loacutegica Criacutetica e
Metodecircutica (cf CP 2 sect 93 1902)
19
postulaccedilatildeo pura e simples natildeo bloqueie o caminho da investigaccedilatildeo o filoacutesofo expande o conceito
de evoluccedilatildeo9 e o utiliza como um princiacutepio loacutegico constituinte de sua hipoacutetese cosmoloacutegica A
hipoacutetese de um cosmo que evolui a partir do puro acaso do nada inicial ndash um continuum de
possibilidades infinitas ndash eacute a que permite explicar as caracteriacutesticas do universo atual sem a
necessidade de tomar seus constituintes como dados como eacute o caso das leis que passam a ser
explicadas como fruto do processo de aquisiccedilatildeo de haacutebitos a que todo universo estaacute submetido
Veremos entatildeo como a hipoacutetese cosmoloacutegica eacute uma consequecircncia da teoria da explicaccedilatildeo e qual
dentro dessa perspectiva eacute seu papel natildeo soacute como um subsiacutedio para o projeto de tornar a ciecircncia
possiacutevel mas tambeacutem como hipoacutetese que torna compreensiacutevel certos fenocircmenos como as accedilotildees
natildeo conservativas de difiacutecil explicaccedilatildeo para a ciecircncia mecanicista (cf CP 7 sect 471-83 1898)
como veremos no capiacutetulo sobre evoluccedilatildeo
A hipoacutetese cosmoloacutegica que eacute apresentada na forma de uma cosmogonia descreve a
passagem de um continuum de possibilidades absolutamente indeterminadas para outro
continuum o do geral Aqui entra em cena o elemento da continuidade que receberaacute nesse
capiacutetulo uma primeira descriccedilatildeo
No segundo capiacutetulo trataremos especificamente da hipoacutetese do continuum que assim
como havia acontecido com a hipoacutetese evolutiva eacute tomada como um princiacutepio da loacutegica (cf CP
6 sect 173 1902) Essa hipoacutetese estaacute desse modo a subsumida agrave tarefa de garantir a
inteligibilidade da natureza A esta doutrina metafiacutesica Peirce daacute o nome de sinequismo Como
aponta Hausman ldquoo sinequismo de Peirce eacute inseparaacutevel da ideia de Peirce de que a condiccedilatildeo
fundamental de inteligibilidade eacute mediaccedilatildeo generalidade e continuidaderdquo (HAUSMAN 1998 p
630) Considerar todas as coisas como sendo contiacutenuas umas agraves outras tem como uma de suas
consequecircncias a de que a individualidade absoluta eacute apenas uma ilusatildeo Desta forma nenhuma
quantidade absoluta pode ser apurada tudo estaacute mergulhado em um mar de indeterminaccedilatildeo cujo
princiacutepio constituinte eacute diz-nos Peirce o acaso (cf CP 1 sectsect 163-75 1897) Assim duas das
9 Veremos adiante (capiacutetulo III desta tese) que embora a leitura da Origem das espeacutecies de Charles Darwin tenha
exercido uma grande influecircncia sobre o jovem Peirce sua concepccedilatildeo de evoluccedilatildeo era muito mais ampla podendo ser
classificada em trecircs tipos ticaacutestica anancaacutestica e agapaacutestica
20
principais teorias da obra peirceana satildeo relacionadas o tiquismo10
e o sinequismo O problema eacute
colocado de maneira bastante clara por Esposito (1973 p 65) na forma de um dilema ldquoou o
crescimento era real e a filosofia mecacircnica insuficiente ou era uma ilusatildeo e a filosofia
cosmogocircnica ndash o sinequismo ndash desnecessaacuteriardquo
A principal justificativa do sinequismo encontra-se no fato de que fornece uma boa
explicaccedilatildeo para os fenocircmenos serem como satildeo As descontinuidades satildeo vistas por Peirce como
inexplicaacuteveis A hipoacutetese do continuum ajuda entatildeo a evitar a postulaccedilatildeo do incompreensiacutevel no
seio da natureza que algo deva ser considerado como um dado ou um fato uacuteltimo e
consequentemente que a investigaccedilatildeo deva ser suspensa (cf CP 1 sect 175 1897) Aleacutem disso
indica o filoacutesofo ela promove o progresso da ciecircncia na medida em que encoraja os
pesquisadores a natildeo desesperarem diante dos misteacuterios da natureza facultando uma nova maneira
de tratar os fenocircmenos ou seja a aplicaccedilatildeo dos meacutetodos e conceitos de uma ciecircncia a outras Da
mesma forma que vimos no primeiro capiacutetulo Peirce fazer ao empregar conceitos da biologia e
matemaacutetica como princiacutepios da loacutegica
O sinequismo eacute tido por Peirce como uma esperanccedila reguladora (regulative hope) isto eacute
algo cuja existecircncia ainda que natildeo possa ser provada eacute necessaacuteria para a possibilidade da
atividade cientiacutefica Enquanto um princiacutepio da loacutegica ele estabelece um criteacuterio para o tipo de
hipoacutetese que deve ser selecionado para o teste Ele estaacute diretamente relacionado com o princiacutepio
metodoloacutegico que diz que eacute sempre melhor escolher hipoacuteteses que abram espaccedilo para o maior
nuacutemero de possibilidades (cf CP 7 sect 221 1901) Natildeo se trata portanto de uma doutrina
metafiacutesica uacuteltima mas uma hipoacutetese eleita por razotildees metodoloacutegicas e que poderaacute vir a ser
substituiacuteda por alguma formulaccedilatildeo mais fraca caso a experiecircncia assim o exija Ainda assim seria
preferiacutevel diz Peirce uma hipoacutetese que afirme que ldquo() um continuum eacute meramente uma seacuterie
descontiacutenua com possibilidades adicionaisrdquo (CP 1 sect 170 1893)11
agravequela que afirma a existecircncia
de descontinuidades radicais
10 Tiquismo do grego Tycheacute eacute o nome que Peirce daacute agrave sua teoria do acaso como um princiacutepio operante na natureza
(tal como seraacute apresentado no primeiro capiacutetulo desta tese) 11
() a continuum is merely a discontinuous series with additional possibilities
21
A necessidade de introduzir a hipoacutetese do sinequismo indica Esposito (1973) natildeo decorre
da defesa de qualquer tese holista como se poderia pensar antes sua funccedilatildeo primordial eacute
permitir uma abordagem coerente do fenocircmeno do crescimento presente nas mais variadas
expressotildees do que chamamos de universo O crescimento eacute apenas uma outra palavra para
designar a evoluccedilatildeo Se por um lado Peirce exige a continuidade como condiccedilatildeo para a
inteligibilidade por outro funda sua ontologia sobre uma matriz indeterminista que tem no
acaso entendido como vera causa seu princiacutepio de constituiccedilatildeo necessaacuterio agrave abordagem dos
fenocircmenos evolutivos A intromissatildeo do acaso no continuum processo criativo espontacircneo
responsaacutevel pela introduccedilatildeo de novidade no universo produz descontinuidades
A maneira de conciliar esses dois aspectos aparentemente conflitantes mas necessaacuterios agrave
abordagem peirceana parece ser realizada por meio da noccedilatildeo de infinitesimal (cf CP 6 sect 86
1898) Como aponta Hausman (1998) o papel desempenhado pelos infinitesimais na origem da
evoluccedilatildeo tem sido subestimado pelos comentadores de Peirce Ele afirma ldquoO que eacute
imediatamente importante eacute que a noccedilatildeo de infinitesimal parece ser necessaacuteria para tratar dos
componentes constitutivos dos continua que podem evoluir de acordo com uma teleologia
evolucionaacuteriardquo (HAUSMAN 1998 p 630) O problema portanto que devemos tratar eacute o de
conciliar o continuum fonte de inteligibilidade com a presenccedila do acaso introdutora de
novidades o que implica em descontinuidades Uma vez que o continuum eacute sempre geral ou
seja seus componentes natildeo podem ser individuais uma soluccedilatildeo parece ser a de consideraacute-los
como sendo infinitesimais que se tornam dessa maneira portadores da espontaneidade e da
liberdade do acaso Esse processo envolve uma antiga e difiacutecil questatildeo a saber como o geral
produz os particulares ou melhor dizendo como universal e particular se relacionam Sob este
aspecto concordamos com Hausman que faz uma siacutentese do processo ao dizer que
A sugestatildeo de Peirce que indica a maneira pela qual os dois princiacutepios
aparentemente contraacuterios podem ser mantidos eacute propor que os contiacutenuos satildeo
compostos de infinitesimais que satildeo possibilidades (Primeiros) que podem
tornar-se potencialidades ndash que podem tornar-se pontos que podem fugir da
identidade do continuum ao qual eles pertencem antes de tornarem-se
22
potencialidades (HAUSMAN 1998 p 631)
Esta sugestatildeo envolve a distinccedilatildeo natildeo muito frequente entre possiacutevel e potencial que seraacute
elaborada com mais detalhes nesse capiacutetulo Ela parece-nos eacute fundamental para compreender a
relaccedilatildeo entre a continuidade e a causalidade final o objeto de nossa investigaccedilatildeo A discussatildeo do
princiacutepio de individuaccedilatildeo que estaacute aiacute envolvido parece necessitar da consideraccedilatildeo de outro
ingrediente presente na cosmologia peirceana o amor criativo ou aacutegape como eacute denominado por
Peirce (cf CP 6 sect 287 1893)
Chegamos assim ao tema do terceiro capiacutetulo desta tese que trata da evoluccedilatildeo A hipoacutetese
evolucionaacuteria atende em primeiro lugar a uma necessidade de barrar a regressatildeo infinita das
explicaccedilotildees e de alargar tanto quanto possiacutevel o horizonte da inteligibilidade humana portanto
subsumida agrave maacutexima que ordena natildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeo A estrateacutegia de
produzir explicaccedilatildeo com base em conhecimentos jaacute garantidos gera um regresso ao infinito na
medida em que tais conhecimentos tambeacutem devem ser explicados em funccedilatildeo de outros
conhecimentos preacutevios e assim sucessivamente se natildeo se quiser postular arbitrariamente um
fundamento que seria ele proacuteprio carente de explicaccedilatildeo e desse modo refrataacuterio agrave
inteligibilidade A alternativa sugerida por Peirce eacute de considerar os elementos formadores das
explicaccedilotildees como objetos histoacutericos e dessa maneira a hipoacutetese da cosmologia evolutiva eacute
utilizada para garantir a inteligibilidade dos elementos ao propor uma explicaccedilatildeo de sua
formaccedilatildeo isto eacute uma explicaccedilatildeo geneacutetica Especialmente as leis e suas similaridades diz Peirce
soacute podem ser explicadas a partir de uma perspectiva evolutiva (cf CP 6 sect 13 1891)
A evoluccedilatildeo eacute o modo pelo qual o universo cresce fato que se impotildee agrave experiecircncia e
segundo Peirce as explicaccedilotildees que tecircm por base apenas a atuaccedilatildeo da causalidade eficiente satildeo
incapazes de abarcaacute-lo (CP 1 sect 220 1902) O modo de efetivaccedilatildeo da evoluccedilatildeo confunde-se
assim com a proacutepria maneira da causalidade final atuar Compreendendo o processo de evoluccedilatildeo
seja do cosmo ou de qualquer outro fenocircmeno irreversiacutevel compreenderemos a concepccedilatildeo
23
original de causalidade final empregada pelo filoacutesofo Eacute nos fenocircmenos irreversiacuteveis e no
tratamento insatisfatoacuterio que o mecanicismo (cf CP 6 sect 555 1887 CP 6 sect 614 1893)12
lhes
dispensava que vamos encontrar outra motivaccedilatildeo para a proposiccedilatildeo de uma filosofia evolutiva
aliado ao ideal de ciecircncia que procura natildeo deixar sem explicaccedilatildeo aquilo que pode ser
compreendido por uma hipoacutetese mais abrangente (cf CP 6 sect 60 1892)
Levando-se em conta o sinequismo (cf CP 6 sectsect 169-73 1902)e o evolucionismo (cf CP
1 sectsect 103-9 1896) propostos por Peirce chegamos ao tema do quarto capiacutetulo desta tese o
raciociacutenio abdutivo Jaacute que uma das consequecircncias do sinequismo eacute a de que entre o homem e o
cosmo natildeo haacute qualquer descontinuidade radical que ambos satildeo expressotildees de um mesmo
processo expressotildees que possuem apenas diferenccedila de graus e de que o princiacutepio constituinte das
transformaccedilotildees que ambos sofrem eacute a evoluccedilatildeo temos assim os elementos necessaacuterios para a
compreensatildeo do modo de crescimento do proacuteprio conhecimento humano isto eacute temos condiccedilotildees
de entender porque para Peirce a ciecircncia eacute um projeto realizaacutevel uma vez desconsideradas as
questotildees sobre o tempo que o empreendimento possa tomar para se realizar (cf CP 5 sect409
1878)
O projeto peirceano inicial era o de fundar o meacutetodo de investigaccedilatildeo cientiacutefica na induccedilatildeo
entendida como processo de verificaccedilatildeo empiacuterica de hipoacuteteses Vejamos uma declaraccedilatildeo na qual
Peirce expressa sua esperanccedila na capacidade autocorretiva da induccedilatildeo
Tambeacutem natildeo devemos perder de vista a tendecircncia constante do processo
indutivo para corrigir a si mesmo Isso eacute da sua essecircncia Esta eacute a sua maravilha
A probabilidade de sua conclusatildeo soacute consiste no fato de que se o valor
verdadeiro da relaccedilatildeo procurada natildeo tiver sido alcanccedilado uma extensatildeo do
processo indutivo levaraacute a uma maior aproximaccedilatildeo (CP 2 sect 729 1883)13
12 O objetivo aqui eacute indicar a maneira que Peirce se referia ao mecanicismo e como pretendeu superaacute-lo natildeo entrarei
na discussatildeo sobre a pertinecircncia histoacuterica de suas criacuteticas 13
Nor must we lose sight of the constant tendency of the inductive process to correct itself This is of its essence
This is the marvel of it The probability of its conclusion only consists in the fact that if the true value of the ratio
sought has not been reached an extension of the inductive process will lead to a closer approximation
24
Nessa perspectiva Peirce esperava confirmar a tese de que as correccedilotildees que o processo
indutivo ocasionaria nas hipoacuteteses por meio do confronto com a experiecircncia levariam a um
refinamento das teorias conduzindo a um niacutevel de precisatildeo e seguranccedila que facultaria a
qualificaccedilatildeo das mesmas como verdadeiras No entanto apoacutes uma profunda anaacutelise o filoacutesofo
constatou que a esperanccedila de que esse processo de raciociacutenio pudesse ser autocorretivo e assim
levasse por si soacute a um desenvolvimento contiacutenuo do conhecimento mostrou-se irrealizaacutevel (cf
SKAGESTAD 1981)
A hipoacutetese desencadeadora do processo de investigaccedilatildeo deveria ela proacutepria colocar o
cientista na boa direccedilatildeo caso isso natildeo se verificasse o processo de autocorreccedilatildeo natildeo garantiria o
ecircxito da empresa como afirma o filoacutesofo ldquoUma abduccedilatildeo () eacute a uacutenica esperanccedila possiacutevel de
regulaccedilatildeo racional de nossa conduta futura ()rdquo (CP 2 sect 270 1897)14
Peirce afirma que a
atividade de lanccedilar hipoacuteteses embora faliacutevel e perfeitamente descrito como adivinhaccedilatildeo ou
palpite eacute um processo de inferecircncia loacutegica Seu significado praacutetico eacute o de que devemos agir
animados pela esperanccedila de que o homem adivinha naturalmente as melhores hipoacuteteses para
testar embora como veremos isso natildeo queira dizer que acerte sempre ou que acerte na maioria
das vezes e nem que criteacuterios para a seleccedilatildeo das hipoacuteteses a serem testadas sejam dispensaacuteveis
(cf CP 7 sect 219 1901) Essa sintonia natural entre o homem e o cosmo pode ser vista com o
resultado de um processo de seleccedilatildeo natural que concedeu aos homens essa vantagem evolutiva
para a sobrevivecircncia e da continuidade da mente mas isso natildeo explica tudo pois o alcance da
inteligibilidade humana eacute muito mais amplo do que o acircmbito restrito daqueles conhecimentos que
poderiam ter relevacircncia para a sua sobrevivecircncia (cf 6 sect 307 1893)
Explicar como a abduccedilatildeo funciona para aleacutem das circunstacircncias imediatas e cotidianas
requer a abordagem de outra importante ideia desenvolvida por Peirce de maneira original a sua
concepccedilatildeo de causalidade final o que nos leva ao tema do uacuteltimo capiacutetulo desta tese no qual se
14 An Abduction is (hellip) the only possible hope of regulating our future conduct rationally (hellip)
25
trata especificamente da causalidade final ressaltando a originalidade da concepccedilatildeo peirceana
Para tanto discutiremos em um primeiro momento a insuficiecircncia da utilizaccedilatildeo exclusiva da
causalidade eficiente nos esquemas explicativos dos processos naturais ressaltando segundo a
concepccedilatildeo de Peirce a complementariedade entre causalidade final e causalidade eficiente (cf
CP 1 sectsect 211-2 1902) Aqui se verifica que a causalidade final cumpre um duplo papel a
necessidade de sua inclusatildeo pode ser verificada tanto por razotildees epistemoloacutegicas quanto
ontoloacutegicas Seraacute realizada uma anaacutelise da hostilidade com que tal tipo de causalidade eacute tratado
pela ciecircncia moderna cujas principais objeccedilotildees jaacute foram indicadas acima (cf p 17)15
Uma vez que natildeo podemos ter acesso aos objetos externos agrave nossa experiecircncia cuja
realidade natildeo eacute mais que uma hipoacutetese que torna explicaacutevel o como e o porquecirc de termos do
mundo a experiecircncia que temos dadas as caracteriacutesticas de variaccedilatildeo e regularidade da natureza
a causalidade final eacute uma outra hipoacutetese necessaacuteria na medida em que torna o empreendimento
cientiacutefico possiacutevel isto eacute uma esperanccedila de que possamos produzir expectativas para o futuro e
comportamentos adequados moldados pelo autocontrole (cf CP 2 sect 270 1897)
Para que a ciecircncia seja possiacutevel torna-se fundamental a tarefa de bem classificar os objetos
da experiecircncia Mas qual criteacuterio adotar A escolha injustificada do criteacuterio tornaria ciecircncia uma
espeacutecie de ficccedilatildeo ou ilusatildeo A classificaccedilatildeo natural diraacute Peirce soacute pode ser obtida se
considerarmos a causa final de cada fenocircmeno ainda que isso seja um tanto vago (cf CP 1 sect
204 216 1902) Eacute a causalidade final o criteacuterio correto para a constituiccedilatildeo das diferentes classes
da experiecircncia Ora entretanto natildeo eacute no objeto externo ao homem que o criteacuterio deve ser
buscado mas na proacutepria tendecircncia de desenvolvimento dos fenocircmenos que se observa na
experiecircncia Desse modo a uacutenica ciecircncia possiacutevel eacute uma aposta que se faz um palpite que
enquanto tal eacute eminentemente faliacutevel (cf CP 1 sect 14 sect171 1897)
Como jaacute foi dito Peirce considera a ciecircncia um empreendimento eminentemente faliacutevel
15 Embora natildeo desconheccedilamos a existecircncia de uma grande bibliografia sobre o tratamento das questotildees referentes agrave
causalidade final em outros acircmbitos notadamente na biologia concentramos nossa atenccedilatildeo nesta tese somente na
discussatildeo do conceito no interior da cosmologia peirceana
26
mas ao mesmo tempo absolutamente abrangente O que nos deve guiar na elaboraccedilatildeo de nossas
teorias cientiacuteficas eacute o rigor e a completude com que explicamos o mundo da experiecircncia
A hipoacutetese que encontra na causalidade final uma importante noccedilatildeo para a possibilidade da
realizaccedilatildeo da ciecircncia que eacute marcada pela falibilidade mas ao mesmo tempo em que visa total
abrangecircncia explicativa pode ser vista como uma das etapas das tentativas realizadas por Peirce
para tornar compreensiacutevel a proacutepria existecircncia das leis isto eacute a maneira que percebemos o
mundo e um princiacutepio que nos permite controlar adequadamente a nossa conduta Concordamos
com Short quando afirma que ldquoa intenccedilatildeo da cosmologia era ser uma abordagem evolucionaacuteria
fundamental da lei per serdquo (2011 p 535)
Eacute como aponta Short (cf 2011 p 532) no periacuteodo cosmoloacutegico que Peirce desenvolve a
doutrina do idealismo objetivo (ver TIERCELIN 1998) que afirma que a mente isto eacute o
sentimento eacute anterior agrave mateacuteria Peirce indica que ldquoa uacutenica teoria inteligiacutevel do universo eacute o
idealismo objetivo que a mateacuteria eacute mente empedernida haacutebitos inveterados tornam-se leis
fiacutesicasrdquo (EP 1 p 293 1891)16
O universo desse modo eacute o resultado de um processo que tendo
se originado espontaneamente de uma neacutebula de possibilidades no iniacutecio infinitamente remoto
desenvolveu-se por meio da atuaccedilatildeo de um princiacutepio que Peirce inicialmente denominou de lei da
mente e que posteriormente natildeo sem alteraccedilotildees denominou de causalidade final ou teleologia
Retomemos as palavras do proacuteprio autor
A hipoacutetese sugerida pelo presente escritor eacute a de que todas as leis satildeo resultadas
da evoluccedilatildeo que subjacente a todas as outras leis estaacute a uacutenica tendecircncia que
pode crescer por sua proacutepria virtude a tendecircncia de todas as coisas a adquir
haacutebitos Uma vez que essa mesma tendecircncia eacute a uacutenica lei fundamental da mente
segue-se que a evoluccedilatildeo fiacutesica trabalha segundo fins da mesma forma que a accedilatildeo
mental trabalha segundo fins e portanto em um aspecto da questatildeo seria
perfeitamente correto dizer que causaccedilatildeo final eacute a uacutenica primaacuteria No entanto
por outro lado a lei de haacutebito eacute uma simples lei formal uma lei da causalidade
eficiente de modo que uma ou outra maneira de considerar o assunto eacute
16 The one intelligible theory of the universe is that of objective idealism that matter is effete mind inveterate habits
becoming physical laws
27
igualmente verdadeira embora a primeira seja mais plenamente inteligente (CP
6 sect 101 1902)17
As hipoacuteteses do caos original da lei da mente e da causalidade final podem ser vistas como
etapas em um processo de investigaccedilatildeo realizado com a finalidade de tornar compreensiacutevel o
processo pelo qual o universo se desenvolveu ateacute o momento atual e de constituir-se em um
instrumento heuriacutestico para descoberta futura de leis
17 The hypothesis suggested by the present writer is that all laws are results of evolution that underlying all other
laws is the only tendency which can grow by its own virtue the tendency of all things to take habits Now since this
same tendency is the one sole fundamental law of mind it follows that the physical evolution works towards ends in
the same way that mental action works towards ends and thus in one aspect of the matter it would be perfectly true
to say that final causation is alone primary Yet on the other hand the law of habit is a simple formal law a law of
efficient causation so that either way of regarding the matter is equally true although the former is more fully
intelligent
28
CAPIacuteTULO 01
A HIPOacuteTESE COSMOLOacuteGICA
The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in
the year 4004 BC but is going on today and never will be done is this very
development of Reason (CP 1 sect 615 1903)
29
Neste capiacutetulo seraacute feita uma apresentaccedilatildeo da hipoacutetese cosmoloacutegica peirceana e uma
discussatildeo inicial dos elementos que a constituem Partiremos da apresentaccedilatildeo da teoria da
explicaccedilatildeo desenvolvida por Charles S Peirce na qual a hipoacutetese evolucionaacuteria possui um papel
central e mostraremos como o empreendimento cristalizado na forma da hipoacutetese cosmoloacutegica
poder ser visto como um fruto tardio e necessaacuterio do seu grande projeto de garantir a realizaccedilatildeo
do empreendimento cientiacutefico e de expansatildeo do horizonte da inteligibilidade humana Esse
projeto tem sua mais importante sustentaccedilatildeo como indica o proacuteprio autor na ideia de
continuidade a qual tambeacutem receberaacute aqui uma primeira caracterizaccedilatildeo O conceito de
continuum assume no estudo de sua obra o papel de um fio condutor por meio do qual nos
moveremos entre as estruturas que datildeo sustentaccedilatildeo e encontram-se na origem do cosmo
peirceano cuja pretensatildeo eacute a de ser uma hipoacutetese explicativa do modo de ser atual do universo
Por meio da hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce apresenta os elementos principais de sua
metafiacutesica ou dito de maneira mais direta a metafiacutesica peirceana assume a forma de uma
cosmologia e mais particularmente de uma cosmogonia Eacute a maneira de pensar moldada pela
evoluccedilatildeo que daacute origem agrave apresentaccedilatildeo sob a forma de cosmogonia dos elementos de sua
hipoacutetese cosmoloacutegica
1 NAtildeO BLOQUEAR O CAMINHO DA INVESTIGACcedilAtildeO
Encontra-se presente na obra de Peirce desde seus escritos de juventude uma preocupaccedilatildeo
com a elaboraccedilatildeo de um meacutetodo adequado que nos possa conduzir com ecircxito agrave obtenccedilatildeo da
verdade nos mais variados campos da investigaccedilatildeo humana em particular no cientiacutefico (cf CP
5 sectsect 358-87 1877 5 sectsect 388-410 1878) Neste sentido a agenda de problemas com a qual se
ocupa apresenta uma motivaccedilatildeo inicial que natildeo difere muito daquela proposta e desenvolvida
pelos filoacutesofos modernos em particular por Descartes As diferenccedilas e particularidades do projeto
30
peirceano de elaboraccedilatildeo metodoloacutegica entretanto natildeo tardaratildeo a aparecer
Na seacuterie de textos de 1868-69 conhecida como ldquoseacuterie sobre cogniccedilatildeordquo vemos Peirce
analisar e criticar de maneira bastante contundente os pressupostos da filosofia cartesiana O
principal alvo da criacutetica ali desenvolvida eacute a noccedilatildeo de conhecimento intuitivo ou seja da
afirmaccedilatildeo de que temos a possibilidade de apreender de forma imediata certos tipos de ideias
Sua criacutetica consiste em mostrar que mesmo se tiveacutessemos tal tipo de apreensatildeo natildeo teriacuteamos
condiccedilatildeo de distingui-lo em meio agraves demais cogniccedilotildees que satildeo frutos da mediaccedilatildeo
representacional e desse modo da experiecircncia (cf CP 5 sectsect 283-309 1868) Em outras palavras
enquanto Descartes julgava possiacutevel a obtenccedilatildeo de conhecimento certo e seguro por meio de
premissas que natildeo eram elas proacuteprias conclusotildees Peirce afirma uma nova concepccedilatildeo da accedilatildeo
mental na qual toda premissa eacute ao mesmo tempo conclusatildeo (cf CP 5 sect 213 1868) Jaacute nesses
textos Peirce afirmava a necessidade de se pensar a cogniccedilatildeo como um processo contiacutenuo e
faliacutevel pois ainda que pudessem existir cogniccedilotildees intuitivas natildeo teriacuteamos como reconhececirc-las
(cf CP 5 sectsect 238-43 1868) O resultado de sua anaacutelise foi sintetizado que ele denominou de as
quatro incapacidades humanas
1 Natildeo temos poder de Introspecccedilatildeo todo conhecimento do mundo interno eacute
derivado do nosso conhecimento de fatos externos por raciociacutenio hipoteacutetico
2 Natildeo temos poder de Intuiccedilatildeo mas toda cogniccedilatildeo eacute determinada logicamente
por cogniccedilotildees preacutevias
3 Natildeo temos poder de pensar sem signos
4 Natildeo temos concepccedilatildeo do absolutamente incognosciacutevel (CP 5 sect 4 1868)18
18 1 We have no power of Introspection but all knowledge of the internal world is derived by hypothetical
reasoning from our knowledge of external facts
2 We have no power of Intuition but every cognition is determined logically by previous cognitions
3 We have no power of thinking without signs
4 We have no conception of the absolutely incognizable
31
Obviamente levando-se em conta essas incapacidades a afirmaccedilatildeo do conhecimento
intuitivo implica uma contradiccedilatildeo em termos que Peirce indica da seguinte maneira
() todas as faculdades cognitivas que conhecemos satildeo relativas e
consequentemente os seus produtos satildeo relaccedilotildees Mas a cogniccedilatildeo de uma relaccedilatildeo
eacute determinada por cogniccedilotildees preacutevias Nenhuma cogniccedilatildeo natildeo determinada por
uma cogniccedilatildeo preacutevia portanto pode ser conhecida Ela natildeo existe portanto em
primeiro lugar porque eacute absolutamente incognosciacutevel em segundo porque a
cogniccedilatildeo existe unicamente na medida em que eacute conhecida (EP 1 p 26
1868)19
Do ponto de vista peirceano o projeto de Descartes embora vigoroso e respeitaacutevel20
natildeo
parte de uma visatildeo realista do que eacute o homem enquanto sujeito do conhecimento para Peirce a
caracteriacutestica mais geral daqueles para os quais seu meacutetodo eacute adequado eacute o fato de serem
inteligecircncias que aprendem com a experiecircncia (cf CP 3 sect 428 1896) Eacute a partir da criacutetica a
Descartes que Peirce abre o caminho para a constituiccedilatildeo do seu proacuteprio meacutetodo de investigaccedilatildeo
tarefa que nunca abandonou Mesmo em seus escritos mais tardios podemos encontrar novas
tentativas de elaboraccedilatildeo de provas para o que veio a chamar ldquopragmatismordquo e posteriormente
ldquopragmaticismordquo
Na tentativa de escapar ao regresso das explicaccedilotildees ou da postulaccedilatildeo infundada de um
primeiro ponto de partida para a cogniccedilatildeo Peirce busca no conceito de evoluccedilatildeo presente de
maneira muito pronunciada na ciecircncia da segunda metade do seacuteculo XIX21
um outro caminho
para a fundamentaccedilatildeo do conhecimento Tal conceito assume em sua obra o caraacuteter de ldquoum
postulado da loacutegicardquo (EP 1 p 218 1884) e apenas indica que deve haver uma explicaccedilatildeo simples
19 () all the cognitive faculties we know of are relative and consequently their products are relations But the
cognition of a relation is determined by previous cognitions No cognition not determined by a previous cognition
then can be known It does not exist then first because it is absolutely incognizable and second because a
cognition only exists so far as it is known 20
Veremos posteriormente p 119 desta tese que ao classificar os tipos de meacutetodos de investigaccedilatildeo Peirce expressa
respeito com relaccedilatildeo ao meacutetodo a priori seguido por Descartes 21
Principalmente por meio do trabalho de Charles Darwin
32
para um estado de coisas complexo (cf W 4 p 547) Como um postulado22 o princiacutepio
evolucionista indica um ponto de vista sobre as coisas que se escolhe com a finalidade de
fornecer uma explicaccedilatildeo geral De uma maneira mais simples podemos dizer que a evoluccedilatildeo
representa a escolha de uma perspectiva que atende agrave necessidade de natildeo admitir que fatos
uacuteltimos sejam inexplicaacuteveis (cf CP 6 sect 604 1893) Sua funccedilatildeo enquanto princiacutepio regulador eacute
a de indicar que tipo de hipoacuteteses deve ser escolhido para satisfazer agrave necessidade expressa
acima Como afirma Rosa (2003 p 268) ldquo() eacute enquanto exigecircncia de explicabilidade que a
evoluccedilatildeo eacute um postulado da loacutegicardquo
O objeto a ser explicado por esse princiacutepio regulador natildeo eacute o contingente mas o geral
Dessa maneira o fim buscado eacute a explicaccedilatildeo do universo como uma entidade global Ele tem por
objetivo a explicaccedilatildeo das regularidades do universo ou seja busca uma explicaccedilatildeo para a
existecircncia e para a homogeneidade das leis naturais Eacute em funccedilatildeo dessa caracteriacutestica que
podemos dizer que existe uma cosmologia peirceana Peirce natildeo estava satisfeito com a
incapacidade das teorias aceitas na eacutepoca em fornecer uma explicaccedilatildeo para as leis naturais que
eram tratadas como dados aceitos sem qualquer questionamento A lei como disse em um texto
de 1891 eacute justamente aquilo que necessita de uma razatildeo (cf CP 6 sect 12 1891 1 sect 406 1890)
Na medida em que as leis naturais demonstram regularidades na sua forma de atuar colocam-se
como objeto de uma investigaccedilatildeo cuja finalidade eacute apurar por que razatildeo elas se constituiacuteram
daquela maneira As regularidades satildeo reconhece Peirce em consonacircncia com os cientistas da sua
eacutepoca o objeto de explicaccedilatildeo da ciecircncia aquele entretanto que esperasse o mesmo tratamento
para as leis teria suas expectativas frustradas de modo surpreendente
Toda investigaccedilatildeo afirma Peirce parte de uma surpresa da quebra de uma expectativa real
Em 1877 afirma ainda em oposiccedilatildeo a Descartes
Alguns filoacutesofos imaginaram que para comeccedilar uma investigaccedilatildeo soacute era
necessaacuterio proferir uma questatildeo seja oralmente ou colocando-a em uma folha de
22 Peirce afirma que os grandes avanccedilos cientiacuteficos que ainda estavam por vir seriam frutos da aplicaccedilatildeo de teorias
meacutetodos ou conceitos de uma determinada aacuterea do saber a outras Podemos ver que eacute exatamente o que estaacute fazendo
aqui ao tomar um conceito posto em evidecircncia pela teoria darwiniana como um postulado da loacutegica Esta afirmaccedilatildeo
pode ser vista como uma consequecircncia da tese sinequista
33
papel e ateacute mesmo recomendaram-nos a comeccedilar nossos estudos duvidando de
tudo Mas a mera colocaccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo na forma interrogativa natildeo
estimula a mente a batalhar pela crenccedila Deve existir uma duacutevida real e viacutevida e
sem isso toda discussatildeo eacute vatilde (CP 5 sect 376 1877)23
Esse fato conduz agrave elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses explicativas que se verdadeiras eliminariam a
surpresa do evento Esse processo como indica o filoacutesofo parte do consequente e procura
encontrar um antecedente que o explique O antecedente generaliza os dados dispersos no
consequente Ao tipo de raciociacutenio que nos possibilita criar hipoacuteteses Peirce daacute o nome de
abduccedilatildeo Conforme Rosa (2003 p 269) ldquo() o raciociacutenio abdutivo consiste no processo
imaginativo que parte do particular e procura o universal que o subsume de forma a poder
deduzir o particular a partir do universal dadordquo
A caracteriacutestica mais marcante da generalidade segundo Peirce eacute a continuidade que seraacute
investigada mais detidamente no capiacutetulo dois desta tese (cf CP 4 sect 642 1908) As ideias do
filoacutesofo acerca deste toacutepico estatildeo concentradas na doutrina chamada por ele de doutrina do
sinequismo (cf CP 6 sect 103 1892) Eacute a continuidade que daraacute sustentaccedilatildeo agrave tese evolucionista e
por meio dela agrave hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce trata o sinequismo como um princiacutepio regulador da
loacutegica da mesma maneira que havia feito com a evoluccedilatildeo
O sinequismo natildeo eacute uma doutrina metafiacutesica uacuteltima e absoluta eacute um princiacutepio
regulador da loacutegica prescrevendo que tipo de hipoacutetese eacute adequado agrave
consideraccedilatildeo e ao exame () Em resumo o sinequismo soma ao princiacutepio
segundo o qual as inexplicabilidades natildeo podem ser consideradas como
explicaccedilotildees possiacuteveis (CP 6 sect 173 1902)24
23 Some philosophers have imagined that to start an inquiry it was only necessary to utter a question or set in down
upon paper and have even recommended us to begin our studies with questioning everything But the mere putting
of a proposition into the interrogative form does not stimulate the mind to any struggle after belief There must be a
real and living doubt and without this all discussion is idle 24
Synechism is not an ultimate and absolute metaphysical doctrine it is a regulative principle of logic prescribing
what sort of hypothesis is fit to be entertained and examined () In short synechism amounts to the principle that
inexplicabilities are not to be considered as possible explanations
34
Outra formulaccedilatildeo da hipoacutetese do continuum ou uma de suas consequecircncias eacute aquela
encontrada na afirmaccedilatildeo de que os processos da natureza e os processos da mente humana satildeo
similares (cf 6 sect 289 1893) por esta razatildeo veremos o conceito de haacutebito assumir grande
importacircncia na elaboraccedilatildeo peirceana
Como ficaraacute evidente na proacutexima seccedilatildeo a exposiccedilatildeo dos elementos constituintes e dos
processos de desenvolvimento do cosmo bem como a identificaccedilatildeo do seu princiacutepio geral de
constituiccedilatildeo na lei de aquisiccedilatildeo de haacutebito ou lei da mente assume a forma de uma cosmogonia
que descreve o cosmo em termos antropomoacuterficos Ventimiglia eacute bastante direto ao afirmar que o
caraacuteter antropomoacuterfico da cosmologia peirceana a desqualifica como hipoacutetese cientiacutefica ele
afirma que ldquoa cosmologia de Charles Peirce tem tradicionalmente estado entre os menos
celebrados aspectos de seu pensamento Eacute tipicamente considerada excessivamente
antropomoacuterfica para ser uma seacuteria contribuiccedilatildeo a nossa compreensatildeo da evoluccedilatildeo da realidadeldquo
(VENTIMIGLIA 2008 p 661) Natildeo podemos portanto prosseguir sem antes considerarmos
ainda que brevemente o problema colocado por essa abordagem A dificuldade consiste em
justificar a atribuiccedilatildeo de caracteres humanos a seres ou coisas que natildeo satildeo humanos Em primeiro
lugar eacute preciso notar que Peirce estava consciente dessa dificuldade e respondeu aos seus criacuteticos
nos seguintes termos
Ouccedilo vocecirc dizer bdquoIsto cheira demais a uma concepccedilatildeo antropomoacuterfica‟
Respondo que cada explicaccedilatildeo cientiacutefica de um fenocircmeno natural eacute uma
hipoacutetese de que haacute algo na natureza ao qual a razatildeo humana eacute anaacuteloga e que
realmente eacute assim todos os sucessos da ciecircncia em suas aplicaccedilotildees agrave
conveniecircncia humanas satildeo testemunhas (CP 1 sect 316 1903)25
25 I hear you say This smacks too much of an anthropomorphic conception I reply that every scientific
explanation of a natural phenomenon is a hypothesis that there is something in nature to which the human reason is
analogous and that it really is so all the successes of science in its applications to human convenience are witnesses
35
Como inteligecircncias que aprendem com a experiecircncia e que natildeo possuem outra fonte da qual
retirar o material de seus pensamentos os humanos soacute podem compreender aquilo que tem a
forma da experiecircncia humana A proacutepria ideia de que os acontecimentos naturais se processam
segundo leis pode ser visto como uma projeccedilatildeo do modo pelo qual raciocinamos Diz Peirce
Costumamos conceber a Natureza como estando perpetuamente realizando
deduccedilotildees em Barbara Esta eacute a nossa metafiacutesica natural e antropomoacuterfica
Concebemos que haacute Leis da Natureza que satildeo as suas Regras ou premissas
maiores Concebemos que Casos surgem sob estas leis estes casos consistem na
predicaccedilatildeo ou ocorrecircncia de causas que satildeo os termos meacutedios dos silogismos
E finalmente concebemos que a ocorrecircncia destas causas em virtude das leis
da Natureza resulta em efeitos que satildeo as conclusotildees dos silogismos Conceber
a natureza dessa maneira leva-nos naturalmente a conceber a ciecircncia como tendo
trecircs tarefas - (1) a descoberta de Leis que eacute realizada por induccedilatildeo (2) a
descoberta de Causas que eacute realizado por inferecircncia hipoteacutetica e (3) a prediccedilatildeo
dos Efeitos que eacute realizada por deduccedilatildeo Parece-me ser muito uacutetil selecionar um
sistema de loacutegica que preserve todas essas concepccedilotildees natural (CP 2 sect 713
1883)26
Peirce sugere que a tarefa da ciecircncia eacute definida em funccedilatildeo daquilo que nos eacute mais familiar e
mais sistematizado ou seja o modo de realizar inferecircncia descrito por Aristoacuteteles Essa descriccedilatildeo
prescreve aquilo que se espera seja a tarefa da ciecircncia projetando sobre o mundo categorias que
satildeo proacuteprias do pensamento O que anima a realizaccedilatildeo da ciecircncia como descrita acima eacute a
esperanccedilas de que a natureza proceda de forma loacutegica e isso natildeo eacute nada mais do que uma
concepccedilatildeo antropomoacuterfica
26 We usually conceive Nature to be perpetually making deductions in Barbara This is our natural and
anthropomorphic metaphysics We conceive that there are Laws of Nature which are her Rules or major premisses
We conceive that Cases arise under these laws these cases consist in the predication or occurrence of causes which
are the middle terms of the syllogisms And finally we conceive that the occurrence of these causes by virtue of the
laws of Nature results in effects which are the conclusions of the syllogisms Conceiving of nature in this way we
naturally conceive of science as having three tasks--(1) the discovery of Laws which is accomplished by induction
(2) the discovery of Causes which is accomplished by hypothetic inference and (3) the predictio of Effects which is
accomplished by deduction It appears to me to be highly useful to select a system of logic which shall preserve all
these natural conceptions
36
A criacutetica de antropomorfismo tambeacutem foi endereccedilada agrave teoria darwinista em particular ao
seu conceito de luta (struggle) o qual informa Peirce foi acusado de ser muito antropomoacuterfico
para ser cientiacutefico (cf CP 5 sect 46 1903) Sua resposta foi dada nos seguintes termos
Mas quanto a sua natildeo cientificidade porque eacute antropomoacuterfico eacute uma objeccedilatildeo de
um tipo muito superficial que surge a partir de preconceitos com base em
consideraccedilotildees demasiado estreitas Antropomoacuterfico eacute o que praticamente todas
as concepccedilotildees satildeo na base caso contraacuterio outras raiacutezes para as palavras com as
quais satildeo expressas diferentes das velhas raiacutezes arianas teriam que ser
encontradas E com relaccedilatildeo a qualquer preferecircncia por um tipo de teoria sobre
outro eacute bom lembrar que cada verdade da ciecircncia eacute devida agrave afinidade da alma
humana com a alma do universo imperfeita como tal afinidade sem duacutevida eacute
Dizer portanto que uma concepccedilatildeo eacute natural ao homem eacute praticamente a
mesma coisa que dizer que eacute antropomoacuterfica essa eacute mais elevada das
recomendaccedilotildees que se poderia lhe dar aos olhos de um Loacutegico Exato (CP 5 sect
47 1903)27
Peirce natildeo somente estaacute consciente do aspecto antropomoacuterfico de sua teoria mas tambeacutem
elabora uma defesa das teorias que apresentam esta caracteriacutestica O antropomorfismo eacute uma
decorrecircncia da maneira como entende a possibilidade dos homens adquirirem conhecimento ou
em outras palavras da sua concepccedilatildeo de que a natureza primaacuteria do universo eacute a mente
concepccedilatildeo que pode ser sintetizada sob o roacutetulo que Peirce agraves vezes atribui ao sistema filosoacutefico
de idealismo objetivo (cf CP 6 sectsect 24-5 1891) A relaccedilatildeo entre antropomorfismo experiecircncia e
possibilidade de conhecimento eacute estabelecida nos seguintes termos
27 But as to its being unscientific because anthropomorphic that is an objection of a very shallow kind that arises
from prejudices based upon much too narrow considerations Anthropomorphic is what pretty much all
conceptions are at bottom otherwise other roots for the words in which to express them than the old Aryan roots
would have to be found And in regard to any preference for one kind of theory over another it is well to remember
that every single truth of science is due to the affinity of the human soul to the soul of the universe imperfect as that
affinity no doubt is To say therefore that a conception is one natural to man which comes to just about the same
thing as to say that it is anthropomorphic is as high a recommendation as one could give to it in the eyes of an Exact
Logician
37
() se vocecirc tivesse dito antropomorfismo eu deveria ter respondido que eu
sinceramente abraccedilo a maioria das claacuteusulas dessa doutrina se algum direito a
uma interpretaccedilatildeo particular me for permitido Eu defendo por exemplo que o
homem eacute tatildeo completamente envolvido pelos limites de sua experiecircncia praacutetica
possiacutevel sua mente eacute tatildeo restrita a ser o instrumento de suas necessidades que
ele natildeo pode nem remotamente compreender algo que transcenda aqueles
limites A consequecircncia estrita disto eacute a de que eacute absurdo dizer-lhe que natildeo deve
pensar desta ou daquela forma porque fazecirc-lo seria transcender os limites de
uma experiecircncia possiacutevel Deixe-o tentar empenhadamente pensar qualquer
coisa que esteja aleacutem desse limite isso simplesmente natildeo pode ser feito Assim
como vocecirc pode aprovar uma lei de que nenhum homem deve saltar sobre a lua
isso natildeo lhe proibiria de saltar tatildeo alto quanto possivelmente pudesse (CP 5 536
1905)28
O filoacutesofo chega a afirmar que entre duas concepccedilotildees quaisquer uma com caraacuteter
antropomoacuterfico e outra natildeo preferiria a primeira pois ldquo() outras coisas permanecendo iguais
uma concepccedilatildeo antropomoacuterfica quer faccedila o melhor nuacutecleo para uma hipoacutetese de trabalho
cientiacutefico ou natildeo eacute muito mais provaacutevel que seja aproximadamente verdadeira do que aquela que
natildeo eacute antropomoacuterficaldquo (CP 5 notas 1903)29
Os elementos de todo conceito diz o autor entram
no pensamento loacutegico pela percepccedilatildeo e saem na forma de uma accedilatildeo propositada aqueles que
ldquo() natildeo podem apresentar seus passaportes nos dois portotildees devem ser detidos como natildeo
autorizados pela razatildeoldquo (CP 5 sect 212 1903)30
A exigecircncia de compreensibilidade eacute a principal
caracteriacutestica de toda hipoacutetese desse modo eacute natural que o aspecto antropomoacuterfico confira-lhes
de saiacuteda uma maior recomendaccedilatildeo Diz Peirce ldquo() que a uacutenica justificaccedilatildeo possiacutevel para uma
hipoacutetese eacute que ela torna os fatos compreensiacuteveis e que supocirc-los absolutamente incompreensiacuteveis
28 () if you had said Anthropomorphism I should have replied that I heartily embrace most of the clauses of that
doctrine if some right of private interpretation be allowed me I hold for instance that man is so completely
hemmed in by the bounds of his possible practical experience his mind is so restricted to being the instrument of his
needs that he cannot in the least mean anything that transcends those limits The strict consequence of this is that it
is all nonsense to tell him that he must not think in this or that way because to do so would be to transcend the limits
of a possible experience For let him try ever so hard to think anything about what is beyond that limit it simply
cannot be done You might as well pass a law that no man shall jump over the moon it wouldnt forbid him to jump
just as high as he possibly could 29
() other things being equal an anthropomorphic conception whether it makes the best nucleus for a scientific
working hypothesis or not is far more likely to be approximately true than one that is not anthropomorphic 30
() and whatever cannot show its passports at both those two gates is to be arrested as unauthorized by reason
38
(que eacute o que a doutrina do incognosciacutevel faz) eacute natildeo os tornar compreensiacuteveisldquo (CP 1 sect 316
1903)31
A fim de natildeo introduzir o inexplicaacutevel na natureza Peirce reconhece a necessidade de se
perguntar sobre a proacutepria origem das leis naturais que nas teorias necessitaristas32
entatildeo aceitas
como dissemos satildeo consideradas como dados inquestionaacuteveis
2 UMA ESTOacuteRIA BIZARRA
A centralidade do conceito de haacutebito na filosofia de Charles S Peirce eacute amplamente
reconhecida da mesma forma que o significado peculiar que este lhe atribui A partir de 1890
tendo conseguido vaacuterios avanccedilos no estabelecimento das categorias da experiecircncia Peirce
oferece uma interpretaccedilatildeo da noccedilatildeo de haacutebito por meio da qual lhe eacute conferida um estatuto
ontoloacutegico distanciando-a dessa maneira tanto da noccedilatildeo humeana como daquela utilizada pelos
psicoacutelogos do iniacutecio do seacuteculo XX Como afirma Bortolotti (2003 p 1) ldquo() o haacutebito passa a ser
a categoria universal da lei dotado de objetividaderdquo Como uma lei geral o haacutebito se entranha na
proacutepria constituiccedilatildeo do cosmo Eacute por meio do estabelecimento crescente do haacutebito tanto nos
homens quanto na natureza que se explica a diminuiccedilatildeo das variaccedilotildees e o aumento das
regularidades tanto quanto o incremento do poder humano de compreender o mundo e produzir
um comportamento autocontrolado
Por meio dos haacutebitos a capacidade humana de criar expectativas eacute desenvolvida e pelo
mesmo movimento produz-se um incremento no controle de suas proacuteprias experiecircncias Em um
texto de 1902 Peirce traccedila um quadro no qual eacute definida a noccedilatildeo de haacutebito e sua relaccedilatildeo com
31 () that the only possible justification for a hypothesis is that it renders the facts comprehensible and that to
suppose them absolutely incomprehensible (which is what the doctrine of the Unknowable comes to) is not rendering
them comprehensible 32
Necessitaristas eacute o adjetivo que Peirce utiliza para se referir aos adeptos do mecanicismo cuja principal
caracteriacutestica na opiniatildeo do autor eacute a afirmaccedilatildeo de que cada fato singular do universo eacute precisamente determinado
por lei (cf CP 6 sect 36 1892)
39
uma seacuterie de conceitos que lhe satildeo proacuteximos nele o autor declara
Uma expectativa eacute um haacutebito de imaginaccedilatildeo Um haacutebito natildeo eacute uma afecccedilatildeo da
consciecircncia eacute uma lei geral de accedilatildeo de tal forma que em certo tipo geral de
ocasiatildeo um homem estaraacute mais ou menos apto a agir de certo modo geral Uma
imaginaccedilatildeo eacute uma afecccedilatildeo da consciecircncia que pode ser diretamente comparada
com um percepto com respeito a alguma caracteriacutestica especial e ser
considerada em acordo ou desacordo com ele () Naturalmente cada
expectativa eacute uma questatildeo de inferecircncia () Para nosso objetivo presente eacute
suficiente dizer que um processo inferencial envolve a formaccedilatildeo de um haacutebito
Pois ele produz uma crenccedila ou opiniatildeo e uma crenccedila ou opiniatildeo genuiacutena eacute
algo sobre cujo conteuacutedo o homem estaacute preparado para agir e eacute portanto em um
sentido geral um haacutebito () Pois cada haacutebito tem ou eacute uma lei geral Tudo o
que eacute verdadeiramente geral refere-se ao futuro indefinido pois o passado
conteacutem unicamente uma certa coleccedilatildeo daqueles casos que ocorreram O passado
eacute fato real Mas o (fato) geral natildeo pode ser completamente realizado Eacute uma
potencialidade e o seu modo de ser eacute esse in futuro (CP 2 sect 148 1902)33
Percebemos na longa citaccedilatildeo acima que Peirce deixa claro que a noccedilatildeo de haacutebito estaacute
estreitamente ligada agrave noccedilatildeo de geral que por sua vez eacute outra maneira de fazer referecircncia agraves leis
Toda lei eacute geral e desse modo um haacutebito A noccedilatildeo de haacutebito ultrapassa o aspecto psicoloacutegico
para tornar-se uma categoria ontoloacutegica a de lei
Segundo a teoria do sinequismo reconhecida como a pedra fundamental da arquitetocircnica
peirceana todo geral eacute um continuum Peirce afirma que ldquo() continuidade e generalidade satildeo
dois nomes para a mesma falta de distinccedilatildeo de indiviacuteduosrdquo (CP 4 sect 172 1897)34
Assim ao
falarmos de haacutebitos gerais e em suas constituiccedilotildees estamos referindo agrave proacutepria origem e
33 An expectation is a habit of imagining A habit is not an affection of consciousness it is a general law of action
such that on a certain general kind of occasion a man will be more or less apt to act in a certain general way An
imagination is an affection of consciousness which can be directly compared with a percept in some special feature
and be pronounced to accord or disaccord with it () Of course every expectation is a matter of inference () For
our present purpose it is sufficient to say that the inferential process involves the formation of a habit For it produces
a belief or opinion and a genuine belief or opinion is something on which a man is prepared to act and is
therefore in a general sense a habit () For every habit has or is a general law Whatever is truly general refers to
the indefinite future for the past contains only a certain collection of such cases that have occurred The past is
actual fact But a general (fact) cannot be fully realized It is a potentiality and its mode of being is esse in futuro 34
() continuity and generality are two names for the same absence of distinction of individuals
40
constituiccedilatildeo das leis em particular e para os interesses deste texto das leis naturais ou seja
deslocamo-nos para o campo das discussotildees cosmoloacutegicas e cosmogocircnicas Coerente com sua
determinaccedilatildeo de banir o inexplicaacutevel do reino da ciecircncia Peirce ataca o problema da origem do
universo que usualmente era deixado sem explicaccedilatildeo Para aleacutem da origem a maacutexima que
ordena expandir o horizonte da inteligibilidade cientiacutefica requer uma explicaccedilatildeo da proacutepria
passagem da natildeo-existecircncia para a existecircncia
A maneira como o haacutebito se instaura e cresce eacute propriamente o modo por meio do qual a
cosmogonia peirceana explica o surgimento do cosmo A estrutura mais geral de cosmologia
peirceana eacute indicada pelo filoacutesofo na seguinte passagem
() no iniacutecio - infinitamente remoto - havia um caos de sentimentos impessoais
o qual sem conexatildeo ou regularidade seria propriamente carente de existecircncia
Esse sentimento variando aqui e ali na pura arbitrariedade teria iniciado o
germe da tendecircncia generalizante Suas outras variaccedilotildees poderiam ser
evanescentes mas esta teria uma virtude de crescimento Assim a tendecircncia ao
haacutebito teria comeccedilado e a partir daiacute com os outros princiacutepios de evoluccedilatildeo todas
as regularidades do universo teriam se desenvolvido Em qualquer tempo
entretanto um elemento de puro acaso sobrevive e permaneceraacute ateacute que o
mundo se torne um sistema absolutamente perfeito racional e simeacutetrico no qual
a mente eacute por fim cristalizada em um futuro infinitamente distante (CP 6 sect 33
1891)35
Esta citaccedilatildeo apresenta de forma condensada a narraccedilatildeo do iniacutecio do universo O trabalho
deste capiacutetulo eacute o de compreender os elementos aqui apresentados e as teorias que sustentam esta
abordagem Nota-se que uma vez iniciado o processo de crescimento do universo tanto a accedilatildeo do
acaso como a atuaccedilatildeo das regularidades e ateacute mesmo os eventos catastroacuteficos atuaratildeo para
35 () in the beginning -- infinitely remote -- there was a chaos of unpersonalized feeling which being without
connection or regularity would properly be without existence This feeling sporting here and there in pure
arbitrariness would have started the germ of a generalizing tendency Its other sportings would be evanescent but
this would have a growing virtue Thus the tendency to habit would be started and from this with the other
principles of evolution all the regularities of the universe would be evolved At any time however an element of
pure chance survives and will remain until the world becomes an absolutely perfect rational and symmetrical
system in which mind is at last crystallized in the infinitely distant future
41
formar o universo que conhecemos por meio da experiecircncia
21 O NADA
Peirce como indica Rosa identifica um processo que ocorre antes da proacutepria existecircncia do
universo Um processo de diferenciaccedilatildeo que ocorre no interior do nada e o distingue em dois
tipos um nada caoacutetico e um nada ainda mais primitivo Nas palavras de Rosa
O nada primitivo eacute um estado em que o ldquouniverso natildeo existiardquo um ldquoabsoluto
nadardquo Contudo esse Nada absoluto tem propriedades notaacuteveis na medida em
que a totalidade do universo atual jaacute se encontrava nele em germe com efeito
ele representa a totalidade das possibilidades (ROSA 2003 p 291)
Esse nada pode ser entendido como uma entidade loacutegica constituiacuteda por predicados que
sejam compatiacuteveis Nesse nada portanto encontram-se fundidas todas as possibilidades
consistentes do universo Ele eacute como Peirce indicou o mundo platocircnico (cf CP 6 sect 192 1892)
a partir do qual o mundo surgiu por meio de uma determinaccedilatildeo arbitraacuteria Em outro texto ao
introduzir a hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce afirma
Devemos supor que haacute alguma coisa como uma folha de papel vazia ou com um
espaccedilo vazio sobre o qual um signo interpretante possa ser escrito Qual a
natureza desse vazio Ao permitir a escrita de um siacutembolo ele eacute ipso facto um
siacutembolo embora de um tipo completamente vago (NEM 4 p 260)36
36 We must suppose that there is something like a sheet of paper blank or with a blank space upon it upon which an
interpretant sign may be written What is the nature of this blank In affording room for the writing of a symbol it is
ipso facto itself a symbol although a wholly vague one
42
Esse vazio soacute pode ser um continuum completamente vago37 no qual todas as
possibilidades coerentes estatildeo completamente fundidas O nada eacute nessa etapa um continuum de
infinitas dimensotildees potenciais natildeo distintas (cf CP 6 sect 132 1892 CP 6 sect 193 1898 CP 6 sect
203 1898)
Do nada assim descrito por um processo de contraccedilatildeo da potencialidade em generalidade
surgem as diferentes dimensotildees qualitativas por meio da evoluccedilatildeo que tem lugar antes mesmo
da existecircncia do universo Como afirma Peirce ldquoO processo evolucionaacuterio eacute portanto natildeo uma
mera evoluccedilatildeo do universo existente mas antes um processo pelo qual as proacuteprias formas
platocircnicas se desenvolveram ou se desenvolvemrdquo (CP 6 sect 194 1898)38
Nessa evoluccedilatildeo o
possiacutevel contrai-se no geral por meio de um processo de diferenciaccedilatildeo
A evoluccedilatildeo das formas tem iniacutecio ou em alguma medida possui em seu estaacutegio
inicial uma vaga possibilidade e que eacute ou eacute seguido por um continuum de
formas que possui uma quantidade de dimensotildees muito grande para que a
dimensatildeo individual seja distinta Deve ser a partir da contraccedilatildeo da vagueza
daquela potencialidade de tudo em geral mas de nada em particular que o
mundo das formas surge () e as relaccedilotildees de suas dimensotildees tornam-se
definidas e contraiacutedas (CP 6 sectsect 196-7 1898)39
Do ponto de vista cosmoloacutegico cada dimensatildeo constitui uma qualidade una Aqui temos a
origem do princiacutepio de contradiccedilatildeo no momento da definiccedilatildeo dessas dimensotildees qualitativas
37 A natureza desse continuum potencial merece alguma atenccedilatildeo pois a continuidade presente na origem eacute distinta
daquela recuperada em termos de lei apoacutes o processo evolucionaacuterio entrar em cena Aparentemente a relaccedilatildeo entre
continuidade e lei natildeo eacute simeacutetrica toda lei tem a natureza de um continuum mas natildeo se pode dizer que o inverso seja
verdadeiro Eacute por meio da transformaccedilatildeo do continuum inicial no continuum atual que as formas individuais podem
se estabelecer 38
The evolutionary process is therefore not a mere evolution of the existing universe but rather a process by which
the very Platonic forms themselves have become or are becoming developed 39
The evolution of forms begins or at any rate has for an early stage of it a vague potentiality and that either is or
is followed by a continuum of forms having a multitude of dimensions too great for the individual dimensions to be
distinct It must be by a contraction of the vagueness of that potentiality of everything in general but of nothing in
particular that the world of forms comes about () the relations of its dimensions became definite and contracted
43
Peirce diz ldquoO Agora eacute uno e apenas uno O princiacutepio de contradiccedilatildeo pode ser visto como um
resultado formal da mesma coisa Qualquer objeto A natildeo pode ser azul e natildeo azul ao mesmo
tempordquo (CP 6 sect 231 1898)40
O estado desse nada caoacutetico de n dimensotildees eacute algo que natildeo podemos conceber claramente
mas o processo de formaccedilatildeo das qualidades distintas eacute descrito por Peirce da seguinte maneira
Atualmente jaacute natildeo podemos formar senatildeo uma tecircnue concepccedilatildeo acerca da
continuidade das qualidades intriacutensecas de sentimento O desenvolvimento da
mente humana extinguiu praticamente todos os sentimentos exceto algumas
espeacutecies esporaacutedicas como sons cores cheiros calor etc as quais aparecem
agora desconectadas e diferentes No caso das cores haacute uma difusatildeo
tridimensional de sentimentos Originariamente todos os sentimentos podem ter
estado conectados da mesma forma e a suposiccedilatildeo consiste em que o nuacutemero de
dimensotildees era infinito Na verdade o desenvolvimento envolve de modo
essencial uma limitaccedilatildeo de possibilidade (CP 6 sect 132 1892)41
Na medida em que o continuum inicial vai sendo cindido em n dimensotildees tem iniacutecio um
processo de resistecircncia reciacuteproca entre as dimensotildees Vemos aiacute a atuaccedilatildeo de duas tendecircncias que
se colocavam como meras potencialidades no nada original a tendecircncia agrave diversificaccedilatildeo e a
tendecircncia agrave generalizaccedilatildeo que garante a permanecircncia das dimensotildees e elimina a diversificaccedilatildeo Eacute
a atuaccedilatildeo dessas duas tendecircncias que permite a Peirce estabelecer um importante princiacutepio o
princiacutepio de semelhanccedila e contraste
A semelhanccedila eacute determinada pela posiccedilatildeo que a qualidade ocupa no continuum Peirce diz
que
40 The Now is one and but one The principle of contradiction may be regarded as a formalistic result of the same
thing Any object A cannot be blue and not blue at once 41
Of the continuity of intrinsic qualities of feeling we can now form but a feeble conception The development of the
human mind has practically extinguished all feelings except a few sporadic kinds sound colours smells warmth
etc which now appear to be disconnected and disparate In the case of colours there is a tridimensional spread of
feelings Originally all feelings may have been connected in the same way and the presumption is that the number
of dimensions was endless For development essentially involves a limitation of possibilities
44
Apesar das qualidades naquilo que elas satildeo para si mesmas cada uma sendo um
mero nada para qualquer outra natildeo estarem relacionadas umas com as outras
elas formam contudo um continuum no qual por causa da posiccedilatildeo que nele
ocupam adquirem mais ou menos semelhanccedila e contraste umas em relaccedilatildeo agraves
outras (NEM 4 p 137 ca 1898)42
Eacute a partir da semelhanccedila e contraste que Peirce enuncia a lei da mente a qual seraacute discutida
em mais detalhes na sequecircncia Uma primeira definiccedilatildeo de lei da mente pode ser encontrada nas
seguintes palavras de Peirce
() as ideias tendem a difundir-se continuamente e a afetar certas outras que se
encontram com elas em uma peculiar relaccedilatildeo de afetabilidade Nessa difusatildeo
elas perdem intensidade e especialmente o poder de afetar outras mas adquirem
generalidade e ficam fundidas com outras ideias (CP 6 sect 104 1892)43
Em siacutentese deixando de lado os pormenores da formulaccedilatildeo peirceana pode-se resumir a
hipoacutetese da origem do universo da maneira que se segue Identificam-se trecircs estaacutegios dessa
origem em um primeiro no iniacutecio absoluto antes da proacutepria existecircncia do universo encontra-se
o puro nada segundo a descriccedilatildeo fornecida por Peirce
A condiccedilatildeo inicial antes da existecircncia do universo natildeo foi o estado de um ser
puro e abstrato Ao contraacuterio foi o estado de um absoluto nada nem mesmo um
estado de vazio pois mesmo o vazio eacute alguma coisa Se vamos proceder de um
modo loacutegico e cientiacutefico devemos a fim de considerar todo o universo supor
42 But just as the qualities which as they are for themselves are equally unrelated to one other each being mere
nothing for any other yet form a continuum in which and because of their situation in which they acquire more or
less resemblance and contrast with one and other 43
() ideas tend to spread continuously and to affect certain others which stand to them in a peculiar relation of
affectability In this spreading they lose intensity and especially the power of affecting others but gain generality
and become welded with other ideas
45
uma condiccedilatildeo inicial na qual o universo completo era carente de existecircncia e
assim um estado de absoluto nada (CP 6 sect 215 1898)44
e acrescenta
Natildeo haacute coisa individual nenhuma compulsatildeo externa ou interna nenhuma lei
Eacute o nada germinal no qual todo o universo estaacute envolvido ou prenunciado
Como tal ele eacute possibilidade absolutamente indefinida e ilimitada ndash
possibilidade sem fronteiras Natildeo haacute compulsatildeo nem lei Eacute a liberdade sem
fronteiras (CP 6 sect 217 1898)45
O nada assim descrito eacute um estado indiferenciado de qualidade de sentimento sem relaccedilatildeo
com qualquer outra coisa nos termos peirceanos o sentimento eacute monaacutedico46
A existecircncia do
universo nesse momento era apenas uma das possibilidades tatildeo provaacutevel quanto a sua natildeo
existecircncia O segundo estaacutegio caracterizado pela reaccedilatildeo surge de uma singularidade no interior
do estado de indiferenciaccedilatildeo Peirce fala de reaccedilotildees acidentais ou bdquoflashesrsquo entre os eventos (cf
CP 3 sect 412 1890) isto eacute do surgimento de relaccedilotildees diaacutedicas expressas por reaccedilotildees brutas O
terceiro estaacutegio surge por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo de uma das possibilidades que tem na sua
atualizaccedilatildeo a virtude do seu proacuteprio crescimento isto eacute de tornar mais provaacutevel a sua repeticcedilatildeo
na sequecircncia dos eventos No iniacutecio essas regularidades seriam bastante deacutebeis mas com o
reforccedilo promovido pelo aumento da possibilidade de sua repeticcedilatildeo futura elas se tornariam cada
vez mais fortes ateacute transformarem-se em um haacutebito A regularidade estabelece um tipo de relaccedilatildeo
44 The initial condition before the universe existed was not a state of pure abstract being On the contrary it was a
state of just nothing at all not even a state of emptiness for even emptiness is something If we are to proceed in a
logical and scientific manner we must in order to account for the whole universe suppose an initial condition in
which the whole universe was non-existent and therefore a state of absolute nothing 45
There is no individual thing no compulsion outward nor inward no law It is the germinal nothing in which the
whole universe is involved or foreshadowed As such it is absolutely undefined and unlimited possibility --
boundless possibility There is no compulsion and no law It is boundless freedom 46
Peirce pretende ter provado que todas as relaccedilotildees podem ser reduzidas a trecircs tipos baacutesicos monaacutedicas nas quais os
elementos natildeo possuem quaisquer relaccedilotildees a natildeo ser com eles mesmos eacute o sentimento em sua mais pura expressatildeo
diaacutedicas que eacute a relaccedilatildeo entre dois agraves vezes descrita como atrito ou resistecircncia e triaacutedicas relaccedilatildeo de mediaccedilatildeo
46
triaacutedica caracterizada por um terceiro que faz a mediaccedilatildeo entre um primeiro e um segundo47
Em uma passagem um pouco longa mas muito esclarecedora Peirce traccedila as relaccedilotildees entre
os trecircs elementos constituintes do cosmo e como diante deles o homem pode compreender o
mundo e falar sobre ele
() de acordo com meu modo de ver haacute trecircs categorias de ser ideias de
sentimentos atos de reaccedilatildeo e haacutebitos Haacutebitos satildeo haacutebitos a respeito de
ideias de sentimentos ou haacutebitos a respeito de atos de reaccedilatildeo O conjunto
de todos os haacutebitos a respeito de ideias de sentimentos constitui um
grande haacutebito que eacute um Mundo e o conjunto de todos os haacutebitos a
respeito de haacutebitos de reaccedilatildeo constitui um segundo grande haacutebito que eacute
outro Mundo O primeiro eacute o Mundo Interior o mundo das formas de
Platatildeo O outro eacute o Mundo Exterior ou universo da existecircncia A mente
do homem estaacute adaptada agrave realidade do ser De acordo com isso haacute dois
modos de associaccedilatildeo de ideias associaccedilatildeo interior baseada em haacutebitos do
Mundo Interior e associaccedilatildeo exterior baseada em haacutebitos do Universo A
primeira eacute comumente chamada associaccedilatildeo por semelhanccedila mas em
minha opiniatildeo natildeo eacute a semelhanccedila que causa a associaccedilatildeo mas a
associaccedilatildeo que constitui a semelhanccedila Uma ideia de um sentimento eacute
como ela eacute em si mesma sem quaisquer elementos ou relaccedilotildees Um matiz
de vermelho em si mesmo natildeo se assemelha a outro matiz de vermelho
De fato quando falamos de um matiz de vermelho natildeo eacute da ideia de
sentimento que estamos falando mas de um conjunto de tais ideias Essa
unificaccedilatildeo no Mundo Interior que constitui o que apreendemos e a que
denominamos sua semelhanccedila Estando nossas mentes consideravelmente
adaptadas ao Mundo Interior as ideias de sentimentos atraem-se umas agraves
outras em nossas mentes e no curso de nossa experiecircncia do Mundo
Interior desenvolvem conceitos gerais A tais conjuntos chamamos
qualidades sensiacuteveis Associaccedilotildees de nossos pensamentos tendo por base
os atos de reaccedilatildeo satildeo denominadas associaccedilotildees por contiguidade uma
expressatildeo com a qual natildeo discutirei pois somente os atos de reaccedilatildeo
podem ser contiacuteguos Pois ser contiacuteguo eacute estar proacuteximo no espaccedilo e em
um soacute tempo e somente um ato de reaccedilatildeo pode preencher um espaccedilo por
ele mesmo A mente por sua adaptaccedilatildeo instintiva ao Mundo Exterior
representa as coisas como estando no espaccedilo o qual eacute sua representaccedilatildeo
intuitiva da conjunccedilatildeo de reaccedilotildees ou para usar uma frase mais familiar
um centro de forccedilas Consequentemente desse duplo modo de associaccedilatildeo
de ideias quando algueacutem chega a formar uma linguagem produz palavras
de duas classes palavras que denominam coisas coisas essas que ele
identifica pela uniatildeo de suas reaccedilotildees essas palavras satildeo nomes proacuteprios e
47 Temos por meio da narraccedilatildeo acima uma caracterizaccedilatildeo inicial das categorias fenomenoloacutegicas peirceana
primeiridade caracterizada por relaccedilotildees monaacutedicas secundidade caracterizada por relaccedilotildees diaacutedicas e terceiridade
caracterizada por relaccedilotildees triaacutedicas (cf IBRI 1992)
47
palavras que significam ou querem dizer qualidades que satildeo fotografias
compostas de ideias de sentimentos e tais palavras satildeo verbos ou porccedilotildees
de verbos tais como satildeo os adjetivos os substantivos comuns etc (CP 4
sect 157 1897)48
A espontaneidade potencial ou puro sentimento deu origem ao universo atual que
continua em crescimento Entre as possibilidades uma destacou-se por ter a cada realizaccedilatildeo o
incremento da possibilidade de suas realizaccedilotildees futuras Peirce denomina essa possibilidade
peculiar de princiacutepio motor responsaacutevel pela origem e desenvolvimento das regularidades de lei
da mente lei de associaccedilatildeo de ideias ou lei do haacutebito Rosa (2003) tece o seguinte comentaacuterio a
respeito da origem do universo segundo a cosmologia peirceana
O comeccedilo do processo cosmogocircnico consiste precisamente num processo que
parte de uma alta intensidade de grande espontaneidade e que tende a anular
essa intensidade atraveacutes de ideias gerais As ideias gerais reduzem a intensidade
na medida em que satildeo atractores para outras ideias situadas na sua vizinhanccedila
Noutros termos houve um momento em que uma grande quantidade de
48 () according to my view there are three categories of being ideas of feelings acts of reaction and habits Habits
are either habits about ideas of feelings or habits about acts of reaction The ensemble of all habits about ideas of
feeling constitutes one great habit which is a World and the ensemble of all habits about acts of reaction constitutes
a second great habit which is another World The former is the Inner World the world of Platos forms The other is
the Outer World or universe of existence The mind of man is adapted to the reality of being Accordingly there are
two modes of association of ideas inner association based on the habits of the inner world and outer association
based on the habits of the universe The former is commonly called association by resemblance but in my opinion it
is not the resemblance which causes the association but the association which constitutes the resemblance An idea
of a feeling is such as it is within itself without any elements or relations One shade of red does not in itself
resemble another shade of red Indeed when we speak of a shade of red it is already not the idea of the feeling of
which we are speaking but of a cluster of such ideas It is their clustering together in the Inner World that constitutes
what we apprehend and name as their resemblance Our minds being considerably adapted to the inner world the
ideas of feelings attract one another in our minds and in the course of our experience of the inner world develop
general concepts What we call sensible qualities are such clusters Associations of our thoughts based on the habits
of acts of reaction are called associations by contiguity an expression with which I will not quarrel since nothing
can be contiguous but acts of reaction For to be contiguous means to be near in space at one time and nothing can
crowd a place for itself but an act of reaction The mind by its instinctive adaptation to the Outer World represents
things as being in space which is its intuitive representation of the clustering of reactions What we call a Thing is a
cluster or habit of reactions or to use a more familiar phrase is a centre of forces In consequence of this double
mode of association of ideas when man comes to form a language he makes words of two classes words which
denominate things which things he identifies by the clustering of their reactions and such words are proper names
and words which signify or mean qualities which are composite photographs of ideas of feelings and such words
are verbs or portions of verbs such as are adjectives common nouns etc
48
sentimento estava associada a cada qualidade era um estado de espontaneidade
ilimitada das qualidades um sentimento muito intenso presente em cada
variaccedilatildeo infinitesimal Essa espontaneidade diminui assim que deixa de haver o
sentimento de variaccedilotildees ldquomuito pequenasrdquo da qualidade (CP 6 sect 136 1892) Jaacute
natildeo eacute a passagem do Nada inicial para qualquer coisa de definido mas sim do
que Peirce chamava o caos inicial das qualidades para uma generalizaccedilatildeo cada
vez maior (ROSA 2003 p 297-8)
A narraccedilatildeo da origem do universo pode parecer para muitos algo bastante estranho e em
desacordo com o todo da obra peirceana Um de seus comentadores a denominou de ldquoestoacuteria
bizarrardquo (cf HOOKWAY 1997) A leitura dessa narrativa faz surgir de imediato duas criacuteticas
Em primeiro lugar pode argumentar-se que as categorias peirceanas de primeiridade
secundidade e terceiridade natildeo satildeo universais uma vez que natildeo estatildeo presentes desde o iniacutecio (cf
HOOKWAY 1985 p 273) A categoria de terceiridade soacute teria surgido depois que a tendecircncia ao
estabelecimento de haacutebitos estivesse operante e no iniacutecio absoluto natildeo haveria sequer a
secundidade Uma maneira de evitar essa criacutetica eacute lembrar que para Peirce a sequecircncia descrita
acima eacute loacutegica (cf CP 6 sect 214 1898) e natildeo cronoloacutegica aliaacutes como deixa bastante claro o
tempo eacute um continuum e desse modo soacute entra em cena apoacutes o estabelecimento da terceiridade Eacute
o processo loacutegico descrito acima que lhe daacute origem Por meio desse raciociacutenio a universalidade
de suas categorias eacute preservada ainda que sua limitaccedilatildeo neste caso talvez fosse um preccedilo que
Peirce estivesse disposto a pagar Esta resposta pode ser enriquecida com a consideraccedilatildeo de que eacute
impossiacutevel atingir o iniacutecio absoluto Mesmo se pudeacutessemos voltar no tempo veriacuteamos as leis se
tornarem mais e mais deacutebeis e a variedade crescer constantemente afirma Peirce Contudo ainda
que a aproximaccedilatildeo do iniacutecio absoluto se tornasse cada vez maior natildeo poderiacuteamos atingi-lo
Como aponta Hookway
Ainda que nunca atingiacutessemos o caos inicial de sentimentos ainda assim
poderiacuteamos ficar arbitrariamente proacuteximos dele se continuaacutessemos por um
tempo suficiente longo o caos eacute algo que a histoacuteria poderia abordar como um
limite e o pensamos como o ponto limite dessa histoacuteria (HOOKWAY 1985 p
273)
49
Do mesmo modo pensar o fim uacuteltimo do universo como um estado absolutamente
ordenado e regular eacute tambeacutem um limite ao qual podemos apenas nos aproximar mais e mais sem
contudo alcanccedilar Quando Peirce se refere a tais estados limites coloca-os em momentos
infinitamente distantes e infinito aqui natildeo deve ser interpretado como uma figura de linguagem
mas como refletindo exatamente o intervalo que nos separa desses momentos
A outra criacutetica possiacutevel eacute a de que Peirce postula a existecircncia de um caos de indeterminaccedilatildeo
e possibilidades sem contudo fornecer qualquer explicaccedilatildeo ao mesmo Formulada de outra
forma bastante proacutexima da criacutetica endereccedilada a Peirce por Paul Carus49 como explicar a
presenccedila desses elementos fundamentais indicados por Peirce como iniciadores do processo de
desenvolvimento evolutivo do universo isto eacute do caos inicial das reaccedilotildees ao acaso e da
tendecircncia ao haacutebito
Em 1892 no texto ldquoA doutrina da necessidade examinadardquo ao realizar a defesa da
existecircncia do acaso absoluto como um princiacutepio operante no desenvolvimento do cosmo Peirce
afirma que a lei eacute justamente aquilo que necessita de uma explicaccedilatildeo ao passo que exigir o
mesmo para o acaso seria um equiacutevoco O caos inicial natildeo eacute ou seja natildeo possui o predicado de
existecircncia visto que a potencialidade eacute sua uacutenica propriedade A existecircncia segundo a
abordagem peirceana eacute uma relaccedilatildeo de dois caracterizada pelo atrito e pela resistecircncia o caos
inicial eacute pura possibilidade de qualidade e enquanto tal apresenta apenas relaccedilotildees monaacutedicas
radicalmente livres Como afirma Hookway ldquo() o caos inicial - sendo um estado carente de
existecircncia ou realidade um estado de puro nada - natildeo eacute o tipo de coisa que precisa ser explicadordquo
(HOOKWAY 1985 p 274) Nem o caos inicial e nem mesmo os eventos puramente reativos ou
flashes necessitam de qualquer explicaccedilatildeo o mesmo natildeo se pode dizer contudo da tendecircncia agrave
aquisiccedilatildeo de haacutebitos que eacute uma regularidade Seguindo o mesmo raciociacutenio que fizemos
anteriormente se retornaacutessemos ao passado veriacuteamos o poder da tendecircncia agrave aquisiccedilatildeo de
haacutebitos diminuir cada vez mais contudo nunca chegariacuteamos a um momento em que estivesse
ausente dos ingredientes constituintes do cosmo E na medida em que eacute uma possibilidade a sua
49 Editor do The Monist jornal que recebeu muitas contribuiccedilotildees de Peirce
50
origem pode ser explicada a partir da espontaneidade do caos inicial
22 O ACASO
Para Peirce a adoccedilatildeo da noccedilatildeo de acaso eacute em primeiro lugar uma necessidade da proacutepria
teoria da explicaccedilatildeo A sua introduccedilatildeo eacute feita por meio da sujeiccedilatildeo a um imperativo loacutegico
alusivo agrave hipoacutetese peirceana de que toda questatildeo que possa ser formulada de modo inteligiacutevel
tem necessariamente que possuir uma resposta racional Como afirma em um texto de 1884
ldquoDesiacutegnio e acasordquo
() a hipoacutetese do acaso absoluto eacute parte e parcela da hipoacutetese de que tudo eacute
explicaacutevel natildeo absolutamente rigidamente sem a menor inexatidatildeo ou exceccedilatildeo
esporaacutedica pois esta eacute uma suposiccedilatildeo autocontraditoacuteria contudo explicaacutevel de
modo geral A capacidade de explicaccedilatildeo natildeo tem limite determinado amp absoluto
(W 4 p 549 1883-4)50
O imperativo que manda ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo tem nessas palavras
uma de suas traduccedilotildees Como aponta Peirce um dos principais defeitos das teorias deterministas
encontra-se no fato de que elas deixam sem explicaccedilatildeo uma seacuterie de aspectos do cosmo O que
dizer sobre a proacutepria origem das leis deterministas Por que o universo segue estas leis e natildeo
outras E quanto agrave diversidade observada no universo Como ela eacute possiacutevel Como do
indiferenciado pocircde surgir a diferenccedila por meio da atuaccedilatildeo de leis estritamente deterministas
que levam de causas idecircnticas a efeitos idecircnticos A resposta a estas questotildees expande o universo
da inteligibilidade humana Eacute justamente o que pretende Peirce com a elaboraccedilatildeo e exploraccedilatildeo da
50 () the hypothesis of absolute chance is part and parcel of the hypothesis that everything is explicable not
absolutely rigidly without the smallest inexactitude or sporadic exception for that is a self-contradictory supposition
but yet explicable in a general way Explicability has no determinate amp absolute limit
51
hipoacutetese do acaso como um ingrediente essencial da constituiccedilatildeo do universo tal qual o
percebemos
Um dos aspectos mais originais do pensamento de Charles S Peirce eacute a presenccedila de um
princiacutepio de indeterminaccedilatildeo como elemento fundador de sua cosmologia Contrariamente a
muitos que procuram insistentemente ancorar a realidade sobre a permanecircncia e a imutabilidade
de certos elementos Peirce assume de maneira inquestionaacutevel a liberdade e a falta de
necessidade do mundo ser como eacute Ainda que o processo de desenvolvimento se decirc em funccedilatildeo de
certos princiacutepios norteadores natildeo haacute impedimento algum que barre a irrupccedilatildeo da novidade
radical no rearranjo de seus constituintes Um fato que na visatildeo de Peirce natildeo pode ser ignorado
eacute o de que o universo demonstra um processo de contiacutenuo crescimento que propicia o aumento
da complexidade de forma irreversiacutevel
O acaso eacute o elemento central da tese peirceana do indeterminismo denominada de tiquismo
(ver REYNOLDS 2009 SALATIEL 2008) Com o tiquismo o autor afirma que haacute no mundo
um caraacuteter de real espontaneidade natildeo devido agrave nossa subjetividade ou incapacidade cognitiva
mas agrave sua proacutepria constituiccedilatildeo ontoloacutegica Esse elemento nega a possibilidade do
desenvolvimento necessaacuterio dos sistemas determinados pelas leis mecacircnicas e pelas condiccedilotildees
iniciais as quais soacute podem ser entendidas como estatiacutesticas Peirce explica dessa maneira que
pela atuaccedilatildeo do acaso surgem a novidade e a variedade no universo
A concorrecircncia desses dois ingredientes acaso e lei implica a elaboraccedilatildeo de uma
epistemologia falibilista ou seja natildeo haacute verdades absolutas na concepccedilatildeo peirceana apenas
aproximaccedilotildees O erro eacute sempre uma possibilidade presente na tentativa de compreensatildeo realizada
pelo homem Para o filoacutesofo
() o universo natildeo eacute um mero resultado mecacircnico da atuaccedilatildeo cega da lei O
mais oacutebvio de seus caracteres natildeo pode ser explicado Satildeo os numerosos fatos da
experiecircncia que nos mostra isso mas aquilo que abriu os nossos olhos para esses
52
fatos eacute o princiacutepio do falibilismo (CP 1 sect 162 1897)51
Peirce eacute bastante radical ao afirmar que natildeo haacute crenccedilas estabelecidas na ciecircncia Todas as
proposiccedilotildees aceitas estatildeo sujeitas ao confronto com a experiecircncia Nas palavras do autor
() ciecircncia pura natildeo tem nada a ver com accedilatildeo As proposiccedilotildees aceitas satildeo
meramente escritas na lista de premissas que se propotildee a usar Nada eacute vital para
a ciecircncia nada pode ser Suas proposiccedilotildees aceitas portanto natildeo satildeo mais que
opiniotildees e a lista toda eacute provisoacuteria O homem cientiacutefico natildeo estaacute minimamente
soldado agraves suas conclusotildees Ele nada arrisca por elas Permanece apto a
abandonar uma ou todas tatildeo logo a natureza a elas se oponha Algumas delas eu
concedo satildeo habitualmente chamadas de verdades estabelecidas mas isto
meramente indica proposiccedilotildees a que nenhum homem experiente se opotildee hoje
Parece que qualquer proposiccedilatildeo provaacutevel daquele tipo permaneceraacute por um
longo tempo na lista de proposiccedilotildees a serem admitidas Contudo ela pode ser
refutada amanhatilde e se for assim o homem cientiacutefico se alegraraacute de ter se livrado
de um erro Natildeo haacute desse modo na ciecircncia proposiccedilotildees que respondam pelo
conceito de crenccedila (CP 1 sect 635 1908)52
Para Peirce existe uma afinidade natural entre o princiacutepio de continuidade e a doutrina do
falibilismo nunca podemos estar certo da verdade de nossas crenccedilas pois natildeo podemos comparaacute-
las com os fatos natildeo mentais
51 () the universe is not a mere mechanical result of the operation of blind law The most obvious of all its
characters cannot be so explained It is the multitudinous facts of all experience that show us this but that which has
opened our eyes to these facts is the principle of fallibilism 52
() pure science has nothing at all to do with action The propositions it accepts it merely writes in the list of
premisses it proposes to use Nothing is vital for science nothing can be Its accepted propositions therefore are but
opinions at most and the whole list is provisional The scientific man is not in the least wedded to his conclusions
He risks nothing upon them He stands ready to abandon one or all as soon as experience opposes them Some of
them I grant he is in the habit of calling established truths but that merely means propositions to which no
competent man today demurs It seems probable that any given proposition of that sort will remain for a long time
upon the list of propositions to be admitted Still it may be refuted tomorrow and if so the scientific man will be
glad to have got rid of an error There is thus no proposition at all in science which answers to the conception of
belief
53
O princiacutepio da continuidade eacute a ideia do falibilismo objetivado Pois o
falibilismo eacute a doutrina de que o nosso conhecimento nunca eacute absoluto mas
sempre flutua como se estivesse em um contiacutenuo de incerteza e
indeterminaccedilatildeo A doutrina da continuidade eacute a de que todas as coisas flutuam da
mesma maneira no continuum (CP 1 sect 171 1897)53
A passagem da natildeo existecircncia do universo agrave existecircncia se daacute por meio da evoluccedilatildeo ou
crescimento da lei em um processo no qual interferem tanto a criatividade radical fornecida pelo
acaso quanto a proacutepria lei que se fortalece com sua proacutepria aplicaccedilatildeo
Em resumo podemos dizer que do ponto de vista cosmoloacutegico o desenrolar dos
acontecimentos no universo se processa de maneira contiacutenua Esse desenvolvimento que para
Peirce eacute bem caracterizado pelo termo bdquocrescimento‟ molda dentro de sua concepccedilatildeo
cosmoloacutegica todos os elementos constituintes de nosso universo desde o mais riacutegido dos
elementos ateacute aqueles mais volaacuteteis desde um diamante ateacute a proacutepria mente humana Esse
universo em crescimento encontra no acaso seu constituinte fundamental como uma
decorrecircncia loacutegica necessaacuteria do princiacutepio que manda natildeo postular o incognosciacutevel no seio da
natureza (cf CP 6 sect 64 1892) e que Peirce assume como uma regra do meacutetodo cientiacutefico Na
passagem do acaso primordial ao universo ordenado e regido por leis interfere um princiacutepio que o
autor denomina de lei da mente ou princiacutepio de aquisiccedilatildeo de haacutebitos
Eacute possiacutevel enxergar a elaboraccedilatildeo teoacuterica peirceana como a resultante de um diaacutelogo com a
Ciecircncia e a Matemaacutetica do seacuteculo XIX A leitura que Peirce fez da obra de Charles Darwin
(1809ndash1882) bem como os avanccedilos da teoria matemaacutetica da probabilidade e estatiacutestica e da
mecacircnica estatiacutestica com os quais teve iacutentimo contato forneceram as bases para pensar a
variaccedilatildeo e o acaso54 Eacute com base nesse conceito que Peirce proporaacute uma alternativa ao modelo de
53 The principle of continuity is the idea of fallibilism objectified For fallibilism is the doctrine that our knowledge is
never absolute but always swims as it were in a continuum of uncertainty and of indeterminacy Now the doctrine
of continuity is that all things so swim in continua 54
Os termos usados por Peirce para referenciar esse elemento de total liberdade existente no cosmo satildeo variation
sporting e chance que aparecem em vaacuterios momentos de sua obra principalmente apoacutes a leitura que realizou ainda
jovem da obra capital de Charles Darwin A origem das espeacutecies (1859)
54
cientificidade da eacutepoca que estava calcado em uma atitude fisicalista e determinista e defendia a
busca de leis mecacircnicas de alcance universal e necessaacuterio
23 A DOUTRINA DA NECESSIDADE
Em seu mais elaborado texto sobre sua posiccedilatildeo indeterminista A doutrina da necessidade
examinada Peirce inicia por apresentar a crenccedila bastante presente em seu tempo que seraacute objeto
de sua anaacutelise ldquo() que todo fato no universo eacute precisamente determinado por leirdquo (CP 6 sect 36
1892)55
Essa crenccedila que para muitos pode parecer bastante natural natildeo se impotildee a todas as
mentes racionais diraacute o autor A ideia de que haacute acontecimentos naturais que ocorrem sem
determinaccedilatildeo de uma lei eacute bastante difundida desde a origem da filosofia56 e estaacute presente ateacute
mesmo nos trabalhos de Aristoacuteteles57 Natildeo obstante estas constataccedilotildees a tese do determinismo
aparece como inquestionaacutevel para os cientistas de seu tempo e podemos dizer ainda manteacutem
cativos vaacuterios pensadores no presente seacuteculo Parafraseando Pierre Simon Laplace (1749 ndash 1827)
o fiacutesico francecircs do seacuteculo XVIII que popularizou esta teoria Peirce sintetiza a crenccedila no
determinismo nas seguintes palavras
A proposiccedilatildeo em questatildeo eacute a de que o estado das coisas existentes em qualquer
tempo junto com certas leis imutaacuteveis determina completamente o estado de
coisas em qualquer outro tempo (pois a limitaccedilatildeo do tempo futuro eacute
indefensaacutevel) Assim dado o estado do universo na neacutebula original e dadas as
leis da mecacircnica uma mente suficientemente poderosa poderia deduzir a partir
desses dados a forma precisa de qualquer volteio de qualquer letra que estou
55 () that every single fact in the universe is precisely determined by law
56 Basta ver o trabalho de Epicuro que tomando a doutrina dos atomistas afirma que os aacutetomos desviam-se de seu
curso sob a accedilatildeo do acaso espontacircneo 57
Segundo Peirce Aristoacuteteles condena as doutrinas deterministas afirmando que os eventos podem surgir de trecircs
modos diferentes ldquo(1) por compulsatildeo externa ou accedilatildeo de causas eficientes (2) por virtude da natureza interna ou
influecircncia de causas finais e (3) irregularmente sem qualquer causa definida soacute pelo acaso absolutordquo (CP 6 sect 36
1892)
55
agora escrevendo (CP 6 sect 37 1892)58
A abordagem dos deterministas eacute dita em termos da teoria das categorias peirceana
carregada da noccedilatildeo de secundidade Como aponta o autor a questatildeo natildeo precisa nem ser
colocada em termos da negaccedilatildeo da noccedilatildeo de primeiridade59
que poderia muito bem ser admitida
pelos defensores do determinismo no niacutevel atocircmico sem grandes implicaccedilotildees O que tais
defensores natildeo podem aceitar eacute ldquo() a atribuiccedilatildeo dessa primeiridade a coisas completamente
mortas e materiaisrdquo (CP 6 sect 201 1898)60
Aqueles que comungam do credo determinista utilizam-se de dois tipos principais de
argumentos para justificaacute-lo Em primeiro lugar afirmam que ele deve ser visto como um
postulado que possibilita a praacutetica e o desenvolvimento da ciecircncia e em segundo lugar
acrescentam que a observaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais fornece evidecircncias suficientes para a sua
defesa
Sigamos mais um pouco na anaacutelise realizada por Peirce enfocando cada uma das
justificaccedilotildees Quanto agrave primeira justificativa o autor se pergunta o que se entende por postulado e
responde que ldquoEacute a formulaccedilatildeo de um fato material o qual natildeo estamos autorizados a assumir
como uma premissa mas cuja verdade eacute necessaacuteria para a validade de uma inferecircnciardquo (CP 6 sect
41 1892)61
Assim um postulado pode ser um fato que obtemos ou natildeo em nossa experiecircncia
Caso faccedila parte do mundo vivido estariacuteamos autorizados a utilizaacute-lo como premissa caso natildeo
faccedila parte ele deve ser justificado pela possibilidade de ser de outra maneira do que a assumida
isto eacute o postulado eacute vaacutelido na medida em que a experiecircncia o justifica De qualquer modo ldquo()
58 The proposition in question is that the state of things existing at any time together with certain immutable laws
completely determine the state of things at every other time (for a limitation to future time is indefensible) Thus
given the state of the universe in the original nebula and given the laws of mechanics a sufficiently powerful mind
could deduce from these data the precise form of every curlicue of every letter I am now writing 59
Primeiridade ou firstness eacute uma das categorias fenomenoloacutegicas peirceana sua caracteriacutestica principal eacute a
liberdade e espontaneidade 60
() the attribution of this firstness to things perfectly dead and material 61
It is the formulation of a material fact which we are not entitled to assume as a premiss but the truth of which is
requisite to the validity of an inference
56
cada postulado eacute eliminado quer por serem provisoacuterios ou pela experiencialidade de nossa
inferecircnciardquo (CP 6 sect 41 1892)62
O que Peirce estaacute discutindo eacute o tipo de validade que podemos atribuir ao raciociacutenio
indutivo e o grau de certeza dele decorrente Ainda que esse tema tenha sido tratado de modo
mais demorado em outros momentos da sua produccedilatildeo reportaremos apenas aos elementos
contidos na elaboraccedilatildeo do texto em anaacutelise
Natildeo se pode negar a existecircncia e a utilidade do pensamento indutivo poreacutem o que se
coloca em questatildeo eacute a necessidade de suas conclusotildees Os indutivistas afirmam que se tomarmos
um conjunto de amostras sucessivas devolvendo cada uma ao conjunto antes que a proacutexima
amostra seja retirada verificar-se-aacute apoacutes certo nuacutemero de vezes a tendecircncia de que cada
elemento seraacute retirado com a mesma frequecircncia Ou seja que ldquo() a razatildeo do nuacutemero de vezes
nas quais quaisquer dois satildeo retirados aproximaraacute indefinidamente da unidaderdquo (CP 6 sect 41
1892)63
Mas isso natildeo acontece afirma Peirce pois o que eacute medido eacute a proacutepria razatildeo de cada
amostra e natildeo a razatildeo do conjunto que permanece latente e desconhecida que eacute justamente o que
se quer determinar Por outro lado basta consultar a experiecircncia para saber que os elementos
obtidos na primeira amostra seratildeo mais frequentes depois de uma grande quantidade de amostras
Os indutivistas dizem ainda que ldquo() sob circunstacircncias semelhantes eventos semelhantes
ocorreratildeo e que este postulado eacute na base o mesmo que o princiacutepio da causalidade universalrdquo
(CP 6 sect 41 1892)64
Segundo Peirce essa afirmaccedilatildeo natildeo passa de uma grande bobagem devido
a pensadores que acreditam que as respostas soacute possam ser dadas em termos absolutos de 0 ou 1
Existe uma infinidade de possibilidades entre esses dois valores que deve ser levada em
consideraccedilatildeo
Em resumo poderiacuteamos dizer que uma quantidade fiacutesica nunca eacute do tipo absoluto A
62 () every postulate is cut off either by the provisionality or by the experientiality of our inference
63 () that the ratio of the numbers of times in which any two are drawn will indefinitely approximate to unity
64 () under like circumstances like events will happen and that this postulate is at bottom the same as the principle
of universal causation
57
praacutetica laboratorial de Peirce como eacute por ele ressaltada vaacuterias vezes em sua obra mostrou-lhe
que as quantidades fiacutesicas satildeo sempre estatiacutesticas e podem ser representadas por um conjunto de
valores aproximados graficamente transcritos na curva-sino das equaccedilotildees estatiacutesticas
Quanto ao segundo tipo de justificaccedilatildeo Peirce afirma que eacute de um tipo especial e que se a
primeira justificativa puder ser rebatida com um argumento que qualquer ser racional possa
aceitar a referecircncia agrave observaccedilatildeo da natureza requer um tipo especial de anaacutelise que natildeo
obstante deveria convencer uma pessoa acostumada a pensar cientificamente
A essecircncia da argumentaccedilatildeo dos que julgam as leis da natureza necessaacuterias eacute de que ldquo()
certas quantidades contiacutenuas tecircm certos valores exatosrdquo (CP 6 sect 44 1892)65
mas como a
observaccedilatildeo poderia determinar o valor de tal quantidade com erro nulo ndash pergunta-se o autor Se
for possiacutevel encontrar um meacutetodo para se determinar um valor absoluto para as quantidades na
fiacutesica ele deveraacute ser buscado em uma esfera diferente daquela da observaccedilatildeo
Se natildeo conhecemos o conjunto completo do qual uma determinada amostra foi retirada
natildeo estamos autorizados a sustentar que natildeo haacute nele qualquer traccedilo de um elemento que
aparentemente encontra-se ausente Dessa maneira natildeo temos porque sustentar que natildeo haja
qualquer elemento de acaso ou desvios espontacircneos agindo em qualquer lei da natureza
A observaccedilatildeo que inicialmente eacute tida pelos deterministas como uma justificativa em favor
de suas teses eacute apropriada por Peirce que a transforma em um argumento favoraacutevel agrave sua proacutepria
posiccedilatildeo Por meio da observaccedilatildeo afirma o autor apenas se constata que haacute certas regularidades
agindo na natureza mas isso natildeo eacute suficiente para afirmar que essas regularidades possam ser
elevadas agrave condiccedilatildeo de leis absolutas e necessaacuterias Ao contraacuterio quanto mais acuradas forem as
observaccedilotildees mais ficaraacute demonstrado que haacute uma irregularidade reinante nos fatos naturais Nas
palavras de Peirce ldquoTente verificar qualquer lei da natureza e vocecirc apuraraacute que quanto mais
precisas forem suas observaccedilotildees mais certamente elas mostraratildeo desvios irregulares da leirdquo (CP
65 () certain continuous quantities have certain exact values
58
6 sect 46 1892)66
Mesmo aqueles que retrocederem nas cadeias causais dos fatos seratildeo forccedilados a
admitir que estes sejam sempre devidos a determinaccedilotildees arbitraacuterias ou ao acaso
Tendo rebatido as pretensotildees dos deterministas do modo que se viu Peirce passaraacute a expor
aquilo que nos interessa de maneira mais especiacutefica neste texto em que consiste e como pode ser
pensado o acaso absoluto
Procedendo de maneira bastante didaacutetica o autor defenderaacute sua concepccedilatildeo de acaso em
face dos principais argumentos que podem ser colocados contra a sua existecircncia Eacute novamente na
ciecircncia da sua eacutepoca que Peirce buscaraacute elementos para defesa de sua tese Ele diz que eacute natural
esperar que ldquo() se houve um elemento de acaso real no universo deve natildeo ocasionalmente ser
produtor de efeitos sinalizadores de tal forma que natildeo passariam sem observaccedilatildeordquo (CP 6 sect 47
1892)67
Aleacutem da grande quantidade de eventos que podem comprovar esta tese para quem estaacute
disposto a observar eacute a proacutepria ciecircncia que trata dos movimentos dos gases que aponta para o
fato de que o comportamento dos mesmos muitas vezes parece contrariar a segunda lei da
termodinacircmica indicando que se deslocam como que ao acaso promovendo certas concentraccedilotildees
que algumas vezes resultam em efeitos bastante explosivos Dessa maneira a observaccedilatildeo que eacute
utilizada para referendar a posiccedilatildeo determinista acaba por se tornar diante da argumentaccedilatildeo do
autor em uma defesa da noccedilatildeo de acaso
Outros defensores do determinismo insistem em sustentar que sua posiccedilatildeo eacute uma crenccedila
natural e que em geral as crenccedilas naturais satildeo confirmadas pela experiecircncia A esse argumento
Peirce responde dizendo que de fato as crenccedilas naturais devem ser analisadas com bastante
cuidado e purificadas a partir de suas primeiras formulaccedilotildees que em geral satildeo errocircneas A
aproximaccedilatildeo da verdade que tais crenccedilas parecem apresentar eacute o resultado da adaptaccedilatildeo de ldquo()
produtos geneacuteticos a utilidades reconheciacuteveis ou finsrdquo (CP 6 sect 50 1892)68
Mas esse tipo de
66 Try to verify any law of nature and you will find that the more precise your observations the more certain they
will be to show irregular departures from the law 67
() if there were an element of real chance in the universe it must not occasionally be productive of signal effects
such as could not pass unobserved 68
() genetic products to recognizable utilities or ends
59
adaptaccedilatildeo conquanto belo e maravilhoso demonstra natildeo ser exatamente perfeito ldquo() de tal
modo que o argumento eacute quase contra a exatidatildeo absoluta de qualquer crenccedila natural incluindo
aquela do princiacutepio de causalidaderdquo (CP 6 sect 50 1892)69
Outro argumento comumente utilizado eacute de que a noccedilatildeo de acaso absoluto eacute inconcebiacutevel
Esse tipo de desconsideraccedilatildeo a priori pode ser rebatido de maneira bastante simples afirma
Peirce Ora o termo acaso possui uma grande diversidade de significado e mesmo que se
especificasse o sentido do mesmo seria possiacutevel mostrar que natildeo se tem razatildeo para fazer tal
afirmaccedilatildeo sem contar o fato de que a inconceptibilidade (inconceivability) natildeo eacute um tipo de
atribuiccedilatildeo que implica na natildeo existecircncia do acaso
Um outro argumento a priori eacute o que defende a ideia de que o acaso absoluto eacute
ininteligiacutevel isto eacute
() enquanto ele talvez possa ser concebiacutevel ele natildeo abre o olho da razatildeo para o
como ou o porquecirc das coisas e uma vez que uma hipoacutetese somente pode ser
justificada na medida em que causa algum fenocircmeno inteligiacutevel nunca
poderemos ter qualquer razatildeo de supor o acaso absoluto como entrando na
produccedilatildeo de qualquer coisa na natureza (CP 6 sect 52 1892)70
Esse argumento como aponta Peirce estaacute em estreita conexatildeo com os outros dois
anteriores Em primeiro lugar indica que natildeo haacute qualquer fato que possa ser por ele explicado
sendo portanto desnecessaacuterio e indica na sequecircncia que jaacute que as variaccedilotildees na atuaccedilatildeo das leis
natildeo podem ser observadas inequivocamente o acaso absoluto natildeo pode ser vera causa natildeo
havendo um lugar para ele em nossos esquemas de explicaccedilatildeo dos acontecimentos naturais
Para rebater esse argumento Peirce cria um diaacutelogo imaginaacuterio com um defensor do
69 () so that the argument is quite against the absolute exactitude of any natural belief including that of the
principle of causation 70
() while it may perhaps be conceivable it does not disclose to the eye of reason the how or why of things and
since a hypothesis can only be justified so far as it renders some phenomenon intelligible we never can have any
right to suppose absolute chance to enter into the production of anything in nature
60
determinismo no qual deixa claro quais satildeo os elementos existentes na sua noccedilatildeo de acaso
absoluto bem como suas principais diferenccedilas com respeito agrave tese adversaacuteria
Em primeiro lugar a atuaccedilatildeo real do acaso como uma causa dos eventos naturais natildeo nega
a existecircncia de regularidades no mundo apenas requer que sejam interpretadas como estatiacutesticas
e natildeo absolutas Pois a defesa da existecircncia de regularidades absolutas ou seja da atuaccedilatildeo de
leis naturais necessaacuterias implicaria em afirmar que toda a diversidade e toda novidade que
podem ser constatadas em qualquer evento natural por mais simples que seja como por
exemplo o jogo de dados tenham sido introduzidas no universo de uma soacute vez no iniacutecio de tudo
Assim o incremento da diversidade da natureza seria apenas uma ilusatildeo jaacute que sob a accedilatildeo das
leis mecacircnicas nada de absolutamente novo poderia surgir
As leis mecacircnicas apresentam ainda uma caracteriacutestica que parece incompatiacutevel com os
fenocircmenos naturais tanto orgacircnicos quanto inorgacircnicos elas ignoram a flecha do tempo Como
aponta Andrew Reynolds (2002) um aspecto central da Fiacutesica de entatildeo pode ser encontrado no
uso de leis matemaacuteticas exatas para descrever o movimento
Uma caracteriacutestica da expressatildeo matemaacutetica das leis de Newton (em termos de
equaccedilotildees diferenciais que descrevem a taxa de variaccedilatildeo das quantidades fiacutesicas
como uma funccedilatildeo do tempo) eacute sua invariacircncia sob o que acarretaria uma
reversatildeo da direccedilatildeo do bdquofluxo‟ do tempo (REYNOLDS 2002 p 2)
Natildeo haacute segundo esta abordagem qualquer dificuldade fiacutesica na ocorrecircncia de um evento
que inverta a flecha do tempo Por exemplo
Natildeo haacute nada nas proacuteprias leis isso eacute que especifica que uma xiacutecara fria de cafeacute
com creme mexida uniformemente natildeo possa em seus proacuteprios termos
absorver calor do ambiente circundante e tornar-se uma xiacutecara de cafeacute quente
nem as leis proiacutebem que o creme poderia espontaneamente separar-se a si
proacuteprio do cafeacute e pular bdquode volta‟ no tubo de creme do qual ele veiordquo
(REYNOLDS 2002 p 3)
61
A descriccedilatildeo deste evento imaginaacuterio eacute totalmente contraacuteria agraves ocorrecircncias normais Peirce
aponta que a abordagem determinista dos eventos natildeo consegue explicar o porquecirc de a grande
maioria dos eventos ser experienciada em uma ordem irreversiacutevel de acontecimentos que seguem
do passado para o futuro e natildeo o contraacuterio
As razotildees que conduzem o autor a defender a ideia de que a diversidade do mundo tem
crescido continuamente e de que este fato natildeo pode ser explicado a partir da abordagem
determinista satildeo sintetizadas em cinco itens que passamos a elencar
(1) A natureza explicada segundo leis mecacircnicas prescinde do curso do tempo Aqui Peirce
sustenta sua ideia de crescimento contiacutenuo do universo apelando para as ciecircncias que tecircm
no tempo uma variaacutevel imprescindiacutevel para as suas elaboraccedilotildees e descobertas Basta
inquirir agrave paleontologia ou agrave geologia ou ateacute mesmo agrave astronomia para se constatar que
haacute um crescimento e aumento da complexidade em cada um de seus objetos de estudo
(2) A diversidade e a novidade existentes no mundo natildeo podem ser adequadamente
explicadas pela atuaccedilatildeo de leis mecacircnicas absolutas Pois eacute da essecircncia de uma lei que
causas idecircnticas sempre produzam os mesmos efeitos Desse modo uma hipoacutetese
razoaacutevel eacute que sejam os resultados das pequenas variaccedilotildees ocorridas no momento da
atuaccedilatildeo da lei os responsaacuteveis pelo crescimento da complexidade existente
(3) A hipoacutetese da existecircncia do acaso absoluto manifesto nas pequenas variaccedilotildees no
momento da atualizaccedilatildeo das leis permite explicar como a diversidade surge Permite
ainda a justificaccedilatildeo da atuaccedilatildeo de um outro tipo de causalidade a da lei da mente que
explica a formaccedilatildeo da uniformidade constatada no universo Afirmar por outro lado que
a diversidade e irregularidade bem como uniformidade e regularidade existentes no
universo natildeo podem ser explicadas e nem mesmo deveriam ser questionadas como
fazem os deterministas significa ferir a primeira lei da loacutegica que consiste em natildeo
bloquear a investigaccedilatildeo
62
(4) A partir da introduccedilatildeo da causalidade mental ou causalidade teleoloacutegica em seu esquema
explicativo possibilitado pela inserccedilatildeo do acaso absoluto Peirce afirma ser possiacutevel
explicar diversos fenocircmenos que de outra maneira adquiririam o caraacuteter de
fantasmagoacuterico como por exemplo a consciecircncia e correlatos
(5) A mais importante razatildeo que permaneceraacute natildeo desenvolvida no texto em anaacutelise eacute a de
que ldquoa hipoacutetese do acaso-espontaneidade eacute uma daquelas consequecircncias inevitaacuteveis
capazes de serem formuladas com precisatildeo matemaacutetica em consideraacutevel detalherdquo (CP 6 sect
62 1892)71
Tem-se desse modo uma defesa da presenccedila do acaso no mundo que natildeo apenas recebe o
suporte das observaccedilotildees e evidecircncias que estatildeo disponiacuteveis para quem as desejar constatar como
parece se impor como uma evidecircncia para todo aquele que estaacute familiarizado com a praacutetica
cientiacutefica E que ainda fornece uma hipoacutetese explicativa para os fenocircmenos naturais tanto da
diversidade como da uniformidade do mundo que impulsiona o desenvolvimento de futuras
pesquisas sem postular o incompreensiacutevel como constituinte da natureza
Resumindo podemos dizer que contra a argumentaccedilatildeo peirceana os deterministas soacute
poderiam responder de uma das trecircs maneiras elencadas abaixo
(1) O acaso eacute algo absolutamente ininteligiacutevel
(2) Natildeo haacute qualquer fenocircmeno no qual a atuaccedilatildeo do acaso possa ser observada de forma
inequiacutevoca
(3) O acaso natildeo pode ser uma vera causa
Quanto agrave objeccedilatildeo (1) Peirce indica que sua hipoacutetese do acaso absoluto diferentemente da
tese determinista fornece uma explicaccedilatildeo para o surgimento tanto das irregularidades quanto das
71 The hypothesis of chance-spontaneity is one whose inevitable consequences are capable of being traced out with
mathematical precision into considerable detail
63
uniformidades existentes no universo O que parece ser um ganho consideraacutevel uma vez que
desobstrui os caminhos da investigaccedilatildeo cientiacutefica Um aspecto como jaacute vimos que fornece um
suporte extra a esta hipoacutetese eacute o fato que ela daacute lugar agrave elaboraccedilatildeo da lei da mente O acaso uma
vez manifestado desenvolve-se segundo determinadas maneiras e natildeo de uma maneira qualquer eacute
sob a atuaccedilatildeo da lei da mente ou lei da aquisiccedilatildeo de haacutebito ou simplesmente lei do haacutebito que
ele produz consequecircncias ou permanece inerte
A objeccedilatildeo do tipo (2) eacute na visatildeo de Peirce bastante ingecircnua pois parece ignorar todos os
avanccedilos cientiacuteficos que se verificaram nas aacutereas de astronomia biologia ou geologia
permanecendo cega para os fenocircmenos de crescimento de diversidade ou evoluccedilatildeo Esses
fenocircmenos satildeo totalmente refrataacuterios agrave abordagem mecanicista no entender desse autor
Compondo com esses fenocircmenos aparece a consciecircncia como outro empecilho agraves pretensotildees dos
mecanicistas que se fiam unicamente na ideia de regularidade para compor o seu quadro
explicativo Com essa atitude a noccedilatildeo de regularidade absoluta serve apenas ldquo() para bloquear
o caminho da investigaccedilatildeordquo (CP 6 sect 64 1892)72
Agrave acusaccedilatildeo (3) de que o acaso natildeo pode ser considerado uma vera causa Peirce responde
dizendo que esta criacutetica natildeo pode ser aplicada a concepccedilotildees elementares Se levarmos a seacuterio esta
acusaccedilatildeo seria preciso reavaliar a proacutepria crenccedila na existecircncia do universo material uma vez que
a variedade eacute um fato que natildeo pode ser ignorado
Tendo assim defendido a existecircncia do acaso absoluto Peirce acredita que natildeo resta duacutevida
que as pesquisas devam ser refeitas e direcionadas para novas bases que levem em consideraccedilatildeo o
caraacuteter estatiacutestico das regularidades bem como o indeterminismo reinante no universo que em
uacuteltima instacircncia eacute a fonte de diversidade e novidade existentes
72 () to block the road of inquiry
64
3 A LEI
Se de um lado temos no acaso um dos constituintes fundamentais da realidade do outro
encontramos no continuum ou nas leis outro elemento de igual importacircncia A elaboraccedilatildeo que
Peirce oferece deste toacutepico estaacute em estreita conexatildeo com a matemaacutetica dos infinitesimais por ele
estudada Nosso interesse aqui natildeo eacute o de aprofundar tais concepccedilotildees que seratildeo analisadas em
capiacutetulo posterior procuramos apenas extrair algumas caracteriacutesticas de sua descriccedilatildeo que
suportem a nossa anaacutelise da lei da mente A questatildeo levantada por Peirce e que serviraacute de guia
para a nossa discussatildeo seraacute a de Como pode uma ideia passada estar presente (CP 6 sect 109
1892)73
A resposta por ele proposta eacute de que devemos estar diretamente conscientes das ideias
do passado imediato Caso houvesse uma lacuna entre nosso conhecimento presente e as ideias
do passado todo o nosso conhecimento do passado natildeo seria mais do que uma ilusatildeo Assim
como consequecircncia devemos estar conscientes do passado ldquoatraveacutes de um intervalo de tempo
infinitesimalrdquo (CP 6 sect 110 1892)74
Nessa mesma linha aponta Hausman ldquosomos levados a
concentrar nosso exame da experiecircncia de ser consciente atraveacutes de um fluxo de tempo que deve
ser compreendido em termos de componentes infinitesimaisrdquo (HAUSMAN 1993 p 179)
Natildeo temos por conseguinte uma apreensatildeo completa e definida de uma ideia em um
determinado instante do tempo A cogniccedilatildeo se daacute no continuum apenas atraveacutes de um processo
de imbricaccedilatildeo das ideias que ocorre por meio de uma sucessatildeo de intervalos infinitesimais no
tempo Durante tais intervalos diraacute Peirce ldquopercebemos diretamente a sequecircncia temporal de seu
iniacutecio meio e fim ndash natildeo naturalmente como uma recogniccedilatildeo pois a recogniccedilatildeo eacute unicamente do
passado mas como um sentimento imediatordquo (CP 6 sect 111 1892)75
Se em um primeiro instante temos acesso ao sentimento do imediato caracteriacutestico da
73 How can a past idea be present
74 () through an infinitesimal interval of time
75 In an infinitesimal interval we directly perceive the temporal sequence of its beginning middle and end -- not of
course in the way of recognition for recognition is only of the past but in the way of immediate feeling
65
categoria de primeiridade no segundo momento temos a percepccedilatildeo da passagem do tempo A
ligar esses dois temos um terceiro que indica uma direccedilatildeo e que requer uma interpretaccedilatildeo uma
inferecircncia na medida em que se obteacutem uma generalidade
Peirce continuaraacute dizendo que quando haacute ldquoum fluxo contiacutenuo de inferecircncias atraveacutes de um
tempo finitordquo o resultado ldquoseraacute uma consciecircncia objetiva mediata de tempo completo no
momento passadordquo (CP 6 sect 111 1892)76
Por meio desta anaacutelise o autor estaacute propondo uma
abordagem da relaccedilatildeo do fluxo temporal sentido e a interpretaccedilatildeo cognitiva do mesmo
A cogniccedilatildeo que eacute uma experiecircncia mediata requer a consideraccedilatildeo dos sentimentos
passados impondo a eles uma certa definiccedilatildeo de tal maneira que possam ser comparados o que
se daacute segundo um ato interpretativo Cada intervalo consiste em um momento da percepccedilatildeo
consciente de tal maneira que se pode afirmar que a proacutepria consciecircncia eacute contiacutenua
31 O IDEALISMO OBJETIVO
Peirce se autodenomina em algumas passagens de idealista objetivo afirmando a sua
diferenccedila com relaccedilatildeo ao monismo materialista Aponta que a diferenccedila entre os dois eacute que o
monista materialista toma a lei da mente como uma consequecircncia das leis da mateacuteria enquanto o
idealista objetivo toma as leis da mateacuteria como um resultado especial da lei da mente Um grande
problema para o materialista eacute explicar como as leis da mateacuteria que satildeo completamente cegas ou
natildeo teleoloacutegicas podem dar origem a uma mente que natildeo age cegamente mas que possui
propoacutesitos Peirce diraacute que o problema consiste em se compreender como a accedilatildeo teleoloacutegica ou
propositada pode ser um efeito secundaacuterio de uma accedilatildeo natildeo teleoloacutegica
76 Let there be not merely an indefinite succession but a continuous flow of inference through a finite time and the
result will be a mediate objective consciousness of the whole time in the last moment
66
A soluccedilatildeo para a questatildeo segue-se a partir da inspiraccedilatildeo darwiniana por meio da
combinaccedilatildeo de dois fatores as insensiacuteveis variaccedilotildees fortuitas e a destruiccedilatildeo das formas menos
aptas cujas transformaccedilotildees levam-nas aleacutem de certos limites O uacuteltimo desses fatores poderia ser
entendido como uma lei mecacircnica mas o que dizer do primeiro Pergunta-se Peirce
A necessidade de natildeo bloquear a via de investigaccedilatildeo como tantas vezes apontada pelo
autor natildeo eacute transgredida por esta pergunta irrespondiacutevel uma vez que seria um absurdo a
tentativa de explicaccedilatildeo do proacuteprio acaso pois as explicaccedilotildees se datildeo por meio de generalidades e
as variaccedilotildees fortuitas satildeo uacutenicas e autorreferentes Jaacute a lei da evoluccedilatildeo ou lei da mente necessita
de uma explicaccedilatildeo e pode ser aqui esboccedilada
32 A LEI DA MENTE
Peirce descreve a lei da mente como o fato de que as
() ideias tendem a se dispersar continuamente e a afetar certas outras que
permanecem em uma relaccedilatildeo peculiar de afetabilidade com relaccedilatildeo a ela Nesta
dispersatildeo elas perdem intensidade e especialmente o poder de afetar as outras
mas ganham em generalidade e se tornam amalgamadas com outras ideias (CP
6 sect 104 1892)77
Eacute natural atribuir a uma lei o caraacuteter de absoluta como o atribuiacutedo comumente agraves leis da
fiacutesica a lei da mente entretanto natildeo requer uma exata conformidade Como afirma Peirce ldquo() a
conformidade exata estaria em conflito inequiacutevoco com a lei uma vez que cristalizaria
instantaneamente o pensamento e impediria as formaccedilotildees posteriores de haacutebitosrdquo (CP 6 sect 23
77 () ideas tend to spread continuously and to affect certain others which stand to them in a peculiar relation of
affectibility In this spreading they lose intensity and especially the power of affecting others but gain generality
and become welded with other ideas
67
1891)78
A lei da mente apenas torna um certo sentimento mais provaacutevel (likely) Ou seja a lei da
mente inclina o curso futuro dos eventos a uma certa direccedilatildeo sem contudo determinaacute-lo
A partir dessas consideraccedilotildees Peirce conclui que o uacutenico tipo de causalidade primaacuteria deve
ser a causalidade final e que esta deve ser considerada uma lei de caraacuteter absoluto Assim sob a
atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um contiacutenuo crescimento da uniformidade
a partir das formas diferenciadas Mas as mudanccedilas divergentes da lei estatildeo agindo
perpetuamente a fim de aumentar a variedade do mundo e satildeo controladas por um tipo de seleccedilatildeo
natural ou de qualquer outro tipo (pois Peirce julga que a seleccedilatildeo natural natildeo seja por si soacute
suficiente) de tal forma que ldquo() o resultado geral deve ser descrito como bdquoheterogeneidade
organizada‟ ou melhor variedade racionalizadardquo (CP 6 sect 23 1891)79
O relato da hipoacutetese cosmoloacutegica elaborada por Peirce ressaltou a importacircncia fundamental
da noccedilatildeo de continuidade no interior de sua filosofia A compreensatildeo do sentido que a noccedilatildeo
adquire em sua obra tanto quanto da evoluccedilatildeo que sofreu conforme Peirce atingia sua
maturidade seratildeo de grande importacircncia para a compreensatildeo do modo de atuaccedilatildeo da causalidade
final Com o objetivo de compreender este tipo de causalidade faremos no proacuteximo capiacutetulo um
estudo mais aprofundado do sinequismo a teoria da continuidade elaborada pelo filoacutesofo
78 () exact conformity would be in downright conflict with the law since it would instantly crystallize thought and
prevent all further formation of habit 79
() the general result may be described as organized heterogeneity or better rationalized variety
68
CAPIacuteTULO 02
O SINEQUISMO
Infinity is nothing but a peculiar twist given to generality (CP 8 sect 268 1900)
69
Em funccedilatildeo da importacircncia adquirida pela noccedilatildeo de continuidade80
uma investigaccedilatildeo sobre
a teoria do sinequismo seraacute desenvolvida aqui definida por Peirce como ldquoaquela tendecircncia do
pensamento filosoacutefico que insiste sobre a ideia de continuidade como sendo de grande
importacircncia em filosofia e em particular sobre a necessidade de hipoacuteteses que envolvam
verdadeira continuidaderdquo (CP 1 sect 169 1902)81
Em carta a William James de 1900 Peirce
afirma que o sinequismo eacute ldquoa pedra angular do arcordquo (CP 8 sect 257 1900)82
isto eacute o ponto de
apoio que daacute sustentaccedilatildeo a toda sua filosofia
Diferentemente dos matemaacuteticos da eacutepoca que trataram a questatildeo da continuidade o
interesse de Peirce pelo toacutepico foi motivado principalmente por uma preocupaccedilatildeo loacutegica e
filosoacutefica e que natildeo decorre somente das questotildees suscitadas pela anaacutelise matemaacutetica Como
afirma em 1897
() uma abordagem loacutegica perfeitamente satisfatoacuteria da concepccedilatildeo de
continuidade eacute exigida O que envolve a definiccedilatildeo de um certo tipo de infinito
e a fim de tornaacute-lo um pouco mais claro eacute necessaacuterio comeccedilar por desenvolver
a doutrina loacutegica das grandezas infinitas Essa doutrina ainda permanece apoacutes
os trabalhos de Cantor Dedekind e outros em uma situaccedilatildeo incipiente Por
exemplo questotildees como as seguintes permanecem sem respostas eacute ou natildeo eacute
logicamente possiacutevel para duas coleccedilotildees serem de tal grandeza que nenhuma
delas possa ser colocada em correspondecircncia biuniacutevoca com a parte ou com o
todo da outra Resolver esse problema demanda natildeo uma mera aplicaccedilatildeo da
loacutegica mas um maior desenvolvimento da concepccedilatildeo de possibilidade loacutegica
(CP 3 sect 526 1897)83
80 Como jaacute foi indicado no primeiro capiacutetulo desta tese
81 [Synechism is] that tendency of philosophical thought which insists upon the idea of continuity as of prime
importance in philosophy and in particular upon the necessity of hypotheses involving true continuity 82
() synechism which is the keystone of the arch 83
() a perfectly satisfactory logical account of the conception of continuity is required This involves the definition
of a certain kind of infinity and in order to make that quite clear it is requisite to begin by developing the logical
doctrine of infinite multitude This doctrine still remains after the works of Cantor Dedekind and others in an
inchoate condition For example such a question remains unanswered as the following Is it or is it not logically
possible for two collections to be so multitudinous that neither can be put into a one-to-one correspondence with a
part or the whole of the other To resolve this problem demands not a mere application of logic but a further
development of the conception of logical possibility
70
De fato podemos identificar ao menos trecircs aspectos do pensamento de Peirce que soacute
poderiam ser desenvolvidos com consistecircncia a partir uma definiccedilatildeo mais precisa da noccedilatildeo de
continuum o loacutegico o semioacutetico e o cosmoloacutegico Nossas consideraccedilotildees aqui seratildeo
desenvolvidas a partir de uma investigaccedilatildeo do papel que o conceito de continuum desempenha na
construccedilatildeo da filosofia de Peirce em particular para a compreensatildeo do estatuto e do papel das
explicaccedilotildees teleoloacutegicas no seu sistema Antes contudo de passarmos a essa discussatildeo cabem
algumas palavras a respeito da motivaccedilatildeo de Peirce para o desenvolvimento do conceito de
continuum
Neste capiacutetulo procuraremos apurar as propriedades atribuiacutedas ao continuum atraveacutes da
abordagem de alguns aspectos da definiccedilatildeo matemaacutetica proposta por Peirce ainda que
apresentada de maneira descritiva e seletiva Do ponto de vista cosmoloacutegico pode-se afirmar que
a estrutura mais profunda e necessaacuteria do real eacute a sua continuidade Como o objetivo desta
investigaccedilatildeo eacute colher elementos que permitam entender o lugar e a necessidade da introduccedilatildeo de
explicaccedilotildees teleoloacutegicas para a compreensatildeo do crescimento do universo e de seus processos isto
eacute para entender a forma de desdobramento do continuum real tornado manifesto por meio da
evoluccedilatildeo do universo a exposiccedilatildeo desses toacutepicos natildeo pretende ser completa ou exaustiva sua
funccedilatildeo seraacute selecionar aspectos das teorias que permitam em primeiro lugar compreender a
necessidade da explicaccedilatildeo teleoloacutegica e em segundo lugar tornar plausiacutevel tanto quanto
possiacutevel a ideia de que o projeto filosoacutefico peirceano possui grande coerecircncia se tomarmos suas
teorias em conjunto apresentando aspectos da maneira pela qual Peirce as pensava como estando
relacionadas e como se esclarecem mutuamente visto serem expressatildeo do mesmo elemento de
continuidade
71
1 O CONTINUUM E A EPISTEMOLOGIA
Eacute preciso lembrar que ao lado da preocupaccedilatildeo matemaacutetica com a definiccedilatildeo de continuum
haacute nos trabalhos de Peirce uma profunda reflexatildeo sobre a sua ontologia surgida a partir de suas
pretensotildees mais gerais de realizaccedilatildeo de um projeto de fundamentaccedilatildeo de seu meacutetodo para
obtenccedilatildeo do conhecimento Essa primeira abordagem da continuidade a partir de uma
perspectiva descritiva adequada agrave cosmologia ou metafiacutesica dos processos evolutivos entretanto
natildeo se opotildee agrave abordagem matemaacutetica que em realidade a confirma Satildeo as conclusotildees desse
modo hipoteacutetico de investigaccedilatildeo que orientaram em grande parte sua abordagem matemaacutetica
A elaboraccedilatildeo da hipoacutetese do continuum eacute tomada como uma consequecircncia da primeira e
mais importante maacutexima loacutegica assumida por Peirce a de que natildeo se pode ldquobloquear o caminho
da investigaccedilatildeordquo (CP 1 sect 135 1899)
84 Ela eacute vista como um meio de ldquo() evitar a hipoacutetese de que
isso ou aquilo seja inexplicaacutevelrdquo (CP 6 sect 171 1902)85
Pois descontinuidades como pontos ou
instantes marcados nos quais o continuum de um geral eacute quebrado satildeo em si mesmos natildeo
explicaacuteveis afirma Peirce Soacute fazem sentido quando referidas a um contexto maior que eacute
fornecido pelo continuum Desse modo a principal justificativa para se insistir na hipoacutetese do
continuum eacute a de que ela fornece uma explicaccedilatildeo para os fenocircmenos
Os fenocircmenos se impotildeem ao homem e eacute preciso elaborar hipoacuteteses testaacuteveis para explicaacute-
los ou ao menos hipoacuteteses que levem tatildeo longe quanto possiacutevel o horizonte da inteligibilidade
ou seja que natildeo bloqueie o caminho da investigaccedilatildeo A afirmaccedilatildeo de que a postulaccedilatildeo do
incognosciacutevel como elemento constituinte da natureza eacute uma estrateacutegia que deve ser banida dos
procedimentos cientiacuteficos estaacute em consonacircncia com a filosofia peirceana
A simples observaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais destituiacuteda de qualquer prejulgamento
ensina-nos pelo menos duas coisas em primeiro lugar que haacute uma incriacutevel variabilidade no
84 Do not block the way of inquiry
85 () to avoid the hypothesis that this or that is inexplicable
72
modo como a natureza se manifesta e em segundo lugar que os processos naturais demonstram
certas regularidades Em face dessas duas caracteriacutesticas Peirce elabora duas teorias que tentam
responder como a realidade deveria ser para que nos aparecesse dessa maneira especiacutefica A
primeira referente agrave presenccedila da variabilidade na natureza daacute origem ao tiquismo86
hipoacutetese
explicativa que postula o acaso absoluto como ingrediente fundamental da realidade e serve de
matriz ontoloacutegica indeterminista A segunda concernente agraves regularidades daacute origem ao
sinequismo cuja principal categoria eacute a de lei e procura explicar de que maneira a partir do
acaso absoluto original surgiu o mundo que conhecemos Desse modo Peirce pretende ter
elaborado por meio da concorrecircncia desses dois fatores uma hipoacutetese explicativa que pretende
dar conta ateacute mesmo do surgimento das leis naturais e de todos os processos naturais deixando
de fora apenas o acaso que por sua proacutepria natureza eacute aquilo que natildeo necessita de explicaccedilatildeo
As alusotildees que Peirce faz agrave importacircncia de uma teoria da continuidade frequentemente
estatildeo relacionadas com o seu realismo em particular com a compreensatildeo do que significa a ideia
de generalidade Ele diz que a questatildeo de se os gerais satildeo reais eacute a mesma de se existem continua
verdadeiros No texto intitulado ldquoConsciecircnciardquo afirma que ldquocontinuidade regularidade e
significacircncia satildeo essencialmente a mesma ideia com diferenccedilas meramente subsidiaacuteriasrdquo (CP 7
sect 535)87
Para o realista como indica Hookway (1985) quando classificamos coisas sob o mesmo
termo geral estamos afirmando que existe algum princiacutepio geral ou natureza que elas
compartilham Em 1878 Peirce discute esse ponto a partir de um exemplo que envolve um
problema de classificaccedilatildeo rotineiramente enfrentado por um naturalista Ao coletar um bom
nuacutemero de espeacutecimes que possuem algumas similaridades ele pode colocar-se a questatildeo de como
classificaacute-los Em particular no referido caso o naturalista nota que as asas dos espeacutecimes
recolhidos embora natildeo idecircnticas podem servir como criteacuterio para dividi-los em dois tipos um
que reuacutene as asas que satildeo parecidas com um S e outro que reuacutene as que se parecem com um C A
questatildeo que ele pode colocar-se eacute de se haacute aiacute apenas uma duas ou mais espeacutecies Para Peirce a
soluccedilatildeo para o problema pode ser obtida a partir da verificaccedilatildeo de se haacute formas intermediaacuterias
86 Jaacute discutido no primeiro capiacutetulo deste trabalho
87 () continuity regularity and significance are essentially the same idea with merely subsidiary differences
73
entre uma e outra Caso haja elas devem ser consideradas como pertencentes a uma mesma
espeacutecie Caso isso natildeo se verifique eacute possiacutevel classificaacute-las em duas espeacutecies distintas A sugestatildeo
envolvida esclarece Hookway eacute a de que ldquo() se os espeacutecimes formam um tipo de classe
natural eles variam continuamente segundo alguma dimensatildeordquo (HOOKWAY 1985 p 175) A
questatildeo eacute se esta condiccedilatildeo de contiacutenua variaccedilatildeo pode ser encontrada em todo caso investigados
Outro aspecto do pensamento peirceano relacionado com a teoria do continuum aparece em
sua discussatildeo sobre os processos causais A atribuiccedilatildeo da relaccedilatildeo de causalidade entre dois
eventos pode ser entendida se encontramos uma ligaccedilatildeo contiacutenua por meio da qual o primeiro eacute
transmitido ao segundo caso contraacuterio haveria duacutevidas quanto agrave possibilidade de tal atribuiccedilatildeo
Tanto no primeiro quanto no segundo exemplo percebemos que por meio da mediaccedilatildeo da
continuidade os casos analisados sobre o pano de fundo de uma estrutura mais ampla satildeo
tornados compreensiacuteveis para noacutes Segundo Peirce os nominalistas negariam que haja alguma
explicaccedilatildeo sobre o motivo dos objetos serem classificados como satildeo e colocariam esses
agrupamentos naturais na categoria de um fato bruto cuja razatildeo natildeo poderiacuteamos jamais alcanccedilar
Essa posiccedilatildeo entretanto eacute a expressatildeo do mais grave pecado loacutegico no entender de Peirce ela
bloqueia o caminho da investigaccedilatildeo
A relaccedilatildeo entre continuum e generalidade88
eacute mais claramente apresentada por Hookway na
seguinte passagem
() nenhuma estrutura relacional captura a natureza do continuum e natildeo
podemos quantificar todos os elementos do continuum As estruturas relacionais
a respeito das quais pensamos satildeo em certo sentido determinadas pela natureza
do continuum a respeito do qual pensamos mas elas natildeo exaurem seu caraacuteter
Da mesma maneira que pensamos em uma lei como algo que determina um
nuacutemero de diferentes interaccedilotildees pensamos o continuum como determinando
um nuacutemero infinito embora relacionado de estruturas relacionais Podemos
pensar o continuum como um geral entatildeo no sentido em que determina
conjuntos infinitos de estruturas relacionais como sua ldquoextensatildeordquo Se pensamos
um processo como continuum entatildeo acreditamos que sempre seraacute possiacutevel
88 Eacute a generalidade pode-se reiterar que torna o mundo compreensiacutevel para noacutes
74
para noacutes produzir uma caracterizaccedilatildeo mais complexa de estruturas relacionais
que ldquose conformardquo ou satildeo ldquodeterminadas porrdquo aquele processo contiacutenuo
(HOOKWAY 1985 p 178)
11 OS INFINITESIMAIS E O CONTINUUM
Por volta da uacuteltima deacutecada do seacuteculo XIX Peirce estava trabalhando em sua concepccedilatildeo de
continuidade principalmente com referecircncia a sua constituiccedilatildeo isto eacute realizava uma investigaccedilatildeo
sobre quais poderiam ou deveriam ser os constituintes dos continua Peirce foi um dos primeiros
pensadores a argumentar em favor da existecircncia real de conjuntos infinitos Seu criteacuterio para
diferenciar os conjuntos finitos dos infinitos era o assim chamado ldquosilogismo da quantidade
transpostardquo introduzido por De Morgan e que eacute vaacutelido unicamente quando aplicado a conjuntos
finitos e invaacutelido quando aplicado a conjuntos infinitos Peirce oferece vaacuterias versotildees desse
silogismo uma delas eacute a seguinte
Todo texano mata um texano
Nenhum texano eacute morto por mais que um texano
Desse modo todo texano eacute morto por um texano
A partir da colocaccedilatildeo desse silogismo uma diferenccedila entre a abordagem de Peirce e as
demais abordagens realizadas na segunda metade do seacuteculo XIX pode ser evidenciada Mesmo
que inicialmente tenha investigado a possibilidade de compreender o continuum como uma
coleccedilatildeo ou conjunto aos poucos supera essa concepccedilatildeo Peirce afirma ldquoPois a uacutenica coisa que
excede a variedade de todos os conjuntos eacute um continuumrdquo (CP 4 sect 652 1909)89
Os seus
constituintes natildeo podem ser indiviacuteduos desse modo deve possuir alguma caracteriacutestica de
potencialidade Tal potencialidade como afirma Rosa
89 For the only thing that exceeds the manifoldness of all collections is a continuum
75
Eacute a possibilidade de inserir uma qualquer multitude a partir de uma multitude
dada Eacute um geral pois haacute sempre a possibilidade de determinar um nuacutemero de
indiviacuteduos maior que natildeo importa que nuacutemero de indiviacuteduos dados Um
possiacutevel eacute essa possibilidade inesgotaacutevel e indefinida de determinaccedilatildeo do
existente a potencialidade de ver natildeo eacute esgotada por aquele que exerce esse
poder (ROSA 2003 p 223)
Ora sejam quais forem os constituintes do continuum eles devem possuir a qualidade de
ldquopossibilidade de inesgotaacutevel determinaccedilatildeordquo Peirce eacute mais claro sobre o que entende por isso na
seguinte passagem
Aquilo que eacute possiacutevel eacute nessa medida geral e enquanto geral deixa de ser
individual Assim recordando que a palavra ldquopotencialrdquo significa
indeterminado mas passiacutevel de determinaccedilatildeo em cada caso especiacutefico pode
haver um agregado de casos potencial de todas as possibilidades que satildeo
consistentes com certas condiccedilotildees gerais e isto pode ser tal que dado um
qualquer conjunto de indiviacuteduos distintos um conjunto de maior multitude que
o conjunto dado pode ser atualizado a partir desse agregado potencial Portanto
o agregado potencial eacute estritamente maior em multitude do que qualquer
conjunto de indiviacuteduos Mas visto ser apenas um agregado potencial ele natildeo eacute
composto por qualquer nuacutemero de indiviacuteduos Ele apenas conteacutem condiccedilotildees
gerais que permitem a determinaccedilatildeo de indiviacuteduos (NEM 3 p 106 1898 grifo
nosso)90
Ao tratar da reta como modelo do continuum Peirce indica que o arqueacutetipo dessa ideia eacute a
curva fechada A cisatildeo da linha natildeo resulta em um mas em dois pontos distintos que estabelecem
90 That which is possible is in so far general and as general it ceases to be individual Hence remembering that the
word potential means indeterminate yet capable of determination in any special case there may be a potential
aggregate of all the possibilities that are consistent with certain general conditions and this may be such that given
any collection of distinct individuals whatsoever out of that potential aggregate there may be actualized a more
multitudinous collection than the given collection Thus the potential aggregate is with the strictest exactitude
greater in multitude than any possible multitude of individuals But being a potential aggregate only it does not
contain any individuals at all It only contains general conditions which permit the determination of individuals
76
uma fronteira no contiacutenuo original Como indica Peirce natildeo haacute um ponto na reta mas uma reta
cuja separaccedilatildeo realiza dois pontos (cf NEM 2 p 359) O fato de que por meio do corte o ponto
ideal daacute origem a dois pontos reais indica que os pontos da reta natildeo possuem identidade Esses
estados de fronteira satildeo denominados de vagos na nomenclatura peirceana Como indica Rosa
ldquoO vago ou indefinido eacute aquilo que escapa ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo () o predicado
manteacutem portanto seu valor de verdade mesmo se o negarmosrdquo (ROSA 2003 p 235) O vago
na definiccedilatildeo de Peirce eacute um signo que natildeo se exprime a si mesmo de forma suficiente e natildeo
permite uma interpretaccedilatildeo determinada indubitaacutevel (cf CP 5 sect 505 1905) de modo que a
existecircncia ou atualidade jamais eacute atingida
Os infinitesimais91
surgiram como uma alternativa promissora agrave resposta pelos constituintes
do continuum Em 1892 Peirce afirma que os constituintes do continuum satildeo os infinitesimais92
e
eacute muito cuidadoso ao tratar do toacutepico considerando-os sempre como uma hipoacutetese que se natildeo
for inconsistente seraacute muito uacutetil para a explicaccedilatildeo da realidade Mas podemos nos indagar sobre
qual o significado desta noccedilatildeo para Peirce Embora seja um toacutepico sobre o qual o autor natildeo tenha
sido muito claro em suas declaraccedilotildees podemos inferir a partir da relaccedilatildeo que a teoria do
continuum possui com as demais teorias que Peirce vinha desenvolvendo na mesma eacutepoca que os
infinitesimais podem ser interpretados como would be Ao explicar o que satildeo tais constituintes do
real Peirce toma o exemplo do dado e afirma
Dizer que um dado tem um ldquowould berdquo eacute dizer que ele tem uma propriedade
91 Um infinitesimal como aponta Putnam (1995) eacute o intervalo de uma linha cujo comprimento natildeo eacute zero mas eacute
menor do que qualquer real positivo Os infinitesimais acrescenta foram gradualmente esquecidos durante o seacuteculo
XIX voltaram agraves consideraccedilotildees matemaacuteticas apenas na deacutecada de sessenta do seacuteculo passado como um resultado dos
trabalhos de Abraham Robinson (1966) e outros e do desenvolvimento da chamada anaacutelise Non-Standard Em
funccedilatildeo das caracteriacutesticas presentes na anaacutelise que Peirce realiza da noccedilatildeo de infinitesimal algumas vezes eacute
considerado como um precursor desses trabalhos Apurar em que medida eacute correta essa atribuiccedilatildeo eacute contudo um
trabalho que ainda estaacute por ser feito e que demandaria um conhecimento matemaacutetico bastante mais aprofundado de
nossa parte 92
O autor afirma ldquoThere is one property of a continuous expanse that I must mention though I cannot venture to
trouble you with the demonstration of it It is that in a continuous expanse say a continuous line there are
continuous lines infinitely short In fact the whole line is made up of such infinitesimal parts (CP 1 sect 166 1897)
77
bastante anaacuteloga a qualquer haacutebito que um homem possa ter Unicamente que o
ldquowould berdquo do dado eacute presumivelmente muito mais simples e mais definido do
que o haacutebito de um homem como o dado tem composiccedilatildeo homogecircnea e
formato cuacutebico eacute mais simples do que a natureza do sistema nervoso e a alma
de um homem e da mesma maneira como seria necessaacuterio a fim de definir o
haacutebito de um homem descrever como ele o conduziria a se comportar e em que
tipo de ocasiatildeo ndash natildeo obstante esta afirmaccedilatildeo implicaria natildeo importa como
que o haacutebito consiste naquela accedilatildeo ndash entatildeo para definir o ldquowould berdquo do dado eacute
necessaacuterio dizer como ele levaria o dado a se comportar na ocasiatildeo em que
afloraria todas as consequecircncias do ldquowould berdquo e essa afirmaccedilatildeo natildeo implicaraacute
de si mesma que o ldquowould berdquo do dado consiste em tal comportamento (CP 2 sect
664 1910)93
Tentaremos agora tomando como exemplo a atividade mental explicar alguns elementos
da concepccedilatildeo de continuidade peirceana A atividade mental pode ser tomada como um exemplo
que cumpre uma tripla funccedilatildeo faz-nos pensar a definiccedilatildeo de contiacutenuo por meio da anaacutelise da
passagem do tempo mostra como os infinitesimais estatildeo presentes nesse processo e ao discutir
como se daacute a atividade mental mostra tambeacutem a estrutura fundamental do cosmo pois para o
Peirce a natureza do cosmo eacute mental esta tambeacutem uma decorrecircncia do princiacutepio de continuidade
como uma hipoacutetese explicativa dos fenocircmenos
A questatildeo levantada por Peirce e que serviraacute de guia para essa discussatildeo eacute a de ldquocomo uma
ideia passada pode estar presenterdquo (CP 6 sect 109 1892)94
A resposta por ele proposta eacute de que
devemos estar diretamente conscientes das ideias do passado imediato Caso houvesse uma
lacuna entre nosso conhecimento presente e as ideias do passado todo o nosso conhecimento do
passado natildeo seria mais do que uma ilusatildeo Ou seja Peirce afirma que a consciecircncia natildeo reteacutem
93 To say that a die has a would-be is to say that it has a property quite analogous to any habit that a man might
have Only the would-be of the die is presumably as much simpler and more definite than the mans habit as the
dies homogeneous composition and cubical shape is simpler than the nature of the mans nervous system and soul
and just as it would be necessary in order to define a mans habit to describe how it would lead him to behave and
upon what sort of occasion--albeit this statement would by no means imply that the habit consists in that action--so to
define the dies would-be it is necessary to say how it would lead the die to behave on an occasion that would
bring out the full consequence of the would-be and this statement will not of itself imply that the would-be of
the die consists in such behaviour 94
How can a past idea be present
78
uma ideia em um intervalo finito de tempo Assim como consequecircncia devemos estar
conscientes do passado ldquoatraveacutes de um intervalo de tempo infinitesimalrdquo (CP 6 sect 110 1892)95
Como aponta Hausman ldquosomos levados a um concentrado exame da experiecircncia de ser
consciente atraveacutes de um fluxo de tempo que deve ser compreendido em termos de componentes
infinitesimaisrdquo (HAUSMAN 1993 p 179)
Como diz Peirce ldquosomos conscientes unicamente do tempo presente o qual se daacute em um
instante se eacute que existe tal coisa chamada instante Mas no presente estamos conscientes do
fluxo do tempo natildeo haacute fluxo em um instante Desse modo o presente natildeo eacute um instanterdquo (NEM
3 p 126)96
2 OS QUATRO ESTAacuteGIOS DO DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE CONTINUUM
A ideia de continuum eacute o fio condutor e o elemento comum de qualquer interpretaccedilatildeo que
busque relacionar os diferentes aspectos da produccedilatildeo peirceana constituiacuteda por teorias que uma
parte dos criacuteticos97
insiste em afirmar natildeo podem ser compatibilizadas a fim de produzir um todo
coerente objetivo de Peirce que considerava como arquitetocircnica a construccedilatildeo do seu sistema
Teorias que segundo tais perspectivas natildeo possuem aquelas caracteriacutesticas que tornam a obra de
Peirce atual e a aproxima do fazer filosoacutefico contemporacircneo Nota-se uma tendecircncia a colocar em
oposiccedilatildeo as teorias que tratam da metodologia da linguagem bem como da loacutegica com aquelas
que satildeo o resultado de sua investigaccedilatildeo metafiacutesica
Peirce reconhece o deacutebito que possui com Kant sobre este aspecto ao discorrer sobre a
necessidade de se construir arquitetonicamente os sistemas de filosofia ele afirma
95 () through an infinitesimal interval of time
96 We are conscious only of the present time which is an instant if there be such thing as an instant But in the
present we are conscious of the flow of the time There is no flow in an instant Hence the present is not an instant 97
Por exemplo GALLIE 1952
79
Que os sistemas devem ser construiacutedos arquitetonicamente foi apregoado
desde Kant mas eu natildeo acho que a implicaccedilatildeo completa da maacutexima tenha
por qualquer modo sido apreendida O que eu recomendo eacute que cada
pessoa que queira formar uma opiniatildeo sobre os problemas fundamentais
deve antes de tudo fazer um levantamento completo do conhecimento
humano deve tomar nota de todas as ideacuteias valiosas em cada ramo da
ciecircncia deve observar exatamente com respeito a que cada uma tem sido
bem sucedida e onde tem falhado a fim de que agrave luz da familiaridade
aprofundada desse modo obtida dos materiais disponiacuteveis para uma teoria
filosoacutefica e da natureza e da forccedila de cada um ele pode avanccedilar para o
estudo do que o problema da filosofia consiste e da maneira correta de
resolvecirc-lo (CP 6 sect 9 1891)98
A teoria da continuidade peirceana passou por vaacuterias fases das quais tentaremos oferecer
uma descriccedilatildeo neste capiacutetulo o momento de sua elaboraccedilatildeo mais feacutertil e de resultado mais
duradouro pode ser localizado na deacutecada de 90 do seacuteculo XIX Esse resultado se encontra
sintetizado na ldquoLei da menterdquo de 1892 e nas ldquoConferecircncias de Cambridgerdquo de 1898 e ocorre
ao mesmo tempo em que desenvolvia a loacutegica dos grafos existenciais e a hipoacutetese cosmoloacutegica
Natildeo bastasse a coincidecircncia quanto ao momento da origem dessas trecircs teorias eacute o proacuteprio Peirce
que declara haver uma unidade de base entre os toacutepicos ldquoOs meus bdquoGrafos existenciais‟ tecircm uma
semelhanccedila notaacutevel com todos os meus pensamentos acerca de qualquer toacutepico da filosofiardquo (MS
620 p 09)
A relaccedilatildeo mais imediata que se pode estabelecer entre elas eacute a de que constituem diversos
aspectos da ideia de continuum a loacutegica dos grafos existenciais estaacute baseada no continuum
98 That systems ought to be constructed architectonically has been preached since Kant but I do not think the full
import of the maxim has by any means been apprehended What I would recommend is that every person who
wishes to form an opinion concerning fundamental problems should first of all make a complete survey of human
knowledge should take note of all the valuable ideas in each branch of science should observe in just what respect
each has been successful and where it has failed in order that in the light of the thorough acquaintance so attained of
the available materials for a philosophical theory and of the nature and strength of each he may proceed to the study
of what the problem of philosophy consists in and of the proper way of solving it (CP 6 sect 9 1891)
80
topoloacutegico como veremos brevemente abaixo A teoria do continuum por sua vez eacute a proacutepria
expressatildeo matemaacutetica do referido conceito e a hipoacutetese cosmoloacutegica consiste na explicitaccedilatildeo dos
princiacutepios de desenvolvimento do continuum real
A variedade de definiccedilotildees que Peirce oferece da ideia de continuum deve-se segundo nos
parece ao fato de que grande parte seus escritos jamais foi publicada Os textos disponiacuteveis em
sua maioria satildeo constituiacutedos por notas que tomava para si proacuteprio ou projetos de livros que
nunca chegaram a ser concluiacutedos Assim o que temos ao ler seus textos eacute um retrato do proacuteprio
desenvolvimento quase cotidiano de suas ideias99
Os textos nos quais Peirce trata da questatildeo
refletem sucessivas tentativas de tornar a ideia de continuum clara coerente e adequada agraves suas
motivaccedilotildees filosoacuteficas As voltas avanccedilos e retomadas fazem parte dessa maneira do retrato do
desenvolvimento do pensamento do filoacutesofo que de fato nunca foi concluiacutedo as modificaccedilotildees
de suas ideias sobre o tema se prolongaram ateacute pouco tempo antes de sua morte em 1914
Segundo Potter e Shields (1977) de 1880 ateacute 1911 periacuteodo no qual Peirce tentou oferecer
uma definiccedilatildeo matematicamente precisa do conceito de continuidade eacute possiacutevel reconhecer
quatro estaacutegios no seu pensamento quanto ao tema100
preacute-cantoriano (ateacute 1884) cantoriano
(1884 ndash 1894) kantiano (1895 ndash 1908) e poacutes-cantoriano (1908 ndash 1911)
99 Moore se refere a essa condiccedilatildeo afirmando que como a maioria das principais ideias de Peirce a ideia de
continuum pode ser vista como ldquowork in progressrdquo (cf MOORE 2007 p 425) 100
Moore (2007) por outro lado classifica em trecircs as fases do desenvolvimento de sua noccedilatildeo de continuum
denominados de (1) Fase germinal (1868 - 1892) na qual as motivaccedilotildees fundamentais para a teoria satildeo identificadas
e elaboradas (2) Fase semi-cantoriana (1892 - 1895) na qual a teoria de conjuntos de Cantor imperfeitamente
compreendida eacute usada como uma estrutura organizadora e (3) Fase peirceana (1895-1914) na qual a teoria de
coleccedilotildees elaborada por Peirce assume o papel organizador
81
21 O PERIacuteODO PREacute-CANTORIANO
O primeiro periacuteodo eacute marcado pela consciecircncia de que havia uma confusatildeo incomum entre
as noccedilotildees de continuidade e divisibilidade infinita mas natildeo ainda pela tentativa de solucionar os
problemas implicados Peirce afirma que ldquo() um continuum eacute precisamente isso toda parte dele
tem partes no mesmo sentidordquo (CP 5 sect 335 1868)101
essa caracteriacutestica ficou conhecida na
literatura sobre o tema como reflexividade Essa confusatildeo persistiu ateacute que 1884 quando Peirce
leu pela primeira vez o artigo ldquoGrundlagen einer allgemeinen Mannigfaltigkeitslehrerdquo (1883) de
Cantor
Entre as motivaccedilotildees para a elaboraccedilatildeo de uma teoria do continuum encontram-se a
necessidade de uma anaacutelise epistemologicamente adequada do tempo bem como a elaboraccedilatildeo de
uma resposta agrave criacutetica feita ao seu texto intitulado ldquoAlgumas consequecircncias de quatro
incapacidadesrdquo de 1868 no qual Peirce desenvolve uma nova concepccedilatildeo de mente que em
oposiccedilatildeo agrave concepccedilatildeo de mente cartesiana caracteriza-se por natildeo possuir qualquer faculdade de
apreensatildeo imediata dos objetos do conhecimento nesse texto ele afirma que toda cogniccedilatildeo eacute
determinada por uma cogniccedilatildeo preacutevia (cf CP 5 sect 284 1868) ou seja que as premissas de todo
raciociacutenio satildeo tambeacutem conclusotildees Sua resposta inicial eacute dada nos termos de uma analogia da
cogniccedilatildeo com um triacircngulo Peirce pede que imaginemos um triacircngulo com o veacutertice invertido e
que aos poucos eacute mergulhado na aacutegua Diz ele
Considere qualquer linha horizontal como representando uma cogniccedilatildeo e
considere que o comprimento da linha serve para medir (por assim dizer) a
vivacidade da consciecircncia daquela cogniccedilatildeo Um ponto natildeo tendo
comprimento representaraacute por este princiacutepio um objeto fora da consciecircncia
Considere que uma linha horizontal abaixo de outra representa uma cogniccedilatildeo
que determina a cogniccedilatildeo representada por aquela outra e que tenha o mesmo
101 () a continuum is precisely that every part of which has parts in the same sense
82
objeto que a uacuteltima Considere a distacircncia finita entre as duas linhas como
representando que elas sejam duas cogniccedilotildees diferentes (CP 5 sect 263 1868)102
Dada esta situaccedilatildeo Peirce potildee-se a investigar se haacute a necessidade de se admitir se ldquodeve
existir um primeirordquo Agrave medida que o triacircngulo mergulha na aacutegua linhas sucessivas formam-se
em sua superfiacutecie que resultam do contato com a superfiacutecie da aacutegua Dizer que haacute uma primeira
seria o mesmo que afirmar que haveria uma linha formada no triacircngulo abaixo da qual nenhuma
outra poderia ser traccedilada mas segundo Peirce baseado na ideia de continuum como infinita
divisibilidade podem ser traccediladas abaixo de qualquer linha tantas outras o quanto se desejar Se
tomarmos essas linhas como cogniccedilotildees veremos que natildeo haacute necessidade de uma primeira visto
que afirmar tal necessidade seria o mesmo que abandonar a geometria
Em um momento posterior no texto ldquoTempo e pensamentordquo provavelmente de 1873
Peirce argumenta novamente em favor da ideia de que o continuum natildeo possui partes uacuteltimas
atraveacutes da investigaccedilatildeo das condiccedilotildees necessaacuterias para a existecircncia de uma mente loacutegica O
filoacutesofo aponta que trecircs coisas devem ser encontradas em toda mente loacutegica ldquoPrimeiro ideias
segundo determinaccedilatildeo de ideias por ideias preacutevias terceiro determinaccedilatildeo de ideias por
processos preacuteviosrdquo (CP 7 sect 348 1873)103
Em um fragmento de 1873 Peirce afirma com mais
detalhes ldquoem toda mente loacutegica deve haver 1ordm ideias 2ordm regras gerais de acordo com as quais
uma ideia determina uma outra ou haacutebitos da mente que conectam ideias 3ordm processos por meio
dos quais tais conexotildees habituais satildeo estabelecidasrdquo (CP 7 sect 358 1873)104
102 Now let any horizontal line represent a cognition and let the length of the line serve to measure (so to speak) the
liveliness of consciousness in that cognition A point having no length will on this principle represent an object
quite out of consciousness Let one horizontal line below another represent a cognition which determines the
cognition represented by that other and which has the same object as the latter Let the finite distance between two
such lines represent that they are two different cognitions 103
First ideas second determinations of ideas by previous ideas third determinations of ideas by previous
processes 104
In every logical mind there must be 1st ideas 2nd general rules according to which one idea determines another
or habits of mind which connect ideas and 3rd processes whereby such habitual connections are established
83
Para que tais condiccedilotildees produzam o pensamento loacutegico as ideias natildeo se podem apresentar
agrave mente como entidades distintas Se tal ocorresse uma vez que a mente soacute se fixa no conteuacutedo
da ideia presente no momento que passa (passing moment) natildeo haveria como conceber a
implicaccedilatildeo entre ideias105
Aqui indica Moore (2007) Peirce se aproxima mas ainda natildeo
formula com clareza uma das propriedades que definem o continuum segundo sua concepccedilatildeo
mais elaborada a de que seus componentes natildeo se distinguem em entidades singulares mas se
apresentam como que fundidos uns aos outros enquanto natildeo se realizam como seres atuais Essa
propriedade receberaacute o nome de confusatildeo (confusion) Ressalta-se tambeacutem a oposiccedilatildeo entre o
continuum reflexivo e as entidades discretas denominadas por Peirce de quanta discretas que
possuem partes uacuteltimas cuja funccedilatildeo eacute a de tornar mais clara a reflexividade do continuum Ao
estudar a metafiacutesica das coleccedilotildees Peirce vislumbra uma abordagem alternativa para o problema
mas o seu ainda impreciso conhecimento sobre coleccedilotildees natildeo o deixa seguir adiante
22 PERIacuteODO CANTORIANO
Por volta de 1884 Peirce jaacute tinha consciecircncia da centralidade que a noccedilatildeo de continuidade
poderia desempenhar na elaboraccedilatildeo de sua filosofia mas ainda natildeo tinha obtido sucesso em
propor uma definiccedilatildeo que lhe fosse satisfatoacuteria Moore afirma que por essa eacutepoca
Ele atingira a ideia de reflexividade kantiana mas natildeo chegara ainda a uma
anaacutelise dos pontos e outros discreta que fosse claramente compatiacutevel com
aquela ideia Reconhecera a utilidade para uma filosofia epistemologicamente
adequada do tempo de alguma coisa como confusatildeo mas essas caracteriacutesticas
105 Percebemos nesta consideraccedilatildeo uma clara motivaccedilatildeo filosoacutefica para o desenvolvimento de uma concepccedilatildeo precisa
de continuidade e mais que isso vemos como questotildees relacionadas agrave epistemologia estatildeo determinando os
caminhos que Peirce toma para pensar as propriedades que tal concepccedilatildeo deve possuir afim de que o conhecimento
seja possiacutevel As condiccedilotildees enunciadas na nota acima abrem a possibilidade de pensar a causalidade final atuante no
processo de implicaccedilatildeo de ideias o que seraacute feita no uacuteltimo capiacutetulo desta tese
84
do seu continuum ndash reflexividade e confusatildeo ndash natildeo foram colocadas em uma
conexatildeo sistemaacutetica em sua definiccedilatildeo de continuum Tinha comeccedilado a brincar
com os infinitesimais mas um pouco agrave parte de seu pensamento sobre
continuidade (MOORE 2007 p 434)
Apoacutes 1884 Peirce adere agrave posiccedilatildeo de Cantor afirmando que a noccedilatildeo de continuidade
deveria ser definida independentemente de nossas concepccedilotildees de espaccedilo e tempo Contudo a
definiccedilatildeo de Cantor natildeo surtiu o efeito que Peirce desejava e nos anos seguintes continuou a
tentar novas definiccedilotildees Seu principal desacordo com a definiccedilatildeo proposta pelo matemaacutetico
consistia em sua insatisfaccedilatildeo com a ideia de que fosse possiacutevel uma abordagem meacutetrica do
continuum Neste periacuteodo de desenvolvimento do seu pensamento sobre a continuidade duas
propriedades do continuum tornam-se centrais a kanticidade (Kanticity) e a aristotelicidade
(Aristotelicity) conforme a nomenclatura peirceana A kanticidade de uma seacuteria faz referecircncia
agravequela ldquopropriedade de intermediaccedilatildeo ou divisibilidaderdquo (CP 4 sect 121)106
ou ainda que a
ldquokanticidade consiste em ter um ponto entre dois pontos quaisquerrdquo (CP 6 sect 166 1889)107
Quanto agrave segunda Peirce afirma que a ldquoaristotelicidade consiste em ter todo ponto que eacute um
limite a uma seacuterie infinita de pontos que pertencem ao sistemardquo (CP 6 sect 166 1889)108
ou ainda
que
A propriedade de aristotelicidade pode ser colocada em termos gerais do
seguinte modo um continuum conteacutem o ponto final que pertence a toda seria
infinita de pontos que ele conteacutem Um corolaacuterio oacutebvio eacute que todo continuum
conteacutem seus limites Mas usando esse princiacutepio eacute necessaacuterio observar que uma
seacuterie pode ser contiacutenua exceto nisto que ela omita um ou ambos os limites (CP
6 sect 123)109
106 property of infinite intermediety or divisibility
107 The Kanticity is having a point between any two points
108 The Aristotelicity is having every point that is a limit to an infinite series of points that belong to the system
109 The property of Aristotelicity may be roughly stated thus a continuum contains the end point belonging to every
endless series of points which it contains An obvious corollary is that every continuum contains its limits But in
using this principle it is necessary to observe that a series may be continuous except in this that it omits one or both
of the limits
85
Como afirma Potter amp Shields (1977) por volta de 1889 o impacto de Cantor sobre Peirce
jaacute era bastante visiacutevel na definiccedilatildeo de continuidade que apresenta para o Dicionaacuterio do Seacuteculo
escreve
[Continuidade significa] em matemaacutetica e filosofia uma conexatildeo de pontos (ou
outros elementos) tatildeo iacutentima como aquelas dos instantes ou intervalos de
tempo assim a continuidade do espaccedilo consiste nisso que um ponto pode
mover-se de qualquer posiccedilatildeo para qualquer outra de tal modo que em cada
instante ele teraacute uma posiccedilatildeo definida e distinta no espaccedilo Esta afirmaccedilatildeo natildeo
eacute entretanto uma definiccedilatildeo adequada de continuidade mas somente um
exemplo extraiacutedo do tempo As antigas definiccedilotildees ndash o fato que partes adjacentes
tecircm seus limites em comum (Aristoacuteteles) infinita divisibilidade (Kant) o fato
que entre quaisquer dois pontos haacute um terceiro (o que eacute verdade para o sistema
dos nuacutemeros racionais) ndash satildeo inadequadas A definiccedilatildeo menos insatisfatoacuteria eacute a
de G Cantor de que continuidade eacute a perfeita concatenaccedilatildeo de um sistema de
pontos ndash palavras que precisam ser entendidas em sentidos especiais (CP 6 sect
164 1889)110
Do ponto de vista filosoacutefico Peirce estava tentando fornecer uma concepccedilatildeo de continuum
que fosse adequada agrave defesa de seu falibilismo e ao estabelecimento de sua cosmologia
evolucionaacuteria Seu entusiasmo com tal ideia era claro ele confessa no texto Falibilismo
continuidade e evoluccedilatildeo de 1897 que ldquose eu tentasse descrever completamente para vocecircs toda a
beleza e verdade cientiacutefica que encontro no princiacutepio de continuidade teria que dizer na
linguagem simples de Matilda a engajada ldquoque a tumba se fecharia sobre mim antes que esse
110 [Continuous means] in mathematics and philosophy a connection of points (or other elements) as intimate as that
of the instants or points of an interval of time thus the continuity of space consists in this that a point can move
from any one position to any other so that at each instant it shall have a definite and distinct position in space This
statement is not however a proper definition of continuity but only an exemplification drawn from time The old
definitions -- the fact that adjacent parts have their limits in common (Aristotle) infinite divisibility (Kant) the fact
that between any two points there is a third (which is true of the system of rational numbers) -- are inadequatedagger2 The
less unsatisfactory definition is that of G Cantor that continuity is the perfect concatenation of a system of points --
words which must be understood in special senses
86
assunto fascinante fosse esgotadordquo ndash mas natildeo antes que minha plateia estivesse exausta (CP 1 sect
171 1897)111
23 PERIacuteODO KANTIANO112
Em meados da deacutecada de 90 motivado por uma reflexatildeo sobre a definiccedilatildeo proposta por
Kant113
de que continuum eacute ldquotudo aquilo cujas partes tecircm partes do mesmo tipordquo (CP 6 sect 168
1889) passa a considerar o continuum natildeo mais como infinita divisibilidade mas como aquilo
que natildeo tem partes uacuteltimas Nesse sentido endereccedila criacuteticas a Cantor insistindo em uma
abordagem natildeo meacutetrica do continuum passando a usar o termo ldquomultitude em suas formulaccedilotildees
Assim afirma que ldquo() a possibilidade de determinar mais do que qualquer dada grandeza dos
pontos ou em outras palavras o fato de que haacute lugar para qualquer grandeza em cada parte da
linha torna-a contiacutenuardquo (CP 3 sect 568 1900)114
Peirce afirma pois que continuidade eacute
totalmente diferente de qualquer coleccedilatildeo de elementos discretos e que por outro lado quanto
maior uma coleccedilatildeo se torna mais ela se parece com o continuum
As criacuteticas que havia endereccedilado a Cantor desde 1892115
expressavam o seu desacordo com
uma abordagem meacutetrica do continuum segundo Peirce a definiccedilatildeo proposta pelo matemaacutetico
ldquovoltava-se para consideraccedilotildees meacutetricas enquanto a distinccedilatildeo entre seacuteries contiacutenuas e
descontiacutenuas eacute manifestamente natildeo-meacutetricardquo (CP 6 sect 121 1982)116
Em termos mais
111 If I were to attempt to describe to you in full all the scientific beauty and truth that I find in the principle of
continuity I might say in the simple language of Matilda the Engaged the tomb would close over me eer the
entrancing topic were exhausted -- but not before my audience was exhausted 112
Moore (2007) denomina este periacuteodo de Fase peirceana argumentando que eacute nele que Peirce obteacutem a definiccedilatildeo
de continuum mais satisfatoacuteria com relaccedilatildeo agraves suas preocupaccedilotildees filosoacuteficas 113
Que natildeo deve ser confundida com a propriedade denominada kanticidade anteriormente indicada cujo significado
era somente o de infinita divisibilidade 114
(hellip) the possibility of determining more than any given multitude of points or in other words the fact that there
is room for any multitude at every part of the line makes it continuous 115
No texto A lei da mente 116
It turns upon metrical considerations while the distinction between a continuous and a discontinuous series is
87
compreensiacuteveis as questotildees que Peirce estava se colocando desde 1893 eram segundo Potter e
Shields (1977) do seguinte tipo como um continuum pode ser colorido quando suas proacuteprias
partes os pontos natildeo podem secirc-lo (cf CP 4 sect 127) A soluccedilatildeo encontrada por Peirce foi a de
natildeo mais considerar os pontos como constituintes do continuum em sua nova formulaccedilatildeo as
partes constituintes do continuum satildeo tambeacutem contiacutenuas Essa posiccedilatildeo perdura ateacute por volta de
1908 quando motivado por problemas no interior dessa abordagem Peirce procura uma nova
elaboraccedilatildeo
24 PERIacuteODO POacuteS-CANTORIANO
Em particular a partir da criacutetica a Cantor de que o continuum natildeo eacute realmente uma
coleccedilatildeo surge a necessidade de se explicar como as partes do continuum juntam-se num todo
pois o continuum claramente tem partes Em 1906 Peirce enfatiza que ldquotudo o que eacute contiacutenuo
tem partes materiaisrdquo e que portanto natildeo pode ser pensado como uma coleccedilatildeo de pontos (CP 6
sect 174 1906) O modo de conexatildeo de suas partes contribui para a natureza do todo Em uma
coleccedilatildeo o modo de conexatildeo eacute soacute o estar junto (co-being) mas no continuum ela deve consistir de
alguma coisa a mais Apenas em 1908 retomando a definiccedilatildeo de Kant de que ldquo() todas as
partes de um continuum perfeito tecircm a mesma dimensionalidade que o todordquo (CP 4 sect 642
1908)117
Peirce afirma que eacute uma decorrecircncia dessa definiccedilatildeo natildeo apenas que todas as partes
devem ter partes do mesmo tipo mas que as partes suficientemente pequenas devem ter um modo
uniforme de conexatildeo imediata O modo de conexatildeo imediata tem como paradigma a noccedilatildeo de
tempo Ou seja ao final Peirce retoma o que havia descartado em 1889 quando aderiu agrave
definiccedilatildeo de Cantor e passa a tratar o continuum em termos de semelhanccedila com a conexatildeo das
pequenas partes temporais
manifestly non-metrical 117
(hellip) all the parts of a perfect continuum have the same dimensionality as the whole
88
Retomando o argumento de Aquiles e a tartaruga proposto por Zenatildeo de Eleacutea para
demonstrar a impossibilidade do movimento Peirce afirma tratar-se de um argumento falacioso
que falha justamente por assumir como divisiacutevel o que natildeo pode secirc-lo
Como afirmam Potter e Shields (1977) a concepccedilatildeo final de continuidade de Peirce entatildeo
fica assim a definiccedilatildeo matemaacutetica de continuidade descreve um continuum imperfeito (CP 4 sect
642 1908) mas o verdadeiro continuum eacute alguma coisa diferente de qualquer relaccedilatildeo meacutetrica ou
da ordem dos elementos O verdadeiro continuum natildeo tem elementos reais embora natildeo seja
vazio (cf POTTER e SHIELDS 1961 p 139)
Uma vez demonstrada a importacircncia central da noccedilatildeo de continuidade para o pensamento
de Peirce e o modo como esse conceito estaacute ligado agraves variadas maneiras de expressatildeo do seu
pensamento contribuindo para o esclarecimento dos aspectos mais obscuros de suas formulaccedilotildees
cabe agora tentar compreender em particular a maneira pela qual a atuaccedilatildeo da causalidade final
se manifesta nos processos naturais tendo como pano de fundo o continuum Como jaacute foi
indicado a possibilidade do conhecimento do mundo estaacute intimamente ligada ao seu aspecto de
generalidade que por sua vez soacute adquire sentido sob o conceito de continuidade Do mesmo
modo as relaccedilotildees causais em geral e a final em particular envolvem continuidade No proacuteximo
capiacutetulo seraacute investigada a especificidade do modo de atuaccedilatildeo da causalidade final
89
CAPIacuteTULO 03
A EVOLUCcedilAtildeO
Boys grow into men but not men into boys It is thus an immediate corollary from the
doctrine of the conservation of energy that growth is not the effect of force alone (CP
6 sect 554 1887)
90
Este capiacutetulo procura evidenciar o modo pelo qual o desenvolvimento do continuum se
efetuou e tem se efetuado para dar origem ao universo atual segundo a concepccedilatildeo peirceana
Seu desenvolvimento como ressalta Peirce se daacute por meio da atuaccedilatildeo da causalidade final A
negaccedilatildeo da atuaccedilatildeo da causalidade final nos processos naturais eacute uma posiccedilatildeo que natildeo pode ser
sustentada consistentemente pois para Peirce natildeo soacute nos deparamos com uma miriacuteade de
fenocircmenos que a manifestam claramente em particular nos reinos orgacircnico e psiacutequico mas
tambeacutem no reino fiacutesico como por exemplo mais determinante ainda no processo que deu
origem e continua a atuar no crescimento do universo que soacute pode ser entendido a partir da
perspectiva que toma a causalidade final como um agente operante no universo Tal processo diz
Peirce eacute a evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902)
1 ASPECTOS EPISTEMOLOacuteGICOS DA HIPOacuteTESE EVOLUCIONAacuteRIA
Partiremos nesta investigaccedilatildeo de algumas consideraccedilotildees sobre a perspectiva
epistemoloacutegica peirceana para evidenciarmos o modo pelo qual suas consideraccedilotildees sobre a
evoluccedilatildeo satildeo determinantes para a possibilidade de realizaccedilatildeo de seu projeto de validaccedilatildeo do
empreendimento cientiacutefico Para tal fim teremos como ponto de partida as consideraccedilotildees
oferecidas por Christopher Hookway (1984 1985) O primeiro aspecto a ser considerado eacute a sua
adoccedilatildeo do princiacutepio que nega a existecircncia do inexplicaacutevel Uma consequecircncia desta adoccedilatildeo eacute o
estabelecimento de um criteacuterio para a identificaccedilatildeo do tipo de hipoacutetese que pode ser aceita como
candidata agrave verdade cientiacutefica e desse modo merecedora de investigaccedilatildeo Como jaacute foi dito
anteriormente eacute a regularidade na concepccedilatildeo de Peirce aquilo que requer uma explicaccedilatildeo
Como aponta o filoacutesofo natildeo nos surpreendemos e nem buscamos explicaccedilotildees para o resultado
que emerja de um lance de dados uma regularidade natildeo esperada a quebra de uma expectativa
(cf CP 7 sect 194 1901) por outro lado excita-nos a buscar uma explicaccedilatildeo do por que dos
eventos terem se sucedido daquela maneira precisa A maior parte das irregularidades natildeo nos
desperta o menor interesse Peirce diz
91
Estou () certo de que a mera irregularidade onde nenhuma regularidade
definida eacute esperada natildeo cria surpresa nem excita qualquer curiosidade Por que
deveria jaacute que a irregularidade eacute a regra absolutamente preponderante da
experiecircncia e a regularidade eacute somente uma estranha exceccedilatildeo Em que estado
de surpresa passaria minha vida se tentasse compreender por que natildeo haacute
regularidades conectando dias nos quais eu recebo um nuacutemero par de cartas pelo
correio e noites nas quais eu observo um nuacutemero par de estrelas cadentes Mas
quem procuraria por explicaccedilotildees para irregularidades como essas (CP 7 sect 189
1901)118
Uma explicaccedilatildeo no entanto eacute requerida sempre que uma expectativa criada por um haacutebito
que tem por base uma regularidade eacute quebrada A surpresa causada pela quebra de regularidade
motiva-nos a procurar uma explicaccedilatildeo para o comportamento natildeo esperado dos fenocircmenos A
maneira como Peirce entende o que seria uma explicaccedilatildeo eacute bem clara na seguinte passagem
() o que a explicaccedilatildeo de um fenocircmeno faz eacute fornecer uma proposiccedilatildeo que se
fosse conhecida como verdadeira antes do fenocircmeno se apresentar teria tornado
aquele fenocircmeno prediziacutevel se natildeo como certeza ao menos como algo de
ocorrecircncia muito provaacutevel Assim tornaria aquele fenocircmeno racional - isto eacute
tornaacute-lo-ia uma consequecircncia loacutegica necessaacuteria ou provaacutevel (CP 7 sect 197
1901)119
O problema com essa definiccedilatildeo de explicaccedilatildeo eacute que aparentemente implica em um regresso
ao infinito Se aceitarmos como Peirce que uma explicaccedilatildeo natildeo pode ter por base uma hipoacutetese
118 I am () confident that mere irregularity where no definite regularity is expected creates no surprise nor excites
any curiosity Why should it when irregularity is the overwhelmingly preponderant rule of experience and
regularity only the strange exception In what a state of amazement should I pass my life if I were to wonder why
there was no regularity connecting days upon which I receive an even number of letters by mail and nights on which
I notice an even number of shooting stars But who would seek explanations for irregularities like that
119 () what an explanation of a phenomenon does is to supply a proposition which if it had been known to be true
before the phenomenon presented itself would have rendered that phenomenon predictable if not with certainty at
least as something very likely to occur It thus renders that phenomenon rational -- that is makes it a logical
consequence necessary or probable
92
que natildeo seja ela proacutepria explicaacutevel veremos a necessidade de uma hierarquia de hipoacuteteses
segundo a sua generalidade que conduziria a explicaccedilatildeo de qualquer fenocircmeno por fim ao
fracasso uma vez que nenhum fenocircmeno poderia ser completamente conhecido
Barrar a regressatildeo ao infinito parece possiacutevel somente se encontrarmos uma lei que natildeo
necessite de explicaccedilatildeo que se imponha por si mesma Esse entretanto natildeo parece ter sido o
caminho trilhado por Peirce Eacute na tentativa de solucionar o problema da regressatildeo ao infinito das
explicaccedilotildees que encontraremos uma das motivaccedilotildees para a elaboraccedilatildeo de sua hipoacutetese
evolucionaacuteria Submeter uma regularidade a uma lei de maior generalidade natildeo parece ser o
uacutenico caminho para oferecer uma explicaccedilatildeo Uma rota alternativa consiste em oferecer uma
explicaccedilatildeo histoacuterica de como tais regularidades surgiram isto eacute uma explicaccedilatildeo geneacutetica Como
aponta Hookway ldquoEacute plausiacutevel ler Peirce como se estivesse tentando bloquear a regressatildeo de
explicaccedilotildees por meio dessa estrateacutegia a cosmologia evolucionaacuteria oferece uma estrutura para
compreensatildeo histoacuterica das leis que nos capacita a bloquear o regresso das explicaccedilotildeesrdquo
(Hookway 1985 p 267-68)
Aleacutem do bloqueio agrave regressatildeo das explicaccedilotildees Peirce vecirc na hipoacutetese evolucionaacuteria tomada
como um instrumento loacutegico uma resposta para as similaridades formais e materiais constataacuteveis
entre as leis que dirigem diferentes tipos de fenocircmenos da mesma maneira que a teoria da
seleccedilatildeo natural elaborada por Darwin (1809 - 1882) auxilia-nos na compreensatildeo das
semelhanccedilas morfoloacutegicas e comportamentais de diferentes populaccedilotildees
De maneira mais ambiciosa Peirce parece acreditar que a hipoacutetese evolucionaacuteria seria
capaz tambeacutem de explicar porque temos a experiecircncia de uma uniformidade na natureza Ele
afirma que ldquo() a uacutenica maneira possiacutevel de explicar as leis da natureza e a uniformidade em
geral eacute supocirc-las resultado da evoluccedilatildeordquo (CP 6 sect 13 1891)120
em outro momento afirma que
Queremos uma teoria da evoluccedilatildeo da lei fiacutesica Devemos supor que agrave medida
que voltamos ao passado indefinido natildeo meramente as leis especiais mas a lei
120 (hellip) the only possible way of accounting for the laws of nature and for uniformity in general is to suppose them
results of evolution This supposes them not to be absolute not to be obeyed precisely
93
ela mesma encontra-se cada vez menos determinada E como isso poderia
acontecer se a causalidade tivesse sido sempre tatildeo rigidamente necessaacuteria como
eacute agora (EP 1 p 218-9 1884)121
Hookway eacute quanto a esse ponto discordante da pretensatildeo de Peirce pois afirma que
A demanda de que expliquemos por que uma lei existe parece muitas vezes e
corretamente dificilmente inteligiacutevel Essa natildeo parece ser uma questatildeo
cientiacutefica e certamente natildeo eacute idecircntica como Peirce supotildee agrave mais razoaacutevel
afirmaccedilatildeo de que eacute a regularidade ou a uniformidade que nos impulsiona a
buscar por explicaccedilotildees (Hookway 1985 p 268)
Todavia de acordo com o espiacuterito do projeto epistemoloacutegico peirceano que busca eliminar
o incognosciacutevel do reino da natureza por meio da validaccedilatildeo de um meacutetodo eficaz para a ciecircncia e
agrave luz da sua cosmologia que fornece elementos para pensar cada aspecto do universo como o
resultado de um processo evolucionaacuterio a proacutepria existecircncia de leis como um fato bruto que se
impotildee agrave experiecircncia deve ser tomado como um problema que requer uma explicaccedilatildeo A
discordacircncia presente na opiniatildeo de Hookway parece implicar em uma distinccedilatildeo entre leis e
regularidades que natildeo se encontra no pensamento de Peirce senatildeo em graus
Ao lado das leis que governam os fenocircmenos como jaacute vimos no primeiro capiacutetulo Peirce
identifica o acaso absoluto como um ingrediente constitutivo da realidade e fator determinante
para que ela nos apareccedila da maneira como a percebemos isto eacute diversa e com constante
crescimento de complexidade
A partir de uma perspectiva geral que engloba a origem do universo passando pelo tempo
atual e se projetando no futuro infinitamente distante podemos perceber que a hipoacutetese
121 We want a theory of the evolution of physical law We ought to suppose that as we go back in the indefinite past
not merely special laws but law itself is found to be less and less determinate And how can that be if causation was
always as rigidly necessary as it is now
94
evolucionaacuteria de Peirce se compromete com a ideia de que por meio da passagem do tempo as
variaccedilotildees ao acaso tornam-se mais raras e as leis tecircm a sua influecircncia sobre o curso dos eventos
aumentada tornando desse modo o mundo mais e mais racional Central a essa ideia eacute a noccedilatildeo
de haacutebito tanto em seu caraacuteter psicoloacutegico que atua sobre noacutes determinando atraveacutes de
investigaccedilatildeo que adotemos expectativas mais confiaacuteveis isto eacute tornemo-nos mais
autocontrolados quanto em seu caraacuteter cosmoloacutegico que determina o crescimento da
razoabilidade concreta no universo
2 AS RAIacuteZES NA CIEcircNCIA DO SEacuteCULO XIX
Uma outra motivaccedilatildeo para a adoccedilatildeo da hipoacutetese evolucionaacuteria pode ser encontrada na
insatisfaccedilatildeo com o tratamento que a mecacircnica claacutessica legava a certos fenocircmenos considerados
por Peirce de primordial importacircncia os fenocircmenos irreversiacuteveis A caracteriacutestica distintiva do
mundo fenomecircnico eacute sua diversidade afirma Peirce (cf CP 6 sect 262 1892) Como entatildeo
podemos perguntar eacute possiacutevel conciliar esse aspecto do mundo com uma abordagem mecanicista
dos fenocircmenos Eacute para responder a esta questatildeo que Peirce desenvolve uma teoria da evoluccedilatildeo
como um princiacutepio da loacutegica que amplia seu horizonte de aplicaccedilatildeo para aleacutem do reino das
explicaccedilotildees bioloacutegicas alcanccedilando o reino das explicaccedilotildees fiacutesicas psiacutequicas almejando ateacute
mesmo a explicar a gecircnese das proacuteprias leis naturais Embora tenha sido com a obra de Darwin
que o conceito de evoluccedilatildeo foi deslocado para o centro das discussotildees cientiacuteficas na segunda
metade do seacuteculo XIX Peirce dota-o de um sentido diferente daquele entatildeo empregado isto eacute do
de uma metafiacutesica do progresso Como um princiacutepio da loacutegica trata-se de uma ideia reguladora
que tem por finalidade abranger de forma sistemaacutetica e racional a ciecircncia do seu tempo Seu
sentido nada mais eacute do que a hipoacutetese de que existe uma explicaccedilatildeo simples para um estado de
coisas complexas (cf W 4 p 547 1884) Enquanto tal Peirce supunha-o presente na elaboraccedilatildeo
teoacuterica de todo grande filoacutesofo Ele afirma que ldquoHoje todos satildeo evolucionistas Diz-se que eacute o
tempo do evolucionismo Mas a verdade eacute que todos os filoacutesofos desde o tempo de Fereacutecides
95
tecircm sido evolucionistasrdquo (NEM 4 p 140 ca 1898)122
O desafio principal enfrentado por Peirce eacute o de propor uma alternativa agrave abordagem
mecanicista que natildeo ignore a variedade e diversidade dos fenocircmenos De um ponto de vista mais
geral pode-se identificar nos esforccedilos empreendidos por Peirce a busca por uma teoria que
levasse em consideraccedilatildeo os fenocircmenos irreversiacuteveis tarefa que natildeo faria sentido dentro dos
paracircmetros da fiacutesica newtoniana na qual a direccedilatildeo da flecha do tempo eacute teoricamente reversiacutevel
A evoluccedilatildeo como um processo operante no cosmo aparece como a fonte dos problemas da
abordagem da mecacircnica claacutessica pois a irreversibilidade de seus processos natildeo pode ser
explicada Diz Peirce
Desse modo pela admissatildeo da pura espontaneidade ou vida como uma
caracteriacutestica de universo agindo sempre e em todo lugar ainda que restrita pelos
limites da lei continuamente produzindo variaccedilotildees infinitesimais com relaccedilatildeo agrave
lei e outras grandes com infinita infrequecircncia considero toda a variedade e
diversidade do universo no uacutenico sentido no qual o realmente sui generis e novo
pode ser considerado A visatildeo comum tem que admitir a inexauriacutevel e numerosa
variedade do mundo tem que admitir que sua lei mecacircnica natildeo consegue dar
conta disso ao final a variedade pode se originar unicamente da espontaneidade
e contudo nega sem qualquer evidecircncia ou razatildeo a existecircncia dessa
espontaneidade ou de outra forma voltam ao iniacutecio do tempo e supotildeem-na
morta desde sempre (CP 6 sect 59 1892)123
Como aponta Reynolds (2002 p 27) ldquoEra uma crenccedila comum entre os fiacutesicos ateacute por volta
da uacuteltima deacutecada do seacuteculo dezenove que todos os fenocircmenos fiacutesicos poderiam ser acomodados
dentro dos esquemas da apresentaccedilatildeo da ciecircncia da mecacircnica de Newtonrdquo Peirce tendia a aceitar
esta afirmaccedilatildeo com alguma reserva sua principal discordacircncia dizia respeito agrave impossibilidade de
122 Everybody today is evolutionist This is said to be the day of evolutionism But in truth every important
philosopher from Pherecydes down has always been evolutionist
123 By thus admitting pure spontaneity or life as a character of the universe acting always and everywhere though
restrained within narrow bounds by law producing infinitesimal departures from law continually and great ones
with infinite infrequency I account for all the variety and diversity of the universe in the only sense in which the
really sui generis and new can be said to be accounted for The ordinary view has to admit the inexhaustible
multitudinous variety of the world has to admit that its mechanical law cannot account for this in the least that
variety can spring only from spontaneity and yet denies without any evidence or reason the existence of this
spontaneity or else shoves it back to the beginning of time and supposes it dead ever since
96
se abordar os fenocircmenos irreversiacuteveis dentro desse esquema explicativo A esta posiccedilatildeo que
considerava passiacutevel de criacutetica ele atribuiu o nome de mecanicismo ou necessitarismo Eacute
interessante notar que Peirce definia a fiacutesica como ldquo() a ciecircncia dos princiacutepios operativos na
natureza inorgacircnica a ciecircncia das forccedilas ou formas de energiardquo (CD p 4465 ca 1889)124
A
fiacutesica segundo sua concepccedilatildeo poderia ser divida em trecircs ramos distintos
1 Fiacutesica molar Mecacircnica e gravitaccedilatildeo a ciecircncia da forccedila em geral com
desenvolvimentos matemaacuteticos extensivos
2 Fiacutesica molecular o estudo da constituiccedilatildeo da mateacuteria e das forccedilas interiores agraves
moleacuteculas incluindo a elasticidade e o calor (um aspecto indivisiacutevel) coesatildeo e forccedilas quiacutemicas e
3 A fiacutesica do eacuteter sendo o estudo da luz ou radiaccedilatildeo eletricidade e magnetismo (cf CP
1 sect 193 1903)
Eacute no segundo ramo o da fiacutesica molecular indica Reynolds (2002) que Peirce vecirc a maior
importacircncia que seu projeto loacutegicometafiacutesico poderia ter como um guia para as pesquisas Sua
insatisfaccedilatildeo com a incapacidade da mecacircnica newtoniana de tratar do tempo como um fluxo que
possui uma direccedilatildeo especiacutefica eacute atribuiacuteda ao caraacuteter formal da teoria mecanicista Como afirma
() as leis da dinacircmica permanecem em uma condiccedilatildeo um pouco diferente
daquela das leis da gravitaccedilatildeo elasticidade e similares As leis da dinacircmica satildeo
muito mais parecidas com princiacutepios loacutegicos se eacute que natildeo satildeo precisamente isso
Elas soacute dizem como os corpos se moveratildeo depois que se tenha dito o que as
forccedilas satildeo Elas permitem qualquer forccedila e portanto qualquer movimento (CP
1 sect 347 1903)125
124 () the science of the principles operative in nature the science of forces or forms of energy 125 () the laws of dynamics stand on quite a different footing from the laws of gravitation elasticity electricity
and the like The laws of dynamics are very much like logical principles if they are not precisely that They only say
how bodies will move after you have said what the forces are They permit any forces and therefore any motions
97
Dado o seu caraacuteter geral e abstrato essas leis natildeo conseguem dar conta dos processos
irreversiacuteveis que ocorrem na natureza uma vez que a direccedilatildeo da flecha do tempo tanto pode estar
apontada para o futuro quanto para o passado sem que nada de significativo seja alterado na
teoria No entanto os processos naturais visados por Peirce como objetos merecedores de
atenccedilatildeo e explicaccedilatildeo satildeo justamente aqueles nos quais a direccedilatildeo do tempo desempenha um papel
fundamental satildeo os processos irreversiacuteveis como a proacutepria evoluccedilatildeo que determina o
crescimento do universo como um todo
A discussatildeo do alcance e limite da abordagem mecanicista passa pela consideraccedilatildeo do que
ficou conhecido como a lei da vis viva126
que eacute descrita por Peirce como ldquo() o princiacutepio
segundo o qual quando unicamente forccedilas posicionais satildeo consideradas qualquer mudanccedila na
vis viva do sistema depende unicamente das situaccedilotildees inicial e final das partiacuteculasrdquo (CD p 6768
ca 1889)127
As forccedilas posicionais satildeo aquelas resultantes exclusivamente da posiccedilatildeo relativa dos
corpos envolvidos Uma vez que essas forccedilas mantecircm a quantidade de vis viva do sistema
inalterada elas satildeo chamadas de forccedilas conservativas Na definiccedilatildeo que Peirce oferece do termo
forccedila temos a definiccedilatildeo do que entendia por forccedila conservativa
Uma atraccedilatildeo ou repulsatildeo dependente da posiccedilatildeo relativa do par de corpos
implicados Acredita-se que todas as forccedilas fundamentais sejam conservativas
ou fixas Seja qual for o movimento que tenha origem sob a influecircncia
unicamente de forccedilas conservativas pode originar-se sob as mesmas forccedilas
precisamente na ordem reversa a velocidade sendo a mesma mas em direccedilatildeo
oposta (CD p 2319 ca 1889)128
126 Reynolds (2002 p 30) lembra que essa quantidade foi primeiramente defina por Leibniz (1646 - 1716) como
sendo igual ao produto da massa e o quadrado da velocidade de uma partiacutecula ou a soma desse modo de um grupo
de partiacuteculas
127 () the principle that when only positional forces are considered any changes in the vis viva of a system
depend only on the initial and final situations of the particles 128 An attraction or repulsion depending upon the relative position of the pair of bodies concerned All fundamental
forces are believed to be conservative or fixed Whatever motion takes place under the influence of conservative
forces alone might take place under the same forces in precisely the reverse order the velocities being the same but
opposite in direction
98
A consequecircncia eacute a de que todos os sistemas que contenham unicamente forccedilas de tipo
conservativo satildeo reversiacuteveis Ainda que a princiacutepio a lei da vis viva tivesse aplicaccedilatildeo restrita aos
sistemas mecacircnicos Helmholtz (1821 - 1894) se encarregou de estendecirc-la a todos os sistemas
fiacutesicos argumentando que todas as forccedilas fundamentais da natureza satildeo posicionais portanto
conservativas que interagem entre pares de pontos materiais O passo seguinte nessa mesma
direccedilatildeo foi a determinaccedilatildeo do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia mais abrangente que a lei da
vis viva na medida em que inclui todos os tipos de forccedilas existentes na natureza como afirma
Reynolds ldquoO que o princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia fez foi tornar o velho princiacutepio da
mecacircnica (a lei da vis viva) um princiacutepio geral da fiacutesica com aplicaccedilatildeo universal a todos os
sistemas fiacutesicosrdquo (Reynolds 2002 p 32)
As implicaccedilotildees do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia e a sua relaccedilatildeo com a vis viva satildeo
bem indicadas por Peirce na seguinte passagem
Tambeacutem pode ser argumentado que de acordo com a lei de conservaccedilatildeo de
energia natildeo haacute nada no universo fiacutesico que corresponda agrave nossa ideia de que o
preacutevio determina o subsequente em qualquer modo no qual o subsequente natildeo
determine o preacutevio () Assim sendo do quadrado de uma quantidade negativa
sendo positivo segue-se que se todas as velocidades fossem revertidas em
qualquer instante tudo permaneceria igual unicamente o tempo indo para traacutes
em relaccedilatildeo a como estava Tudo que tenha acontecido aconteceria novamente
na ordem reversa (CP 8 sect 320 1906)129
ou ainda
129 It may also be argued that according to the law of the conservation of energy there is nothing in the physical
universe corresponding to our idea that the previous determines the subsequent in any way in which the subsequent
does not determine the previous() Now the square of a negative quantity being positive it follows that if all the
velocities were reversed at any instant everything would go on just the same only time going backward as it were
Everything that had happened would happen again in reverse order
99
Eu pessoalmente acredito que as duas direccedilotildees do Tempo satildeo tatildeo diferentes
quanto as duas direccedilotildees ao longo de uma linha Pois a lei da conservaccedilatildeo de
energia eacute que a vis viva e consequentemente tambeacutem as forccedilas das partiacuteculas
natildeo depende de nada mutaacutevel exceto as posiccedilotildees relativas das partiacuteculas Desse
modo o diferencial do tempo entra na expressatildeo analiacutetica da vis viva 12
m(dsdt)2 bem como naquela de forccedila m d2s (dt)
2 unicamente como o
quadrado Uma vez que o quadrado de uma quantidade negativa eacute igual agravequele
da quantidade positiva correspondente as duas direccedilotildees do tempo satildeo
indiferentes na medida em que a lei de conservaccedilatildeo de energia valha (NEM 2
p 481)130
O que se depreende eacute que natildeo se pode entender por meio destes princiacutepios porque o
universo apresenta caracteriacutesticas de irreversibilidade uma vez que a partir dos mesmos natildeo se
pode compreender por que a flecha do tempo possuiria caracteriacutesticas especiais em uma de suas
direccedilotildees isto eacute por que o tempo flui do passado para o futuro e por que essa direccedilatildeo apresenta
aspectos de irreversibilidade Entretanto seria um equiacutevoco julgar que Peirce natildeo tinha uma
avaliaccedilatildeo positiva do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia ele proacuteprio afirma em vaacuterios
momentos que ldquoA descoberta desta lei [de conservaccedilatildeo de energia] eacute a maior que a ciecircncia jamais
fez e nada que possa ser descoberto no futuro (a menos que seja de caraacuteter sobrenatural) pode
igualaacute-la em importacircnciardquo (W 5 p 402)131
Natildeo obstante esta avaliaccedilatildeo Peirce parece em
algumas passagens um pouco hesitante quanto ao verdadeiro alcance e natureza do princiacutepio
A descoberta da conservaccedilatildeo de energia pode muito bem ser considerada como a
maior conquista da filosofia natural Contudo por fim nada sabemos ao seu
respeito com exceccedilatildeo daquilo que a experiecircncia nos ensina e suas verificaccedilotildees
experimentais com exceccedilatildeo de alguns casos simples natildeo obtecircm qualquer grau
130 I personally believe that the two directions of Time are as alike as the two directions along a line For the law of
the conservation of energy is that the vis viva and consequently also the forces of the particles depends upon
nothing mutable except the relative positions of the particles Now the differential of the time enters into the
analytical expression of the vis viva 12 m(dsdt)2 as well as into that of force m d2s (dt)
2 only as squared
Whence the square of a negative quantity being equal to that of the corresponding positive quantity the two
directions of time are indifferent as far as the action of the law of the conservation of energy goes 131 The discovery of this law [of the conservation of energy] is the greatest that science has ever made and nothing
that can be hereafter (unless it be of a supernatural kind) can equal it in importance
100
extraordinaacuterio de precisatildeo quando consideramos o trabalho muscular e a
atividade cerebral haacute pouco mais que analogia a nos guiar a pensaacute-la como uma
aproximaccedilatildeo da verdade Toda determinaccedilatildeo fiacutesica de uma quantidade contiacutenua
tem seu ldquoerro provaacutevelrdquo e o erro provaacutevel da equaccedilatildeo que expressa a
conservaccedilatildeo de energia eacute grande em comparaccedilatildeo com aqueles que expressam
por exemplo as trecircs leis do movimento Todavia frequentemente vemos os
ldquocientistasrdquo tratando a lei da conservaccedilatildeo de energia em suas aplicaccedilotildees
extremas as mais distantes de qualquer coisa que possamos medir como algo de
que seria absurdo duvidar (CN 1 p 176 1893)132
O problema que Peirce tem como pano de fundo de suas especulaccedilotildees e para cuja soluccedilatildeo
emprega seus maiores esforccedilos eacute como jaacute ficou claro o de propor uma abordagem cientiacutefica aos
fenocircmenos irreversiacuteveis Quando se refere a tais fenocircmenos Peirce pensa sobretudo naqueles
que satildeo fruto da evoluccedilatildeo mas tambeacutem em outros fenocircmenos fiacutesicos cujas caracteriacutesticas de
irreversibilidade jaacute lhe eram claras O filoacutesofo afirma que
(hellip) quase todos os fenocircmenos dos corpos aqui na terra que atraem a nossa
atenccedilatildeo satildeo natildeo conservativos isto eacute satildeo inexplicaacuteveis por meio da Lei de
Conservaccedilatildeo de Energia Pois satildeo accedilotildees que natildeo podem ser revertidas Na
linguagem dos fiacutesicos satildeo irreversiacuteveis Deste tipo satildeo por exemplo o
nascimento o crescimento a vida () todos os movimentos que sofrem a
resistecircncia da fricccedilatildeo ou da viscosidade dos fluidos () o trovatildeo a produccedilatildeo das
cores pelo prisma o fluxo dos rios a formaccedilatildeo de barreiras em suas
desembocaduras a vegetaccedilatildeo de seus canais enfim substancialmente tudo que a
experiecircncia ordinaacuteria revela (CP 6 sect 72 1898)133
132 The discovery of the conservation of energy may well be considered as the greatest achievement of natural
philosophy Yet after all we know nothing about it except what experience teaches us and the experiential
verifications of it except in a few simple cases do not attain any extraordinary degree of precision while in regard
to muscular work and brain activity there is little but analogy to lead us to think it so much as a close approximation
to the truth Every physical determination of a continuous quantity has its probable error and the probable error of
the equation which expresses the conservation of energy is large in comparison with those which express for
example the three laws of motion Nevertheless we often find the scientists treating the law of the conservation of
energy in its extremest applications the most remote from anything we can measure as something it would be
absurd to doubt
133 () almost all the phenomena of bodies here on earth which attract our familiar notice are non-conservative that
is are inexplicable by means of the Law of the Conservation of Energy For they are actions which cannot be
reversed In the language of physics they are irreversible Such for instance is birth growth life () all motion
resisted by friction or by the viscosity of fluids () the conduction of heat combustion capillarity diffusion of fluids
() the thunder bolt the production of high colors by a prism the flow of rivers the formations of bars at their
mouths the wearing of their channels in short substantially everything that ordinary experience reveals
101
Temos desta maneira como jaacute ficou indicado uma tensatildeo entre a quase ubiquidade do
caraacuteter de irreversibilidade nos fenocircmenos naturais e a descriccedilatildeo cientiacutefica que toma o universo
como um sistema reversiacutevel in toto A soluccedilatildeo encontrada por Peirce natildeo eacute uma formulaccedilatildeo
isolada e totalmente diferente do que a ciecircncia de seu tempo vinha produzindo Veremos agora
como as discussotildees que conduziram agrave formulaccedilatildeo da termodinacircmica inspirou as ideias de Peirce
A descriccedilatildeo de fenocircmenos como irreversiacuteveis natildeo era exclusividade de Peirce Sadi Carnot
(1796ndash1832) Rudolf Clausius (1822ndash1888) e Lord Kelvin (1824ndash1907) jaacute se ocupavam com a
tarefa de compreender alguns fenocircmenos caracteriacutesticos da irreversibilidade em particular o
calor que daria origem posteriormente agrave teoria termodinacircmica Nas afirmaccedilotildees de Clausius de
que (1) a energia do universo eacute constante e (2) a entropia do universo tende ao maacuteximo
encontramos uma clara afirmaccedilatildeo de que eacute o aumento de entropia o marcador que determina a
direccedilatildeo da flecha do tempo Como aponta Reynolds
Em uma tentativa de oferecer uma abordagem mecacircnica de tais processos
irreversiacuteveis tal como satildeo descritos pela segunda lei Clausius Maxwell
Boltzmann e outros desenvolveram a teoria cineacutetica dos gases na qual a teoria
da probabilidade e os princiacutepios da mecacircnica satildeo combinados para oferecer uma
abordagem estatiacutestica dos movimentos da miriacuteade de partiacuteculas do gaacutes O
tratamento estatiacutestico foi considerado necessaacuterio principalmente por causa do
vasto nuacutemero de moleacuteculas que se supocircs constituiacutea um gaacutes (Reynolds 2002 p
42)
Para os criadores da teoria cineacutetica dos gases o fato de que os gases tendam a preencher
todo o interior dos recipientes em que satildeo colocados e de que nunca se concentram em apenas
uma parte dos mesmos eacute explicado em funccedilatildeo da lei dos grandes nuacutemeros ou lei das
probabilidades Embora teoricamente possiacutevel a ocorrecircncia da concentraccedilatildeo espontacircnea das
partiacuteculas de um gaacutes nunca eacute verificada isso porque a probabilidade de sua difusatildeo eacute muito maior
do que a de sua concentraccedilatildeo dado o nuacutemero extremamente grande de partiacuteculas que o
102
compotildeem cujas interaccedilotildees satildeo tatildeo numerosas e tatildeo sutis que satildeo tomadas como sendo
determinadas pelo acaso
Quanto a esse tipo de explicaccedilatildeo Peirce declara ldquoPara aquelas explicaccedilotildees que os fiacutesicos
propotildeem para os fenocircmenos irreversiacuteveis por meio da doutrina da probabilidade (doctrine of
chances) aplicada a trilhotildees de moleacuteculas aceito-as integralmente como um dos resultados mais
sofisticados da ciecircnciardquo (CP 7 sect 470 1898)134
Contudo acrescenta mais abaixo no mesmo
paraacutegrafo
Sua explicaccedilatildeo dos fatos eacute em seu conjunto admiraacutevel e fortalecida por uma
variedade de novos fenocircmenos que natildeo eram conhecidos no momento em que a
teoria foi primeiramente proposta mas que se encaixam em seus lugares como as
peccedilas separadas de um mapa de crianccedila uma vez que ela tenha comeccedilado a unir
algumas delas corretamente Essa explicaccedilatildeo demonstra que a accedilatildeo da energia
estaacute disseminada por cada departamento do fenocircmeno fiacutesico Contudo em uma
coisa ela falha a saber em mostrar a ausecircncia de um tipo muito diferente de
accedilatildeo e natildeo falha apenas em mostrar sua ausecircncia mas por suprimir ateacute mesmo
os meios de provar a sua presenccedila (CP 7 sect 470 1898)135
Os fenocircmenos que satildeo ignorados e ateacute mesmo mascarados pelas teorias indicadas satildeo
denominados por Peirce de fenocircmenos natildeo conservativos e possuem duas caracteriacutesticas
principais
a) verifica-se em seu desenrolar uma determinada direccedilatildeo e uma tendecircncia assintoacutetica para
a realizaccedilatildeo de um estado de coisas final
134 As to those explanations which the physicists propose for irreversible phenomena by means of the doctrine of
chances as applied to trillions of molecules I accept them fully as one of the finest achievements of science
135 Its explanation of the facts is altogether admirable and is fortified by a variety of new phenomena which were
not known at the time the theory was first proposed but which fit into their places like the pieces of a boys dissected
map after he has once begun to put a few of them rightly together This explanation demonstrates that the agency of
energy is disseminated through every department of physical phenomena But in one thing it fails namely it fails to
show the absence of a very different kind of agency and it not only fails to show its absence but even supplies the
means of proving its presence
103
b) satildeo irreversiacuteveis (cf CP 7 sect 471 1898)
Temos aqui a afirmaccedilatildeo clara de que tais fenocircmenos se dirigem para um fim Peirce diz que
se teleoloacutegico eacute uma palavra muito forte para descrever esse processo talvez se possa inventar
uma outra palavra finista (finious) para expressar a sua tendecircncia em direccedilatildeo a um estado final
(cf CP 7 sect 471 1898)
Embora Peirce reconheccedila que a fricccedilatildeo seja o exemplo de um fenocircmeno natildeo conservativo
que simula a accedilatildeo conservativa (cf CP 7 sect 472 1898) a utilizaccedilatildeo de (a) e (b) acima como
criteacuterios indica a expectativa de Peirce de que os fenocircmenos que nos interessam neste capiacutetulo
isto eacute os fenocircmenos de crescimento ou evoluccedilatildeo podem ser explicados por meio da assimilaccedilatildeo
dos princiacutepios envolvidos na teoria cineacutetica dos gases Tais fenocircmenos satildeo irreversiacuteveis em
funccedilatildeo da operaccedilatildeo no mundo de um princiacutepio real de acaso Eacute a indeterminaccedilatildeo resultante da
interaccedilatildeo de um vasto nuacutemero de partiacuteculas e de seus movimentos que explicaria a
irreversibilidade constatada em certos fenocircmenos Todavia o proacuteprio tempo natildeo parece receber
este mesmo tipo de tratamento como veremos no capiacutetulo dedicado agrave causalidade final
Tendo visto como a proposta do acaso absoluto como um princiacutepio operante na natureza eacute
uma consequecircncia da leitura que Peirce faz da ciecircncia do seu tempo em particular da teoria
termodinacircmica passaremos agora a investigar as descriccedilotildees e classificaccedilotildees que Peirce oferece
ao fenocircmeno evolutivo Vale lembrar que com o termo bdquoevoluccedilatildeo‟ Peirce se refere aos fenocircmenos
de crescimento que satildeo portanto em seus proacuteprios termos irreversiacuteveis e finistas Os textos que
compotildeem a base desta investigaccedilatildeo satildeo da maturidade de Peirce e frutos de sua preocupaccedilatildeo com
a elaboraccedilatildeo de uma metafiacutesica adequada agrave nossa esperanccedila de tornar possiacutevel o desenvolvimento
da ciecircncia
104
3 OS TREcircS TIPOS DE EVOLUCcedilAtildeO
As ideias evolucionistas de Peirce aparecem de maneira mais pronunciada nos textos que
tratam de suas concepccedilotildees cosmoloacutegicas136
isto eacute em sua obra mais tardia ainda que possamos
encontrar elementos que demonstrem sua preocupaccedilatildeo com o tema desde o iniacutecio de sua carreira
intelectual Haacute relatos do proacuteprio autor que testemunham a impressatildeo marcante que a leitura da
Origem das espeacutecies de Charles Darwin jaacute no ano seguinte a sua publicaccedilatildeo causou em todo o
ciacuterculo de estudiosos de Cambridge em Massachusetts do qual Peirce fazia parte
Ainda que fosse grande admirador e leitor de primeira hora da obra de Darwin Peirce tinha
um olhar mais abrangente sobre os tipos de evoluccedilatildeo encontrados em atuaccedilatildeo no mundo
orgacircnico A evoluccedilatildeo descrita por Darwin seria apenas um dos tipos e natildeo o mais presente em
atuaccedilatildeo nos processos naturais A concepccedilatildeo peirceana prevecirc a existecircncia de trecircs tipos diferentes
de evoluccedilatildeo orgacircnica que podem ser usados como criteacuterios para a classificaccedilatildeo das teorias
propostas sobre o tema Em primeiro lugar observa-se a evoluccedilatildeo de tipo darwiniana na qual a
reproduccedilatildeo eacute indicada como o momento da ocorrecircncia de variaccedilotildees fortuitas que explicam o
desenvolvimento das espeacutecies da monera ao homem Segundo Peirce a evoluccedilatildeo darwiniana
ocorre como consequecircncia da atuaccedilatildeo de dois fatores a hereditariedade que faz a descendecircncia
assemelhar-se aos pais ainda que preserve espaccedilo para a ocorrecircncia de pequenas variaccedilotildees e a
destruiccedilatildeo de tipos ou de raccedilas que natildeo conseguem manter a taxa de natalidade maior do que a
taxa de mortalidade
Em segundo lugar tem-se a teoria de tipo lamarckiano na qual as modificaccedilotildees ocorridas
nas espeacutecies satildeo frutos dos desafios apresentados aos indiviacuteduos e respondidos durante a sua
vida por meio de esforccedilos e exerciacutecios com a intenccedilatildeo de fixar novos haacutebitos Segundo a
interpretaccedilatildeo oferecida por Peirce a teoria darwiniana diferencia-se da teoria lamarckiana na
136 As preocupaccedilotildees de Peirce com as teorias da evoluccedilatildeo bioloacutegicas parecem culminar no texto ldquoEvolucionary
loverdquo de 1893 mas em textos anteriores como ldquoDesign and chancerdquo de 1883-84 ldquoA guess at the riddlerdquo de 1887-88
e ldquoThe arquitecture of the theoriesrdquo de 1891 tambeacutem encontramos importantes indicaccedilotildees sobre o tema
105
medida em que esta atua sobre o indiviacuteduo enquanto aquela atua sobre a espeacutecie podendo dar
lugar ao surgimento de caracteriacutesticas beneacuteficas agrave espeacutecie mas deleteacuterias ao indiviacuteduo Peirce
afirma
Concebendo-se de maneira mais ampla e filosoacutefica a evoluccedilatildeo darwiniana eacute
evoluccedilatildeo pela operaccedilatildeo do acaso e a destruiccedilatildeo dos resultados ruins enquanto a
evoluccedilatildeo lamarckiana eacute evoluccedilatildeo por meio do efeito do haacutebito e do esforccedilo (CP
6 sect 16 1891)137
E em terceiro lugar encontra-se a teoria catacliacutesmica proposta por Clarence King de
acordo com a qual as modificaccedilotildees satildeo o resultado de mudanccedilas bruscas no ambiente Em face
dessas alteraccedilotildees ambientais os organismos aumentam enormemente a quantidade de variaccedilotildees
que ocorrem em suas reproduccedilotildees Assim notam-se alteraccedilotildees que natildeo satildeo imperceptiacuteveis ndash
como a evoluccedilatildeo darwiniana e a lamarckiana supotildeem ndash nem frutos do acaso nem do esforccedilo
individual mas respostas a mudanccedilas ambientais
Esse modo de evoluccedilatildeo por forccedilas externas e por meio da quebra de haacutebitos
parece ser requisitado por alguns dos mais amplos e importantes fatos da
biologia e da paleontologia ao mesmo tempo em que tem sido o principal fator
na evoluccedilatildeo histoacuterica de instituiccedilotildees tanto quanto na de ideias e possivelmente
natildeo pode recusar um lugar proeminente no processo de evoluccedilatildeo do universo em
geral (CP 6 sect 17 1891)138
137 But more broadly and philosophically conceived Darwinian evolution is evolution by the operation of chance
and the destruction of bad results while Lamarckian evolution is evolution by the effect of habit and effort
138 This mode of evolution by external forces and the breaking up of habits seems to be called for by some of the
broadest and most important facts of biology and paleontology while it certainly has been the chief factor in the
historical evolution of institutions as in that of ideas and cannot possibly be refused a very prominent place in the
process of evolution of the universe in general
106
4 OS TREcircS MODELOS DE EXPLICACcedilAtildeO
Um aspecto central e condiccedilatildeo de possibilidade da evoluccedilatildeo eacute a existecircncia de variaccedilotildees no
interior dos fenocircmenos naturais Nota-se na formulaccedilatildeo peirceana o reconhecimento do aspecto
eminentemente mutaacutevel da natureza Natildeo mais circunscrito apenas aos fenocircmenos bioloacutegicos
Peirce procura montar um quadro teoacuterico no qual a evoluccedilatildeo eacute o aspecto marcante de todos os
acontecimentos dos mais variados campos
A descriccedilatildeo dos tipos de evoluccedilatildeo orgacircnica conduziu Peirce a elaborar modelos de
explicaccedilatildeo para o modo como a histoacuteria e particularmente a histoacuteria da ciecircncia se desenvolveu
Nesse campo natildeo seria um erro afirmar que os trecircs tipos de evoluccedilatildeo encontram-se presentes e
concorrem para os resultados alcanccedilados Um exemplo fornecido por Peirce da atuaccedilatildeo da forma
darwiniana na evoluccedilatildeo da ciecircncia pode ser encontrado no modo como as teorias satildeo propostas Eacute
bastante plausiacutevel afirma Peirce que na elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses para a soluccedilatildeo de um
determinado problema os cientistas faccedilam um grande nuacutemero de tentativas mentais de
elaboraccedilatildeo de teorias diversas umas das outras de modo quase imperceptiacutevel ateacute que uma delas
seja vista como francamente impossiacutevel Essa hipoacutetese eacute rejeitada e a energia investigativa volta-
se para as outras formulaccedilotildees ateacute que uma delas se mostre mais apta a fornecer as respostas
almejadas e se torne cada vez mais forte na mente do cientista
A evoluccedilatildeo lamarckiana diz Peirce ldquo() toma a forma de uma modificaccedilatildeo perpeacutetua de
nossa opiniatildeo de modo a tornaacute-la mais representativa dos fatos conhecidos na medida em que
mais e mais observaccedilotildees satildeo coletadasrdquo (CP 1 sect 108 1896)139
Embora esse tipo de evoluccedilatildeo
natildeo explique os grandes avanccedilos da ciecircncia jaacute que implica em uma evoluccedilatildeo bastante gradual eacute
o responsaacutevel pelos avanccedilos que se notam apoacutes deacutecadas de pequenas contribuiccedilotildees individuais O
exemplo indicado por Peirce eacute a evoluccedilatildeo da classificaccedilatildeo dos elementos quiacutemicos que ocorreu
no lapso de tempo entre Jons Jakob Berzelius (1779 ndash 1848) e Dmitri Mendeleev (1834 ndash 1907)
139 () take the form of perpetually modifying our opinion in the effort to make that opinion represent the known
facts as more and more observations came to be collected
107
Os principais progressos cientiacuteficos entretanto ocorrem por saltos afirma Peirce e ldquo() o
impulso para cada salto eacute um novo recurso observacional ou algum novo modo de raciocinar
sobre as observaccedilotildeesrdquo (CP 1 sect 109 1896)140
Como exemplo o autor indica a descoberta dos
micro-organismos por Pasteur que desbancou a perspectiva metafiacutesica de Claude Bernard (1813 -
1878) ao indicar os agentes causadores das doenccedilas unindo novas ideias a novos meacutetodos
observacionais
5 A EVOLUCcedilAtildeO E A COSMOLOGIA
Ao reunir as caracteriacutesticas mais marcantes de cada um dos tipos de evoluccedilatildeo descritos
acima e abstrair suas caracteriacutesticas mais especiacuteficas determinadas em funccedilatildeo do seu campo de
aplicaccedilatildeo Peirce propotildee uma formulaccedilatildeo geral para os modos de evoluccedilatildeo em curso no universo
Nessa perspectiva distingue trecircs tipos de evoluccedilatildeo a evoluccedilatildeo causada por variaccedilatildeo fortuita
denominada de evoluccedilatildeo ticaacutestica ou ticasmo a evoluccedilatildeo que segue uma necessidade jaacute dada
denominada de evoluccedilatildeo anancaacutestica ou anancasmo e a evoluccedilatildeo marcada pela atuaccedilatildeo da
causalidade final denominada de evoluccedilatildeo agapaacutestica ou agapasmo Pode-se ver que agrave evoluccedilatildeo
ticaacutestica de desenvolvimento das ideias corresponde o modelo darwiniano e a evoluccedilatildeo orgacircnica
proposta por Darwin agrave evoluccedilatildeo anancaacutestica corresponde o modelo de rupturas e a evoluccedilatildeo por
cataclismos proposta por Clarence King para o reino orgacircnico e agrave evoluccedilatildeo agapaacutestica
corresponde o modelo lamarckiano e a evoluccedilatildeo lamarckiana
Os trecircs modos de evoluccedilatildeo satildeo compostos pelos mesmos elementos gerais diz o filoacutesofo
Uma geraccedilatildeo passa espontaneamente uma quantidade de bdquotalentos‟ para a geraccedilatildeo seguinte e essa
possui a disposiccedilatildeo de tomaacute-los e desenvolvecirc-los e dessa maneira servir a um propoacutesito geral
Esses elementos mostram-se mais claramente no agapasmo mas tambeacutem estatildeo presentes de
140 () and the impulse for each leap is either some new observational resource or some novel way of reasoning
about the observations
108
maneira diversa no ticasmo e no anancasmo Essas duas formas podem ser vistas como formas
degeneradas de agapasmo afirma o autor (cf CP 6 sect 303 1893)
Embora o ticasmo possa ser considerado uma forma degenerada de agapasmo possui
contudo caracteriacutesticas que lhe satildeo proacuteprias As variaccedilotildees que datildeo lugar ao crescimento soacute o
fazem por meio da distribuiccedilatildeo aleatoacuteria de talentos implicando que os rejeitados cedam o seu
lugar para aqueles que possuam mais disposiccedilatildeo Como exemplo Peirce usa os jogos de azar no
qual os jogadores arruinados deixam na mesa o seu dinheiro para tornar aqueles natildeo arruinados
ainda mais ricos enquanto no agapasmo ldquo() o progresso ocorre a partir da continuidade da
mente em virtude da simpatia positiva existente entre a descendecircncia criadardquo (CP 6 sect 304
1893)141
O anancasmo por sua vez eacute um modo de evoluccedilatildeo claramente afiliado ao agapasmo na
medida em que demonstra uma tendecircncia para o desenvolvimento em direccedilatildeo a uma preordenada
perfeiccedilatildeo Como exemplo Peirce cita a filosofia hegeliana O que a diferencia do agapasmo eacute o
fato de que ldquo() a liberdade viva eacute praticamente omitida de seu meacutetodordquo (CP 6 sect 305 1893)142
Apenas com a introduccedilatildeo de elementos ticaacutesticos dotando o sistema de liberdade vital o
hegelianismo poderia aproximar-se do verdadeiro agapasticismo que afirma Peirce Hegel estava
mirando
O processo de crescimento ou evoluccedilatildeo diraacute o autor deve ser explicado como estando
submetido aos mesmos princiacutepios a que todos os demais fenocircmenos estatildeo Assim faz-se
necessaacuterio encontrar uma lei que tenha na sua aplicaccedilatildeo o motor de seu fortalecimento ou seja
uma lei que possa crescer devido agrave sua proacutepria natureza Esta eacute a lei da mente Como afirma
Peirce ldquo() a uacutenica tendecircncia que pode crescer por sua proacutepria virtude [eacute] a tendecircncia de todas
as coisas adquirirem haacutebitosrdquo (CP 6 sect 100 1902)143
O filoacutesofo afirma que ldquo() a evoluccedilatildeo fiacutesica trabalha com vistas a fins do mesmo modo
141 () advance takes place by virtue of a positive sympathy among the created springing from continuity of mind
142 () living freedom is practically omitted from its method
143 () the only tendency which can grow by its own virtue the tendency of all things to take habits
109
que a accedilatildeo mental trabalha com vistas a fins e desse modo em um aspecto da questatildeo seria
perfeitamente verdadeiro dizer que a causalidade final eacute a uacutenica primaacuteriardquo (CP 6 sect 101 1902)144
Para Peirce ldquoA causa final natildeo determina de que modo particular algo se realizaraacute mas
unicamente que o resultado teraacute certo caraacuteter geralrdquo (CP 1 sect 211 1902)145
Eacute a causa final
acrescenta que atribui existecircncia a um objeto de uma classe Natildeo devemos todavia entender
essa atribuiccedilatildeo como algum tipo de produccedilatildeo miraculosa Eacute o proacuteprio autor que esclarece o
sentido preciso dessa atribuiccedilatildeo ldquoO que eu entendo pela ideia que confere existecircncia aos
membros individuais de uma classe eacute que ela lhes confere o poder de produzir resultados neste
mundo que ela lhes confere equivale dizer existecircncia orgacircnica ou em uma palavra vidardquo (CP
1 sect 220 1902)146
6 O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA EVOLUCcedilAtildeO
Peirce conclui que a causa primaacuteria atuante no universo em crescimento deve ser a causa
final mas que contudo eacute inoacutecua sem a atuaccedilatildeo da causa eficiente Como indica Silveira (1985
p 8) ldquo() o que o cosmo evolucionaacuterio exige para se efetivar na organizaccedilatildeo crescente que o
define eacute a presenccedila de duas causas cujo modo de operar eacute reciprocamente inverso a causa final e
a causa eficienterdquo Assim sob a atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um
contiacutenuo crescimento da uniformidade a partir das formas diferenciadas Entretanto como aponta
Peirce as divergecircncias agraves leis estatildeo agindo continuamente a fim de aumentar a variedade do
mundo (cf CP 6 sect 101 1902)
144 () the physical evolution works towards ends in the same way that mental action works towards ends and thus
in one aspect of the matter it would be perfectly true to say that final causation is alone primary 145 Final causation does not determine in what particular way it is to be brought about but only that the result shall
have a certain general character
146 What I mean by the ideas conferring existence upon the individual members of the class is that it confers upon
them the power of working out results in this world that it confers upon them that is to say organic existence or in
one word life
110
A ideia ou causa final atrairia os acontecimentos que se processariam em funccedilatildeo de um ser
in futuro Dizer que o futuro natildeo influencia o presente eacute uma doutrina inaceitaacutevel afirma Peirce
expressando uma ideia caracteriacutestica do pragmatismo americano (cf CP 2 sect 86 1902) A defesa
desta doutrina negaria a possibilidade da existecircncia de causas finais e fins que satildeo
imprescindiacuteveis para a constituiccedilatildeo do cosmo
Na evoluccedilatildeo agapaacutestica mais representativa da atuaccedilatildeo da causalidade final a proacutepria ideia
possui uma forccedila de atraccedilatildeo que conduz o pensamento para si A ideia encontra os veiacuteculos
adequados para sua realizaccedilatildeo Como afirma Peirce
O desenvolvimento agapaacutestico do pensamento eacute a adoccedilatildeo de certas tendecircncias
mentais natildeo totalmente descuidadas como no ticasmo nem completamente
cegas pela mera forccedila das circunstacircncias ou da loacutegica como no anancasmo mas
por uma imediata atraccedilatildeo da proacutepria ideia cuja natureza eacute adivinhada depois que
a mente a possui pelo poder da simpatia isto eacute por virtude da continuidade da
mente () (CP 6 sect 307 1893)147
Quando Peirce se refere ao pensamento este deve ser entendido como ldquo() o princiacutepio
primordial para a compreensatildeo natildeo soacute dos fenocircmenos do espiacuterito mas da totalidade do cosmordquo
(SILVEIRA p 75 1989) Sobre a mateacuteria Peirce afirma que
() em obediecircncia ao princiacutepio ou maacutexima da continuidade segundo o qual
devemos assumir que as coisas satildeo contiacutenuas tanto quanto possamos urge que
devamos supor uma continuidade entre os caracteres da mente e da mateacuteria de
tal forma que a mateacuteria natildeo seria mais do que mente que tendo haacutebitos de tal
modo empedernidos eacute levada a agir com um grau particularmente elevado de
147 The agapastic development of thought is the adoption of certain mental tendencies not altogether heedlessly as
in tychasm nor quite blindly by the mere force of circumstances or of logic as in anancasm but by an immediate
attraction for the idea itself whose nature is divined before the mind possesses it by the power of sympathy that is
by virtue of the continuity of mind ()
111
regularidade mecacircnica ou rotina (CP 6 sect 277 1893)148
Em decorrecircncia da aceitaccedilatildeo da ideia de continuidade entre a mente e a mateacuteria Peirce se
autodenomina em algumas passagens de idealista objetivo Afirma sua diferenccedila com relaccedilatildeo ao
monismo materialista indicando que ldquo(hellip) o primeiro [monista materialista] faz da lei da mente
um resultado especial das leis da mateacuteria enquanto o uacuteltimo [idealista objetivo] faz com que as
leis da mateacuteria sejam um resultado especial da lei da menterdquo (CN 1 p 200 1893)149
O princiacutepio de aquisiccedilatildeo de haacutebitos eacute tomado por Peirce como o motor da constituiccedilatildeo das
leis do cosmo Em outro momento o filoacutesofo diraacute que ldquo(hellip) estaacute claro que nada a natildeo ser o
princiacutepio do haacutebito ele mesmo devido ao crescimento de uma tendecircncia infinitesimal do acaso
em direccedilatildeo agrave aquisiccedilatildeo de haacutebitos eacute a uacutenica ponte que pode ligar o abismo entre o acaso do caos
e o cosmo da ordemrdquo (CP 6 sect 262 1879)150
Segundo Santaella (2004 p 248-9) ldquo() para
Peirce a tendecircncia do universo a adquirir novos haacutebitos tendecircncia esta que tem seu expoente na
mente humana eacute aquilo que permite o contiacutenuo crescimento da potencialidade da ideiardquo
7 EVOLUCcedilAtildeO E AUTOCONTROLE
No longo processo de evoluccedilatildeo do cosmos uma caracteriacutestica ausente em sua origem
tornou-se mais e mais poderosa com a atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos o autocontrole Nos
148 () in obedience to the principle or maxim of continuity that we ought to assume things to be continuous as
far as we can it has been urged that we ought to suppose a continuity between the characters of mind and matter so
that matter would be nothing but mind that had such indurated habits as to cause it to act with a peculiarly high
degree of mechanical regularity or routine
149 () the former makes the laws of mind a special result of the laws of matter while the latter makes the laws of
matter a special result of the laws of mind
150 () it is clear that nothing but a principle of habit itself due to the growth by habit of an infinitesimal chance
tendency toward habit-taking is the only bridge that can span the chasm between the chance-medley of chaos and
the cosmos of order and law
112
estaacutegios mais avanccedilados do processo evolutivo o homem torna-se cocriador do universo por
meio da aquisiccedilatildeo de uma conduta cada vez mais autocontrolada Como afirma Peirce ldquoEm seus
estaacutegios mais elevados a evoluccedilatildeo se daacute mais e mais amplamente por meio do autocontrole e
isto daacute ao pragmaticista um tipo de justificaccedilatildeo para fazer o propoacutesito racional ser geral (CP 5 sect
433 1905)151
Natildeo haacute segundo o autor evoluccedilatildeo sem mudanccedila de haacutebitos e tampouco mudanccedila
de haacutebitos sem evoluccedilatildeo O processo de mudanccedila de haacutebito eacute desencadeado segundo Peirce por
trecircs fatores surpresa necessidade e disposiccedilatildeo (readiness) que estatildeo relacionados com os trecircs
modos de evoluccedilatildeo descritos acima A surpresa entretanto natildeo eacute por si soacute suficiente para que a
mudanccedila de haacutebito se efetue eacute preciso o esforccedilo quando haacute a necessidade ou o amor que eacute
auxiliado pela disposiccedilatildeo
A disposiccedilatildeo eacute a marca dos haacutebitos conquistados deliberadamente Peirce diz ldquo[Disposiccedilatildeo]
para agir de um certo modo sob dadas circunstacircncias e quando afetado por um dado motivo eacute um
haacutebito e um haacutebito deliberado ou autocontrolado eacute precisamente uma crenccedilardquo (CP 5 sect 480)152
A evoluccedilatildeo marcada pela necessidade se caracteriza pela negaccedilatildeo da opccedilatildeo de se continuar
com os antigos haacutebitos Eacute por meio de um esforccedilo para vencer a resistecircncia quase sempre
acompanhado por um sentimento de dor segundo Peirce que os novos haacutebitos mais adequados
satildeo estabelecidos Peirce indica que
O sentimento de dor eacute um sintoma de um sentimento que nos repele o
sentimento de prazer eacute o sintoma de um sentimento atrativo Atraccedilatildeo e repulsatildeo
satildeo tipos de accedilatildeo Sentimentos satildeo prazerosos ou dolorosos de acordo com o
tipo de accedilatildeo que eles estimulam Em geral o bom eacute atrativo ndash natildeo para todo
mundo mas para um agente suficiente maduro e o mal eacute aquilo que lhe eacute
repulsivo (CP 5 sect 552 1906)153
151 In its higher stages evolution takes place more and more largely through self-control and this gives the
pragmaticist a sort of justification for making the rational purport to be general
152 [Readiness] to act in a certain way under given circumstances and when actuated by a given motive is a habit
and a deliberate or self-controlled habit is precisely a belief 153 The feeling of pain is a symptom of a feeling which repels us the feeling of pleasure is the symptom of an
attractive feeling Attraction and repulsion are kinds of action Feelings are pleasurable or painful according to the
113
Peirce afirma que a mais elevada qualidade da mente humana consiste em uma grande
disposiccedilatildeo para desenvolver haacutebitos e uma grande disposiccedilatildeo para perdecirc-los sendo que ldquoA mais
plaacutestica de todas as coisas eacute a mente humana ()rdquo (CP 7 sect 515 1898)154
pois apresenta em
maior grau a prontidatildeo tanto para adquirir como para perder haacutebitos No caso humano a vontade
desempenha um importante papel no processo de criaccedilatildeo de novos haacutebitos com a finalidade de
tornar a conduta mais autocontrolada e portanto racional
Embora natildeo tenha desenvolvido uma teoria completa da esteacutetica eacute nessa ciecircncia normativa
que Peirce busca os elementos para identificar a finalidade para qual tende o universo e para a
qual a mente humana estaacute apta a contribuir por meio do desenvolvimento do autocontrole O
objeto de estudo da esteacutetica eacute o admiraacutevel A eacutetica enquanto ciecircncia normativa da conduta visa
desenvolver regras para a accedilatildeo que possam ter como objetivo alcanccedilar o summum bonun em
outras palavras aquilo que possa ser admiraacutevel por si mesmo sem a consideraccedilatildeo de qualquer
outra ordem de motivos O admiraacutevel diraacute Peirce eacute a proacutepria razoabilidade em suas palavras
ldquo() o uacutenico bem uacuteltimo ao qual os fatos praacuteticos dirigem a atenccedilatildeo e ao qual podem se
subordinar eacute o maior desenvolvimento da razoabilidade concreta ()rdquo (CP 5 sect 3 1902)155
Quanto agrave loacutegica como a terceira ciecircncia normativa Peirce afirma que ldquo() pensar eacute uma espeacutecie
de conduta que estaacute largamente sujeita ao autocontrole Em todas as suas caracteriacutesticas () o
autocontrole loacutegico eacute um perfeito espelho do autocontrole eacutetico (CP 5 sect 419 1905)156
Cabe agrave
loacutegica fixar haacutebitos autocontrolados de pensamento que possam mirar a verdade (cf CP 1 sect 191
1903)
Desse modo o homem tem seu lugar identificado no processo evolutivo que deu origem ao
kind of action which they stimulate In general the good is the attractive -- not to everybody but to the sufficiently
matured agent and the evil is the repulsive to the same
154 The most plastic of all things is the human mind ()
155 () the only ultimate good which the practical facts to which it directs attention can subserve is to further the
development of concrete reasonableness ()
156 () thinking is a species of conduct which is largely subject to self-control In all their features hellip logical self-
control is a perfect mirror of ethical self-control
114
cosmos e a si mesmo como uma parte integrante e natildeo distinta tem tambeacutem indicada de modo
claro qual a sua funccedilatildeo como cientista Peirce eacute bastante expliacutecito ao dizer que todo trabalho
intelectual soacute pode ser realizado de forma frutiacutefera quando motivado por um ardente desejo de
obter a verdade
A criaccedilatildeo do universo que natildeo aconteceu durante uma certa semana atarefada
no ano 4004 A C mas que estaacute acontecendo hoje e que nunca estaraacute terminada
eacute o verdadeiro desenvolvimento da Razatildeo Natildeo consigo ver como algueacutem pode
ter um ideal admiraacutevel mais satisfatoacuterio do que o desenvolvimento da Razatildeo
assim entendido A uacutenica coisa cuja admirabilidade natildeo eacute devida a uma razatildeo
ulterior eacute a proacutepria Razatildeo compreendida em toda sua completude tanto quanto
podemos compreendecirc-la Sob esta concepccedilatildeo o ideal da conduta seraacute executar
nossa pequena funccedilatildeo na operaccedilatildeo de criaccedilatildeo dando uma matildeo para tornar o
mundo mais razoaacutevel sempre que como diz a giacuteria cabe a noacutes fazecirc-lo Na
loacutegica observar-se-aacute que o conhecimento eacute razoabilidade e o ideal de razatildeo seraacute
seguir tais meacutetodos para se desenvolver o conhecimento o mais rapidamente ()
(CP 4 sect 615 1903)157
157 The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in the year 4004 BC but is
going on today and never will be done is this very development of Reason I do not see how one can have a more
satisfying ideal of the admirable than the development of Reason so understood The one thing whose admirableness
is not due to an ulterior reason is Reason itself comprehended in all its fullness so far as we can comprehend it
Under this conception the ideal of conduct will be to execute our little function in the operation of the creation by
giving a hand toward rendering the world more reasonable whenever as the slang is it is up to us to do so In
logic it will be observed that knowledge is reasonableness and the ideal of reasoning will be to follow such methods
as must develop knowledge the most speedily ()
115
CAPIacuteTULO 04
A ABDUCcedilAtildeO
Enter your skiff of Musement push off into the lake of thought and leave the breath of
heaven to swell your sail With your eyes open awake to what is about or within you
and open conversation with yourself for such is all meditation It is however not a
conversation in words alone but is illustrated like a lecture with diagrams and with
experiments (CP 6 sect 461 1908)
116
1 ABDUCcedilAtildeO E CRIACcedilAtildeO DE HIPOacuteTESES EXPLICATIVAS
Haacute uma grande discussatildeo entre os inteacuterpretes da obra de Peirce quanto agrave continuidade ou
natildeo continuidade de suas ideias no conjunto da sua longa e intensa produccedilatildeo (ver GOUDGE
(1950) GALLIE (1952) MOORE and ROBIN (1964) WIENER (1964) HOOKWAY 1985
entre outros) Sem querer entrar no meacuterito das respostas apresentadas ao problema de se apurar a
quantidade de sistemas identificaacuteveis em sua obra na literatura especializada parece-nos todavia
que algumas questotildees tratadas pelo filoacutesofo satildeo particularmente presentes no conjunto de suas
ideias e datildeo sentido a muitas de suas teorias que conheceram a luz em momentos distintos de sua
reflexatildeo
A investigaccedilatildeo cientiacutefica eacute uma dessas questotildees Podemos identificar desde os seus
primeiros textos uma preocupaccedilatildeo clara quanto ao alcance legitimidade e modo de efetivaccedilatildeo do
empreendimento cientiacutefico mais especificamente quanto ao que ele chama pelo nome de loacutegica
da ciecircncia Em seus uacuteltimos trabalhos Peirce procura organizar e sistematizar a sua filosofia com
relaccedilatildeo a outras aacutereas do conhecimento o que lhe permite tornar claras a estrutura e as inter-
relaccedilotildees entre as vaacuterias partes do seu sistema filosoacutefico Eacute dessa maneira que identifica a loacutegica
como uma das trecircs ciecircncias normativas ao lado da esteacutetica e da eacutetica que lhe satildeo antecedentes
dependentes tanto da fenomenologia quanto da matemaacutetica Peirce a define como um raciociacutenio
autocontrolado cuja funccedilatildeo eacute promover o crescimento concreto da razoabilidade A loacutegica se
divide por sua vez em trecircs ramos denominados por Peirce de Gramaacutetica Filosoacutefica Loacutegica
Criacutetica e Metodecircutica
A Gramaacutetica Filosoacutefica trata das unidades baacutesicas de todos os raciociacutenios os signos Eacute
neste ramo da loacutegica que veremos Peirce desenvolver os estudos de semioacutetica A loacutegica criacutetica
tem por finalidade tratar das formas dos argumentos ou raciociacutenios Nestes estudos Peirce trata
dos trecircs tipos de inferecircncias a abduccedilatildeo a deduccedilatildeo e a induccedilatildeo A Metodecircutica por sua vez
compreende as teorias sobre a verdade e a investigaccedilatildeo cientiacutefica bem desenvolvidas na sua
abordagem pragmaticista O objetivo deste terceiro ramo da loacutegica eacute moldar a conduta a partir do
uso dos signos de tal forma que um estado de crenccedila estaacutevel seja alcanccedilado
117
Se como aponta Hookway (1985) eacute possiacutevel dar sentido agrave obra peirceana a partir da
perspectiva que a toma como a exploraccedilatildeo e o desenvolvimento de uma imagem bastante geral da
filosofia e seus problemas que se formou desde os seus primeiros escritos vemos na procura de
um meacutetodo adequado para a ciecircncia um objetivo que conduz Peirce no processo de sua reflexatildeo
Aos textos iniciais que discutem o modo adequado de obtenccedilatildeo e limite do conhecimento
seguem-se outros que agraves vezes com deacutecadas de intervalo retomam e desenvolvem aspectos
problemaacuteticos que ficaram anteriormente sem respostas ou que passaram a ser problematizados
com o desenvolvimento de novos instrumentos de anaacutelise Assim os temas centrais dos seus
textos iniciais que datam da deacutecada de 1860 e 70158 satildeo retomados e desenvolvidos em boa parte
de sua produccedilatildeo posterior quer diretamente sob o aspecto de uma nova formulaccedilatildeo e resposta
aos mesmos problemas quer indiretamente com a elaboraccedilatildeo de novas teorias implicadas por
essas mesmas concepccedilotildees
Pensar para Peirce eacute uma atividade que consiste em manipular signos e crer eacute
essencialmente possuir certas disposiccedilotildees para agir Essas duas concepccedilotildees satildeo fundamentais
para se compreender a sua filosofia Ambas as concepccedilotildees estatildeo localizadas no niacutevel mais
elementar de suas preocupaccedilotildees e teorias que satildeo construiacutedas como uma resposta e terapia agrave
abordagem equivocada legada pelo cartesianismo Se considerarmos que a filosofia de Peirce eacute
em grande parte uma tentativa de produccedilatildeo de um meacutetodo adequado agrave investigaccedilatildeo da verdade e
se atentarmos para o fato de que eacute com o pragmatismo que Peirce acredita ter oferecido sua
melhor resposta entatildeo percebemos a importacircncia capital que sua noccedilatildeo de crenccedila159 assume pois
eacute o proacuteprio filoacutesofo que afirma ldquoA partir desta definiccedilatildeo o pragmatismo eacute dificilmente mais do
que um corolaacuteriordquo (CP 5 sect 12 1906)160
A investigaccedilatildeo desta maneira torna-se um processo que permite a superaccedilatildeo de um estado
158 Nesses textos jaacute se encontra ainda que em germe as ideias de verdade como concordacircncia de investigadores a
longo prazo que o incognosciacutevel natildeo faz sentido que a induccedilatildeo eacute uma inferecircncia e um caminho para a verdade que
todo pensamento se realiza por meio de signos e de que eacute possiacutevel construir uma teoria de categorias melhor do que
as existentes Esses temas estaratildeo presentes em grande medida em toda a produccedilatildeo posterior de Peirce 159
Emprestada do filoacutesofo e psicoacutelogo escocecircs Alexander Bain (1818 ndash 1903) (cf CP 5 sect 12 1906) 160
From this definition pragmatism is scarce more than a corollary
118
de duacutevida autecircntica161
que paralisa a accedilatildeo por meio do estabelecimento de crenccedilas estaacuteveis e
verdadeiras Podemos dizer que A duacutevida que p se e somente se A eacute levado a acreditar em p e
em alguma outra proposiccedilatildeo q e A estaacute consciente de uma inconsistecircncia entre p e q Desde que
ldquoA acredita que prdquo significa que A tem disposiccedilotildees para agir de determinadas maneiras segue-se
que duvidar que p envolve a consciecircncia da parte de A de que possui a disposiccedilatildeo a agir de modos
incompatiacuteveis em uma dada situaccedilatildeo O que implica em uma suspensatildeo da accedilatildeo isto eacute uma
privaccedilatildeo de um haacutebito (cf MEYERS 1967 p 3) Para cumprir tal tarefa faz-se necessaacuteria a
utilizaccedilatildeo de um meacutetodo que permita realmente fixar tais crenccedilas (cf W 3 p 344 CP 5 sect 374
1877 CP 6 sect 496 1906) A essecircncia das crenccedilas obtidas por este meacutetodo eacute o estabelecimento de
um haacutebito cujos diferentes tipos se distinguem pelos diferentes modos de accedilatildeo que eles
produzem Peirce afirma ldquo() uma crenccedila genuiacutena ou opiniatildeo eacute alguma coisa com a qual um
homem estaacute preparado para agir e eacute por consequecircncia em um sentido geral um haacutebitordquo (CP 2 sect
148 1902)162
Com exceccedilatildeo de algumas poucas passagens nas quais eacute caracterizado como uma accedilatildeo do
tipo quasi-reflexa (cf CP 5 sect 373 1877 CP 5 sect 394 1877 CP 1 sect390 1890 CP 2 sect 711
1883) o haacutebito eacute apresentado como uma disposiccedilatildeo para a accedilatildeo caracterizada como
autocontrolada ou deliberada Como representante da terceiridade ele eacute indeterminado geral e
inteligente (cf CP 5 sect 400 1877 CP 6 sectsect 20-1 1891) natildeo podendo ser reduzido a um
processo meramente mecacircnico Sua indeterminaccedilatildeo eacute marca dos processos que se abrem para o
futuro
161 Peirce reprova a duacutevida cartesiana por dois motivos principais por ser fingida e por ser radical A atribuiccedilatildeo
desses dois qualificativos agrave duacutevida ignora segundo o autor tanto a natureza do sujeito que conhece quanto a
natureza do proacuteprio processo cognitivo A duacutevida eacute um estado causado pela surpresa de um evento inesperado desta
maneira sua origem eacute sempre exterior ao sujeito que a experiencia natildeo podendo ser criada a partir de um ato de
vontade Por outro lado ela natildeo pode ser radical visto que eacute da natureza do conhecimento repousar sobre um
conhecimento anterior (cf CP 5 sect 311 1868) 162
() a belief or opinion and a genuine belief or opinion is something on which a man is prepared to act and is
therefore in a general sense a habit
119
Pois todo haacutebito tem ou eacute uma lei geral Tudo o que eacute verdadeiramente geral
refere ao futuro indefinido pois o passado conteacutem unicamente uma certa
coleccedilatildeo de casos que ocorreram O passado eacute fato atual Mas o geral (fato) natildeo
pode ser completamente realizado Eacute uma potencialidade e seu modo de ser
eacute esse in futuro O futuro eacute potencial natildeo atual (CP 2 sect 148 1902)163
Toda crenccedila firmemente adotada eacute para seu possuidor algo de indubitaacutevel ainda que muitas
vezes inconsciente que dispensa qualquer tipo de justificaccedilatildeo racional Contudo faz-se
necessaacuterio encontrar uma maneira de selecionar as crenccedilas verdadeiras dentre aquelas que natildeo
passam de prejulgamentos Se por um lado o caraacuteter impositivo das crenccedilas se manifesta de
maneira clara por outro na medida em que eacute objetiva pode comportar a criacutetica e a deliberaccedilatildeo
desse modo o autocontrole
Como afirma Peirce ldquo() devemos comeccedilar nossa investigaccedilatildeo por aquilo cuja existecircncia eacute
indubitaacutevel ()rdquo (CP 5 sect 267 1868)164
Com esta frase jaacute de 1868 o autor indica uma
caracteriacutestica que marcaraacute toda a sua obra a adoccedilatildeo do senso comum criacutetico O investigador
principia pelo que toma como indubitaacutevel suas proacuteprias crenccedilas mas aos poucos passa a
questionaacute-las quanto ao seu conteuacutedo e assumir um aspecto mais normativo ao se preocupar com
aquilo sobre o que devemos nos interrogar Nas palavras de Claudine Tiercelin (1993 p 88) ldquoSe
as crenccedilas satildeo portanto intrinsecamente confiaacuteveis como descriccedilatildeo de nossa experiecircncia elas
podem ser faliacuteveis como descriccedilatildeo da realidaderdquo
O problema de se determinar a origem das premissas de qualquer raciociacutenio conduziu as
investigaccedilotildees de Peirce sobre esse toacutepico Segundo o filoacutesofo os juiacutezos perceptivos satildeo () as
primeiras premissas de todos os nossos raciociacutenios e natildeo podem ser colocados em questatildeo (CP
5 sect 116)165
uma vez que estatildeo totalmente aleacutem da possibilidade de controle O percepto como
163 For every habit has or is a general law Whatever is truly general refers to the indefinite future for the past
contains only a certain collection of such cases that have occurred The past is actual fact But a general (fact) cannot
be fully realized It is a potentiality and its mode of being is esse in futuro The future is potential not actual 164
() we must commence our inquiry must be one whose existence is indubitable () 165
() the first premisses of all our reasonings and that they cannot be called in question
120
Peirce o designa eacute uma instacircncia do processo cognitivo que se caracteriza pela impossibilidade
de controle O autor pergunta entatildeo onde tem iniacutecio a possibilidade de controlar o processo de
cogniccedilatildeo e responde da seguinte maneira
Certamente natildeo antes de o percepto estar formado Mesmo depois que ele se
forma existe uma operaccedilatildeo que me parece ser bastante incontrolaacutevel Eacute aquela
de julgar o que eacute que a pessoa percebe Um juiacutezo eacute um ato de formaccedilatildeo de uma
proposiccedilatildeo mental combinada com sua adoccedilatildeo ou um ato de afirmaacute-la Um
percepto por outro lado eacute uma imagem ou um quadro moacutevel ou outra figuraccedilatildeo
(CP 5 sect 115 1903)166
Temos nesta passagem a tematizaccedilatildeo do momento em que se daacute a relaccedilatildeo entre o sujeito
que investiga e o objeto investigado Eacute nessa relaccedilatildeo que devemos encontrar os elementos para
justificar a crenccedila peirceana na possibilidade de uma ciecircncia Eacute importante notar que o juiacutezo
perceptivo base para qualquer raciociacutenio eacute por um lado o resultado de um processo que natildeo
pode ser controlado jaacute que o objeto eacute real e resiste agrave vontade humana e ou ao menos esta eacute uma
boa hipoacutetese para explicar o modo que tais objetos nos aparecem na experiecircncia por outro que eacute
fruto de uma interpretaccedilatildeo Isto eacute se por um lado o juiacutezo perceptivo eacute formado a partir da reaccedilatildeo
da secundidade do mundo sobre noacutes ele comporta tambeacutem aspectos de terceiridade na medida
em que eacute fruto de uma interpretaccedilatildeo Parece-nos plausiacutevel pensar o juiacutezo perceptivo como livre o
suficiente para ser o resultado de uma adivinhaccedilatildeo mas contido dentro dos limites impostos pela
realidade do objeto O erro deste modo adquire o caraacuteter de uma possibilidade sempre presente
nesse processo
Como aponta Tiercelin verifica-se uma tensatildeo entre a filosofia peirceana e a filosofia do
senso comum escocesa a qual Peirce afirma estar na base de seu pragmatismo (cf TIERCELIN
166 Certainly not before the percept is formed Even after the percept is formed there is an operation which seems to
me to be quite uncontrollable It is that of judging what it is that the person perceives A judgment is an act of
formation of a mental proposition combined with an adoption of it or act of assent to it A percept on the other hand
is an image or moving picture or other exhibition
121
1993 p 88) As crenccedilas primeiras embora sejam indubitaacuteveis natildeo satildeo infaliacuteveis Elas
comportam a possibilidade de criacutetica que deve ser exercitada pelo filoacutesofo pragmaacutetico Para
penetrar nos poacuterticos da filosofia Peirce indica o meacutetodo cientiacutefico como o uacutenico caminho
efetivo (ver REILLY 1970)
Em um texto de 1877 ldquoA fixaccedilatildeo da crenccedilardquo Peirce faz uma descriccedilatildeo dos principais
meacutetodos identificaacuteveis utilizados para a obtenccedilatildeo do conhecimento O primeiro meacutetodo por ele
descrito eacute denominado de meacutetodo da tenacidade caracterizado como o mais econocircmico crer
naquilo que jaacute se crecirc Sua ineficaacutecia mostra que o homem possui grande dificuldade em manter
crenccedilas que estatildeo em desacordo com a realidade Da mesma maneira que eacute incapaz de fingir uma
duacutevida por um longo periacuteodo manter crenccedilas equivocadas ainda que sua substituiccedilatildeo possa
muitas vezes apenas criar uma cadeia de falsas crenccedilas que cedo ou tarde conduziratildeo o homem
agrave busca da tranquilidade propiciada somente pela detenccedilatildeo da crenccedila verdadeira As crenccedilas
assim mantidas satildeo claramente irracionais mas a principal criacutetica endereccedilada pelo autor natildeo
incide particularmente sobre esse caraacuteter mas sim sobre o fato de que tais crenccedilas acabam por
criar tensatildeo social em funccedilatildeo do choque que crenccedilas diferentes acabam por provocar e falhar na
tarefa de fixaacute-las Esse meacutetodo pode apenas atuar sobre a mente individual e temporariamente (cf
CP 5 sect 377 1877)
O segundo meacutetodo eacute denominado de meacutetodo da autoridade e distingue-se do primeiro por
levar em consideraccedilatildeo o impulso social Nele uma instituiccedilatildeo o Estado ou a Igreja por exemplo
toma para si o direito de doutrinar e defender certas crenccedilas de todos os perigos evitando a todo
custo o surgimento da duacutevida Embora seja um meacutetodo eficaz - a histoacuteria tem nos dado esta liccedilatildeo
afirma Peirce - falharaacute visto que eacute impossiacutevel gerenciar perfeitamente a opiniatildeo puacuteblica Cedo ou
tarde surgiratildeo indiviacuteduos que reclamaratildeo novas maneiras de estabelecer crenccedilas e uma vez com a
posse de novos meacutetodos voltar-se-atildeo contra a instituiccedilatildeo e terminaratildeo por sobrepujaacute-la Natildeo
basta um meacutetodo que apenas indique a maneira de fixar as crenccedilas sem determinar os conteuacutedos
das mesmas (cf CP 5 sect 382 1877)
O terceiro meacutetodo eacute aquele que assume como verdadeiro o que eacute agradaacutevel agrave razatildeo diz
122
Peirce diminuindo a importacircncia dos fatos Eacute o meacutetodo a priori Embora seja mais respeitaacutevel
que os outros dois na opiniatildeo de Peirce falha gravemente ao transformar a investigaccedilatildeo em uma
questatildeo de gosto (cf CP 5 sect 382 1877)
Esses trecircs meacutetodos Peirce reconhece possuem qualidades positivas O meacutetodo da
tenacidade demonstra grande forccedila simplicidade e caraacuteter direto o meacutetodo da autoridade ao
governar as massas humanas garante-lhes a paz o meacutetodo a priori por sua vez eacute confortaacutevel
(cf CP 5 sect 386 1877) Entretanto sejam quais forem suas qualidades os trecircs meacutetodos
terminam por se autodestruir pois o que eles produzem afirma Peirce natildeo satildeo crenccedilas mas
estados mentais diversos A verdadeira crenccedila natildeo pode ser fingida imposta ou desconsiderar a
experiecircncia natildeo ao menos para o homem de espiacuterito sadio (cf W 3 p 253 1877)
Diante do fracasso dos trecircs meacutetodos em cumprir a tarefa de fixar as crenccedilas167
cabe a
Peirce mostrar como o quarto meacutetodo denominado de meacutetodo cientiacutefico consegue estabelecer
crenccedilas estaacuteveis Como afirma o autor () eacute necessaacuterio encontrar um meacutetodo pelo qual nossas
crenccedilas natildeo sejam determinadas por nada de humano mas por alguma permanecircncia exterior ndash por
alguma coisa sobre a qual nosso pensamento natildeo tenha nenhum efeito (CP 5 sect 384 1877)168
e
acrescenta como nota em 1903 ldquoMas que por outro lado tende incessantemente a influenciar o
pensamento ou em outras palavras por algo Realrdquo (CP 5 notas 1877)169
O meacutetodo cientiacutefico eacute o uacutenico meacutetodo que considera com a devida atenccedilatildeo a experiecircncia
estabelece um diaacutelogo com a natureza o mundo real exterior ao homem e que pode pelo
processo de investigaccedilatildeo empiacuterica responder agraves duacutevidas e corrigir as crenccedilas dos cientistas A
vantagem determinante deste meacutetodo eacute a de que ele conduz os investigadores pelo processo de
investigaccedilatildeo puacuteblica agraves mesmas conclusotildees sobre qualquer questatildeo investigada Ele se
fundamenta sobre a realidade do universo e sobre o seu aspecto puacuteblico Eacute a secundidade reativa
refrataacuteria ao que dela possamos pensar a acircncora desse meacutetodo Com relaccedilatildeo aos pressupostos
167 O principal defeito dos trecircs meacutetodos consiste em sustentar a crenccedila com base na vontade humana
168 () it is necessary that a method should be found by which our beliefs may be determined by nothing human but
by some external permanency -- by something upon which our thinking has no effect 169
But which on the other hand unceasingly tends to influence thought or in other words by something Real
123
desse meacutetodo Peirce afirma que
Existem coisas Reais cujas caracteriacutesticas satildeo inteiramente independentes das
nossas opiniotildees sobre elas tais Reais afetam nossos sentidos de acordo com leis
regulares e ainda que nossas sensaccedilotildees sejam tatildeo diferentes quanto sejam
nossas relaccedilotildees com os objetos todavia fazendo uso das leis de percepccedilatildeo
podemos afirmar por meio do raciociacutenio como as coisas real e verdadeiramente
satildeo e qualquer homem desde que tenha experiecircncia suficiente e tenha refletido
o suficiente sobre isto seraacute conduzido agrave uacutenica conclusatildeo Verdadeira (CP 5 sect
384 1877)170
A grande vantagem do meacutetodo cientiacutefico reside no fato de que diferentemente dos
demais meacutetodos possui a capacidade de autocorreccedilatildeo Eacute nesta caracteriacutestica que Peirce deposita
suas mais altas esperanccedilas quanto agrave possibilidade de realizaccedilatildeo da ciecircncia Estaacute claro tambeacutem
que o preccedilo a se pagar para a efetividade do meacutetodo eacute bastante elevado Peirce se compromete
com uma hipoacutetese de base qual seja a de que existe uma realidade externa ao homem e que lhe eacute
resistente mas que ao mesmo tempo se mostra inteiramente na experiecircncia O incognosciacutevel
natildeo eacute uma alternativa viaacutevel pois o verdadeiro cientista tem como seu mais ardente desejo o
conhecimento da verdade e deve deste modo afastar como destituiacutedo de sentido qualquer
elemento que possa bloquear o caminho da investigaccedilatildeo Eacute fundamental para o bom
funcionamento do meacutetodo que os fatos investigados admitam ldquo() racionalizaccedilatildeo e
racionalizaccedilatildeo por noacutesrdquo (CP 7 sect 219 c 1901)171
Peirce afirma ldquoQue eles [os fatos] devam ser
[racionalizados por noacutes] pela mesma razatildeo que um general que tenha que capturar uma posiccedilatildeo
ou ver seu paiacutes arruinado deve insistir na hipoacutetese de que haacute algum modo pelo qual ele possa e
deva capturaacute-lardquo (CP 7 sect 219 c 1901)172
Esta eacute a justificaccedilatildeo para o lanccedilamento de uma
170 There are Real things whose characters are entirely independent of our opinions about them those Reals affect
our senses according to regular laws and though our sensations are as different as are our relations to the objects
yet by taking advantage of the laws of perception we can ascertain by reasoning how things really and truly are and
any man if he have sufficient experience and he reason enough about it will be led to the one True conclusion 171
() rationalization and of rationalization by us 172
That we must hope they do for the same reason that a general who has to capture a position or see his country
124
hipoacutetese seja qual for Eacute uma situaccedilatildeo extrema que exige uma aposta na sua possiacutevel soluccedilatildeo A
aposta na possibilidade da ciecircncia eacute feita radicalmente por Peirce que passaraacute seus anos
produtivos em busca de uma justificaccedilatildeo para a mesma bem como na tarefa de esclarecer os
mecanismos pelos quais a ciecircncia se constroacutei A defesa da hipoacutetese realista soacute pode ser
compreendida nos temos peirceanos como uma possibilidade de manter o projeto da ciecircncia
realizaacutevel
Embora seja um opositor radical a algumas das ideias de Descartes notadamente agrave ideia de
intuiccedilatildeo natildeo estaria longe da verdade dizer que Peirce retoma a sua agenda filosoacutefica ou ao
menos o seu moacutebil constituinte qual seja o de propor uma soluccedilatildeo para o problema do
conhecimento e o de expandir o horizonte da inteligibilidade tanto quanto possiacutevel173 Do mesmo
modo que Descartes seraacute no meacutetodo de obtenccedilatildeo e validaccedilatildeo do conhecimento que Peirce
buscaraacute sua resposta Agrave elaboraccedilatildeo deste meacutetodo que inicialmente eacute batizado de pragmatismo e
posteriormente de pragmaticismo Peirce dedicaraacute vaacuterios anos de sua vida Diferentemente de
outros metodoacutelogos Peirce entende que uma parte do seu meacutetodo deve ser dedicada agrave explicaccedilatildeo
de como as novas teorias ou fazendo uso de seu termo hipoacuteteses satildeo elaboradas O coraccedilatildeo desta
teoria eacute uma reflexatildeo sobre o processo de criaccedilatildeo cientiacutefica condensada no tipo de raciociacutenio que
Peirce denominou de abduccedilatildeo174
No plano da evoluccedilatildeo cosmoloacutegica o haacutebito ou a lei inclina a um desenvolvimento do
universo que tem como meta tornaacute-lo mais razoaacutevel Para bem compreendermos esse
desenvolvimento faz-se necessaacuteria uma incursatildeo na teoria das inferecircncias que Peirce
desenvolveu em particular no tipo de inferecircncia denominado de abduccedilatildeo ou retroduccedilatildeo ou
ainda hipoacutetese pois ldquo() um processo inferencial envolve a formaccedilatildeo de um haacutebitordquo (CP 2 sect
148 1902)175
Nos trabalhos produzidos entre 1865 e 1901 vemos Peirce aprofundar e desenvolver suas
ruined must go on the hypothesis that there is some way in which he can and shall capture it 173
Quanto a este aspecto na obra cartesiana ver PATY 1998 174
Ver IBRI 1994 ADERSON 1986 E 1995 175
() the inferential process involves the formation of a habit
125
anaacutelises e concepccedilotildees do processo de produccedilatildeo de inferecircncias culminando com a distinccedilatildeo de
trecircs tipos de raciociacutenios que se integram e concorrem para a realizaccedilatildeo do conhecer a induccedilatildeo a
deduccedilatildeo e a abduccedilatildeo
A anaacutelise do raciociacutenio abdutivo em sua obra eacute segundo nossa apreciaccedilatildeo fundamental em
muitos sentidos De iniacutecio a importacircncia de sua investigaccedilatildeo se justifica pelos possiacuteveis
esclarecimentos que possa trazer agrave proacutepria tarefa de compreensatildeo das ideias peirceanas no
interior das quais ocupa um lugar central Ao mesmo tempo se concordamos com Peirce essa
teoria parece iluminar aspectos pouco considerados do processo de criaccedilatildeo cientiacutefica quer seja
como insight ou como inferecircncia pois estaria na base e seria o elemento desencadeador da
formaccedilatildeo de qualquer juiacutezo sinteacutetico Acrescenta-se a isso a hipoacutetese central a esta investigaccedilatildeo
de que o modo como a abduccedilatildeo atua e a consideraccedilatildeo de suas implicaccedilotildees seraacute de grande auxiacutelio
para compreender com maior clareza as propriedades do continuum e de que maneira podemos
perceber a atuaccedilatildeo da causalidade final no momento da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese
Em contraste com a avaliaccedilatildeo positiva expressa nas expectativas acima elencadas alguns
comentadores de sua obra acusam-no de haver no tratamento dessa questatildeo confundido loacutegica
com psicologia afirmando que a abduccedilatildeo eacute por natureza um processo refrataacuterio agrave anaacutelise loacutegica
que seria fundamentalmente intuicionista como aponta Roth (1988) Uma avaliaccedilatildeo da validade
dessa criacutetica deve atentar para o desenvolvimento da abordagem que Peirce realiza da abduccedilatildeo
Para Peirce o indiviacuteduo natildeo constitui a unidade para a produccedilatildeo do conhecimento esta eacute
encontrada na comunidade Os juiacutezos perceptivos devem ser submetidos agrave criacutetica da comunidade
de investigadores para que as idiossincrasias sejam eliminadas e em um longo prazo possam
aproximar-se da verdade
A compreensatildeo dessa relaccedilatildeo coloca em pauta a investigaccedilatildeo do entrecruzamento da
epistemologia falibilista de Peirce e de sua ontologia indeterminista que constituem as condiccedilotildees
para o processo semioacutetico isto equivale dizer para o pensamento A relaccedilatildeo entre a abduccedilatildeo e os
juiacutezos perceptivos eacute enunciada da seguinte maneira
126
() a inferecircncia abdutiva transforma-se gradativamente no juiacutezo perceptivo sem
qualquer linha niacutetida de demarcaccedilatildeo entre eles ou em outras palavras nossas
primeiras premissas os juiacutezos perceptivos devem ser consideradas como um
caso extremo das inferecircncias abdutivas das quais diferem por estarem
absolutamente aleacutem da criacutetica (CP 5 sect 181 1903)176
Conforme ressalta Santaella (2004) a interpretaccedilatildeo da abduccedilatildeo tem sido um toacutepico
polecircmico entre os comentadores da obra de Peirce O que distingue esse processo inferencial eacute o
fato de ser ao mesmo tempo um processo instintivo e ter a natureza de uma inferecircncia loacutegica Eacute
por meio da abduccedilatildeo Peirce deixa claro que as novidades satildeo introduzidas no processo evolutivo
tanto da natureza em geral quanto e no conhecimento humano A dificuldade do tratamento e
compreensatildeo desse conceito fundamental eacute bem sintetizada por Santaella ao se perguntar ldquo() se
as hipoacuteteses satildeo frutos da maravilhosa faculdade imaginativa humana como podem elas se
acomodar dentro da forma de uma inferecircncia loacutegicardquo (SANTAELLA 2004 p 109)
A intuiccedilatildeo entendida como flash de criatividade eacute a base do processo de abduccedilatildeo que teraacute
como finalidade a produccedilatildeo de uma nova ideia ou forma que poderaacute dar lugar a uma inclinaccedilatildeo
geral ou haacutebito Em uma leitura raacutepida eacute tentador compreender esse flash como sendo de
natureza intuitiva semelhante agrave cartesiana Nada mais equivocado se levarmos em conta que a
principal criacutetica que Peirce endereccedila a Descartes refere-se justamente ao conceito de intuiccedilatildeo Se
natildeo haacute a possibilidade de uma cogniccedilatildeo sem a existecircncia de uma cogniccedilatildeo que a preceda como
entender o surgimento da novidade que a abduccedilatildeo potildee em cena
A soluccedilatildeo parece derivar do caraacuteter habitual do instinto Peirce afirma que todo instinto tem
o caraacuteter de um haacutebito e dessa forma distingue a accedilatildeo por ele produzida da reaccedilatildeo bruta e cega
Satildeo derivados da proacutepria evoluccedilatildeo a que estatildeo submetidos o cosmo e o homem como uma parte
176() abductive inference shades into perceptual judgment without any sharp line of demarcation between them or
in other words our first premisses the perceptual judgments are to be regarded as an extreme case of abductive
inferences from which they differ in being absolutely beyond criticism
127
integrante Santaella aponta que ldquo() do instinto peirceano germina a abduccedilatildeo fonte de todas as
iluminaccedilotildees e criaccedilotildees humanas mas tambeacutem o mais fraacutegil de todos os raciociacutenios o mais
faliacutevel sem nenhum poder de comprovaccedilatildeo necessitando da deduccedilatildeo e da induccedilatildeo para que
possa ter qualquer valor de verdaderdquo (SANTAELLA 2004 p 113-14)
A discussatildeo realizada sobre o raciociacutenio abdutivo jaacute foi identificada como uma das grandes
contribuiccedilotildees de Peirce para o debate filosoacutefico Jaakko Hintikka (cf 1999 p 91) afirma que se a
grandeza de um filoacutesofo eacute medida pelas contribuiccedilotildees inovadoras que fornece aos problemas
tradicionais da filosofia Peirce seria nesse sentido um dos maiores filoacutesofos na medida em que
cria um novo problema o da abduccedilatildeo Cabe ressaltar que em diversos momentos Peirce deixa
claro que o raciociacutenio abdutivo deteacutem exclusividade heuriacutestica em sua filosofia ldquoAbduccedilatildeo eacute o
processo de formaccedilatildeo de uma hipoacutetese explanatoacuteria Eacute a uacutenica operaccedilatildeo loacutegica que apresenta uma
ideia nova pois a induccedilatildeo nada faz aleacutem de determinar um valor e a deduccedilatildeo meramente
desenvolve as consequecircncias necessaacuterias de uma hipoacutetese purardquo (CP 5 sect 171 1903)177
Conforme ressalta Gallie (1952) a compreensatildeo do estatuto que Peirce daacute agrave abduccedilatildeo como
um processo inferencial eacute bastante facilitado se levamos em conta o significado que o filoacutesofo
atribui agrave noccedilatildeo de inferecircncia Peirce natildeo adota a concepccedilatildeo filosoacutefica tradicional de inferecircncia
como um processo mental Um argumento natildeo possui a funccedilatildeo de retratar para outro o que se
passou na mente do argumentador mas de provocar a concordacircncia do primeiro com o uacuteltimo
quanto ao conteuacutedo das premissas e conclusatildeo mobilizadas Ele emprega afirma Gallie ldquoUma
forma de falar cujo arranjo eacute tal que mostra que bdquose a proposiccedilatildeo-premissa for verdadeira entatildeo a
proposiccedilatildeo-conclusatildeo necessaacuteria ou naturalmente seraacute verdadeira‟rdquo (GALLIE 1952 p 96-7) O
argumento desta maneira tem a funccedilatildeo de mostrar ou lembrar o ouvinte deste fato a maneira
entretanto pela qual ele alcanccedila este resultado eacute algo totalmente irrelevante acrescenta Gallie
Peirce afirma em concordacircncia com esta interpretaccedilatildeo que ldquoDeve haver em funccedilatildeo de tudo que
noacutes sabemos ou nos importamos centenas de maneiras de pensar na passagem das premissas agraves
177 Abduction is the process of forming an explanatory hypothesis It is the only logical operation which introduces
any new idea for induction does nothing but determine a value and deduction merely evolves the necessary
consequences of a pure hypothesis
128
conclusotildeesrdquo (CP 2 sect 55 1902)178
e ainda ldquoInferecircncia () deve ser para natildeo dizer que
provavelmente eacute de uma construccedilatildeo inteiramente diferente do processo de pensamentordquo (CP 2 sect
54 1902)179
Gallie sintetiza de modo claro a relaccedilatildeo que se estabelece no pensamento peirceano entre
inferecircncia e investigaccedilatildeo ele diz
Em suma da mesma maneira que Peirce usa a palavra investigaccedilatildeo para
indicar natildeo algum processo mental descritiacutevel mas o fato que algumas de
nossas atividades podem ser guiadas por signos e siacutembolos que admitem
criticismo loacutegico da mesma maneira ele usa a palavra inferecircncia para indicar
natildeo alguma passagem da mente sentida (ou postulada) mas o fato que
usualmente quando fazemos uma asserccedilatildeo estamos na posiccedilatildeo de dar uma
razatildeo para ela (GALLIE 1952 p 96)
De acordo com esta concepccedilatildeo de inferecircncia natildeo eacute muito difiacutecil entender como e porque a
abduccedilatildeo ou o processo de elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses eacute considerado por Peirce como uma
inferecircncia loacutegica De fato como diz Gallie seria muito ldquoesquisitordquo ou ldquocompletamente inuacutetilrdquo
uma hipoacutetese para a qual natildeo pudeacutessemos fornecer qualquer tipo de razotildees que a justificassem
2 OS TREcircS TIPOS DE RACIOCIacuteNIO
Os trecircs tipos de inferecircncia considerados por Peirce satildeo a deduccedilatildeo a induccedilatildeo e da mesma
maneira a abduccedilatildeo Em um texto de 1903 satildeo caracterizados da seguinte maneira ressaltando-se
178 There may for aught we know or care be a hundred ways of thinking in passing from such a premiss to such a
conclusion 179
Still the inference or argument so far as logic can take any cognizance of it may be not to say probably is of an
entirely different construction from the thinking process
129
novamente que a uacutenica origem das ideias novas eacute o raciociacutenio abdutivo
A deduccedilatildeo eacute o uacutenico raciociacutenio necessaacuterio Ela eacute aquilo que constitui o
raciociacutenio da matemaacutetica Ela principia de uma hipoacutetese cuja verdade ou
falsidade nada tem a ver com o raciociacutenio oacutebvio eacute que suas conclusotildees satildeo
igualmente ideais () A induccedilatildeo eacute o teste experimental de uma teoria Sua
justificaccedilatildeo eacute que embora a conclusatildeo em qualquer estaacutegio da investigaccedilatildeo
possa ser mais ou menos errocircnea a aplicaccedilatildeo continuada do mesmo meacutetodo
deve corrigir o erro A uacutenica coisa que a induccedilatildeo perfaz eacute determinar o valor de
uma quantidade Ela parte de uma teoria e avalia seu grau de concordacircncia com
os fatos Ela nunca pode dar origem a qualquer ideia que seja Nem o pode fazer
a deduccedilatildeo Todas as ideias da ciecircncia surgem atraveacutes da abduccedilatildeo (CP 5 sect 145
1903)180
No texto Deduccedilatildeo induccedilatildeo e hipoacutetese de 1878 Peirce oferece por meio de exemplos uma
descriccedilatildeo clara do que ele entende por cada um dos tipos de raciociacutenio desse modo temos os
seguintes silogismos
Deduccedilatildeo
Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos
Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola
Resultado Estes feijotildees satildeo brancos
180 Deduction is the only necessary reasoning It is the reasoning of mathematics It starts from a hypothesis the truth
or falsity of which has nothing to do with the reasoning and of course its conclusions are equally ideal () Induction
is the experimental testing of a theory The justification of it is that although the conclusion at any stage of the
investigation may be more or less erroneous yet the further application of the same method must correct the error
The only thing that induction accomplishes is to determine the value of a quantity It sets out with a theory and it
measures the degree of concordance of that theory with fact It never can originate any idea whatever No more can
deduction All the ideas of science come to it by the way of Abduction
130
Induccedilatildeo
Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola
Resultado Estes feijotildees satildeo brancos
Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos
Hipoacutetese
Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos
Resultado Estes feijotildees satildeo brancos
Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola
Outra definiccedilatildeo mais ampla dada em 1903 quando Peirce jaacute havia superado a teoria
silogiacutestica e elaborado a loacutegica das relaccedilotildees pode ser encontrada no seguinte exemplo
ldquoObserva-se um fato surpreendente C
Mas se A fosse verdadeira C seria uma coisa corrente
Portanto haacute razotildees para suspeitar que A eacute verdadeirardquo (CP 5 sect 189 1903)181
Eacute preciso notar que no segundo esquema acima dois fatos chamam atenccedilatildeo e merecem
comentaacuterio Em primeiro lugar seguindo a interpretaccedilatildeo de Gallie vale ressaltar que a conclusatildeo
possui um caraacuteter meramente de tentativa O raciociacutenio meramente indica que vale a pena
181 The surprising fact C is observed But if A were true C would be a matter of course Hence there is reason to
suspect that A is true
131
consideraacute-la Em segundo lugar nota-se que o esquema abdutivo indica unicamente a direccedilatildeo em
que a pesquisa deve ser desenvolvida sem qualquer consideraccedilatildeo sobre a sustentaccedilatildeo ou
plausibilidade com relaccedilatildeo aos fatos que a hipoacutetese possa ter Essas consideraccedilotildees aparecem
posteriormente apoacutes a extraccedilatildeo dedutiva de consequecircncias experimentais e de sua confrontaccedilatildeo
com os fatos por meio da induccedilatildeo
Embora Peirce classifique a abduccedilatildeo como um tipo de raciociacutenio deixa claro que ela natildeo
estaacute submetida agraves mesmas regras da loacutegica criacutetica O seu enquadramento nessa classificaccedilatildeo
deve-se mais agrave ausecircncia de qualquer outra que lhe seja mais adequada182 suas caracteriacutesticas
indicam a liberdade proacutepria dos processos marcados pela categoria de primeiridade como diz
ldquoQualquer que seja o modo como o homem tenha adquirido sua faculdade de adivinhar os
caminhos da Natureza eacute certo que natildeo foi por meio de uma loacutegica criacutetica e autocontrolada (CP
5 sect 173 1903)183
O problema da abduccedilatildeo pode ser visto como o problema da elaboraccedilatildeo de juiacutezos
sinteacuteticos184
em 1868 o autor afirma
De acordo com Kant a questatildeo central da filosofia eacute Como satildeo possiacuteveis os
juiacutezos sinteacuteticos a priori Mas anteriormente a ela surge a questatildeo como os
juiacutezos sinteacuteticos em geral e mais amplamente como o raciociacutenio sinteacutetico eacute
absolutamente possiacutevel Quando a resposta ao problema geral for obtida a
particular seraacute comparativamente simples Este eacute o cadeado da porta da filosofia
(CP 5 sect 348 1868)185
182 Peirce esclarece quanto agrave classificaccedilatildeo da abduccedilatildeo como uma forma de raciociacutenio Any novice in logic may well
be surprised at my calling a guess an inference It is equally easy to define inference so as to exclude or include
abduction But all the object of the logic study have to be classified and it is found that there is no o-ther good class
in which to put abduction but that of inference (HP 2 p 899 1901) 183
However man may have acquired his faculty of divining the ways of Nature it has certainly not been by a self-
controlled and critical logic 184
Para uma discussatildeo da influencia de Kant em Peirce ver KRUSE 2010 e HAACK 2011 185
According to Kant the central question of philosophy is How are synthetical judgments a priori possible But
antecedently to this comes the question how synthetical judgments in general and still more generally how
synthetical reasoning is possible at all When the answer to the general problem has been obtained the particular one
will be comparatively simple This is the lock upon the door of philosophy
132
O cadeado da porta da filosofia consistiria dessa maneira em solucionar o problema
bastante antigo na histoacuteria da filosofia de conciliar o particular com o universal e garantir que a
partir do conteuacutedo da experiecircncia seja possiacutevel chegar ao estabelecimento de crenccedilas seguras que
no limite aproximar-se-iam mais e mais da verdade O encaminhamento da soluccedilatildeo desta
questatildeo realizado por Peirce tem na afirmaccedilatildeo do realismo sua pedra de toque Eacute a realidade
dos universais que torna qualquer pensamento mediado possiacutevel Ao lado de seu realismo
encontramos outra caracteriacutestica fundamental para a compreensatildeo do ecircxito na elaboraccedilatildeo de
hipoacuteteses a universalidade das categorias O problema de compatibilizar o universal da razatildeo do
sujeito com o particular do objeto se resolve ao considerar que tambeacutem no objeto captado por
meio da percepccedilatildeo encontra-se o universal fugindo definitivamente dessa maneira do
nominalismo A percepccedilatildeo eacute ela mesma um processo interpretativo resultado da criaccedilatildeo de
hipoacutetese e da resistecircncia do objeto A anaacutelise do tratamento realizado por Peirce desta questatildeo
conduziraacute ao cerne de sua teoria da criaccedilatildeo e da descoberta sejam elas cientiacuteficas ou natildeo
implicando a consideraccedilatildeo do entrelaccedilamento de dois aspectos de seu pensamento sua ontologia
e sua epistemologia
A teoria abdutiva desenvolvida por Peirce conheceu o mesmo percurso descrito acima
Desde os primeiros textos podemos verificar a presenccedila de uma preocupaccedilatildeo com os processos
de criaccedilatildeo e de tratamento de hipoacuteteses O desenvolvimento da abordagem que Peirce oferece do
tema reflete os avanccedilos de que ele obteve na loacutegica Como veremos adiante a ideia de abduccedilatildeo se
altera agrave medida em que o autor cria novos instrumentos de anaacutelise que ultrapassam a abordagem
loacutegica legada por Aristoacuteteles
Desde seus primeiros trabalhos em loacutegica Peirce se preocupou com o estudo dos
argumentos afirmando que sua classificaccedilatildeo eacute a principal tarefa dos loacutegicos pois todo teste
depende claramente da classificaccedilatildeo (cf EP 1 p 186 1878) Como aponta Chauvireacute (2003 p
31) ldquoNota-se que Peirce natildeo opotildee somente a deduccedilatildeo agrave induccedilatildeo mas introduz um terceiro tipo
de inferecircncia a abduccedilatildeo cuja definiccedilatildeo e cuja anaacutelise constituem um dos pontos mais originais
tanto da sua filosofia dos signos quanto da sua filosofia da ciecircnciardquo
133
Peirce indica ainda uma subdivisatildeo a que esta classificaccedilatildeo das inferecircncias estaacute sujeita
entre inferecircncias analiacuteticas na qual ele coloca a deduccedilatildeo e inferecircncias sinteacuteticas que
compreendem a induccedilatildeo e a hipoacutetese Deixando para outra ocasiatildeo o tratamento da inferecircncia
dedutiva186
dedicaraacute o texto em questatildeo agrave compreensatildeo e diferenciaccedilatildeo das inferecircncias indutivas
e hipoteacuteticas bem como agrave justificaccedilatildeo da necessidade de clareza quanto a esta distinccedilatildeo para a
elaboraccedilatildeo do meacutetodo cientiacutefico
Peirce argumenta que a diferenccedila entre a inferecircncia que formula uma hipoacutetese e aquela que
realiza uma induccedilatildeo eacute bastante clara na maioria dos casos analisados natildeo obstante seja ignorada
pelos estudiosos da loacutegica ou objeto de grande confusatildeo Embora nenhuma classificaccedilatildeo seja
perfeitamente satisfatoacuteria diz Peirce sendo sempre possiacutevel encontrar casos que se localizem na
fronteira entre as duas classes e que poderiam levar agrave primeira vista a uma certa duacutevida sobre
qual categoria a que dada inferecircncia pertence a anaacutelise da abduccedilatildeo e induccedilatildeo deixa claro as
suas diferenccedilas Quanto ao modo em que se realiza e quanto ao objetivo que almeja Peirce tece o
seguinte comentaacuterio
Pela induccedilatildeo concluiacutemos que fatos similares aos fatos observados satildeo
verdadeiros em casos natildeo examinados Pela hipoacutetese concluiacutemos a existecircncia de
um fato totalmente diferente de qualquer coisa observada a partir do qual de
acordo com as leis conhecidas alguma coisa observada necessariamente
resultaria O primeiro eacute um raciociacutenio dos particulares para a lei geral o uacuteltimo
do efeito para a causa O primeiro classifica o uacuteltimo explica (EP 1 p 194
1878)187
Com a finalidade de tornar a diferenccedila mais clara vejamos alguns exemplos de hipoacutetese
186 Realizado em 1880 em seu texto umlOn the Algebra of Logicuml e na definiccedilatildeo de umlsilogismouml para o seu Century
Dictionary 187
By induction we conclude that facts similar to observed facts are true in cases not examined By hypothesis we
conclude the existence of a fact quite different from anything observed from which according to known laws
something observed would necessarily result The former is reasoning from particulars to the general law the latter
from effect to cause The former classifies the latter explains
134
fornecidos por Peirce e a diferenccedila com relaccedilatildeo agrave induccedilatildeo em um deles O primeiro exemplo faz
referecircncia a uma viagem que Peirce realizou no ano de 1870 para a Turquia ele nos diz que
enquanto caminhava em direccedilatildeo a uma casa que iria visitar encontrou um homem montado em
um cavalo com quatro outros homens agrave cavalo ao seu redor e que seguravam uma tenda sobre sua
cabeccedila Como o governador da proviacutencia seria a uacutenica pessoa que poderia ter um tratamento tatildeo
honroso Peirce concluiu que se tratava do proacuteprio Esta eacute uma hipoacutetese acrescenta Do fato de se
encontrar foacutesseis de peixes e conchas no interior do paiacutes elabora-se a hipoacutetese de que o mar em
algum momento do passado tenha banhado aquelas terras Do fato de que inuacutemeros documentos
e monumentos faccedilam referecircncia a um conquistador chamado Napoleatildeo Bonaparte se conclui que
ele de fato existiu sendo esta conclusatildeo uma outra hipoacutetese Com respeito a esses exemplos
Peirce acrescenta que a hipoacutetese eacute um tipo fraco de argumento que mais inclina do que determina
o nosso julgamento em direccedilatildeo agrave afirmaccedilatildeo da verdade expressa nas respectivas hipoacuteteses
Para tornar clara a diferenccedila entre o raciociacutenio hipoteacutetico e raciociacutenio indutivo vejamos um
outro exemplo tambeacutem fornecido por Peirce Neste nos deparamos com um escrito anocircnimo
sobre uma folha de papel que foi arrancada de um bloco Haacute a suspeita de que o autor do escrito
seja uma determinada pessoa Sua mesa agrave qual somente ele tinha acesso eacute investigada e eacute
encontrado um bloco de papel com uma folha arrancada cujas bordas satildeo idecircnticas agraves da folha do
escrito anocircnimo A conclusatildeo de que o suspeito eacute realmente o autor do escrito eacute claramente uma
hipoacutetese Peirce acrescenta que a base para essa inferecircncia eacute de que seria muito improvaacutevel que
duas folhas de papel arrancadas ao acaso tivessem suas bordas exatamente iguais apenas por
acidente A razatildeo de uma conclusatildeo do tipo presente no exemplo acima eacute enunciada nos seguintes
termos por Peirce ldquoum nuacutemero de caracteres que pertence a uma certa classe eacute encontrado em
um certo objeto desse modo eacute inferido que todos os caracteres daquela classe pertencem ao
objeto em questatildeordquo (EP 1 p 192 1878)188
O princiacutepio de elaboraccedilatildeo da hipoacutetese neste caso
envolve o mesmo princiacutepio da induccedilatildeo a diferenccedila eacute que natildeo satildeo analisados uma quantidade
grande de caracteres e a conclusatildeo eacute bastante distinta A inferecircncia indutiva no exemplo acima
188 A number of characters belonging to a certain class are found in a certain object whence it is inferred that all the
characters of that class belong to the object in question
135
apenas nos autorizaria a concluir que se as folhas de papel possuem alguns caracteres que
correspondem entatildeo ela deve compartilhar outros concluir no entanto sobre o autor do escrito
na folha de papel a partir de algumas de suas caracteriacutesticas eacute algo de natureza completamente
diferentemente Peirce resume a diferenccedila entre os dois tipos de inferecircncia da seguinte maneira
ldquoa essecircncia de uma induccedilatildeo eacute que ela infere de um conjunto de fatos um outro conjunto de fatos
similares enquanto a hipoacutetese infere a partir de fatos de um tipo fatos de um outrordquo (EP 1 p
198)189
Pode-se perceber que uma das razotildees pelas quais Peirce elabora a reflexatildeo apresentada
neste texto eacute a de compreender o processo de produccedilatildeo do conhecimento Neste momento Peirce
ainda atribuiacutea tanto agrave inferecircncia indutiva quanto agrave inferecircncia hipoteacutetica o papel de produtor de
novas ideias na medida em que ambas satildeo classificadas como inferecircncias sinteacuteticas Posiccedilatildeo que
no futuro modificaraacute atribuindo a exclusividade heuriacutestica ao processo inferencial que receberaacute o
nome de abduccedilatildeo Mas a quecirc serve esta distinccedilatildeo Esta eacute uma pergunta que podemos nos colocar
e para a qual Peirce apresenta uma resposta retomada e aprimorada em vaacuterios textos posteriores
Em um texto de 1901 lemos
Nada tem contribuiacutedo tanto para apresentar ideias da loacutegica da ciecircncia caoacuteticas
ou errocircneas como a falha em distinguir os caracteres essencialmente diferentes
de diferentes elementos do raciociacutenio cientiacutefico e uma das piores dessas
confusotildees bem como uma das mais comuns consiste em ver a abduccedilatildeo e a
induccedilatildeo tomadas juntas (frequentemente misturadas tambeacutem com a deduccedilatildeo)
como um uacutenico argumento (CP 7 sect 218 1901)190
189 But the essence of an induction is that it infers from one set of facts another set of similar facts whereas
hypothesis infers from facts of one kind to facts of another 190
Nothing has so much contributed to present chaotic or erroneous ideas of the logic of science as failure to
distinguish the essentially different characters of different elements of scientific reasoning and one of the worst of
these confusions as well as one of the commonest consists in regarding abduction and induction taken together
(often mixed also with deduction) as a simple argument
136
No texto de 1878 Peirce oferece algumas razotildees segundo as quais a distinccedilatildeo em questatildeo
seria de grande importacircncia O valor desta distinccedilatildeo segundo o autor deve ser testado por suas
aplicaccedilotildees Em primeiro lugar encontra-se o fato de que a induccedilatildeo eacute um tipo de inferecircncia bem
mais forte do que a hipoacutetese A impossibilidade de se inferir indutivamente conclusotildees hipoteacuteticas
eacute apontada como a segunda razatildeo Do ponto de vista psicoloacutegico ou fisioloacutegico tambeacutem se
verifica uma distinccedilatildeo quanto ao modo de apreensatildeo dos fatos que eacute apontado como a terceira
razatildeo para se insistir sobre a sua distinccedilatildeo A induccedilatildeo eacute o procedimento loacutegico da formaccedilatildeo de um
haacutebito jaacute que ela realiza a inferecircncia de uma regra e toda regra eacute de natureza habitual enquanto a
hipoacutetese realiza a unificaccedilatildeo de vaacuterios predicados em uma uacutenica concepccedilatildeo Peirce tenta
esclarecer a particularidade do processo de elaboraccedilatildeo de hipoacutetese fazendo uso de uma analogia
ldquoos vaacuterios sons produzidos pelos instrumentos de uma orquestra incidem sobre o ouvido e o
resultado eacute uma peculiar emoccedilatildeo musical bem distinta dos proacuteprios sonsrdquo (EP 1 199 1878)191
A partir dessa constataccedilatildeo Peirce afirma que a hipoacutetese representa o elemento sensiacutevel do
pensamento enquanto a induccedilatildeo responde por seu elemento habitual Um outro meacuterito dessa
distinccedilatildeo eacute o de permitir uma classificaccedilatildeo natural das ciecircncias e das mentes que as realizam
segundo os diferentes modos de raciociacutenio E por fim Peirce deixa as demais vantagens aos
leitores que dominarem a habilidade de distinguir entre os vaacuterios tipos de inferecircncias a tarefa de
descobrir
Para Peirce antes da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese que eacute por ele considerada como o
primeiro estaacutegio do meacutetodo cientiacutefico o cientista deve ter se nutrido da observaccedilatildeo do mundo A
experiecircncia eacute o iniacutecio necessaacuterio para todo conhecimento humano de modo que natildeo existe
conhecimento que natildeo esteja embasado na experiecircncia ele diz ldquoTodo conhecimento seja qual
for vem da observaccedilatildeordquo (CP 1 sect 238 1902)192
Ainda que a observaccedilatildeo natildeo possa ser
considerada como uma parte do meacutetodo cientiacutefico ela eacute um preacute-requisito fundamental para o seu
sucesso Com a finalidade de estabelecer uma conversaccedilatildeo com a natureza a observaccedilatildeo preacutevia
191 The various sounds made by the instruments of an orchestra strike upon the ear and the result is a peculiar
musical emotion quite distinct from the sounds themselves 192
All knowledge whatever comes from observation
137
do cientista deve ser ativa e natildeo passiva Ela natildeo eacute pura sensaccedilatildeo mas experimentaccedilatildeo
inteligente Para que a conversa seja produtiva o investigador deve apresentar as questotildees
apropriadas Sobre a observaccedilatildeo Peirce afirma que se trata ldquode uma experiecircncia voluntariamente
atenta habitualmente com algum frequentemente com a necessidade de um grande esforccedilordquo e
acrescenta que a ldquoexperiecircncia supotildee que seu objeto reaja sobre noacutes com alguma forccedila muita ou
pouca de tal maneira que ela tenha um certo grau de realidade ou independecircncia de nosso esforccedilo
cognitivordquo (CP 2 sect 605 1902)193
Tal esforccedilo soacute eacute verdadeiramente realizado uma vez que
alguma coisa de inesperado surja no desenrolar dos acontecimentos fenomecircnicos isto eacute quando o
curso dos eventos se mostra de alguma maneira surpreendente para o investigador
A experiecircncia eacute portanto uma operaccedilatildeo cognitiva Ela implica a consciecircncia de um objeto
externo que eacute resistente ao sujeito A observaccedilatildeo com a qual a pesquisa cientiacutefica tem seu iniacutecio eacute
sempre a quebra de uma expectativa e eacute esta caracteriacutestica inesperada que forccedila o cientista a ter
consciecircncia da externalidade do objeto e que o conduz agrave procura de uma explicaccedilatildeo
A pesquisa cientiacutefica propriamente dita inicia-se com a hipoacutetese uma conjectura que tenta
explicar o fenocircmeno surpreendente (cf CP 6 sect 469 1908) O meacutetodo cientiacutefico compreende
para Peirce trecircs estaacutegios distintos abduccedilatildeo ou hipoacutetese deduccedilatildeo e induccedilatildeo ou teste
Diferentemente de outros filoacutesofos da ciecircncia Peirce compreende que uma parte de seu meacutetodo
deve ser dedicada agrave explicaccedilatildeo de como as novas hipoacuteteses satildeo elaboradas O coraccedilatildeo desta teoria
eacute uma reflexatildeo sobre o processo de criaccedilatildeo cientiacutefica condensado no raciociacutenio abdutivo Uma
vez elaborada e selecionada a hipoacutetese dever testada Com esta finalidade Peirce indica a
necessidade de se deduzir as consequecircncias praacuteticas da hipoacutetese e por meio da induccedilatildeo proceder
agrave sua verificaccedilatildeo confrontando-a com a experiecircncia Nota-se que mesmo mantendo o nome
induccedilatildeo para este procedimento de teste ele natildeo reteacutem mais nada da sua significaccedilatildeo original
empregada na histoacuteria da filosofia Natildeo se trata do procedimento de obtenccedilatildeo de uma lei geral por
193 Attentive experience especially an act of voluntarily attentive experience usually with some often with great
effort () experience supposes that its object reacts upon us with some strength much or little so that it has a certain
grade of reality or independence of our cognitive exertion
138
meio dos casos particulares mas de verificar se as consequecircncias de uma conjectura geral satildeo
conformes agrave experiecircncia
As duas principais funccedilotildees da ciecircncia satildeo a elaboraccedilatildeo e o teste de conjecturas A ciecircncia
somente seraacute possiacutevel se ao se realizar essas duas funccedilotildees o resultado seja a verdade ou se por
meio delas nos aproximamos do conhecimento real Durante deacutecadas Peirce se dedicou
agrave compreensatildeo dos mecanismos da induccedilatildeo visando compreender como ela durante a
investigaccedilatildeo cientiacutefica teria o poder de conduzir agrave verdade por meio de um processo de
autocorreccedilatildeo Seus esforccedilos todavia indicaram que a menos que a conjectura jaacute tenha colocado o
investigador na boa direccedilatildeo a ciecircncia natildeo conseguiria atingir seu objetivo Desta maneira este
estranho tipo de inferecircncia chamado de abduccedilatildeo deveria ser a chave para o progresso que se
verifica na ciecircncia De fato a abduccedilatildeo eacute uma espeacutecie de adivinhaccedilatildeo da boa hipoacutetese
A abduccedilatildeo compreende dois momentos a elaboraccedilatildeo e a eleiccedilatildeo das hipoacuteteses a serem
testadas O primeiro momento eacute marcado pela criatividade e o segundo pelas exigecircncias da
economia da pesquisa cientiacutefica Na anaacutelise do primeiro momento o da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese
um aspecto bastante proacuteprio do pensamento peirceano eacute ressaltado o papel que a imaginaccedilatildeo
desempenha neste estaacutegio Peirce diz
Quando um homem deseja ardentemente conhecer a verdade seu primeiro
esforccedilo eacute de imaginar aquilo que tal verdade poderia ser () eacute verdade que apoacutes
tudo nada aleacutem da imaginaccedilatildeo pode lhe fornecer a pista da verdade Ele pode
fixar estupidamente o olhar sobre os fenocircmenos mas sem a imaginaccedilatildeo eles natildeo
se ligaratildeo de maneira racional (CP 1 sect 46 1896)194
194 When a man desires ardently to know the truth his first effort will be to imagine what that truth can be () it
remains true that there is after all nothing but imagination that can ever supply him an inkling of the truth He can
stare stupidly at phenomena but in the absence of imagination they will not connect themselves together in any
rational way
139
A imaginaccedilatildeo do cientista natildeo obstante eacute aquela que sonha com explicaccedilotildees e com leis (cf
CP 1 sect 49 1896) a conjectura deve portanto ser de tal maneira que elimine o aspecto
surpreendente e coloque o cientista em harmonia com o curso dos fenocircmenos Uma vez de posse
das conjecturas Peirce indica os criteacuterios que devem ser utilizados para selecionar aquelas que
devem ser submetidas a teste e em que ordem afim de que o trabalho de investigaccedilatildeo cientiacutefica
tenha o melhor desempenho possiacutevel As principais condiccedilotildees de admissibilidade de hipoacuteteses
que Peirce estabelece satildeo
1 A hipoacutetese deve ser experimentalmente testaacutevel
2 Ela deve explicar os fatos surpreendentes aos quais nos confrontamos
3 A seleccedilatildeo e classificaccedilatildeo das hipoacuteteses a serem testadas devem ser realizadas em funccedilatildeo
do princiacutepio de economia da pesquisa
A testabilidade de uma hipoacutetese consiste em que devemos poder tirar dela por deduccedilatildeo um
certo nuacutemero de consequecircncias ou prediccedilotildees suscetiacutevel de ser comparado com os resultados de
uma experiecircncia provocada por esta razatildeo ldquouma hipoacutetese da qual natildeo se pode fundar nenhuma
prediccedilatildeo natildeo deveria ser aceitardquo (CP 5 sect 599 1903)195
Explicar um fenocircmeno para Peirce eacute fazecirc-lo aparecer como dedutiacutevel de uma lei ou de uma
teoria isto eacute como previsiacutevel Peirce caracteriza a explicaccedilatildeo como uma forma de reduccedilatildeo do
diverso agrave unidade explicar eacute sintetizar uma multiplicidade de predicados ou ainda substituir
uma pluralidade de proposiccedilotildees por uma soacute proposiccedilatildeo de um grau de generalidade superior (cf
CHAUVIREacute 2003 p 84)
E por fim a terceira condiccedilatildeo indica que as hipoacuteteses de conteuacutedos mais abrangentes
devem ser preferidas bem como aquelas que natildeo exijam muito tempo recursos materiais ou
esforccedilo em seus testes
195 A hypothesis on which no verifiable predictions can be based should never be accepted
140
CAPIacuteTULO 05
A CAUSALIDADE FINAL
Thus whether you accept the opinion or not you must see that it is a perfectly
intelligible opinion that ideas are not all mere creations of this or that mind but on the
contrary have a power of finding or creating their vehicles and having found them of
conferring upon them the ability to transform the face of the earth (CP 1 sect 217 1902)
141
Este capiacutetulo eacute dedicado agrave apresentaccedilatildeo e discussatildeo das principais caracteriacutesticas atribuiacutedas
agrave ideia de causa final na obra de Peirce Iniciaremos por uma exposiccedilatildeo das questotildees envolvidas
e resgatando elementos presentes nos capiacutetulos anteriores desta tese faremos uma comparaccedilatildeo
da concepccedilatildeo peirceana com a aristoteacutelica para realccedilar aquilo que Peirce acrescenta de original
Como este eacute o uacuteltimo capiacutetulo deste trabalho sua funccedilatildeo eacute a de tambeacutem ressaltar o papel central
que a ideia de causa final desempenha em outros campos da produccedilatildeo peirceana afins ao recorte
proposto no todo desta tese
Para Peirce a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais fornecida apenas com base na atuaccedilatildeo da
causa eficiente eacute claramente insuficiente A causalidade final eacute necessaacuteria para a construccedilatildeo de
esquemas de explicaccedilatildeo que possam oferecer uma imagem adequada do real portanto eacute essencial
do ponto de vista epistemoloacutegico O mesmo pode ser afirmado no que diz respeito ao ponto de
vista ontoloacutegico pois Peirce a considera como causa real atuante nos processos de constituiccedilatildeo
do universo ou seja na evoluccedilatildeo ou crescimento do cosmo Como indica T L Short ldquo() A
teleologia de Peirce natildeo eacute somente metodoloacutegica ela inclui reivindicaccedilotildees ontoloacutegicasrdquo (1981b
p 377) O banimento desta modalidade causal da ciecircncia ao menos desde Bacon196
eacute visto pelo
filoacutesofo como uma fonte de equiacutevocos Em um texto de 1903 Peirce afirma
() o natildeo reconhecimento da causalidade final () tem sido e ainda eacute produtor
de mais erros filosoacuteficos e de absurdos do que qualquer outra fonte de erro e de
absurdos Se haacute uma deusa do absurdo isso deve ser sua assombraccedilatildeo (MS
478)197
Como aponta Andrew Woodfield em seu livro sobre a teleologia ldquoA ciecircncia moderna eacute no
seu todo hostil agraves explicaccedilotildees teleoloacutegicasrdquo (WOODFIELD 1976 p03) Hawkins (2007 p 522)
196 Como aponta Bacon a investigaccedilatildeo sobre causas finais eacute esteacuteril e como uma virgem consagrada a Deus nada
produz (cf BACON F De Augmentis Scientiarum III 5) 197
() the non-recognition of final causation () has been and still is productive of more philosophical error and
nonsense than any or every other source of error or nonsense If there is any goddess of nonsense this must be her
haunt (apud HULSWIT 1996 p 182)
142
afirma que embora filoacutesofos contemporacircneos como Russell e Quine tenham afirmado que ateacute
mesmo a causalidade eficiente eacute metafisicamente suspeita ela continua a gozar de popularidade
junto ao senso comum e de respeito entre os filoacutesofos Aquele que defende a existecircncia de causas
eficientes atuando na natureza pode estar errado mas ningueacutem o chamaria de louco como
acontece com aqueles que insistem na pertinecircncia da inclusatildeo da causalidade final nos esquemas
explicativos ou como elemento atuante no mundo Hawkins (2007 p 522) faz um bom resumo
da situaccedilatildeo atual
() muitos filoacutesofos contemporacircneos consideram a causalidade final na melhor
das hipoacuteteses como uma reliacutequia de um encantado mundo preacute-moderno Na pior
das hipoacuteteses a causalidade final eacute um pensamento metafiacutesico clandestino na
barcaccedila antifundacionalista conduzida por Quine e seus companheiros Mesmo
os filoacutesofos Continentais (por exemplo Heidegger Deleuze) tendem a
suspeitar da causalidade final Para eles a causa final eacute um conceito
incompatiacutevel com a nossa experiecircncia de liberdade e novidade () Por fim nem
mesmo o senso comum parece endossar a causalidade final De acordo com a
compreensatildeo preacute-filosoacuteficas as causas satildeo temporalmente preacutevias aos efeitos
Contudo os defensores da causalidade final parecem negar precisamente essa
prioridade O caraacuteter de uma coisa no presente eacute de alguma forma pensado
como determinado pelo que ela seraacute no futuro seu fim (telos) Para os natildeo
filoacutesofos a alegaccedilatildeo de que a causalidade pode atuar nesse sentido pode parecer
incompreensiacutevel
Satildeo comuns afirmaccedilotildees de que natildeo existem causas finais atuando no universo e de que os
fenocircmenos que satildeo descritos por meio de uma linguagem teleoloacutegica podem e seratildeo no futuro
descritos unicamente por meio da utilizaccedilatildeo de esquemas de explicaccedilatildeo que faccedilam uso exclusivo
da causalidade eficiente Se por um lado o projeto de reduccedilatildeo das explicaccedilotildees teleoloacutegicas a
explicaccedilotildees com base em causalidade eficiente ainda natildeo foi plenamente realizado por outro a
proacutepria noccedilatildeo de causalidade final natildeo estaacute inteiramente esclarecida Como aponta Hulswit ldquoAteacute
o presente momento nenhuma teoria clara dos processos teleoloacutegicos estaacute disponiacutevelrdquo
143
(HULSWIT 1996 P 183)198
Esperamos que a anaacutelise e exposiccedilatildeo das ideias peirceanas sobre o
tema possam constituir uma contribuiccedilatildeo efetiva para a elaboraccedilatildeo de uma teoria mais adequada
e clara sobre a maneira de atuaccedilatildeo da causalidade teleoloacutegica A principal justificativa para a sua
inclusatildeo eacute como ressalta o autor o papel essencial que desempenha na completude das
descriccedilotildees e nas explicaccedilotildees dos fenocircmenos
1 O MODO DE ATUACcedilAtildeO DA CAUSALIDADE FINAL
Ao explicar os modos de causalidade atuantes no universo199
Peirce daacute tanto agrave causalidade
final quanto agrave causalidade eficiente praticamente a mesma importacircncia natildeo escondendo todavia
certa primazia da primeira Quando Peirce fala em causalidade final estaacute pensando na maneira
como foi definida por Aristoacuteteles
O significado da expressatildeo bdquocausa final‟ deve ser determinado pelo seu uso na
declaraccedilatildeo de Aristoacuteteles de que todas as causas se dividem em dois grandes
ramos o das eficientes ou eneacutergicas e o das ideais ou finais Se preservarmos a
verdade da declaraccedilatildeo devemos compreender por causa final o modo de realizar
fatos de acordo com o qual uma descriccedilatildeo geral do resultado eacute obtida quase sem
consideraccedilatildeo por qualquer compulsatildeo para ela se realizar deste ou daquele modo
particular embora o significado possa estar adaptado a um fim O resultado
geral deve ser realizado de um modo em uma vez e de outra em outra A causa
final natildeo determina em qual modo particular se realizaraacute mas unicamente que o
resultado teraacute um certo caraacuteter geral (CP 1 sect 211 1902)200
198 Aleacutem do texto citado ver tambeacutem HULSWIT 1997 1998 2001 e 2003 PAPE 1993 e 1997
199 Para uma discussatildeo da causalidade final no interior da semioacutetica ver SHORT 1981a 1982 e 1996
200 ldquoThe signification of the phrase final cause must be determined by its use in the statement of Aristotle that all
causation divides into two grand branches the efficient or forceful and the ideal or final If we are to conserve the
truth of that statement we must understand by final causation that mode of bringing facts about according to which a
general description of result is made to come about quite irrespective of any compulsion for it to come about in this
or that particular way although the means may be adapted to the end The general result may be brought about at one
time in one way and at another time in another way Final causation does not determine in what particular way it is
to be brought about but only that the result shall have a certain general characterrdquo (CP 1 sect 211 1902) Uma
144
Jaacute o significado de causa eficiente Peirce indica em outra passagem nos seguintes termos
A causalidade eficiente por outro lado eacute uma compulsatildeo determinada pela
condiccedilatildeo particular de coisas e eacute uma compulsatildeo agindo para fazer certa
situaccedilatildeo comeccedilar a mudar de uma forma perfeitamente determinada e seja qual
for o caraacuteter geral do resultado de modo algum diz respeito agrave causaccedilatildeo eficiente
Por exemplo eu atiro na asa de uma aacuteguia e uma vez que o meu propoacutesito - um
tipo especial de causa final ou ideal - eacute acertar a ave eu natildeo atiro diretamente
nela mas um pouco agrave sua frente tendo em conta a mudanccedila de posiccedilatildeo no
momento em que a bala chegar agravequela distacircncia Ateacute esse momento trata-se de
um caso de causaccedilatildeo final Mas apoacutes a bala sair do rifle o caso eacute entregue agrave
estuacutepida causalidade eficiente e se a aacuteguia fizer uma volta em outra direccedilatildeo a
bala natildeo alteraraacute sua trajetoacuteria em nada a causalidade eficiente natildeo tem qualquer
relaccedilatildeo com os resultados mas simplesmente obedece cegamente a ordens Eacute
verdade que a forccedila da bala estaacute em conformidade com uma lei e a lei eacute algo
geral Mas por isso mesmo a lei natildeo eacute uma forccedila Pois forccedila eacute compulsatildeo e
compulsatildeo eacute hic et nunc (CP 1 sect 212 1902)201
Embora sejam diametralmente opostas causa final e causa eficiente se relacionam de
maneira complementar Peirce enfatiza este aspecto nos seguintes termos
comparaccedilatildeo do conceito de causa final presente na obra peirceana com aquele presente na obra aristoteacutelica seraacute
realizada na pesquisa com a intenccedilatildeo de oferecer uma melhor compreensatildeo da definiccedilatildeo peirceana A despeito da
afirmaccedilatildeo de identidade entre uma definiccedilatildeo e outra estabelecido acima haacute elementos presentes na metafiacutesica
peirceana que sugerem alteraccedilotildees no conceito e invalidam essa identidade A investigaccedilatildeo desse toacutepico colocaraacute em
relevo essas diferenccedilas 201
Efficient causation on the other hand is a compulsion determined by the particular condition of things and is a
compulsion acting to make that situation begin to change in a perfectly determinate way and what the general
character of the result may be in no way concerns the efficient causation For example I shoot at an eagle on the
wing and since my purpose -- a special sort of final or ideal cause -- is to hit the bird I do not shoot directly at it
but a little ahead of it making allowance for the change of place by the time the bullet gets to that distance So far it
is an affair of final causation But after the bullet leaves the rifle the affair is turned over to the stupid efficient
causation and should the eagle make a swoop in another direction the bullet does not swerve in the least efficient
causation having no regard whatsoever for results but simply obeying orders blindly It is true that the force of the
bullet conforms to a law and the law is something general But for that very reason the law is not a force For force
is compulsion and compulsion is hic et nunc
145
Causalidade eficiente eacute aquele tipo de causalidade atraveacutes do qual as partes
compotildeem o todo causalidade final eacute aquele tipo de causalidade pelo qual o todo
chama por suas partes Causa final sem causa eficiente eacute inoacutecua um mero
chamar por partes eacute o que qualquer soldado ou homem pode fazer mas elas natildeo
viratildeo sem a causa eficiente Causa eficiente sem causa final entretanto eacute pior do
que inoacutecuo eacute mero caos e o caos natildeo eacute nem mesmo caos sem causa final eacute um
nada vazio (CP 1 sect 211 1902)202
A tarefa que nos propomos aqui eacute a de entender como Peirce um cientista familiarizado
com as principais teorias cientiacuteficas do seu tempo e formado dentro dos rigores do meacutetodo
experimental pocircde atribuir tal relevacircncia agrave causalidade final Ao mesmo tempo investigaremos
de que modo se daacute a atuaccedilatildeo deste tipo de causalidade na natureza segundo a concepccedilatildeo
peirceana Ou seja nosso objetivo eacute o de compreender o papel epistemoloacutegico e ontoloacutegico
desempenhado pela causa final no sistema peirceano
Uma das questotildees que conduziu inicialmente esta investigaccedilatildeo jaacute pode ser colocada se a
causalidade final eacute atuante em todo o universo e natildeo apenas nos fenocircmenos bioloacutegicos como ela
pode se manifestar sem a postulaccedilatildeo de um plano de criaccedilatildeo ou seja sem um reino de fins
Poder-se-ia julgar por meio da descriccedilatildeo oferecida da lei da mente ou causa final que a
sua aplicaccedilatildeo restringe-se ao acircmbito dos fenocircmenos mentais particularmente aos dos humanos A
fim de evitar esse equiacutevoco fazem-se necessaacuterias algumas palavras a respeito da distinccedilatildeo
elaborada por Peirce entre causa final e propoacutesito A causa final possui uma abrangecircncia muito
maior do que o propoacutesito sendo este apenas o tipo de causa final a que estamos mais habituados
Em um texto de 1902 Peirce esclarece que ldquoUm propoacutesito eacute um desejo operativordquo (CP 1 sect 205
1902)203
Ainda que para os seres humanos o propoacutesito se apresente como uma conduccedilatildeo
autocontrolada que mira algum ser in futuro que aparece como desejaacutevel quando consideramos a
202 Efficient causation is that kind of causation whereby the parts compose the whole final causation is that kind of
causation whereby the whole calls out its parts Final causation without efficient causation is helpless mere calling
for parts is what a Hotspur or any man may do but they will not come without efficient causation Efficient
causation without final causation however is worse than helpless by far it is mere chaos and chaos is not even so
much as chaos without final causation it is blank nothing 203
A purpose is an operative desire
146
atuaccedilatildeo da causa final em seu sentido mais amplo constatamos que o significado do termo natildeo
reteacutem nada de sua interpretaccedilatildeo psicoloacutegica
Os exemplos da atuaccedilatildeo da causa final satildeo muitos afirma Peirce No que tange ao
pensamento particularmente em sua atividade teoacuterico-criativa a presenccedila do ser in futuro como
um bdquoatrator‟ eacute inequiacutevoca Procedemos agrave verificaccedilatildeo de nossas candidatas a leis gerais por meio
de experimentos afirma Peirce Variamos gradualmente as condiccedilotildees de nossos experimentos
para constatar o que acontece Se estivermos no caminho errado uma enfaacutetica negativa faraacute com
que reconsideremos nossas hipoacuteteses de tal modo que em um longo prazo (a long run) elas se
tornaratildeo cada vez mais adequadas e corretas Ou seja ldquoIsto equivale a dizer que conjeturamos as
leis pedaccedilo por pedaccedilordquo (CP 1 sect 86 1896)204
Temos nesse ponto o retorno de uma outra questatildeo jaacute debatida no primeiro capiacutetulo desta
tese a justificaccedilatildeo oferecida pelo autor da presenccedila de um caraacuteter tatildeo marcadamente
antropomoacuterfico em suas explicaccedilotildees Como vimos Peirce salienta em algumas passagens que
isso natildeo poderia ser evitado sendo uma das caracteriacutesticas da nossa compreensatildeo do mundo e
marca de uma inteligecircncia que aprende com a experiecircncia O filoacutesofo chega ateacute mesmo a afirmar
que tudo que eacute racional deve ser antropomoacuterfico Como diz
Toda explicaccedilatildeo cientiacutefica de um fenocircmeno natural eacute uma hipoacutetese de que haacute
alguma coisa na natureza agrave qual a razatildeo humana eacute anaacuteloga e que realmente eacute
assim todo o sucesso da ciecircncia em suas aplicaccedilotildees para a conveniecircncia humana
satildeo testemunhas (CP 1 sect 316 1903)205
Eacute natural portanto que as teorias explicativas dos processos que ocorrem na natureza
tenham a marca do humano A proacutepria noccedilatildeo de causalidade diz Peirce expressa essa
204 This is to say we guess out the laws bit by bit
205 Every scientific explanation of a natural phenomenon is a hypothesis that there is something in nature to which
the human reason is analogous and that it really is so all the success of science in its application to human
convenience are witness
147
caracteriacutestica do pensamento inteligiacutevel ele afirma que sua origem ldquo() estaacute em nossa tendecircncia
a procurar relaccedilotildees na natureza anaacutelogas agraves relaccedilotildees intelectuaisrdquo (MS 963 c1893)206
Como
afirma Hulswit
() todas as ideias teoacutericas de um modo ou de outro se originam e se referem agrave
experiecircncia humana Se assim natildeo o fizessem elas natildeo teriam sentido ora se
elas tecircm que ter algum sentido deve haver algum tipo de relaccedilatildeo entre elas e
nossa experiecircncia humana cotidiana Consequentemente longe de ser um
problema o antropomorfismo eacute uma necessidade pura (HULSWIT 1996 p
184)
A elaboraccedilatildeo de teorias que espelham aquilo que eacute familiar aos seres humanos natildeo pode ser
considerada dessa maneira como um defeito da proposta peirceana mas deve ser entendida
como um requisito necessaacuterio agravequilo que pode ser compreendido como objeto da inteligibilidade
humana Uma consequecircncia podemos dizer da hipoacutetese que fundamenta a atividade cientiacutefica
que eacute a de considerar que o mundo eacute em princiacutepio passiacutevel de ser conhecido racionalmente ndash
uma esperanccedila reguladora para o exerciacutecio de toda investigaccedilatildeo
O modelo que nos eacute mais familiar da atuaccedilatildeo da causalidade final eacute a accedilatildeo propositada que
naturalmente eacute realizada com o objetivo de se obter algum resultado No entanto nos adverte o
autor este eacute apenas um tipo de causa final e natildeo o mais expressivo mas mesmo ele jaacute coloca em
evidecircncia a primeira caracteriacutestica que Peirce atribui agrave causa final e que natildeo eacute reconhecida pelos
detratores dessa noccedilatildeo ela a causa final natildeo eacute nunca um fato concreto mas eacute sempre geral
Consideraacute-la como um evento concreto no futuro que exerce uma influecircncia sobre o desenrolar
dos processos de acontecimentos do presente dirigindo-os para um determinado fim eacute um erro
categorial
Podemos nos perguntar todavia quais as consequecircncias dessa caracterizaccedilatildeo da noccedilatildeo de
206 () has its origin in our tendency to seek relations in nature analogous to intellectual relations
148
causa final como um geral A resposta a esta pergunta envolve a dissoluccedilatildeo de certa confusatildeo
presente na ideia de causalidade final que a perspectiva cientiacutefica moderna adotou Esta noccedilatildeo
aparece aos cientistas e filoacutesofos da ciecircncia como sendo possuidora de trecircs caracteriacutesticas que a
torna incompatiacutevel com os criteacuterios de cientificidade vigentes e refrataacuteria aos seus procedimentos
de teste Segundo esta perspectiva a causa final possuiria trecircs caracteriacutesticas intrataacuteveis e
inaceitaacuteveis do ponto de vista cientiacutefico em primeiro lugar ela teria como condiccedilatildeo para sua
atuaccedilatildeo a existecircncia de eventos individuais e concretos no futuro que em segundo lugar
exerceriam algum tipo de influecircncia causal sobre o presente determinando em terceiro lugar um
curso preciso de accedilatildeo a fim de que pudessem ser realizados (cf HULSWIT 1996 p 200-2)
Vejamos em que medida essas caracteriacutesticas podem ser de fato atribuiacutedas agrave noccedilatildeo de causa final
que extraiacutemos da obra do filoacutesofo Como foi indicado acima Peirce nega que exista qualquer
evento no futuro constituinte da causa final Ela eacute sempre um geral e como tal difere
categoricamente dos eventos que podem ser classificados no acircmbito dos fatos individuais e
concretos
Um exemplo simples talvez possa ser de alguma ajuda para iluminar o que Peirce estaacute
afirmando Retomando o caso da accedilatildeo humana propositada podemos dizer que a causa final natildeo
eacute o proacuteprio objetivo da accedilatildeo que natildeo passa de um desejo operativo nas palavras de Peirce mas
eacute antes uma certa classe de objetos que possuem certo tipo geral de caracteriacutesticas Assim se o
desejo que me move eacute o de tomar um sorvete a causa final natildeo seria o proacuteprio desejo mas uma
classe geral na qual os sorvetes estatildeo subsumidos Ainda que possamos especificar o quanto
quisermos o tipo de sorvete o sabor a procedecircncia os modos de fabricaccedilatildeo ainda assim
continuariacuteamos a ter como atrator da nossa accedilatildeo certa classe geral dificilmente um objeto
definido e concreto
Em segundo lugar207
embora as causas finais natildeo sejam eventos futuros elas exercem certa
influecircncia a partir do futuro eacute preciso natildeo esquecer que a distinccedilatildeo entre passado presente e
207 Aqui discordamos da interpretaccedilatildeo de Hulswit que nega a possibilidade de atribuir agrave causalidade final qualquer
tipo de influecircncia sobre o presente a partir do futuro Em sua concepccedilatildeo as causas finais satildeo ldquogeneral types which
may be realized in the future These general types are no actual existences but general (physical) possibilities for
149
futuro realizada por Peirce deixa claro que cada momento estaacute imerso em um fluxo contiacutenuo
cujas fronteiras natildeo estatildeo determinadas de forma precisa e absoluta O modo de efetivaccedilatildeo dessas
trecircs componentes do tempo eacute no entanto bastante diferente O passado se impotildee e determina
natildeo de maneira absoluta o modo que o presente se efetiva a essa influecircncia Peirce daacute o nome de
Obsistecircncia (sugerindo como indica o autor obviar objeto obstinado obstaacuteculo insistecircncia
resistecircncia etc) O presente se efetiva como possibilidade sempre aberta ao novo Peirce atribui
o nome de Originalidade que eacute ser tal como aquele ser eacute independentemente de qualquer outra
coisa O modo de efetivaccedilatildeo do futuro eacute a Transuasatildeo (sugerindo translaccedilatildeo transfusatildeo
transcendental etc) eacute mediaccedilatildeo ou a modificaccedilatildeo da originalidade e da obsistecircncia pela
mediaccedilatildeo
Se existisse apenas a atuaccedilatildeo do passado na determinaccedilatildeo dos eventos presentes teriacuteamos
um mundo bastante diferente do atual no qual as regularidades seriam absolutas o que equivale a
dizer que das mesmas causas os mesmos efeitos seguir-se-iam formando um sistema
perfeitamente adequado agrave descriccedilatildeo mecanicista Fosse o presente absolutamente indeterminado
teriacuteamos apenas a manifestaccedilatildeo de potencialidades absolutamente livres sem a possibilidade de
estabelecimento de qualquer relaccedilatildeo entre duas ou mais realizaccedilotildees que ademais nem mesmo
poderiam ser descritas como espaciais ou temporais que satildeo formas de mediaccedilatildeo e portanto
expressotildees do geral Em uma palavra teriacuteamos o caos o mesmo que Peirce descreve como
condiccedilatildeo original e necessaacuteria do cosmo Essas satildeo imagens possiacuteveis e ateacute mesmo coerentes
mas inadequadas para a descriccedilatildeo do mundo que a experiecircncia nos revela estar em constante
processo de vir a ser descrito por Peirce como evolucionaacuterio ou em crescimento A atuaccedilatildeo da
causalidade final eacute uma hipoacutetese necessaacuteria para podermos compreender o desenvolvimento dos
processos naturais A mediaccedilatildeo que a ideia geral realiza entre a imposiccedilatildeo cega do passado e a
originalidade ilimitada do presente eacute sintetizada pelo autor na ideia de um ser in futuro Nas
palavras de Peirce
future realizationrdquo (HULSWIT 1996 P 185) Embora reconheccedilamos a dificuldade em integrar esta caracteriacutestica a
uma visatildeo cientificamente aceitaacutevel da noccedilatildeo natildeo podemos ignorar as declaraccedilotildees enfaacuteticas encontradas nos textos
de Peirce acerca da realidade da influecircncia que o futuro exerce sobre o desenrolar dos acontecimentos no presente
150
Vamos agora considerar o ser in futuro Como em outros casos isto eacute apenas
uma avenida que leva a uma apreensatildeo mais pura do elemento que ele conteacutem
Uma concepccedilatildeo absolutamente pura de uma categoria estaacute fora de questatildeo Ser
in futuro aparece em formas mentais intenccedilotildees e expectativas A memoacuteria nos
fornece um conhecimento do passado por uma espeacutecie de forccedila bruta uma accedilatildeo
bastante binaacuteria sem qualquer raciociacutenio Mas todo o nosso conhecimento do
futuro eacute obtido por meio de outra coisa (CP 2 sect 88 1902)208
O ser in futuro eacute deixemos claro fundamental para a possibilidade de constituiccedilatildeo efetiva
de uma ciecircncia que possa natildeo apenas explicar o mundo da nossa experiecircncia presente mas
tambeacutem servir de guia ao estabelecimento da nossa conduta autocontrolada
Peirce indica que o modo de efetivaccedilatildeo da causa final eacute semelhante ao de uma sugestatildeo ou
inclinaccedilatildeo nunca determina o modo exato por meio do qual o resultado desejado seraacute obtido Em
suas palavras
Por uma tendecircncia a um fim quero dizer que um determinado resultado seraacute
realizado ou aproximado de tal maneira que se dentro de certos limites sua
realizaccedilatildeo por meio de uma linha de causalidade mecacircnica for impedida ele seraacute
realizado ou aproximado por uma linha independente de causalidade mecacircnica
(NEM 4 p 66 1902)209
208 Let us now take up being in futuro As in the other cases this is merely an avenue leading to a purer apprehension
of the element it contains An absolutely pure conception of a Category is out of the question Being in futuro appears
in mental forms intentions and expectations Memory supplies us knowledge of the past by a sort of brute force a
quite binary action without any reasoning But all our knowledge of the future is obtained through the medium of
something else 209
By a tendency to an end I mean that a certain result will be brought about or approached and in such a way that
if within limits its being brought about by one line of mechanical causation be prevented it will be brought about
or approached by an independent line of mechanical causation
151
2 CAUSALIDADE FINAL E CAUSALIDADE EFICIENTE
A noccedilatildeo de causalidade assumida pelo filoacutesofo eacute claramente mais ampla do que aquela
restrita agrave causalidade eficiente Hulswit indica que ele retoma o sentido original de causa tal
como definido por Aristoacuteteles de acordo com quem uma causa eacute algum tipo de condiccedilatildeo sem a
qual uma coisa natildeo seria o que eacute A causa final dessa maneira eacute determinante do modo de vir a
ser das coisas Ou seja constitui um elemento indispensaacutevel para a criaccedilatildeo de um mundo ndash o da
nossa experiecircncia ndash que se encontra a meio caminho entre a rigidez intransigente e esteacuteril do
mecanicismo e a pura espontaneidade do caos
Como indicado no capiacutetulo sobre evoluccedilatildeo uma das motivaccedilotildees para o desenvolvimento de
uma abordagem teleoloacutegica por parte de Peirce foi a constataccedilatildeo da existecircncia dos assim
chamados fenocircmenos irreversiacuteveis descritos pela termodinacircmica A insuficiecircncia da mecacircnica
claacutessica se mostrava patente no tratamento deste tipo de fenocircmeno Como diz o filoacutesofo
Essas accedilotildees natildeo conservativas que parecem violar a lei de energia e que a fiacutesica
sempre explica como sendo devidas agrave accedilatildeo ao acaso entre trilhotildees de moleacuteculas
satildeo cada uma e todas marcadas por dois caracteres A primeira eacute que eles atuam
em uma direccedilatildeo determinada e tendem assintoticamente em direccedilatildeo agrave realizaccedilatildeo
de um estado uacuteltimo de coisas Se teleoloacutegica eacute uma palavra muito forte para
aplicar a eles podemos inventar a palavra finista para expressar a sua tendecircncia
em direccedilatildeo a um estado final A outra caracteriacutestica das accedilotildees natildeo conservativas
eacute que elas satildeo irreversiacuteveis (CP 7 sect 471 1898)210
As accedilotildees teleoloacutegicas ou finistas como denomina Peirce possuem desse modo duas
caracteriacutesticas elas tendem para um estado final de coisa e elas satildeo irreversiacuteveis Estaacute impliacutecita
aqui uma espeacutecie de superioridade da causa final em relaccedilatildeo agrave causa eficiente A primeira
210 Those non-conservative actions which seem to violate the law of energy and which physics explains away as due
to chance action among trillions of molecules are one and all marked by two characters The first is that they act in
one determinate direction and tend asymptotically toward bringing about an ultimate state of things If teleological is
too strong a word to apply to them we might invent the word finious to express their tendency toward a final state
The other character of non-conservative action is that they are irreversible
152
controla a uacuteltima afim de que um resultado com certo caraacuteter geral seja obtido Ou dito de outra
maneira as causas finais determinam as causas eficientes de tal modo que elas proacuteprias (as
causas finais) se realizem As ideias diz o autor possuem a capacidade de criar as condiccedilotildees para
a sua realizaccedilatildeo Segundo o texto
Desse modo quer aceite ou natildeo a opiniatildeo vocecirc deve ver que eacute uma opiniatildeo
perfeitamente inteligiacutevel a de que as ideias natildeo satildeo meras criaccedilotildees desta ou
daquela mente mas pelo contraacuterio tecircm um poder de encontrar ou criar os seus
veiacuteculos e tendo-os encontrado conferem-lhes a capacidade de transformar a
face da terra (CP 1 sect 217 1902)211
Vemos assim que a causa final definida dessa forma estaacute em estreita relaccedilatildeo com a ideia
a que Peirce se referia por meio da expressatildeo ldquolei da menterdquo Ele afirma que a lei da mente
apenas torna um certo sentimento mais provaacutevel (likely) Em outras palavras podemos dizer que
a lei da mente inclina o curso futuro dos eventos a uma certa direccedilatildeo sem contudo determinaacute-lo
Como afirma Peirce ldquoA causa final natildeo determina de que modo particular algo se realizaraacute mas
unicamente que o resultado teraacute um certo caraacuteter geralrdquo (CP 1 sect 211 1902)212
Eacute a causa final
diz Peirce que atribui existecircncia a um objeto de uma classe Natildeo devemos todavia entender essa
atribuiccedilatildeo como algum tipo de produccedilatildeo miraculosa Eacute o proacuteprio autor que esclarece em qual
sentido preciso entende essa atribuiccedilatildeo ldquoO que eu entendo pela ideia conferindo existecircncia aos
membros individuais de uma classe eacute que ela lhes confere o poder de produzir resultados neste
mundo que ela lhes confere equivale dizer existecircncia orgacircnica ou em uma palavra vidardquo (CP
1 sect 220 1902)213
Para tornar mais evidente a ideia de que a causa final eacute uma espeacutecie de lei viva Peirce
211 Thus whether you accept the opinion or not you must see that it is a perfectly intelligible opinion that ideas are
not all mere creations of this or that mind but on the contrary have a power of finding or creating their vehicles and
having found them of conferring upon them the ability to transform the face of the earth 212
Final causation does not determine in what particular way it is to be brought about but only that the result shall
have a certain general character 213
What I mean by the ideas conferring existence upon the individual members of the class is that it confers upon
them the power of working out results in this world that it confers upon them that is to say organic existence or in
one word life
153
apresenta um exemplo que foca a distinccedilatildeo entre o homem e a mateacuteria que o compotildee Essa
distinccedilatildeo se cristaliza na frase ldquoum homem eacute uma onda mas natildeo um voacuterticerdquo (CP 1 sect 220
1902)214
Ainda que ele seja indissociaacutevel das partiacuteculas que o compotildee nem todas as
propriedades que lhe podem ser atribuiacutedas satildeo adequadas a elas Vejamos o exemplo fornecido
por Peirce
Tome um cadaacutever disseque-o mais perfeitamente do que jamais foi dissecado
Tome todo o sistema de veias sanguiacuteneas como noacutes as vemos desenhadas nos
livros Trate o sistema de nervos espinal e simpateacutetico o sistema alimentar com
os seus adjuvantes o sistema muscular o sistema oacutesseo da mesma maneira
Coloque-os todos em uma cabine de tal modo que de um certo ponto de vista
cada um aparece superposto ao outro em seu lugar proacuteprio Este seria um
espeacutecime singularmente instrutivo Mas chamaacute-lo de homem seria algo que
ningueacutem faria ou sonharia nem mesmo por um instante Todavia a melhor
definiccedilatildeo que poderia ser elaborada seria uma dissecaccedilatildeo similar Ela realmente
natildeo atuaria no mundo como o objeto definido faria Isto nos habilita a ver como
as coisas funcionam na medida em que nos mostra a causa eficiente A causa
final que caracteriza o definitum natildeo eacute abordada (CP 1 sect 220 1902)215
A partir deste exemplo Peirce aprofunda a distinccedilatildeo entre causa eficiente e causa final que
jaacute indicamos anteriormente A causa eficiente eacute aquela na qual as partes compotildeem o todo
enquanto na causa final percebemos o todo chamando por suas partes (cf CP 1 sect 220 1902)
Como indica Silveira ldquo() o que o cosmo evolucionaacuterio exige para se efetivar na organizaccedilatildeo
crescente que o define eacute a presenccedila de duas causas cujo modo de operar eacute reciprocamente
inverso causa final e causa eficienterdquo (SILVEIRA 1985 p 8) Assim sob a atuaccedilatildeo da lei de
214 A man is a wave but not a vortex
215 Take a corpse dissect it more perfectly than it ever was dissected Take out the whole system of blood vessels
entire as we see them figured in the books Treat the whole systems of spinal and sympathetic nerves the alimentary
canal with its adjuvants the muscular system the osseous system in the same way Hang these all in a cabinet so
that from a certain point of view each appears superposed over the others in its proper place That would be a
singularly instructive specimen But to call it a man would be what nobody would for an instant do or dream Now
the best definition that ever was framed is at best but a similar dissection It will not really work in the world as the
object defined will It will enable us to see how the thing works in so far as it shows the efficient causation The final
causation which is what characterizes the definitum it leaves out of account
154
aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um contiacutenuo crescimento da uniformidade a partir das
formas diferenciadas Como indica o autor
Mas as mudanccedilas divergentes agrave lei estatildeo agindo perpetuamente a fim de
aumentar a variedade do mundo e satildeo controladas por um tipo de seleccedilatildeo
natural ou de qualquer outro tipo de tal forma que o resultado geral deve ser
descrito como bdquoheterogeneidade organizada‟ ou melhor bdquovariedade racionalizada‟
(CP 6 sect 23 1891)216
A ideia ou causa final atuaria desse modo como um atrator para a realizaccedilatildeo de um
determinado curso de eventos inclinando agrave realizaccedilatildeo de acontecimentos que se processariam em
funccedilatildeo de um ser in futuro Esta atraccedilatildeo pode ser entendida como um criteacuterio para a seleccedilatildeo das
hipoacuteteses a serem testadas no caso de um processo de investigaccedilatildeo ou dos caminhos ou
estrateacutegias a serem adotados para a realizaccedilatildeo de qualquer objetivo praacutetico A sua atuaccedilatildeo se
manifesta natildeo soacute na eleiccedilatildeo dos modos de conduta racional e autocontrolada do homem mas estaacute
presente tambeacutem ainda que de forma degenerada na determinaccedilatildeo de qualquer evento natural
como por exemplo na determinaccedilatildeo do curso que a aacutegua da chuva percorre ao descer uma
montanha A maneira pela qual o futuro atua sobre o presente se distingue daquela efetuada pelo
passado O passado atua de maneira direta dualista enquanto o futuro necessita de um meio ou
uma maquinaria como diz o autor atraveacutes do qual possa exercer sua influecircncia Silveira
esclarece que ldquoenquanto esta uacuteltima [causa eficiente] atualiza-o pela forccedila a primeira [causa
final] muito mais genuiacutena faz derivar o proacuteprio cosmo de uma ideia antecipa o todo agraves partes
cabendo agrave causa eficiente a composiccedilatildeo efetiva ndash e de algum modo defectiva ndash do todo pela
accedilatildeo reciacuteproca das partesrdquo (SILVEIRA 1985 p 8)
Neste contexto cabem algumas palavras sobre a ceacutelebre imagem do xerife e do tribunal
216 But the chance divergences from law are perpetually acting to increase the variety of the world and are checked
by a sort of natural selection and otherwise (for the writer does not think the selective principle sufficient) so that the
general result may be described as organized heterogeneity or better rationalized variety
155
criada por Peirce para a explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre causalidade final e causalidade eficiente
ressaltando a sua complementaridade
A Lei sem a forccedila para se fazer cumprir seria como um tribunal sem um xerife e
todas as suas decisotildees seriam apenas ditos arrogantes (CP 1 sect 212 1902) () O
tribunal natildeo pode ser imaginado sem um xerife Causalidade final natildeo pode ser
imaginada sem causalidade eficiente mas nenhum pouquinho a menos naquele
exemplo satildeo os seus modos de accedilatildeo contraacuterios polares O xerife ainda teria seu
punho mesmo que natildeo houvesse nenhum tribunal mas uma causa eficiente
destacada de uma causa final na forma de uma lei nem sequer possuiria
eficiecircncia ela pode exercitar-se e algo pode seguir post hoc mas natildeo propter
hoc pois propter implica regularidade potencial (CP 1 213 1902)217
A implicaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo acima eacute a de que natildeo haacute em nenhum acircmbito dos processos
naturais qualquer ato de causaccedilatildeo que natildeo contenha ao mesmo tempo componentes causais
eficientes e finais Peirce eacute mais expliacutecito em outra passagem utilizando a mesma imagem do
xerife e do tribunal
A lei da natureza entregue a si mesma seria bastante semelhante a um tribunal
sem um xerife Um tribunal em tal situaccedilatildeo poderia ser capaz de induzir algum
cidadatildeo a atuar como um xerife mas ateacute que ela tenha se provido de um oficial
que ao contraacuterio de si natildeo poderia discursar com autoridade mas que poderia
estender o braccedilo forte sua lei poderia ser a perfeiccedilatildeo da razatildeo humana mas
permaneceria meros fogos de artifiacutecio brutum Fulmen (CP 5 sect 48 1903)218
217 Law without force to carry it out would be a court without a sheriff and all its dicta would be vaporings () The
court cannot be imagined without a sheriff Final causality cannot be imagined without efficient causality but no
whit the less on that account are their modes of action polar contraries The sheriff would still have his fist even if
there were no court but an efficient cause detached from a final cause in the form of a law would not even possess
efficiency it might exert itself and something might follow post hoc but not propter hoc for propter implies
potential regularity 218
A law of nature left to itself would be quite analogous to a court without a sheriff A court in that predicament
might probable be able to induce some citizen to act as a sheriff but until it had so provided with an officer who
unlike itself could not discourse authoritatively but who could put forth the strong arm its law might be the
perfection of human reason but remain mere fireworks brutum fulmen
156
A metaacutefora distingue claramente o tribunal e o xerife o primeiro toma decisotildees e o segundo
as executa O tribunal guia e direciona e o xerife age Como indica Potter
Juntos eles obtecircm a ordem e mantecircm a paz separados um eacute impotente e o outro
brutal Natildeo obstante nem o tribunal nem o xerife satildeo imaginaacuteveis a natildeo ser em
referecircncia de um com o outro e contudo eles e suas atividades permanecem
sempre claramente distintos Da mesma forma acontece com causalidade
eficiente e final (POTTER 1997 p114)
Para sermos mais precisos com a concepccedilatildeo peirceana em cada ato causal estatildeo envolvidos
trecircs elementos causa eficiente causa final e acaso Temos aqui portanto o modo de vir a ser de
tudo o que eacute em outras palavras este eacute o princiacutepio de individuaccedilatildeo Natildeo poderia dessa maneira
existir fenocircmenos puramente mecacircnicos no cosmo peirceano pois tal possibilidade entraria em
confronto com a proacutepria tese da continuidade criando uma dualidade que natildeo pode ser
consistentemente integrada ao sistema Peirce diz que
O sinequismo mesmo em suas formas menos robustas nunca poderaacute tolerar o
dualismo propriamente assim denominado Ele natildeo quer exterminar a
concepccedilatildeo de duplicidade nem pode qualquer um desses malucos que pregam
cruzadas filosoacuteficas contra esta ou aquela concepccedilatildeo fundamental encontrar o
menor conforto nesta doutrina Mas o dualismo em seu mais amplo e legiacutetimo
significado como a filosofia que realiza as suas anaacutelises com um machado
deixando como elementos finais pedaccedilos do ser sem qualquer relaccedilatildeo isto eacute o
mais hostil ao sinequismo Em particular o sinequista natildeo admitiraacute que os
fenocircmenos fiacutesicos e psiacutequicos sejam inteiramente distintos - seja como
pertencendo a diferentes categorias de substacircncia ou como lados inteiramente
separados de um escudo - mas insistiraacute que todos os fenocircmenos satildeo de um soacute
caraacuteter embora alguns sejam mais mentais e espontacircneos outros mais materiais
e regulares Ainda assim todos similarmente apresentam aquela mistura de
liberdade e restriccedilatildeo que permite que eles sejam ou melhor faz com que sejam
teleoloacutegicos ou propositados (CP 7 sect 570 1892)219
219 Synechism even in its less stalwart forms can never abide dualism properly so called It does not wish to
exterminate the conception of twoness nor can any of these philosophic cranks who preach crusades against this or
that fundamental conception find the slightest comfort in this doctrine But dualism in its broadest legitimate
meaning as the philosophy which performs its analyses with an axe leaving as the ultimate elements unrelated
chunks of being this is most hostile to synechism In particular the synechist will not admit that physical and
157
Como Peirce deixa claro em outra passagem eacute da mistura da restriccedilatildeo com a liberdade que
os fenocircmenos teleoloacutegicos surgem Ele diz que esta ldquomistura de liberdade e restriccedilotildeesrdquo acarreta
ldquoresultados teleoloacutegicos inevitaacuteveisrdquo (EP 1 p 236 1885)220
A combinaccedilatildeo dos trecircs fatores eacute a
chave para se compreender a consequecircncia que Peirce indica ser a caracteriacutestica mais presente
em todos os fenocircmenos naturais qual seja a variaccedilatildeo que se processa dentro de certos limites e
que eacute o germe que possibilita a criaccedilatildeo de tudo que eacute novo e original O autor indica em outro
texto
Eacute curioso como certos fatos nos escapam porque satildeo tatildeo penetrantes e
onipresentes exatamente como os antigos imaginavam que a muacutesica das esferas
natildeo era ouvida porque era ouvida o tempo todo Mas seraacute que algueacutem
gentilmente natildeo diraacute ao resto do auditoacuterio qual eacute o caraacuteter mais marcante e
intrusivo da natureza Eacute claro que me refiro agrave sua variedade (CP 1 sect 159
1897)221
A variaccedilatildeo fruto da atuaccedilatildeo do acaso como jaacute ficou claro no primeiro capiacutetulo desta tese
natildeo eacute uma ocorrecircncia rara que surge vez ou outra no curso dos eventos mas estaacute presente em
toda atualizaccedilatildeo que se processa deste modo em funccedilatildeo das imposiccedilotildees cegas do passado das
restriccedilotildees criadas pela lei e da manifestaccedilatildeo da livre espontaneidade Peirce eacute enfaacutetico ao
descrever a tessitura da realidade
Assim pela admissatildeo da espontaneidade pura ou vida como uma caracteriacutestica
do universo agindo sempre e em toda parte embora contida dentro dos estreitos
psychical phenomena are entirely distinct -- whether as belonging to different categories of substance or as entirely
separate sides of one shield -- but will insist that all phenomena are of one character though some are more mental
and spontaneous others more material and regular Still all alike present that mixture of freedom and constraint
which allows them to be nay makes them to be teleological or purposive 220
Mixture of freedom and constraint () inevitable teleological results 221
It is curious how certain facts escape us because they are so pervading and ubiquitous just as the ancients
imagined the music of the spheres was not heard because it was heard all the time But will not somebody kindly tell
the rest of the audience what is the most marked and obtrusive character of nature Of course I mean the variety of
nature
158
limites da lei produzindo continuamente divergecircncias infinitesimais da lei e as
grandes com infinita infrequecircncia dou conta de toda a variedade e diversidade
do universo no uacutenico sentido em que o realmente sui generis e o novo pode ser
compreendido A visatildeo comum tem que admitir a inesgotaacutevel e incontaacutevel
variedade do mundo tem que admitir que a sua lei mecacircnica natildeo pode
minimamente dar conta disso que a variedade pode brotar apenas da
espontaneidade e ainda nega sem qualquer evidecircncia ou razatildeo a existecircncia
desta espontaneidade ou entatildeo a remete de volta para o iniacutecio do tempo e supotildee-
na morta desde entatildeo A loacutegica superior do meu ponto de vista natildeo me parece
facilmente refutada (CP 6 sect 59 1892)222
Peirce refere-se aos infinitesimais nesta passagem como vimos no capiacutetulo sobre a
continuidade Natildeo eacute possiacutevel compreender adequadamente a noccedilatildeo de continuum sem
introduzirmos a noccedilatildeo de infinitesimal nessas duas noccedilotildees estaacute implicada a relaccedilatildeo entre a lei e o
acaso entre a regularidade e a espontaneidade Como jaacute mencionamos acima eacute dessa relaccedilatildeo que
a causa final surge Em um texto de 1898 Peirce traccedila a relaccedilatildeo aqui indicada
O que eacute possiacutevel eacute na mesma medida geral e como geral deixa de ser
individual Assim lembrando que a palavra potencial significa indeterminado
contudo ainda capaz de determinaccedilatildeo em qualquer caso especial pode haver um
agregado potencial de todas as possibilidades que satildeo consistentes com certas
condiccedilotildees gerais e isso pode ser tal que dado qualquer coleccedilatildeo de indiviacuteduos
distintos seja qual for a partir daquele agregado potencial pode ser realizado
uma coleccedilatildeo mais numerosa do que a coleccedilatildeo dada Assim o potencial agregado
eacute com a mais estrita exatidatildeo maior em magnitude do que qualquer magnitude
possiacutevel de indiviacuteduos Mas sendo apenas um agregado potencial ele natildeo
conteacutem quaisquer indiviacuteduos Ele conteacutem apenas as condiccedilotildees gerais que
permitem a determinaccedilatildeo dos indiviacuteduos (CP 6 sect 185 1898)223
222 By thus admitting pure spontaneity or life as a character of the universe acting always and everywhere though
restrained within narrow bounds by law producing infinitesimal departures from law continually and great ones
with infinite infrequency I account for all the variety and diversity of the universe in the only sense in which the
really sui generis and new can be said to be accounted for The ordinary view has to admit the inexhaustible
multitudinous variety of the world has to admit that its mechanical law cannot account for this in the least that
variety can spring only from spontaneity and yet denies without any evidence or reason the existence of this
spontaneity or else shoves it back to the beginning of time and supposes it dead ever since The superior logic of my
view appears to me not easily controverted 223
That which is possible is in so far general and as general it ceases to be individual Hence remembering that the
word potential means indeterminate yet capable of determination in any special case there may be a potential
159
A causalidade teleoloacutegica na concepccedilatildeo peirceana possui uma caracteriacutestica de
criatividade que a distingue de outras concepccedilotildees em particular da de Aristoacuteteles como veremos
abaixo A criatividade do processo de qualquer crescimento seja ela o de uma ideia na mente de
um investigador ou do proacuteprio cosmo eacute descrito perfeitamente pelo termo evoluccedilatildeo que como jaacute
foi indicado natildeo eacute nada mais do que um princiacutepio loacutegico Faremos agora uma retomada de
algumas das caracteriacutesticas mais marcantes do processo evolutivo descrito por Peirce e nos
concentraremos naquele denominado de agapasmo por se tratar da forma original de evoluccedilatildeo
3 CAUSA FINAL E EVOLUCcedilAtildeO ndash AacuteGAPE OU O AMOR CRIATIVO
Para melhor ilustrar a presenccedila da causa final no cosmo podemos lembrar que a sua
atuaccedilatildeo natildeo eacute outra coisa que a evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902) Nota-se na formulaccedilatildeo
peirceana um alargamento das fronteiras tradicionalmente consideradas como limitantes da accedilatildeo
da evoluccedilatildeo Natildeo soacute o reino orgacircnico cresce com a evoluccedilatildeo mas todo o cosmo assim procede
Peirce procuraraacute montar um quadro teoacuterico no qual a evoluccedilatildeo eacute o aspecto marcante de todos os
acontecimentos nos mais variados campos
A evoluccedilatildeo pode ser aplicada ateacute mesmo agrave proacutepria causa final no texto A lei da mente de
1892 Peirce caracteriza a teleologia como tambeacutem submetida a um processo de desenvolvimento
(developmental) indicando que no processo de atuaccedilatildeo da causa final o tipo geral de resultado
pode sofrer alteraccedilotildees em funccedilatildeo das variaccedilotildees surgidas na experiecircncia como indica Hausman
aggregate of all the possibilities that are consistent with certain general conditions and this may be such that given
any collection of distinct individuals whatsoever out of that potential aggregate there may be actualized a more
multitudinous collection than the given collection Thus the potential aggregate is with the strictest exactitude
greater in multitude than any possible multitude of individuals But being a potential aggregate only it does not
contain any individuals at all It only contains general conditions which permit the determination of individuals
160
esta eacute ldquoA visatildeo de que existem propoacutesitos que podem evoluir espontaneamenterdquo (HAUSMAN
1993 p 175) Tomando como exemplo de evoluccedilatildeo a constituiccedilatildeo da personalidade de um
indiviacuteduo Peirce afirma que
() ela implica uma harmonia teleoloacutegica nas ideias e no caso da personalidade
esta teleologia eacute mais do que uma mera procura propositada de um fim preacute-
determinado eacute uma teleologia em desenvolvimento Este eacute o caraacuteter pessoal A
ideia geral viva e consciente agora jaacute eacute determinante de atos no futuro em uma
medida que natildeo eacute agora consciente (CP 6 sect 156 1892)224
Natildeo obstante o propoacutesito natildeo pode ser estaacutetico pois o desenvolvimento em conformidade
com um propoacutesito preacute-determinado seria contraacuterio agrave proacutepria noccedilatildeo de processo criativo que
caracteriza segundo Peirce a atuaccedilatildeo da causalidade final Caso o propoacutesito se mantivesse
inalterado natildeo teriacuteamos nada aleacutem do que um desenvolvimento mecacircnico o que eliminaria a
proacutepria possibilidade de constituiccedilatildeo da personalidade como algo em desenvolvimento em
crescimento e vivo Embora Peirce na passagem acima esteja se referindo ao desenvolvimento
da personalidade humana eacute possiacutevel estender esta caracterizaccedilatildeo para todos os fenocircmenos
teleoloacutegicos variando sua atuaccedilatildeo exclusivamente em funccedilatildeo dos graus de liberdade que lhes
sejam inerentes Quanto mais livre ou seja quanto mais autocontrolado for um sistema mais
variaccedilatildeo pode existir no desenvolvimento de uma certa finalidade mas isso natildeo exclui a
possibilidade que mesmo no acircmbito da cosmologia as causas finais isto eacute as leis gerais de
desenvolvimento possam ser alteradas pela accedilatildeo do acaso Como indica Short ldquoA causaccedilatildeo final
desse modo resulta natildeo na uniformidade morta de um uacutenico plano mas na heterogeneidade
imprevisiacutevel de empresas personalidades e espeacutecies que preenchem o nosso mundordquo (SHORT
1994 p 406)
224 () it implies a teleological harmony in ideas and in the case of personality this teleology is more than a mere
purposive pursuit of a predeterminate end it is a developmental teleology This is personal character A general idea
living and conscious now it is already determinative of acts in the future to an extent to which it is not now
conscious
161
Enquanto a variaccedilatildeo fruto do acaso absoluto eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria para a evoluccedilatildeo
como jaacute vimos a proacutepria evoluccedilatildeo parece pressupor um outro agente como determinante do seu
processo de desenvolvimento A tal agente Peirce daacute o nome de Aacutegape Consciente das
limitaccedilotildees do tiquismo extraiacutedo da teoria de Darwin o filoacutesofo procura desenvolver uma noccedilatildeo
de evoluccedilatildeo mais geral tendo por base a evoluccedilatildeo do tipo lamarckiano Como aponta Hausman
O agente da evoluccedilatildeo distinto do agente do desvio da diversidade e da
complexidade sozinha tem uma funccedilatildeo teleoloacutegica ndash natildeo para uma teleologia do
tipo tradicional do tempo de Peirce mas uma teleologia em desenvolvimento
uma teleologia de acordo com a qual novos propoacutesitos fins podem emergir
(HAUSMAN 1998 p 630)
A evoluccedilatildeo do cosmo entretanto diz Peirce se daacute pela antecipaccedilatildeo da ideia a ser realizada
por meio de uma adivinhaccedilatildeo que soacute eacute possiacutevel como resultante da continuidade entre as coisas
O universo antecipa abdutivamente por meio da causa final a ideia a ser realizada Nas palavras
de Peirce ldquoA adoccedilatildeo de certas tendecircncias mentais () por uma atraccedilatildeo imediata da ideia em si
cuja natureza eacute adivinhada antes que a mente a possua pelo poder de simpatia ou seja pela
virtude da continuidade da menterdquo (CP 6 307 1893)225
Eacute o amor afirma Peirce o grande agente evolucionaacuterio do universo fato reconhecido desde
a mais tenra idade da filosofia Eacute aacutegape que conduz o processo de desenvolvimento do universo
possibilitando que em um longo prazo ele se torne mais e mais razoaacutevel fazendo com que
aquilo que Peirce chama de razoabilidade concreta possa crescer Quanto ao seu modo de atuar
Peirce afirma que ldquoO movimento do amor eacute circular em um e mesmo impulso projeta criaccedilotildees
em independecircncia e as reuacutene em harmonia Parece complicado quando dito desta maneira mas eacute
completamente sintetizado na foacutermula simples que denominamos a Regra Douradardquo (CP 6 sect
225 The adoption of certain mental tendencies () by an immediate attraction of the idea itself whose nature is
divined before the mind possesses it by the power of sympathy that is by the virtue of the continuity of the mind
162
288 1893)226
Sua funccedilatildeo eacute a de tornar harmoniosos os frutos das criaccedilotildees que constituem o
universo Poeticamente Peirce afirma que aacutegape eacute capaz de ateacute mesmo ldquo() reconhecer os
germes de amor no oacutedio gradualmente trazecirc-los para a vida e tornaacute-los amaacuteveisrdquo (CP 6 sect 289
1893)227
Do ponto de vista mais geral como aponta Silveira (2003) levando-se em conta a
hierarquia estabelecida por Peirce entre as ciecircncias na qual a loacutegica tem por base a eacutetica que por
sua vez tem por base a esteacutetica a uacutenica ideia que pode atuar como forccedila atratora do desenrolar
dos acontecimentos eacute a proacutepria ideia de razoabilidade A razoabilidade eacute o uacutenico bem admiraacutevel
por si mesmo
O proacuteprio ser do geral da Razatildeo consiste em seu governo sobre eventos
individuais Assim entatildeo a essecircncia da razatildeo eacute tal que nunca seu ser pode ter
sido completamente aperfeiccediloado Ele sempre deve estar em um estado de
incipiecircncia de crescimento Eacute como o caraacuteter de um homem que consiste nas
ideias que ele vai conceber e nos esforccedilos que faraacute e que soacute se desenvolve na
medida em que as ocasiotildees realmente surgem No entanto em toda a sua vida
nenhum filho de Adatildeo jamais manifestou plenamente o que havia em si Assim
entatildeo o desenvolvimento da razatildeo requer como uma parte de si a ocorrecircncia de
mais eventos individuais do que jamais pode ocorrer Requer tambeacutem todas as
cores de todas as qualidades de sentimento incluindo o prazer em seu devido
lugar entre os demais Este desenvolvimento da razatildeo consiste vocecirc observaraacute
em encarnaccedilatildeo isto eacute em manifestaccedilatildeo A criaccedilatildeo do universo que natildeo teve
lugar durante uma certa ocupada semana no ano 4004 AC mas que estaacute
acontecendo hoje e nunca estaraacute terminada eacute o verdadeiro desenvolvimento da
Razatildeo Natildeo vejo como se possa ter um ideal mais satisfatoacuterio do admiraacutevel do
que o desenvolvimento da razatildeo assim entendida A uacutenica coisa cuja
admirabilidade natildeo eacute devida a um motivo ulterior eacute a proacutepria razatildeo
compreendida em toda sua plenitude tanto quanto podemos compreendecirc-la Sob
esta concepccedilatildeo o ideal de conduta seraacute o de executar a nossa pequena funccedilatildeo na
operaccedilatildeo da criaccedilatildeo dando uma ajuda para tornar o mundo mais razoaacutevel
sempre que como diz a giacuteria cabe a noacutes fazecirc-lo Em loacutegica pode-se observar
que o conhecimento eacute a razoabilidade e o ideal do raciociacutenio seraacute seguir os
meacutetodos como se deve para desenvolver o conhecimento mais rapidamente (CP
1 sect 615 1903)228
226 The movement of love is circular at the one and the same impulse projecting creations into independency and
drawing them into harmony This seems complicated when stated so but it is fully summed up in the simple formula
we call the Golden rule 227
() recognizing germs of loveliness in the hateful gradually warms it in to life and make it lovely 228
The very being of the General of Reason consists in its governing individual events So then the essence of
Reason is such that its being never can have been completely perfected It always must be in a state of incipiency of
growth It is like the character of a man which consists in the ideas that he will conceive and in the efforts that he will
make and which only develops as the occasions actually arise Yet in all his life long no son of Adam has ever fully
163
Podemos nos utilizar de um esquema proposto por Potter (1997) para sintetizarmos o modo
de desenvolvimento ou crescimento influenciado pela atuaccedilatildeo da evoluccedilatildeo agapaacutestica
O desenvolvimento Agapaacutestico (terceiridade) novas ideias satildeo adotadas nem
descuidadamente nem cegamente mas por uma atraccedilatildeo imediata pela ideia em
si adivinhada antes mesmo de a mente possuir a ideia conscientemente pelo
poder da simpatia ou afinidade (continuidade da mente) tanto
a) pela comunidade que possui a ideia na personalidade coletiva e a passa aos
indiviacuteduos que de outra forma satildeo incapazes de alcanccedilaacute-la ou
b) Por um indiviacuteduo que descobre a ideia por si mesmo mas soacute porque estaacute em
simpatia com a comunidade e essa simpatia permitiu que ele experimentasse a
atratividade da ideia ou
c) Por um indiviacuteduo que descobre a ideia por si mesmo independentemente de
seus afetos humanos simplesmente em virtude da atratividade da ideia em si
(POTTER 1997 p 187)
4 A ORIGINALIDADE DA CAUSA FINAL PEIRCEANA
Uma vez delineado o papel da causalidade final na obra peirceana resta-nos enfatizar suas
principais caracteriacutesticas e apontar em que consiste a sua originalidade Para tanto indicaremos
em que medida sua concepccedilatildeo se distingue daquela proposta por Aristoacuteteles Peirce como jaacute foi
manifested what there was in him So then the development of Reason requires as a part of it the occurrence of
more individual events than ever can occur It requires too all the coloring of all qualities of feeling including
pleasure in its proper place among the rest This development of Reason consists you will observe in embodiment
that is in manifestation The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in the
year 4004 BC but is going on today and never will be done is this very development of Reason I do not see how
one can have a more satisfying ideal of the admirable than the development of Reason so understood The one thing
whose admirableness is not due to an ulterior reason is Reason itself comprehended in all its fullness so far as we
can comprehend it Under this conception the ideal of conduct will be to execute our little function in the operation
of the creation by giving a hand toward rendering the world more reasonable whenever as the slang is it is up to
us to do so In logic it will be observed that knowledge is reasonableness and the ideal of reasoning will be to
follow such methods as must develop knowledge the most speedily
164
dito considerava-se um seguidor da noccedilatildeo aristoteacutelica de causa final juiacutezo que natildeo nos parece
ser totalmente preciso Indicaremos a seguir para efeito de comparaccedilatildeo alguns aspectos
presentes em ambas as noccedilotildees
Natildeo eacute pretensatildeo deste trabalho realizar um estudo que compreenda o todo da noccedilatildeo de
causalidade final presente na obra aristoteacutelica A quantidade de estudos sobre esse toacutepico eacute
bastante grande de tal maneira que propor uma interpretaccedilatildeo da noccedilatildeo sem o estabelecimento de
um diaacutelogo com essa produccedilatildeo seria visto como suspeito Todavia dada a proximidade entre as
ideias sobre causalidade final dos dois filoacutesofos reconhecida por Peirce e pelos estudiosos de sua
obra cabe aqui apenas a indicaccedilatildeo daqueles aspectos que satildeo semelhantes em ambas as
concepccedilotildees e aqueles que diferenciam a concepccedilatildeo peirceana e expressam sua originalidade
Para contrastar com a concepccedilatildeo peirceana veremos o que Aristoacuteteles diz no segundo livro
da Fiacutesica texto claacutessico para a compreensatildeo da noccedilatildeo de causa final no autor Para o que nos
interessa neste momento podemos perceber que Aristoacuteteles busca responder agraves seguintes
questotildees que podem ser colocadas na forma de um dilema ldquoa natureza procede apenas por
necessidade e natildeo com vista de finsrdquo ou ldquoa natureza aleacutem de proceder por necessidade opera
tambeacutem teleologicamenterdquo como indica Angioni (2006 p 37) Tendo estabelecido que as coisas
acontecem por necessidade na natureza mas tambeacutem motivadas pelo acaso o que acaba por
produzir acontecimentos que satildeo frutos natildeo da necessidade mas do encontro de cadeias causais
necessaacuterias independentes Cabe perguntar qual a causa do encontro dessas cadeias
independentes de eventos Angioni indica que Aristoacuteteles reconhece duas possibilidades ou as
coisas se datildeo por concomitacircncia isto eacute ldquoas seacuteries causais se agrupam bdquoespontaneamente‟ () sem
que nenhuma causa anterior explique por que tal conjunccedilatildeo de seacuteries viria a ser necessaacuteriardquo
(2006 p 42) e acrescenta ldquoou tais seacuteries compotildeem-se entre si sob um princiacutepio anterior que
exige a composiccedilatildeo das mesmas sob certa ordemrdquo (ANGIONI 2006 p 46)
O exemplo da parede de pedra pode ajudar na compreensatildeo da relaccedilatildeo entre aquilo que
acontece por natureza isto eacute necessariamente e aquilo que ocorre em vista de um fim Na
parede as pedras e alicerces naturalmente pesados tecircm a tendecircncia a se deslocar para baixo e
165
constituem a base e acima deles se encontram as estruturas de madeira que sendo mais leves tecircm
a tendecircncia de se deslocarem para o alto (com relaccedilatildeo agraves pedras) A parede seraacute necessariamente
construiacuteda com pedras que teratildeo a tendecircncia de se deslocar para baixo As caracteriacutesticas
inerentes aos materiais como a pedra e a funccedilatildeo a ser desempenhada pela parede se combinam de
modo que podemos dizer que haacute uma necessidade que ela seja desse modo Aristoacuteteles diz que
ldquoessas coisas natildeo se geram sem os itens que possuem uma natureza necessaacuteria mas natildeo satildeo
devido a esses itens a natildeo ser como mateacuteria mas satildeo em vista de algordquo (ARISTOacuteTELES 2002
200a 7-10) Haacute portanto um plano de desenvolvimento conduzido pela necessidade de
acabamento que natildeo pode se dar a natildeo ser com a junccedilatildeo com aquilo que eacute necessaacuterio As quatro
causas atuariam concomitantemente sendo a mais primordial a causa final ou acabamento
Angioni indica que para Aristoacuteteles ldquoa causa final () deve receber mais atenccedilatildeo porque ela eacute
bdquocausa da mateacuteria‟ natildeo o inverso ()rdquo (ANGIONI 2006 P 54)
A partir da diferenciaccedilatildeo das causas em quatro tipos distintos proposta por Aristoacuteteles
(Fiacutesica 194b15-195b30) Peirce elabora uma aplicaccedilatildeo das noccedilotildees agraves suas proacuteprias ideias e
afirma
A causa interna de individuaccedilatildeo eacute chamada a causa material Assim partes
integrantes de um assunto ou de um fato formam sua mateacuteria ou causa
material A causa externa de individuaccedilatildeo eacute chamada de eficiente ou a causa
eficiente e o causatum eacute chamado de efeito A causa interna de definiccedilatildeo eacute
chamada causa formal ou forma Todos estes fatos que constituem a definiccedilatildeo
de um assunto ou fato compotildeem sua forma A causa externa de definiccedilatildeo eacute
chamada de causa final ou fim Espera-se que estas declaraccedilotildees seratildeo
consideradas mais certeiras do que aquelas de Aristoacuteteles e os escolaacutesticos como
o alvo que eles miravam (EP 2 315-6 1904)229
229 The individuating internal cause is called the material cause Thus the integrant parts of a subject or fact form its
matter or material cause The individuating external cause is called the efficient or efficient cause and the causatum
is called the effect The defining internal cause is called the formal cause or form All these facts which constitute
the definition of a subject or fact make up its form The defining external cause is called the final cause or end It is
hoped that these statements will be found to hit a little more squarely than did those of Aristotle and the scholastics
the bull‟s eye at which they aimed (EP 2 p 315-6 1904)
166
Assim como a de Aristoacuteteles a noccedilatildeo de causa final peirceana eacute explicitamente
antropomoacuterfica Como jaacute indicamos anteriormente Peirce reconhecia esse aspecto de sua teoria e
o endossava indicando que natildeo poderia ser de outra forma A principal justificativa para esta
forma de exposiccedilatildeo reside na ideia de que tudo o que pode ser conhecido tudo que eacute
compreensiacutevel para o homem deve ter a sua marca Isso no entanto natildeo significa que a accedilatildeo
propositada a forma de causalidade final mais familiar aos homens seja sua uacutenica expressatildeo A
causalidade final eacute como vimos na obra de Peirce ubiacutequa
Toda causalidade final eacute um tipo ideal para ambos os filoacutesofos aquilo que exerce o poder
causal do tipo final natildeo pode ser algo atual ou individual mas antes eacute a expressatildeo de certas
potencialidades jaacute delineadas no presente Natildeo existe qualquer evento real futuro que exerccedila
algum tipo de atraccedilatildeo sobre o desenrolar dos eventos conduzindo-os a um predeterminado fim
Causalidade final e causalidade eficiente natildeo podem existir de maneira autocircnoma a
consciecircncia desta complementaridade eacute ainda mais viva em Peirce Como vimos todas as
instacircncias de atuaccedilatildeo causal recebem a influecircncia de trecircs diferentes forccedilas causais da causa
eficiente do acaso e da causa final
Por outro lado para Aristoacuteteles eacute como indica Short (1981b p 371) ldquoUm tipo geral eacute uma
causa final por causa do bem que caracterizaccedilatildeo qualquer uma de suas atualizaccedilotildeesrdquo Haacute na obra
Aristoteacutelica uma relaccedilatildeo estreita entre causa final e a realizaccedilatildeo do bem supremo de cada ser ou
objeto Esse aspecto natildeo se encontra presente nas consideraccedilotildees de Peirce a causalidade final natildeo
atua em funccedilatildeo da atualizaccedilatildeo de algum elemento substancial Embora natildeo possa existir qualquer
processo do qual ela esteja ausente isso natildeo implica para Peirce que ela tenha que estar definida
com algum grau de precisatildeo desde o princiacutepio Haacute reconhece o filoacutesofo a possibilidade de que
no decorrer do processo a proacutepria causa final se altere e gere novos resultados em funccedilatildeo de
novos elementos ou situaccedilotildees que podem ter sido colocados em cena pela atuaccedilatildeo do acaso
Como vimos a atuaccedilatildeo do acaso eacute uma condiccedilatildeo para a existecircncia de causas finais na concepccedilatildeo
peirceana e nisto elas se distinguem do conceito aristoteacutelico pois para o estagirita a atuaccedilatildeo do
167
acaso implica na ausecircncia de causa final Pode-se acrescentar a essas diferenccedilas a ideia peirceana
de que aacutegape ndash ou amor criativo ndash eacute a mais pura expressatildeo da causalidade final
5 CAUSA FINAL E CLASSIFICACcedilAtildeO NATURAL
O esforccedilo para tornar a causalidade final compreensiacutevel e a defesa do seu lugar nos eventos
do cosmo respondem a uma necessidade bastante presente nos vaacuterios periacuteodos da produccedilatildeo
peirceana o de tornar a ciecircncia um empreendimento possiacutevel e natildeo uma mera ficccedilatildeo arbitraacuteria O
problema da relaccedilatildeo do homem com o mundo tambeacutem denominado de problema da existecircncia do
mundo exterior eacute o objeto da inquietaccedilatildeo de Peirce Esse aspecto da justificaccedilatildeo da causalidade
final ficaraacute mais claro ao tratarmos das ideias de Peirce quanto agrave classificaccedilatildeo natural (cf
HULSWIT 1997)
Hawkins (2007) afirma que o tratamento que Peirce dispensa agrave classificaccedilatildeo natural no
texto On science and natural classes de 1902 pode parecer estranho pois ldquoEm vez de comeccedilar
com os elementos baacutesicos do mundo fiacutesico tratados como se o caraacuteter que ele nos parece ter seja
de fato o seu caraacuteter independente de nossa observaccedilatildeo (em si mesmos) Peirce comeccedila com a
questatildeo de como o mundo da cientista se revela para elardquo (HAWKINS 2007 p 530) E a
resposta a partir da qual Peirce desenvolve seu texto eacute a de que o mundo se revela natildeo como um
caos desordenado mas antes se apresenta pleno de regularidades que permite ao cientista dividi-
lo em grupos distintos
Eacute a causa final o princiacutepio que permite ao cientista agrupar os diferentes aspectos do
mundo Em particular ldquo() o desejo [como vimos a mais familiar forma de causa final] cria
classes e classes extremamente amplasrdquo (EP 2 p 118 1902)230
Ao tratar da classificaccedilatildeo
natural das ciecircncias Peirce afirma que se queremos conhecer em quais classes as ciecircncias estatildeo
230 () desire creates classes and extremely broad classes
168
naturalmente divididas basta consultar uma lista dos perioacutedicos existentes O que cria as classes
eacute o desejo de conhecer dos cientistas Esse desejo contudo natildeo eacute o produtor de uma lista
arbitraacuteria o mundo impotildee limites Embora algueacutem possa querer inventar uma ciecircncia que ainda
natildeo exista ela soacute sobreviveraacute se espelhar alguns aspectos do mundo que lhe resiste O mundo eacute
definido por Peirce da seguinte maneira
() o mundo externo (isto eacute o mundo que eacute comparativamente externo) natildeo
consiste apenas de objetos existentes nem apenas destes e de suas reaccedilotildees mas
ao contraacuterio seus mais importantes reais tecircm o modo de ser daquilo que o
nominalista chama de meras palavras isto eacute tipos gerais e would-bes O
nominalista estaacute certo em dizer que eles satildeo substancialmente da natureza das
palavras mas o seu bdquomero‟ revela uma completa incompreensatildeo do que o nosso
mundo cotidiano consiste (CP 8 sect 191 1904)231
Para finalizar Peirce indica que as causas finais possuem trecircs caracteriacutesticas elas satildeo
sempre gerais sempre vagas e sempre possuem certa amplitude (longitude) Satildeo gerais como jaacute
vimos porque aquilo que atrai os acontecimentos eacute sempre de certo tipo fruto da mediaccedilatildeo Satildeo
vagas porque nem o modo de sua realizaccedilatildeo nem o resultado estatildeo determinados de antematildeo
Finalmente satildeo amplas porque ainda quando natildeo realizadas plenamente qualquer outra
possibilidade que dela se aproxima jaacute eacute aceitaacutevel
231 () the external world (that is the world that is comparatively external) does not consist of existent objects
merely nor merely of these and their reactions but on the contrary its most important reals have the mode of being
of what the nominalist calls mere words that is general types and would-bes The nominalist is right in saying that
they are substantially of the nature of words but his mere reveals a complete misunderstanding of what our
everyday world consists of
169
CONCLUSAtildeO
() the only possible justification for a hypothesis is that it renders the facts
comprehensible (CP 8 sect 168 1903)
170
A descriccedilatildeo da cosmogonia elaborada por Peirce como uma hipoacutetese que permite ampliar o
horizonte da inteligibilidade humana e garantir a possibilidade da elaboraccedilatildeo de teorias
cientiacuteficas exitosas forneceu os elementos iniciais para a compreensatildeo de sua filosofia Criada
sob a maacutexima loacutegica mais fundamental sintetizada na expressatildeo ldquonatildeo bloquear o caminho da
investigaccedilatildeordquo a cosmogonia peirceana identifica e nomeia as trecircs categorias metafiacutesicas
formadoras do seu sistema ndash acaso existente e lei ndash e a maneira como se combinam para
constituir a realidade revelada pela experiecircncia Tais categorias satildeo os correlatos hipoteacuteticos das
categorias faneroscoacutepicas232
reveladas pela experiecircncia ndash primeiridade secundidade e
terceiridade Uma boa hipoacutetese explicativa que torna o mundo da experiecircncia ndash tal como o
exprerienciamos ndash compreensiacutevel agrave nossa inteligecircncia eacute a de pensaacute-lo como originaacuterio de um
processo evolutivo a partir do acaso absoluto e cujo desenvolvimento se daacute sob a influecircncia da
lei da mente e da causalidade final
Uma consequecircncia dessa hipoacutetese eacute a de que os fenocircmenos satildeo sem exceccedilatildeo o resultado
de um processo contiacutenuo de aumento da complexidade e da regularidade do mundo Peirce indica
que sua filosofia eacute construiacuteda sobre a hipoacutetese de que todos os fenocircmenos satildeo partes de um
continuum Agrave apresentaccedilatildeo das consequecircncias desta hipoacutetese e a teoria assim constituiacuteda o
filoacutesofo daacute o nome de sinequismo e indica que ela sintetiza sua filosofia em uma uacutenica palavra
(cf CP 4 sect 584 1906) A adoccedilatildeo do sinequismo como de qualquer hipoacutetese tem por motivaccedilatildeo
a esperanccedila de tornar os fenocircmenos inteligiacuteveis sendo esta diz Peirce sua principal justificaccedilatildeo
A ideia de continuidade desenvolvida por Peirce eacute original ainda que elaborada a partir da
reflexatildeo das definiccedilotildees presentes nas obras de Aristoacuteteles e Kant e faz uso da noccedilatildeo de
infinitesimal como seu constituinte fundamental O continuum pensado por Peirce natildeo possui
pontos atuais mas apenas pontos virtuais denominados de infinitesimais a partir dos quais
continuidades podem ser desenvolvidas infinitamente O modelo principal do continuum eacute o
tempo e o espaccedilo
232 Peirce por vezes denomina a ciecircncia do que nos aparece como faneroscopia e em outras de fenomenologia
171
O modo de desenvolvimento ou crescimento do continuum recebe o nome de evoluccedilatildeo O
processo evolutivo faz surgir um universo que apresenta caracteriacutesticas de espontaneidade e
liberdade manifestas em sua grande variedade e novidade mas tambeacutem regularidade expressa
por suas leis Como vimos essas duas caracteriacutesticas cuja origem encontra-se no acaso e na lei
da mente ou lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos satildeo necessaacuterias para que se possa construir teorias que
natildeo postulem o incognosciacutevel nem produzam uma imagem congelada do universo como aquela
oferecida pelo mecanicismo De um lado a diversidade e a novidade satildeo constatadas tanto por
meio de certas ciecircncias como a biologia e a paleontologia mas tambeacutem pela atitude de qualquer
pessoa que olhe para o mundo com atenccedilatildeo e sem preconceitos A diversidade diz Peirce eacute o
aspecto mais marcante que a experiecircncia nos revela Do outro lado as regularidades tambeacutem se
impotildeem na observaccedilatildeo principalmente para aqueles que desenvolveram grande poder de
abstraccedilatildeo e aprenderam a reconhecer nos mais variados fenocircmenos certos traccedilos que se repetem
Contudo ainda que as regularidades estejam atuando continuamente e sob o efeito da lei da
mente tornando-se mais e mais regular nunca atingem o status de absolutas A atualizaccedilatildeo de
qualquer lei eacute o momento da interferecircncia do acaso que pode ser imperceptiacutevel em certos
fenocircmenos e marcante em outros
A possibilidade de pensarmos um universo que se desenvolve sob a atuaccedilatildeo de princiacutepios
incognosciacuteveis eacute um caminho vedado pela filosofia peirceana Na medida em que a filosofia eacute
uma atividade intelectual que procura tornar a experiecircncia compreensiacutevel a postulaccedilatildeo do
incognosciacutevel eacute a negaccedilatildeo do proacuteprio empreendimento racional Se o universo entretanto fosse
tal como descrito pelo mecanicismo ou bdquonecessitarismo‟ segundo o termo empregado pelo autor
isto eacute completamente determinado por leis absolutas natildeo poderia apresentar as caracteriacutesticas
reveladas pela experiecircncia
Em acreacutescimo agrave tarefa de tornar o mundo em todos os seus detalhes inteligiacutevel pode-se
verificar no surgimento de teorias cientiacuteficas que tratam especificamente de fenocircmenos
irreversiacuteveis uma outra fonte de motivaccedilatildeo para a constituiccedilatildeo de uma filosofia evolutiva que
tem por base uma matriz ontoloacutegica indeterminista como vimos no terceiro capiacutetulo desta tese
172
Uma das tarefas a que nos propomos realizar neste trabalho foi a de compreender o lugar da
cosmogonia proposta por Peirce no interior de seu sistema filosoacutefico A hipoacutetese que motivou
essa investigaccedilatildeo foi a de que sua cosmogonia desempenha um papel importante na validaccedilatildeo do
empreendimento cientiacutefico A constituiccedilatildeo de uma ciecircncia adequada agrave determinaccedilatildeo de uma
conduta racional para o futuro pareceu-nos desde o iniacutecio o alvo que Peirce mirava Vimos no
capiacutetulo trecircs sobre a evoluccedilatildeo de que maneira essa hipoacutetese serve ao propoacutesito de impedir o
regresso infinito das explicaccedilotildees substituindo uma perspectiva (que poderiacuteamos denominar de
bdquofundacionista‟) por outra mais adequada construiacuteda em moldes geneacuteticos
Outro grande problema sobre o qual Peirce se debruccedilou durante muitos anos de sua
investigaccedilatildeo foi o de justificar a esperanccedila de que as hipoacuteteses poderiam de alguma maneira ser
refinadas a ponto de proporem explicaccedilotildees aceitaacuteveis para os fenocircmenos da experiecircncia O
primeiro candidato proposto como capaz de desempenhar esta funccedilatildeo foi a induccedilatildeo que no
entanto apoacutes uma vigorosa anaacutelise mostrou-se muito eficaz quanto agrave tarefa de eliminar hipoacuteteses
equivocadas mas completamente ineficaz quanto agrave tarefa de nos deixar mais proacuteximos de uma
explicaccedilatildeo verdadeira do mundo da experiecircncia A abduccedilatildeo surge entatildeo como a uacutenica esperanccedila
para a realizaccedilatildeo da ciecircncia Se a ciecircncia eacute possiacutevel eacute no momento da elaboraccedilatildeo das hipoacuteteses a
serem testadas que a capacidade humana de conhecer deve se manifestar Eacute a hipoacutetese ela
mesma que deve nos colocar na boa direccedilatildeo A suposta capacidade autocorretiva da induccedilatildeo
mostrou-se uma ilusatildeo
A abduccedilatildeo eacute descrita como um dos trecircs tipos de raciociacutenios loacutegicos contudo Peirce eacute muito
claro na indicaccedilatildeo de que ela natildeo passa de uma espeacutecie de adivinhaccedilatildeo desse modo
eminentemente faliacutevel sem qualquer garantia de que a hipoacutetese proposta seraacute a melhor
Entretanto o filoacutesofo jaacute constatava os avanccedilos que a ciecircncia do seu tempo havia atingido e natildeo
poderia haver outra fonte aleacutem da abduccedilatildeo que possui exclusividade heuriacutestica no seu sistema A
efetividade da abduccedilatildeo eacute explicada de iniacutecio a partir de uma perspectiva evolucionista um
instinto para o conhecimento que teria se desenvolvido a partir da necessidade de modelar a
conduta adequada para a sobrevivecircncia
173
A perspectiva evolutiva no entanto dificilmente pode ser aceita como uma explicaccedilatildeo
adequada para a elaboraccedilatildeo de teorias que vatildeo muito aleacutem daquilo que diz respeito agrave necessidade
de sobrevivecircncia humana A causa final entendida como o tipo de causalidade no qual o todo
chama por suas partes (cf CP 1 sect 220 1902) ou evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902) pode ser vista
natildeo apenas como o princiacutepio que deu origem e continua atuando atualmente na constituiccedilatildeo do
universo como tambeacutem o princiacutepio por meio do qual o ser humano fruto do mesmo processo
evolutivo consegue adivinhar as boas hipoacuteteses explicativas
Desse modo o que Peirce faz ao elaborar a hipoacutetese que explica a origem a
desenvolvimento do universo vai aleacutem da criaccedilatildeo de uma cosmogonia O filoacutesofo identifica um
princiacutepio sob o qual o universo se desenvolveu ndash a causalidade final cujo principal efeito indica
Peirce eacute a de tornar o universo mais razoaacutevel desenvolver a sua razoabilidade concreta (cf CP
1 sect 602 1903 CP 1 sect 615 1903)
A perspectiva evolucionaacuteria de Peirce prevecirc que quanto ao ser humano o futuro traraacute por
meio do desenvolvimento do conhecimento racional do mundo a possibilidade do
estabelecimento de condutas mais e mais autocontroladas quanto ao universo o futuro muito
mais amplo traraacute a crescente influecircncia da lei na determinaccedilatildeo de cada evento Em um futuro
suficiente distante as regularidades estaratildeo tatildeo presentes que impossibilitaratildeo a existecircncia da
vida manifestaccedilatildeo por excelecircncia da espontaneidade cada acontecimento seraacute fundamentalmente
determinado pela atuaccedilatildeo das leis em um universo que poderia ser comparado a um imenso
cristal Essa descriccedilatildeo como vimos eacute apresentada por Peirce em sua cosmogonia (cf CP 6 sect 33
1891) e parece indicar que a cristalizaccedilatildeo dos haacutebitos no futuro distante do universo corresponde
agrave realizaccedilatildeo da razoabilidade concreta Entretanto se esta interpretaccedilatildeo estaacute correta o estado
final a que tende o universo eacute aquele descrito pelos necessitarista e muito criticado por Peirce
como vimos A alternativa que nos parece mais adequada e coerente ao conjunto das ideias
peirceanas algumas delas apresentadas neste trabalho eacute a de pensar as categorias como
inesgotaacuteveis e atuantes em qualquer momento do desenvolvimento do universo propiciando o
infinito crescimento da ordem e da diversidade A filosofia de Peirce pode ser entendida como a
tentativa de mostrar o modo como essas duas caracteriacutesticas inerentes agrave nossa experiecircncia do
174
mundo ndash a diversidade e a regularidade ndash satildeo compatibilizadas na concepccedilatildeo de uma matriz
ontoloacutegica indeterminista mas geradora de ordem
175
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DEDICATOacuteRIA
Ao meu pai Armando Vicentini in memoriam
agrave minha matildee Aparecida Giraldeli Vicentini
e aos amigos presentes e ausentes
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo ao Professor Dr Pablo Rubeacuten Mariconda pelo tempo dedicado a minha
orientaccedilatildeo e ao professor Dr Michel Paty cujos cursos e conversas expandiram a minha
compreensatildeo sobre o tema desta tese e suas relaccedilotildees com problemas mais amplos e atuais bem
como por sua disposiccedilatildeo em me orientar no periacuteodo de pesquisa junto agrave Universiteacute Paris VII ndash
Denis Diderot e agrave equipe Sphere
Agrave CAPES pela bolsa que me permitiu passar um ano pesquisando em Paris
Aos membros da banca de qualificaccedilatildeo pela disponibilidade leitura atenta e boas sugestotildees
Ao setor de capacitaccedilatildeo docente da Proacute-Reitora de Pesquisa e Poacutes-Graduaccedilatildeo e aos
professores do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Maringaacute que apoiaram e
aceitaram meu pedido de afastamento para a realizaccedilatildeo desta tese
Aos meus antigos professores Lauro Nice e Betty cujas influecircncias foram decisivas para a
realizaccedilatildeo deste trabalho
Aos meus amigos pelo incentivo leitura e discussotildees do texto aqui apresentado Aos
integrantes do Grupo de Pesquisa coordenado pelo Prof Pablo especialmente a Adriana
Belmonte
Agrave minha matildee Aparecida e minhas irmatildes pela alegria que sempre acontece quando estamos
juntos
Quero agradecer especialmente ao Douglas Ameacutelia Sandro Liacutegia Bima Wagner Nei
Ivan Ernane e Rosacircngela que tornaram esses anos de pesquisas mais leves ou mais intensos ou
ambos
RESUMO
VICENTINI M R O papel da causalidade final na cosmologia de Charles Sanders Peirce
2011 182 f Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas
Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2011
Trata-se de uma proposta de investigaccedilatildeo das ideias cosmoloacutegicas de Charles S Peirce
particularmente das que dizem respeito agrave pertinecircncia da inclusatildeo de esquemas de explicaccedilatildeo que
faccedilam uso da causalidade final como instacircncia determinante do desenvolvimento dos fenocircmenos
naturais Anterior agrave avaliaccedilatildeo desse tipo de explicaccedilatildeo cabe uma investigaccedilatildeo sobre as
caracteriacutesticas mais relevantes de seu pensamento que o proacuteprio autor julgava construiacutedo
arquitetonicamente Com esse objetivo centramos a anaacutelise no conceito de continuum que pode
ser visto como fundamental para o desenvolvimento da obra de Peirce Eacute o estudo do continuum
que permitiraacute e conduziraacute a investigaccedilatildeo das categorias ontoloacutegicas peirceanas acaso existente e
lei A passagem do acaso agrave lei isto eacute a proacutepria origem do cosmos se daacute por um processo
evolutivo que tem na lei da mente seu principal motor A lei da mente por sua vez atua de modo
finaliacutestico tornando mais provaacutevel o desenvolvimento dos fenocircmenos em certas direccedilotildees
restringindo assim o horizonte das possibilidades sem contudo esgotaacute-lo
Palavras-chave cosmologia sinequismo abduccedilatildeo teleologia
ABSTRACT
VICENTINI M R The role of final causality in the cosmology of Charles Sanders Peirce
2011 182 f Thesis (PhD) - Faculty of Philosophy Letters and Sciences University of Sao
Paulo Sao Paulo 2011
This thesis is about the cosmological ideas of Charles S Peirce particularly those concerning the
relevance of the inclusion of explanatory schemes that make use of final causality as an instance
determinant of the development of natural phenomena Before the evaluation of this type of
explanation it is important to perform an investigation into the most relevant features of his
thought which the author believed was architecturally built With this aim we focus on the
concept of the continuum which can be seen as fundamental to the development of the work of
Peirce It is the study of the continuum that will lead to investigation of Peirces ontological
categories chance existent and law The passage of chance to law that is the very origin of the
cosmos is given by an evolutionary process in which the law of the mind is its main engine The
law of the mind in turn acts in a finalistic way making more probable the development of
phenomena in certain directions thus restricting the horizon of possibilities without however
exhausting it
Keywords cosmology synechism abduction teleology
LISTA DE ABREVIACcedilOtildeES
CP x sect y - CCollected Papers of Charles Sanders Peirce volume x paraacutegrafo y ano de composiccedilatildeo
W x p y - Writings of Charles S Peirce A Chronological Edition volume x p y ano de
composiccedilatildeo
CN x p y
MS x
-
-
Contributions to The Nation volume x p y (Alguns estudiosos usam N)
Manuscritos nuacutemero do manuscrito
EP x p y - The Essential Peirce Selected Philosophical Writings volume x p y
HP x py - Historical Perspectives on Peirces Logic of Science A History of Science volume x
p y
NEM x p y - The New Elements of Mathematics by Charles S Peirce volume x p y (Alguns
estudiosos usam NE)
CD p x Century Dictionary p x (Alguns estudiosos usam C)
Sumaacuterio
INTRODUCcedilAtildeO 11
CAPIacuteTULO 1 - A HIPOacuteTESE COSMOLOacuteGICA 28
11 NAtildeO BLOQUEAR O CAMINHO DA INVESTIGACcedilAtildeO 29
12 UMA ESTOacuteRIA BIZARRA 38
121 O NADA 41
122 O ACASO 50
123 A DOUTRINA DA NECESSIDADE 54
13 A LEI 64
131 O IDEALISMO OBJETIVO 65
132 A LEI DA MENTE 66
CAPIacuteTULO 2 - O SINEQUISMO 68
21 O CONTINUUM E A EPISTEMOLOGIA 71
211 OS INFINITESIMAIS E O CONTINUUM 74
22 OS QUATRO ESTAacuteGIOS DO DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE CONTINUUM 78
221 O PERIacuteODO PREacute-CANTORIANO 81
222 PERIacuteODO CANTORIANO 83
223 PERIacuteODO KANTIANO 86
CAPIacuteTULO 3 - A EVOLUCcedilAtildeO 89
31 ASPECTOS EPISTEMOLOacuteGICOS DA HIPOacuteTESE EVOLUCIONAacuteRIA 90
32 AS RAIacuteZES NA CIEcircNCIA DO SEacuteCULO XIX 94
33 OS TREcircS TIPOS DE EVOLUCcedilAtildeO 104
34 OS TREcircS MODELOS DE EXPLICACcedilAtildeO 106
35 A EVOLUCcedilAtildeO E A COSMOLOGIA 107
36 O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA EVOLUCcedilAtildeO 109
37 EVOLUCcedilAtildeO E AUTOCONTROLE 111
CAPIacuteTULO 4 - A ABDUCcedilAtildeO 115
41 ABDUCcedilAtildeO E CRIACcedilAtildeO DE HIPOacuteTESES EXPLICATIVAS 116
42 OS TREcircS TIPOS DE RACIOCIacuteNIO 128
CAPIacuteTULO 5 - A CAUSALIDADE FINAL 140
51 O MODO DE ATUACcedilAtildeO DA CAUSALIDADE FINAL 143
52 CAUSALIDADE FINAL E CAUSALIDADE EFICIENTE 151
53 CAUSA FINAL E EVOLUCcedilAtildeO ndash AacuteGAPE OU O AMOR CRIATIVO 159
54 A ORIGINALIDADE DA CAUSA FINAL PEIRCEANA 163
55 CAUSA FINAL E CLASSIFICACcedilAtildeO NATURAL 167
CONCLUSAtildeO 169
REFEREcircNCIAS 175
11
INTRODUCcedilAtildeO
Hume whose cogitations led up to the recognition of Association as the one law of
mind most judiciously remarks This uniting principle among ideas is not to be
considered as an inseparable connexion for that has been already excluded from the
imagination Nor yet are we to conclude that without it the mind cannot join two
ideas for nothing is more free than that faculty but we are only to regard it as a gentle
force which commonly prevailsrdquo That phrase a gentle force which commonly
prevails describes the phenomenon to perfection (CP 7 sect 389 1893)
12
A obra de Charles Sanders Peirce (1839 ndash 1914) eacute admiraacutevel pela complexidade rigor e
abrangecircncia Peirce eacute considerado um dos maiores senatildeo o maior dos filoacutesofos americanos e
poucos foram os campos que permaneceram fora de seu interesse Mesmo tendo se formado em
Quiacutemica e trabalhado durante muitos anos na United States Coast and Geodetic Survey1 Peirce
foi uma dessas mentes inquietas que sobre tudo investigou e que sobre quase tudo escreveu
fazendo contribuiccedilotildees originais e relevantes para vaacuterias aacutereas do saber
Como intelectual Peirce considerava-se um loacutegico tido pelos historiadores como um dos
pais da loacutegica moderna desenvolveu a loacutegica das relaccedilotildees e formulou a loacutegica dos grafos
existenciais mas destacou-se tambeacutem nos estudos da matemaacutetica (teoria da probabilidade) e
sobretudo na filosofia das ciecircncias para a qual contribuiu com uma nova teoria dos argumentos
dedutivos indutivos e abdutivos Fundador do pragmatismo norte-americano sua grande
contribuiccedilatildeo agrave filosofia foi a criaccedilatildeo da semioacutetica ou a loacutegica segundo seu entendimento
Como aponta Silveira (1982 p 78) Peirce foi antes de tudo um cientista Um cientista
entretanto com algumas peculiaridades proacuteprias inclusive na formaccedilatildeo que se recebia a sua
eacutepoca Antes da universidade recebera o ensino claacutessico e como era comum as atividades em
casa sobrepujavam as desenvolvidas na escola Filho de um professor de Matemaacutetica de Harvard
desde cedo habituou-se agrave investigaccedilatildeo e agrave reflexatildeo sob a orientaccedilatildeo de seu proacuteprio pai que via
nele o potencial de um gecircnio
Peirce foi nomeado professor da entatildeo receacutem-fundada Universidade John Hopkins em 1879
mas em 1884 teve seu contrato de trabalho sumariamente cancelado em circunstacircncias obscuras
Natildeo tendo mais conseguido manter qualquer posto acadecircmico isso em prejuiacutezo segundo Nagel
(1982) do desenvolvimento da Filosofia posterior e de sua proacutepria Filosofia Peirce tinha entatildeo
quarenta e quatro anos
1 Eacute uma agecircncia federal dos Estados Unidos que define e gerencia um sistema de coordenadas nacional fornecendo a
base para o transporte e a comunicaccedilatildeo elaborando mapas e graacuteficos e um grande nuacutemero de aplicaccedilotildees da ciecircncia e
da engenharia Nela Peirce trabalhou de 1859 a 1891
13
O conjunto de suas ideias jaacute foi algumas vezes comparado a um labirinto com muitas
entradas cujo fio de Ariadne que pode conduzir o leitor a salvo por entre suas diferentes
estruturas foi indicado pelo proacuteprio autor como sendo o sinequismo2 a teoria que identifica a
continuidade como uma hipoacutetese fundamental para toda investigaccedilatildeo nas palavras de Peirce
ldquo() a chave mestra que dizem-nos os adeptos destranca os misteacuterios da filosofiardquo (CP 1 sect 163
1897)3
Nesta introduccedilatildeo faremos um esboccedilo do mapa que nos conduziu durante essa investigaccedilatildeo
O alvo determinado desde o iniacutecio foi o de compreender o papel que a causalidade final
desempenha na cosmologia de Peirce A aproximaccedilatildeo natildeo se deu de modo direto se o alvo estava
determinado o mesmo natildeo se poderia dizer do caminho que foi sendo construiacutedo aos poucos
sedimentando-se ao longo dos anos da pesquisa A eleiccedilatildeo dos temas a proacutepria investigaccedilatildeo e a
sua apresentaccedilatildeo foram objeto de longa reflexatildeo O caminho mostrou-se cheio de surpresas e de
natildeo raros momentos de indecisotildees O resultado que agora apresento nesta tese traz a marca da
falibilidade que Peirce considerava caracteriacutestica tanto dos nossos processos de pensamento
quanto daqueles que deram origem e permanecem atuando na constituiccedilatildeo dos mais diferentes
aspectos do cosmos e que eacute intriacutenseco agrave proacutepria maneira de atuaccedilatildeo da causalidade final como
veremos agrave frente O processo de criaccedilatildeo de empatia com a obra de Peirce constituiu-se
lentamente e as boas hipoacuteteses de interpretaccedilatildeo ndash ao menos eacute nossa esperanccedila de que as que aqui
lanccedilamos o sejam ndash surgiram aos poucos
Eacute possiacutevel extrair das ideias de Peirce importantes indicaccedilotildees sobre a maneira pela qual
uma investigaccedilatildeo deve ser conduzida Natildeo podemos esquecer que sua grande realizaccedilatildeo consiste
na elaboraccedilatildeo de um meacutetodo adequado para orientar a conduta dos investigadores nos mais
variados campos incluindo aiacute o da pesquisa acadecircmica Essa caracterizaccedilatildeo parece ser de grande
auxiacutelio para compreendermos o desenvolvimento de sua proacutepria obra bem como para lanccedilar
alguma luz sobre o proacuteprio processo de elaboraccedilatildeo deste trabalho Toda investigaccedilatildeo eacute marcada
2 Sinequismo do grego synecheacutes eacute o nome que Peirce daacute agrave sua teoria da continuidade bem como ao seu sistema
filosoacutefico 3 () it is the master key which adepts tell us unlocks the arcana of philosophy
14
pelo objetivo que pode ou natildeo estar determinado de maneira clara A determinaccedilatildeo preacutevia natildeo
significa que o caminho e o resultado especiacutefico possam ser traccedilados e previstos nos miacutenimos
detalhes As surpresas que podem produzir desvios da rota eacute tambeacutem condiccedilatildeo para o crescimento
da compreensatildeo do tema ou das ideias do autor Natildeo se fechar ao inesperado eacute condiccedilatildeo para a
realizaccedilatildeo da pesquisa
Estar disposto a abrir matildeo de suas conclusotildees e ideias tatildeo logo a experiecircncia mostre que satildeo
inadequadas eacute a atitude mais honesta do verdadeiro cientista aquele que investiga por um
ldquoardente amor agrave verdaderdquo como diria Peirce (CP 8 notas 1900) Eacute desse modo que a
compreensatildeo aqui apresentada das ideias peirceanas sobre a causalidade final foi sendo formada
natildeo sem surpresas e desvios O mesmo movimento pode ser visto na obra do autor que natildeo se
nega a dialogar com as evidecircncias ainda que contraacuterias e em redefinir suas ideias com fins agrave
determinaccedilatildeo de um meio mais adequado ao fim almejado Na interpretaccedilatildeo aqui defendida o
fim maior de obra de Peirce eacute a defesa da possibilidade de uma ciecircncia feita a partir da
experiecircncia com todas as dificuldades envolvidas nas duas ideias
Embora se definisse como um loacutegico e tenha tido formaccedilatildeo em Quiacutemica poucas aacutereas do
saber entre as jaacute estabelecidas em seu tempo ou em processo de constituiccedilatildeo ficaram fora do
escopo de seu interesse e investigaccedilatildeo Essa caracteriacutestica estaacute em conformidade com a maacutexima
que anima seu pensamento ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo (CP 6 sect 64 1892 sect 273
1893) Podemos indicar dois traccedilos caracteriacutesticos de sua produccedilatildeo de um lado percebemos que
para Peirce nada pode ser aceito como um dado (cf CP 6 sectsect 35-65 1892) resistente portanto a
toda investigaccedilatildeo ou seja isso equivale a dizer que a pesquisa natildeo conhece limites e que para
tudo que possa ser problematizado deve haver um processo adequado de investigaccedilatildeo por meio
do qual uma resposta possa ser obtida Naturalmente uma consequecircncia desta tese eacute a de que seu
alcance ultrapassa o puramente epistemoloacutegico e indica que a ontologia dos processos naturais
possua em si mesma um aspecto noeacutetico De outro lado a busca do meacutetodo adequado (cf CP 5
sectsect 358-87 1877) e sua aplicaccedilatildeo aos diferentes campos do saber em estreita relaccedilatildeo com a tese
sinequista ao lado de sua inesgotaacutevel curiosidade sugerem uma hipoacutetese explicativa para a
abrangecircncia dos objetos estudados pelo autor
15
O rigor necessaacuterio ao meacutetodo que deve garantir a possibilidade de realizaccedilatildeo da ciecircncia
parece-nos ser o propoacutesito primaacuterio e sempre presente no desenvolvimento do pensamento
peirceano Em funccedilatildeo dessa preocupaccedilatildeo que eacute uma caracteriacutestica recorrente em muitos de seus
escritos e em consonacircncia com o juiacutezo que o proacuteprio autor fazia de sua obra discordamos
daqueles inteacuterpretes que encontram dificuldade em atribuir-lhe uma unidade (cf GOUDGE
1950 GALLIE 1952 MOORE and ROBIN 1964 WIENER 1964 entre outros) Natildeo haacute duacutevida
de que o seu pensamento evoluiu de que suas teorias sofreram alteraccedilotildees e de que suas hipoacuteteses
amadureceram no periacuteodo que compreende sua intensa produccedilatildeo e que se estende por mais de
cinquenta anos Natildeo obstante a unidade que lhe pode ser atribuiacuteda natildeo eacute a de um sistema cujos
axiomas encontram-se presentes desde os primeiros escritos e cujas implicaccedilotildees satildeo apenas
apresentadas de maneira mais clara agrave medida que sua obra vai se constituindo Como descrito
acima na atividade do cientista que natildeo se furta ao embate com a experiecircncia quando submete
suas ideias agrave prova dos experimentos agraves vezes se depara com resultados que a princiacutepio natildeo
haviam sido cogitados Peirce natildeo os ignora e ao elaborar novos instrumentos para trataacute-los vecirc-se
na situaccedilatildeo em que tem de abrir matildeo de certos aspectos de seu pensamento inicial com o objetivo
de tornar seu sistema coerente Assim a unidade que se encontra eacute decorrente da atitude frente
aos objetos do conhecimento mais do que daquela referente aos conteuacutedos de suas teorias que
como reconhece o autor como um homem de ciecircncia satildeo sempre provisoacuterios e hipoteacuteticos
Em alguns momentos do periacuteodo que compreende sua longa e extensa produccedilatildeo o meacutetodo
eacute diretamente tematizado e em outros parece estar ausente de suas preocupaccedilotildees mais imediatas
para depois de alguns anos surgir novamente Quanto a este aspecto Peirce parece retomar o
projeto da filosofia moderna Como veremos em seus primeiros textos debate diretamente com
Descartes a quem critica principalmente o estabelecimento da intuiccedilatildeo imediata clara e distinta
dos objetos como criteacuterio de distinccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso e como fundamento de toda
atividade cognitiva (cf CP 5 sectsect 264-5 1868 CP 5 sectsect 389-92 1878) Um de seus primeiros
passos em direccedilatildeo agrave compreensatildeo do pensamento cientiacutefico eacute a elaboraccedilatildeo de uma nova teoria da
accedilatildeo mental baseada na ideia de que toda cogniccedilatildeo eacute mediada (cf CP 5 sect 4 1868) Como natildeo
temos acesso imediato aos objetos nosso conhecimento traraacute a marca do provisoacuterio e do faliacutevel
fruto de uma seacuteria infinita de interpretaccedilotildees e ao mesmo tempo implicando que o objeto natildeo
16
pode ser absolutamente conhecido jaacute que o seu modo de ser eacute vago (cf CHAUVIREacute 1995 e
TIERCELIN 1993a e 1993b) As teorias produzidas pelo ser humano seratildeo deste modo faliacuteveis
e construiacutedas a partir de sua proacutepria experiecircncia do mundo tanto o externo que se lhe impotildee e
resiste como o interno cujos processos de constituiccedilatildeo natildeo satildeo de maneira alguma heterogecircneos
Aqui a hipoacutetese do continuum requer a coerecircncia do autor Natildeo haacute descontinuidade entre o
mundo do pensamento e o mundo real Ateacute mesmo esta distinccedilatildeo soa artificial e inadequada O
elemento central na perspectiva peirceana eacute o pensamento (cf CN 1 p 200 1893) A fim de fazer
avanccedilar sua compreensatildeo dos processos naturais e confirmar suas hipoacuteteses acerca do
funcionamento dos processos de constituiccedilatildeo de nossas teorias Peirce encontra no haacutebito ou
tendecircncia agrave aquisiccedilatildeo de haacutebitos um elemento unificador fundamental e que elimina a
descontinuidade entre as leis do pensamento e as leis da natureza que segundo essa perspectiva
natildeo diferem senatildeo pelos diferentes graus de rigidez do haacutebito que ambas em uacuteltima instacircncia
satildeo diante da unicidade existente entre homem e mundo a construccedilatildeo da ciecircncia eacute o
desenvolvimento de uma capacidade que nos eacute natural Em um texto de 1893 Peirce diz que ldquo()
minha longa investigaccedilatildeo dos processos do raciociacutenio cientiacutefico conduziu-me muitos anos atraacutes
agrave conclusatildeo de que a ciecircncia natildeo eacute nada mais do que o desenvolvimento de nossos instintos
naturaisrdquo (CP 6 sect 604 1893)4
Muitas ideias propostas ou retomadas por Peirce tecircm o dom de surpreender o leitor que se
aproxima de sua obra pela primeira vez e mesmo agravequeles que dela tecircm um conhecimento parcial
Entre essas ideias julgamos apropriado incluir a de causalidade final (cf CP 1 sect 211 sect 250 sect
269 1902 CP 6 sect 66 sect 101 1898) O espanto ao ler em seus textos uma defesa da necessidade
da causalidade final natildeo apenas no acircmbito das explicaccedilotildees mas tambeacutem como princiacutepio atuante
nos processos naturais eacute decorrente de certa imagem fixada na tradiccedilatildeo ocidental ao menos
desde Bacon5 de julgaacute-la obscurantista e contraacuteria ao empirismo Andrew Woodfield (1976 p 3)
4 () my long investigation of the logical process of scientific reasoning led me many years ago to the conclusion
that science is nothing but a development of our natural instincts 5 Como aponta Bacon a investigaccedilatildeo sobre causas finais eacute esteacuteril e como uma virgem consagrada a Deus nada
produz (cf SPEDDING 1989 p 571)
17
afirma que ldquoA ciecircncia moderna eacute no seu todo hostil agraves explicaccedilotildees teleoloacutegicasrdquo6 Se
considerarmos que Peirce foi educado desde muito jovem como loacutegico e cientista e que desse
modo estava familiarizado com o meacutetodo cientiacutefico que vigorava em seu tempo sua insistecircncia
na realidade da causalidade final pode parece fora de lugar
Se o juiacutezo de Aristoacuteteles sobre a causalidade final era de que ela consistia em um aspecto
inerente ao mundo (cf CP 1 sect 211 1902) o mesmo natildeo se pode dizer do juiacutezo de um cientista
do seacuteculo XIX Para os cientistas do seacuteculo XIX como para os cientistas do nosso tempo a
causalidade final parece envolver ao menos trecircs aspectos que lhe dificultam a concessatildeo da
cidadania cientiacutefica parece que ela envolve a ideia de (1) que existem eventos individuais no
futuro (2) que exercem algum tipo de influecircncia causal sobre o presente e (3) que tecircm o poder de
determinar um curso preciso de accedilatildeo a fim de que possam ser realizados (cf HULSWIT 1996 p
200-2) em outras palavras pode-se notar que os aspectos aqui levantados sinalizam para a
concepccedilatildeo de causalidade final como causalidade eficiente invertida
Segundo a compreensatildeo de Peirce (cf EP 2 p 315-6 1904 CP 1 sect 211 1902) as causas
podem ser divididas em dois grandes grupos como afirma jaacute havia sido indicado por
Aristoacuteteles aquele que compreende as eficientes ou eneacutergicas e aquele que compreende as ideais
ou finais A insuficiecircncia da utilizaccedilatildeo de esquemas explicativos que faccedilam uso de apenas um dos
dois grupos eacute claramente apontada por Peirce Em 1902 no texto ldquoA detailed classification of the
Sciencerdquo afirma que ldquoA causa final sem a causa eficiente eacute inoacutecua () A causa eficiente sem a
causa final entretanto eacute pior do que inoacutecua em muito eacute mero caos e o caos natildeo eacute nem mesmo
caos sem a causa final eacute um nada vaziordquo (CP 1 sect 211 1902)7
Ao tratar da causa final reconhece sua diacutevida com Aristoacuteteles e julga modestamente ser um
seguidor do grande filoacutesofo Poreacutem o juiacutezo que faz da filiaccedilatildeo de suas ideias natildeo parece ser
6 Modern Science is on the whole hostile to teleological explanation
7 Final causation without efficient causation is helpless () Efficient causation without final causation however is
worse than helpless by far it is mere chaos and chaos is not even so much as chaos without final causation is blank
nothing
18
totalmente correto Sob alguns aspectos podemos afirmar que Peirce construiu uma concepccedilatildeo
original de causalidade final A apresentaccedilatildeo da originalidade de seu conceito e do papel que
desempenha no interior de sua cosmologia eacute o objetivo desta tese e que espero ter conseguido
realizar na exposiccedilatildeo que se segue Mostro neste trabalho que a causalidade final desempenha um
papel duplo ao mesmo tempo em que eacute uma exigecircncia da teoria da explicaccedilatildeo cientiacutefica tambeacutem
eacute um agente real do crescimento do universo pois atuante na determinaccedilatildeo de vaacuterios processos
naturais Dessa forma a investigaccedilatildeo tem a pretensatildeo de abarcar suas implicaccedilotildees tanto para a
epistemologia peirceana quanto para sua cosmologia
O objetivo do primeiro capiacutetulo eacute apresentar a hipoacutetese cosmoloacutegica peirceana considerada
por alguns comentadores como a ovelha negra ou o elefante branco do seu sistema (cf GALLIE
1952 p 215) localizaacute-la no interior de sua obra e selecionar os aspectos que melhor ilustram a
atuaccedilatildeo da causalidade final na constituiccedilatildeo do cosmo Jaacute nesse capiacutetulo apresentamos a hipoacutetese
que identifica a causalidade final como elemento necessaacuterio para a possibilidade de constituiccedilatildeo
de procedimentos cientiacuteficos que nos permitam conhecer a natureza e ao mesmo tempo moldar
uma conduta adequada para o futuro por meio da nossa capacidade de autocontrole (cf CP 5 sect
538 1902)
O imperativo que manda ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo sintetiza um aspecto
central do projeto de Peirce A primeira lei da loacutegica8 como o autor costuma denominaacute-la
expressa sua insatisfaccedilatildeo com relaccedilatildeo ao posicionamento da ciecircncia de seu tempo frente a alguns
princiacutepios isto eacute as leis naturais que eram entatildeo tomados como dados portanto
inquestionaacuteveis e alheios agrave investigaccedilatildeo Peirce reclama principalmente uma abordagem racional
para o estatuto das leis cientiacuteficas tomadas entatildeo como princiacutepios a partir dos quais as ciecircncias
satildeo construiacutedas mas que permaneciam de fora desse processo Ora para fornecer uma explicaccedilatildeo
racional do porquecirc de tais e tais leis atuarem no nosso universo ou seja para que a sua
8 Nota-se que o termo bdquoloacutegica‟ na obra peirceana tem um sentido bem mais amplo do que aquele hoje vigente Peirce
incluiacutea em seus estudos trecircs diferentes ramos por ele denominados de Gramaacutetica Filosoacutefica Loacutegica Criacutetica e
Metodecircutica (cf CP 2 sect 93 1902)
19
postulaccedilatildeo pura e simples natildeo bloqueie o caminho da investigaccedilatildeo o filoacutesofo expande o conceito
de evoluccedilatildeo9 e o utiliza como um princiacutepio loacutegico constituinte de sua hipoacutetese cosmoloacutegica A
hipoacutetese de um cosmo que evolui a partir do puro acaso do nada inicial ndash um continuum de
possibilidades infinitas ndash eacute a que permite explicar as caracteriacutesticas do universo atual sem a
necessidade de tomar seus constituintes como dados como eacute o caso das leis que passam a ser
explicadas como fruto do processo de aquisiccedilatildeo de haacutebitos a que todo universo estaacute submetido
Veremos entatildeo como a hipoacutetese cosmoloacutegica eacute uma consequecircncia da teoria da explicaccedilatildeo e qual
dentro dessa perspectiva eacute seu papel natildeo soacute como um subsiacutedio para o projeto de tornar a ciecircncia
possiacutevel mas tambeacutem como hipoacutetese que torna compreensiacutevel certos fenocircmenos como as accedilotildees
natildeo conservativas de difiacutecil explicaccedilatildeo para a ciecircncia mecanicista (cf CP 7 sect 471-83 1898)
como veremos no capiacutetulo sobre evoluccedilatildeo
A hipoacutetese cosmoloacutegica que eacute apresentada na forma de uma cosmogonia descreve a
passagem de um continuum de possibilidades absolutamente indeterminadas para outro
continuum o do geral Aqui entra em cena o elemento da continuidade que receberaacute nesse
capiacutetulo uma primeira descriccedilatildeo
No segundo capiacutetulo trataremos especificamente da hipoacutetese do continuum que assim
como havia acontecido com a hipoacutetese evolutiva eacute tomada como um princiacutepio da loacutegica (cf CP
6 sect 173 1902) Essa hipoacutetese estaacute desse modo a subsumida agrave tarefa de garantir a
inteligibilidade da natureza A esta doutrina metafiacutesica Peirce daacute o nome de sinequismo Como
aponta Hausman ldquoo sinequismo de Peirce eacute inseparaacutevel da ideia de Peirce de que a condiccedilatildeo
fundamental de inteligibilidade eacute mediaccedilatildeo generalidade e continuidaderdquo (HAUSMAN 1998 p
630) Considerar todas as coisas como sendo contiacutenuas umas agraves outras tem como uma de suas
consequecircncias a de que a individualidade absoluta eacute apenas uma ilusatildeo Desta forma nenhuma
quantidade absoluta pode ser apurada tudo estaacute mergulhado em um mar de indeterminaccedilatildeo cujo
princiacutepio constituinte eacute diz-nos Peirce o acaso (cf CP 1 sectsect 163-75 1897) Assim duas das
9 Veremos adiante (capiacutetulo III desta tese) que embora a leitura da Origem das espeacutecies de Charles Darwin tenha
exercido uma grande influecircncia sobre o jovem Peirce sua concepccedilatildeo de evoluccedilatildeo era muito mais ampla podendo ser
classificada em trecircs tipos ticaacutestica anancaacutestica e agapaacutestica
20
principais teorias da obra peirceana satildeo relacionadas o tiquismo10
e o sinequismo O problema eacute
colocado de maneira bastante clara por Esposito (1973 p 65) na forma de um dilema ldquoou o
crescimento era real e a filosofia mecacircnica insuficiente ou era uma ilusatildeo e a filosofia
cosmogocircnica ndash o sinequismo ndash desnecessaacuteriardquo
A principal justificativa do sinequismo encontra-se no fato de que fornece uma boa
explicaccedilatildeo para os fenocircmenos serem como satildeo As descontinuidades satildeo vistas por Peirce como
inexplicaacuteveis A hipoacutetese do continuum ajuda entatildeo a evitar a postulaccedilatildeo do incompreensiacutevel no
seio da natureza que algo deva ser considerado como um dado ou um fato uacuteltimo e
consequentemente que a investigaccedilatildeo deva ser suspensa (cf CP 1 sect 175 1897) Aleacutem disso
indica o filoacutesofo ela promove o progresso da ciecircncia na medida em que encoraja os
pesquisadores a natildeo desesperarem diante dos misteacuterios da natureza facultando uma nova maneira
de tratar os fenocircmenos ou seja a aplicaccedilatildeo dos meacutetodos e conceitos de uma ciecircncia a outras Da
mesma forma que vimos no primeiro capiacutetulo Peirce fazer ao empregar conceitos da biologia e
matemaacutetica como princiacutepios da loacutegica
O sinequismo eacute tido por Peirce como uma esperanccedila reguladora (regulative hope) isto eacute
algo cuja existecircncia ainda que natildeo possa ser provada eacute necessaacuteria para a possibilidade da
atividade cientiacutefica Enquanto um princiacutepio da loacutegica ele estabelece um criteacuterio para o tipo de
hipoacutetese que deve ser selecionado para o teste Ele estaacute diretamente relacionado com o princiacutepio
metodoloacutegico que diz que eacute sempre melhor escolher hipoacuteteses que abram espaccedilo para o maior
nuacutemero de possibilidades (cf CP 7 sect 221 1901) Natildeo se trata portanto de uma doutrina
metafiacutesica uacuteltima mas uma hipoacutetese eleita por razotildees metodoloacutegicas e que poderaacute vir a ser
substituiacuteda por alguma formulaccedilatildeo mais fraca caso a experiecircncia assim o exija Ainda assim seria
preferiacutevel diz Peirce uma hipoacutetese que afirme que ldquo() um continuum eacute meramente uma seacuterie
descontiacutenua com possibilidades adicionaisrdquo (CP 1 sect 170 1893)11
agravequela que afirma a existecircncia
de descontinuidades radicais
10 Tiquismo do grego Tycheacute eacute o nome que Peirce daacute agrave sua teoria do acaso como um princiacutepio operante na natureza
(tal como seraacute apresentado no primeiro capiacutetulo desta tese) 11
() a continuum is merely a discontinuous series with additional possibilities
21
A necessidade de introduzir a hipoacutetese do sinequismo indica Esposito (1973) natildeo decorre
da defesa de qualquer tese holista como se poderia pensar antes sua funccedilatildeo primordial eacute
permitir uma abordagem coerente do fenocircmeno do crescimento presente nas mais variadas
expressotildees do que chamamos de universo O crescimento eacute apenas uma outra palavra para
designar a evoluccedilatildeo Se por um lado Peirce exige a continuidade como condiccedilatildeo para a
inteligibilidade por outro funda sua ontologia sobre uma matriz indeterminista que tem no
acaso entendido como vera causa seu princiacutepio de constituiccedilatildeo necessaacuterio agrave abordagem dos
fenocircmenos evolutivos A intromissatildeo do acaso no continuum processo criativo espontacircneo
responsaacutevel pela introduccedilatildeo de novidade no universo produz descontinuidades
A maneira de conciliar esses dois aspectos aparentemente conflitantes mas necessaacuterios agrave
abordagem peirceana parece ser realizada por meio da noccedilatildeo de infinitesimal (cf CP 6 sect 86
1898) Como aponta Hausman (1998) o papel desempenhado pelos infinitesimais na origem da
evoluccedilatildeo tem sido subestimado pelos comentadores de Peirce Ele afirma ldquoO que eacute
imediatamente importante eacute que a noccedilatildeo de infinitesimal parece ser necessaacuteria para tratar dos
componentes constitutivos dos continua que podem evoluir de acordo com uma teleologia
evolucionaacuteriardquo (HAUSMAN 1998 p 630) O problema portanto que devemos tratar eacute o de
conciliar o continuum fonte de inteligibilidade com a presenccedila do acaso introdutora de
novidades o que implica em descontinuidades Uma vez que o continuum eacute sempre geral ou
seja seus componentes natildeo podem ser individuais uma soluccedilatildeo parece ser a de consideraacute-los
como sendo infinitesimais que se tornam dessa maneira portadores da espontaneidade e da
liberdade do acaso Esse processo envolve uma antiga e difiacutecil questatildeo a saber como o geral
produz os particulares ou melhor dizendo como universal e particular se relacionam Sob este
aspecto concordamos com Hausman que faz uma siacutentese do processo ao dizer que
A sugestatildeo de Peirce que indica a maneira pela qual os dois princiacutepios
aparentemente contraacuterios podem ser mantidos eacute propor que os contiacutenuos satildeo
compostos de infinitesimais que satildeo possibilidades (Primeiros) que podem
tornar-se potencialidades ndash que podem tornar-se pontos que podem fugir da
identidade do continuum ao qual eles pertencem antes de tornarem-se
22
potencialidades (HAUSMAN 1998 p 631)
Esta sugestatildeo envolve a distinccedilatildeo natildeo muito frequente entre possiacutevel e potencial que seraacute
elaborada com mais detalhes nesse capiacutetulo Ela parece-nos eacute fundamental para compreender a
relaccedilatildeo entre a continuidade e a causalidade final o objeto de nossa investigaccedilatildeo A discussatildeo do
princiacutepio de individuaccedilatildeo que estaacute aiacute envolvido parece necessitar da consideraccedilatildeo de outro
ingrediente presente na cosmologia peirceana o amor criativo ou aacutegape como eacute denominado por
Peirce (cf CP 6 sect 287 1893)
Chegamos assim ao tema do terceiro capiacutetulo desta tese que trata da evoluccedilatildeo A hipoacutetese
evolucionaacuteria atende em primeiro lugar a uma necessidade de barrar a regressatildeo infinita das
explicaccedilotildees e de alargar tanto quanto possiacutevel o horizonte da inteligibilidade humana portanto
subsumida agrave maacutexima que ordena natildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeo A estrateacutegia de
produzir explicaccedilatildeo com base em conhecimentos jaacute garantidos gera um regresso ao infinito na
medida em que tais conhecimentos tambeacutem devem ser explicados em funccedilatildeo de outros
conhecimentos preacutevios e assim sucessivamente se natildeo se quiser postular arbitrariamente um
fundamento que seria ele proacuteprio carente de explicaccedilatildeo e desse modo refrataacuterio agrave
inteligibilidade A alternativa sugerida por Peirce eacute de considerar os elementos formadores das
explicaccedilotildees como objetos histoacutericos e dessa maneira a hipoacutetese da cosmologia evolutiva eacute
utilizada para garantir a inteligibilidade dos elementos ao propor uma explicaccedilatildeo de sua
formaccedilatildeo isto eacute uma explicaccedilatildeo geneacutetica Especialmente as leis e suas similaridades diz Peirce
soacute podem ser explicadas a partir de uma perspectiva evolutiva (cf CP 6 sect 13 1891)
A evoluccedilatildeo eacute o modo pelo qual o universo cresce fato que se impotildee agrave experiecircncia e
segundo Peirce as explicaccedilotildees que tecircm por base apenas a atuaccedilatildeo da causalidade eficiente satildeo
incapazes de abarcaacute-lo (CP 1 sect 220 1902) O modo de efetivaccedilatildeo da evoluccedilatildeo confunde-se
assim com a proacutepria maneira da causalidade final atuar Compreendendo o processo de evoluccedilatildeo
seja do cosmo ou de qualquer outro fenocircmeno irreversiacutevel compreenderemos a concepccedilatildeo
23
original de causalidade final empregada pelo filoacutesofo Eacute nos fenocircmenos irreversiacuteveis e no
tratamento insatisfatoacuterio que o mecanicismo (cf CP 6 sect 555 1887 CP 6 sect 614 1893)12
lhes
dispensava que vamos encontrar outra motivaccedilatildeo para a proposiccedilatildeo de uma filosofia evolutiva
aliado ao ideal de ciecircncia que procura natildeo deixar sem explicaccedilatildeo aquilo que pode ser
compreendido por uma hipoacutetese mais abrangente (cf CP 6 sect 60 1892)
Levando-se em conta o sinequismo (cf CP 6 sectsect 169-73 1902)e o evolucionismo (cf CP
1 sectsect 103-9 1896) propostos por Peirce chegamos ao tema do quarto capiacutetulo desta tese o
raciociacutenio abdutivo Jaacute que uma das consequecircncias do sinequismo eacute a de que entre o homem e o
cosmo natildeo haacute qualquer descontinuidade radical que ambos satildeo expressotildees de um mesmo
processo expressotildees que possuem apenas diferenccedila de graus e de que o princiacutepio constituinte das
transformaccedilotildees que ambos sofrem eacute a evoluccedilatildeo temos assim os elementos necessaacuterios para a
compreensatildeo do modo de crescimento do proacuteprio conhecimento humano isto eacute temos condiccedilotildees
de entender porque para Peirce a ciecircncia eacute um projeto realizaacutevel uma vez desconsideradas as
questotildees sobre o tempo que o empreendimento possa tomar para se realizar (cf CP 5 sect409
1878)
O projeto peirceano inicial era o de fundar o meacutetodo de investigaccedilatildeo cientiacutefica na induccedilatildeo
entendida como processo de verificaccedilatildeo empiacuterica de hipoacuteteses Vejamos uma declaraccedilatildeo na qual
Peirce expressa sua esperanccedila na capacidade autocorretiva da induccedilatildeo
Tambeacutem natildeo devemos perder de vista a tendecircncia constante do processo
indutivo para corrigir a si mesmo Isso eacute da sua essecircncia Esta eacute a sua maravilha
A probabilidade de sua conclusatildeo soacute consiste no fato de que se o valor
verdadeiro da relaccedilatildeo procurada natildeo tiver sido alcanccedilado uma extensatildeo do
processo indutivo levaraacute a uma maior aproximaccedilatildeo (CP 2 sect 729 1883)13
12 O objetivo aqui eacute indicar a maneira que Peirce se referia ao mecanicismo e como pretendeu superaacute-lo natildeo entrarei
na discussatildeo sobre a pertinecircncia histoacuterica de suas criacuteticas 13
Nor must we lose sight of the constant tendency of the inductive process to correct itself This is of its essence
This is the marvel of it The probability of its conclusion only consists in the fact that if the true value of the ratio
sought has not been reached an extension of the inductive process will lead to a closer approximation
24
Nessa perspectiva Peirce esperava confirmar a tese de que as correccedilotildees que o processo
indutivo ocasionaria nas hipoacuteteses por meio do confronto com a experiecircncia levariam a um
refinamento das teorias conduzindo a um niacutevel de precisatildeo e seguranccedila que facultaria a
qualificaccedilatildeo das mesmas como verdadeiras No entanto apoacutes uma profunda anaacutelise o filoacutesofo
constatou que a esperanccedila de que esse processo de raciociacutenio pudesse ser autocorretivo e assim
levasse por si soacute a um desenvolvimento contiacutenuo do conhecimento mostrou-se irrealizaacutevel (cf
SKAGESTAD 1981)
A hipoacutetese desencadeadora do processo de investigaccedilatildeo deveria ela proacutepria colocar o
cientista na boa direccedilatildeo caso isso natildeo se verificasse o processo de autocorreccedilatildeo natildeo garantiria o
ecircxito da empresa como afirma o filoacutesofo ldquoUma abduccedilatildeo () eacute a uacutenica esperanccedila possiacutevel de
regulaccedilatildeo racional de nossa conduta futura ()rdquo (CP 2 sect 270 1897)14
Peirce afirma que a
atividade de lanccedilar hipoacuteteses embora faliacutevel e perfeitamente descrito como adivinhaccedilatildeo ou
palpite eacute um processo de inferecircncia loacutegica Seu significado praacutetico eacute o de que devemos agir
animados pela esperanccedila de que o homem adivinha naturalmente as melhores hipoacuteteses para
testar embora como veremos isso natildeo queira dizer que acerte sempre ou que acerte na maioria
das vezes e nem que criteacuterios para a seleccedilatildeo das hipoacuteteses a serem testadas sejam dispensaacuteveis
(cf CP 7 sect 219 1901) Essa sintonia natural entre o homem e o cosmo pode ser vista com o
resultado de um processo de seleccedilatildeo natural que concedeu aos homens essa vantagem evolutiva
para a sobrevivecircncia e da continuidade da mente mas isso natildeo explica tudo pois o alcance da
inteligibilidade humana eacute muito mais amplo do que o acircmbito restrito daqueles conhecimentos que
poderiam ter relevacircncia para a sua sobrevivecircncia (cf 6 sect 307 1893)
Explicar como a abduccedilatildeo funciona para aleacutem das circunstacircncias imediatas e cotidianas
requer a abordagem de outra importante ideia desenvolvida por Peirce de maneira original a sua
concepccedilatildeo de causalidade final o que nos leva ao tema do uacuteltimo capiacutetulo desta tese no qual se
14 An Abduction is (hellip) the only possible hope of regulating our future conduct rationally (hellip)
25
trata especificamente da causalidade final ressaltando a originalidade da concepccedilatildeo peirceana
Para tanto discutiremos em um primeiro momento a insuficiecircncia da utilizaccedilatildeo exclusiva da
causalidade eficiente nos esquemas explicativos dos processos naturais ressaltando segundo a
concepccedilatildeo de Peirce a complementariedade entre causalidade final e causalidade eficiente (cf
CP 1 sectsect 211-2 1902) Aqui se verifica que a causalidade final cumpre um duplo papel a
necessidade de sua inclusatildeo pode ser verificada tanto por razotildees epistemoloacutegicas quanto
ontoloacutegicas Seraacute realizada uma anaacutelise da hostilidade com que tal tipo de causalidade eacute tratado
pela ciecircncia moderna cujas principais objeccedilotildees jaacute foram indicadas acima (cf p 17)15
Uma vez que natildeo podemos ter acesso aos objetos externos agrave nossa experiecircncia cuja
realidade natildeo eacute mais que uma hipoacutetese que torna explicaacutevel o como e o porquecirc de termos do
mundo a experiecircncia que temos dadas as caracteriacutesticas de variaccedilatildeo e regularidade da natureza
a causalidade final eacute uma outra hipoacutetese necessaacuteria na medida em que torna o empreendimento
cientiacutefico possiacutevel isto eacute uma esperanccedila de que possamos produzir expectativas para o futuro e
comportamentos adequados moldados pelo autocontrole (cf CP 2 sect 270 1897)
Para que a ciecircncia seja possiacutevel torna-se fundamental a tarefa de bem classificar os objetos
da experiecircncia Mas qual criteacuterio adotar A escolha injustificada do criteacuterio tornaria ciecircncia uma
espeacutecie de ficccedilatildeo ou ilusatildeo A classificaccedilatildeo natural diraacute Peirce soacute pode ser obtida se
considerarmos a causa final de cada fenocircmeno ainda que isso seja um tanto vago (cf CP 1 sect
204 216 1902) Eacute a causalidade final o criteacuterio correto para a constituiccedilatildeo das diferentes classes
da experiecircncia Ora entretanto natildeo eacute no objeto externo ao homem que o criteacuterio deve ser
buscado mas na proacutepria tendecircncia de desenvolvimento dos fenocircmenos que se observa na
experiecircncia Desse modo a uacutenica ciecircncia possiacutevel eacute uma aposta que se faz um palpite que
enquanto tal eacute eminentemente faliacutevel (cf CP 1 sect 14 sect171 1897)
Como jaacute foi dito Peirce considera a ciecircncia um empreendimento eminentemente faliacutevel
15 Embora natildeo desconheccedilamos a existecircncia de uma grande bibliografia sobre o tratamento das questotildees referentes agrave
causalidade final em outros acircmbitos notadamente na biologia concentramos nossa atenccedilatildeo nesta tese somente na
discussatildeo do conceito no interior da cosmologia peirceana
26
mas ao mesmo tempo absolutamente abrangente O que nos deve guiar na elaboraccedilatildeo de nossas
teorias cientiacuteficas eacute o rigor e a completude com que explicamos o mundo da experiecircncia
A hipoacutetese que encontra na causalidade final uma importante noccedilatildeo para a possibilidade da
realizaccedilatildeo da ciecircncia que eacute marcada pela falibilidade mas ao mesmo tempo em que visa total
abrangecircncia explicativa pode ser vista como uma das etapas das tentativas realizadas por Peirce
para tornar compreensiacutevel a proacutepria existecircncia das leis isto eacute a maneira que percebemos o
mundo e um princiacutepio que nos permite controlar adequadamente a nossa conduta Concordamos
com Short quando afirma que ldquoa intenccedilatildeo da cosmologia era ser uma abordagem evolucionaacuteria
fundamental da lei per serdquo (2011 p 535)
Eacute como aponta Short (cf 2011 p 532) no periacuteodo cosmoloacutegico que Peirce desenvolve a
doutrina do idealismo objetivo (ver TIERCELIN 1998) que afirma que a mente isto eacute o
sentimento eacute anterior agrave mateacuteria Peirce indica que ldquoa uacutenica teoria inteligiacutevel do universo eacute o
idealismo objetivo que a mateacuteria eacute mente empedernida haacutebitos inveterados tornam-se leis
fiacutesicasrdquo (EP 1 p 293 1891)16
O universo desse modo eacute o resultado de um processo que tendo
se originado espontaneamente de uma neacutebula de possibilidades no iniacutecio infinitamente remoto
desenvolveu-se por meio da atuaccedilatildeo de um princiacutepio que Peirce inicialmente denominou de lei da
mente e que posteriormente natildeo sem alteraccedilotildees denominou de causalidade final ou teleologia
Retomemos as palavras do proacuteprio autor
A hipoacutetese sugerida pelo presente escritor eacute a de que todas as leis satildeo resultadas
da evoluccedilatildeo que subjacente a todas as outras leis estaacute a uacutenica tendecircncia que
pode crescer por sua proacutepria virtude a tendecircncia de todas as coisas a adquir
haacutebitos Uma vez que essa mesma tendecircncia eacute a uacutenica lei fundamental da mente
segue-se que a evoluccedilatildeo fiacutesica trabalha segundo fins da mesma forma que a accedilatildeo
mental trabalha segundo fins e portanto em um aspecto da questatildeo seria
perfeitamente correto dizer que causaccedilatildeo final eacute a uacutenica primaacuteria No entanto
por outro lado a lei de haacutebito eacute uma simples lei formal uma lei da causalidade
eficiente de modo que uma ou outra maneira de considerar o assunto eacute
16 The one intelligible theory of the universe is that of objective idealism that matter is effete mind inveterate habits
becoming physical laws
27
igualmente verdadeira embora a primeira seja mais plenamente inteligente (CP
6 sect 101 1902)17
As hipoacuteteses do caos original da lei da mente e da causalidade final podem ser vistas como
etapas em um processo de investigaccedilatildeo realizado com a finalidade de tornar compreensiacutevel o
processo pelo qual o universo se desenvolveu ateacute o momento atual e de constituir-se em um
instrumento heuriacutestico para descoberta futura de leis
17 The hypothesis suggested by the present writer is that all laws are results of evolution that underlying all other
laws is the only tendency which can grow by its own virtue the tendency of all things to take habits Now since this
same tendency is the one sole fundamental law of mind it follows that the physical evolution works towards ends in
the same way that mental action works towards ends and thus in one aspect of the matter it would be perfectly true
to say that final causation is alone primary Yet on the other hand the law of habit is a simple formal law a law of
efficient causation so that either way of regarding the matter is equally true although the former is more fully
intelligent
28
CAPIacuteTULO 01
A HIPOacuteTESE COSMOLOacuteGICA
The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in
the year 4004 BC but is going on today and never will be done is this very
development of Reason (CP 1 sect 615 1903)
29
Neste capiacutetulo seraacute feita uma apresentaccedilatildeo da hipoacutetese cosmoloacutegica peirceana e uma
discussatildeo inicial dos elementos que a constituem Partiremos da apresentaccedilatildeo da teoria da
explicaccedilatildeo desenvolvida por Charles S Peirce na qual a hipoacutetese evolucionaacuteria possui um papel
central e mostraremos como o empreendimento cristalizado na forma da hipoacutetese cosmoloacutegica
poder ser visto como um fruto tardio e necessaacuterio do seu grande projeto de garantir a realizaccedilatildeo
do empreendimento cientiacutefico e de expansatildeo do horizonte da inteligibilidade humana Esse
projeto tem sua mais importante sustentaccedilatildeo como indica o proacuteprio autor na ideia de
continuidade a qual tambeacutem receberaacute aqui uma primeira caracterizaccedilatildeo O conceito de
continuum assume no estudo de sua obra o papel de um fio condutor por meio do qual nos
moveremos entre as estruturas que datildeo sustentaccedilatildeo e encontram-se na origem do cosmo
peirceano cuja pretensatildeo eacute a de ser uma hipoacutetese explicativa do modo de ser atual do universo
Por meio da hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce apresenta os elementos principais de sua
metafiacutesica ou dito de maneira mais direta a metafiacutesica peirceana assume a forma de uma
cosmologia e mais particularmente de uma cosmogonia Eacute a maneira de pensar moldada pela
evoluccedilatildeo que daacute origem agrave apresentaccedilatildeo sob a forma de cosmogonia dos elementos de sua
hipoacutetese cosmoloacutegica
1 NAtildeO BLOQUEAR O CAMINHO DA INVESTIGACcedilAtildeO
Encontra-se presente na obra de Peirce desde seus escritos de juventude uma preocupaccedilatildeo
com a elaboraccedilatildeo de um meacutetodo adequado que nos possa conduzir com ecircxito agrave obtenccedilatildeo da
verdade nos mais variados campos da investigaccedilatildeo humana em particular no cientiacutefico (cf CP
5 sectsect 358-87 1877 5 sectsect 388-410 1878) Neste sentido a agenda de problemas com a qual se
ocupa apresenta uma motivaccedilatildeo inicial que natildeo difere muito daquela proposta e desenvolvida
pelos filoacutesofos modernos em particular por Descartes As diferenccedilas e particularidades do projeto
30
peirceano de elaboraccedilatildeo metodoloacutegica entretanto natildeo tardaratildeo a aparecer
Na seacuterie de textos de 1868-69 conhecida como ldquoseacuterie sobre cogniccedilatildeordquo vemos Peirce
analisar e criticar de maneira bastante contundente os pressupostos da filosofia cartesiana O
principal alvo da criacutetica ali desenvolvida eacute a noccedilatildeo de conhecimento intuitivo ou seja da
afirmaccedilatildeo de que temos a possibilidade de apreender de forma imediata certos tipos de ideias
Sua criacutetica consiste em mostrar que mesmo se tiveacutessemos tal tipo de apreensatildeo natildeo teriacuteamos
condiccedilatildeo de distingui-lo em meio agraves demais cogniccedilotildees que satildeo frutos da mediaccedilatildeo
representacional e desse modo da experiecircncia (cf CP 5 sectsect 283-309 1868) Em outras palavras
enquanto Descartes julgava possiacutevel a obtenccedilatildeo de conhecimento certo e seguro por meio de
premissas que natildeo eram elas proacuteprias conclusotildees Peirce afirma uma nova concepccedilatildeo da accedilatildeo
mental na qual toda premissa eacute ao mesmo tempo conclusatildeo (cf CP 5 sect 213 1868) Jaacute nesses
textos Peirce afirmava a necessidade de se pensar a cogniccedilatildeo como um processo contiacutenuo e
faliacutevel pois ainda que pudessem existir cogniccedilotildees intuitivas natildeo teriacuteamos como reconhececirc-las
(cf CP 5 sectsect 238-43 1868) O resultado de sua anaacutelise foi sintetizado que ele denominou de as
quatro incapacidades humanas
1 Natildeo temos poder de Introspecccedilatildeo todo conhecimento do mundo interno eacute
derivado do nosso conhecimento de fatos externos por raciociacutenio hipoteacutetico
2 Natildeo temos poder de Intuiccedilatildeo mas toda cogniccedilatildeo eacute determinada logicamente
por cogniccedilotildees preacutevias
3 Natildeo temos poder de pensar sem signos
4 Natildeo temos concepccedilatildeo do absolutamente incognosciacutevel (CP 5 sect 4 1868)18
18 1 We have no power of Introspection but all knowledge of the internal world is derived by hypothetical
reasoning from our knowledge of external facts
2 We have no power of Intuition but every cognition is determined logically by previous cognitions
3 We have no power of thinking without signs
4 We have no conception of the absolutely incognizable
31
Obviamente levando-se em conta essas incapacidades a afirmaccedilatildeo do conhecimento
intuitivo implica uma contradiccedilatildeo em termos que Peirce indica da seguinte maneira
() todas as faculdades cognitivas que conhecemos satildeo relativas e
consequentemente os seus produtos satildeo relaccedilotildees Mas a cogniccedilatildeo de uma relaccedilatildeo
eacute determinada por cogniccedilotildees preacutevias Nenhuma cogniccedilatildeo natildeo determinada por
uma cogniccedilatildeo preacutevia portanto pode ser conhecida Ela natildeo existe portanto em
primeiro lugar porque eacute absolutamente incognosciacutevel em segundo porque a
cogniccedilatildeo existe unicamente na medida em que eacute conhecida (EP 1 p 26
1868)19
Do ponto de vista peirceano o projeto de Descartes embora vigoroso e respeitaacutevel20
natildeo
parte de uma visatildeo realista do que eacute o homem enquanto sujeito do conhecimento para Peirce a
caracteriacutestica mais geral daqueles para os quais seu meacutetodo eacute adequado eacute o fato de serem
inteligecircncias que aprendem com a experiecircncia (cf CP 3 sect 428 1896) Eacute a partir da criacutetica a
Descartes que Peirce abre o caminho para a constituiccedilatildeo do seu proacuteprio meacutetodo de investigaccedilatildeo
tarefa que nunca abandonou Mesmo em seus escritos mais tardios podemos encontrar novas
tentativas de elaboraccedilatildeo de provas para o que veio a chamar ldquopragmatismordquo e posteriormente
ldquopragmaticismordquo
Na tentativa de escapar ao regresso das explicaccedilotildees ou da postulaccedilatildeo infundada de um
primeiro ponto de partida para a cogniccedilatildeo Peirce busca no conceito de evoluccedilatildeo presente de
maneira muito pronunciada na ciecircncia da segunda metade do seacuteculo XIX21
um outro caminho
para a fundamentaccedilatildeo do conhecimento Tal conceito assume em sua obra o caraacuteter de ldquoum
postulado da loacutegicardquo (EP 1 p 218 1884) e apenas indica que deve haver uma explicaccedilatildeo simples
19 () all the cognitive faculties we know of are relative and consequently their products are relations But the
cognition of a relation is determined by previous cognitions No cognition not determined by a previous cognition
then can be known It does not exist then first because it is absolutely incognizable and second because a
cognition only exists so far as it is known 20
Veremos posteriormente p 119 desta tese que ao classificar os tipos de meacutetodos de investigaccedilatildeo Peirce expressa
respeito com relaccedilatildeo ao meacutetodo a priori seguido por Descartes 21
Principalmente por meio do trabalho de Charles Darwin
32
para um estado de coisas complexo (cf W 4 p 547) Como um postulado22 o princiacutepio
evolucionista indica um ponto de vista sobre as coisas que se escolhe com a finalidade de
fornecer uma explicaccedilatildeo geral De uma maneira mais simples podemos dizer que a evoluccedilatildeo
representa a escolha de uma perspectiva que atende agrave necessidade de natildeo admitir que fatos
uacuteltimos sejam inexplicaacuteveis (cf CP 6 sect 604 1893) Sua funccedilatildeo enquanto princiacutepio regulador eacute
a de indicar que tipo de hipoacuteteses deve ser escolhido para satisfazer agrave necessidade expressa
acima Como afirma Rosa (2003 p 268) ldquo() eacute enquanto exigecircncia de explicabilidade que a
evoluccedilatildeo eacute um postulado da loacutegicardquo
O objeto a ser explicado por esse princiacutepio regulador natildeo eacute o contingente mas o geral
Dessa maneira o fim buscado eacute a explicaccedilatildeo do universo como uma entidade global Ele tem por
objetivo a explicaccedilatildeo das regularidades do universo ou seja busca uma explicaccedilatildeo para a
existecircncia e para a homogeneidade das leis naturais Eacute em funccedilatildeo dessa caracteriacutestica que
podemos dizer que existe uma cosmologia peirceana Peirce natildeo estava satisfeito com a
incapacidade das teorias aceitas na eacutepoca em fornecer uma explicaccedilatildeo para as leis naturais que
eram tratadas como dados aceitos sem qualquer questionamento A lei como disse em um texto
de 1891 eacute justamente aquilo que necessita de uma razatildeo (cf CP 6 sect 12 1891 1 sect 406 1890)
Na medida em que as leis naturais demonstram regularidades na sua forma de atuar colocam-se
como objeto de uma investigaccedilatildeo cuja finalidade eacute apurar por que razatildeo elas se constituiacuteram
daquela maneira As regularidades satildeo reconhece Peirce em consonacircncia com os cientistas da sua
eacutepoca o objeto de explicaccedilatildeo da ciecircncia aquele entretanto que esperasse o mesmo tratamento
para as leis teria suas expectativas frustradas de modo surpreendente
Toda investigaccedilatildeo afirma Peirce parte de uma surpresa da quebra de uma expectativa real
Em 1877 afirma ainda em oposiccedilatildeo a Descartes
Alguns filoacutesofos imaginaram que para comeccedilar uma investigaccedilatildeo soacute era
necessaacuterio proferir uma questatildeo seja oralmente ou colocando-a em uma folha de
22 Peirce afirma que os grandes avanccedilos cientiacuteficos que ainda estavam por vir seriam frutos da aplicaccedilatildeo de teorias
meacutetodos ou conceitos de uma determinada aacuterea do saber a outras Podemos ver que eacute exatamente o que estaacute fazendo
aqui ao tomar um conceito posto em evidecircncia pela teoria darwiniana como um postulado da loacutegica Esta afirmaccedilatildeo
pode ser vista como uma consequecircncia da tese sinequista
33
papel e ateacute mesmo recomendaram-nos a comeccedilar nossos estudos duvidando de
tudo Mas a mera colocaccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo na forma interrogativa natildeo
estimula a mente a batalhar pela crenccedila Deve existir uma duacutevida real e viacutevida e
sem isso toda discussatildeo eacute vatilde (CP 5 sect 376 1877)23
Esse fato conduz agrave elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses explicativas que se verdadeiras eliminariam a
surpresa do evento Esse processo como indica o filoacutesofo parte do consequente e procura
encontrar um antecedente que o explique O antecedente generaliza os dados dispersos no
consequente Ao tipo de raciociacutenio que nos possibilita criar hipoacuteteses Peirce daacute o nome de
abduccedilatildeo Conforme Rosa (2003 p 269) ldquo() o raciociacutenio abdutivo consiste no processo
imaginativo que parte do particular e procura o universal que o subsume de forma a poder
deduzir o particular a partir do universal dadordquo
A caracteriacutestica mais marcante da generalidade segundo Peirce eacute a continuidade que seraacute
investigada mais detidamente no capiacutetulo dois desta tese (cf CP 4 sect 642 1908) As ideias do
filoacutesofo acerca deste toacutepico estatildeo concentradas na doutrina chamada por ele de doutrina do
sinequismo (cf CP 6 sect 103 1892) Eacute a continuidade que daraacute sustentaccedilatildeo agrave tese evolucionista e
por meio dela agrave hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce trata o sinequismo como um princiacutepio regulador da
loacutegica da mesma maneira que havia feito com a evoluccedilatildeo
O sinequismo natildeo eacute uma doutrina metafiacutesica uacuteltima e absoluta eacute um princiacutepio
regulador da loacutegica prescrevendo que tipo de hipoacutetese eacute adequado agrave
consideraccedilatildeo e ao exame () Em resumo o sinequismo soma ao princiacutepio
segundo o qual as inexplicabilidades natildeo podem ser consideradas como
explicaccedilotildees possiacuteveis (CP 6 sect 173 1902)24
23 Some philosophers have imagined that to start an inquiry it was only necessary to utter a question or set in down
upon paper and have even recommended us to begin our studies with questioning everything But the mere putting
of a proposition into the interrogative form does not stimulate the mind to any struggle after belief There must be a
real and living doubt and without this all discussion is idle 24
Synechism is not an ultimate and absolute metaphysical doctrine it is a regulative principle of logic prescribing
what sort of hypothesis is fit to be entertained and examined () In short synechism amounts to the principle that
inexplicabilities are not to be considered as possible explanations
34
Outra formulaccedilatildeo da hipoacutetese do continuum ou uma de suas consequecircncias eacute aquela
encontrada na afirmaccedilatildeo de que os processos da natureza e os processos da mente humana satildeo
similares (cf 6 sect 289 1893) por esta razatildeo veremos o conceito de haacutebito assumir grande
importacircncia na elaboraccedilatildeo peirceana
Como ficaraacute evidente na proacutexima seccedilatildeo a exposiccedilatildeo dos elementos constituintes e dos
processos de desenvolvimento do cosmo bem como a identificaccedilatildeo do seu princiacutepio geral de
constituiccedilatildeo na lei de aquisiccedilatildeo de haacutebito ou lei da mente assume a forma de uma cosmogonia
que descreve o cosmo em termos antropomoacuterficos Ventimiglia eacute bastante direto ao afirmar que o
caraacuteter antropomoacuterfico da cosmologia peirceana a desqualifica como hipoacutetese cientiacutefica ele
afirma que ldquoa cosmologia de Charles Peirce tem tradicionalmente estado entre os menos
celebrados aspectos de seu pensamento Eacute tipicamente considerada excessivamente
antropomoacuterfica para ser uma seacuteria contribuiccedilatildeo a nossa compreensatildeo da evoluccedilatildeo da realidadeldquo
(VENTIMIGLIA 2008 p 661) Natildeo podemos portanto prosseguir sem antes considerarmos
ainda que brevemente o problema colocado por essa abordagem A dificuldade consiste em
justificar a atribuiccedilatildeo de caracteres humanos a seres ou coisas que natildeo satildeo humanos Em primeiro
lugar eacute preciso notar que Peirce estava consciente dessa dificuldade e respondeu aos seus criacuteticos
nos seguintes termos
Ouccedilo vocecirc dizer bdquoIsto cheira demais a uma concepccedilatildeo antropomoacuterfica‟
Respondo que cada explicaccedilatildeo cientiacutefica de um fenocircmeno natural eacute uma
hipoacutetese de que haacute algo na natureza ao qual a razatildeo humana eacute anaacuteloga e que
realmente eacute assim todos os sucessos da ciecircncia em suas aplicaccedilotildees agrave
conveniecircncia humanas satildeo testemunhas (CP 1 sect 316 1903)25
25 I hear you say This smacks too much of an anthropomorphic conception I reply that every scientific
explanation of a natural phenomenon is a hypothesis that there is something in nature to which the human reason is
analogous and that it really is so all the successes of science in its applications to human convenience are witnesses
35
Como inteligecircncias que aprendem com a experiecircncia e que natildeo possuem outra fonte da qual
retirar o material de seus pensamentos os humanos soacute podem compreender aquilo que tem a
forma da experiecircncia humana A proacutepria ideia de que os acontecimentos naturais se processam
segundo leis pode ser visto como uma projeccedilatildeo do modo pelo qual raciocinamos Diz Peirce
Costumamos conceber a Natureza como estando perpetuamente realizando
deduccedilotildees em Barbara Esta eacute a nossa metafiacutesica natural e antropomoacuterfica
Concebemos que haacute Leis da Natureza que satildeo as suas Regras ou premissas
maiores Concebemos que Casos surgem sob estas leis estes casos consistem na
predicaccedilatildeo ou ocorrecircncia de causas que satildeo os termos meacutedios dos silogismos
E finalmente concebemos que a ocorrecircncia destas causas em virtude das leis
da Natureza resulta em efeitos que satildeo as conclusotildees dos silogismos Conceber
a natureza dessa maneira leva-nos naturalmente a conceber a ciecircncia como tendo
trecircs tarefas - (1) a descoberta de Leis que eacute realizada por induccedilatildeo (2) a
descoberta de Causas que eacute realizado por inferecircncia hipoteacutetica e (3) a prediccedilatildeo
dos Efeitos que eacute realizada por deduccedilatildeo Parece-me ser muito uacutetil selecionar um
sistema de loacutegica que preserve todas essas concepccedilotildees natural (CP 2 sect 713
1883)26
Peirce sugere que a tarefa da ciecircncia eacute definida em funccedilatildeo daquilo que nos eacute mais familiar e
mais sistematizado ou seja o modo de realizar inferecircncia descrito por Aristoacuteteles Essa descriccedilatildeo
prescreve aquilo que se espera seja a tarefa da ciecircncia projetando sobre o mundo categorias que
satildeo proacuteprias do pensamento O que anima a realizaccedilatildeo da ciecircncia como descrita acima eacute a
esperanccedilas de que a natureza proceda de forma loacutegica e isso natildeo eacute nada mais do que uma
concepccedilatildeo antropomoacuterfica
26 We usually conceive Nature to be perpetually making deductions in Barbara This is our natural and
anthropomorphic metaphysics We conceive that there are Laws of Nature which are her Rules or major premisses
We conceive that Cases arise under these laws these cases consist in the predication or occurrence of causes which
are the middle terms of the syllogisms And finally we conceive that the occurrence of these causes by virtue of the
laws of Nature results in effects which are the conclusions of the syllogisms Conceiving of nature in this way we
naturally conceive of science as having three tasks--(1) the discovery of Laws which is accomplished by induction
(2) the discovery of Causes which is accomplished by hypothetic inference and (3) the predictio of Effects which is
accomplished by deduction It appears to me to be highly useful to select a system of logic which shall preserve all
these natural conceptions
36
A criacutetica de antropomorfismo tambeacutem foi endereccedilada agrave teoria darwinista em particular ao
seu conceito de luta (struggle) o qual informa Peirce foi acusado de ser muito antropomoacuterfico
para ser cientiacutefico (cf CP 5 sect 46 1903) Sua resposta foi dada nos seguintes termos
Mas quanto a sua natildeo cientificidade porque eacute antropomoacuterfico eacute uma objeccedilatildeo de
um tipo muito superficial que surge a partir de preconceitos com base em
consideraccedilotildees demasiado estreitas Antropomoacuterfico eacute o que praticamente todas
as concepccedilotildees satildeo na base caso contraacuterio outras raiacutezes para as palavras com as
quais satildeo expressas diferentes das velhas raiacutezes arianas teriam que ser
encontradas E com relaccedilatildeo a qualquer preferecircncia por um tipo de teoria sobre
outro eacute bom lembrar que cada verdade da ciecircncia eacute devida agrave afinidade da alma
humana com a alma do universo imperfeita como tal afinidade sem duacutevida eacute
Dizer portanto que uma concepccedilatildeo eacute natural ao homem eacute praticamente a
mesma coisa que dizer que eacute antropomoacuterfica essa eacute mais elevada das
recomendaccedilotildees que se poderia lhe dar aos olhos de um Loacutegico Exato (CP 5 sect
47 1903)27
Peirce natildeo somente estaacute consciente do aspecto antropomoacuterfico de sua teoria mas tambeacutem
elabora uma defesa das teorias que apresentam esta caracteriacutestica O antropomorfismo eacute uma
decorrecircncia da maneira como entende a possibilidade dos homens adquirirem conhecimento ou
em outras palavras da sua concepccedilatildeo de que a natureza primaacuteria do universo eacute a mente
concepccedilatildeo que pode ser sintetizada sob o roacutetulo que Peirce agraves vezes atribui ao sistema filosoacutefico
de idealismo objetivo (cf CP 6 sectsect 24-5 1891) A relaccedilatildeo entre antropomorfismo experiecircncia e
possibilidade de conhecimento eacute estabelecida nos seguintes termos
27 But as to its being unscientific because anthropomorphic that is an objection of a very shallow kind that arises
from prejudices based upon much too narrow considerations Anthropomorphic is what pretty much all
conceptions are at bottom otherwise other roots for the words in which to express them than the old Aryan roots
would have to be found And in regard to any preference for one kind of theory over another it is well to remember
that every single truth of science is due to the affinity of the human soul to the soul of the universe imperfect as that
affinity no doubt is To say therefore that a conception is one natural to man which comes to just about the same
thing as to say that it is anthropomorphic is as high a recommendation as one could give to it in the eyes of an Exact
Logician
37
() se vocecirc tivesse dito antropomorfismo eu deveria ter respondido que eu
sinceramente abraccedilo a maioria das claacuteusulas dessa doutrina se algum direito a
uma interpretaccedilatildeo particular me for permitido Eu defendo por exemplo que o
homem eacute tatildeo completamente envolvido pelos limites de sua experiecircncia praacutetica
possiacutevel sua mente eacute tatildeo restrita a ser o instrumento de suas necessidades que
ele natildeo pode nem remotamente compreender algo que transcenda aqueles
limites A consequecircncia estrita disto eacute a de que eacute absurdo dizer-lhe que natildeo deve
pensar desta ou daquela forma porque fazecirc-lo seria transcender os limites de
uma experiecircncia possiacutevel Deixe-o tentar empenhadamente pensar qualquer
coisa que esteja aleacutem desse limite isso simplesmente natildeo pode ser feito Assim
como vocecirc pode aprovar uma lei de que nenhum homem deve saltar sobre a lua
isso natildeo lhe proibiria de saltar tatildeo alto quanto possivelmente pudesse (CP 5 536
1905)28
O filoacutesofo chega a afirmar que entre duas concepccedilotildees quaisquer uma com caraacuteter
antropomoacuterfico e outra natildeo preferiria a primeira pois ldquo() outras coisas permanecendo iguais
uma concepccedilatildeo antropomoacuterfica quer faccedila o melhor nuacutecleo para uma hipoacutetese de trabalho
cientiacutefico ou natildeo eacute muito mais provaacutevel que seja aproximadamente verdadeira do que aquela que
natildeo eacute antropomoacuterficaldquo (CP 5 notas 1903)29
Os elementos de todo conceito diz o autor entram
no pensamento loacutegico pela percepccedilatildeo e saem na forma de uma accedilatildeo propositada aqueles que
ldquo() natildeo podem apresentar seus passaportes nos dois portotildees devem ser detidos como natildeo
autorizados pela razatildeoldquo (CP 5 sect 212 1903)30
A exigecircncia de compreensibilidade eacute a principal
caracteriacutestica de toda hipoacutetese desse modo eacute natural que o aspecto antropomoacuterfico confira-lhes
de saiacuteda uma maior recomendaccedilatildeo Diz Peirce ldquo() que a uacutenica justificaccedilatildeo possiacutevel para uma
hipoacutetese eacute que ela torna os fatos compreensiacuteveis e que supocirc-los absolutamente incompreensiacuteveis
28 () if you had said Anthropomorphism I should have replied that I heartily embrace most of the clauses of that
doctrine if some right of private interpretation be allowed me I hold for instance that man is so completely
hemmed in by the bounds of his possible practical experience his mind is so restricted to being the instrument of his
needs that he cannot in the least mean anything that transcends those limits The strict consequence of this is that it
is all nonsense to tell him that he must not think in this or that way because to do so would be to transcend the limits
of a possible experience For let him try ever so hard to think anything about what is beyond that limit it simply
cannot be done You might as well pass a law that no man shall jump over the moon it wouldnt forbid him to jump
just as high as he possibly could 29
() other things being equal an anthropomorphic conception whether it makes the best nucleus for a scientific
working hypothesis or not is far more likely to be approximately true than one that is not anthropomorphic 30
() and whatever cannot show its passports at both those two gates is to be arrested as unauthorized by reason
38
(que eacute o que a doutrina do incognosciacutevel faz) eacute natildeo os tornar compreensiacuteveisldquo (CP 1 sect 316
1903)31
A fim de natildeo introduzir o inexplicaacutevel na natureza Peirce reconhece a necessidade de se
perguntar sobre a proacutepria origem das leis naturais que nas teorias necessitaristas32
entatildeo aceitas
como dissemos satildeo consideradas como dados inquestionaacuteveis
2 UMA ESTOacuteRIA BIZARRA
A centralidade do conceito de haacutebito na filosofia de Charles S Peirce eacute amplamente
reconhecida da mesma forma que o significado peculiar que este lhe atribui A partir de 1890
tendo conseguido vaacuterios avanccedilos no estabelecimento das categorias da experiecircncia Peirce
oferece uma interpretaccedilatildeo da noccedilatildeo de haacutebito por meio da qual lhe eacute conferida um estatuto
ontoloacutegico distanciando-a dessa maneira tanto da noccedilatildeo humeana como daquela utilizada pelos
psicoacutelogos do iniacutecio do seacuteculo XX Como afirma Bortolotti (2003 p 1) ldquo() o haacutebito passa a ser
a categoria universal da lei dotado de objetividaderdquo Como uma lei geral o haacutebito se entranha na
proacutepria constituiccedilatildeo do cosmo Eacute por meio do estabelecimento crescente do haacutebito tanto nos
homens quanto na natureza que se explica a diminuiccedilatildeo das variaccedilotildees e o aumento das
regularidades tanto quanto o incremento do poder humano de compreender o mundo e produzir
um comportamento autocontrolado
Por meio dos haacutebitos a capacidade humana de criar expectativas eacute desenvolvida e pelo
mesmo movimento produz-se um incremento no controle de suas proacuteprias experiecircncias Em um
texto de 1902 Peirce traccedila um quadro no qual eacute definida a noccedilatildeo de haacutebito e sua relaccedilatildeo com
31 () that the only possible justification for a hypothesis is that it renders the facts comprehensible and that to
suppose them absolutely incomprehensible (which is what the doctrine of the Unknowable comes to) is not rendering
them comprehensible 32
Necessitaristas eacute o adjetivo que Peirce utiliza para se referir aos adeptos do mecanicismo cuja principal
caracteriacutestica na opiniatildeo do autor eacute a afirmaccedilatildeo de que cada fato singular do universo eacute precisamente determinado
por lei (cf CP 6 sect 36 1892)
39
uma seacuterie de conceitos que lhe satildeo proacuteximos nele o autor declara
Uma expectativa eacute um haacutebito de imaginaccedilatildeo Um haacutebito natildeo eacute uma afecccedilatildeo da
consciecircncia eacute uma lei geral de accedilatildeo de tal forma que em certo tipo geral de
ocasiatildeo um homem estaraacute mais ou menos apto a agir de certo modo geral Uma
imaginaccedilatildeo eacute uma afecccedilatildeo da consciecircncia que pode ser diretamente comparada
com um percepto com respeito a alguma caracteriacutestica especial e ser
considerada em acordo ou desacordo com ele () Naturalmente cada
expectativa eacute uma questatildeo de inferecircncia () Para nosso objetivo presente eacute
suficiente dizer que um processo inferencial envolve a formaccedilatildeo de um haacutebito
Pois ele produz uma crenccedila ou opiniatildeo e uma crenccedila ou opiniatildeo genuiacutena eacute
algo sobre cujo conteuacutedo o homem estaacute preparado para agir e eacute portanto em um
sentido geral um haacutebito () Pois cada haacutebito tem ou eacute uma lei geral Tudo o
que eacute verdadeiramente geral refere-se ao futuro indefinido pois o passado
conteacutem unicamente uma certa coleccedilatildeo daqueles casos que ocorreram O passado
eacute fato real Mas o (fato) geral natildeo pode ser completamente realizado Eacute uma
potencialidade e o seu modo de ser eacute esse in futuro (CP 2 sect 148 1902)33
Percebemos na longa citaccedilatildeo acima que Peirce deixa claro que a noccedilatildeo de haacutebito estaacute
estreitamente ligada agrave noccedilatildeo de geral que por sua vez eacute outra maneira de fazer referecircncia agraves leis
Toda lei eacute geral e desse modo um haacutebito A noccedilatildeo de haacutebito ultrapassa o aspecto psicoloacutegico
para tornar-se uma categoria ontoloacutegica a de lei
Segundo a teoria do sinequismo reconhecida como a pedra fundamental da arquitetocircnica
peirceana todo geral eacute um continuum Peirce afirma que ldquo() continuidade e generalidade satildeo
dois nomes para a mesma falta de distinccedilatildeo de indiviacuteduosrdquo (CP 4 sect 172 1897)34
Assim ao
falarmos de haacutebitos gerais e em suas constituiccedilotildees estamos referindo agrave proacutepria origem e
33 An expectation is a habit of imagining A habit is not an affection of consciousness it is a general law of action
such that on a certain general kind of occasion a man will be more or less apt to act in a certain general way An
imagination is an affection of consciousness which can be directly compared with a percept in some special feature
and be pronounced to accord or disaccord with it () Of course every expectation is a matter of inference () For
our present purpose it is sufficient to say that the inferential process involves the formation of a habit For it produces
a belief or opinion and a genuine belief or opinion is something on which a man is prepared to act and is
therefore in a general sense a habit () For every habit has or is a general law Whatever is truly general refers to
the indefinite future for the past contains only a certain collection of such cases that have occurred The past is
actual fact But a general (fact) cannot be fully realized It is a potentiality and its mode of being is esse in futuro 34
() continuity and generality are two names for the same absence of distinction of individuals
40
constituiccedilatildeo das leis em particular e para os interesses deste texto das leis naturais ou seja
deslocamo-nos para o campo das discussotildees cosmoloacutegicas e cosmogocircnicas Coerente com sua
determinaccedilatildeo de banir o inexplicaacutevel do reino da ciecircncia Peirce ataca o problema da origem do
universo que usualmente era deixado sem explicaccedilatildeo Para aleacutem da origem a maacutexima que
ordena expandir o horizonte da inteligibilidade cientiacutefica requer uma explicaccedilatildeo da proacutepria
passagem da natildeo-existecircncia para a existecircncia
A maneira como o haacutebito se instaura e cresce eacute propriamente o modo por meio do qual a
cosmogonia peirceana explica o surgimento do cosmo A estrutura mais geral de cosmologia
peirceana eacute indicada pelo filoacutesofo na seguinte passagem
() no iniacutecio - infinitamente remoto - havia um caos de sentimentos impessoais
o qual sem conexatildeo ou regularidade seria propriamente carente de existecircncia
Esse sentimento variando aqui e ali na pura arbitrariedade teria iniciado o
germe da tendecircncia generalizante Suas outras variaccedilotildees poderiam ser
evanescentes mas esta teria uma virtude de crescimento Assim a tendecircncia ao
haacutebito teria comeccedilado e a partir daiacute com os outros princiacutepios de evoluccedilatildeo todas
as regularidades do universo teriam se desenvolvido Em qualquer tempo
entretanto um elemento de puro acaso sobrevive e permaneceraacute ateacute que o
mundo se torne um sistema absolutamente perfeito racional e simeacutetrico no qual
a mente eacute por fim cristalizada em um futuro infinitamente distante (CP 6 sect 33
1891)35
Esta citaccedilatildeo apresenta de forma condensada a narraccedilatildeo do iniacutecio do universo O trabalho
deste capiacutetulo eacute o de compreender os elementos aqui apresentados e as teorias que sustentam esta
abordagem Nota-se que uma vez iniciado o processo de crescimento do universo tanto a accedilatildeo do
acaso como a atuaccedilatildeo das regularidades e ateacute mesmo os eventos catastroacuteficos atuaratildeo para
35 () in the beginning -- infinitely remote -- there was a chaos of unpersonalized feeling which being without
connection or regularity would properly be without existence This feeling sporting here and there in pure
arbitrariness would have started the germ of a generalizing tendency Its other sportings would be evanescent but
this would have a growing virtue Thus the tendency to habit would be started and from this with the other
principles of evolution all the regularities of the universe would be evolved At any time however an element of
pure chance survives and will remain until the world becomes an absolutely perfect rational and symmetrical
system in which mind is at last crystallized in the infinitely distant future
41
formar o universo que conhecemos por meio da experiecircncia
21 O NADA
Peirce como indica Rosa identifica um processo que ocorre antes da proacutepria existecircncia do
universo Um processo de diferenciaccedilatildeo que ocorre no interior do nada e o distingue em dois
tipos um nada caoacutetico e um nada ainda mais primitivo Nas palavras de Rosa
O nada primitivo eacute um estado em que o ldquouniverso natildeo existiardquo um ldquoabsoluto
nadardquo Contudo esse Nada absoluto tem propriedades notaacuteveis na medida em
que a totalidade do universo atual jaacute se encontrava nele em germe com efeito
ele representa a totalidade das possibilidades (ROSA 2003 p 291)
Esse nada pode ser entendido como uma entidade loacutegica constituiacuteda por predicados que
sejam compatiacuteveis Nesse nada portanto encontram-se fundidas todas as possibilidades
consistentes do universo Ele eacute como Peirce indicou o mundo platocircnico (cf CP 6 sect 192 1892)
a partir do qual o mundo surgiu por meio de uma determinaccedilatildeo arbitraacuteria Em outro texto ao
introduzir a hipoacutetese cosmoloacutegica Peirce afirma
Devemos supor que haacute alguma coisa como uma folha de papel vazia ou com um
espaccedilo vazio sobre o qual um signo interpretante possa ser escrito Qual a
natureza desse vazio Ao permitir a escrita de um siacutembolo ele eacute ipso facto um
siacutembolo embora de um tipo completamente vago (NEM 4 p 260)36
36 We must suppose that there is something like a sheet of paper blank or with a blank space upon it upon which an
interpretant sign may be written What is the nature of this blank In affording room for the writing of a symbol it is
ipso facto itself a symbol although a wholly vague one
42
Esse vazio soacute pode ser um continuum completamente vago37 no qual todas as
possibilidades coerentes estatildeo completamente fundidas O nada eacute nessa etapa um continuum de
infinitas dimensotildees potenciais natildeo distintas (cf CP 6 sect 132 1892 CP 6 sect 193 1898 CP 6 sect
203 1898)
Do nada assim descrito por um processo de contraccedilatildeo da potencialidade em generalidade
surgem as diferentes dimensotildees qualitativas por meio da evoluccedilatildeo que tem lugar antes mesmo
da existecircncia do universo Como afirma Peirce ldquoO processo evolucionaacuterio eacute portanto natildeo uma
mera evoluccedilatildeo do universo existente mas antes um processo pelo qual as proacuteprias formas
platocircnicas se desenvolveram ou se desenvolvemrdquo (CP 6 sect 194 1898)38
Nessa evoluccedilatildeo o
possiacutevel contrai-se no geral por meio de um processo de diferenciaccedilatildeo
A evoluccedilatildeo das formas tem iniacutecio ou em alguma medida possui em seu estaacutegio
inicial uma vaga possibilidade e que eacute ou eacute seguido por um continuum de
formas que possui uma quantidade de dimensotildees muito grande para que a
dimensatildeo individual seja distinta Deve ser a partir da contraccedilatildeo da vagueza
daquela potencialidade de tudo em geral mas de nada em particular que o
mundo das formas surge () e as relaccedilotildees de suas dimensotildees tornam-se
definidas e contraiacutedas (CP 6 sectsect 196-7 1898)39
Do ponto de vista cosmoloacutegico cada dimensatildeo constitui uma qualidade una Aqui temos a
origem do princiacutepio de contradiccedilatildeo no momento da definiccedilatildeo dessas dimensotildees qualitativas
37 A natureza desse continuum potencial merece alguma atenccedilatildeo pois a continuidade presente na origem eacute distinta
daquela recuperada em termos de lei apoacutes o processo evolucionaacuterio entrar em cena Aparentemente a relaccedilatildeo entre
continuidade e lei natildeo eacute simeacutetrica toda lei tem a natureza de um continuum mas natildeo se pode dizer que o inverso seja
verdadeiro Eacute por meio da transformaccedilatildeo do continuum inicial no continuum atual que as formas individuais podem
se estabelecer 38
The evolutionary process is therefore not a mere evolution of the existing universe but rather a process by which
the very Platonic forms themselves have become or are becoming developed 39
The evolution of forms begins or at any rate has for an early stage of it a vague potentiality and that either is or
is followed by a continuum of forms having a multitude of dimensions too great for the individual dimensions to be
distinct It must be by a contraction of the vagueness of that potentiality of everything in general but of nothing in
particular that the world of forms comes about () the relations of its dimensions became definite and contracted
43
Peirce diz ldquoO Agora eacute uno e apenas uno O princiacutepio de contradiccedilatildeo pode ser visto como um
resultado formal da mesma coisa Qualquer objeto A natildeo pode ser azul e natildeo azul ao mesmo
tempordquo (CP 6 sect 231 1898)40
O estado desse nada caoacutetico de n dimensotildees eacute algo que natildeo podemos conceber claramente
mas o processo de formaccedilatildeo das qualidades distintas eacute descrito por Peirce da seguinte maneira
Atualmente jaacute natildeo podemos formar senatildeo uma tecircnue concepccedilatildeo acerca da
continuidade das qualidades intriacutensecas de sentimento O desenvolvimento da
mente humana extinguiu praticamente todos os sentimentos exceto algumas
espeacutecies esporaacutedicas como sons cores cheiros calor etc as quais aparecem
agora desconectadas e diferentes No caso das cores haacute uma difusatildeo
tridimensional de sentimentos Originariamente todos os sentimentos podem ter
estado conectados da mesma forma e a suposiccedilatildeo consiste em que o nuacutemero de
dimensotildees era infinito Na verdade o desenvolvimento envolve de modo
essencial uma limitaccedilatildeo de possibilidade (CP 6 sect 132 1892)41
Na medida em que o continuum inicial vai sendo cindido em n dimensotildees tem iniacutecio um
processo de resistecircncia reciacuteproca entre as dimensotildees Vemos aiacute a atuaccedilatildeo de duas tendecircncias que
se colocavam como meras potencialidades no nada original a tendecircncia agrave diversificaccedilatildeo e a
tendecircncia agrave generalizaccedilatildeo que garante a permanecircncia das dimensotildees e elimina a diversificaccedilatildeo Eacute
a atuaccedilatildeo dessas duas tendecircncias que permite a Peirce estabelecer um importante princiacutepio o
princiacutepio de semelhanccedila e contraste
A semelhanccedila eacute determinada pela posiccedilatildeo que a qualidade ocupa no continuum Peirce diz
que
40 The Now is one and but one The principle of contradiction may be regarded as a formalistic result of the same
thing Any object A cannot be blue and not blue at once 41
Of the continuity of intrinsic qualities of feeling we can now form but a feeble conception The development of the
human mind has practically extinguished all feelings except a few sporadic kinds sound colours smells warmth
etc which now appear to be disconnected and disparate In the case of colours there is a tridimensional spread of
feelings Originally all feelings may have been connected in the same way and the presumption is that the number
of dimensions was endless For development essentially involves a limitation of possibilities
44
Apesar das qualidades naquilo que elas satildeo para si mesmas cada uma sendo um
mero nada para qualquer outra natildeo estarem relacionadas umas com as outras
elas formam contudo um continuum no qual por causa da posiccedilatildeo que nele
ocupam adquirem mais ou menos semelhanccedila e contraste umas em relaccedilatildeo agraves
outras (NEM 4 p 137 ca 1898)42
Eacute a partir da semelhanccedila e contraste que Peirce enuncia a lei da mente a qual seraacute discutida
em mais detalhes na sequecircncia Uma primeira definiccedilatildeo de lei da mente pode ser encontrada nas
seguintes palavras de Peirce
() as ideias tendem a difundir-se continuamente e a afetar certas outras que se
encontram com elas em uma peculiar relaccedilatildeo de afetabilidade Nessa difusatildeo
elas perdem intensidade e especialmente o poder de afetar outras mas adquirem
generalidade e ficam fundidas com outras ideias (CP 6 sect 104 1892)43
Em siacutentese deixando de lado os pormenores da formulaccedilatildeo peirceana pode-se resumir a
hipoacutetese da origem do universo da maneira que se segue Identificam-se trecircs estaacutegios dessa
origem em um primeiro no iniacutecio absoluto antes da proacutepria existecircncia do universo encontra-se
o puro nada segundo a descriccedilatildeo fornecida por Peirce
A condiccedilatildeo inicial antes da existecircncia do universo natildeo foi o estado de um ser
puro e abstrato Ao contraacuterio foi o estado de um absoluto nada nem mesmo um
estado de vazio pois mesmo o vazio eacute alguma coisa Se vamos proceder de um
modo loacutegico e cientiacutefico devemos a fim de considerar todo o universo supor
42 But just as the qualities which as they are for themselves are equally unrelated to one other each being mere
nothing for any other yet form a continuum in which and because of their situation in which they acquire more or
less resemblance and contrast with one and other 43
() ideas tend to spread continuously and to affect certain others which stand to them in a peculiar relation of
affectability In this spreading they lose intensity and especially the power of affecting others but gain generality
and become welded with other ideas
45
uma condiccedilatildeo inicial na qual o universo completo era carente de existecircncia e
assim um estado de absoluto nada (CP 6 sect 215 1898)44
e acrescenta
Natildeo haacute coisa individual nenhuma compulsatildeo externa ou interna nenhuma lei
Eacute o nada germinal no qual todo o universo estaacute envolvido ou prenunciado
Como tal ele eacute possibilidade absolutamente indefinida e ilimitada ndash
possibilidade sem fronteiras Natildeo haacute compulsatildeo nem lei Eacute a liberdade sem
fronteiras (CP 6 sect 217 1898)45
O nada assim descrito eacute um estado indiferenciado de qualidade de sentimento sem relaccedilatildeo
com qualquer outra coisa nos termos peirceanos o sentimento eacute monaacutedico46
A existecircncia do
universo nesse momento era apenas uma das possibilidades tatildeo provaacutevel quanto a sua natildeo
existecircncia O segundo estaacutegio caracterizado pela reaccedilatildeo surge de uma singularidade no interior
do estado de indiferenciaccedilatildeo Peirce fala de reaccedilotildees acidentais ou bdquoflashesrsquo entre os eventos (cf
CP 3 sect 412 1890) isto eacute do surgimento de relaccedilotildees diaacutedicas expressas por reaccedilotildees brutas O
terceiro estaacutegio surge por ocasiatildeo da realizaccedilatildeo de uma das possibilidades que tem na sua
atualizaccedilatildeo a virtude do seu proacuteprio crescimento isto eacute de tornar mais provaacutevel a sua repeticcedilatildeo
na sequecircncia dos eventos No iniacutecio essas regularidades seriam bastante deacutebeis mas com o
reforccedilo promovido pelo aumento da possibilidade de sua repeticcedilatildeo futura elas se tornariam cada
vez mais fortes ateacute transformarem-se em um haacutebito A regularidade estabelece um tipo de relaccedilatildeo
44 The initial condition before the universe existed was not a state of pure abstract being On the contrary it was a
state of just nothing at all not even a state of emptiness for even emptiness is something If we are to proceed in a
logical and scientific manner we must in order to account for the whole universe suppose an initial condition in
which the whole universe was non-existent and therefore a state of absolute nothing 45
There is no individual thing no compulsion outward nor inward no law It is the germinal nothing in which the
whole universe is involved or foreshadowed As such it is absolutely undefined and unlimited possibility --
boundless possibility There is no compulsion and no law It is boundless freedom 46
Peirce pretende ter provado que todas as relaccedilotildees podem ser reduzidas a trecircs tipos baacutesicos monaacutedicas nas quais os
elementos natildeo possuem quaisquer relaccedilotildees a natildeo ser com eles mesmos eacute o sentimento em sua mais pura expressatildeo
diaacutedicas que eacute a relaccedilatildeo entre dois agraves vezes descrita como atrito ou resistecircncia e triaacutedicas relaccedilatildeo de mediaccedilatildeo
46
triaacutedica caracterizada por um terceiro que faz a mediaccedilatildeo entre um primeiro e um segundo47
Em uma passagem um pouco longa mas muito esclarecedora Peirce traccedila as relaccedilotildees entre
os trecircs elementos constituintes do cosmo e como diante deles o homem pode compreender o
mundo e falar sobre ele
() de acordo com meu modo de ver haacute trecircs categorias de ser ideias de
sentimentos atos de reaccedilatildeo e haacutebitos Haacutebitos satildeo haacutebitos a respeito de
ideias de sentimentos ou haacutebitos a respeito de atos de reaccedilatildeo O conjunto
de todos os haacutebitos a respeito de ideias de sentimentos constitui um
grande haacutebito que eacute um Mundo e o conjunto de todos os haacutebitos a
respeito de haacutebitos de reaccedilatildeo constitui um segundo grande haacutebito que eacute
outro Mundo O primeiro eacute o Mundo Interior o mundo das formas de
Platatildeo O outro eacute o Mundo Exterior ou universo da existecircncia A mente
do homem estaacute adaptada agrave realidade do ser De acordo com isso haacute dois
modos de associaccedilatildeo de ideias associaccedilatildeo interior baseada em haacutebitos do
Mundo Interior e associaccedilatildeo exterior baseada em haacutebitos do Universo A
primeira eacute comumente chamada associaccedilatildeo por semelhanccedila mas em
minha opiniatildeo natildeo eacute a semelhanccedila que causa a associaccedilatildeo mas a
associaccedilatildeo que constitui a semelhanccedila Uma ideia de um sentimento eacute
como ela eacute em si mesma sem quaisquer elementos ou relaccedilotildees Um matiz
de vermelho em si mesmo natildeo se assemelha a outro matiz de vermelho
De fato quando falamos de um matiz de vermelho natildeo eacute da ideia de
sentimento que estamos falando mas de um conjunto de tais ideias Essa
unificaccedilatildeo no Mundo Interior que constitui o que apreendemos e a que
denominamos sua semelhanccedila Estando nossas mentes consideravelmente
adaptadas ao Mundo Interior as ideias de sentimentos atraem-se umas agraves
outras em nossas mentes e no curso de nossa experiecircncia do Mundo
Interior desenvolvem conceitos gerais A tais conjuntos chamamos
qualidades sensiacuteveis Associaccedilotildees de nossos pensamentos tendo por base
os atos de reaccedilatildeo satildeo denominadas associaccedilotildees por contiguidade uma
expressatildeo com a qual natildeo discutirei pois somente os atos de reaccedilatildeo
podem ser contiacuteguos Pois ser contiacuteguo eacute estar proacuteximo no espaccedilo e em
um soacute tempo e somente um ato de reaccedilatildeo pode preencher um espaccedilo por
ele mesmo A mente por sua adaptaccedilatildeo instintiva ao Mundo Exterior
representa as coisas como estando no espaccedilo o qual eacute sua representaccedilatildeo
intuitiva da conjunccedilatildeo de reaccedilotildees ou para usar uma frase mais familiar
um centro de forccedilas Consequentemente desse duplo modo de associaccedilatildeo
de ideias quando algueacutem chega a formar uma linguagem produz palavras
de duas classes palavras que denominam coisas coisas essas que ele
identifica pela uniatildeo de suas reaccedilotildees essas palavras satildeo nomes proacuteprios e
47 Temos por meio da narraccedilatildeo acima uma caracterizaccedilatildeo inicial das categorias fenomenoloacutegicas peirceana
primeiridade caracterizada por relaccedilotildees monaacutedicas secundidade caracterizada por relaccedilotildees diaacutedicas e terceiridade
caracterizada por relaccedilotildees triaacutedicas (cf IBRI 1992)
47
palavras que significam ou querem dizer qualidades que satildeo fotografias
compostas de ideias de sentimentos e tais palavras satildeo verbos ou porccedilotildees
de verbos tais como satildeo os adjetivos os substantivos comuns etc (CP 4
sect 157 1897)48
A espontaneidade potencial ou puro sentimento deu origem ao universo atual que
continua em crescimento Entre as possibilidades uma destacou-se por ter a cada realizaccedilatildeo o
incremento da possibilidade de suas realizaccedilotildees futuras Peirce denomina essa possibilidade
peculiar de princiacutepio motor responsaacutevel pela origem e desenvolvimento das regularidades de lei
da mente lei de associaccedilatildeo de ideias ou lei do haacutebito Rosa (2003) tece o seguinte comentaacuterio a
respeito da origem do universo segundo a cosmologia peirceana
O comeccedilo do processo cosmogocircnico consiste precisamente num processo que
parte de uma alta intensidade de grande espontaneidade e que tende a anular
essa intensidade atraveacutes de ideias gerais As ideias gerais reduzem a intensidade
na medida em que satildeo atractores para outras ideias situadas na sua vizinhanccedila
Noutros termos houve um momento em que uma grande quantidade de
48 () according to my view there are three categories of being ideas of feelings acts of reaction and habits Habits
are either habits about ideas of feelings or habits about acts of reaction The ensemble of all habits about ideas of
feeling constitutes one great habit which is a World and the ensemble of all habits about acts of reaction constitutes
a second great habit which is another World The former is the Inner World the world of Platos forms The other is
the Outer World or universe of existence The mind of man is adapted to the reality of being Accordingly there are
two modes of association of ideas inner association based on the habits of the inner world and outer association
based on the habits of the universe The former is commonly called association by resemblance but in my opinion it
is not the resemblance which causes the association but the association which constitutes the resemblance An idea
of a feeling is such as it is within itself without any elements or relations One shade of red does not in itself
resemble another shade of red Indeed when we speak of a shade of red it is already not the idea of the feeling of
which we are speaking but of a cluster of such ideas It is their clustering together in the Inner World that constitutes
what we apprehend and name as their resemblance Our minds being considerably adapted to the inner world the
ideas of feelings attract one another in our minds and in the course of our experience of the inner world develop
general concepts What we call sensible qualities are such clusters Associations of our thoughts based on the habits
of acts of reaction are called associations by contiguity an expression with which I will not quarrel since nothing
can be contiguous but acts of reaction For to be contiguous means to be near in space at one time and nothing can
crowd a place for itself but an act of reaction The mind by its instinctive adaptation to the Outer World represents
things as being in space which is its intuitive representation of the clustering of reactions What we call a Thing is a
cluster or habit of reactions or to use a more familiar phrase is a centre of forces In consequence of this double
mode of association of ideas when man comes to form a language he makes words of two classes words which
denominate things which things he identifies by the clustering of their reactions and such words are proper names
and words which signify or mean qualities which are composite photographs of ideas of feelings and such words
are verbs or portions of verbs such as are adjectives common nouns etc
48
sentimento estava associada a cada qualidade era um estado de espontaneidade
ilimitada das qualidades um sentimento muito intenso presente em cada
variaccedilatildeo infinitesimal Essa espontaneidade diminui assim que deixa de haver o
sentimento de variaccedilotildees ldquomuito pequenasrdquo da qualidade (CP 6 sect 136 1892) Jaacute
natildeo eacute a passagem do Nada inicial para qualquer coisa de definido mas sim do
que Peirce chamava o caos inicial das qualidades para uma generalizaccedilatildeo cada
vez maior (ROSA 2003 p 297-8)
A narraccedilatildeo da origem do universo pode parecer para muitos algo bastante estranho e em
desacordo com o todo da obra peirceana Um de seus comentadores a denominou de ldquoestoacuteria
bizarrardquo (cf HOOKWAY 1997) A leitura dessa narrativa faz surgir de imediato duas criacuteticas
Em primeiro lugar pode argumentar-se que as categorias peirceanas de primeiridade
secundidade e terceiridade natildeo satildeo universais uma vez que natildeo estatildeo presentes desde o iniacutecio (cf
HOOKWAY 1985 p 273) A categoria de terceiridade soacute teria surgido depois que a tendecircncia ao
estabelecimento de haacutebitos estivesse operante e no iniacutecio absoluto natildeo haveria sequer a
secundidade Uma maneira de evitar essa criacutetica eacute lembrar que para Peirce a sequecircncia descrita
acima eacute loacutegica (cf CP 6 sect 214 1898) e natildeo cronoloacutegica aliaacutes como deixa bastante claro o
tempo eacute um continuum e desse modo soacute entra em cena apoacutes o estabelecimento da terceiridade Eacute
o processo loacutegico descrito acima que lhe daacute origem Por meio desse raciociacutenio a universalidade
de suas categorias eacute preservada ainda que sua limitaccedilatildeo neste caso talvez fosse um preccedilo que
Peirce estivesse disposto a pagar Esta resposta pode ser enriquecida com a consideraccedilatildeo de que eacute
impossiacutevel atingir o iniacutecio absoluto Mesmo se pudeacutessemos voltar no tempo veriacuteamos as leis se
tornarem mais e mais deacutebeis e a variedade crescer constantemente afirma Peirce Contudo ainda
que a aproximaccedilatildeo do iniacutecio absoluto se tornasse cada vez maior natildeo poderiacuteamos atingi-lo
Como aponta Hookway
Ainda que nunca atingiacutessemos o caos inicial de sentimentos ainda assim
poderiacuteamos ficar arbitrariamente proacuteximos dele se continuaacutessemos por um
tempo suficiente longo o caos eacute algo que a histoacuteria poderia abordar como um
limite e o pensamos como o ponto limite dessa histoacuteria (HOOKWAY 1985 p
273)
49
Do mesmo modo pensar o fim uacuteltimo do universo como um estado absolutamente
ordenado e regular eacute tambeacutem um limite ao qual podemos apenas nos aproximar mais e mais sem
contudo alcanccedilar Quando Peirce se refere a tais estados limites coloca-os em momentos
infinitamente distantes e infinito aqui natildeo deve ser interpretado como uma figura de linguagem
mas como refletindo exatamente o intervalo que nos separa desses momentos
A outra criacutetica possiacutevel eacute a de que Peirce postula a existecircncia de um caos de indeterminaccedilatildeo
e possibilidades sem contudo fornecer qualquer explicaccedilatildeo ao mesmo Formulada de outra
forma bastante proacutexima da criacutetica endereccedilada a Peirce por Paul Carus49 como explicar a
presenccedila desses elementos fundamentais indicados por Peirce como iniciadores do processo de
desenvolvimento evolutivo do universo isto eacute do caos inicial das reaccedilotildees ao acaso e da
tendecircncia ao haacutebito
Em 1892 no texto ldquoA doutrina da necessidade examinadardquo ao realizar a defesa da
existecircncia do acaso absoluto como um princiacutepio operante no desenvolvimento do cosmo Peirce
afirma que a lei eacute justamente aquilo que necessita de uma explicaccedilatildeo ao passo que exigir o
mesmo para o acaso seria um equiacutevoco O caos inicial natildeo eacute ou seja natildeo possui o predicado de
existecircncia visto que a potencialidade eacute sua uacutenica propriedade A existecircncia segundo a
abordagem peirceana eacute uma relaccedilatildeo de dois caracterizada pelo atrito e pela resistecircncia o caos
inicial eacute pura possibilidade de qualidade e enquanto tal apresenta apenas relaccedilotildees monaacutedicas
radicalmente livres Como afirma Hookway ldquo() o caos inicial - sendo um estado carente de
existecircncia ou realidade um estado de puro nada - natildeo eacute o tipo de coisa que precisa ser explicadordquo
(HOOKWAY 1985 p 274) Nem o caos inicial e nem mesmo os eventos puramente reativos ou
flashes necessitam de qualquer explicaccedilatildeo o mesmo natildeo se pode dizer contudo da tendecircncia agrave
aquisiccedilatildeo de haacutebitos que eacute uma regularidade Seguindo o mesmo raciociacutenio que fizemos
anteriormente se retornaacutessemos ao passado veriacuteamos o poder da tendecircncia agrave aquisiccedilatildeo de
haacutebitos diminuir cada vez mais contudo nunca chegariacuteamos a um momento em que estivesse
ausente dos ingredientes constituintes do cosmo E na medida em que eacute uma possibilidade a sua
49 Editor do The Monist jornal que recebeu muitas contribuiccedilotildees de Peirce
50
origem pode ser explicada a partir da espontaneidade do caos inicial
22 O ACASO
Para Peirce a adoccedilatildeo da noccedilatildeo de acaso eacute em primeiro lugar uma necessidade da proacutepria
teoria da explicaccedilatildeo A sua introduccedilatildeo eacute feita por meio da sujeiccedilatildeo a um imperativo loacutegico
alusivo agrave hipoacutetese peirceana de que toda questatildeo que possa ser formulada de modo inteligiacutevel
tem necessariamente que possuir uma resposta racional Como afirma em um texto de 1884
ldquoDesiacutegnio e acasordquo
() a hipoacutetese do acaso absoluto eacute parte e parcela da hipoacutetese de que tudo eacute
explicaacutevel natildeo absolutamente rigidamente sem a menor inexatidatildeo ou exceccedilatildeo
esporaacutedica pois esta eacute uma suposiccedilatildeo autocontraditoacuteria contudo explicaacutevel de
modo geral A capacidade de explicaccedilatildeo natildeo tem limite determinado amp absoluto
(W 4 p 549 1883-4)50
O imperativo que manda ldquonatildeo bloquear o caminho da investigaccedilatildeordquo tem nessas palavras
uma de suas traduccedilotildees Como aponta Peirce um dos principais defeitos das teorias deterministas
encontra-se no fato de que elas deixam sem explicaccedilatildeo uma seacuterie de aspectos do cosmo O que
dizer sobre a proacutepria origem das leis deterministas Por que o universo segue estas leis e natildeo
outras E quanto agrave diversidade observada no universo Como ela eacute possiacutevel Como do
indiferenciado pocircde surgir a diferenccedila por meio da atuaccedilatildeo de leis estritamente deterministas
que levam de causas idecircnticas a efeitos idecircnticos A resposta a estas questotildees expande o universo
da inteligibilidade humana Eacute justamente o que pretende Peirce com a elaboraccedilatildeo e exploraccedilatildeo da
50 () the hypothesis of absolute chance is part and parcel of the hypothesis that everything is explicable not
absolutely rigidly without the smallest inexactitude or sporadic exception for that is a self-contradictory supposition
but yet explicable in a general way Explicability has no determinate amp absolute limit
51
hipoacutetese do acaso como um ingrediente essencial da constituiccedilatildeo do universo tal qual o
percebemos
Um dos aspectos mais originais do pensamento de Charles S Peirce eacute a presenccedila de um
princiacutepio de indeterminaccedilatildeo como elemento fundador de sua cosmologia Contrariamente a
muitos que procuram insistentemente ancorar a realidade sobre a permanecircncia e a imutabilidade
de certos elementos Peirce assume de maneira inquestionaacutevel a liberdade e a falta de
necessidade do mundo ser como eacute Ainda que o processo de desenvolvimento se decirc em funccedilatildeo de
certos princiacutepios norteadores natildeo haacute impedimento algum que barre a irrupccedilatildeo da novidade
radical no rearranjo de seus constituintes Um fato que na visatildeo de Peirce natildeo pode ser ignorado
eacute o de que o universo demonstra um processo de contiacutenuo crescimento que propicia o aumento
da complexidade de forma irreversiacutevel
O acaso eacute o elemento central da tese peirceana do indeterminismo denominada de tiquismo
(ver REYNOLDS 2009 SALATIEL 2008) Com o tiquismo o autor afirma que haacute no mundo
um caraacuteter de real espontaneidade natildeo devido agrave nossa subjetividade ou incapacidade cognitiva
mas agrave sua proacutepria constituiccedilatildeo ontoloacutegica Esse elemento nega a possibilidade do
desenvolvimento necessaacuterio dos sistemas determinados pelas leis mecacircnicas e pelas condiccedilotildees
iniciais as quais soacute podem ser entendidas como estatiacutesticas Peirce explica dessa maneira que
pela atuaccedilatildeo do acaso surgem a novidade e a variedade no universo
A concorrecircncia desses dois ingredientes acaso e lei implica a elaboraccedilatildeo de uma
epistemologia falibilista ou seja natildeo haacute verdades absolutas na concepccedilatildeo peirceana apenas
aproximaccedilotildees O erro eacute sempre uma possibilidade presente na tentativa de compreensatildeo realizada
pelo homem Para o filoacutesofo
() o universo natildeo eacute um mero resultado mecacircnico da atuaccedilatildeo cega da lei O
mais oacutebvio de seus caracteres natildeo pode ser explicado Satildeo os numerosos fatos da
experiecircncia que nos mostra isso mas aquilo que abriu os nossos olhos para esses
52
fatos eacute o princiacutepio do falibilismo (CP 1 sect 162 1897)51
Peirce eacute bastante radical ao afirmar que natildeo haacute crenccedilas estabelecidas na ciecircncia Todas as
proposiccedilotildees aceitas estatildeo sujeitas ao confronto com a experiecircncia Nas palavras do autor
() ciecircncia pura natildeo tem nada a ver com accedilatildeo As proposiccedilotildees aceitas satildeo
meramente escritas na lista de premissas que se propotildee a usar Nada eacute vital para
a ciecircncia nada pode ser Suas proposiccedilotildees aceitas portanto natildeo satildeo mais que
opiniotildees e a lista toda eacute provisoacuteria O homem cientiacutefico natildeo estaacute minimamente
soldado agraves suas conclusotildees Ele nada arrisca por elas Permanece apto a
abandonar uma ou todas tatildeo logo a natureza a elas se oponha Algumas delas eu
concedo satildeo habitualmente chamadas de verdades estabelecidas mas isto
meramente indica proposiccedilotildees a que nenhum homem experiente se opotildee hoje
Parece que qualquer proposiccedilatildeo provaacutevel daquele tipo permaneceraacute por um
longo tempo na lista de proposiccedilotildees a serem admitidas Contudo ela pode ser
refutada amanhatilde e se for assim o homem cientiacutefico se alegraraacute de ter se livrado
de um erro Natildeo haacute desse modo na ciecircncia proposiccedilotildees que respondam pelo
conceito de crenccedila (CP 1 sect 635 1908)52
Para Peirce existe uma afinidade natural entre o princiacutepio de continuidade e a doutrina do
falibilismo nunca podemos estar certo da verdade de nossas crenccedilas pois natildeo podemos comparaacute-
las com os fatos natildeo mentais
51 () the universe is not a mere mechanical result of the operation of blind law The most obvious of all its
characters cannot be so explained It is the multitudinous facts of all experience that show us this but that which has
opened our eyes to these facts is the principle of fallibilism 52
() pure science has nothing at all to do with action The propositions it accepts it merely writes in the list of
premisses it proposes to use Nothing is vital for science nothing can be Its accepted propositions therefore are but
opinions at most and the whole list is provisional The scientific man is not in the least wedded to his conclusions
He risks nothing upon them He stands ready to abandon one or all as soon as experience opposes them Some of
them I grant he is in the habit of calling established truths but that merely means propositions to which no
competent man today demurs It seems probable that any given proposition of that sort will remain for a long time
upon the list of propositions to be admitted Still it may be refuted tomorrow and if so the scientific man will be
glad to have got rid of an error There is thus no proposition at all in science which answers to the conception of
belief
53
O princiacutepio da continuidade eacute a ideia do falibilismo objetivado Pois o
falibilismo eacute a doutrina de que o nosso conhecimento nunca eacute absoluto mas
sempre flutua como se estivesse em um contiacutenuo de incerteza e
indeterminaccedilatildeo A doutrina da continuidade eacute a de que todas as coisas flutuam da
mesma maneira no continuum (CP 1 sect 171 1897)53
A passagem da natildeo existecircncia do universo agrave existecircncia se daacute por meio da evoluccedilatildeo ou
crescimento da lei em um processo no qual interferem tanto a criatividade radical fornecida pelo
acaso quanto a proacutepria lei que se fortalece com sua proacutepria aplicaccedilatildeo
Em resumo podemos dizer que do ponto de vista cosmoloacutegico o desenrolar dos
acontecimentos no universo se processa de maneira contiacutenua Esse desenvolvimento que para
Peirce eacute bem caracterizado pelo termo bdquocrescimento‟ molda dentro de sua concepccedilatildeo
cosmoloacutegica todos os elementos constituintes de nosso universo desde o mais riacutegido dos
elementos ateacute aqueles mais volaacuteteis desde um diamante ateacute a proacutepria mente humana Esse
universo em crescimento encontra no acaso seu constituinte fundamental como uma
decorrecircncia loacutegica necessaacuteria do princiacutepio que manda natildeo postular o incognosciacutevel no seio da
natureza (cf CP 6 sect 64 1892) e que Peirce assume como uma regra do meacutetodo cientiacutefico Na
passagem do acaso primordial ao universo ordenado e regido por leis interfere um princiacutepio que o
autor denomina de lei da mente ou princiacutepio de aquisiccedilatildeo de haacutebitos
Eacute possiacutevel enxergar a elaboraccedilatildeo teoacuterica peirceana como a resultante de um diaacutelogo com a
Ciecircncia e a Matemaacutetica do seacuteculo XIX A leitura que Peirce fez da obra de Charles Darwin
(1809ndash1882) bem como os avanccedilos da teoria matemaacutetica da probabilidade e estatiacutestica e da
mecacircnica estatiacutestica com os quais teve iacutentimo contato forneceram as bases para pensar a
variaccedilatildeo e o acaso54 Eacute com base nesse conceito que Peirce proporaacute uma alternativa ao modelo de
53 The principle of continuity is the idea of fallibilism objectified For fallibilism is the doctrine that our knowledge is
never absolute but always swims as it were in a continuum of uncertainty and of indeterminacy Now the doctrine
of continuity is that all things so swim in continua 54
Os termos usados por Peirce para referenciar esse elemento de total liberdade existente no cosmo satildeo variation
sporting e chance que aparecem em vaacuterios momentos de sua obra principalmente apoacutes a leitura que realizou ainda
jovem da obra capital de Charles Darwin A origem das espeacutecies (1859)
54
cientificidade da eacutepoca que estava calcado em uma atitude fisicalista e determinista e defendia a
busca de leis mecacircnicas de alcance universal e necessaacuterio
23 A DOUTRINA DA NECESSIDADE
Em seu mais elaborado texto sobre sua posiccedilatildeo indeterminista A doutrina da necessidade
examinada Peirce inicia por apresentar a crenccedila bastante presente em seu tempo que seraacute objeto
de sua anaacutelise ldquo() que todo fato no universo eacute precisamente determinado por leirdquo (CP 6 sect 36
1892)55
Essa crenccedila que para muitos pode parecer bastante natural natildeo se impotildee a todas as
mentes racionais diraacute o autor A ideia de que haacute acontecimentos naturais que ocorrem sem
determinaccedilatildeo de uma lei eacute bastante difundida desde a origem da filosofia56 e estaacute presente ateacute
mesmo nos trabalhos de Aristoacuteteles57 Natildeo obstante estas constataccedilotildees a tese do determinismo
aparece como inquestionaacutevel para os cientistas de seu tempo e podemos dizer ainda manteacutem
cativos vaacuterios pensadores no presente seacuteculo Parafraseando Pierre Simon Laplace (1749 ndash 1827)
o fiacutesico francecircs do seacuteculo XVIII que popularizou esta teoria Peirce sintetiza a crenccedila no
determinismo nas seguintes palavras
A proposiccedilatildeo em questatildeo eacute a de que o estado das coisas existentes em qualquer
tempo junto com certas leis imutaacuteveis determina completamente o estado de
coisas em qualquer outro tempo (pois a limitaccedilatildeo do tempo futuro eacute
indefensaacutevel) Assim dado o estado do universo na neacutebula original e dadas as
leis da mecacircnica uma mente suficientemente poderosa poderia deduzir a partir
desses dados a forma precisa de qualquer volteio de qualquer letra que estou
55 () that every single fact in the universe is precisely determined by law
56 Basta ver o trabalho de Epicuro que tomando a doutrina dos atomistas afirma que os aacutetomos desviam-se de seu
curso sob a accedilatildeo do acaso espontacircneo 57
Segundo Peirce Aristoacuteteles condena as doutrinas deterministas afirmando que os eventos podem surgir de trecircs
modos diferentes ldquo(1) por compulsatildeo externa ou accedilatildeo de causas eficientes (2) por virtude da natureza interna ou
influecircncia de causas finais e (3) irregularmente sem qualquer causa definida soacute pelo acaso absolutordquo (CP 6 sect 36
1892)
55
agora escrevendo (CP 6 sect 37 1892)58
A abordagem dos deterministas eacute dita em termos da teoria das categorias peirceana
carregada da noccedilatildeo de secundidade Como aponta o autor a questatildeo natildeo precisa nem ser
colocada em termos da negaccedilatildeo da noccedilatildeo de primeiridade59
que poderia muito bem ser admitida
pelos defensores do determinismo no niacutevel atocircmico sem grandes implicaccedilotildees O que tais
defensores natildeo podem aceitar eacute ldquo() a atribuiccedilatildeo dessa primeiridade a coisas completamente
mortas e materiaisrdquo (CP 6 sect 201 1898)60
Aqueles que comungam do credo determinista utilizam-se de dois tipos principais de
argumentos para justificaacute-lo Em primeiro lugar afirmam que ele deve ser visto como um
postulado que possibilita a praacutetica e o desenvolvimento da ciecircncia e em segundo lugar
acrescentam que a observaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais fornece evidecircncias suficientes para a sua
defesa
Sigamos mais um pouco na anaacutelise realizada por Peirce enfocando cada uma das
justificaccedilotildees Quanto agrave primeira justificativa o autor se pergunta o que se entende por postulado e
responde que ldquoEacute a formulaccedilatildeo de um fato material o qual natildeo estamos autorizados a assumir
como uma premissa mas cuja verdade eacute necessaacuteria para a validade de uma inferecircnciardquo (CP 6 sect
41 1892)61
Assim um postulado pode ser um fato que obtemos ou natildeo em nossa experiecircncia
Caso faccedila parte do mundo vivido estariacuteamos autorizados a utilizaacute-lo como premissa caso natildeo
faccedila parte ele deve ser justificado pela possibilidade de ser de outra maneira do que a assumida
isto eacute o postulado eacute vaacutelido na medida em que a experiecircncia o justifica De qualquer modo ldquo()
58 The proposition in question is that the state of things existing at any time together with certain immutable laws
completely determine the state of things at every other time (for a limitation to future time is indefensible) Thus
given the state of the universe in the original nebula and given the laws of mechanics a sufficiently powerful mind
could deduce from these data the precise form of every curlicue of every letter I am now writing 59
Primeiridade ou firstness eacute uma das categorias fenomenoloacutegicas peirceana sua caracteriacutestica principal eacute a
liberdade e espontaneidade 60
() the attribution of this firstness to things perfectly dead and material 61
It is the formulation of a material fact which we are not entitled to assume as a premiss but the truth of which is
requisite to the validity of an inference
56
cada postulado eacute eliminado quer por serem provisoacuterios ou pela experiencialidade de nossa
inferecircnciardquo (CP 6 sect 41 1892)62
O que Peirce estaacute discutindo eacute o tipo de validade que podemos atribuir ao raciociacutenio
indutivo e o grau de certeza dele decorrente Ainda que esse tema tenha sido tratado de modo
mais demorado em outros momentos da sua produccedilatildeo reportaremos apenas aos elementos
contidos na elaboraccedilatildeo do texto em anaacutelise
Natildeo se pode negar a existecircncia e a utilidade do pensamento indutivo poreacutem o que se
coloca em questatildeo eacute a necessidade de suas conclusotildees Os indutivistas afirmam que se tomarmos
um conjunto de amostras sucessivas devolvendo cada uma ao conjunto antes que a proacutexima
amostra seja retirada verificar-se-aacute apoacutes certo nuacutemero de vezes a tendecircncia de que cada
elemento seraacute retirado com a mesma frequecircncia Ou seja que ldquo() a razatildeo do nuacutemero de vezes
nas quais quaisquer dois satildeo retirados aproximaraacute indefinidamente da unidaderdquo (CP 6 sect 41
1892)63
Mas isso natildeo acontece afirma Peirce pois o que eacute medido eacute a proacutepria razatildeo de cada
amostra e natildeo a razatildeo do conjunto que permanece latente e desconhecida que eacute justamente o que
se quer determinar Por outro lado basta consultar a experiecircncia para saber que os elementos
obtidos na primeira amostra seratildeo mais frequentes depois de uma grande quantidade de amostras
Os indutivistas dizem ainda que ldquo() sob circunstacircncias semelhantes eventos semelhantes
ocorreratildeo e que este postulado eacute na base o mesmo que o princiacutepio da causalidade universalrdquo
(CP 6 sect 41 1892)64
Segundo Peirce essa afirmaccedilatildeo natildeo passa de uma grande bobagem devido
a pensadores que acreditam que as respostas soacute possam ser dadas em termos absolutos de 0 ou 1
Existe uma infinidade de possibilidades entre esses dois valores que deve ser levada em
consideraccedilatildeo
Em resumo poderiacuteamos dizer que uma quantidade fiacutesica nunca eacute do tipo absoluto A
62 () every postulate is cut off either by the provisionality or by the experientiality of our inference
63 () that the ratio of the numbers of times in which any two are drawn will indefinitely approximate to unity
64 () under like circumstances like events will happen and that this postulate is at bottom the same as the principle
of universal causation
57
praacutetica laboratorial de Peirce como eacute por ele ressaltada vaacuterias vezes em sua obra mostrou-lhe
que as quantidades fiacutesicas satildeo sempre estatiacutesticas e podem ser representadas por um conjunto de
valores aproximados graficamente transcritos na curva-sino das equaccedilotildees estatiacutesticas
Quanto ao segundo tipo de justificaccedilatildeo Peirce afirma que eacute de um tipo especial e que se a
primeira justificativa puder ser rebatida com um argumento que qualquer ser racional possa
aceitar a referecircncia agrave observaccedilatildeo da natureza requer um tipo especial de anaacutelise que natildeo
obstante deveria convencer uma pessoa acostumada a pensar cientificamente
A essecircncia da argumentaccedilatildeo dos que julgam as leis da natureza necessaacuterias eacute de que ldquo()
certas quantidades contiacutenuas tecircm certos valores exatosrdquo (CP 6 sect 44 1892)65
mas como a
observaccedilatildeo poderia determinar o valor de tal quantidade com erro nulo ndash pergunta-se o autor Se
for possiacutevel encontrar um meacutetodo para se determinar um valor absoluto para as quantidades na
fiacutesica ele deveraacute ser buscado em uma esfera diferente daquela da observaccedilatildeo
Se natildeo conhecemos o conjunto completo do qual uma determinada amostra foi retirada
natildeo estamos autorizados a sustentar que natildeo haacute nele qualquer traccedilo de um elemento que
aparentemente encontra-se ausente Dessa maneira natildeo temos porque sustentar que natildeo haja
qualquer elemento de acaso ou desvios espontacircneos agindo em qualquer lei da natureza
A observaccedilatildeo que inicialmente eacute tida pelos deterministas como uma justificativa em favor
de suas teses eacute apropriada por Peirce que a transforma em um argumento favoraacutevel agrave sua proacutepria
posiccedilatildeo Por meio da observaccedilatildeo afirma o autor apenas se constata que haacute certas regularidades
agindo na natureza mas isso natildeo eacute suficiente para afirmar que essas regularidades possam ser
elevadas agrave condiccedilatildeo de leis absolutas e necessaacuterias Ao contraacuterio quanto mais acuradas forem as
observaccedilotildees mais ficaraacute demonstrado que haacute uma irregularidade reinante nos fatos naturais Nas
palavras de Peirce ldquoTente verificar qualquer lei da natureza e vocecirc apuraraacute que quanto mais
precisas forem suas observaccedilotildees mais certamente elas mostraratildeo desvios irregulares da leirdquo (CP
65 () certain continuous quantities have certain exact values
58
6 sect 46 1892)66
Mesmo aqueles que retrocederem nas cadeias causais dos fatos seratildeo forccedilados a
admitir que estes sejam sempre devidos a determinaccedilotildees arbitraacuterias ou ao acaso
Tendo rebatido as pretensotildees dos deterministas do modo que se viu Peirce passaraacute a expor
aquilo que nos interessa de maneira mais especiacutefica neste texto em que consiste e como pode ser
pensado o acaso absoluto
Procedendo de maneira bastante didaacutetica o autor defenderaacute sua concepccedilatildeo de acaso em
face dos principais argumentos que podem ser colocados contra a sua existecircncia Eacute novamente na
ciecircncia da sua eacutepoca que Peirce buscaraacute elementos para defesa de sua tese Ele diz que eacute natural
esperar que ldquo() se houve um elemento de acaso real no universo deve natildeo ocasionalmente ser
produtor de efeitos sinalizadores de tal forma que natildeo passariam sem observaccedilatildeordquo (CP 6 sect 47
1892)67
Aleacutem da grande quantidade de eventos que podem comprovar esta tese para quem estaacute
disposto a observar eacute a proacutepria ciecircncia que trata dos movimentos dos gases que aponta para o
fato de que o comportamento dos mesmos muitas vezes parece contrariar a segunda lei da
termodinacircmica indicando que se deslocam como que ao acaso promovendo certas concentraccedilotildees
que algumas vezes resultam em efeitos bastante explosivos Dessa maneira a observaccedilatildeo que eacute
utilizada para referendar a posiccedilatildeo determinista acaba por se tornar diante da argumentaccedilatildeo do
autor em uma defesa da noccedilatildeo de acaso
Outros defensores do determinismo insistem em sustentar que sua posiccedilatildeo eacute uma crenccedila
natural e que em geral as crenccedilas naturais satildeo confirmadas pela experiecircncia A esse argumento
Peirce responde dizendo que de fato as crenccedilas naturais devem ser analisadas com bastante
cuidado e purificadas a partir de suas primeiras formulaccedilotildees que em geral satildeo errocircneas A
aproximaccedilatildeo da verdade que tais crenccedilas parecem apresentar eacute o resultado da adaptaccedilatildeo de ldquo()
produtos geneacuteticos a utilidades reconheciacuteveis ou finsrdquo (CP 6 sect 50 1892)68
Mas esse tipo de
66 Try to verify any law of nature and you will find that the more precise your observations the more certain they
will be to show irregular departures from the law 67
() if there were an element of real chance in the universe it must not occasionally be productive of signal effects
such as could not pass unobserved 68
() genetic products to recognizable utilities or ends
59
adaptaccedilatildeo conquanto belo e maravilhoso demonstra natildeo ser exatamente perfeito ldquo() de tal
modo que o argumento eacute quase contra a exatidatildeo absoluta de qualquer crenccedila natural incluindo
aquela do princiacutepio de causalidaderdquo (CP 6 sect 50 1892)69
Outro argumento comumente utilizado eacute de que a noccedilatildeo de acaso absoluto eacute inconcebiacutevel
Esse tipo de desconsideraccedilatildeo a priori pode ser rebatido de maneira bastante simples afirma
Peirce Ora o termo acaso possui uma grande diversidade de significado e mesmo que se
especificasse o sentido do mesmo seria possiacutevel mostrar que natildeo se tem razatildeo para fazer tal
afirmaccedilatildeo sem contar o fato de que a inconceptibilidade (inconceivability) natildeo eacute um tipo de
atribuiccedilatildeo que implica na natildeo existecircncia do acaso
Um outro argumento a priori eacute o que defende a ideia de que o acaso absoluto eacute
ininteligiacutevel isto eacute
() enquanto ele talvez possa ser concebiacutevel ele natildeo abre o olho da razatildeo para o
como ou o porquecirc das coisas e uma vez que uma hipoacutetese somente pode ser
justificada na medida em que causa algum fenocircmeno inteligiacutevel nunca
poderemos ter qualquer razatildeo de supor o acaso absoluto como entrando na
produccedilatildeo de qualquer coisa na natureza (CP 6 sect 52 1892)70
Esse argumento como aponta Peirce estaacute em estreita conexatildeo com os outros dois
anteriores Em primeiro lugar indica que natildeo haacute qualquer fato que possa ser por ele explicado
sendo portanto desnecessaacuterio e indica na sequecircncia que jaacute que as variaccedilotildees na atuaccedilatildeo das leis
natildeo podem ser observadas inequivocamente o acaso absoluto natildeo pode ser vera causa natildeo
havendo um lugar para ele em nossos esquemas de explicaccedilatildeo dos acontecimentos naturais
Para rebater esse argumento Peirce cria um diaacutelogo imaginaacuterio com um defensor do
69 () so that the argument is quite against the absolute exactitude of any natural belief including that of the
principle of causation 70
() while it may perhaps be conceivable it does not disclose to the eye of reason the how or why of things and
since a hypothesis can only be justified so far as it renders some phenomenon intelligible we never can have any
right to suppose absolute chance to enter into the production of anything in nature
60
determinismo no qual deixa claro quais satildeo os elementos existentes na sua noccedilatildeo de acaso
absoluto bem como suas principais diferenccedilas com respeito agrave tese adversaacuteria
Em primeiro lugar a atuaccedilatildeo real do acaso como uma causa dos eventos naturais natildeo nega
a existecircncia de regularidades no mundo apenas requer que sejam interpretadas como estatiacutesticas
e natildeo absolutas Pois a defesa da existecircncia de regularidades absolutas ou seja da atuaccedilatildeo de
leis naturais necessaacuterias implicaria em afirmar que toda a diversidade e toda novidade que
podem ser constatadas em qualquer evento natural por mais simples que seja como por
exemplo o jogo de dados tenham sido introduzidas no universo de uma soacute vez no iniacutecio de tudo
Assim o incremento da diversidade da natureza seria apenas uma ilusatildeo jaacute que sob a accedilatildeo das
leis mecacircnicas nada de absolutamente novo poderia surgir
As leis mecacircnicas apresentam ainda uma caracteriacutestica que parece incompatiacutevel com os
fenocircmenos naturais tanto orgacircnicos quanto inorgacircnicos elas ignoram a flecha do tempo Como
aponta Andrew Reynolds (2002) um aspecto central da Fiacutesica de entatildeo pode ser encontrado no
uso de leis matemaacuteticas exatas para descrever o movimento
Uma caracteriacutestica da expressatildeo matemaacutetica das leis de Newton (em termos de
equaccedilotildees diferenciais que descrevem a taxa de variaccedilatildeo das quantidades fiacutesicas
como uma funccedilatildeo do tempo) eacute sua invariacircncia sob o que acarretaria uma
reversatildeo da direccedilatildeo do bdquofluxo‟ do tempo (REYNOLDS 2002 p 2)
Natildeo haacute segundo esta abordagem qualquer dificuldade fiacutesica na ocorrecircncia de um evento
que inverta a flecha do tempo Por exemplo
Natildeo haacute nada nas proacuteprias leis isso eacute que especifica que uma xiacutecara fria de cafeacute
com creme mexida uniformemente natildeo possa em seus proacuteprios termos
absorver calor do ambiente circundante e tornar-se uma xiacutecara de cafeacute quente
nem as leis proiacutebem que o creme poderia espontaneamente separar-se a si
proacuteprio do cafeacute e pular bdquode volta‟ no tubo de creme do qual ele veiordquo
(REYNOLDS 2002 p 3)
61
A descriccedilatildeo deste evento imaginaacuterio eacute totalmente contraacuteria agraves ocorrecircncias normais Peirce
aponta que a abordagem determinista dos eventos natildeo consegue explicar o porquecirc de a grande
maioria dos eventos ser experienciada em uma ordem irreversiacutevel de acontecimentos que seguem
do passado para o futuro e natildeo o contraacuterio
As razotildees que conduzem o autor a defender a ideia de que a diversidade do mundo tem
crescido continuamente e de que este fato natildeo pode ser explicado a partir da abordagem
determinista satildeo sintetizadas em cinco itens que passamos a elencar
(1) A natureza explicada segundo leis mecacircnicas prescinde do curso do tempo Aqui Peirce
sustenta sua ideia de crescimento contiacutenuo do universo apelando para as ciecircncias que tecircm
no tempo uma variaacutevel imprescindiacutevel para as suas elaboraccedilotildees e descobertas Basta
inquirir agrave paleontologia ou agrave geologia ou ateacute mesmo agrave astronomia para se constatar que
haacute um crescimento e aumento da complexidade em cada um de seus objetos de estudo
(2) A diversidade e a novidade existentes no mundo natildeo podem ser adequadamente
explicadas pela atuaccedilatildeo de leis mecacircnicas absolutas Pois eacute da essecircncia de uma lei que
causas idecircnticas sempre produzam os mesmos efeitos Desse modo uma hipoacutetese
razoaacutevel eacute que sejam os resultados das pequenas variaccedilotildees ocorridas no momento da
atuaccedilatildeo da lei os responsaacuteveis pelo crescimento da complexidade existente
(3) A hipoacutetese da existecircncia do acaso absoluto manifesto nas pequenas variaccedilotildees no
momento da atualizaccedilatildeo das leis permite explicar como a diversidade surge Permite
ainda a justificaccedilatildeo da atuaccedilatildeo de um outro tipo de causalidade a da lei da mente que
explica a formaccedilatildeo da uniformidade constatada no universo Afirmar por outro lado que
a diversidade e irregularidade bem como uniformidade e regularidade existentes no
universo natildeo podem ser explicadas e nem mesmo deveriam ser questionadas como
fazem os deterministas significa ferir a primeira lei da loacutegica que consiste em natildeo
bloquear a investigaccedilatildeo
62
(4) A partir da introduccedilatildeo da causalidade mental ou causalidade teleoloacutegica em seu esquema
explicativo possibilitado pela inserccedilatildeo do acaso absoluto Peirce afirma ser possiacutevel
explicar diversos fenocircmenos que de outra maneira adquiririam o caraacuteter de
fantasmagoacuterico como por exemplo a consciecircncia e correlatos
(5) A mais importante razatildeo que permaneceraacute natildeo desenvolvida no texto em anaacutelise eacute a de
que ldquoa hipoacutetese do acaso-espontaneidade eacute uma daquelas consequecircncias inevitaacuteveis
capazes de serem formuladas com precisatildeo matemaacutetica em consideraacutevel detalherdquo (CP 6 sect
62 1892)71
Tem-se desse modo uma defesa da presenccedila do acaso no mundo que natildeo apenas recebe o
suporte das observaccedilotildees e evidecircncias que estatildeo disponiacuteveis para quem as desejar constatar como
parece se impor como uma evidecircncia para todo aquele que estaacute familiarizado com a praacutetica
cientiacutefica E que ainda fornece uma hipoacutetese explicativa para os fenocircmenos naturais tanto da
diversidade como da uniformidade do mundo que impulsiona o desenvolvimento de futuras
pesquisas sem postular o incompreensiacutevel como constituinte da natureza
Resumindo podemos dizer que contra a argumentaccedilatildeo peirceana os deterministas soacute
poderiam responder de uma das trecircs maneiras elencadas abaixo
(1) O acaso eacute algo absolutamente ininteligiacutevel
(2) Natildeo haacute qualquer fenocircmeno no qual a atuaccedilatildeo do acaso possa ser observada de forma
inequiacutevoca
(3) O acaso natildeo pode ser uma vera causa
Quanto agrave objeccedilatildeo (1) Peirce indica que sua hipoacutetese do acaso absoluto diferentemente da
tese determinista fornece uma explicaccedilatildeo para o surgimento tanto das irregularidades quanto das
71 The hypothesis of chance-spontaneity is one whose inevitable consequences are capable of being traced out with
mathematical precision into considerable detail
63
uniformidades existentes no universo O que parece ser um ganho consideraacutevel uma vez que
desobstrui os caminhos da investigaccedilatildeo cientiacutefica Um aspecto como jaacute vimos que fornece um
suporte extra a esta hipoacutetese eacute o fato que ela daacute lugar agrave elaboraccedilatildeo da lei da mente O acaso uma
vez manifestado desenvolve-se segundo determinadas maneiras e natildeo de uma maneira qualquer eacute
sob a atuaccedilatildeo da lei da mente ou lei da aquisiccedilatildeo de haacutebito ou simplesmente lei do haacutebito que
ele produz consequecircncias ou permanece inerte
A objeccedilatildeo do tipo (2) eacute na visatildeo de Peirce bastante ingecircnua pois parece ignorar todos os
avanccedilos cientiacuteficos que se verificaram nas aacutereas de astronomia biologia ou geologia
permanecendo cega para os fenocircmenos de crescimento de diversidade ou evoluccedilatildeo Esses
fenocircmenos satildeo totalmente refrataacuterios agrave abordagem mecanicista no entender desse autor
Compondo com esses fenocircmenos aparece a consciecircncia como outro empecilho agraves pretensotildees dos
mecanicistas que se fiam unicamente na ideia de regularidade para compor o seu quadro
explicativo Com essa atitude a noccedilatildeo de regularidade absoluta serve apenas ldquo() para bloquear
o caminho da investigaccedilatildeordquo (CP 6 sect 64 1892)72
Agrave acusaccedilatildeo (3) de que o acaso natildeo pode ser considerado uma vera causa Peirce responde
dizendo que esta criacutetica natildeo pode ser aplicada a concepccedilotildees elementares Se levarmos a seacuterio esta
acusaccedilatildeo seria preciso reavaliar a proacutepria crenccedila na existecircncia do universo material uma vez que
a variedade eacute um fato que natildeo pode ser ignorado
Tendo assim defendido a existecircncia do acaso absoluto Peirce acredita que natildeo resta duacutevida
que as pesquisas devam ser refeitas e direcionadas para novas bases que levem em consideraccedilatildeo o
caraacuteter estatiacutestico das regularidades bem como o indeterminismo reinante no universo que em
uacuteltima instacircncia eacute a fonte de diversidade e novidade existentes
72 () to block the road of inquiry
64
3 A LEI
Se de um lado temos no acaso um dos constituintes fundamentais da realidade do outro
encontramos no continuum ou nas leis outro elemento de igual importacircncia A elaboraccedilatildeo que
Peirce oferece deste toacutepico estaacute em estreita conexatildeo com a matemaacutetica dos infinitesimais por ele
estudada Nosso interesse aqui natildeo eacute o de aprofundar tais concepccedilotildees que seratildeo analisadas em
capiacutetulo posterior procuramos apenas extrair algumas caracteriacutesticas de sua descriccedilatildeo que
suportem a nossa anaacutelise da lei da mente A questatildeo levantada por Peirce e que serviraacute de guia
para a nossa discussatildeo seraacute a de Como pode uma ideia passada estar presente (CP 6 sect 109
1892)73
A resposta por ele proposta eacute de que devemos estar diretamente conscientes das ideias
do passado imediato Caso houvesse uma lacuna entre nosso conhecimento presente e as ideias
do passado todo o nosso conhecimento do passado natildeo seria mais do que uma ilusatildeo Assim
como consequecircncia devemos estar conscientes do passado ldquoatraveacutes de um intervalo de tempo
infinitesimalrdquo (CP 6 sect 110 1892)74
Nessa mesma linha aponta Hausman ldquosomos levados a
concentrar nosso exame da experiecircncia de ser consciente atraveacutes de um fluxo de tempo que deve
ser compreendido em termos de componentes infinitesimaisrdquo (HAUSMAN 1993 p 179)
Natildeo temos por conseguinte uma apreensatildeo completa e definida de uma ideia em um
determinado instante do tempo A cogniccedilatildeo se daacute no continuum apenas atraveacutes de um processo
de imbricaccedilatildeo das ideias que ocorre por meio de uma sucessatildeo de intervalos infinitesimais no
tempo Durante tais intervalos diraacute Peirce ldquopercebemos diretamente a sequecircncia temporal de seu
iniacutecio meio e fim ndash natildeo naturalmente como uma recogniccedilatildeo pois a recogniccedilatildeo eacute unicamente do
passado mas como um sentimento imediatordquo (CP 6 sect 111 1892)75
Se em um primeiro instante temos acesso ao sentimento do imediato caracteriacutestico da
73 How can a past idea be present
74 () through an infinitesimal interval of time
75 In an infinitesimal interval we directly perceive the temporal sequence of its beginning middle and end -- not of
course in the way of recognition for recognition is only of the past but in the way of immediate feeling
65
categoria de primeiridade no segundo momento temos a percepccedilatildeo da passagem do tempo A
ligar esses dois temos um terceiro que indica uma direccedilatildeo e que requer uma interpretaccedilatildeo uma
inferecircncia na medida em que se obteacutem uma generalidade
Peirce continuaraacute dizendo que quando haacute ldquoum fluxo contiacutenuo de inferecircncias atraveacutes de um
tempo finitordquo o resultado ldquoseraacute uma consciecircncia objetiva mediata de tempo completo no
momento passadordquo (CP 6 sect 111 1892)76
Por meio desta anaacutelise o autor estaacute propondo uma
abordagem da relaccedilatildeo do fluxo temporal sentido e a interpretaccedilatildeo cognitiva do mesmo
A cogniccedilatildeo que eacute uma experiecircncia mediata requer a consideraccedilatildeo dos sentimentos
passados impondo a eles uma certa definiccedilatildeo de tal maneira que possam ser comparados o que
se daacute segundo um ato interpretativo Cada intervalo consiste em um momento da percepccedilatildeo
consciente de tal maneira que se pode afirmar que a proacutepria consciecircncia eacute contiacutenua
31 O IDEALISMO OBJETIVO
Peirce se autodenomina em algumas passagens de idealista objetivo afirmando a sua
diferenccedila com relaccedilatildeo ao monismo materialista Aponta que a diferenccedila entre os dois eacute que o
monista materialista toma a lei da mente como uma consequecircncia das leis da mateacuteria enquanto o
idealista objetivo toma as leis da mateacuteria como um resultado especial da lei da mente Um grande
problema para o materialista eacute explicar como as leis da mateacuteria que satildeo completamente cegas ou
natildeo teleoloacutegicas podem dar origem a uma mente que natildeo age cegamente mas que possui
propoacutesitos Peirce diraacute que o problema consiste em se compreender como a accedilatildeo teleoloacutegica ou
propositada pode ser um efeito secundaacuterio de uma accedilatildeo natildeo teleoloacutegica
76 Let there be not merely an indefinite succession but a continuous flow of inference through a finite time and the
result will be a mediate objective consciousness of the whole time in the last moment
66
A soluccedilatildeo para a questatildeo segue-se a partir da inspiraccedilatildeo darwiniana por meio da
combinaccedilatildeo de dois fatores as insensiacuteveis variaccedilotildees fortuitas e a destruiccedilatildeo das formas menos
aptas cujas transformaccedilotildees levam-nas aleacutem de certos limites O uacuteltimo desses fatores poderia ser
entendido como uma lei mecacircnica mas o que dizer do primeiro Pergunta-se Peirce
A necessidade de natildeo bloquear a via de investigaccedilatildeo como tantas vezes apontada pelo
autor natildeo eacute transgredida por esta pergunta irrespondiacutevel uma vez que seria um absurdo a
tentativa de explicaccedilatildeo do proacuteprio acaso pois as explicaccedilotildees se datildeo por meio de generalidades e
as variaccedilotildees fortuitas satildeo uacutenicas e autorreferentes Jaacute a lei da evoluccedilatildeo ou lei da mente necessita
de uma explicaccedilatildeo e pode ser aqui esboccedilada
32 A LEI DA MENTE
Peirce descreve a lei da mente como o fato de que as
() ideias tendem a se dispersar continuamente e a afetar certas outras que
permanecem em uma relaccedilatildeo peculiar de afetabilidade com relaccedilatildeo a ela Nesta
dispersatildeo elas perdem intensidade e especialmente o poder de afetar as outras
mas ganham em generalidade e se tornam amalgamadas com outras ideias (CP
6 sect 104 1892)77
Eacute natural atribuir a uma lei o caraacuteter de absoluta como o atribuiacutedo comumente agraves leis da
fiacutesica a lei da mente entretanto natildeo requer uma exata conformidade Como afirma Peirce ldquo() a
conformidade exata estaria em conflito inequiacutevoco com a lei uma vez que cristalizaria
instantaneamente o pensamento e impediria as formaccedilotildees posteriores de haacutebitosrdquo (CP 6 sect 23
77 () ideas tend to spread continuously and to affect certain others which stand to them in a peculiar relation of
affectibility In this spreading they lose intensity and especially the power of affecting others but gain generality
and become welded with other ideas
67
1891)78
A lei da mente apenas torna um certo sentimento mais provaacutevel (likely) Ou seja a lei da
mente inclina o curso futuro dos eventos a uma certa direccedilatildeo sem contudo determinaacute-lo
A partir dessas consideraccedilotildees Peirce conclui que o uacutenico tipo de causalidade primaacuteria deve
ser a causalidade final e que esta deve ser considerada uma lei de caraacuteter absoluto Assim sob a
atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um contiacutenuo crescimento da uniformidade
a partir das formas diferenciadas Mas as mudanccedilas divergentes da lei estatildeo agindo
perpetuamente a fim de aumentar a variedade do mundo e satildeo controladas por um tipo de seleccedilatildeo
natural ou de qualquer outro tipo (pois Peirce julga que a seleccedilatildeo natural natildeo seja por si soacute
suficiente) de tal forma que ldquo() o resultado geral deve ser descrito como bdquoheterogeneidade
organizada‟ ou melhor variedade racionalizadardquo (CP 6 sect 23 1891)79
O relato da hipoacutetese cosmoloacutegica elaborada por Peirce ressaltou a importacircncia fundamental
da noccedilatildeo de continuidade no interior de sua filosofia A compreensatildeo do sentido que a noccedilatildeo
adquire em sua obra tanto quanto da evoluccedilatildeo que sofreu conforme Peirce atingia sua
maturidade seratildeo de grande importacircncia para a compreensatildeo do modo de atuaccedilatildeo da causalidade
final Com o objetivo de compreender este tipo de causalidade faremos no proacuteximo capiacutetulo um
estudo mais aprofundado do sinequismo a teoria da continuidade elaborada pelo filoacutesofo
78 () exact conformity would be in downright conflict with the law since it would instantly crystallize thought and
prevent all further formation of habit 79
() the general result may be described as organized heterogeneity or better rationalized variety
68
CAPIacuteTULO 02
O SINEQUISMO
Infinity is nothing but a peculiar twist given to generality (CP 8 sect 268 1900)
69
Em funccedilatildeo da importacircncia adquirida pela noccedilatildeo de continuidade80
uma investigaccedilatildeo sobre
a teoria do sinequismo seraacute desenvolvida aqui definida por Peirce como ldquoaquela tendecircncia do
pensamento filosoacutefico que insiste sobre a ideia de continuidade como sendo de grande
importacircncia em filosofia e em particular sobre a necessidade de hipoacuteteses que envolvam
verdadeira continuidaderdquo (CP 1 sect 169 1902)81
Em carta a William James de 1900 Peirce
afirma que o sinequismo eacute ldquoa pedra angular do arcordquo (CP 8 sect 257 1900)82
isto eacute o ponto de
apoio que daacute sustentaccedilatildeo a toda sua filosofia
Diferentemente dos matemaacuteticos da eacutepoca que trataram a questatildeo da continuidade o
interesse de Peirce pelo toacutepico foi motivado principalmente por uma preocupaccedilatildeo loacutegica e
filosoacutefica e que natildeo decorre somente das questotildees suscitadas pela anaacutelise matemaacutetica Como
afirma em 1897
() uma abordagem loacutegica perfeitamente satisfatoacuteria da concepccedilatildeo de
continuidade eacute exigida O que envolve a definiccedilatildeo de um certo tipo de infinito
e a fim de tornaacute-lo um pouco mais claro eacute necessaacuterio comeccedilar por desenvolver
a doutrina loacutegica das grandezas infinitas Essa doutrina ainda permanece apoacutes
os trabalhos de Cantor Dedekind e outros em uma situaccedilatildeo incipiente Por
exemplo questotildees como as seguintes permanecem sem respostas eacute ou natildeo eacute
logicamente possiacutevel para duas coleccedilotildees serem de tal grandeza que nenhuma
delas possa ser colocada em correspondecircncia biuniacutevoca com a parte ou com o
todo da outra Resolver esse problema demanda natildeo uma mera aplicaccedilatildeo da
loacutegica mas um maior desenvolvimento da concepccedilatildeo de possibilidade loacutegica
(CP 3 sect 526 1897)83
80 Como jaacute foi indicado no primeiro capiacutetulo desta tese
81 [Synechism is] that tendency of philosophical thought which insists upon the idea of continuity as of prime
importance in philosophy and in particular upon the necessity of hypotheses involving true continuity 82
() synechism which is the keystone of the arch 83
() a perfectly satisfactory logical account of the conception of continuity is required This involves the definition
of a certain kind of infinity and in order to make that quite clear it is requisite to begin by developing the logical
doctrine of infinite multitude This doctrine still remains after the works of Cantor Dedekind and others in an
inchoate condition For example such a question remains unanswered as the following Is it or is it not logically
possible for two collections to be so multitudinous that neither can be put into a one-to-one correspondence with a
part or the whole of the other To resolve this problem demands not a mere application of logic but a further
development of the conception of logical possibility
70
De fato podemos identificar ao menos trecircs aspectos do pensamento de Peirce que soacute
poderiam ser desenvolvidos com consistecircncia a partir uma definiccedilatildeo mais precisa da noccedilatildeo de
continuum o loacutegico o semioacutetico e o cosmoloacutegico Nossas consideraccedilotildees aqui seratildeo
desenvolvidas a partir de uma investigaccedilatildeo do papel que o conceito de continuum desempenha na
construccedilatildeo da filosofia de Peirce em particular para a compreensatildeo do estatuto e do papel das
explicaccedilotildees teleoloacutegicas no seu sistema Antes contudo de passarmos a essa discussatildeo cabem
algumas palavras a respeito da motivaccedilatildeo de Peirce para o desenvolvimento do conceito de
continuum
Neste capiacutetulo procuraremos apurar as propriedades atribuiacutedas ao continuum atraveacutes da
abordagem de alguns aspectos da definiccedilatildeo matemaacutetica proposta por Peirce ainda que
apresentada de maneira descritiva e seletiva Do ponto de vista cosmoloacutegico pode-se afirmar que
a estrutura mais profunda e necessaacuteria do real eacute a sua continuidade Como o objetivo desta
investigaccedilatildeo eacute colher elementos que permitam entender o lugar e a necessidade da introduccedilatildeo de
explicaccedilotildees teleoloacutegicas para a compreensatildeo do crescimento do universo e de seus processos isto
eacute para entender a forma de desdobramento do continuum real tornado manifesto por meio da
evoluccedilatildeo do universo a exposiccedilatildeo desses toacutepicos natildeo pretende ser completa ou exaustiva sua
funccedilatildeo seraacute selecionar aspectos das teorias que permitam em primeiro lugar compreender a
necessidade da explicaccedilatildeo teleoloacutegica e em segundo lugar tornar plausiacutevel tanto quanto
possiacutevel a ideia de que o projeto filosoacutefico peirceano possui grande coerecircncia se tomarmos suas
teorias em conjunto apresentando aspectos da maneira pela qual Peirce as pensava como estando
relacionadas e como se esclarecem mutuamente visto serem expressatildeo do mesmo elemento de
continuidade
71
1 O CONTINUUM E A EPISTEMOLOGIA
Eacute preciso lembrar que ao lado da preocupaccedilatildeo matemaacutetica com a definiccedilatildeo de continuum
haacute nos trabalhos de Peirce uma profunda reflexatildeo sobre a sua ontologia surgida a partir de suas
pretensotildees mais gerais de realizaccedilatildeo de um projeto de fundamentaccedilatildeo de seu meacutetodo para
obtenccedilatildeo do conhecimento Essa primeira abordagem da continuidade a partir de uma
perspectiva descritiva adequada agrave cosmologia ou metafiacutesica dos processos evolutivos entretanto
natildeo se opotildee agrave abordagem matemaacutetica que em realidade a confirma Satildeo as conclusotildees desse
modo hipoteacutetico de investigaccedilatildeo que orientaram em grande parte sua abordagem matemaacutetica
A elaboraccedilatildeo da hipoacutetese do continuum eacute tomada como uma consequecircncia da primeira e
mais importante maacutexima loacutegica assumida por Peirce a de que natildeo se pode ldquobloquear o caminho
da investigaccedilatildeordquo (CP 1 sect 135 1899)
84 Ela eacute vista como um meio de ldquo() evitar a hipoacutetese de que
isso ou aquilo seja inexplicaacutevelrdquo (CP 6 sect 171 1902)85
Pois descontinuidades como pontos ou
instantes marcados nos quais o continuum de um geral eacute quebrado satildeo em si mesmos natildeo
explicaacuteveis afirma Peirce Soacute fazem sentido quando referidas a um contexto maior que eacute
fornecido pelo continuum Desse modo a principal justificativa para se insistir na hipoacutetese do
continuum eacute a de que ela fornece uma explicaccedilatildeo para os fenocircmenos
Os fenocircmenos se impotildeem ao homem e eacute preciso elaborar hipoacuteteses testaacuteveis para explicaacute-
los ou ao menos hipoacuteteses que levem tatildeo longe quanto possiacutevel o horizonte da inteligibilidade
ou seja que natildeo bloqueie o caminho da investigaccedilatildeo A afirmaccedilatildeo de que a postulaccedilatildeo do
incognosciacutevel como elemento constituinte da natureza eacute uma estrateacutegia que deve ser banida dos
procedimentos cientiacuteficos estaacute em consonacircncia com a filosofia peirceana
A simples observaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais destituiacuteda de qualquer prejulgamento
ensina-nos pelo menos duas coisas em primeiro lugar que haacute uma incriacutevel variabilidade no
84 Do not block the way of inquiry
85 () to avoid the hypothesis that this or that is inexplicable
72
modo como a natureza se manifesta e em segundo lugar que os processos naturais demonstram
certas regularidades Em face dessas duas caracteriacutesticas Peirce elabora duas teorias que tentam
responder como a realidade deveria ser para que nos aparecesse dessa maneira especiacutefica A
primeira referente agrave presenccedila da variabilidade na natureza daacute origem ao tiquismo86
hipoacutetese
explicativa que postula o acaso absoluto como ingrediente fundamental da realidade e serve de
matriz ontoloacutegica indeterminista A segunda concernente agraves regularidades daacute origem ao
sinequismo cuja principal categoria eacute a de lei e procura explicar de que maneira a partir do
acaso absoluto original surgiu o mundo que conhecemos Desse modo Peirce pretende ter
elaborado por meio da concorrecircncia desses dois fatores uma hipoacutetese explicativa que pretende
dar conta ateacute mesmo do surgimento das leis naturais e de todos os processos naturais deixando
de fora apenas o acaso que por sua proacutepria natureza eacute aquilo que natildeo necessita de explicaccedilatildeo
As alusotildees que Peirce faz agrave importacircncia de uma teoria da continuidade frequentemente
estatildeo relacionadas com o seu realismo em particular com a compreensatildeo do que significa a ideia
de generalidade Ele diz que a questatildeo de se os gerais satildeo reais eacute a mesma de se existem continua
verdadeiros No texto intitulado ldquoConsciecircnciardquo afirma que ldquocontinuidade regularidade e
significacircncia satildeo essencialmente a mesma ideia com diferenccedilas meramente subsidiaacuteriasrdquo (CP 7
sect 535)87
Para o realista como indica Hookway (1985) quando classificamos coisas sob o mesmo
termo geral estamos afirmando que existe algum princiacutepio geral ou natureza que elas
compartilham Em 1878 Peirce discute esse ponto a partir de um exemplo que envolve um
problema de classificaccedilatildeo rotineiramente enfrentado por um naturalista Ao coletar um bom
nuacutemero de espeacutecimes que possuem algumas similaridades ele pode colocar-se a questatildeo de como
classificaacute-los Em particular no referido caso o naturalista nota que as asas dos espeacutecimes
recolhidos embora natildeo idecircnticas podem servir como criteacuterio para dividi-los em dois tipos um
que reuacutene as asas que satildeo parecidas com um S e outro que reuacutene as que se parecem com um C A
questatildeo que ele pode colocar-se eacute de se haacute aiacute apenas uma duas ou mais espeacutecies Para Peirce a
soluccedilatildeo para o problema pode ser obtida a partir da verificaccedilatildeo de se haacute formas intermediaacuterias
86 Jaacute discutido no primeiro capiacutetulo deste trabalho
87 () continuity regularity and significance are essentially the same idea with merely subsidiary differences
73
entre uma e outra Caso haja elas devem ser consideradas como pertencentes a uma mesma
espeacutecie Caso isso natildeo se verifique eacute possiacutevel classificaacute-las em duas espeacutecies distintas A sugestatildeo
envolvida esclarece Hookway eacute a de que ldquo() se os espeacutecimes formam um tipo de classe
natural eles variam continuamente segundo alguma dimensatildeordquo (HOOKWAY 1985 p 175) A
questatildeo eacute se esta condiccedilatildeo de contiacutenua variaccedilatildeo pode ser encontrada em todo caso investigados
Outro aspecto do pensamento peirceano relacionado com a teoria do continuum aparece em
sua discussatildeo sobre os processos causais A atribuiccedilatildeo da relaccedilatildeo de causalidade entre dois
eventos pode ser entendida se encontramos uma ligaccedilatildeo contiacutenua por meio da qual o primeiro eacute
transmitido ao segundo caso contraacuterio haveria duacutevidas quanto agrave possibilidade de tal atribuiccedilatildeo
Tanto no primeiro quanto no segundo exemplo percebemos que por meio da mediaccedilatildeo da
continuidade os casos analisados sobre o pano de fundo de uma estrutura mais ampla satildeo
tornados compreensiacuteveis para noacutes Segundo Peirce os nominalistas negariam que haja alguma
explicaccedilatildeo sobre o motivo dos objetos serem classificados como satildeo e colocariam esses
agrupamentos naturais na categoria de um fato bruto cuja razatildeo natildeo poderiacuteamos jamais alcanccedilar
Essa posiccedilatildeo entretanto eacute a expressatildeo do mais grave pecado loacutegico no entender de Peirce ela
bloqueia o caminho da investigaccedilatildeo
A relaccedilatildeo entre continuum e generalidade88
eacute mais claramente apresentada por Hookway na
seguinte passagem
() nenhuma estrutura relacional captura a natureza do continuum e natildeo
podemos quantificar todos os elementos do continuum As estruturas relacionais
a respeito das quais pensamos satildeo em certo sentido determinadas pela natureza
do continuum a respeito do qual pensamos mas elas natildeo exaurem seu caraacuteter
Da mesma maneira que pensamos em uma lei como algo que determina um
nuacutemero de diferentes interaccedilotildees pensamos o continuum como determinando
um nuacutemero infinito embora relacionado de estruturas relacionais Podemos
pensar o continuum como um geral entatildeo no sentido em que determina
conjuntos infinitos de estruturas relacionais como sua ldquoextensatildeordquo Se pensamos
um processo como continuum entatildeo acreditamos que sempre seraacute possiacutevel
88 Eacute a generalidade pode-se reiterar que torna o mundo compreensiacutevel para noacutes
74
para noacutes produzir uma caracterizaccedilatildeo mais complexa de estruturas relacionais
que ldquose conformardquo ou satildeo ldquodeterminadas porrdquo aquele processo contiacutenuo
(HOOKWAY 1985 p 178)
11 OS INFINITESIMAIS E O CONTINUUM
Por volta da uacuteltima deacutecada do seacuteculo XIX Peirce estava trabalhando em sua concepccedilatildeo de
continuidade principalmente com referecircncia a sua constituiccedilatildeo isto eacute realizava uma investigaccedilatildeo
sobre quais poderiam ou deveriam ser os constituintes dos continua Peirce foi um dos primeiros
pensadores a argumentar em favor da existecircncia real de conjuntos infinitos Seu criteacuterio para
diferenciar os conjuntos finitos dos infinitos era o assim chamado ldquosilogismo da quantidade
transpostardquo introduzido por De Morgan e que eacute vaacutelido unicamente quando aplicado a conjuntos
finitos e invaacutelido quando aplicado a conjuntos infinitos Peirce oferece vaacuterias versotildees desse
silogismo uma delas eacute a seguinte
Todo texano mata um texano
Nenhum texano eacute morto por mais que um texano
Desse modo todo texano eacute morto por um texano
A partir da colocaccedilatildeo desse silogismo uma diferenccedila entre a abordagem de Peirce e as
demais abordagens realizadas na segunda metade do seacuteculo XIX pode ser evidenciada Mesmo
que inicialmente tenha investigado a possibilidade de compreender o continuum como uma
coleccedilatildeo ou conjunto aos poucos supera essa concepccedilatildeo Peirce afirma ldquoPois a uacutenica coisa que
excede a variedade de todos os conjuntos eacute um continuumrdquo (CP 4 sect 652 1909)89
Os seus
constituintes natildeo podem ser indiviacuteduos desse modo deve possuir alguma caracteriacutestica de
potencialidade Tal potencialidade como afirma Rosa
89 For the only thing that exceeds the manifoldness of all collections is a continuum
75
Eacute a possibilidade de inserir uma qualquer multitude a partir de uma multitude
dada Eacute um geral pois haacute sempre a possibilidade de determinar um nuacutemero de
indiviacuteduos maior que natildeo importa que nuacutemero de indiviacuteduos dados Um
possiacutevel eacute essa possibilidade inesgotaacutevel e indefinida de determinaccedilatildeo do
existente a potencialidade de ver natildeo eacute esgotada por aquele que exerce esse
poder (ROSA 2003 p 223)
Ora sejam quais forem os constituintes do continuum eles devem possuir a qualidade de
ldquopossibilidade de inesgotaacutevel determinaccedilatildeordquo Peirce eacute mais claro sobre o que entende por isso na
seguinte passagem
Aquilo que eacute possiacutevel eacute nessa medida geral e enquanto geral deixa de ser
individual Assim recordando que a palavra ldquopotencialrdquo significa
indeterminado mas passiacutevel de determinaccedilatildeo em cada caso especiacutefico pode
haver um agregado de casos potencial de todas as possibilidades que satildeo
consistentes com certas condiccedilotildees gerais e isto pode ser tal que dado um
qualquer conjunto de indiviacuteduos distintos um conjunto de maior multitude que
o conjunto dado pode ser atualizado a partir desse agregado potencial Portanto
o agregado potencial eacute estritamente maior em multitude do que qualquer
conjunto de indiviacuteduos Mas visto ser apenas um agregado potencial ele natildeo eacute
composto por qualquer nuacutemero de indiviacuteduos Ele apenas conteacutem condiccedilotildees
gerais que permitem a determinaccedilatildeo de indiviacuteduos (NEM 3 p 106 1898 grifo
nosso)90
Ao tratar da reta como modelo do continuum Peirce indica que o arqueacutetipo dessa ideia eacute a
curva fechada A cisatildeo da linha natildeo resulta em um mas em dois pontos distintos que estabelecem
90 That which is possible is in so far general and as general it ceases to be individual Hence remembering that the
word potential means indeterminate yet capable of determination in any special case there may be a potential
aggregate of all the possibilities that are consistent with certain general conditions and this may be such that given
any collection of distinct individuals whatsoever out of that potential aggregate there may be actualized a more
multitudinous collection than the given collection Thus the potential aggregate is with the strictest exactitude
greater in multitude than any possible multitude of individuals But being a potential aggregate only it does not
contain any individuals at all It only contains general conditions which permit the determination of individuals
76
uma fronteira no contiacutenuo original Como indica Peirce natildeo haacute um ponto na reta mas uma reta
cuja separaccedilatildeo realiza dois pontos (cf NEM 2 p 359) O fato de que por meio do corte o ponto
ideal daacute origem a dois pontos reais indica que os pontos da reta natildeo possuem identidade Esses
estados de fronteira satildeo denominados de vagos na nomenclatura peirceana Como indica Rosa
ldquoO vago ou indefinido eacute aquilo que escapa ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo () o predicado
manteacutem portanto seu valor de verdade mesmo se o negarmosrdquo (ROSA 2003 p 235) O vago
na definiccedilatildeo de Peirce eacute um signo que natildeo se exprime a si mesmo de forma suficiente e natildeo
permite uma interpretaccedilatildeo determinada indubitaacutevel (cf CP 5 sect 505 1905) de modo que a
existecircncia ou atualidade jamais eacute atingida
Os infinitesimais91
surgiram como uma alternativa promissora agrave resposta pelos constituintes
do continuum Em 1892 Peirce afirma que os constituintes do continuum satildeo os infinitesimais92
e
eacute muito cuidadoso ao tratar do toacutepico considerando-os sempre como uma hipoacutetese que se natildeo
for inconsistente seraacute muito uacutetil para a explicaccedilatildeo da realidade Mas podemos nos indagar sobre
qual o significado desta noccedilatildeo para Peirce Embora seja um toacutepico sobre o qual o autor natildeo tenha
sido muito claro em suas declaraccedilotildees podemos inferir a partir da relaccedilatildeo que a teoria do
continuum possui com as demais teorias que Peirce vinha desenvolvendo na mesma eacutepoca que os
infinitesimais podem ser interpretados como would be Ao explicar o que satildeo tais constituintes do
real Peirce toma o exemplo do dado e afirma
Dizer que um dado tem um ldquowould berdquo eacute dizer que ele tem uma propriedade
91 Um infinitesimal como aponta Putnam (1995) eacute o intervalo de uma linha cujo comprimento natildeo eacute zero mas eacute
menor do que qualquer real positivo Os infinitesimais acrescenta foram gradualmente esquecidos durante o seacuteculo
XIX voltaram agraves consideraccedilotildees matemaacuteticas apenas na deacutecada de sessenta do seacuteculo passado como um resultado dos
trabalhos de Abraham Robinson (1966) e outros e do desenvolvimento da chamada anaacutelise Non-Standard Em
funccedilatildeo das caracteriacutesticas presentes na anaacutelise que Peirce realiza da noccedilatildeo de infinitesimal algumas vezes eacute
considerado como um precursor desses trabalhos Apurar em que medida eacute correta essa atribuiccedilatildeo eacute contudo um
trabalho que ainda estaacute por ser feito e que demandaria um conhecimento matemaacutetico bastante mais aprofundado de
nossa parte 92
O autor afirma ldquoThere is one property of a continuous expanse that I must mention though I cannot venture to
trouble you with the demonstration of it It is that in a continuous expanse say a continuous line there are
continuous lines infinitely short In fact the whole line is made up of such infinitesimal parts (CP 1 sect 166 1897)
77
bastante anaacuteloga a qualquer haacutebito que um homem possa ter Unicamente que o
ldquowould berdquo do dado eacute presumivelmente muito mais simples e mais definido do
que o haacutebito de um homem como o dado tem composiccedilatildeo homogecircnea e
formato cuacutebico eacute mais simples do que a natureza do sistema nervoso e a alma
de um homem e da mesma maneira como seria necessaacuterio a fim de definir o
haacutebito de um homem descrever como ele o conduziria a se comportar e em que
tipo de ocasiatildeo ndash natildeo obstante esta afirmaccedilatildeo implicaria natildeo importa como
que o haacutebito consiste naquela accedilatildeo ndash entatildeo para definir o ldquowould berdquo do dado eacute
necessaacuterio dizer como ele levaria o dado a se comportar na ocasiatildeo em que
afloraria todas as consequecircncias do ldquowould berdquo e essa afirmaccedilatildeo natildeo implicaraacute
de si mesma que o ldquowould berdquo do dado consiste em tal comportamento (CP 2 sect
664 1910)93
Tentaremos agora tomando como exemplo a atividade mental explicar alguns elementos
da concepccedilatildeo de continuidade peirceana A atividade mental pode ser tomada como um exemplo
que cumpre uma tripla funccedilatildeo faz-nos pensar a definiccedilatildeo de contiacutenuo por meio da anaacutelise da
passagem do tempo mostra como os infinitesimais estatildeo presentes nesse processo e ao discutir
como se daacute a atividade mental mostra tambeacutem a estrutura fundamental do cosmo pois para o
Peirce a natureza do cosmo eacute mental esta tambeacutem uma decorrecircncia do princiacutepio de continuidade
como uma hipoacutetese explicativa dos fenocircmenos
A questatildeo levantada por Peirce e que serviraacute de guia para essa discussatildeo eacute a de ldquocomo uma
ideia passada pode estar presenterdquo (CP 6 sect 109 1892)94
A resposta por ele proposta eacute de que
devemos estar diretamente conscientes das ideias do passado imediato Caso houvesse uma
lacuna entre nosso conhecimento presente e as ideias do passado todo o nosso conhecimento do
passado natildeo seria mais do que uma ilusatildeo Ou seja Peirce afirma que a consciecircncia natildeo reteacutem
93 To say that a die has a would-be is to say that it has a property quite analogous to any habit that a man might
have Only the would-be of the die is presumably as much simpler and more definite than the mans habit as the
dies homogeneous composition and cubical shape is simpler than the nature of the mans nervous system and soul
and just as it would be necessary in order to define a mans habit to describe how it would lead him to behave and
upon what sort of occasion--albeit this statement would by no means imply that the habit consists in that action--so to
define the dies would-be it is necessary to say how it would lead the die to behave on an occasion that would
bring out the full consequence of the would-be and this statement will not of itself imply that the would-be of
the die consists in such behaviour 94
How can a past idea be present
78
uma ideia em um intervalo finito de tempo Assim como consequecircncia devemos estar
conscientes do passado ldquoatraveacutes de um intervalo de tempo infinitesimalrdquo (CP 6 sect 110 1892)95
Como aponta Hausman ldquosomos levados a um concentrado exame da experiecircncia de ser
consciente atraveacutes de um fluxo de tempo que deve ser compreendido em termos de componentes
infinitesimaisrdquo (HAUSMAN 1993 p 179)
Como diz Peirce ldquosomos conscientes unicamente do tempo presente o qual se daacute em um
instante se eacute que existe tal coisa chamada instante Mas no presente estamos conscientes do
fluxo do tempo natildeo haacute fluxo em um instante Desse modo o presente natildeo eacute um instanterdquo (NEM
3 p 126)96
2 OS QUATRO ESTAacuteGIOS DO DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE CONTINUUM
A ideia de continuum eacute o fio condutor e o elemento comum de qualquer interpretaccedilatildeo que
busque relacionar os diferentes aspectos da produccedilatildeo peirceana constituiacuteda por teorias que uma
parte dos criacuteticos97
insiste em afirmar natildeo podem ser compatibilizadas a fim de produzir um todo
coerente objetivo de Peirce que considerava como arquitetocircnica a construccedilatildeo do seu sistema
Teorias que segundo tais perspectivas natildeo possuem aquelas caracteriacutesticas que tornam a obra de
Peirce atual e a aproxima do fazer filosoacutefico contemporacircneo Nota-se uma tendecircncia a colocar em
oposiccedilatildeo as teorias que tratam da metodologia da linguagem bem como da loacutegica com aquelas
que satildeo o resultado de sua investigaccedilatildeo metafiacutesica
Peirce reconhece o deacutebito que possui com Kant sobre este aspecto ao discorrer sobre a
necessidade de se construir arquitetonicamente os sistemas de filosofia ele afirma
95 () through an infinitesimal interval of time
96 We are conscious only of the present time which is an instant if there be such thing as an instant But in the
present we are conscious of the flow of the time There is no flow in an instant Hence the present is not an instant 97
Por exemplo GALLIE 1952
79
Que os sistemas devem ser construiacutedos arquitetonicamente foi apregoado
desde Kant mas eu natildeo acho que a implicaccedilatildeo completa da maacutexima tenha
por qualquer modo sido apreendida O que eu recomendo eacute que cada
pessoa que queira formar uma opiniatildeo sobre os problemas fundamentais
deve antes de tudo fazer um levantamento completo do conhecimento
humano deve tomar nota de todas as ideacuteias valiosas em cada ramo da
ciecircncia deve observar exatamente com respeito a que cada uma tem sido
bem sucedida e onde tem falhado a fim de que agrave luz da familiaridade
aprofundada desse modo obtida dos materiais disponiacuteveis para uma teoria
filosoacutefica e da natureza e da forccedila de cada um ele pode avanccedilar para o
estudo do que o problema da filosofia consiste e da maneira correta de
resolvecirc-lo (CP 6 sect 9 1891)98
A teoria da continuidade peirceana passou por vaacuterias fases das quais tentaremos oferecer
uma descriccedilatildeo neste capiacutetulo o momento de sua elaboraccedilatildeo mais feacutertil e de resultado mais
duradouro pode ser localizado na deacutecada de 90 do seacuteculo XIX Esse resultado se encontra
sintetizado na ldquoLei da menterdquo de 1892 e nas ldquoConferecircncias de Cambridgerdquo de 1898 e ocorre
ao mesmo tempo em que desenvolvia a loacutegica dos grafos existenciais e a hipoacutetese cosmoloacutegica
Natildeo bastasse a coincidecircncia quanto ao momento da origem dessas trecircs teorias eacute o proacuteprio Peirce
que declara haver uma unidade de base entre os toacutepicos ldquoOs meus bdquoGrafos existenciais‟ tecircm uma
semelhanccedila notaacutevel com todos os meus pensamentos acerca de qualquer toacutepico da filosofiardquo (MS
620 p 09)
A relaccedilatildeo mais imediata que se pode estabelecer entre elas eacute a de que constituem diversos
aspectos da ideia de continuum a loacutegica dos grafos existenciais estaacute baseada no continuum
98 That systems ought to be constructed architectonically has been preached since Kant but I do not think the full
import of the maxim has by any means been apprehended What I would recommend is that every person who
wishes to form an opinion concerning fundamental problems should first of all make a complete survey of human
knowledge should take note of all the valuable ideas in each branch of science should observe in just what respect
each has been successful and where it has failed in order that in the light of the thorough acquaintance so attained of
the available materials for a philosophical theory and of the nature and strength of each he may proceed to the study
of what the problem of philosophy consists in and of the proper way of solving it (CP 6 sect 9 1891)
80
topoloacutegico como veremos brevemente abaixo A teoria do continuum por sua vez eacute a proacutepria
expressatildeo matemaacutetica do referido conceito e a hipoacutetese cosmoloacutegica consiste na explicitaccedilatildeo dos
princiacutepios de desenvolvimento do continuum real
A variedade de definiccedilotildees que Peirce oferece da ideia de continuum deve-se segundo nos
parece ao fato de que grande parte seus escritos jamais foi publicada Os textos disponiacuteveis em
sua maioria satildeo constituiacutedos por notas que tomava para si proacuteprio ou projetos de livros que
nunca chegaram a ser concluiacutedos Assim o que temos ao ler seus textos eacute um retrato do proacuteprio
desenvolvimento quase cotidiano de suas ideias99
Os textos nos quais Peirce trata da questatildeo
refletem sucessivas tentativas de tornar a ideia de continuum clara coerente e adequada agraves suas
motivaccedilotildees filosoacuteficas As voltas avanccedilos e retomadas fazem parte dessa maneira do retrato do
desenvolvimento do pensamento do filoacutesofo que de fato nunca foi concluiacutedo as modificaccedilotildees
de suas ideias sobre o tema se prolongaram ateacute pouco tempo antes de sua morte em 1914
Segundo Potter e Shields (1977) de 1880 ateacute 1911 periacuteodo no qual Peirce tentou oferecer
uma definiccedilatildeo matematicamente precisa do conceito de continuidade eacute possiacutevel reconhecer
quatro estaacutegios no seu pensamento quanto ao tema100
preacute-cantoriano (ateacute 1884) cantoriano
(1884 ndash 1894) kantiano (1895 ndash 1908) e poacutes-cantoriano (1908 ndash 1911)
99 Moore se refere a essa condiccedilatildeo afirmando que como a maioria das principais ideias de Peirce a ideia de
continuum pode ser vista como ldquowork in progressrdquo (cf MOORE 2007 p 425) 100
Moore (2007) por outro lado classifica em trecircs as fases do desenvolvimento de sua noccedilatildeo de continuum
denominados de (1) Fase germinal (1868 - 1892) na qual as motivaccedilotildees fundamentais para a teoria satildeo identificadas
e elaboradas (2) Fase semi-cantoriana (1892 - 1895) na qual a teoria de conjuntos de Cantor imperfeitamente
compreendida eacute usada como uma estrutura organizadora e (3) Fase peirceana (1895-1914) na qual a teoria de
coleccedilotildees elaborada por Peirce assume o papel organizador
81
21 O PERIacuteODO PREacute-CANTORIANO
O primeiro periacuteodo eacute marcado pela consciecircncia de que havia uma confusatildeo incomum entre
as noccedilotildees de continuidade e divisibilidade infinita mas natildeo ainda pela tentativa de solucionar os
problemas implicados Peirce afirma que ldquo() um continuum eacute precisamente isso toda parte dele
tem partes no mesmo sentidordquo (CP 5 sect 335 1868)101
essa caracteriacutestica ficou conhecida na
literatura sobre o tema como reflexividade Essa confusatildeo persistiu ateacute que 1884 quando Peirce
leu pela primeira vez o artigo ldquoGrundlagen einer allgemeinen Mannigfaltigkeitslehrerdquo (1883) de
Cantor
Entre as motivaccedilotildees para a elaboraccedilatildeo de uma teoria do continuum encontram-se a
necessidade de uma anaacutelise epistemologicamente adequada do tempo bem como a elaboraccedilatildeo de
uma resposta agrave criacutetica feita ao seu texto intitulado ldquoAlgumas consequecircncias de quatro
incapacidadesrdquo de 1868 no qual Peirce desenvolve uma nova concepccedilatildeo de mente que em
oposiccedilatildeo agrave concepccedilatildeo de mente cartesiana caracteriza-se por natildeo possuir qualquer faculdade de
apreensatildeo imediata dos objetos do conhecimento nesse texto ele afirma que toda cogniccedilatildeo eacute
determinada por uma cogniccedilatildeo preacutevia (cf CP 5 sect 284 1868) ou seja que as premissas de todo
raciociacutenio satildeo tambeacutem conclusotildees Sua resposta inicial eacute dada nos termos de uma analogia da
cogniccedilatildeo com um triacircngulo Peirce pede que imaginemos um triacircngulo com o veacutertice invertido e
que aos poucos eacute mergulhado na aacutegua Diz ele
Considere qualquer linha horizontal como representando uma cogniccedilatildeo e
considere que o comprimento da linha serve para medir (por assim dizer) a
vivacidade da consciecircncia daquela cogniccedilatildeo Um ponto natildeo tendo
comprimento representaraacute por este princiacutepio um objeto fora da consciecircncia
Considere que uma linha horizontal abaixo de outra representa uma cogniccedilatildeo
que determina a cogniccedilatildeo representada por aquela outra e que tenha o mesmo
101 () a continuum is precisely that every part of which has parts in the same sense
82
objeto que a uacuteltima Considere a distacircncia finita entre as duas linhas como
representando que elas sejam duas cogniccedilotildees diferentes (CP 5 sect 263 1868)102
Dada esta situaccedilatildeo Peirce potildee-se a investigar se haacute a necessidade de se admitir se ldquodeve
existir um primeirordquo Agrave medida que o triacircngulo mergulha na aacutegua linhas sucessivas formam-se
em sua superfiacutecie que resultam do contato com a superfiacutecie da aacutegua Dizer que haacute uma primeira
seria o mesmo que afirmar que haveria uma linha formada no triacircngulo abaixo da qual nenhuma
outra poderia ser traccedilada mas segundo Peirce baseado na ideia de continuum como infinita
divisibilidade podem ser traccediladas abaixo de qualquer linha tantas outras o quanto se desejar Se
tomarmos essas linhas como cogniccedilotildees veremos que natildeo haacute necessidade de uma primeira visto
que afirmar tal necessidade seria o mesmo que abandonar a geometria
Em um momento posterior no texto ldquoTempo e pensamentordquo provavelmente de 1873
Peirce argumenta novamente em favor da ideia de que o continuum natildeo possui partes uacuteltimas
atraveacutes da investigaccedilatildeo das condiccedilotildees necessaacuterias para a existecircncia de uma mente loacutegica O
filoacutesofo aponta que trecircs coisas devem ser encontradas em toda mente loacutegica ldquoPrimeiro ideias
segundo determinaccedilatildeo de ideias por ideias preacutevias terceiro determinaccedilatildeo de ideias por
processos preacuteviosrdquo (CP 7 sect 348 1873)103
Em um fragmento de 1873 Peirce afirma com mais
detalhes ldquoem toda mente loacutegica deve haver 1ordm ideias 2ordm regras gerais de acordo com as quais
uma ideia determina uma outra ou haacutebitos da mente que conectam ideias 3ordm processos por meio
dos quais tais conexotildees habituais satildeo estabelecidasrdquo (CP 7 sect 358 1873)104
102 Now let any horizontal line represent a cognition and let the length of the line serve to measure (so to speak) the
liveliness of consciousness in that cognition A point having no length will on this principle represent an object
quite out of consciousness Let one horizontal line below another represent a cognition which determines the
cognition represented by that other and which has the same object as the latter Let the finite distance between two
such lines represent that they are two different cognitions 103
First ideas second determinations of ideas by previous ideas third determinations of ideas by previous
processes 104
In every logical mind there must be 1st ideas 2nd general rules according to which one idea determines another
or habits of mind which connect ideas and 3rd processes whereby such habitual connections are established
83
Para que tais condiccedilotildees produzam o pensamento loacutegico as ideias natildeo se podem apresentar
agrave mente como entidades distintas Se tal ocorresse uma vez que a mente soacute se fixa no conteuacutedo
da ideia presente no momento que passa (passing moment) natildeo haveria como conceber a
implicaccedilatildeo entre ideias105
Aqui indica Moore (2007) Peirce se aproxima mas ainda natildeo
formula com clareza uma das propriedades que definem o continuum segundo sua concepccedilatildeo
mais elaborada a de que seus componentes natildeo se distinguem em entidades singulares mas se
apresentam como que fundidos uns aos outros enquanto natildeo se realizam como seres atuais Essa
propriedade receberaacute o nome de confusatildeo (confusion) Ressalta-se tambeacutem a oposiccedilatildeo entre o
continuum reflexivo e as entidades discretas denominadas por Peirce de quanta discretas que
possuem partes uacuteltimas cuja funccedilatildeo eacute a de tornar mais clara a reflexividade do continuum Ao
estudar a metafiacutesica das coleccedilotildees Peirce vislumbra uma abordagem alternativa para o problema
mas o seu ainda impreciso conhecimento sobre coleccedilotildees natildeo o deixa seguir adiante
22 PERIacuteODO CANTORIANO
Por volta de 1884 Peirce jaacute tinha consciecircncia da centralidade que a noccedilatildeo de continuidade
poderia desempenhar na elaboraccedilatildeo de sua filosofia mas ainda natildeo tinha obtido sucesso em
propor uma definiccedilatildeo que lhe fosse satisfatoacuteria Moore afirma que por essa eacutepoca
Ele atingira a ideia de reflexividade kantiana mas natildeo chegara ainda a uma
anaacutelise dos pontos e outros discreta que fosse claramente compatiacutevel com
aquela ideia Reconhecera a utilidade para uma filosofia epistemologicamente
adequada do tempo de alguma coisa como confusatildeo mas essas caracteriacutesticas
105 Percebemos nesta consideraccedilatildeo uma clara motivaccedilatildeo filosoacutefica para o desenvolvimento de uma concepccedilatildeo precisa
de continuidade e mais que isso vemos como questotildees relacionadas agrave epistemologia estatildeo determinando os
caminhos que Peirce toma para pensar as propriedades que tal concepccedilatildeo deve possuir afim de que o conhecimento
seja possiacutevel As condiccedilotildees enunciadas na nota acima abrem a possibilidade de pensar a causalidade final atuante no
processo de implicaccedilatildeo de ideias o que seraacute feita no uacuteltimo capiacutetulo desta tese
84
do seu continuum ndash reflexividade e confusatildeo ndash natildeo foram colocadas em uma
conexatildeo sistemaacutetica em sua definiccedilatildeo de continuum Tinha comeccedilado a brincar
com os infinitesimais mas um pouco agrave parte de seu pensamento sobre
continuidade (MOORE 2007 p 434)
Apoacutes 1884 Peirce adere agrave posiccedilatildeo de Cantor afirmando que a noccedilatildeo de continuidade
deveria ser definida independentemente de nossas concepccedilotildees de espaccedilo e tempo Contudo a
definiccedilatildeo de Cantor natildeo surtiu o efeito que Peirce desejava e nos anos seguintes continuou a
tentar novas definiccedilotildees Seu principal desacordo com a definiccedilatildeo proposta pelo matemaacutetico
consistia em sua insatisfaccedilatildeo com a ideia de que fosse possiacutevel uma abordagem meacutetrica do
continuum Neste periacuteodo de desenvolvimento do seu pensamento sobre a continuidade duas
propriedades do continuum tornam-se centrais a kanticidade (Kanticity) e a aristotelicidade
(Aristotelicity) conforme a nomenclatura peirceana A kanticidade de uma seacuteria faz referecircncia
agravequela ldquopropriedade de intermediaccedilatildeo ou divisibilidaderdquo (CP 4 sect 121)106
ou ainda que a
ldquokanticidade consiste em ter um ponto entre dois pontos quaisquerrdquo (CP 6 sect 166 1889)107
Quanto agrave segunda Peirce afirma que a ldquoaristotelicidade consiste em ter todo ponto que eacute um
limite a uma seacuterie infinita de pontos que pertencem ao sistemardquo (CP 6 sect 166 1889)108
ou ainda
que
A propriedade de aristotelicidade pode ser colocada em termos gerais do
seguinte modo um continuum conteacutem o ponto final que pertence a toda seria
infinita de pontos que ele conteacutem Um corolaacuterio oacutebvio eacute que todo continuum
conteacutem seus limites Mas usando esse princiacutepio eacute necessaacuterio observar que uma
seacuterie pode ser contiacutenua exceto nisto que ela omita um ou ambos os limites (CP
6 sect 123)109
106 property of infinite intermediety or divisibility
107 The Kanticity is having a point between any two points
108 The Aristotelicity is having every point that is a limit to an infinite series of points that belong to the system
109 The property of Aristotelicity may be roughly stated thus a continuum contains the end point belonging to every
endless series of points which it contains An obvious corollary is that every continuum contains its limits But in
using this principle it is necessary to observe that a series may be continuous except in this that it omits one or both
of the limits
85
Como afirma Potter amp Shields (1977) por volta de 1889 o impacto de Cantor sobre Peirce
jaacute era bastante visiacutevel na definiccedilatildeo de continuidade que apresenta para o Dicionaacuterio do Seacuteculo
escreve
[Continuidade significa] em matemaacutetica e filosofia uma conexatildeo de pontos (ou
outros elementos) tatildeo iacutentima como aquelas dos instantes ou intervalos de
tempo assim a continuidade do espaccedilo consiste nisso que um ponto pode
mover-se de qualquer posiccedilatildeo para qualquer outra de tal modo que em cada
instante ele teraacute uma posiccedilatildeo definida e distinta no espaccedilo Esta afirmaccedilatildeo natildeo
eacute entretanto uma definiccedilatildeo adequada de continuidade mas somente um
exemplo extraiacutedo do tempo As antigas definiccedilotildees ndash o fato que partes adjacentes
tecircm seus limites em comum (Aristoacuteteles) infinita divisibilidade (Kant) o fato
que entre quaisquer dois pontos haacute um terceiro (o que eacute verdade para o sistema
dos nuacutemeros racionais) ndash satildeo inadequadas A definiccedilatildeo menos insatisfatoacuteria eacute a
de G Cantor de que continuidade eacute a perfeita concatenaccedilatildeo de um sistema de
pontos ndash palavras que precisam ser entendidas em sentidos especiais (CP 6 sect
164 1889)110
Do ponto de vista filosoacutefico Peirce estava tentando fornecer uma concepccedilatildeo de continuum
que fosse adequada agrave defesa de seu falibilismo e ao estabelecimento de sua cosmologia
evolucionaacuteria Seu entusiasmo com tal ideia era claro ele confessa no texto Falibilismo
continuidade e evoluccedilatildeo de 1897 que ldquose eu tentasse descrever completamente para vocecircs toda a
beleza e verdade cientiacutefica que encontro no princiacutepio de continuidade teria que dizer na
linguagem simples de Matilda a engajada ldquoque a tumba se fecharia sobre mim antes que esse
110 [Continuous means] in mathematics and philosophy a connection of points (or other elements) as intimate as that
of the instants or points of an interval of time thus the continuity of space consists in this that a point can move
from any one position to any other so that at each instant it shall have a definite and distinct position in space This
statement is not however a proper definition of continuity but only an exemplification drawn from time The old
definitions -- the fact that adjacent parts have their limits in common (Aristotle) infinite divisibility (Kant) the fact
that between any two points there is a third (which is true of the system of rational numbers) -- are inadequatedagger2 The
less unsatisfactory definition is that of G Cantor that continuity is the perfect concatenation of a system of points --
words which must be understood in special senses
86
assunto fascinante fosse esgotadordquo ndash mas natildeo antes que minha plateia estivesse exausta (CP 1 sect
171 1897)111
23 PERIacuteODO KANTIANO112
Em meados da deacutecada de 90 motivado por uma reflexatildeo sobre a definiccedilatildeo proposta por
Kant113
de que continuum eacute ldquotudo aquilo cujas partes tecircm partes do mesmo tipordquo (CP 6 sect 168
1889) passa a considerar o continuum natildeo mais como infinita divisibilidade mas como aquilo
que natildeo tem partes uacuteltimas Nesse sentido endereccedila criacuteticas a Cantor insistindo em uma
abordagem natildeo meacutetrica do continuum passando a usar o termo ldquomultitude em suas formulaccedilotildees
Assim afirma que ldquo() a possibilidade de determinar mais do que qualquer dada grandeza dos
pontos ou em outras palavras o fato de que haacute lugar para qualquer grandeza em cada parte da
linha torna-a contiacutenuardquo (CP 3 sect 568 1900)114
Peirce afirma pois que continuidade eacute
totalmente diferente de qualquer coleccedilatildeo de elementos discretos e que por outro lado quanto
maior uma coleccedilatildeo se torna mais ela se parece com o continuum
As criacuteticas que havia endereccedilado a Cantor desde 1892115
expressavam o seu desacordo com
uma abordagem meacutetrica do continuum segundo Peirce a definiccedilatildeo proposta pelo matemaacutetico
ldquovoltava-se para consideraccedilotildees meacutetricas enquanto a distinccedilatildeo entre seacuteries contiacutenuas e
descontiacutenuas eacute manifestamente natildeo-meacutetricardquo (CP 6 sect 121 1982)116
Em termos mais
111 If I were to attempt to describe to you in full all the scientific beauty and truth that I find in the principle of
continuity I might say in the simple language of Matilda the Engaged the tomb would close over me eer the
entrancing topic were exhausted -- but not before my audience was exhausted 112
Moore (2007) denomina este periacuteodo de Fase peirceana argumentando que eacute nele que Peirce obteacutem a definiccedilatildeo
de continuum mais satisfatoacuteria com relaccedilatildeo agraves suas preocupaccedilotildees filosoacuteficas 113
Que natildeo deve ser confundida com a propriedade denominada kanticidade anteriormente indicada cujo significado
era somente o de infinita divisibilidade 114
(hellip) the possibility of determining more than any given multitude of points or in other words the fact that there
is room for any multitude at every part of the line makes it continuous 115
No texto A lei da mente 116
It turns upon metrical considerations while the distinction between a continuous and a discontinuous series is
87
compreensiacuteveis as questotildees que Peirce estava se colocando desde 1893 eram segundo Potter e
Shields (1977) do seguinte tipo como um continuum pode ser colorido quando suas proacuteprias
partes os pontos natildeo podem secirc-lo (cf CP 4 sect 127) A soluccedilatildeo encontrada por Peirce foi a de
natildeo mais considerar os pontos como constituintes do continuum em sua nova formulaccedilatildeo as
partes constituintes do continuum satildeo tambeacutem contiacutenuas Essa posiccedilatildeo perdura ateacute por volta de
1908 quando motivado por problemas no interior dessa abordagem Peirce procura uma nova
elaboraccedilatildeo
24 PERIacuteODO POacuteS-CANTORIANO
Em particular a partir da criacutetica a Cantor de que o continuum natildeo eacute realmente uma
coleccedilatildeo surge a necessidade de se explicar como as partes do continuum juntam-se num todo
pois o continuum claramente tem partes Em 1906 Peirce enfatiza que ldquotudo o que eacute contiacutenuo
tem partes materiaisrdquo e que portanto natildeo pode ser pensado como uma coleccedilatildeo de pontos (CP 6
sect 174 1906) O modo de conexatildeo de suas partes contribui para a natureza do todo Em uma
coleccedilatildeo o modo de conexatildeo eacute soacute o estar junto (co-being) mas no continuum ela deve consistir de
alguma coisa a mais Apenas em 1908 retomando a definiccedilatildeo de Kant de que ldquo() todas as
partes de um continuum perfeito tecircm a mesma dimensionalidade que o todordquo (CP 4 sect 642
1908)117
Peirce afirma que eacute uma decorrecircncia dessa definiccedilatildeo natildeo apenas que todas as partes
devem ter partes do mesmo tipo mas que as partes suficientemente pequenas devem ter um modo
uniforme de conexatildeo imediata O modo de conexatildeo imediata tem como paradigma a noccedilatildeo de
tempo Ou seja ao final Peirce retoma o que havia descartado em 1889 quando aderiu agrave
definiccedilatildeo de Cantor e passa a tratar o continuum em termos de semelhanccedila com a conexatildeo das
pequenas partes temporais
manifestly non-metrical 117
(hellip) all the parts of a perfect continuum have the same dimensionality as the whole
88
Retomando o argumento de Aquiles e a tartaruga proposto por Zenatildeo de Eleacutea para
demonstrar a impossibilidade do movimento Peirce afirma tratar-se de um argumento falacioso
que falha justamente por assumir como divisiacutevel o que natildeo pode secirc-lo
Como afirmam Potter e Shields (1977) a concepccedilatildeo final de continuidade de Peirce entatildeo
fica assim a definiccedilatildeo matemaacutetica de continuidade descreve um continuum imperfeito (CP 4 sect
642 1908) mas o verdadeiro continuum eacute alguma coisa diferente de qualquer relaccedilatildeo meacutetrica ou
da ordem dos elementos O verdadeiro continuum natildeo tem elementos reais embora natildeo seja
vazio (cf POTTER e SHIELDS 1961 p 139)
Uma vez demonstrada a importacircncia central da noccedilatildeo de continuidade para o pensamento
de Peirce e o modo como esse conceito estaacute ligado agraves variadas maneiras de expressatildeo do seu
pensamento contribuindo para o esclarecimento dos aspectos mais obscuros de suas formulaccedilotildees
cabe agora tentar compreender em particular a maneira pela qual a atuaccedilatildeo da causalidade final
se manifesta nos processos naturais tendo como pano de fundo o continuum Como jaacute foi
indicado a possibilidade do conhecimento do mundo estaacute intimamente ligada ao seu aspecto de
generalidade que por sua vez soacute adquire sentido sob o conceito de continuidade Do mesmo
modo as relaccedilotildees causais em geral e a final em particular envolvem continuidade No proacuteximo
capiacutetulo seraacute investigada a especificidade do modo de atuaccedilatildeo da causalidade final
89
CAPIacuteTULO 03
A EVOLUCcedilAtildeO
Boys grow into men but not men into boys It is thus an immediate corollary from the
doctrine of the conservation of energy that growth is not the effect of force alone (CP
6 sect 554 1887)
90
Este capiacutetulo procura evidenciar o modo pelo qual o desenvolvimento do continuum se
efetuou e tem se efetuado para dar origem ao universo atual segundo a concepccedilatildeo peirceana
Seu desenvolvimento como ressalta Peirce se daacute por meio da atuaccedilatildeo da causalidade final A
negaccedilatildeo da atuaccedilatildeo da causalidade final nos processos naturais eacute uma posiccedilatildeo que natildeo pode ser
sustentada consistentemente pois para Peirce natildeo soacute nos deparamos com uma miriacuteade de
fenocircmenos que a manifestam claramente em particular nos reinos orgacircnico e psiacutequico mas
tambeacutem no reino fiacutesico como por exemplo mais determinante ainda no processo que deu
origem e continua a atuar no crescimento do universo que soacute pode ser entendido a partir da
perspectiva que toma a causalidade final como um agente operante no universo Tal processo diz
Peirce eacute a evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902)
1 ASPECTOS EPISTEMOLOacuteGICOS DA HIPOacuteTESE EVOLUCIONAacuteRIA
Partiremos nesta investigaccedilatildeo de algumas consideraccedilotildees sobre a perspectiva
epistemoloacutegica peirceana para evidenciarmos o modo pelo qual suas consideraccedilotildees sobre a
evoluccedilatildeo satildeo determinantes para a possibilidade de realizaccedilatildeo de seu projeto de validaccedilatildeo do
empreendimento cientiacutefico Para tal fim teremos como ponto de partida as consideraccedilotildees
oferecidas por Christopher Hookway (1984 1985) O primeiro aspecto a ser considerado eacute a sua
adoccedilatildeo do princiacutepio que nega a existecircncia do inexplicaacutevel Uma consequecircncia desta adoccedilatildeo eacute o
estabelecimento de um criteacuterio para a identificaccedilatildeo do tipo de hipoacutetese que pode ser aceita como
candidata agrave verdade cientiacutefica e desse modo merecedora de investigaccedilatildeo Como jaacute foi dito
anteriormente eacute a regularidade na concepccedilatildeo de Peirce aquilo que requer uma explicaccedilatildeo
Como aponta o filoacutesofo natildeo nos surpreendemos e nem buscamos explicaccedilotildees para o resultado
que emerja de um lance de dados uma regularidade natildeo esperada a quebra de uma expectativa
(cf CP 7 sect 194 1901) por outro lado excita-nos a buscar uma explicaccedilatildeo do por que dos
eventos terem se sucedido daquela maneira precisa A maior parte das irregularidades natildeo nos
desperta o menor interesse Peirce diz
91
Estou () certo de que a mera irregularidade onde nenhuma regularidade
definida eacute esperada natildeo cria surpresa nem excita qualquer curiosidade Por que
deveria jaacute que a irregularidade eacute a regra absolutamente preponderante da
experiecircncia e a regularidade eacute somente uma estranha exceccedilatildeo Em que estado
de surpresa passaria minha vida se tentasse compreender por que natildeo haacute
regularidades conectando dias nos quais eu recebo um nuacutemero par de cartas pelo
correio e noites nas quais eu observo um nuacutemero par de estrelas cadentes Mas
quem procuraria por explicaccedilotildees para irregularidades como essas (CP 7 sect 189
1901)118
Uma explicaccedilatildeo no entanto eacute requerida sempre que uma expectativa criada por um haacutebito
que tem por base uma regularidade eacute quebrada A surpresa causada pela quebra de regularidade
motiva-nos a procurar uma explicaccedilatildeo para o comportamento natildeo esperado dos fenocircmenos A
maneira como Peirce entende o que seria uma explicaccedilatildeo eacute bem clara na seguinte passagem
() o que a explicaccedilatildeo de um fenocircmeno faz eacute fornecer uma proposiccedilatildeo que se
fosse conhecida como verdadeira antes do fenocircmeno se apresentar teria tornado
aquele fenocircmeno prediziacutevel se natildeo como certeza ao menos como algo de
ocorrecircncia muito provaacutevel Assim tornaria aquele fenocircmeno racional - isto eacute
tornaacute-lo-ia uma consequecircncia loacutegica necessaacuteria ou provaacutevel (CP 7 sect 197
1901)119
O problema com essa definiccedilatildeo de explicaccedilatildeo eacute que aparentemente implica em um regresso
ao infinito Se aceitarmos como Peirce que uma explicaccedilatildeo natildeo pode ter por base uma hipoacutetese
118 I am () confident that mere irregularity where no definite regularity is expected creates no surprise nor excites
any curiosity Why should it when irregularity is the overwhelmingly preponderant rule of experience and
regularity only the strange exception In what a state of amazement should I pass my life if I were to wonder why
there was no regularity connecting days upon which I receive an even number of letters by mail and nights on which
I notice an even number of shooting stars But who would seek explanations for irregularities like that
119 () what an explanation of a phenomenon does is to supply a proposition which if it had been known to be true
before the phenomenon presented itself would have rendered that phenomenon predictable if not with certainty at
least as something very likely to occur It thus renders that phenomenon rational -- that is makes it a logical
consequence necessary or probable
92
que natildeo seja ela proacutepria explicaacutevel veremos a necessidade de uma hierarquia de hipoacuteteses
segundo a sua generalidade que conduziria a explicaccedilatildeo de qualquer fenocircmeno por fim ao
fracasso uma vez que nenhum fenocircmeno poderia ser completamente conhecido
Barrar a regressatildeo ao infinito parece possiacutevel somente se encontrarmos uma lei que natildeo
necessite de explicaccedilatildeo que se imponha por si mesma Esse entretanto natildeo parece ter sido o
caminho trilhado por Peirce Eacute na tentativa de solucionar o problema da regressatildeo ao infinito das
explicaccedilotildees que encontraremos uma das motivaccedilotildees para a elaboraccedilatildeo de sua hipoacutetese
evolucionaacuteria Submeter uma regularidade a uma lei de maior generalidade natildeo parece ser o
uacutenico caminho para oferecer uma explicaccedilatildeo Uma rota alternativa consiste em oferecer uma
explicaccedilatildeo histoacuterica de como tais regularidades surgiram isto eacute uma explicaccedilatildeo geneacutetica Como
aponta Hookway ldquoEacute plausiacutevel ler Peirce como se estivesse tentando bloquear a regressatildeo de
explicaccedilotildees por meio dessa estrateacutegia a cosmologia evolucionaacuteria oferece uma estrutura para
compreensatildeo histoacuterica das leis que nos capacita a bloquear o regresso das explicaccedilotildeesrdquo
(Hookway 1985 p 267-68)
Aleacutem do bloqueio agrave regressatildeo das explicaccedilotildees Peirce vecirc na hipoacutetese evolucionaacuteria tomada
como um instrumento loacutegico uma resposta para as similaridades formais e materiais constataacuteveis
entre as leis que dirigem diferentes tipos de fenocircmenos da mesma maneira que a teoria da
seleccedilatildeo natural elaborada por Darwin (1809 - 1882) auxilia-nos na compreensatildeo das
semelhanccedilas morfoloacutegicas e comportamentais de diferentes populaccedilotildees
De maneira mais ambiciosa Peirce parece acreditar que a hipoacutetese evolucionaacuteria seria
capaz tambeacutem de explicar porque temos a experiecircncia de uma uniformidade na natureza Ele
afirma que ldquo() a uacutenica maneira possiacutevel de explicar as leis da natureza e a uniformidade em
geral eacute supocirc-las resultado da evoluccedilatildeordquo (CP 6 sect 13 1891)120
em outro momento afirma que
Queremos uma teoria da evoluccedilatildeo da lei fiacutesica Devemos supor que agrave medida
que voltamos ao passado indefinido natildeo meramente as leis especiais mas a lei
120 (hellip) the only possible way of accounting for the laws of nature and for uniformity in general is to suppose them
results of evolution This supposes them not to be absolute not to be obeyed precisely
93
ela mesma encontra-se cada vez menos determinada E como isso poderia
acontecer se a causalidade tivesse sido sempre tatildeo rigidamente necessaacuteria como
eacute agora (EP 1 p 218-9 1884)121
Hookway eacute quanto a esse ponto discordante da pretensatildeo de Peirce pois afirma que
A demanda de que expliquemos por que uma lei existe parece muitas vezes e
corretamente dificilmente inteligiacutevel Essa natildeo parece ser uma questatildeo
cientiacutefica e certamente natildeo eacute idecircntica como Peirce supotildee agrave mais razoaacutevel
afirmaccedilatildeo de que eacute a regularidade ou a uniformidade que nos impulsiona a
buscar por explicaccedilotildees (Hookway 1985 p 268)
Todavia de acordo com o espiacuterito do projeto epistemoloacutegico peirceano que busca eliminar
o incognosciacutevel do reino da natureza por meio da validaccedilatildeo de um meacutetodo eficaz para a ciecircncia e
agrave luz da sua cosmologia que fornece elementos para pensar cada aspecto do universo como o
resultado de um processo evolucionaacuterio a proacutepria existecircncia de leis como um fato bruto que se
impotildee agrave experiecircncia deve ser tomado como um problema que requer uma explicaccedilatildeo A
discordacircncia presente na opiniatildeo de Hookway parece implicar em uma distinccedilatildeo entre leis e
regularidades que natildeo se encontra no pensamento de Peirce senatildeo em graus
Ao lado das leis que governam os fenocircmenos como jaacute vimos no primeiro capiacutetulo Peirce
identifica o acaso absoluto como um ingrediente constitutivo da realidade e fator determinante
para que ela nos apareccedila da maneira como a percebemos isto eacute diversa e com constante
crescimento de complexidade
A partir de uma perspectiva geral que engloba a origem do universo passando pelo tempo
atual e se projetando no futuro infinitamente distante podemos perceber que a hipoacutetese
121 We want a theory of the evolution of physical law We ought to suppose that as we go back in the indefinite past
not merely special laws but law itself is found to be less and less determinate And how can that be if causation was
always as rigidly necessary as it is now
94
evolucionaacuteria de Peirce se compromete com a ideia de que por meio da passagem do tempo as
variaccedilotildees ao acaso tornam-se mais raras e as leis tecircm a sua influecircncia sobre o curso dos eventos
aumentada tornando desse modo o mundo mais e mais racional Central a essa ideia eacute a noccedilatildeo
de haacutebito tanto em seu caraacuteter psicoloacutegico que atua sobre noacutes determinando atraveacutes de
investigaccedilatildeo que adotemos expectativas mais confiaacuteveis isto eacute tornemo-nos mais
autocontrolados quanto em seu caraacuteter cosmoloacutegico que determina o crescimento da
razoabilidade concreta no universo
2 AS RAIacuteZES NA CIEcircNCIA DO SEacuteCULO XIX
Uma outra motivaccedilatildeo para a adoccedilatildeo da hipoacutetese evolucionaacuteria pode ser encontrada na
insatisfaccedilatildeo com o tratamento que a mecacircnica claacutessica legava a certos fenocircmenos considerados
por Peirce de primordial importacircncia os fenocircmenos irreversiacuteveis A caracteriacutestica distintiva do
mundo fenomecircnico eacute sua diversidade afirma Peirce (cf CP 6 sect 262 1892) Como entatildeo
podemos perguntar eacute possiacutevel conciliar esse aspecto do mundo com uma abordagem mecanicista
dos fenocircmenos Eacute para responder a esta questatildeo que Peirce desenvolve uma teoria da evoluccedilatildeo
como um princiacutepio da loacutegica que amplia seu horizonte de aplicaccedilatildeo para aleacutem do reino das
explicaccedilotildees bioloacutegicas alcanccedilando o reino das explicaccedilotildees fiacutesicas psiacutequicas almejando ateacute
mesmo a explicar a gecircnese das proacuteprias leis naturais Embora tenha sido com a obra de Darwin
que o conceito de evoluccedilatildeo foi deslocado para o centro das discussotildees cientiacuteficas na segunda
metade do seacuteculo XIX Peirce dota-o de um sentido diferente daquele entatildeo empregado isto eacute do
de uma metafiacutesica do progresso Como um princiacutepio da loacutegica trata-se de uma ideia reguladora
que tem por finalidade abranger de forma sistemaacutetica e racional a ciecircncia do seu tempo Seu
sentido nada mais eacute do que a hipoacutetese de que existe uma explicaccedilatildeo simples para um estado de
coisas complexas (cf W 4 p 547 1884) Enquanto tal Peirce supunha-o presente na elaboraccedilatildeo
teoacuterica de todo grande filoacutesofo Ele afirma que ldquoHoje todos satildeo evolucionistas Diz-se que eacute o
tempo do evolucionismo Mas a verdade eacute que todos os filoacutesofos desde o tempo de Fereacutecides
95
tecircm sido evolucionistasrdquo (NEM 4 p 140 ca 1898)122
O desafio principal enfrentado por Peirce eacute o de propor uma alternativa agrave abordagem
mecanicista que natildeo ignore a variedade e diversidade dos fenocircmenos De um ponto de vista mais
geral pode-se identificar nos esforccedilos empreendidos por Peirce a busca por uma teoria que
levasse em consideraccedilatildeo os fenocircmenos irreversiacuteveis tarefa que natildeo faria sentido dentro dos
paracircmetros da fiacutesica newtoniana na qual a direccedilatildeo da flecha do tempo eacute teoricamente reversiacutevel
A evoluccedilatildeo como um processo operante no cosmo aparece como a fonte dos problemas da
abordagem da mecacircnica claacutessica pois a irreversibilidade de seus processos natildeo pode ser
explicada Diz Peirce
Desse modo pela admissatildeo da pura espontaneidade ou vida como uma
caracteriacutestica de universo agindo sempre e em todo lugar ainda que restrita pelos
limites da lei continuamente produzindo variaccedilotildees infinitesimais com relaccedilatildeo agrave
lei e outras grandes com infinita infrequecircncia considero toda a variedade e
diversidade do universo no uacutenico sentido no qual o realmente sui generis e novo
pode ser considerado A visatildeo comum tem que admitir a inexauriacutevel e numerosa
variedade do mundo tem que admitir que sua lei mecacircnica natildeo consegue dar
conta disso ao final a variedade pode se originar unicamente da espontaneidade
e contudo nega sem qualquer evidecircncia ou razatildeo a existecircncia dessa
espontaneidade ou de outra forma voltam ao iniacutecio do tempo e supotildeem-na
morta desde sempre (CP 6 sect 59 1892)123
Como aponta Reynolds (2002 p 27) ldquoEra uma crenccedila comum entre os fiacutesicos ateacute por volta
da uacuteltima deacutecada do seacuteculo dezenove que todos os fenocircmenos fiacutesicos poderiam ser acomodados
dentro dos esquemas da apresentaccedilatildeo da ciecircncia da mecacircnica de Newtonrdquo Peirce tendia a aceitar
esta afirmaccedilatildeo com alguma reserva sua principal discordacircncia dizia respeito agrave impossibilidade de
122 Everybody today is evolutionist This is said to be the day of evolutionism But in truth every important
philosopher from Pherecydes down has always been evolutionist
123 By thus admitting pure spontaneity or life as a character of the universe acting always and everywhere though
restrained within narrow bounds by law producing infinitesimal departures from law continually and great ones
with infinite infrequency I account for all the variety and diversity of the universe in the only sense in which the
really sui generis and new can be said to be accounted for The ordinary view has to admit the inexhaustible
multitudinous variety of the world has to admit that its mechanical law cannot account for this in the least that
variety can spring only from spontaneity and yet denies without any evidence or reason the existence of this
spontaneity or else shoves it back to the beginning of time and supposes it dead ever since
96
se abordar os fenocircmenos irreversiacuteveis dentro desse esquema explicativo A esta posiccedilatildeo que
considerava passiacutevel de criacutetica ele atribuiu o nome de mecanicismo ou necessitarismo Eacute
interessante notar que Peirce definia a fiacutesica como ldquo() a ciecircncia dos princiacutepios operativos na
natureza inorgacircnica a ciecircncia das forccedilas ou formas de energiardquo (CD p 4465 ca 1889)124
A
fiacutesica segundo sua concepccedilatildeo poderia ser divida em trecircs ramos distintos
1 Fiacutesica molar Mecacircnica e gravitaccedilatildeo a ciecircncia da forccedila em geral com
desenvolvimentos matemaacuteticos extensivos
2 Fiacutesica molecular o estudo da constituiccedilatildeo da mateacuteria e das forccedilas interiores agraves
moleacuteculas incluindo a elasticidade e o calor (um aspecto indivisiacutevel) coesatildeo e forccedilas quiacutemicas e
3 A fiacutesica do eacuteter sendo o estudo da luz ou radiaccedilatildeo eletricidade e magnetismo (cf CP
1 sect 193 1903)
Eacute no segundo ramo o da fiacutesica molecular indica Reynolds (2002) que Peirce vecirc a maior
importacircncia que seu projeto loacutegicometafiacutesico poderia ter como um guia para as pesquisas Sua
insatisfaccedilatildeo com a incapacidade da mecacircnica newtoniana de tratar do tempo como um fluxo que
possui uma direccedilatildeo especiacutefica eacute atribuiacuteda ao caraacuteter formal da teoria mecanicista Como afirma
() as leis da dinacircmica permanecem em uma condiccedilatildeo um pouco diferente
daquela das leis da gravitaccedilatildeo elasticidade e similares As leis da dinacircmica satildeo
muito mais parecidas com princiacutepios loacutegicos se eacute que natildeo satildeo precisamente isso
Elas soacute dizem como os corpos se moveratildeo depois que se tenha dito o que as
forccedilas satildeo Elas permitem qualquer forccedila e portanto qualquer movimento (CP
1 sect 347 1903)125
124 () the science of the principles operative in nature the science of forces or forms of energy 125 () the laws of dynamics stand on quite a different footing from the laws of gravitation elasticity electricity
and the like The laws of dynamics are very much like logical principles if they are not precisely that They only say
how bodies will move after you have said what the forces are They permit any forces and therefore any motions
97
Dado o seu caraacuteter geral e abstrato essas leis natildeo conseguem dar conta dos processos
irreversiacuteveis que ocorrem na natureza uma vez que a direccedilatildeo da flecha do tempo tanto pode estar
apontada para o futuro quanto para o passado sem que nada de significativo seja alterado na
teoria No entanto os processos naturais visados por Peirce como objetos merecedores de
atenccedilatildeo e explicaccedilatildeo satildeo justamente aqueles nos quais a direccedilatildeo do tempo desempenha um papel
fundamental satildeo os processos irreversiacuteveis como a proacutepria evoluccedilatildeo que determina o
crescimento do universo como um todo
A discussatildeo do alcance e limite da abordagem mecanicista passa pela consideraccedilatildeo do que
ficou conhecido como a lei da vis viva126
que eacute descrita por Peirce como ldquo() o princiacutepio
segundo o qual quando unicamente forccedilas posicionais satildeo consideradas qualquer mudanccedila na
vis viva do sistema depende unicamente das situaccedilotildees inicial e final das partiacuteculasrdquo (CD p 6768
ca 1889)127
As forccedilas posicionais satildeo aquelas resultantes exclusivamente da posiccedilatildeo relativa dos
corpos envolvidos Uma vez que essas forccedilas mantecircm a quantidade de vis viva do sistema
inalterada elas satildeo chamadas de forccedilas conservativas Na definiccedilatildeo que Peirce oferece do termo
forccedila temos a definiccedilatildeo do que entendia por forccedila conservativa
Uma atraccedilatildeo ou repulsatildeo dependente da posiccedilatildeo relativa do par de corpos
implicados Acredita-se que todas as forccedilas fundamentais sejam conservativas
ou fixas Seja qual for o movimento que tenha origem sob a influecircncia
unicamente de forccedilas conservativas pode originar-se sob as mesmas forccedilas
precisamente na ordem reversa a velocidade sendo a mesma mas em direccedilatildeo
oposta (CD p 2319 ca 1889)128
126 Reynolds (2002 p 30) lembra que essa quantidade foi primeiramente defina por Leibniz (1646 - 1716) como
sendo igual ao produto da massa e o quadrado da velocidade de uma partiacutecula ou a soma desse modo de um grupo
de partiacuteculas
127 () the principle that when only positional forces are considered any changes in the vis viva of a system
depend only on the initial and final situations of the particles 128 An attraction or repulsion depending upon the relative position of the pair of bodies concerned All fundamental
forces are believed to be conservative or fixed Whatever motion takes place under the influence of conservative
forces alone might take place under the same forces in precisely the reverse order the velocities being the same but
opposite in direction
98
A consequecircncia eacute a de que todos os sistemas que contenham unicamente forccedilas de tipo
conservativo satildeo reversiacuteveis Ainda que a princiacutepio a lei da vis viva tivesse aplicaccedilatildeo restrita aos
sistemas mecacircnicos Helmholtz (1821 - 1894) se encarregou de estendecirc-la a todos os sistemas
fiacutesicos argumentando que todas as forccedilas fundamentais da natureza satildeo posicionais portanto
conservativas que interagem entre pares de pontos materiais O passo seguinte nessa mesma
direccedilatildeo foi a determinaccedilatildeo do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia mais abrangente que a lei da
vis viva na medida em que inclui todos os tipos de forccedilas existentes na natureza como afirma
Reynolds ldquoO que o princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia fez foi tornar o velho princiacutepio da
mecacircnica (a lei da vis viva) um princiacutepio geral da fiacutesica com aplicaccedilatildeo universal a todos os
sistemas fiacutesicosrdquo (Reynolds 2002 p 32)
As implicaccedilotildees do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia e a sua relaccedilatildeo com a vis viva satildeo
bem indicadas por Peirce na seguinte passagem
Tambeacutem pode ser argumentado que de acordo com a lei de conservaccedilatildeo de
energia natildeo haacute nada no universo fiacutesico que corresponda agrave nossa ideia de que o
preacutevio determina o subsequente em qualquer modo no qual o subsequente natildeo
determine o preacutevio () Assim sendo do quadrado de uma quantidade negativa
sendo positivo segue-se que se todas as velocidades fossem revertidas em
qualquer instante tudo permaneceria igual unicamente o tempo indo para traacutes
em relaccedilatildeo a como estava Tudo que tenha acontecido aconteceria novamente
na ordem reversa (CP 8 sect 320 1906)129
ou ainda
129 It may also be argued that according to the law of the conservation of energy there is nothing in the physical
universe corresponding to our idea that the previous determines the subsequent in any way in which the subsequent
does not determine the previous() Now the square of a negative quantity being positive it follows that if all the
velocities were reversed at any instant everything would go on just the same only time going backward as it were
Everything that had happened would happen again in reverse order
99
Eu pessoalmente acredito que as duas direccedilotildees do Tempo satildeo tatildeo diferentes
quanto as duas direccedilotildees ao longo de uma linha Pois a lei da conservaccedilatildeo de
energia eacute que a vis viva e consequentemente tambeacutem as forccedilas das partiacuteculas
natildeo depende de nada mutaacutevel exceto as posiccedilotildees relativas das partiacuteculas Desse
modo o diferencial do tempo entra na expressatildeo analiacutetica da vis viva 12
m(dsdt)2 bem como naquela de forccedila m d2s (dt)
2 unicamente como o
quadrado Uma vez que o quadrado de uma quantidade negativa eacute igual agravequele
da quantidade positiva correspondente as duas direccedilotildees do tempo satildeo
indiferentes na medida em que a lei de conservaccedilatildeo de energia valha (NEM 2
p 481)130
O que se depreende eacute que natildeo se pode entender por meio destes princiacutepios porque o
universo apresenta caracteriacutesticas de irreversibilidade uma vez que a partir dos mesmos natildeo se
pode compreender por que a flecha do tempo possuiria caracteriacutesticas especiais em uma de suas
direccedilotildees isto eacute por que o tempo flui do passado para o futuro e por que essa direccedilatildeo apresenta
aspectos de irreversibilidade Entretanto seria um equiacutevoco julgar que Peirce natildeo tinha uma
avaliaccedilatildeo positiva do princiacutepio de conservaccedilatildeo de energia ele proacuteprio afirma em vaacuterios
momentos que ldquoA descoberta desta lei [de conservaccedilatildeo de energia] eacute a maior que a ciecircncia jamais
fez e nada que possa ser descoberto no futuro (a menos que seja de caraacuteter sobrenatural) pode
igualaacute-la em importacircnciardquo (W 5 p 402)131
Natildeo obstante esta avaliaccedilatildeo Peirce parece em
algumas passagens um pouco hesitante quanto ao verdadeiro alcance e natureza do princiacutepio
A descoberta da conservaccedilatildeo de energia pode muito bem ser considerada como a
maior conquista da filosofia natural Contudo por fim nada sabemos ao seu
respeito com exceccedilatildeo daquilo que a experiecircncia nos ensina e suas verificaccedilotildees
experimentais com exceccedilatildeo de alguns casos simples natildeo obtecircm qualquer grau
130 I personally believe that the two directions of Time are as alike as the two directions along a line For the law of
the conservation of energy is that the vis viva and consequently also the forces of the particles depends upon
nothing mutable except the relative positions of the particles Now the differential of the time enters into the
analytical expression of the vis viva 12 m(dsdt)2 as well as into that of force m d2s (dt)
2 only as squared
Whence the square of a negative quantity being equal to that of the corresponding positive quantity the two
directions of time are indifferent as far as the action of the law of the conservation of energy goes 131 The discovery of this law [of the conservation of energy] is the greatest that science has ever made and nothing
that can be hereafter (unless it be of a supernatural kind) can equal it in importance
100
extraordinaacuterio de precisatildeo quando consideramos o trabalho muscular e a
atividade cerebral haacute pouco mais que analogia a nos guiar a pensaacute-la como uma
aproximaccedilatildeo da verdade Toda determinaccedilatildeo fiacutesica de uma quantidade contiacutenua
tem seu ldquoerro provaacutevelrdquo e o erro provaacutevel da equaccedilatildeo que expressa a
conservaccedilatildeo de energia eacute grande em comparaccedilatildeo com aqueles que expressam
por exemplo as trecircs leis do movimento Todavia frequentemente vemos os
ldquocientistasrdquo tratando a lei da conservaccedilatildeo de energia em suas aplicaccedilotildees
extremas as mais distantes de qualquer coisa que possamos medir como algo de
que seria absurdo duvidar (CN 1 p 176 1893)132
O problema que Peirce tem como pano de fundo de suas especulaccedilotildees e para cuja soluccedilatildeo
emprega seus maiores esforccedilos eacute como jaacute ficou claro o de propor uma abordagem cientiacutefica aos
fenocircmenos irreversiacuteveis Quando se refere a tais fenocircmenos Peirce pensa sobretudo naqueles
que satildeo fruto da evoluccedilatildeo mas tambeacutem em outros fenocircmenos fiacutesicos cujas caracteriacutesticas de
irreversibilidade jaacute lhe eram claras O filoacutesofo afirma que
(hellip) quase todos os fenocircmenos dos corpos aqui na terra que atraem a nossa
atenccedilatildeo satildeo natildeo conservativos isto eacute satildeo inexplicaacuteveis por meio da Lei de
Conservaccedilatildeo de Energia Pois satildeo accedilotildees que natildeo podem ser revertidas Na
linguagem dos fiacutesicos satildeo irreversiacuteveis Deste tipo satildeo por exemplo o
nascimento o crescimento a vida () todos os movimentos que sofrem a
resistecircncia da fricccedilatildeo ou da viscosidade dos fluidos () o trovatildeo a produccedilatildeo das
cores pelo prisma o fluxo dos rios a formaccedilatildeo de barreiras em suas
desembocaduras a vegetaccedilatildeo de seus canais enfim substancialmente tudo que a
experiecircncia ordinaacuteria revela (CP 6 sect 72 1898)133
132 The discovery of the conservation of energy may well be considered as the greatest achievement of natural
philosophy Yet after all we know nothing about it except what experience teaches us and the experiential
verifications of it except in a few simple cases do not attain any extraordinary degree of precision while in regard
to muscular work and brain activity there is little but analogy to lead us to think it so much as a close approximation
to the truth Every physical determination of a continuous quantity has its probable error and the probable error of
the equation which expresses the conservation of energy is large in comparison with those which express for
example the three laws of motion Nevertheless we often find the scientists treating the law of the conservation of
energy in its extremest applications the most remote from anything we can measure as something it would be
absurd to doubt
133 () almost all the phenomena of bodies here on earth which attract our familiar notice are non-conservative that
is are inexplicable by means of the Law of the Conservation of Energy For they are actions which cannot be
reversed In the language of physics they are irreversible Such for instance is birth growth life () all motion
resisted by friction or by the viscosity of fluids () the conduction of heat combustion capillarity diffusion of fluids
() the thunder bolt the production of high colors by a prism the flow of rivers the formations of bars at their
mouths the wearing of their channels in short substantially everything that ordinary experience reveals
101
Temos desta maneira como jaacute ficou indicado uma tensatildeo entre a quase ubiquidade do
caraacuteter de irreversibilidade nos fenocircmenos naturais e a descriccedilatildeo cientiacutefica que toma o universo
como um sistema reversiacutevel in toto A soluccedilatildeo encontrada por Peirce natildeo eacute uma formulaccedilatildeo
isolada e totalmente diferente do que a ciecircncia de seu tempo vinha produzindo Veremos agora
como as discussotildees que conduziram agrave formulaccedilatildeo da termodinacircmica inspirou as ideias de Peirce
A descriccedilatildeo de fenocircmenos como irreversiacuteveis natildeo era exclusividade de Peirce Sadi Carnot
(1796ndash1832) Rudolf Clausius (1822ndash1888) e Lord Kelvin (1824ndash1907) jaacute se ocupavam com a
tarefa de compreender alguns fenocircmenos caracteriacutesticos da irreversibilidade em particular o
calor que daria origem posteriormente agrave teoria termodinacircmica Nas afirmaccedilotildees de Clausius de
que (1) a energia do universo eacute constante e (2) a entropia do universo tende ao maacuteximo
encontramos uma clara afirmaccedilatildeo de que eacute o aumento de entropia o marcador que determina a
direccedilatildeo da flecha do tempo Como aponta Reynolds
Em uma tentativa de oferecer uma abordagem mecacircnica de tais processos
irreversiacuteveis tal como satildeo descritos pela segunda lei Clausius Maxwell
Boltzmann e outros desenvolveram a teoria cineacutetica dos gases na qual a teoria
da probabilidade e os princiacutepios da mecacircnica satildeo combinados para oferecer uma
abordagem estatiacutestica dos movimentos da miriacuteade de partiacuteculas do gaacutes O
tratamento estatiacutestico foi considerado necessaacuterio principalmente por causa do
vasto nuacutemero de moleacuteculas que se supocircs constituiacutea um gaacutes (Reynolds 2002 p
42)
Para os criadores da teoria cineacutetica dos gases o fato de que os gases tendam a preencher
todo o interior dos recipientes em que satildeo colocados e de que nunca se concentram em apenas
uma parte dos mesmos eacute explicado em funccedilatildeo da lei dos grandes nuacutemeros ou lei das
probabilidades Embora teoricamente possiacutevel a ocorrecircncia da concentraccedilatildeo espontacircnea das
partiacuteculas de um gaacutes nunca eacute verificada isso porque a probabilidade de sua difusatildeo eacute muito maior
do que a de sua concentraccedilatildeo dado o nuacutemero extremamente grande de partiacuteculas que o
102
compotildeem cujas interaccedilotildees satildeo tatildeo numerosas e tatildeo sutis que satildeo tomadas como sendo
determinadas pelo acaso
Quanto a esse tipo de explicaccedilatildeo Peirce declara ldquoPara aquelas explicaccedilotildees que os fiacutesicos
propotildeem para os fenocircmenos irreversiacuteveis por meio da doutrina da probabilidade (doctrine of
chances) aplicada a trilhotildees de moleacuteculas aceito-as integralmente como um dos resultados mais
sofisticados da ciecircnciardquo (CP 7 sect 470 1898)134
Contudo acrescenta mais abaixo no mesmo
paraacutegrafo
Sua explicaccedilatildeo dos fatos eacute em seu conjunto admiraacutevel e fortalecida por uma
variedade de novos fenocircmenos que natildeo eram conhecidos no momento em que a
teoria foi primeiramente proposta mas que se encaixam em seus lugares como as
peccedilas separadas de um mapa de crianccedila uma vez que ela tenha comeccedilado a unir
algumas delas corretamente Essa explicaccedilatildeo demonstra que a accedilatildeo da energia
estaacute disseminada por cada departamento do fenocircmeno fiacutesico Contudo em uma
coisa ela falha a saber em mostrar a ausecircncia de um tipo muito diferente de
accedilatildeo e natildeo falha apenas em mostrar sua ausecircncia mas por suprimir ateacute mesmo
os meios de provar a sua presenccedila (CP 7 sect 470 1898)135
Os fenocircmenos que satildeo ignorados e ateacute mesmo mascarados pelas teorias indicadas satildeo
denominados por Peirce de fenocircmenos natildeo conservativos e possuem duas caracteriacutesticas
principais
a) verifica-se em seu desenrolar uma determinada direccedilatildeo e uma tendecircncia assintoacutetica para
a realizaccedilatildeo de um estado de coisas final
134 As to those explanations which the physicists propose for irreversible phenomena by means of the doctrine of
chances as applied to trillions of molecules I accept them fully as one of the finest achievements of science
135 Its explanation of the facts is altogether admirable and is fortified by a variety of new phenomena which were
not known at the time the theory was first proposed but which fit into their places like the pieces of a boys dissected
map after he has once begun to put a few of them rightly together This explanation demonstrates that the agency of
energy is disseminated through every department of physical phenomena But in one thing it fails namely it fails to
show the absence of a very different kind of agency and it not only fails to show its absence but even supplies the
means of proving its presence
103
b) satildeo irreversiacuteveis (cf CP 7 sect 471 1898)
Temos aqui a afirmaccedilatildeo clara de que tais fenocircmenos se dirigem para um fim Peirce diz que
se teleoloacutegico eacute uma palavra muito forte para descrever esse processo talvez se possa inventar
uma outra palavra finista (finious) para expressar a sua tendecircncia em direccedilatildeo a um estado final
(cf CP 7 sect 471 1898)
Embora Peirce reconheccedila que a fricccedilatildeo seja o exemplo de um fenocircmeno natildeo conservativo
que simula a accedilatildeo conservativa (cf CP 7 sect 472 1898) a utilizaccedilatildeo de (a) e (b) acima como
criteacuterios indica a expectativa de Peirce de que os fenocircmenos que nos interessam neste capiacutetulo
isto eacute os fenocircmenos de crescimento ou evoluccedilatildeo podem ser explicados por meio da assimilaccedilatildeo
dos princiacutepios envolvidos na teoria cineacutetica dos gases Tais fenocircmenos satildeo irreversiacuteveis em
funccedilatildeo da operaccedilatildeo no mundo de um princiacutepio real de acaso Eacute a indeterminaccedilatildeo resultante da
interaccedilatildeo de um vasto nuacutemero de partiacuteculas e de seus movimentos que explicaria a
irreversibilidade constatada em certos fenocircmenos Todavia o proacuteprio tempo natildeo parece receber
este mesmo tipo de tratamento como veremos no capiacutetulo dedicado agrave causalidade final
Tendo visto como a proposta do acaso absoluto como um princiacutepio operante na natureza eacute
uma consequecircncia da leitura que Peirce faz da ciecircncia do seu tempo em particular da teoria
termodinacircmica passaremos agora a investigar as descriccedilotildees e classificaccedilotildees que Peirce oferece
ao fenocircmeno evolutivo Vale lembrar que com o termo bdquoevoluccedilatildeo‟ Peirce se refere aos fenocircmenos
de crescimento que satildeo portanto em seus proacuteprios termos irreversiacuteveis e finistas Os textos que
compotildeem a base desta investigaccedilatildeo satildeo da maturidade de Peirce e frutos de sua preocupaccedilatildeo com
a elaboraccedilatildeo de uma metafiacutesica adequada agrave nossa esperanccedila de tornar possiacutevel o desenvolvimento
da ciecircncia
104
3 OS TREcircS TIPOS DE EVOLUCcedilAtildeO
As ideias evolucionistas de Peirce aparecem de maneira mais pronunciada nos textos que
tratam de suas concepccedilotildees cosmoloacutegicas136
isto eacute em sua obra mais tardia ainda que possamos
encontrar elementos que demonstrem sua preocupaccedilatildeo com o tema desde o iniacutecio de sua carreira
intelectual Haacute relatos do proacuteprio autor que testemunham a impressatildeo marcante que a leitura da
Origem das espeacutecies de Charles Darwin jaacute no ano seguinte a sua publicaccedilatildeo causou em todo o
ciacuterculo de estudiosos de Cambridge em Massachusetts do qual Peirce fazia parte
Ainda que fosse grande admirador e leitor de primeira hora da obra de Darwin Peirce tinha
um olhar mais abrangente sobre os tipos de evoluccedilatildeo encontrados em atuaccedilatildeo no mundo
orgacircnico A evoluccedilatildeo descrita por Darwin seria apenas um dos tipos e natildeo o mais presente em
atuaccedilatildeo nos processos naturais A concepccedilatildeo peirceana prevecirc a existecircncia de trecircs tipos diferentes
de evoluccedilatildeo orgacircnica que podem ser usados como criteacuterios para a classificaccedilatildeo das teorias
propostas sobre o tema Em primeiro lugar observa-se a evoluccedilatildeo de tipo darwiniana na qual a
reproduccedilatildeo eacute indicada como o momento da ocorrecircncia de variaccedilotildees fortuitas que explicam o
desenvolvimento das espeacutecies da monera ao homem Segundo Peirce a evoluccedilatildeo darwiniana
ocorre como consequecircncia da atuaccedilatildeo de dois fatores a hereditariedade que faz a descendecircncia
assemelhar-se aos pais ainda que preserve espaccedilo para a ocorrecircncia de pequenas variaccedilotildees e a
destruiccedilatildeo de tipos ou de raccedilas que natildeo conseguem manter a taxa de natalidade maior do que a
taxa de mortalidade
Em segundo lugar tem-se a teoria de tipo lamarckiano na qual as modificaccedilotildees ocorridas
nas espeacutecies satildeo frutos dos desafios apresentados aos indiviacuteduos e respondidos durante a sua
vida por meio de esforccedilos e exerciacutecios com a intenccedilatildeo de fixar novos haacutebitos Segundo a
interpretaccedilatildeo oferecida por Peirce a teoria darwiniana diferencia-se da teoria lamarckiana na
136 As preocupaccedilotildees de Peirce com as teorias da evoluccedilatildeo bioloacutegicas parecem culminar no texto ldquoEvolucionary
loverdquo de 1893 mas em textos anteriores como ldquoDesign and chancerdquo de 1883-84 ldquoA guess at the riddlerdquo de 1887-88
e ldquoThe arquitecture of the theoriesrdquo de 1891 tambeacutem encontramos importantes indicaccedilotildees sobre o tema
105
medida em que esta atua sobre o indiviacuteduo enquanto aquela atua sobre a espeacutecie podendo dar
lugar ao surgimento de caracteriacutesticas beneacuteficas agrave espeacutecie mas deleteacuterias ao indiviacuteduo Peirce
afirma
Concebendo-se de maneira mais ampla e filosoacutefica a evoluccedilatildeo darwiniana eacute
evoluccedilatildeo pela operaccedilatildeo do acaso e a destruiccedilatildeo dos resultados ruins enquanto a
evoluccedilatildeo lamarckiana eacute evoluccedilatildeo por meio do efeito do haacutebito e do esforccedilo (CP
6 sect 16 1891)137
E em terceiro lugar encontra-se a teoria catacliacutesmica proposta por Clarence King de
acordo com a qual as modificaccedilotildees satildeo o resultado de mudanccedilas bruscas no ambiente Em face
dessas alteraccedilotildees ambientais os organismos aumentam enormemente a quantidade de variaccedilotildees
que ocorrem em suas reproduccedilotildees Assim notam-se alteraccedilotildees que natildeo satildeo imperceptiacuteveis ndash
como a evoluccedilatildeo darwiniana e a lamarckiana supotildeem ndash nem frutos do acaso nem do esforccedilo
individual mas respostas a mudanccedilas ambientais
Esse modo de evoluccedilatildeo por forccedilas externas e por meio da quebra de haacutebitos
parece ser requisitado por alguns dos mais amplos e importantes fatos da
biologia e da paleontologia ao mesmo tempo em que tem sido o principal fator
na evoluccedilatildeo histoacuterica de instituiccedilotildees tanto quanto na de ideias e possivelmente
natildeo pode recusar um lugar proeminente no processo de evoluccedilatildeo do universo em
geral (CP 6 sect 17 1891)138
137 But more broadly and philosophically conceived Darwinian evolution is evolution by the operation of chance
and the destruction of bad results while Lamarckian evolution is evolution by the effect of habit and effort
138 This mode of evolution by external forces and the breaking up of habits seems to be called for by some of the
broadest and most important facts of biology and paleontology while it certainly has been the chief factor in the
historical evolution of institutions as in that of ideas and cannot possibly be refused a very prominent place in the
process of evolution of the universe in general
106
4 OS TREcircS MODELOS DE EXPLICACcedilAtildeO
Um aspecto central e condiccedilatildeo de possibilidade da evoluccedilatildeo eacute a existecircncia de variaccedilotildees no
interior dos fenocircmenos naturais Nota-se na formulaccedilatildeo peirceana o reconhecimento do aspecto
eminentemente mutaacutevel da natureza Natildeo mais circunscrito apenas aos fenocircmenos bioloacutegicos
Peirce procura montar um quadro teoacuterico no qual a evoluccedilatildeo eacute o aspecto marcante de todos os
acontecimentos dos mais variados campos
A descriccedilatildeo dos tipos de evoluccedilatildeo orgacircnica conduziu Peirce a elaborar modelos de
explicaccedilatildeo para o modo como a histoacuteria e particularmente a histoacuteria da ciecircncia se desenvolveu
Nesse campo natildeo seria um erro afirmar que os trecircs tipos de evoluccedilatildeo encontram-se presentes e
concorrem para os resultados alcanccedilados Um exemplo fornecido por Peirce da atuaccedilatildeo da forma
darwiniana na evoluccedilatildeo da ciecircncia pode ser encontrado no modo como as teorias satildeo propostas Eacute
bastante plausiacutevel afirma Peirce que na elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses para a soluccedilatildeo de um
determinado problema os cientistas faccedilam um grande nuacutemero de tentativas mentais de
elaboraccedilatildeo de teorias diversas umas das outras de modo quase imperceptiacutevel ateacute que uma delas
seja vista como francamente impossiacutevel Essa hipoacutetese eacute rejeitada e a energia investigativa volta-
se para as outras formulaccedilotildees ateacute que uma delas se mostre mais apta a fornecer as respostas
almejadas e se torne cada vez mais forte na mente do cientista
A evoluccedilatildeo lamarckiana diz Peirce ldquo() toma a forma de uma modificaccedilatildeo perpeacutetua de
nossa opiniatildeo de modo a tornaacute-la mais representativa dos fatos conhecidos na medida em que
mais e mais observaccedilotildees satildeo coletadasrdquo (CP 1 sect 108 1896)139
Embora esse tipo de evoluccedilatildeo
natildeo explique os grandes avanccedilos da ciecircncia jaacute que implica em uma evoluccedilatildeo bastante gradual eacute
o responsaacutevel pelos avanccedilos que se notam apoacutes deacutecadas de pequenas contribuiccedilotildees individuais O
exemplo indicado por Peirce eacute a evoluccedilatildeo da classificaccedilatildeo dos elementos quiacutemicos que ocorreu
no lapso de tempo entre Jons Jakob Berzelius (1779 ndash 1848) e Dmitri Mendeleev (1834 ndash 1907)
139 () take the form of perpetually modifying our opinion in the effort to make that opinion represent the known
facts as more and more observations came to be collected
107
Os principais progressos cientiacuteficos entretanto ocorrem por saltos afirma Peirce e ldquo() o
impulso para cada salto eacute um novo recurso observacional ou algum novo modo de raciocinar
sobre as observaccedilotildeesrdquo (CP 1 sect 109 1896)140
Como exemplo o autor indica a descoberta dos
micro-organismos por Pasteur que desbancou a perspectiva metafiacutesica de Claude Bernard (1813 -
1878) ao indicar os agentes causadores das doenccedilas unindo novas ideias a novos meacutetodos
observacionais
5 A EVOLUCcedilAtildeO E A COSMOLOGIA
Ao reunir as caracteriacutesticas mais marcantes de cada um dos tipos de evoluccedilatildeo descritos
acima e abstrair suas caracteriacutesticas mais especiacuteficas determinadas em funccedilatildeo do seu campo de
aplicaccedilatildeo Peirce propotildee uma formulaccedilatildeo geral para os modos de evoluccedilatildeo em curso no universo
Nessa perspectiva distingue trecircs tipos de evoluccedilatildeo a evoluccedilatildeo causada por variaccedilatildeo fortuita
denominada de evoluccedilatildeo ticaacutestica ou ticasmo a evoluccedilatildeo que segue uma necessidade jaacute dada
denominada de evoluccedilatildeo anancaacutestica ou anancasmo e a evoluccedilatildeo marcada pela atuaccedilatildeo da
causalidade final denominada de evoluccedilatildeo agapaacutestica ou agapasmo Pode-se ver que agrave evoluccedilatildeo
ticaacutestica de desenvolvimento das ideias corresponde o modelo darwiniano e a evoluccedilatildeo orgacircnica
proposta por Darwin agrave evoluccedilatildeo anancaacutestica corresponde o modelo de rupturas e a evoluccedilatildeo por
cataclismos proposta por Clarence King para o reino orgacircnico e agrave evoluccedilatildeo agapaacutestica
corresponde o modelo lamarckiano e a evoluccedilatildeo lamarckiana
Os trecircs modos de evoluccedilatildeo satildeo compostos pelos mesmos elementos gerais diz o filoacutesofo
Uma geraccedilatildeo passa espontaneamente uma quantidade de bdquotalentos‟ para a geraccedilatildeo seguinte e essa
possui a disposiccedilatildeo de tomaacute-los e desenvolvecirc-los e dessa maneira servir a um propoacutesito geral
Esses elementos mostram-se mais claramente no agapasmo mas tambeacutem estatildeo presentes de
140 () and the impulse for each leap is either some new observational resource or some novel way of reasoning
about the observations
108
maneira diversa no ticasmo e no anancasmo Essas duas formas podem ser vistas como formas
degeneradas de agapasmo afirma o autor (cf CP 6 sect 303 1893)
Embora o ticasmo possa ser considerado uma forma degenerada de agapasmo possui
contudo caracteriacutesticas que lhe satildeo proacuteprias As variaccedilotildees que datildeo lugar ao crescimento soacute o
fazem por meio da distribuiccedilatildeo aleatoacuteria de talentos implicando que os rejeitados cedam o seu
lugar para aqueles que possuam mais disposiccedilatildeo Como exemplo Peirce usa os jogos de azar no
qual os jogadores arruinados deixam na mesa o seu dinheiro para tornar aqueles natildeo arruinados
ainda mais ricos enquanto no agapasmo ldquo() o progresso ocorre a partir da continuidade da
mente em virtude da simpatia positiva existente entre a descendecircncia criadardquo (CP 6 sect 304
1893)141
O anancasmo por sua vez eacute um modo de evoluccedilatildeo claramente afiliado ao agapasmo na
medida em que demonstra uma tendecircncia para o desenvolvimento em direccedilatildeo a uma preordenada
perfeiccedilatildeo Como exemplo Peirce cita a filosofia hegeliana O que a diferencia do agapasmo eacute o
fato de que ldquo() a liberdade viva eacute praticamente omitida de seu meacutetodordquo (CP 6 sect 305 1893)142
Apenas com a introduccedilatildeo de elementos ticaacutesticos dotando o sistema de liberdade vital o
hegelianismo poderia aproximar-se do verdadeiro agapasticismo que afirma Peirce Hegel estava
mirando
O processo de crescimento ou evoluccedilatildeo diraacute o autor deve ser explicado como estando
submetido aos mesmos princiacutepios a que todos os demais fenocircmenos estatildeo Assim faz-se
necessaacuterio encontrar uma lei que tenha na sua aplicaccedilatildeo o motor de seu fortalecimento ou seja
uma lei que possa crescer devido agrave sua proacutepria natureza Esta eacute a lei da mente Como afirma
Peirce ldquo() a uacutenica tendecircncia que pode crescer por sua proacutepria virtude [eacute] a tendecircncia de todas
as coisas adquirirem haacutebitosrdquo (CP 6 sect 100 1902)143
O filoacutesofo afirma que ldquo() a evoluccedilatildeo fiacutesica trabalha com vistas a fins do mesmo modo
141 () advance takes place by virtue of a positive sympathy among the created springing from continuity of mind
142 () living freedom is practically omitted from its method
143 () the only tendency which can grow by its own virtue the tendency of all things to take habits
109
que a accedilatildeo mental trabalha com vistas a fins e desse modo em um aspecto da questatildeo seria
perfeitamente verdadeiro dizer que a causalidade final eacute a uacutenica primaacuteriardquo (CP 6 sect 101 1902)144
Para Peirce ldquoA causa final natildeo determina de que modo particular algo se realizaraacute mas
unicamente que o resultado teraacute certo caraacuteter geralrdquo (CP 1 sect 211 1902)145
Eacute a causa final
acrescenta que atribui existecircncia a um objeto de uma classe Natildeo devemos todavia entender
essa atribuiccedilatildeo como algum tipo de produccedilatildeo miraculosa Eacute o proacuteprio autor que esclarece o
sentido preciso dessa atribuiccedilatildeo ldquoO que eu entendo pela ideia que confere existecircncia aos
membros individuais de uma classe eacute que ela lhes confere o poder de produzir resultados neste
mundo que ela lhes confere equivale dizer existecircncia orgacircnica ou em uma palavra vidardquo (CP
1 sect 220 1902)146
6 O PAPEL DA CAUSALIDADE FINAL NA EVOLUCcedilAtildeO
Peirce conclui que a causa primaacuteria atuante no universo em crescimento deve ser a causa
final mas que contudo eacute inoacutecua sem a atuaccedilatildeo da causa eficiente Como indica Silveira (1985
p 8) ldquo() o que o cosmo evolucionaacuterio exige para se efetivar na organizaccedilatildeo crescente que o
define eacute a presenccedila de duas causas cujo modo de operar eacute reciprocamente inverso a causa final e
a causa eficienterdquo Assim sob a atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um
contiacutenuo crescimento da uniformidade a partir das formas diferenciadas Entretanto como aponta
Peirce as divergecircncias agraves leis estatildeo agindo continuamente a fim de aumentar a variedade do
mundo (cf CP 6 sect 101 1902)
144 () the physical evolution works towards ends in the same way that mental action works towards ends and thus
in one aspect of the matter it would be perfectly true to say that final causation is alone primary 145 Final causation does not determine in what particular way it is to be brought about but only that the result shall
have a certain general character
146 What I mean by the ideas conferring existence upon the individual members of the class is that it confers upon
them the power of working out results in this world that it confers upon them that is to say organic existence or in
one word life
110
A ideia ou causa final atrairia os acontecimentos que se processariam em funccedilatildeo de um ser
in futuro Dizer que o futuro natildeo influencia o presente eacute uma doutrina inaceitaacutevel afirma Peirce
expressando uma ideia caracteriacutestica do pragmatismo americano (cf CP 2 sect 86 1902) A defesa
desta doutrina negaria a possibilidade da existecircncia de causas finais e fins que satildeo
imprescindiacuteveis para a constituiccedilatildeo do cosmo
Na evoluccedilatildeo agapaacutestica mais representativa da atuaccedilatildeo da causalidade final a proacutepria ideia
possui uma forccedila de atraccedilatildeo que conduz o pensamento para si A ideia encontra os veiacuteculos
adequados para sua realizaccedilatildeo Como afirma Peirce
O desenvolvimento agapaacutestico do pensamento eacute a adoccedilatildeo de certas tendecircncias
mentais natildeo totalmente descuidadas como no ticasmo nem completamente
cegas pela mera forccedila das circunstacircncias ou da loacutegica como no anancasmo mas
por uma imediata atraccedilatildeo da proacutepria ideia cuja natureza eacute adivinhada depois que
a mente a possui pelo poder da simpatia isto eacute por virtude da continuidade da
mente () (CP 6 sect 307 1893)147
Quando Peirce se refere ao pensamento este deve ser entendido como ldquo() o princiacutepio
primordial para a compreensatildeo natildeo soacute dos fenocircmenos do espiacuterito mas da totalidade do cosmordquo
(SILVEIRA p 75 1989) Sobre a mateacuteria Peirce afirma que
() em obediecircncia ao princiacutepio ou maacutexima da continuidade segundo o qual
devemos assumir que as coisas satildeo contiacutenuas tanto quanto possamos urge que
devamos supor uma continuidade entre os caracteres da mente e da mateacuteria de
tal forma que a mateacuteria natildeo seria mais do que mente que tendo haacutebitos de tal
modo empedernidos eacute levada a agir com um grau particularmente elevado de
147 The agapastic development of thought is the adoption of certain mental tendencies not altogether heedlessly as
in tychasm nor quite blindly by the mere force of circumstances or of logic as in anancasm but by an immediate
attraction for the idea itself whose nature is divined before the mind possesses it by the power of sympathy that is
by virtue of the continuity of mind ()
111
regularidade mecacircnica ou rotina (CP 6 sect 277 1893)148
Em decorrecircncia da aceitaccedilatildeo da ideia de continuidade entre a mente e a mateacuteria Peirce se
autodenomina em algumas passagens de idealista objetivo Afirma sua diferenccedila com relaccedilatildeo ao
monismo materialista indicando que ldquo(hellip) o primeiro [monista materialista] faz da lei da mente
um resultado especial das leis da mateacuteria enquanto o uacuteltimo [idealista objetivo] faz com que as
leis da mateacuteria sejam um resultado especial da lei da menterdquo (CN 1 p 200 1893)149
O princiacutepio de aquisiccedilatildeo de haacutebitos eacute tomado por Peirce como o motor da constituiccedilatildeo das
leis do cosmo Em outro momento o filoacutesofo diraacute que ldquo(hellip) estaacute claro que nada a natildeo ser o
princiacutepio do haacutebito ele mesmo devido ao crescimento de uma tendecircncia infinitesimal do acaso
em direccedilatildeo agrave aquisiccedilatildeo de haacutebitos eacute a uacutenica ponte que pode ligar o abismo entre o acaso do caos
e o cosmo da ordemrdquo (CP 6 sect 262 1879)150
Segundo Santaella (2004 p 248-9) ldquo() para
Peirce a tendecircncia do universo a adquirir novos haacutebitos tendecircncia esta que tem seu expoente na
mente humana eacute aquilo que permite o contiacutenuo crescimento da potencialidade da ideiardquo
7 EVOLUCcedilAtildeO E AUTOCONTROLE
No longo processo de evoluccedilatildeo do cosmos uma caracteriacutestica ausente em sua origem
tornou-se mais e mais poderosa com a atuaccedilatildeo da lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos o autocontrole Nos
148 () in obedience to the principle or maxim of continuity that we ought to assume things to be continuous as
far as we can it has been urged that we ought to suppose a continuity between the characters of mind and matter so
that matter would be nothing but mind that had such indurated habits as to cause it to act with a peculiarly high
degree of mechanical regularity or routine
149 () the former makes the laws of mind a special result of the laws of matter while the latter makes the laws of
matter a special result of the laws of mind
150 () it is clear that nothing but a principle of habit itself due to the growth by habit of an infinitesimal chance
tendency toward habit-taking is the only bridge that can span the chasm between the chance-medley of chaos and
the cosmos of order and law
112
estaacutegios mais avanccedilados do processo evolutivo o homem torna-se cocriador do universo por
meio da aquisiccedilatildeo de uma conduta cada vez mais autocontrolada Como afirma Peirce ldquoEm seus
estaacutegios mais elevados a evoluccedilatildeo se daacute mais e mais amplamente por meio do autocontrole e
isto daacute ao pragmaticista um tipo de justificaccedilatildeo para fazer o propoacutesito racional ser geral (CP 5 sect
433 1905)151
Natildeo haacute segundo o autor evoluccedilatildeo sem mudanccedila de haacutebitos e tampouco mudanccedila
de haacutebitos sem evoluccedilatildeo O processo de mudanccedila de haacutebito eacute desencadeado segundo Peirce por
trecircs fatores surpresa necessidade e disposiccedilatildeo (readiness) que estatildeo relacionados com os trecircs
modos de evoluccedilatildeo descritos acima A surpresa entretanto natildeo eacute por si soacute suficiente para que a
mudanccedila de haacutebito se efetue eacute preciso o esforccedilo quando haacute a necessidade ou o amor que eacute
auxiliado pela disposiccedilatildeo
A disposiccedilatildeo eacute a marca dos haacutebitos conquistados deliberadamente Peirce diz ldquo[Disposiccedilatildeo]
para agir de um certo modo sob dadas circunstacircncias e quando afetado por um dado motivo eacute um
haacutebito e um haacutebito deliberado ou autocontrolado eacute precisamente uma crenccedilardquo (CP 5 sect 480)152
A evoluccedilatildeo marcada pela necessidade se caracteriza pela negaccedilatildeo da opccedilatildeo de se continuar
com os antigos haacutebitos Eacute por meio de um esforccedilo para vencer a resistecircncia quase sempre
acompanhado por um sentimento de dor segundo Peirce que os novos haacutebitos mais adequados
satildeo estabelecidos Peirce indica que
O sentimento de dor eacute um sintoma de um sentimento que nos repele o
sentimento de prazer eacute o sintoma de um sentimento atrativo Atraccedilatildeo e repulsatildeo
satildeo tipos de accedilatildeo Sentimentos satildeo prazerosos ou dolorosos de acordo com o
tipo de accedilatildeo que eles estimulam Em geral o bom eacute atrativo ndash natildeo para todo
mundo mas para um agente suficiente maduro e o mal eacute aquilo que lhe eacute
repulsivo (CP 5 sect 552 1906)153
151 In its higher stages evolution takes place more and more largely through self-control and this gives the
pragmaticist a sort of justification for making the rational purport to be general
152 [Readiness] to act in a certain way under given circumstances and when actuated by a given motive is a habit
and a deliberate or self-controlled habit is precisely a belief 153 The feeling of pain is a symptom of a feeling which repels us the feeling of pleasure is the symptom of an
attractive feeling Attraction and repulsion are kinds of action Feelings are pleasurable or painful according to the
113
Peirce afirma que a mais elevada qualidade da mente humana consiste em uma grande
disposiccedilatildeo para desenvolver haacutebitos e uma grande disposiccedilatildeo para perdecirc-los sendo que ldquoA mais
plaacutestica de todas as coisas eacute a mente humana ()rdquo (CP 7 sect 515 1898)154
pois apresenta em
maior grau a prontidatildeo tanto para adquirir como para perder haacutebitos No caso humano a vontade
desempenha um importante papel no processo de criaccedilatildeo de novos haacutebitos com a finalidade de
tornar a conduta mais autocontrolada e portanto racional
Embora natildeo tenha desenvolvido uma teoria completa da esteacutetica eacute nessa ciecircncia normativa
que Peirce busca os elementos para identificar a finalidade para qual tende o universo e para a
qual a mente humana estaacute apta a contribuir por meio do desenvolvimento do autocontrole O
objeto de estudo da esteacutetica eacute o admiraacutevel A eacutetica enquanto ciecircncia normativa da conduta visa
desenvolver regras para a accedilatildeo que possam ter como objetivo alcanccedilar o summum bonun em
outras palavras aquilo que possa ser admiraacutevel por si mesmo sem a consideraccedilatildeo de qualquer
outra ordem de motivos O admiraacutevel diraacute Peirce eacute a proacutepria razoabilidade em suas palavras
ldquo() o uacutenico bem uacuteltimo ao qual os fatos praacuteticos dirigem a atenccedilatildeo e ao qual podem se
subordinar eacute o maior desenvolvimento da razoabilidade concreta ()rdquo (CP 5 sect 3 1902)155
Quanto agrave loacutegica como a terceira ciecircncia normativa Peirce afirma que ldquo() pensar eacute uma espeacutecie
de conduta que estaacute largamente sujeita ao autocontrole Em todas as suas caracteriacutesticas () o
autocontrole loacutegico eacute um perfeito espelho do autocontrole eacutetico (CP 5 sect 419 1905)156
Cabe agrave
loacutegica fixar haacutebitos autocontrolados de pensamento que possam mirar a verdade (cf CP 1 sect 191
1903)
Desse modo o homem tem seu lugar identificado no processo evolutivo que deu origem ao
kind of action which they stimulate In general the good is the attractive -- not to everybody but to the sufficiently
matured agent and the evil is the repulsive to the same
154 The most plastic of all things is the human mind ()
155 () the only ultimate good which the practical facts to which it directs attention can subserve is to further the
development of concrete reasonableness ()
156 () thinking is a species of conduct which is largely subject to self-control In all their features hellip logical self-
control is a perfect mirror of ethical self-control
114
cosmos e a si mesmo como uma parte integrante e natildeo distinta tem tambeacutem indicada de modo
claro qual a sua funccedilatildeo como cientista Peirce eacute bastante expliacutecito ao dizer que todo trabalho
intelectual soacute pode ser realizado de forma frutiacutefera quando motivado por um ardente desejo de
obter a verdade
A criaccedilatildeo do universo que natildeo aconteceu durante uma certa semana atarefada
no ano 4004 A C mas que estaacute acontecendo hoje e que nunca estaraacute terminada
eacute o verdadeiro desenvolvimento da Razatildeo Natildeo consigo ver como algueacutem pode
ter um ideal admiraacutevel mais satisfatoacuterio do que o desenvolvimento da Razatildeo
assim entendido A uacutenica coisa cuja admirabilidade natildeo eacute devida a uma razatildeo
ulterior eacute a proacutepria Razatildeo compreendida em toda sua completude tanto quanto
podemos compreendecirc-la Sob esta concepccedilatildeo o ideal da conduta seraacute executar
nossa pequena funccedilatildeo na operaccedilatildeo de criaccedilatildeo dando uma matildeo para tornar o
mundo mais razoaacutevel sempre que como diz a giacuteria cabe a noacutes fazecirc-lo Na
loacutegica observar-se-aacute que o conhecimento eacute razoabilidade e o ideal de razatildeo seraacute
seguir tais meacutetodos para se desenvolver o conhecimento o mais rapidamente ()
(CP 4 sect 615 1903)157
157 The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in the year 4004 BC but is
going on today and never will be done is this very development of Reason I do not see how one can have a more
satisfying ideal of the admirable than the development of Reason so understood The one thing whose admirableness
is not due to an ulterior reason is Reason itself comprehended in all its fullness so far as we can comprehend it
Under this conception the ideal of conduct will be to execute our little function in the operation of the creation by
giving a hand toward rendering the world more reasonable whenever as the slang is it is up to us to do so In
logic it will be observed that knowledge is reasonableness and the ideal of reasoning will be to follow such methods
as must develop knowledge the most speedily ()
115
CAPIacuteTULO 04
A ABDUCcedilAtildeO
Enter your skiff of Musement push off into the lake of thought and leave the breath of
heaven to swell your sail With your eyes open awake to what is about or within you
and open conversation with yourself for such is all meditation It is however not a
conversation in words alone but is illustrated like a lecture with diagrams and with
experiments (CP 6 sect 461 1908)
116
1 ABDUCcedilAtildeO E CRIACcedilAtildeO DE HIPOacuteTESES EXPLICATIVAS
Haacute uma grande discussatildeo entre os inteacuterpretes da obra de Peirce quanto agrave continuidade ou
natildeo continuidade de suas ideias no conjunto da sua longa e intensa produccedilatildeo (ver GOUDGE
(1950) GALLIE (1952) MOORE and ROBIN (1964) WIENER (1964) HOOKWAY 1985
entre outros) Sem querer entrar no meacuterito das respostas apresentadas ao problema de se apurar a
quantidade de sistemas identificaacuteveis em sua obra na literatura especializada parece-nos todavia
que algumas questotildees tratadas pelo filoacutesofo satildeo particularmente presentes no conjunto de suas
ideias e datildeo sentido a muitas de suas teorias que conheceram a luz em momentos distintos de sua
reflexatildeo
A investigaccedilatildeo cientiacutefica eacute uma dessas questotildees Podemos identificar desde os seus
primeiros textos uma preocupaccedilatildeo clara quanto ao alcance legitimidade e modo de efetivaccedilatildeo do
empreendimento cientiacutefico mais especificamente quanto ao que ele chama pelo nome de loacutegica
da ciecircncia Em seus uacuteltimos trabalhos Peirce procura organizar e sistematizar a sua filosofia com
relaccedilatildeo a outras aacutereas do conhecimento o que lhe permite tornar claras a estrutura e as inter-
relaccedilotildees entre as vaacuterias partes do seu sistema filosoacutefico Eacute dessa maneira que identifica a loacutegica
como uma das trecircs ciecircncias normativas ao lado da esteacutetica e da eacutetica que lhe satildeo antecedentes
dependentes tanto da fenomenologia quanto da matemaacutetica Peirce a define como um raciociacutenio
autocontrolado cuja funccedilatildeo eacute promover o crescimento concreto da razoabilidade A loacutegica se
divide por sua vez em trecircs ramos denominados por Peirce de Gramaacutetica Filosoacutefica Loacutegica
Criacutetica e Metodecircutica
A Gramaacutetica Filosoacutefica trata das unidades baacutesicas de todos os raciociacutenios os signos Eacute
neste ramo da loacutegica que veremos Peirce desenvolver os estudos de semioacutetica A loacutegica criacutetica
tem por finalidade tratar das formas dos argumentos ou raciociacutenios Nestes estudos Peirce trata
dos trecircs tipos de inferecircncias a abduccedilatildeo a deduccedilatildeo e a induccedilatildeo A Metodecircutica por sua vez
compreende as teorias sobre a verdade e a investigaccedilatildeo cientiacutefica bem desenvolvidas na sua
abordagem pragmaticista O objetivo deste terceiro ramo da loacutegica eacute moldar a conduta a partir do
uso dos signos de tal forma que um estado de crenccedila estaacutevel seja alcanccedilado
117
Se como aponta Hookway (1985) eacute possiacutevel dar sentido agrave obra peirceana a partir da
perspectiva que a toma como a exploraccedilatildeo e o desenvolvimento de uma imagem bastante geral da
filosofia e seus problemas que se formou desde os seus primeiros escritos vemos na procura de
um meacutetodo adequado para a ciecircncia um objetivo que conduz Peirce no processo de sua reflexatildeo
Aos textos iniciais que discutem o modo adequado de obtenccedilatildeo e limite do conhecimento
seguem-se outros que agraves vezes com deacutecadas de intervalo retomam e desenvolvem aspectos
problemaacuteticos que ficaram anteriormente sem respostas ou que passaram a ser problematizados
com o desenvolvimento de novos instrumentos de anaacutelise Assim os temas centrais dos seus
textos iniciais que datam da deacutecada de 1860 e 70158 satildeo retomados e desenvolvidos em boa parte
de sua produccedilatildeo posterior quer diretamente sob o aspecto de uma nova formulaccedilatildeo e resposta
aos mesmos problemas quer indiretamente com a elaboraccedilatildeo de novas teorias implicadas por
essas mesmas concepccedilotildees
Pensar para Peirce eacute uma atividade que consiste em manipular signos e crer eacute
essencialmente possuir certas disposiccedilotildees para agir Essas duas concepccedilotildees satildeo fundamentais
para se compreender a sua filosofia Ambas as concepccedilotildees estatildeo localizadas no niacutevel mais
elementar de suas preocupaccedilotildees e teorias que satildeo construiacutedas como uma resposta e terapia agrave
abordagem equivocada legada pelo cartesianismo Se considerarmos que a filosofia de Peirce eacute
em grande parte uma tentativa de produccedilatildeo de um meacutetodo adequado agrave investigaccedilatildeo da verdade e
se atentarmos para o fato de que eacute com o pragmatismo que Peirce acredita ter oferecido sua
melhor resposta entatildeo percebemos a importacircncia capital que sua noccedilatildeo de crenccedila159 assume pois
eacute o proacuteprio filoacutesofo que afirma ldquoA partir desta definiccedilatildeo o pragmatismo eacute dificilmente mais do
que um corolaacuteriordquo (CP 5 sect 12 1906)160
A investigaccedilatildeo desta maneira torna-se um processo que permite a superaccedilatildeo de um estado
158 Nesses textos jaacute se encontra ainda que em germe as ideias de verdade como concordacircncia de investigadores a
longo prazo que o incognosciacutevel natildeo faz sentido que a induccedilatildeo eacute uma inferecircncia e um caminho para a verdade que
todo pensamento se realiza por meio de signos e de que eacute possiacutevel construir uma teoria de categorias melhor do que
as existentes Esses temas estaratildeo presentes em grande medida em toda a produccedilatildeo posterior de Peirce 159
Emprestada do filoacutesofo e psicoacutelogo escocecircs Alexander Bain (1818 ndash 1903) (cf CP 5 sect 12 1906) 160
From this definition pragmatism is scarce more than a corollary
118
de duacutevida autecircntica161
que paralisa a accedilatildeo por meio do estabelecimento de crenccedilas estaacuteveis e
verdadeiras Podemos dizer que A duacutevida que p se e somente se A eacute levado a acreditar em p e
em alguma outra proposiccedilatildeo q e A estaacute consciente de uma inconsistecircncia entre p e q Desde que
ldquoA acredita que prdquo significa que A tem disposiccedilotildees para agir de determinadas maneiras segue-se
que duvidar que p envolve a consciecircncia da parte de A de que possui a disposiccedilatildeo a agir de modos
incompatiacuteveis em uma dada situaccedilatildeo O que implica em uma suspensatildeo da accedilatildeo isto eacute uma
privaccedilatildeo de um haacutebito (cf MEYERS 1967 p 3) Para cumprir tal tarefa faz-se necessaacuteria a
utilizaccedilatildeo de um meacutetodo que permita realmente fixar tais crenccedilas (cf W 3 p 344 CP 5 sect 374
1877 CP 6 sect 496 1906) A essecircncia das crenccedilas obtidas por este meacutetodo eacute o estabelecimento de
um haacutebito cujos diferentes tipos se distinguem pelos diferentes modos de accedilatildeo que eles
produzem Peirce afirma ldquo() uma crenccedila genuiacutena ou opiniatildeo eacute alguma coisa com a qual um
homem estaacute preparado para agir e eacute por consequecircncia em um sentido geral um haacutebitordquo (CP 2 sect
148 1902)162
Com exceccedilatildeo de algumas poucas passagens nas quais eacute caracterizado como uma accedilatildeo do
tipo quasi-reflexa (cf CP 5 sect 373 1877 CP 5 sect 394 1877 CP 1 sect390 1890 CP 2 sect 711
1883) o haacutebito eacute apresentado como uma disposiccedilatildeo para a accedilatildeo caracterizada como
autocontrolada ou deliberada Como representante da terceiridade ele eacute indeterminado geral e
inteligente (cf CP 5 sect 400 1877 CP 6 sectsect 20-1 1891) natildeo podendo ser reduzido a um
processo meramente mecacircnico Sua indeterminaccedilatildeo eacute marca dos processos que se abrem para o
futuro
161 Peirce reprova a duacutevida cartesiana por dois motivos principais por ser fingida e por ser radical A atribuiccedilatildeo
desses dois qualificativos agrave duacutevida ignora segundo o autor tanto a natureza do sujeito que conhece quanto a
natureza do proacuteprio processo cognitivo A duacutevida eacute um estado causado pela surpresa de um evento inesperado desta
maneira sua origem eacute sempre exterior ao sujeito que a experiencia natildeo podendo ser criada a partir de um ato de
vontade Por outro lado ela natildeo pode ser radical visto que eacute da natureza do conhecimento repousar sobre um
conhecimento anterior (cf CP 5 sect 311 1868) 162
() a belief or opinion and a genuine belief or opinion is something on which a man is prepared to act and is
therefore in a general sense a habit
119
Pois todo haacutebito tem ou eacute uma lei geral Tudo o que eacute verdadeiramente geral
refere ao futuro indefinido pois o passado conteacutem unicamente uma certa
coleccedilatildeo de casos que ocorreram O passado eacute fato atual Mas o geral (fato) natildeo
pode ser completamente realizado Eacute uma potencialidade e seu modo de ser
eacute esse in futuro O futuro eacute potencial natildeo atual (CP 2 sect 148 1902)163
Toda crenccedila firmemente adotada eacute para seu possuidor algo de indubitaacutevel ainda que muitas
vezes inconsciente que dispensa qualquer tipo de justificaccedilatildeo racional Contudo faz-se
necessaacuterio encontrar uma maneira de selecionar as crenccedilas verdadeiras dentre aquelas que natildeo
passam de prejulgamentos Se por um lado o caraacuteter impositivo das crenccedilas se manifesta de
maneira clara por outro na medida em que eacute objetiva pode comportar a criacutetica e a deliberaccedilatildeo
desse modo o autocontrole
Como afirma Peirce ldquo() devemos comeccedilar nossa investigaccedilatildeo por aquilo cuja existecircncia eacute
indubitaacutevel ()rdquo (CP 5 sect 267 1868)164
Com esta frase jaacute de 1868 o autor indica uma
caracteriacutestica que marcaraacute toda a sua obra a adoccedilatildeo do senso comum criacutetico O investigador
principia pelo que toma como indubitaacutevel suas proacuteprias crenccedilas mas aos poucos passa a
questionaacute-las quanto ao seu conteuacutedo e assumir um aspecto mais normativo ao se preocupar com
aquilo sobre o que devemos nos interrogar Nas palavras de Claudine Tiercelin (1993 p 88) ldquoSe
as crenccedilas satildeo portanto intrinsecamente confiaacuteveis como descriccedilatildeo de nossa experiecircncia elas
podem ser faliacuteveis como descriccedilatildeo da realidaderdquo
O problema de se determinar a origem das premissas de qualquer raciociacutenio conduziu as
investigaccedilotildees de Peirce sobre esse toacutepico Segundo o filoacutesofo os juiacutezos perceptivos satildeo () as
primeiras premissas de todos os nossos raciociacutenios e natildeo podem ser colocados em questatildeo (CP
5 sect 116)165
uma vez que estatildeo totalmente aleacutem da possibilidade de controle O percepto como
163 For every habit has or is a general law Whatever is truly general refers to the indefinite future for the past
contains only a certain collection of such cases that have occurred The past is actual fact But a general (fact) cannot
be fully realized It is a potentiality and its mode of being is esse in futuro The future is potential not actual 164
() we must commence our inquiry must be one whose existence is indubitable () 165
() the first premisses of all our reasonings and that they cannot be called in question
120
Peirce o designa eacute uma instacircncia do processo cognitivo que se caracteriza pela impossibilidade
de controle O autor pergunta entatildeo onde tem iniacutecio a possibilidade de controlar o processo de
cogniccedilatildeo e responde da seguinte maneira
Certamente natildeo antes de o percepto estar formado Mesmo depois que ele se
forma existe uma operaccedilatildeo que me parece ser bastante incontrolaacutevel Eacute aquela
de julgar o que eacute que a pessoa percebe Um juiacutezo eacute um ato de formaccedilatildeo de uma
proposiccedilatildeo mental combinada com sua adoccedilatildeo ou um ato de afirmaacute-la Um
percepto por outro lado eacute uma imagem ou um quadro moacutevel ou outra figuraccedilatildeo
(CP 5 sect 115 1903)166
Temos nesta passagem a tematizaccedilatildeo do momento em que se daacute a relaccedilatildeo entre o sujeito
que investiga e o objeto investigado Eacute nessa relaccedilatildeo que devemos encontrar os elementos para
justificar a crenccedila peirceana na possibilidade de uma ciecircncia Eacute importante notar que o juiacutezo
perceptivo base para qualquer raciociacutenio eacute por um lado o resultado de um processo que natildeo
pode ser controlado jaacute que o objeto eacute real e resiste agrave vontade humana e ou ao menos esta eacute uma
boa hipoacutetese para explicar o modo que tais objetos nos aparecem na experiecircncia por outro que eacute
fruto de uma interpretaccedilatildeo Isto eacute se por um lado o juiacutezo perceptivo eacute formado a partir da reaccedilatildeo
da secundidade do mundo sobre noacutes ele comporta tambeacutem aspectos de terceiridade na medida
em que eacute fruto de uma interpretaccedilatildeo Parece-nos plausiacutevel pensar o juiacutezo perceptivo como livre o
suficiente para ser o resultado de uma adivinhaccedilatildeo mas contido dentro dos limites impostos pela
realidade do objeto O erro deste modo adquire o caraacuteter de uma possibilidade sempre presente
nesse processo
Como aponta Tiercelin verifica-se uma tensatildeo entre a filosofia peirceana e a filosofia do
senso comum escocesa a qual Peirce afirma estar na base de seu pragmatismo (cf TIERCELIN
166 Certainly not before the percept is formed Even after the percept is formed there is an operation which seems to
me to be quite uncontrollable It is that of judging what it is that the person perceives A judgment is an act of
formation of a mental proposition combined with an adoption of it or act of assent to it A percept on the other hand
is an image or moving picture or other exhibition
121
1993 p 88) As crenccedilas primeiras embora sejam indubitaacuteveis natildeo satildeo infaliacuteveis Elas
comportam a possibilidade de criacutetica que deve ser exercitada pelo filoacutesofo pragmaacutetico Para
penetrar nos poacuterticos da filosofia Peirce indica o meacutetodo cientiacutefico como o uacutenico caminho
efetivo (ver REILLY 1970)
Em um texto de 1877 ldquoA fixaccedilatildeo da crenccedilardquo Peirce faz uma descriccedilatildeo dos principais
meacutetodos identificaacuteveis utilizados para a obtenccedilatildeo do conhecimento O primeiro meacutetodo por ele
descrito eacute denominado de meacutetodo da tenacidade caracterizado como o mais econocircmico crer
naquilo que jaacute se crecirc Sua ineficaacutecia mostra que o homem possui grande dificuldade em manter
crenccedilas que estatildeo em desacordo com a realidade Da mesma maneira que eacute incapaz de fingir uma
duacutevida por um longo periacuteodo manter crenccedilas equivocadas ainda que sua substituiccedilatildeo possa
muitas vezes apenas criar uma cadeia de falsas crenccedilas que cedo ou tarde conduziratildeo o homem
agrave busca da tranquilidade propiciada somente pela detenccedilatildeo da crenccedila verdadeira As crenccedilas
assim mantidas satildeo claramente irracionais mas a principal criacutetica endereccedilada pelo autor natildeo
incide particularmente sobre esse caraacuteter mas sim sobre o fato de que tais crenccedilas acabam por
criar tensatildeo social em funccedilatildeo do choque que crenccedilas diferentes acabam por provocar e falhar na
tarefa de fixaacute-las Esse meacutetodo pode apenas atuar sobre a mente individual e temporariamente (cf
CP 5 sect 377 1877)
O segundo meacutetodo eacute denominado de meacutetodo da autoridade e distingue-se do primeiro por
levar em consideraccedilatildeo o impulso social Nele uma instituiccedilatildeo o Estado ou a Igreja por exemplo
toma para si o direito de doutrinar e defender certas crenccedilas de todos os perigos evitando a todo
custo o surgimento da duacutevida Embora seja um meacutetodo eficaz - a histoacuteria tem nos dado esta liccedilatildeo
afirma Peirce - falharaacute visto que eacute impossiacutevel gerenciar perfeitamente a opiniatildeo puacuteblica Cedo ou
tarde surgiratildeo indiviacuteduos que reclamaratildeo novas maneiras de estabelecer crenccedilas e uma vez com a
posse de novos meacutetodos voltar-se-atildeo contra a instituiccedilatildeo e terminaratildeo por sobrepujaacute-la Natildeo
basta um meacutetodo que apenas indique a maneira de fixar as crenccedilas sem determinar os conteuacutedos
das mesmas (cf CP 5 sect 382 1877)
O terceiro meacutetodo eacute aquele que assume como verdadeiro o que eacute agradaacutevel agrave razatildeo diz
122
Peirce diminuindo a importacircncia dos fatos Eacute o meacutetodo a priori Embora seja mais respeitaacutevel
que os outros dois na opiniatildeo de Peirce falha gravemente ao transformar a investigaccedilatildeo em uma
questatildeo de gosto (cf CP 5 sect 382 1877)
Esses trecircs meacutetodos Peirce reconhece possuem qualidades positivas O meacutetodo da
tenacidade demonstra grande forccedila simplicidade e caraacuteter direto o meacutetodo da autoridade ao
governar as massas humanas garante-lhes a paz o meacutetodo a priori por sua vez eacute confortaacutevel
(cf CP 5 sect 386 1877) Entretanto sejam quais forem suas qualidades os trecircs meacutetodos
terminam por se autodestruir pois o que eles produzem afirma Peirce natildeo satildeo crenccedilas mas
estados mentais diversos A verdadeira crenccedila natildeo pode ser fingida imposta ou desconsiderar a
experiecircncia natildeo ao menos para o homem de espiacuterito sadio (cf W 3 p 253 1877)
Diante do fracasso dos trecircs meacutetodos em cumprir a tarefa de fixar as crenccedilas167
cabe a
Peirce mostrar como o quarto meacutetodo denominado de meacutetodo cientiacutefico consegue estabelecer
crenccedilas estaacuteveis Como afirma o autor () eacute necessaacuterio encontrar um meacutetodo pelo qual nossas
crenccedilas natildeo sejam determinadas por nada de humano mas por alguma permanecircncia exterior ndash por
alguma coisa sobre a qual nosso pensamento natildeo tenha nenhum efeito (CP 5 sect 384 1877)168
e
acrescenta como nota em 1903 ldquoMas que por outro lado tende incessantemente a influenciar o
pensamento ou em outras palavras por algo Realrdquo (CP 5 notas 1877)169
O meacutetodo cientiacutefico eacute o uacutenico meacutetodo que considera com a devida atenccedilatildeo a experiecircncia
estabelece um diaacutelogo com a natureza o mundo real exterior ao homem e que pode pelo
processo de investigaccedilatildeo empiacuterica responder agraves duacutevidas e corrigir as crenccedilas dos cientistas A
vantagem determinante deste meacutetodo eacute a de que ele conduz os investigadores pelo processo de
investigaccedilatildeo puacuteblica agraves mesmas conclusotildees sobre qualquer questatildeo investigada Ele se
fundamenta sobre a realidade do universo e sobre o seu aspecto puacuteblico Eacute a secundidade reativa
refrataacuteria ao que dela possamos pensar a acircncora desse meacutetodo Com relaccedilatildeo aos pressupostos
167 O principal defeito dos trecircs meacutetodos consiste em sustentar a crenccedila com base na vontade humana
168 () it is necessary that a method should be found by which our beliefs may be determined by nothing human but
by some external permanency -- by something upon which our thinking has no effect 169
But which on the other hand unceasingly tends to influence thought or in other words by something Real
123
desse meacutetodo Peirce afirma que
Existem coisas Reais cujas caracteriacutesticas satildeo inteiramente independentes das
nossas opiniotildees sobre elas tais Reais afetam nossos sentidos de acordo com leis
regulares e ainda que nossas sensaccedilotildees sejam tatildeo diferentes quanto sejam
nossas relaccedilotildees com os objetos todavia fazendo uso das leis de percepccedilatildeo
podemos afirmar por meio do raciociacutenio como as coisas real e verdadeiramente
satildeo e qualquer homem desde que tenha experiecircncia suficiente e tenha refletido
o suficiente sobre isto seraacute conduzido agrave uacutenica conclusatildeo Verdadeira (CP 5 sect
384 1877)170
A grande vantagem do meacutetodo cientiacutefico reside no fato de que diferentemente dos
demais meacutetodos possui a capacidade de autocorreccedilatildeo Eacute nesta caracteriacutestica que Peirce deposita
suas mais altas esperanccedilas quanto agrave possibilidade de realizaccedilatildeo da ciecircncia Estaacute claro tambeacutem
que o preccedilo a se pagar para a efetividade do meacutetodo eacute bastante elevado Peirce se compromete
com uma hipoacutetese de base qual seja a de que existe uma realidade externa ao homem e que lhe eacute
resistente mas que ao mesmo tempo se mostra inteiramente na experiecircncia O incognosciacutevel
natildeo eacute uma alternativa viaacutevel pois o verdadeiro cientista tem como seu mais ardente desejo o
conhecimento da verdade e deve deste modo afastar como destituiacutedo de sentido qualquer
elemento que possa bloquear o caminho da investigaccedilatildeo Eacute fundamental para o bom
funcionamento do meacutetodo que os fatos investigados admitam ldquo() racionalizaccedilatildeo e
racionalizaccedilatildeo por noacutesrdquo (CP 7 sect 219 c 1901)171
Peirce afirma ldquoQue eles [os fatos] devam ser
[racionalizados por noacutes] pela mesma razatildeo que um general que tenha que capturar uma posiccedilatildeo
ou ver seu paiacutes arruinado deve insistir na hipoacutetese de que haacute algum modo pelo qual ele possa e
deva capturaacute-lardquo (CP 7 sect 219 c 1901)172
Esta eacute a justificaccedilatildeo para o lanccedilamento de uma
170 There are Real things whose characters are entirely independent of our opinions about them those Reals affect
our senses according to regular laws and though our sensations are as different as are our relations to the objects
yet by taking advantage of the laws of perception we can ascertain by reasoning how things really and truly are and
any man if he have sufficient experience and he reason enough about it will be led to the one True conclusion 171
() rationalization and of rationalization by us 172
That we must hope they do for the same reason that a general who has to capture a position or see his country
124
hipoacutetese seja qual for Eacute uma situaccedilatildeo extrema que exige uma aposta na sua possiacutevel soluccedilatildeo A
aposta na possibilidade da ciecircncia eacute feita radicalmente por Peirce que passaraacute seus anos
produtivos em busca de uma justificaccedilatildeo para a mesma bem como na tarefa de esclarecer os
mecanismos pelos quais a ciecircncia se constroacutei A defesa da hipoacutetese realista soacute pode ser
compreendida nos temos peirceanos como uma possibilidade de manter o projeto da ciecircncia
realizaacutevel
Embora seja um opositor radical a algumas das ideias de Descartes notadamente agrave ideia de
intuiccedilatildeo natildeo estaria longe da verdade dizer que Peirce retoma a sua agenda filosoacutefica ou ao
menos o seu moacutebil constituinte qual seja o de propor uma soluccedilatildeo para o problema do
conhecimento e o de expandir o horizonte da inteligibilidade tanto quanto possiacutevel173 Do mesmo
modo que Descartes seraacute no meacutetodo de obtenccedilatildeo e validaccedilatildeo do conhecimento que Peirce
buscaraacute sua resposta Agrave elaboraccedilatildeo deste meacutetodo que inicialmente eacute batizado de pragmatismo e
posteriormente de pragmaticismo Peirce dedicaraacute vaacuterios anos de sua vida Diferentemente de
outros metodoacutelogos Peirce entende que uma parte do seu meacutetodo deve ser dedicada agrave explicaccedilatildeo
de como as novas teorias ou fazendo uso de seu termo hipoacuteteses satildeo elaboradas O coraccedilatildeo desta
teoria eacute uma reflexatildeo sobre o processo de criaccedilatildeo cientiacutefica condensada no tipo de raciociacutenio que
Peirce denominou de abduccedilatildeo174
No plano da evoluccedilatildeo cosmoloacutegica o haacutebito ou a lei inclina a um desenvolvimento do
universo que tem como meta tornaacute-lo mais razoaacutevel Para bem compreendermos esse
desenvolvimento faz-se necessaacuteria uma incursatildeo na teoria das inferecircncias que Peirce
desenvolveu em particular no tipo de inferecircncia denominado de abduccedilatildeo ou retroduccedilatildeo ou
ainda hipoacutetese pois ldquo() um processo inferencial envolve a formaccedilatildeo de um haacutebitordquo (CP 2 sect
148 1902)175
Nos trabalhos produzidos entre 1865 e 1901 vemos Peirce aprofundar e desenvolver suas
ruined must go on the hypothesis that there is some way in which he can and shall capture it 173
Quanto a este aspecto na obra cartesiana ver PATY 1998 174
Ver IBRI 1994 ADERSON 1986 E 1995 175
() the inferential process involves the formation of a habit
125
anaacutelises e concepccedilotildees do processo de produccedilatildeo de inferecircncias culminando com a distinccedilatildeo de
trecircs tipos de raciociacutenios que se integram e concorrem para a realizaccedilatildeo do conhecer a induccedilatildeo a
deduccedilatildeo e a abduccedilatildeo
A anaacutelise do raciociacutenio abdutivo em sua obra eacute segundo nossa apreciaccedilatildeo fundamental em
muitos sentidos De iniacutecio a importacircncia de sua investigaccedilatildeo se justifica pelos possiacuteveis
esclarecimentos que possa trazer agrave proacutepria tarefa de compreensatildeo das ideias peirceanas no
interior das quais ocupa um lugar central Ao mesmo tempo se concordamos com Peirce essa
teoria parece iluminar aspectos pouco considerados do processo de criaccedilatildeo cientiacutefica quer seja
como insight ou como inferecircncia pois estaria na base e seria o elemento desencadeador da
formaccedilatildeo de qualquer juiacutezo sinteacutetico Acrescenta-se a isso a hipoacutetese central a esta investigaccedilatildeo
de que o modo como a abduccedilatildeo atua e a consideraccedilatildeo de suas implicaccedilotildees seraacute de grande auxiacutelio
para compreender com maior clareza as propriedades do continuum e de que maneira podemos
perceber a atuaccedilatildeo da causalidade final no momento da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese
Em contraste com a avaliaccedilatildeo positiva expressa nas expectativas acima elencadas alguns
comentadores de sua obra acusam-no de haver no tratamento dessa questatildeo confundido loacutegica
com psicologia afirmando que a abduccedilatildeo eacute por natureza um processo refrataacuterio agrave anaacutelise loacutegica
que seria fundamentalmente intuicionista como aponta Roth (1988) Uma avaliaccedilatildeo da validade
dessa criacutetica deve atentar para o desenvolvimento da abordagem que Peirce realiza da abduccedilatildeo
Para Peirce o indiviacuteduo natildeo constitui a unidade para a produccedilatildeo do conhecimento esta eacute
encontrada na comunidade Os juiacutezos perceptivos devem ser submetidos agrave criacutetica da comunidade
de investigadores para que as idiossincrasias sejam eliminadas e em um longo prazo possam
aproximar-se da verdade
A compreensatildeo dessa relaccedilatildeo coloca em pauta a investigaccedilatildeo do entrecruzamento da
epistemologia falibilista de Peirce e de sua ontologia indeterminista que constituem as condiccedilotildees
para o processo semioacutetico isto equivale dizer para o pensamento A relaccedilatildeo entre a abduccedilatildeo e os
juiacutezos perceptivos eacute enunciada da seguinte maneira
126
() a inferecircncia abdutiva transforma-se gradativamente no juiacutezo perceptivo sem
qualquer linha niacutetida de demarcaccedilatildeo entre eles ou em outras palavras nossas
primeiras premissas os juiacutezos perceptivos devem ser consideradas como um
caso extremo das inferecircncias abdutivas das quais diferem por estarem
absolutamente aleacutem da criacutetica (CP 5 sect 181 1903)176
Conforme ressalta Santaella (2004) a interpretaccedilatildeo da abduccedilatildeo tem sido um toacutepico
polecircmico entre os comentadores da obra de Peirce O que distingue esse processo inferencial eacute o
fato de ser ao mesmo tempo um processo instintivo e ter a natureza de uma inferecircncia loacutegica Eacute
por meio da abduccedilatildeo Peirce deixa claro que as novidades satildeo introduzidas no processo evolutivo
tanto da natureza em geral quanto e no conhecimento humano A dificuldade do tratamento e
compreensatildeo desse conceito fundamental eacute bem sintetizada por Santaella ao se perguntar ldquo() se
as hipoacuteteses satildeo frutos da maravilhosa faculdade imaginativa humana como podem elas se
acomodar dentro da forma de uma inferecircncia loacutegicardquo (SANTAELLA 2004 p 109)
A intuiccedilatildeo entendida como flash de criatividade eacute a base do processo de abduccedilatildeo que teraacute
como finalidade a produccedilatildeo de uma nova ideia ou forma que poderaacute dar lugar a uma inclinaccedilatildeo
geral ou haacutebito Em uma leitura raacutepida eacute tentador compreender esse flash como sendo de
natureza intuitiva semelhante agrave cartesiana Nada mais equivocado se levarmos em conta que a
principal criacutetica que Peirce endereccedila a Descartes refere-se justamente ao conceito de intuiccedilatildeo Se
natildeo haacute a possibilidade de uma cogniccedilatildeo sem a existecircncia de uma cogniccedilatildeo que a preceda como
entender o surgimento da novidade que a abduccedilatildeo potildee em cena
A soluccedilatildeo parece derivar do caraacuteter habitual do instinto Peirce afirma que todo instinto tem
o caraacuteter de um haacutebito e dessa forma distingue a accedilatildeo por ele produzida da reaccedilatildeo bruta e cega
Satildeo derivados da proacutepria evoluccedilatildeo a que estatildeo submetidos o cosmo e o homem como uma parte
176() abductive inference shades into perceptual judgment without any sharp line of demarcation between them or
in other words our first premisses the perceptual judgments are to be regarded as an extreme case of abductive
inferences from which they differ in being absolutely beyond criticism
127
integrante Santaella aponta que ldquo() do instinto peirceano germina a abduccedilatildeo fonte de todas as
iluminaccedilotildees e criaccedilotildees humanas mas tambeacutem o mais fraacutegil de todos os raciociacutenios o mais
faliacutevel sem nenhum poder de comprovaccedilatildeo necessitando da deduccedilatildeo e da induccedilatildeo para que
possa ter qualquer valor de verdaderdquo (SANTAELLA 2004 p 113-14)
A discussatildeo realizada sobre o raciociacutenio abdutivo jaacute foi identificada como uma das grandes
contribuiccedilotildees de Peirce para o debate filosoacutefico Jaakko Hintikka (cf 1999 p 91) afirma que se a
grandeza de um filoacutesofo eacute medida pelas contribuiccedilotildees inovadoras que fornece aos problemas
tradicionais da filosofia Peirce seria nesse sentido um dos maiores filoacutesofos na medida em que
cria um novo problema o da abduccedilatildeo Cabe ressaltar que em diversos momentos Peirce deixa
claro que o raciociacutenio abdutivo deteacutem exclusividade heuriacutestica em sua filosofia ldquoAbduccedilatildeo eacute o
processo de formaccedilatildeo de uma hipoacutetese explanatoacuteria Eacute a uacutenica operaccedilatildeo loacutegica que apresenta uma
ideia nova pois a induccedilatildeo nada faz aleacutem de determinar um valor e a deduccedilatildeo meramente
desenvolve as consequecircncias necessaacuterias de uma hipoacutetese purardquo (CP 5 sect 171 1903)177
Conforme ressalta Gallie (1952) a compreensatildeo do estatuto que Peirce daacute agrave abduccedilatildeo como
um processo inferencial eacute bastante facilitado se levamos em conta o significado que o filoacutesofo
atribui agrave noccedilatildeo de inferecircncia Peirce natildeo adota a concepccedilatildeo filosoacutefica tradicional de inferecircncia
como um processo mental Um argumento natildeo possui a funccedilatildeo de retratar para outro o que se
passou na mente do argumentador mas de provocar a concordacircncia do primeiro com o uacuteltimo
quanto ao conteuacutedo das premissas e conclusatildeo mobilizadas Ele emprega afirma Gallie ldquoUma
forma de falar cujo arranjo eacute tal que mostra que bdquose a proposiccedilatildeo-premissa for verdadeira entatildeo a
proposiccedilatildeo-conclusatildeo necessaacuteria ou naturalmente seraacute verdadeira‟rdquo (GALLIE 1952 p 96-7) O
argumento desta maneira tem a funccedilatildeo de mostrar ou lembrar o ouvinte deste fato a maneira
entretanto pela qual ele alcanccedila este resultado eacute algo totalmente irrelevante acrescenta Gallie
Peirce afirma em concordacircncia com esta interpretaccedilatildeo que ldquoDeve haver em funccedilatildeo de tudo que
noacutes sabemos ou nos importamos centenas de maneiras de pensar na passagem das premissas agraves
177 Abduction is the process of forming an explanatory hypothesis It is the only logical operation which introduces
any new idea for induction does nothing but determine a value and deduction merely evolves the necessary
consequences of a pure hypothesis
128
conclusotildeesrdquo (CP 2 sect 55 1902)178
e ainda ldquoInferecircncia () deve ser para natildeo dizer que
provavelmente eacute de uma construccedilatildeo inteiramente diferente do processo de pensamentordquo (CP 2 sect
54 1902)179
Gallie sintetiza de modo claro a relaccedilatildeo que se estabelece no pensamento peirceano entre
inferecircncia e investigaccedilatildeo ele diz
Em suma da mesma maneira que Peirce usa a palavra investigaccedilatildeo para
indicar natildeo algum processo mental descritiacutevel mas o fato que algumas de
nossas atividades podem ser guiadas por signos e siacutembolos que admitem
criticismo loacutegico da mesma maneira ele usa a palavra inferecircncia para indicar
natildeo alguma passagem da mente sentida (ou postulada) mas o fato que
usualmente quando fazemos uma asserccedilatildeo estamos na posiccedilatildeo de dar uma
razatildeo para ela (GALLIE 1952 p 96)
De acordo com esta concepccedilatildeo de inferecircncia natildeo eacute muito difiacutecil entender como e porque a
abduccedilatildeo ou o processo de elaboraccedilatildeo de hipoacuteteses eacute considerado por Peirce como uma
inferecircncia loacutegica De fato como diz Gallie seria muito ldquoesquisitordquo ou ldquocompletamente inuacutetilrdquo
uma hipoacutetese para a qual natildeo pudeacutessemos fornecer qualquer tipo de razotildees que a justificassem
2 OS TREcircS TIPOS DE RACIOCIacuteNIO
Os trecircs tipos de inferecircncia considerados por Peirce satildeo a deduccedilatildeo a induccedilatildeo e da mesma
maneira a abduccedilatildeo Em um texto de 1903 satildeo caracterizados da seguinte maneira ressaltando-se
178 There may for aught we know or care be a hundred ways of thinking in passing from such a premiss to such a
conclusion 179
Still the inference or argument so far as logic can take any cognizance of it may be not to say probably is of an
entirely different construction from the thinking process
129
novamente que a uacutenica origem das ideias novas eacute o raciociacutenio abdutivo
A deduccedilatildeo eacute o uacutenico raciociacutenio necessaacuterio Ela eacute aquilo que constitui o
raciociacutenio da matemaacutetica Ela principia de uma hipoacutetese cuja verdade ou
falsidade nada tem a ver com o raciociacutenio oacutebvio eacute que suas conclusotildees satildeo
igualmente ideais () A induccedilatildeo eacute o teste experimental de uma teoria Sua
justificaccedilatildeo eacute que embora a conclusatildeo em qualquer estaacutegio da investigaccedilatildeo
possa ser mais ou menos errocircnea a aplicaccedilatildeo continuada do mesmo meacutetodo
deve corrigir o erro A uacutenica coisa que a induccedilatildeo perfaz eacute determinar o valor de
uma quantidade Ela parte de uma teoria e avalia seu grau de concordacircncia com
os fatos Ela nunca pode dar origem a qualquer ideia que seja Nem o pode fazer
a deduccedilatildeo Todas as ideias da ciecircncia surgem atraveacutes da abduccedilatildeo (CP 5 sect 145
1903)180
No texto Deduccedilatildeo induccedilatildeo e hipoacutetese de 1878 Peirce oferece por meio de exemplos uma
descriccedilatildeo clara do que ele entende por cada um dos tipos de raciociacutenio desse modo temos os
seguintes silogismos
Deduccedilatildeo
Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos
Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola
Resultado Estes feijotildees satildeo brancos
180 Deduction is the only necessary reasoning It is the reasoning of mathematics It starts from a hypothesis the truth
or falsity of which has nothing to do with the reasoning and of course its conclusions are equally ideal () Induction
is the experimental testing of a theory The justification of it is that although the conclusion at any stage of the
investigation may be more or less erroneous yet the further application of the same method must correct the error
The only thing that induction accomplishes is to determine the value of a quantity It sets out with a theory and it
measures the degree of concordance of that theory with fact It never can originate any idea whatever No more can
deduction All the ideas of science come to it by the way of Abduction
130
Induccedilatildeo
Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola
Resultado Estes feijotildees satildeo brancos
Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos
Hipoacutetese
Regra Todos os feijotildees desta sacola satildeo brancos
Resultado Estes feijotildees satildeo brancos
Caso Estes feijotildees satildeo desta sacola
Outra definiccedilatildeo mais ampla dada em 1903 quando Peirce jaacute havia superado a teoria
silogiacutestica e elaborado a loacutegica das relaccedilotildees pode ser encontrada no seguinte exemplo
ldquoObserva-se um fato surpreendente C
Mas se A fosse verdadeira C seria uma coisa corrente
Portanto haacute razotildees para suspeitar que A eacute verdadeirardquo (CP 5 sect 189 1903)181
Eacute preciso notar que no segundo esquema acima dois fatos chamam atenccedilatildeo e merecem
comentaacuterio Em primeiro lugar seguindo a interpretaccedilatildeo de Gallie vale ressaltar que a conclusatildeo
possui um caraacuteter meramente de tentativa O raciociacutenio meramente indica que vale a pena
181 The surprising fact C is observed But if A were true C would be a matter of course Hence there is reason to
suspect that A is true
131
consideraacute-la Em segundo lugar nota-se que o esquema abdutivo indica unicamente a direccedilatildeo em
que a pesquisa deve ser desenvolvida sem qualquer consideraccedilatildeo sobre a sustentaccedilatildeo ou
plausibilidade com relaccedilatildeo aos fatos que a hipoacutetese possa ter Essas consideraccedilotildees aparecem
posteriormente apoacutes a extraccedilatildeo dedutiva de consequecircncias experimentais e de sua confrontaccedilatildeo
com os fatos por meio da induccedilatildeo
Embora Peirce classifique a abduccedilatildeo como um tipo de raciociacutenio deixa claro que ela natildeo
estaacute submetida agraves mesmas regras da loacutegica criacutetica O seu enquadramento nessa classificaccedilatildeo
deve-se mais agrave ausecircncia de qualquer outra que lhe seja mais adequada182 suas caracteriacutesticas
indicam a liberdade proacutepria dos processos marcados pela categoria de primeiridade como diz
ldquoQualquer que seja o modo como o homem tenha adquirido sua faculdade de adivinhar os
caminhos da Natureza eacute certo que natildeo foi por meio de uma loacutegica criacutetica e autocontrolada (CP
5 sect 173 1903)183
O problema da abduccedilatildeo pode ser visto como o problema da elaboraccedilatildeo de juiacutezos
sinteacuteticos184
em 1868 o autor afirma
De acordo com Kant a questatildeo central da filosofia eacute Como satildeo possiacuteveis os
juiacutezos sinteacuteticos a priori Mas anteriormente a ela surge a questatildeo como os
juiacutezos sinteacuteticos em geral e mais amplamente como o raciociacutenio sinteacutetico eacute
absolutamente possiacutevel Quando a resposta ao problema geral for obtida a
particular seraacute comparativamente simples Este eacute o cadeado da porta da filosofia
(CP 5 sect 348 1868)185
182 Peirce esclarece quanto agrave classificaccedilatildeo da abduccedilatildeo como uma forma de raciociacutenio Any novice in logic may well
be surprised at my calling a guess an inference It is equally easy to define inference so as to exclude or include
abduction But all the object of the logic study have to be classified and it is found that there is no o-ther good class
in which to put abduction but that of inference (HP 2 p 899 1901) 183
However man may have acquired his faculty of divining the ways of Nature it has certainly not been by a self-
controlled and critical logic 184
Para uma discussatildeo da influencia de Kant em Peirce ver KRUSE 2010 e HAACK 2011 185
According to Kant the central question of philosophy is How are synthetical judgments a priori possible But
antecedently to this comes the question how synthetical judgments in general and still more generally how
synthetical reasoning is possible at all When the answer to the general problem has been obtained the particular one
will be comparatively simple This is the lock upon the door of philosophy
132
O cadeado da porta da filosofia consistiria dessa maneira em solucionar o problema
bastante antigo na histoacuteria da filosofia de conciliar o particular com o universal e garantir que a
partir do conteuacutedo da experiecircncia seja possiacutevel chegar ao estabelecimento de crenccedilas seguras que
no limite aproximar-se-iam mais e mais da verdade O encaminhamento da soluccedilatildeo desta
questatildeo realizado por Peirce tem na afirmaccedilatildeo do realismo sua pedra de toque Eacute a realidade
dos universais que torna qualquer pensamento mediado possiacutevel Ao lado de seu realismo
encontramos outra caracteriacutestica fundamental para a compreensatildeo do ecircxito na elaboraccedilatildeo de
hipoacuteteses a universalidade das categorias O problema de compatibilizar o universal da razatildeo do
sujeito com o particular do objeto se resolve ao considerar que tambeacutem no objeto captado por
meio da percepccedilatildeo encontra-se o universal fugindo definitivamente dessa maneira do
nominalismo A percepccedilatildeo eacute ela mesma um processo interpretativo resultado da criaccedilatildeo de
hipoacutetese e da resistecircncia do objeto A anaacutelise do tratamento realizado por Peirce desta questatildeo
conduziraacute ao cerne de sua teoria da criaccedilatildeo e da descoberta sejam elas cientiacuteficas ou natildeo
implicando a consideraccedilatildeo do entrelaccedilamento de dois aspectos de seu pensamento sua ontologia
e sua epistemologia
A teoria abdutiva desenvolvida por Peirce conheceu o mesmo percurso descrito acima
Desde os primeiros textos podemos verificar a presenccedila de uma preocupaccedilatildeo com os processos
de criaccedilatildeo e de tratamento de hipoacuteteses O desenvolvimento da abordagem que Peirce oferece do
tema reflete os avanccedilos de que ele obteve na loacutegica Como veremos adiante a ideia de abduccedilatildeo se
altera agrave medida em que o autor cria novos instrumentos de anaacutelise que ultrapassam a abordagem
loacutegica legada por Aristoacuteteles
Desde seus primeiros trabalhos em loacutegica Peirce se preocupou com o estudo dos
argumentos afirmando que sua classificaccedilatildeo eacute a principal tarefa dos loacutegicos pois todo teste
depende claramente da classificaccedilatildeo (cf EP 1 p 186 1878) Como aponta Chauvireacute (2003 p
31) ldquoNota-se que Peirce natildeo opotildee somente a deduccedilatildeo agrave induccedilatildeo mas introduz um terceiro tipo
de inferecircncia a abduccedilatildeo cuja definiccedilatildeo e cuja anaacutelise constituem um dos pontos mais originais
tanto da sua filosofia dos signos quanto da sua filosofia da ciecircnciardquo
133
Peirce indica ainda uma subdivisatildeo a que esta classificaccedilatildeo das inferecircncias estaacute sujeita
entre inferecircncias analiacuteticas na qual ele coloca a deduccedilatildeo e inferecircncias sinteacuteticas que
compreendem a induccedilatildeo e a hipoacutetese Deixando para outra ocasiatildeo o tratamento da inferecircncia
dedutiva186
dedicaraacute o texto em questatildeo agrave compreensatildeo e diferenciaccedilatildeo das inferecircncias indutivas
e hipoteacuteticas bem como agrave justificaccedilatildeo da necessidade de clareza quanto a esta distinccedilatildeo para a
elaboraccedilatildeo do meacutetodo cientiacutefico
Peirce argumenta que a diferenccedila entre a inferecircncia que formula uma hipoacutetese e aquela que
realiza uma induccedilatildeo eacute bastante clara na maioria dos casos analisados natildeo obstante seja ignorada
pelos estudiosos da loacutegica ou objeto de grande confusatildeo Embora nenhuma classificaccedilatildeo seja
perfeitamente satisfatoacuteria diz Peirce sendo sempre possiacutevel encontrar casos que se localizem na
fronteira entre as duas classes e que poderiam levar agrave primeira vista a uma certa duacutevida sobre
qual categoria a que dada inferecircncia pertence a anaacutelise da abduccedilatildeo e induccedilatildeo deixa claro as
suas diferenccedilas Quanto ao modo em que se realiza e quanto ao objetivo que almeja Peirce tece o
seguinte comentaacuterio
Pela induccedilatildeo concluiacutemos que fatos similares aos fatos observados satildeo
verdadeiros em casos natildeo examinados Pela hipoacutetese concluiacutemos a existecircncia de
um fato totalmente diferente de qualquer coisa observada a partir do qual de
acordo com as leis conhecidas alguma coisa observada necessariamente
resultaria O primeiro eacute um raciociacutenio dos particulares para a lei geral o uacuteltimo
do efeito para a causa O primeiro classifica o uacuteltimo explica (EP 1 p 194
1878)187
Com a finalidade de tornar a diferenccedila mais clara vejamos alguns exemplos de hipoacutetese
186 Realizado em 1880 em seu texto umlOn the Algebra of Logicuml e na definiccedilatildeo de umlsilogismouml para o seu Century
Dictionary 187
By induction we conclude that facts similar to observed facts are true in cases not examined By hypothesis we
conclude the existence of a fact quite different from anything observed from which according to known laws
something observed would necessarily result The former is reasoning from particulars to the general law the latter
from effect to cause The former classifies the latter explains
134
fornecidos por Peirce e a diferenccedila com relaccedilatildeo agrave induccedilatildeo em um deles O primeiro exemplo faz
referecircncia a uma viagem que Peirce realizou no ano de 1870 para a Turquia ele nos diz que
enquanto caminhava em direccedilatildeo a uma casa que iria visitar encontrou um homem montado em
um cavalo com quatro outros homens agrave cavalo ao seu redor e que seguravam uma tenda sobre sua
cabeccedila Como o governador da proviacutencia seria a uacutenica pessoa que poderia ter um tratamento tatildeo
honroso Peirce concluiu que se tratava do proacuteprio Esta eacute uma hipoacutetese acrescenta Do fato de se
encontrar foacutesseis de peixes e conchas no interior do paiacutes elabora-se a hipoacutetese de que o mar em
algum momento do passado tenha banhado aquelas terras Do fato de que inuacutemeros documentos
e monumentos faccedilam referecircncia a um conquistador chamado Napoleatildeo Bonaparte se conclui que
ele de fato existiu sendo esta conclusatildeo uma outra hipoacutetese Com respeito a esses exemplos
Peirce acrescenta que a hipoacutetese eacute um tipo fraco de argumento que mais inclina do que determina
o nosso julgamento em direccedilatildeo agrave afirmaccedilatildeo da verdade expressa nas respectivas hipoacuteteses
Para tornar clara a diferenccedila entre o raciociacutenio hipoteacutetico e raciociacutenio indutivo vejamos um
outro exemplo tambeacutem fornecido por Peirce Neste nos deparamos com um escrito anocircnimo
sobre uma folha de papel que foi arrancada de um bloco Haacute a suspeita de que o autor do escrito
seja uma determinada pessoa Sua mesa agrave qual somente ele tinha acesso eacute investigada e eacute
encontrado um bloco de papel com uma folha arrancada cujas bordas satildeo idecircnticas agraves da folha do
escrito anocircnimo A conclusatildeo de que o suspeito eacute realmente o autor do escrito eacute claramente uma
hipoacutetese Peirce acrescenta que a base para essa inferecircncia eacute de que seria muito improvaacutevel que
duas folhas de papel arrancadas ao acaso tivessem suas bordas exatamente iguais apenas por
acidente A razatildeo de uma conclusatildeo do tipo presente no exemplo acima eacute enunciada nos seguintes
termos por Peirce ldquoum nuacutemero de caracteres que pertence a uma certa classe eacute encontrado em
um certo objeto desse modo eacute inferido que todos os caracteres daquela classe pertencem ao
objeto em questatildeordquo (EP 1 p 192 1878)188
O princiacutepio de elaboraccedilatildeo da hipoacutetese neste caso
envolve o mesmo princiacutepio da induccedilatildeo a diferenccedila eacute que natildeo satildeo analisados uma quantidade
grande de caracteres e a conclusatildeo eacute bastante distinta A inferecircncia indutiva no exemplo acima
188 A number of characters belonging to a certain class are found in a certain object whence it is inferred that all the
characters of that class belong to the object in question
135
apenas nos autorizaria a concluir que se as folhas de papel possuem alguns caracteres que
correspondem entatildeo ela deve compartilhar outros concluir no entanto sobre o autor do escrito
na folha de papel a partir de algumas de suas caracteriacutesticas eacute algo de natureza completamente
diferentemente Peirce resume a diferenccedila entre os dois tipos de inferecircncia da seguinte maneira
ldquoa essecircncia de uma induccedilatildeo eacute que ela infere de um conjunto de fatos um outro conjunto de fatos
similares enquanto a hipoacutetese infere a partir de fatos de um tipo fatos de um outrordquo (EP 1 p
198)189
Pode-se perceber que uma das razotildees pelas quais Peirce elabora a reflexatildeo apresentada
neste texto eacute a de compreender o processo de produccedilatildeo do conhecimento Neste momento Peirce
ainda atribuiacutea tanto agrave inferecircncia indutiva quanto agrave inferecircncia hipoteacutetica o papel de produtor de
novas ideias na medida em que ambas satildeo classificadas como inferecircncias sinteacuteticas Posiccedilatildeo que
no futuro modificaraacute atribuindo a exclusividade heuriacutestica ao processo inferencial que receberaacute o
nome de abduccedilatildeo Mas a quecirc serve esta distinccedilatildeo Esta eacute uma pergunta que podemos nos colocar
e para a qual Peirce apresenta uma resposta retomada e aprimorada em vaacuterios textos posteriores
Em um texto de 1901 lemos
Nada tem contribuiacutedo tanto para apresentar ideias da loacutegica da ciecircncia caoacuteticas
ou errocircneas como a falha em distinguir os caracteres essencialmente diferentes
de diferentes elementos do raciociacutenio cientiacutefico e uma das piores dessas
confusotildees bem como uma das mais comuns consiste em ver a abduccedilatildeo e a
induccedilatildeo tomadas juntas (frequentemente misturadas tambeacutem com a deduccedilatildeo)
como um uacutenico argumento (CP 7 sect 218 1901)190
189 But the essence of an induction is that it infers from one set of facts another set of similar facts whereas
hypothesis infers from facts of one kind to facts of another 190
Nothing has so much contributed to present chaotic or erroneous ideas of the logic of science as failure to
distinguish the essentially different characters of different elements of scientific reasoning and one of the worst of
these confusions as well as one of the commonest consists in regarding abduction and induction taken together
(often mixed also with deduction) as a simple argument
136
No texto de 1878 Peirce oferece algumas razotildees segundo as quais a distinccedilatildeo em questatildeo
seria de grande importacircncia O valor desta distinccedilatildeo segundo o autor deve ser testado por suas
aplicaccedilotildees Em primeiro lugar encontra-se o fato de que a induccedilatildeo eacute um tipo de inferecircncia bem
mais forte do que a hipoacutetese A impossibilidade de se inferir indutivamente conclusotildees hipoteacuteticas
eacute apontada como a segunda razatildeo Do ponto de vista psicoloacutegico ou fisioloacutegico tambeacutem se
verifica uma distinccedilatildeo quanto ao modo de apreensatildeo dos fatos que eacute apontado como a terceira
razatildeo para se insistir sobre a sua distinccedilatildeo A induccedilatildeo eacute o procedimento loacutegico da formaccedilatildeo de um
haacutebito jaacute que ela realiza a inferecircncia de uma regra e toda regra eacute de natureza habitual enquanto a
hipoacutetese realiza a unificaccedilatildeo de vaacuterios predicados em uma uacutenica concepccedilatildeo Peirce tenta
esclarecer a particularidade do processo de elaboraccedilatildeo de hipoacutetese fazendo uso de uma analogia
ldquoos vaacuterios sons produzidos pelos instrumentos de uma orquestra incidem sobre o ouvido e o
resultado eacute uma peculiar emoccedilatildeo musical bem distinta dos proacuteprios sonsrdquo (EP 1 199 1878)191
A partir dessa constataccedilatildeo Peirce afirma que a hipoacutetese representa o elemento sensiacutevel do
pensamento enquanto a induccedilatildeo responde por seu elemento habitual Um outro meacuterito dessa
distinccedilatildeo eacute o de permitir uma classificaccedilatildeo natural das ciecircncias e das mentes que as realizam
segundo os diferentes modos de raciociacutenio E por fim Peirce deixa as demais vantagens aos
leitores que dominarem a habilidade de distinguir entre os vaacuterios tipos de inferecircncias a tarefa de
descobrir
Para Peirce antes da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese que eacute por ele considerada como o
primeiro estaacutegio do meacutetodo cientiacutefico o cientista deve ter se nutrido da observaccedilatildeo do mundo A
experiecircncia eacute o iniacutecio necessaacuterio para todo conhecimento humano de modo que natildeo existe
conhecimento que natildeo esteja embasado na experiecircncia ele diz ldquoTodo conhecimento seja qual
for vem da observaccedilatildeordquo (CP 1 sect 238 1902)192
Ainda que a observaccedilatildeo natildeo possa ser
considerada como uma parte do meacutetodo cientiacutefico ela eacute um preacute-requisito fundamental para o seu
sucesso Com a finalidade de estabelecer uma conversaccedilatildeo com a natureza a observaccedilatildeo preacutevia
191 The various sounds made by the instruments of an orchestra strike upon the ear and the result is a peculiar
musical emotion quite distinct from the sounds themselves 192
All knowledge whatever comes from observation
137
do cientista deve ser ativa e natildeo passiva Ela natildeo eacute pura sensaccedilatildeo mas experimentaccedilatildeo
inteligente Para que a conversa seja produtiva o investigador deve apresentar as questotildees
apropriadas Sobre a observaccedilatildeo Peirce afirma que se trata ldquode uma experiecircncia voluntariamente
atenta habitualmente com algum frequentemente com a necessidade de um grande esforccedilordquo e
acrescenta que a ldquoexperiecircncia supotildee que seu objeto reaja sobre noacutes com alguma forccedila muita ou
pouca de tal maneira que ela tenha um certo grau de realidade ou independecircncia de nosso esforccedilo
cognitivordquo (CP 2 sect 605 1902)193
Tal esforccedilo soacute eacute verdadeiramente realizado uma vez que
alguma coisa de inesperado surja no desenrolar dos acontecimentos fenomecircnicos isto eacute quando o
curso dos eventos se mostra de alguma maneira surpreendente para o investigador
A experiecircncia eacute portanto uma operaccedilatildeo cognitiva Ela implica a consciecircncia de um objeto
externo que eacute resistente ao sujeito A observaccedilatildeo com a qual a pesquisa cientiacutefica tem seu iniacutecio eacute
sempre a quebra de uma expectativa e eacute esta caracteriacutestica inesperada que forccedila o cientista a ter
consciecircncia da externalidade do objeto e que o conduz agrave procura de uma explicaccedilatildeo
A pesquisa cientiacutefica propriamente dita inicia-se com a hipoacutetese uma conjectura que tenta
explicar o fenocircmeno surpreendente (cf CP 6 sect 469 1908) O meacutetodo cientiacutefico compreende
para Peirce trecircs estaacutegios distintos abduccedilatildeo ou hipoacutetese deduccedilatildeo e induccedilatildeo ou teste
Diferentemente de outros filoacutesofos da ciecircncia Peirce compreende que uma parte de seu meacutetodo
deve ser dedicada agrave explicaccedilatildeo de como as novas hipoacuteteses satildeo elaboradas O coraccedilatildeo desta teoria
eacute uma reflexatildeo sobre o processo de criaccedilatildeo cientiacutefica condensado no raciociacutenio abdutivo Uma
vez elaborada e selecionada a hipoacutetese dever testada Com esta finalidade Peirce indica a
necessidade de se deduzir as consequecircncias praacuteticas da hipoacutetese e por meio da induccedilatildeo proceder
agrave sua verificaccedilatildeo confrontando-a com a experiecircncia Nota-se que mesmo mantendo o nome
induccedilatildeo para este procedimento de teste ele natildeo reteacutem mais nada da sua significaccedilatildeo original
empregada na histoacuteria da filosofia Natildeo se trata do procedimento de obtenccedilatildeo de uma lei geral por
193 Attentive experience especially an act of voluntarily attentive experience usually with some often with great
effort () experience supposes that its object reacts upon us with some strength much or little so that it has a certain
grade of reality or independence of our cognitive exertion
138
meio dos casos particulares mas de verificar se as consequecircncias de uma conjectura geral satildeo
conformes agrave experiecircncia
As duas principais funccedilotildees da ciecircncia satildeo a elaboraccedilatildeo e o teste de conjecturas A ciecircncia
somente seraacute possiacutevel se ao se realizar essas duas funccedilotildees o resultado seja a verdade ou se por
meio delas nos aproximamos do conhecimento real Durante deacutecadas Peirce se dedicou
agrave compreensatildeo dos mecanismos da induccedilatildeo visando compreender como ela durante a
investigaccedilatildeo cientiacutefica teria o poder de conduzir agrave verdade por meio de um processo de
autocorreccedilatildeo Seus esforccedilos todavia indicaram que a menos que a conjectura jaacute tenha colocado o
investigador na boa direccedilatildeo a ciecircncia natildeo conseguiria atingir seu objetivo Desta maneira este
estranho tipo de inferecircncia chamado de abduccedilatildeo deveria ser a chave para o progresso que se
verifica na ciecircncia De fato a abduccedilatildeo eacute uma espeacutecie de adivinhaccedilatildeo da boa hipoacutetese
A abduccedilatildeo compreende dois momentos a elaboraccedilatildeo e a eleiccedilatildeo das hipoacuteteses a serem
testadas O primeiro momento eacute marcado pela criatividade e o segundo pelas exigecircncias da
economia da pesquisa cientiacutefica Na anaacutelise do primeiro momento o da elaboraccedilatildeo da hipoacutetese
um aspecto bastante proacuteprio do pensamento peirceano eacute ressaltado o papel que a imaginaccedilatildeo
desempenha neste estaacutegio Peirce diz
Quando um homem deseja ardentemente conhecer a verdade seu primeiro
esforccedilo eacute de imaginar aquilo que tal verdade poderia ser () eacute verdade que apoacutes
tudo nada aleacutem da imaginaccedilatildeo pode lhe fornecer a pista da verdade Ele pode
fixar estupidamente o olhar sobre os fenocircmenos mas sem a imaginaccedilatildeo eles natildeo
se ligaratildeo de maneira racional (CP 1 sect 46 1896)194
194 When a man desires ardently to know the truth his first effort will be to imagine what that truth can be () it
remains true that there is after all nothing but imagination that can ever supply him an inkling of the truth He can
stare stupidly at phenomena but in the absence of imagination they will not connect themselves together in any
rational way
139
A imaginaccedilatildeo do cientista natildeo obstante eacute aquela que sonha com explicaccedilotildees e com leis (cf
CP 1 sect 49 1896) a conjectura deve portanto ser de tal maneira que elimine o aspecto
surpreendente e coloque o cientista em harmonia com o curso dos fenocircmenos Uma vez de posse
das conjecturas Peirce indica os criteacuterios que devem ser utilizados para selecionar aquelas que
devem ser submetidas a teste e em que ordem afim de que o trabalho de investigaccedilatildeo cientiacutefica
tenha o melhor desempenho possiacutevel As principais condiccedilotildees de admissibilidade de hipoacuteteses
que Peirce estabelece satildeo
1 A hipoacutetese deve ser experimentalmente testaacutevel
2 Ela deve explicar os fatos surpreendentes aos quais nos confrontamos
3 A seleccedilatildeo e classificaccedilatildeo das hipoacuteteses a serem testadas devem ser realizadas em funccedilatildeo
do princiacutepio de economia da pesquisa
A testabilidade de uma hipoacutetese consiste em que devemos poder tirar dela por deduccedilatildeo um
certo nuacutemero de consequecircncias ou prediccedilotildees suscetiacutevel de ser comparado com os resultados de
uma experiecircncia provocada por esta razatildeo ldquouma hipoacutetese da qual natildeo se pode fundar nenhuma
prediccedilatildeo natildeo deveria ser aceitardquo (CP 5 sect 599 1903)195
Explicar um fenocircmeno para Peirce eacute fazecirc-lo aparecer como dedutiacutevel de uma lei ou de uma
teoria isto eacute como previsiacutevel Peirce caracteriza a explicaccedilatildeo como uma forma de reduccedilatildeo do
diverso agrave unidade explicar eacute sintetizar uma multiplicidade de predicados ou ainda substituir
uma pluralidade de proposiccedilotildees por uma soacute proposiccedilatildeo de um grau de generalidade superior (cf
CHAUVIREacute 2003 p 84)
E por fim a terceira condiccedilatildeo indica que as hipoacuteteses de conteuacutedos mais abrangentes
devem ser preferidas bem como aquelas que natildeo exijam muito tempo recursos materiais ou
esforccedilo em seus testes
195 A hypothesis on which no verifiable predictions can be based should never be accepted
140
CAPIacuteTULO 05
A CAUSALIDADE FINAL
Thus whether you accept the opinion or not you must see that it is a perfectly
intelligible opinion that ideas are not all mere creations of this or that mind but on the
contrary have a power of finding or creating their vehicles and having found them of
conferring upon them the ability to transform the face of the earth (CP 1 sect 217 1902)
141
Este capiacutetulo eacute dedicado agrave apresentaccedilatildeo e discussatildeo das principais caracteriacutesticas atribuiacutedas
agrave ideia de causa final na obra de Peirce Iniciaremos por uma exposiccedilatildeo das questotildees envolvidas
e resgatando elementos presentes nos capiacutetulos anteriores desta tese faremos uma comparaccedilatildeo
da concepccedilatildeo peirceana com a aristoteacutelica para realccedilar aquilo que Peirce acrescenta de original
Como este eacute o uacuteltimo capiacutetulo deste trabalho sua funccedilatildeo eacute a de tambeacutem ressaltar o papel central
que a ideia de causa final desempenha em outros campos da produccedilatildeo peirceana afins ao recorte
proposto no todo desta tese
Para Peirce a explicaccedilatildeo dos fenocircmenos naturais fornecida apenas com base na atuaccedilatildeo da
causa eficiente eacute claramente insuficiente A causalidade final eacute necessaacuteria para a construccedilatildeo de
esquemas de explicaccedilatildeo que possam oferecer uma imagem adequada do real portanto eacute essencial
do ponto de vista epistemoloacutegico O mesmo pode ser afirmado no que diz respeito ao ponto de
vista ontoloacutegico pois Peirce a considera como causa real atuante nos processos de constituiccedilatildeo
do universo ou seja na evoluccedilatildeo ou crescimento do cosmo Como indica T L Short ldquo() A
teleologia de Peirce natildeo eacute somente metodoloacutegica ela inclui reivindicaccedilotildees ontoloacutegicasrdquo (1981b
p 377) O banimento desta modalidade causal da ciecircncia ao menos desde Bacon196
eacute visto pelo
filoacutesofo como uma fonte de equiacutevocos Em um texto de 1903 Peirce afirma
() o natildeo reconhecimento da causalidade final () tem sido e ainda eacute produtor
de mais erros filosoacuteficos e de absurdos do que qualquer outra fonte de erro e de
absurdos Se haacute uma deusa do absurdo isso deve ser sua assombraccedilatildeo (MS
478)197
Como aponta Andrew Woodfield em seu livro sobre a teleologia ldquoA ciecircncia moderna eacute no
seu todo hostil agraves explicaccedilotildees teleoloacutegicasrdquo (WOODFIELD 1976 p03) Hawkins (2007 p 522)
196 Como aponta Bacon a investigaccedilatildeo sobre causas finais eacute esteacuteril e como uma virgem consagrada a Deus nada
produz (cf BACON F De Augmentis Scientiarum III 5) 197
() the non-recognition of final causation () has been and still is productive of more philosophical error and
nonsense than any or every other source of error or nonsense If there is any goddess of nonsense this must be her
haunt (apud HULSWIT 1996 p 182)
142
afirma que embora filoacutesofos contemporacircneos como Russell e Quine tenham afirmado que ateacute
mesmo a causalidade eficiente eacute metafisicamente suspeita ela continua a gozar de popularidade
junto ao senso comum e de respeito entre os filoacutesofos Aquele que defende a existecircncia de causas
eficientes atuando na natureza pode estar errado mas ningueacutem o chamaria de louco como
acontece com aqueles que insistem na pertinecircncia da inclusatildeo da causalidade final nos esquemas
explicativos ou como elemento atuante no mundo Hawkins (2007 p 522) faz um bom resumo
da situaccedilatildeo atual
() muitos filoacutesofos contemporacircneos consideram a causalidade final na melhor
das hipoacuteteses como uma reliacutequia de um encantado mundo preacute-moderno Na pior
das hipoacuteteses a causalidade final eacute um pensamento metafiacutesico clandestino na
barcaccedila antifundacionalista conduzida por Quine e seus companheiros Mesmo
os filoacutesofos Continentais (por exemplo Heidegger Deleuze) tendem a
suspeitar da causalidade final Para eles a causa final eacute um conceito
incompatiacutevel com a nossa experiecircncia de liberdade e novidade () Por fim nem
mesmo o senso comum parece endossar a causalidade final De acordo com a
compreensatildeo preacute-filosoacuteficas as causas satildeo temporalmente preacutevias aos efeitos
Contudo os defensores da causalidade final parecem negar precisamente essa
prioridade O caraacuteter de uma coisa no presente eacute de alguma forma pensado
como determinado pelo que ela seraacute no futuro seu fim (telos) Para os natildeo
filoacutesofos a alegaccedilatildeo de que a causalidade pode atuar nesse sentido pode parecer
incompreensiacutevel
Satildeo comuns afirmaccedilotildees de que natildeo existem causas finais atuando no universo e de que os
fenocircmenos que satildeo descritos por meio de uma linguagem teleoloacutegica podem e seratildeo no futuro
descritos unicamente por meio da utilizaccedilatildeo de esquemas de explicaccedilatildeo que faccedilam uso exclusivo
da causalidade eficiente Se por um lado o projeto de reduccedilatildeo das explicaccedilotildees teleoloacutegicas a
explicaccedilotildees com base em causalidade eficiente ainda natildeo foi plenamente realizado por outro a
proacutepria noccedilatildeo de causalidade final natildeo estaacute inteiramente esclarecida Como aponta Hulswit ldquoAteacute
o presente momento nenhuma teoria clara dos processos teleoloacutegicos estaacute disponiacutevelrdquo
143
(HULSWIT 1996 P 183)198
Esperamos que a anaacutelise e exposiccedilatildeo das ideias peirceanas sobre o
tema possam constituir uma contribuiccedilatildeo efetiva para a elaboraccedilatildeo de uma teoria mais adequada
e clara sobre a maneira de atuaccedilatildeo da causalidade teleoloacutegica A principal justificativa para a sua
inclusatildeo eacute como ressalta o autor o papel essencial que desempenha na completude das
descriccedilotildees e nas explicaccedilotildees dos fenocircmenos
1 O MODO DE ATUACcedilAtildeO DA CAUSALIDADE FINAL
Ao explicar os modos de causalidade atuantes no universo199
Peirce daacute tanto agrave causalidade
final quanto agrave causalidade eficiente praticamente a mesma importacircncia natildeo escondendo todavia
certa primazia da primeira Quando Peirce fala em causalidade final estaacute pensando na maneira
como foi definida por Aristoacuteteles
O significado da expressatildeo bdquocausa final‟ deve ser determinado pelo seu uso na
declaraccedilatildeo de Aristoacuteteles de que todas as causas se dividem em dois grandes
ramos o das eficientes ou eneacutergicas e o das ideais ou finais Se preservarmos a
verdade da declaraccedilatildeo devemos compreender por causa final o modo de realizar
fatos de acordo com o qual uma descriccedilatildeo geral do resultado eacute obtida quase sem
consideraccedilatildeo por qualquer compulsatildeo para ela se realizar deste ou daquele modo
particular embora o significado possa estar adaptado a um fim O resultado
geral deve ser realizado de um modo em uma vez e de outra em outra A causa
final natildeo determina em qual modo particular se realizaraacute mas unicamente que o
resultado teraacute um certo caraacuteter geral (CP 1 sect 211 1902)200
198 Aleacutem do texto citado ver tambeacutem HULSWIT 1997 1998 2001 e 2003 PAPE 1993 e 1997
199 Para uma discussatildeo da causalidade final no interior da semioacutetica ver SHORT 1981a 1982 e 1996
200 ldquoThe signification of the phrase final cause must be determined by its use in the statement of Aristotle that all
causation divides into two grand branches the efficient or forceful and the ideal or final If we are to conserve the
truth of that statement we must understand by final causation that mode of bringing facts about according to which a
general description of result is made to come about quite irrespective of any compulsion for it to come about in this
or that particular way although the means may be adapted to the end The general result may be brought about at one
time in one way and at another time in another way Final causation does not determine in what particular way it is
to be brought about but only that the result shall have a certain general characterrdquo (CP 1 sect 211 1902) Uma
144
Jaacute o significado de causa eficiente Peirce indica em outra passagem nos seguintes termos
A causalidade eficiente por outro lado eacute uma compulsatildeo determinada pela
condiccedilatildeo particular de coisas e eacute uma compulsatildeo agindo para fazer certa
situaccedilatildeo comeccedilar a mudar de uma forma perfeitamente determinada e seja qual
for o caraacuteter geral do resultado de modo algum diz respeito agrave causaccedilatildeo eficiente
Por exemplo eu atiro na asa de uma aacuteguia e uma vez que o meu propoacutesito - um
tipo especial de causa final ou ideal - eacute acertar a ave eu natildeo atiro diretamente
nela mas um pouco agrave sua frente tendo em conta a mudanccedila de posiccedilatildeo no
momento em que a bala chegar agravequela distacircncia Ateacute esse momento trata-se de
um caso de causaccedilatildeo final Mas apoacutes a bala sair do rifle o caso eacute entregue agrave
estuacutepida causalidade eficiente e se a aacuteguia fizer uma volta em outra direccedilatildeo a
bala natildeo alteraraacute sua trajetoacuteria em nada a causalidade eficiente natildeo tem qualquer
relaccedilatildeo com os resultados mas simplesmente obedece cegamente a ordens Eacute
verdade que a forccedila da bala estaacute em conformidade com uma lei e a lei eacute algo
geral Mas por isso mesmo a lei natildeo eacute uma forccedila Pois forccedila eacute compulsatildeo e
compulsatildeo eacute hic et nunc (CP 1 sect 212 1902)201
Embora sejam diametralmente opostas causa final e causa eficiente se relacionam de
maneira complementar Peirce enfatiza este aspecto nos seguintes termos
comparaccedilatildeo do conceito de causa final presente na obra peirceana com aquele presente na obra aristoteacutelica seraacute
realizada na pesquisa com a intenccedilatildeo de oferecer uma melhor compreensatildeo da definiccedilatildeo peirceana A despeito da
afirmaccedilatildeo de identidade entre uma definiccedilatildeo e outra estabelecido acima haacute elementos presentes na metafiacutesica
peirceana que sugerem alteraccedilotildees no conceito e invalidam essa identidade A investigaccedilatildeo desse toacutepico colocaraacute em
relevo essas diferenccedilas 201
Efficient causation on the other hand is a compulsion determined by the particular condition of things and is a
compulsion acting to make that situation begin to change in a perfectly determinate way and what the general
character of the result may be in no way concerns the efficient causation For example I shoot at an eagle on the
wing and since my purpose -- a special sort of final or ideal cause -- is to hit the bird I do not shoot directly at it
but a little ahead of it making allowance for the change of place by the time the bullet gets to that distance So far it
is an affair of final causation But after the bullet leaves the rifle the affair is turned over to the stupid efficient
causation and should the eagle make a swoop in another direction the bullet does not swerve in the least efficient
causation having no regard whatsoever for results but simply obeying orders blindly It is true that the force of the
bullet conforms to a law and the law is something general But for that very reason the law is not a force For force
is compulsion and compulsion is hic et nunc
145
Causalidade eficiente eacute aquele tipo de causalidade atraveacutes do qual as partes
compotildeem o todo causalidade final eacute aquele tipo de causalidade pelo qual o todo
chama por suas partes Causa final sem causa eficiente eacute inoacutecua um mero
chamar por partes eacute o que qualquer soldado ou homem pode fazer mas elas natildeo
viratildeo sem a causa eficiente Causa eficiente sem causa final entretanto eacute pior do
que inoacutecuo eacute mero caos e o caos natildeo eacute nem mesmo caos sem causa final eacute um
nada vazio (CP 1 sect 211 1902)202
A tarefa que nos propomos aqui eacute a de entender como Peirce um cientista familiarizado
com as principais teorias cientiacuteficas do seu tempo e formado dentro dos rigores do meacutetodo
experimental pocircde atribuir tal relevacircncia agrave causalidade final Ao mesmo tempo investigaremos
de que modo se daacute a atuaccedilatildeo deste tipo de causalidade na natureza segundo a concepccedilatildeo
peirceana Ou seja nosso objetivo eacute o de compreender o papel epistemoloacutegico e ontoloacutegico
desempenhado pela causa final no sistema peirceano
Uma das questotildees que conduziu inicialmente esta investigaccedilatildeo jaacute pode ser colocada se a
causalidade final eacute atuante em todo o universo e natildeo apenas nos fenocircmenos bioloacutegicos como ela
pode se manifestar sem a postulaccedilatildeo de um plano de criaccedilatildeo ou seja sem um reino de fins
Poder-se-ia julgar por meio da descriccedilatildeo oferecida da lei da mente ou causa final que a
sua aplicaccedilatildeo restringe-se ao acircmbito dos fenocircmenos mentais particularmente aos dos humanos A
fim de evitar esse equiacutevoco fazem-se necessaacuterias algumas palavras a respeito da distinccedilatildeo
elaborada por Peirce entre causa final e propoacutesito A causa final possui uma abrangecircncia muito
maior do que o propoacutesito sendo este apenas o tipo de causa final a que estamos mais habituados
Em um texto de 1902 Peirce esclarece que ldquoUm propoacutesito eacute um desejo operativordquo (CP 1 sect 205
1902)203
Ainda que para os seres humanos o propoacutesito se apresente como uma conduccedilatildeo
autocontrolada que mira algum ser in futuro que aparece como desejaacutevel quando consideramos a
202 Efficient causation is that kind of causation whereby the parts compose the whole final causation is that kind of
causation whereby the whole calls out its parts Final causation without efficient causation is helpless mere calling
for parts is what a Hotspur or any man may do but they will not come without efficient causation Efficient
causation without final causation however is worse than helpless by far it is mere chaos and chaos is not even so
much as chaos without final causation it is blank nothing 203
A purpose is an operative desire
146
atuaccedilatildeo da causa final em seu sentido mais amplo constatamos que o significado do termo natildeo
reteacutem nada de sua interpretaccedilatildeo psicoloacutegica
Os exemplos da atuaccedilatildeo da causa final satildeo muitos afirma Peirce No que tange ao
pensamento particularmente em sua atividade teoacuterico-criativa a presenccedila do ser in futuro como
um bdquoatrator‟ eacute inequiacutevoca Procedemos agrave verificaccedilatildeo de nossas candidatas a leis gerais por meio
de experimentos afirma Peirce Variamos gradualmente as condiccedilotildees de nossos experimentos
para constatar o que acontece Se estivermos no caminho errado uma enfaacutetica negativa faraacute com
que reconsideremos nossas hipoacuteteses de tal modo que em um longo prazo (a long run) elas se
tornaratildeo cada vez mais adequadas e corretas Ou seja ldquoIsto equivale a dizer que conjeturamos as
leis pedaccedilo por pedaccedilordquo (CP 1 sect 86 1896)204
Temos nesse ponto o retorno de uma outra questatildeo jaacute debatida no primeiro capiacutetulo desta
tese a justificaccedilatildeo oferecida pelo autor da presenccedila de um caraacuteter tatildeo marcadamente
antropomoacuterfico em suas explicaccedilotildees Como vimos Peirce salienta em algumas passagens que
isso natildeo poderia ser evitado sendo uma das caracteriacutesticas da nossa compreensatildeo do mundo e
marca de uma inteligecircncia que aprende com a experiecircncia O filoacutesofo chega ateacute mesmo a afirmar
que tudo que eacute racional deve ser antropomoacuterfico Como diz
Toda explicaccedilatildeo cientiacutefica de um fenocircmeno natural eacute uma hipoacutetese de que haacute
alguma coisa na natureza agrave qual a razatildeo humana eacute anaacuteloga e que realmente eacute
assim todo o sucesso da ciecircncia em suas aplicaccedilotildees para a conveniecircncia humana
satildeo testemunhas (CP 1 sect 316 1903)205
Eacute natural portanto que as teorias explicativas dos processos que ocorrem na natureza
tenham a marca do humano A proacutepria noccedilatildeo de causalidade diz Peirce expressa essa
204 This is to say we guess out the laws bit by bit
205 Every scientific explanation of a natural phenomenon is a hypothesis that there is something in nature to which
the human reason is analogous and that it really is so all the success of science in its application to human
convenience are witness
147
caracteriacutestica do pensamento inteligiacutevel ele afirma que sua origem ldquo() estaacute em nossa tendecircncia
a procurar relaccedilotildees na natureza anaacutelogas agraves relaccedilotildees intelectuaisrdquo (MS 963 c1893)206
Como
afirma Hulswit
() todas as ideias teoacutericas de um modo ou de outro se originam e se referem agrave
experiecircncia humana Se assim natildeo o fizessem elas natildeo teriam sentido ora se
elas tecircm que ter algum sentido deve haver algum tipo de relaccedilatildeo entre elas e
nossa experiecircncia humana cotidiana Consequentemente longe de ser um
problema o antropomorfismo eacute uma necessidade pura (HULSWIT 1996 p
184)
A elaboraccedilatildeo de teorias que espelham aquilo que eacute familiar aos seres humanos natildeo pode ser
considerada dessa maneira como um defeito da proposta peirceana mas deve ser entendida
como um requisito necessaacuterio agravequilo que pode ser compreendido como objeto da inteligibilidade
humana Uma consequecircncia podemos dizer da hipoacutetese que fundamenta a atividade cientiacutefica
que eacute a de considerar que o mundo eacute em princiacutepio passiacutevel de ser conhecido racionalmente ndash
uma esperanccedila reguladora para o exerciacutecio de toda investigaccedilatildeo
O modelo que nos eacute mais familiar da atuaccedilatildeo da causalidade final eacute a accedilatildeo propositada que
naturalmente eacute realizada com o objetivo de se obter algum resultado No entanto nos adverte o
autor este eacute apenas um tipo de causa final e natildeo o mais expressivo mas mesmo ele jaacute coloca em
evidecircncia a primeira caracteriacutestica que Peirce atribui agrave causa final e que natildeo eacute reconhecida pelos
detratores dessa noccedilatildeo ela a causa final natildeo eacute nunca um fato concreto mas eacute sempre geral
Consideraacute-la como um evento concreto no futuro que exerce uma influecircncia sobre o desenrolar
dos processos de acontecimentos do presente dirigindo-os para um determinado fim eacute um erro
categorial
Podemos nos perguntar todavia quais as consequecircncias dessa caracterizaccedilatildeo da noccedilatildeo de
206 () has its origin in our tendency to seek relations in nature analogous to intellectual relations
148
causa final como um geral A resposta a esta pergunta envolve a dissoluccedilatildeo de certa confusatildeo
presente na ideia de causalidade final que a perspectiva cientiacutefica moderna adotou Esta noccedilatildeo
aparece aos cientistas e filoacutesofos da ciecircncia como sendo possuidora de trecircs caracteriacutesticas que a
torna incompatiacutevel com os criteacuterios de cientificidade vigentes e refrataacuteria aos seus procedimentos
de teste Segundo esta perspectiva a causa final possuiria trecircs caracteriacutesticas intrataacuteveis e
inaceitaacuteveis do ponto de vista cientiacutefico em primeiro lugar ela teria como condiccedilatildeo para sua
atuaccedilatildeo a existecircncia de eventos individuais e concretos no futuro que em segundo lugar
exerceriam algum tipo de influecircncia causal sobre o presente determinando em terceiro lugar um
curso preciso de accedilatildeo a fim de que pudessem ser realizados (cf HULSWIT 1996 p 200-2)
Vejamos em que medida essas caracteriacutesticas podem ser de fato atribuiacutedas agrave noccedilatildeo de causa final
que extraiacutemos da obra do filoacutesofo Como foi indicado acima Peirce nega que exista qualquer
evento no futuro constituinte da causa final Ela eacute sempre um geral e como tal difere
categoricamente dos eventos que podem ser classificados no acircmbito dos fatos individuais e
concretos
Um exemplo simples talvez possa ser de alguma ajuda para iluminar o que Peirce estaacute
afirmando Retomando o caso da accedilatildeo humana propositada podemos dizer que a causa final natildeo
eacute o proacuteprio objetivo da accedilatildeo que natildeo passa de um desejo operativo nas palavras de Peirce mas
eacute antes uma certa classe de objetos que possuem certo tipo geral de caracteriacutesticas Assim se o
desejo que me move eacute o de tomar um sorvete a causa final natildeo seria o proacuteprio desejo mas uma
classe geral na qual os sorvetes estatildeo subsumidos Ainda que possamos especificar o quanto
quisermos o tipo de sorvete o sabor a procedecircncia os modos de fabricaccedilatildeo ainda assim
continuariacuteamos a ter como atrator da nossa accedilatildeo certa classe geral dificilmente um objeto
definido e concreto
Em segundo lugar207
embora as causas finais natildeo sejam eventos futuros elas exercem certa
influecircncia a partir do futuro eacute preciso natildeo esquecer que a distinccedilatildeo entre passado presente e
207 Aqui discordamos da interpretaccedilatildeo de Hulswit que nega a possibilidade de atribuir agrave causalidade final qualquer
tipo de influecircncia sobre o presente a partir do futuro Em sua concepccedilatildeo as causas finais satildeo ldquogeneral types which
may be realized in the future These general types are no actual existences but general (physical) possibilities for
149
futuro realizada por Peirce deixa claro que cada momento estaacute imerso em um fluxo contiacutenuo
cujas fronteiras natildeo estatildeo determinadas de forma precisa e absoluta O modo de efetivaccedilatildeo dessas
trecircs componentes do tempo eacute no entanto bastante diferente O passado se impotildee e determina
natildeo de maneira absoluta o modo que o presente se efetiva a essa influecircncia Peirce daacute o nome de
Obsistecircncia (sugerindo como indica o autor obviar objeto obstinado obstaacuteculo insistecircncia
resistecircncia etc) O presente se efetiva como possibilidade sempre aberta ao novo Peirce atribui
o nome de Originalidade que eacute ser tal como aquele ser eacute independentemente de qualquer outra
coisa O modo de efetivaccedilatildeo do futuro eacute a Transuasatildeo (sugerindo translaccedilatildeo transfusatildeo
transcendental etc) eacute mediaccedilatildeo ou a modificaccedilatildeo da originalidade e da obsistecircncia pela
mediaccedilatildeo
Se existisse apenas a atuaccedilatildeo do passado na determinaccedilatildeo dos eventos presentes teriacuteamos
um mundo bastante diferente do atual no qual as regularidades seriam absolutas o que equivale a
dizer que das mesmas causas os mesmos efeitos seguir-se-iam formando um sistema
perfeitamente adequado agrave descriccedilatildeo mecanicista Fosse o presente absolutamente indeterminado
teriacuteamos apenas a manifestaccedilatildeo de potencialidades absolutamente livres sem a possibilidade de
estabelecimento de qualquer relaccedilatildeo entre duas ou mais realizaccedilotildees que ademais nem mesmo
poderiam ser descritas como espaciais ou temporais que satildeo formas de mediaccedilatildeo e portanto
expressotildees do geral Em uma palavra teriacuteamos o caos o mesmo que Peirce descreve como
condiccedilatildeo original e necessaacuteria do cosmo Essas satildeo imagens possiacuteveis e ateacute mesmo coerentes
mas inadequadas para a descriccedilatildeo do mundo que a experiecircncia nos revela estar em constante
processo de vir a ser descrito por Peirce como evolucionaacuterio ou em crescimento A atuaccedilatildeo da
causalidade final eacute uma hipoacutetese necessaacuteria para podermos compreender o desenvolvimento dos
processos naturais A mediaccedilatildeo que a ideia geral realiza entre a imposiccedilatildeo cega do passado e a
originalidade ilimitada do presente eacute sintetizada pelo autor na ideia de um ser in futuro Nas
palavras de Peirce
future realizationrdquo (HULSWIT 1996 P 185) Embora reconheccedilamos a dificuldade em integrar esta caracteriacutestica a
uma visatildeo cientificamente aceitaacutevel da noccedilatildeo natildeo podemos ignorar as declaraccedilotildees enfaacuteticas encontradas nos textos
de Peirce acerca da realidade da influecircncia que o futuro exerce sobre o desenrolar dos acontecimentos no presente
150
Vamos agora considerar o ser in futuro Como em outros casos isto eacute apenas
uma avenida que leva a uma apreensatildeo mais pura do elemento que ele conteacutem
Uma concepccedilatildeo absolutamente pura de uma categoria estaacute fora de questatildeo Ser
in futuro aparece em formas mentais intenccedilotildees e expectativas A memoacuteria nos
fornece um conhecimento do passado por uma espeacutecie de forccedila bruta uma accedilatildeo
bastante binaacuteria sem qualquer raciociacutenio Mas todo o nosso conhecimento do
futuro eacute obtido por meio de outra coisa (CP 2 sect 88 1902)208
O ser in futuro eacute deixemos claro fundamental para a possibilidade de constituiccedilatildeo efetiva
de uma ciecircncia que possa natildeo apenas explicar o mundo da nossa experiecircncia presente mas
tambeacutem servir de guia ao estabelecimento da nossa conduta autocontrolada
Peirce indica que o modo de efetivaccedilatildeo da causa final eacute semelhante ao de uma sugestatildeo ou
inclinaccedilatildeo nunca determina o modo exato por meio do qual o resultado desejado seraacute obtido Em
suas palavras
Por uma tendecircncia a um fim quero dizer que um determinado resultado seraacute
realizado ou aproximado de tal maneira que se dentro de certos limites sua
realizaccedilatildeo por meio de uma linha de causalidade mecacircnica for impedida ele seraacute
realizado ou aproximado por uma linha independente de causalidade mecacircnica
(NEM 4 p 66 1902)209
208 Let us now take up being in futuro As in the other cases this is merely an avenue leading to a purer apprehension
of the element it contains An absolutely pure conception of a Category is out of the question Being in futuro appears
in mental forms intentions and expectations Memory supplies us knowledge of the past by a sort of brute force a
quite binary action without any reasoning But all our knowledge of the future is obtained through the medium of
something else 209
By a tendency to an end I mean that a certain result will be brought about or approached and in such a way that
if within limits its being brought about by one line of mechanical causation be prevented it will be brought about
or approached by an independent line of mechanical causation
151
2 CAUSALIDADE FINAL E CAUSALIDADE EFICIENTE
A noccedilatildeo de causalidade assumida pelo filoacutesofo eacute claramente mais ampla do que aquela
restrita agrave causalidade eficiente Hulswit indica que ele retoma o sentido original de causa tal
como definido por Aristoacuteteles de acordo com quem uma causa eacute algum tipo de condiccedilatildeo sem a
qual uma coisa natildeo seria o que eacute A causa final dessa maneira eacute determinante do modo de vir a
ser das coisas Ou seja constitui um elemento indispensaacutevel para a criaccedilatildeo de um mundo ndash o da
nossa experiecircncia ndash que se encontra a meio caminho entre a rigidez intransigente e esteacuteril do
mecanicismo e a pura espontaneidade do caos
Como indicado no capiacutetulo sobre evoluccedilatildeo uma das motivaccedilotildees para o desenvolvimento de
uma abordagem teleoloacutegica por parte de Peirce foi a constataccedilatildeo da existecircncia dos assim
chamados fenocircmenos irreversiacuteveis descritos pela termodinacircmica A insuficiecircncia da mecacircnica
claacutessica se mostrava patente no tratamento deste tipo de fenocircmeno Como diz o filoacutesofo
Essas accedilotildees natildeo conservativas que parecem violar a lei de energia e que a fiacutesica
sempre explica como sendo devidas agrave accedilatildeo ao acaso entre trilhotildees de moleacuteculas
satildeo cada uma e todas marcadas por dois caracteres A primeira eacute que eles atuam
em uma direccedilatildeo determinada e tendem assintoticamente em direccedilatildeo agrave realizaccedilatildeo
de um estado uacuteltimo de coisas Se teleoloacutegica eacute uma palavra muito forte para
aplicar a eles podemos inventar a palavra finista para expressar a sua tendecircncia
em direccedilatildeo a um estado final A outra caracteriacutestica das accedilotildees natildeo conservativas
eacute que elas satildeo irreversiacuteveis (CP 7 sect 471 1898)210
As accedilotildees teleoloacutegicas ou finistas como denomina Peirce possuem desse modo duas
caracteriacutesticas elas tendem para um estado final de coisa e elas satildeo irreversiacuteveis Estaacute impliacutecita
aqui uma espeacutecie de superioridade da causa final em relaccedilatildeo agrave causa eficiente A primeira
210 Those non-conservative actions which seem to violate the law of energy and which physics explains away as due
to chance action among trillions of molecules are one and all marked by two characters The first is that they act in
one determinate direction and tend asymptotically toward bringing about an ultimate state of things If teleological is
too strong a word to apply to them we might invent the word finious to express their tendency toward a final state
The other character of non-conservative action is that they are irreversible
152
controla a uacuteltima afim de que um resultado com certo caraacuteter geral seja obtido Ou dito de outra
maneira as causas finais determinam as causas eficientes de tal modo que elas proacuteprias (as
causas finais) se realizem As ideias diz o autor possuem a capacidade de criar as condiccedilotildees para
a sua realizaccedilatildeo Segundo o texto
Desse modo quer aceite ou natildeo a opiniatildeo vocecirc deve ver que eacute uma opiniatildeo
perfeitamente inteligiacutevel a de que as ideias natildeo satildeo meras criaccedilotildees desta ou
daquela mente mas pelo contraacuterio tecircm um poder de encontrar ou criar os seus
veiacuteculos e tendo-os encontrado conferem-lhes a capacidade de transformar a
face da terra (CP 1 sect 217 1902)211
Vemos assim que a causa final definida dessa forma estaacute em estreita relaccedilatildeo com a ideia
a que Peirce se referia por meio da expressatildeo ldquolei da menterdquo Ele afirma que a lei da mente
apenas torna um certo sentimento mais provaacutevel (likely) Em outras palavras podemos dizer que
a lei da mente inclina o curso futuro dos eventos a uma certa direccedilatildeo sem contudo determinaacute-lo
Como afirma Peirce ldquoA causa final natildeo determina de que modo particular algo se realizaraacute mas
unicamente que o resultado teraacute um certo caraacuteter geralrdquo (CP 1 sect 211 1902)212
Eacute a causa final
diz Peirce que atribui existecircncia a um objeto de uma classe Natildeo devemos todavia entender essa
atribuiccedilatildeo como algum tipo de produccedilatildeo miraculosa Eacute o proacuteprio autor que esclarece em qual
sentido preciso entende essa atribuiccedilatildeo ldquoO que eu entendo pela ideia conferindo existecircncia aos
membros individuais de uma classe eacute que ela lhes confere o poder de produzir resultados neste
mundo que ela lhes confere equivale dizer existecircncia orgacircnica ou em uma palavra vidardquo (CP
1 sect 220 1902)213
Para tornar mais evidente a ideia de que a causa final eacute uma espeacutecie de lei viva Peirce
211 Thus whether you accept the opinion or not you must see that it is a perfectly intelligible opinion that ideas are
not all mere creations of this or that mind but on the contrary have a power of finding or creating their vehicles and
having found them of conferring upon them the ability to transform the face of the earth 212
Final causation does not determine in what particular way it is to be brought about but only that the result shall
have a certain general character 213
What I mean by the ideas conferring existence upon the individual members of the class is that it confers upon
them the power of working out results in this world that it confers upon them that is to say organic existence or in
one word life
153
apresenta um exemplo que foca a distinccedilatildeo entre o homem e a mateacuteria que o compotildee Essa
distinccedilatildeo se cristaliza na frase ldquoum homem eacute uma onda mas natildeo um voacuterticerdquo (CP 1 sect 220
1902)214
Ainda que ele seja indissociaacutevel das partiacuteculas que o compotildee nem todas as
propriedades que lhe podem ser atribuiacutedas satildeo adequadas a elas Vejamos o exemplo fornecido
por Peirce
Tome um cadaacutever disseque-o mais perfeitamente do que jamais foi dissecado
Tome todo o sistema de veias sanguiacuteneas como noacutes as vemos desenhadas nos
livros Trate o sistema de nervos espinal e simpateacutetico o sistema alimentar com
os seus adjuvantes o sistema muscular o sistema oacutesseo da mesma maneira
Coloque-os todos em uma cabine de tal modo que de um certo ponto de vista
cada um aparece superposto ao outro em seu lugar proacuteprio Este seria um
espeacutecime singularmente instrutivo Mas chamaacute-lo de homem seria algo que
ningueacutem faria ou sonharia nem mesmo por um instante Todavia a melhor
definiccedilatildeo que poderia ser elaborada seria uma dissecaccedilatildeo similar Ela realmente
natildeo atuaria no mundo como o objeto definido faria Isto nos habilita a ver como
as coisas funcionam na medida em que nos mostra a causa eficiente A causa
final que caracteriza o definitum natildeo eacute abordada (CP 1 sect 220 1902)215
A partir deste exemplo Peirce aprofunda a distinccedilatildeo entre causa eficiente e causa final que
jaacute indicamos anteriormente A causa eficiente eacute aquela na qual as partes compotildeem o todo
enquanto na causa final percebemos o todo chamando por suas partes (cf CP 1 sect 220 1902)
Como indica Silveira ldquo() o que o cosmo evolucionaacuterio exige para se efetivar na organizaccedilatildeo
crescente que o define eacute a presenccedila de duas causas cujo modo de operar eacute reciprocamente
inverso causa final e causa eficienterdquo (SILVEIRA 1985 p 8) Assim sob a atuaccedilatildeo da lei de
214 A man is a wave but not a vortex
215 Take a corpse dissect it more perfectly than it ever was dissected Take out the whole system of blood vessels
entire as we see them figured in the books Treat the whole systems of spinal and sympathetic nerves the alimentary
canal with its adjuvants the muscular system the osseous system in the same way Hang these all in a cabinet so
that from a certain point of view each appears superposed over the others in its proper place That would be a
singularly instructive specimen But to call it a man would be what nobody would for an instant do or dream Now
the best definition that ever was framed is at best but a similar dissection It will not really work in the world as the
object defined will It will enable us to see how the thing works in so far as it shows the efficient causation The final
causation which is what characterizes the definitum it leaves out of account
154
aquisiccedilatildeo de haacutebitos ou da mente haacute um contiacutenuo crescimento da uniformidade a partir das
formas diferenciadas Como indica o autor
Mas as mudanccedilas divergentes agrave lei estatildeo agindo perpetuamente a fim de
aumentar a variedade do mundo e satildeo controladas por um tipo de seleccedilatildeo
natural ou de qualquer outro tipo de tal forma que o resultado geral deve ser
descrito como bdquoheterogeneidade organizada‟ ou melhor bdquovariedade racionalizada‟
(CP 6 sect 23 1891)216
A ideia ou causa final atuaria desse modo como um atrator para a realizaccedilatildeo de um
determinado curso de eventos inclinando agrave realizaccedilatildeo de acontecimentos que se processariam em
funccedilatildeo de um ser in futuro Esta atraccedilatildeo pode ser entendida como um criteacuterio para a seleccedilatildeo das
hipoacuteteses a serem testadas no caso de um processo de investigaccedilatildeo ou dos caminhos ou
estrateacutegias a serem adotados para a realizaccedilatildeo de qualquer objetivo praacutetico A sua atuaccedilatildeo se
manifesta natildeo soacute na eleiccedilatildeo dos modos de conduta racional e autocontrolada do homem mas estaacute
presente tambeacutem ainda que de forma degenerada na determinaccedilatildeo de qualquer evento natural
como por exemplo na determinaccedilatildeo do curso que a aacutegua da chuva percorre ao descer uma
montanha A maneira pela qual o futuro atua sobre o presente se distingue daquela efetuada pelo
passado O passado atua de maneira direta dualista enquanto o futuro necessita de um meio ou
uma maquinaria como diz o autor atraveacutes do qual possa exercer sua influecircncia Silveira
esclarece que ldquoenquanto esta uacuteltima [causa eficiente] atualiza-o pela forccedila a primeira [causa
final] muito mais genuiacutena faz derivar o proacuteprio cosmo de uma ideia antecipa o todo agraves partes
cabendo agrave causa eficiente a composiccedilatildeo efetiva ndash e de algum modo defectiva ndash do todo pela
accedilatildeo reciacuteproca das partesrdquo (SILVEIRA 1985 p 8)
Neste contexto cabem algumas palavras sobre a ceacutelebre imagem do xerife e do tribunal
216 But the chance divergences from law are perpetually acting to increase the variety of the world and are checked
by a sort of natural selection and otherwise (for the writer does not think the selective principle sufficient) so that the
general result may be described as organized heterogeneity or better rationalized variety
155
criada por Peirce para a explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre causalidade final e causalidade eficiente
ressaltando a sua complementaridade
A Lei sem a forccedila para se fazer cumprir seria como um tribunal sem um xerife e
todas as suas decisotildees seriam apenas ditos arrogantes (CP 1 sect 212 1902) () O
tribunal natildeo pode ser imaginado sem um xerife Causalidade final natildeo pode ser
imaginada sem causalidade eficiente mas nenhum pouquinho a menos naquele
exemplo satildeo os seus modos de accedilatildeo contraacuterios polares O xerife ainda teria seu
punho mesmo que natildeo houvesse nenhum tribunal mas uma causa eficiente
destacada de uma causa final na forma de uma lei nem sequer possuiria
eficiecircncia ela pode exercitar-se e algo pode seguir post hoc mas natildeo propter
hoc pois propter implica regularidade potencial (CP 1 213 1902)217
A implicaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo acima eacute a de que natildeo haacute em nenhum acircmbito dos processos
naturais qualquer ato de causaccedilatildeo que natildeo contenha ao mesmo tempo componentes causais
eficientes e finais Peirce eacute mais expliacutecito em outra passagem utilizando a mesma imagem do
xerife e do tribunal
A lei da natureza entregue a si mesma seria bastante semelhante a um tribunal
sem um xerife Um tribunal em tal situaccedilatildeo poderia ser capaz de induzir algum
cidadatildeo a atuar como um xerife mas ateacute que ela tenha se provido de um oficial
que ao contraacuterio de si natildeo poderia discursar com autoridade mas que poderia
estender o braccedilo forte sua lei poderia ser a perfeiccedilatildeo da razatildeo humana mas
permaneceria meros fogos de artifiacutecio brutum Fulmen (CP 5 sect 48 1903)218
217 Law without force to carry it out would be a court without a sheriff and all its dicta would be vaporings () The
court cannot be imagined without a sheriff Final causality cannot be imagined without efficient causality but no
whit the less on that account are their modes of action polar contraries The sheriff would still have his fist even if
there were no court but an efficient cause detached from a final cause in the form of a law would not even possess
efficiency it might exert itself and something might follow post hoc but not propter hoc for propter implies
potential regularity 218
A law of nature left to itself would be quite analogous to a court without a sheriff A court in that predicament
might probable be able to induce some citizen to act as a sheriff but until it had so provided with an officer who
unlike itself could not discourse authoritatively but who could put forth the strong arm its law might be the
perfection of human reason but remain mere fireworks brutum fulmen
156
A metaacutefora distingue claramente o tribunal e o xerife o primeiro toma decisotildees e o segundo
as executa O tribunal guia e direciona e o xerife age Como indica Potter
Juntos eles obtecircm a ordem e mantecircm a paz separados um eacute impotente e o outro
brutal Natildeo obstante nem o tribunal nem o xerife satildeo imaginaacuteveis a natildeo ser em
referecircncia de um com o outro e contudo eles e suas atividades permanecem
sempre claramente distintos Da mesma forma acontece com causalidade
eficiente e final (POTTER 1997 p114)
Para sermos mais precisos com a concepccedilatildeo peirceana em cada ato causal estatildeo envolvidos
trecircs elementos causa eficiente causa final e acaso Temos aqui portanto o modo de vir a ser de
tudo o que eacute em outras palavras este eacute o princiacutepio de individuaccedilatildeo Natildeo poderia dessa maneira
existir fenocircmenos puramente mecacircnicos no cosmo peirceano pois tal possibilidade entraria em
confronto com a proacutepria tese da continuidade criando uma dualidade que natildeo pode ser
consistentemente integrada ao sistema Peirce diz que
O sinequismo mesmo em suas formas menos robustas nunca poderaacute tolerar o
dualismo propriamente assim denominado Ele natildeo quer exterminar a
concepccedilatildeo de duplicidade nem pode qualquer um desses malucos que pregam
cruzadas filosoacuteficas contra esta ou aquela concepccedilatildeo fundamental encontrar o
menor conforto nesta doutrina Mas o dualismo em seu mais amplo e legiacutetimo
significado como a filosofia que realiza as suas anaacutelises com um machado
deixando como elementos finais pedaccedilos do ser sem qualquer relaccedilatildeo isto eacute o
mais hostil ao sinequismo Em particular o sinequista natildeo admitiraacute que os
fenocircmenos fiacutesicos e psiacutequicos sejam inteiramente distintos - seja como
pertencendo a diferentes categorias de substacircncia ou como lados inteiramente
separados de um escudo - mas insistiraacute que todos os fenocircmenos satildeo de um soacute
caraacuteter embora alguns sejam mais mentais e espontacircneos outros mais materiais
e regulares Ainda assim todos similarmente apresentam aquela mistura de
liberdade e restriccedilatildeo que permite que eles sejam ou melhor faz com que sejam
teleoloacutegicos ou propositados (CP 7 sect 570 1892)219
219 Synechism even in its less stalwart forms can never abide dualism properly so called It does not wish to
exterminate the conception of twoness nor can any of these philosophic cranks who preach crusades against this or
that fundamental conception find the slightest comfort in this doctrine But dualism in its broadest legitimate
meaning as the philosophy which performs its analyses with an axe leaving as the ultimate elements unrelated
chunks of being this is most hostile to synechism In particular the synechist will not admit that physical and
157
Como Peirce deixa claro em outra passagem eacute da mistura da restriccedilatildeo com a liberdade que
os fenocircmenos teleoloacutegicos surgem Ele diz que esta ldquomistura de liberdade e restriccedilotildeesrdquo acarreta
ldquoresultados teleoloacutegicos inevitaacuteveisrdquo (EP 1 p 236 1885)220
A combinaccedilatildeo dos trecircs fatores eacute a
chave para se compreender a consequecircncia que Peirce indica ser a caracteriacutestica mais presente
em todos os fenocircmenos naturais qual seja a variaccedilatildeo que se processa dentro de certos limites e
que eacute o germe que possibilita a criaccedilatildeo de tudo que eacute novo e original O autor indica em outro
texto
Eacute curioso como certos fatos nos escapam porque satildeo tatildeo penetrantes e
onipresentes exatamente como os antigos imaginavam que a muacutesica das esferas
natildeo era ouvida porque era ouvida o tempo todo Mas seraacute que algueacutem
gentilmente natildeo diraacute ao resto do auditoacuterio qual eacute o caraacuteter mais marcante e
intrusivo da natureza Eacute claro que me refiro agrave sua variedade (CP 1 sect 159
1897)221
A variaccedilatildeo fruto da atuaccedilatildeo do acaso como jaacute ficou claro no primeiro capiacutetulo desta tese
natildeo eacute uma ocorrecircncia rara que surge vez ou outra no curso dos eventos mas estaacute presente em
toda atualizaccedilatildeo que se processa deste modo em funccedilatildeo das imposiccedilotildees cegas do passado das
restriccedilotildees criadas pela lei e da manifestaccedilatildeo da livre espontaneidade Peirce eacute enfaacutetico ao
descrever a tessitura da realidade
Assim pela admissatildeo da espontaneidade pura ou vida como uma caracteriacutestica
do universo agindo sempre e em toda parte embora contida dentro dos estreitos
psychical phenomena are entirely distinct -- whether as belonging to different categories of substance or as entirely
separate sides of one shield -- but will insist that all phenomena are of one character though some are more mental
and spontaneous others more material and regular Still all alike present that mixture of freedom and constraint
which allows them to be nay makes them to be teleological or purposive 220
Mixture of freedom and constraint () inevitable teleological results 221
It is curious how certain facts escape us because they are so pervading and ubiquitous just as the ancients
imagined the music of the spheres was not heard because it was heard all the time But will not somebody kindly tell
the rest of the audience what is the most marked and obtrusive character of nature Of course I mean the variety of
nature
158
limites da lei produzindo continuamente divergecircncias infinitesimais da lei e as
grandes com infinita infrequecircncia dou conta de toda a variedade e diversidade
do universo no uacutenico sentido em que o realmente sui generis e o novo pode ser
compreendido A visatildeo comum tem que admitir a inesgotaacutevel e incontaacutevel
variedade do mundo tem que admitir que a sua lei mecacircnica natildeo pode
minimamente dar conta disso que a variedade pode brotar apenas da
espontaneidade e ainda nega sem qualquer evidecircncia ou razatildeo a existecircncia
desta espontaneidade ou entatildeo a remete de volta para o iniacutecio do tempo e supotildee-
na morta desde entatildeo A loacutegica superior do meu ponto de vista natildeo me parece
facilmente refutada (CP 6 sect 59 1892)222
Peirce refere-se aos infinitesimais nesta passagem como vimos no capiacutetulo sobre a
continuidade Natildeo eacute possiacutevel compreender adequadamente a noccedilatildeo de continuum sem
introduzirmos a noccedilatildeo de infinitesimal nessas duas noccedilotildees estaacute implicada a relaccedilatildeo entre a lei e o
acaso entre a regularidade e a espontaneidade Como jaacute mencionamos acima eacute dessa relaccedilatildeo que
a causa final surge Em um texto de 1898 Peirce traccedila a relaccedilatildeo aqui indicada
O que eacute possiacutevel eacute na mesma medida geral e como geral deixa de ser
individual Assim lembrando que a palavra potencial significa indeterminado
contudo ainda capaz de determinaccedilatildeo em qualquer caso especial pode haver um
agregado potencial de todas as possibilidades que satildeo consistentes com certas
condiccedilotildees gerais e isso pode ser tal que dado qualquer coleccedilatildeo de indiviacuteduos
distintos seja qual for a partir daquele agregado potencial pode ser realizado
uma coleccedilatildeo mais numerosa do que a coleccedilatildeo dada Assim o potencial agregado
eacute com a mais estrita exatidatildeo maior em magnitude do que qualquer magnitude
possiacutevel de indiviacuteduos Mas sendo apenas um agregado potencial ele natildeo
conteacutem quaisquer indiviacuteduos Ele conteacutem apenas as condiccedilotildees gerais que
permitem a determinaccedilatildeo dos indiviacuteduos (CP 6 sect 185 1898)223
222 By thus admitting pure spontaneity or life as a character of the universe acting always and everywhere though
restrained within narrow bounds by law producing infinitesimal departures from law continually and great ones
with infinite infrequency I account for all the variety and diversity of the universe in the only sense in which the
really sui generis and new can be said to be accounted for The ordinary view has to admit the inexhaustible
multitudinous variety of the world has to admit that its mechanical law cannot account for this in the least that
variety can spring only from spontaneity and yet denies without any evidence or reason the existence of this
spontaneity or else shoves it back to the beginning of time and supposes it dead ever since The superior logic of my
view appears to me not easily controverted 223
That which is possible is in so far general and as general it ceases to be individual Hence remembering that the
word potential means indeterminate yet capable of determination in any special case there may be a potential
159
A causalidade teleoloacutegica na concepccedilatildeo peirceana possui uma caracteriacutestica de
criatividade que a distingue de outras concepccedilotildees em particular da de Aristoacuteteles como veremos
abaixo A criatividade do processo de qualquer crescimento seja ela o de uma ideia na mente de
um investigador ou do proacuteprio cosmo eacute descrito perfeitamente pelo termo evoluccedilatildeo que como jaacute
foi indicado natildeo eacute nada mais do que um princiacutepio loacutegico Faremos agora uma retomada de
algumas das caracteriacutesticas mais marcantes do processo evolutivo descrito por Peirce e nos
concentraremos naquele denominado de agapasmo por se tratar da forma original de evoluccedilatildeo
3 CAUSA FINAL E EVOLUCcedilAtildeO ndash AacuteGAPE OU O AMOR CRIATIVO
Para melhor ilustrar a presenccedila da causa final no cosmo podemos lembrar que a sua
atuaccedilatildeo natildeo eacute outra coisa que a evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902) Nota-se na formulaccedilatildeo
peirceana um alargamento das fronteiras tradicionalmente consideradas como limitantes da accedilatildeo
da evoluccedilatildeo Natildeo soacute o reino orgacircnico cresce com a evoluccedilatildeo mas todo o cosmo assim procede
Peirce procuraraacute montar um quadro teoacuterico no qual a evoluccedilatildeo eacute o aspecto marcante de todos os
acontecimentos nos mais variados campos
A evoluccedilatildeo pode ser aplicada ateacute mesmo agrave proacutepria causa final no texto A lei da mente de
1892 Peirce caracteriza a teleologia como tambeacutem submetida a um processo de desenvolvimento
(developmental) indicando que no processo de atuaccedilatildeo da causa final o tipo geral de resultado
pode sofrer alteraccedilotildees em funccedilatildeo das variaccedilotildees surgidas na experiecircncia como indica Hausman
aggregate of all the possibilities that are consistent with certain general conditions and this may be such that given
any collection of distinct individuals whatsoever out of that potential aggregate there may be actualized a more
multitudinous collection than the given collection Thus the potential aggregate is with the strictest exactitude
greater in multitude than any possible multitude of individuals But being a potential aggregate only it does not
contain any individuals at all It only contains general conditions which permit the determination of individuals
160
esta eacute ldquoA visatildeo de que existem propoacutesitos que podem evoluir espontaneamenterdquo (HAUSMAN
1993 p 175) Tomando como exemplo de evoluccedilatildeo a constituiccedilatildeo da personalidade de um
indiviacuteduo Peirce afirma que
() ela implica uma harmonia teleoloacutegica nas ideias e no caso da personalidade
esta teleologia eacute mais do que uma mera procura propositada de um fim preacute-
determinado eacute uma teleologia em desenvolvimento Este eacute o caraacuteter pessoal A
ideia geral viva e consciente agora jaacute eacute determinante de atos no futuro em uma
medida que natildeo eacute agora consciente (CP 6 sect 156 1892)224
Natildeo obstante o propoacutesito natildeo pode ser estaacutetico pois o desenvolvimento em conformidade
com um propoacutesito preacute-determinado seria contraacuterio agrave proacutepria noccedilatildeo de processo criativo que
caracteriza segundo Peirce a atuaccedilatildeo da causalidade final Caso o propoacutesito se mantivesse
inalterado natildeo teriacuteamos nada aleacutem do que um desenvolvimento mecacircnico o que eliminaria a
proacutepria possibilidade de constituiccedilatildeo da personalidade como algo em desenvolvimento em
crescimento e vivo Embora Peirce na passagem acima esteja se referindo ao desenvolvimento
da personalidade humana eacute possiacutevel estender esta caracterizaccedilatildeo para todos os fenocircmenos
teleoloacutegicos variando sua atuaccedilatildeo exclusivamente em funccedilatildeo dos graus de liberdade que lhes
sejam inerentes Quanto mais livre ou seja quanto mais autocontrolado for um sistema mais
variaccedilatildeo pode existir no desenvolvimento de uma certa finalidade mas isso natildeo exclui a
possibilidade que mesmo no acircmbito da cosmologia as causas finais isto eacute as leis gerais de
desenvolvimento possam ser alteradas pela accedilatildeo do acaso Como indica Short ldquoA causaccedilatildeo final
desse modo resulta natildeo na uniformidade morta de um uacutenico plano mas na heterogeneidade
imprevisiacutevel de empresas personalidades e espeacutecies que preenchem o nosso mundordquo (SHORT
1994 p 406)
224 () it implies a teleological harmony in ideas and in the case of personality this teleology is more than a mere
purposive pursuit of a predeterminate end it is a developmental teleology This is personal character A general idea
living and conscious now it is already determinative of acts in the future to an extent to which it is not now
conscious
161
Enquanto a variaccedilatildeo fruto do acaso absoluto eacute uma condiccedilatildeo necessaacuteria para a evoluccedilatildeo
como jaacute vimos a proacutepria evoluccedilatildeo parece pressupor um outro agente como determinante do seu
processo de desenvolvimento A tal agente Peirce daacute o nome de Aacutegape Consciente das
limitaccedilotildees do tiquismo extraiacutedo da teoria de Darwin o filoacutesofo procura desenvolver uma noccedilatildeo
de evoluccedilatildeo mais geral tendo por base a evoluccedilatildeo do tipo lamarckiano Como aponta Hausman
O agente da evoluccedilatildeo distinto do agente do desvio da diversidade e da
complexidade sozinha tem uma funccedilatildeo teleoloacutegica ndash natildeo para uma teleologia do
tipo tradicional do tempo de Peirce mas uma teleologia em desenvolvimento
uma teleologia de acordo com a qual novos propoacutesitos fins podem emergir
(HAUSMAN 1998 p 630)
A evoluccedilatildeo do cosmo entretanto diz Peirce se daacute pela antecipaccedilatildeo da ideia a ser realizada
por meio de uma adivinhaccedilatildeo que soacute eacute possiacutevel como resultante da continuidade entre as coisas
O universo antecipa abdutivamente por meio da causa final a ideia a ser realizada Nas palavras
de Peirce ldquoA adoccedilatildeo de certas tendecircncias mentais () por uma atraccedilatildeo imediata da ideia em si
cuja natureza eacute adivinhada antes que a mente a possua pelo poder de simpatia ou seja pela
virtude da continuidade da menterdquo (CP 6 307 1893)225
Eacute o amor afirma Peirce o grande agente evolucionaacuterio do universo fato reconhecido desde
a mais tenra idade da filosofia Eacute aacutegape que conduz o processo de desenvolvimento do universo
possibilitando que em um longo prazo ele se torne mais e mais razoaacutevel fazendo com que
aquilo que Peirce chama de razoabilidade concreta possa crescer Quanto ao seu modo de atuar
Peirce afirma que ldquoO movimento do amor eacute circular em um e mesmo impulso projeta criaccedilotildees
em independecircncia e as reuacutene em harmonia Parece complicado quando dito desta maneira mas eacute
completamente sintetizado na foacutermula simples que denominamos a Regra Douradardquo (CP 6 sect
225 The adoption of certain mental tendencies () by an immediate attraction of the idea itself whose nature is
divined before the mind possesses it by the power of sympathy that is by the virtue of the continuity of the mind
162
288 1893)226
Sua funccedilatildeo eacute a de tornar harmoniosos os frutos das criaccedilotildees que constituem o
universo Poeticamente Peirce afirma que aacutegape eacute capaz de ateacute mesmo ldquo() reconhecer os
germes de amor no oacutedio gradualmente trazecirc-los para a vida e tornaacute-los amaacuteveisrdquo (CP 6 sect 289
1893)227
Do ponto de vista mais geral como aponta Silveira (2003) levando-se em conta a
hierarquia estabelecida por Peirce entre as ciecircncias na qual a loacutegica tem por base a eacutetica que por
sua vez tem por base a esteacutetica a uacutenica ideia que pode atuar como forccedila atratora do desenrolar
dos acontecimentos eacute a proacutepria ideia de razoabilidade A razoabilidade eacute o uacutenico bem admiraacutevel
por si mesmo
O proacuteprio ser do geral da Razatildeo consiste em seu governo sobre eventos
individuais Assim entatildeo a essecircncia da razatildeo eacute tal que nunca seu ser pode ter
sido completamente aperfeiccediloado Ele sempre deve estar em um estado de
incipiecircncia de crescimento Eacute como o caraacuteter de um homem que consiste nas
ideias que ele vai conceber e nos esforccedilos que faraacute e que soacute se desenvolve na
medida em que as ocasiotildees realmente surgem No entanto em toda a sua vida
nenhum filho de Adatildeo jamais manifestou plenamente o que havia em si Assim
entatildeo o desenvolvimento da razatildeo requer como uma parte de si a ocorrecircncia de
mais eventos individuais do que jamais pode ocorrer Requer tambeacutem todas as
cores de todas as qualidades de sentimento incluindo o prazer em seu devido
lugar entre os demais Este desenvolvimento da razatildeo consiste vocecirc observaraacute
em encarnaccedilatildeo isto eacute em manifestaccedilatildeo A criaccedilatildeo do universo que natildeo teve
lugar durante uma certa ocupada semana no ano 4004 AC mas que estaacute
acontecendo hoje e nunca estaraacute terminada eacute o verdadeiro desenvolvimento da
Razatildeo Natildeo vejo como se possa ter um ideal mais satisfatoacuterio do admiraacutevel do
que o desenvolvimento da razatildeo assim entendida A uacutenica coisa cuja
admirabilidade natildeo eacute devida a um motivo ulterior eacute a proacutepria razatildeo
compreendida em toda sua plenitude tanto quanto podemos compreendecirc-la Sob
esta concepccedilatildeo o ideal de conduta seraacute o de executar a nossa pequena funccedilatildeo na
operaccedilatildeo da criaccedilatildeo dando uma ajuda para tornar o mundo mais razoaacutevel
sempre que como diz a giacuteria cabe a noacutes fazecirc-lo Em loacutegica pode-se observar
que o conhecimento eacute a razoabilidade e o ideal do raciociacutenio seraacute seguir os
meacutetodos como se deve para desenvolver o conhecimento mais rapidamente (CP
1 sect 615 1903)228
226 The movement of love is circular at the one and the same impulse projecting creations into independency and
drawing them into harmony This seems complicated when stated so but it is fully summed up in the simple formula
we call the Golden rule 227
() recognizing germs of loveliness in the hateful gradually warms it in to life and make it lovely 228
The very being of the General of Reason consists in its governing individual events So then the essence of
Reason is such that its being never can have been completely perfected It always must be in a state of incipiency of
growth It is like the character of a man which consists in the ideas that he will conceive and in the efforts that he will
make and which only develops as the occasions actually arise Yet in all his life long no son of Adam has ever fully
163
Podemos nos utilizar de um esquema proposto por Potter (1997) para sintetizarmos o modo
de desenvolvimento ou crescimento influenciado pela atuaccedilatildeo da evoluccedilatildeo agapaacutestica
O desenvolvimento Agapaacutestico (terceiridade) novas ideias satildeo adotadas nem
descuidadamente nem cegamente mas por uma atraccedilatildeo imediata pela ideia em
si adivinhada antes mesmo de a mente possuir a ideia conscientemente pelo
poder da simpatia ou afinidade (continuidade da mente) tanto
a) pela comunidade que possui a ideia na personalidade coletiva e a passa aos
indiviacuteduos que de outra forma satildeo incapazes de alcanccedilaacute-la ou
b) Por um indiviacuteduo que descobre a ideia por si mesmo mas soacute porque estaacute em
simpatia com a comunidade e essa simpatia permitiu que ele experimentasse a
atratividade da ideia ou
c) Por um indiviacuteduo que descobre a ideia por si mesmo independentemente de
seus afetos humanos simplesmente em virtude da atratividade da ideia em si
(POTTER 1997 p 187)
4 A ORIGINALIDADE DA CAUSA FINAL PEIRCEANA
Uma vez delineado o papel da causalidade final na obra peirceana resta-nos enfatizar suas
principais caracteriacutesticas e apontar em que consiste a sua originalidade Para tanto indicaremos
em que medida sua concepccedilatildeo se distingue daquela proposta por Aristoacuteteles Peirce como jaacute foi
manifested what there was in him So then the development of Reason requires as a part of it the occurrence of
more individual events than ever can occur It requires too all the coloring of all qualities of feeling including
pleasure in its proper place among the rest This development of Reason consists you will observe in embodiment
that is in manifestation The creation of the universe which did not take place during a certain busy week in the
year 4004 BC but is going on today and never will be done is this very development of Reason I do not see how
one can have a more satisfying ideal of the admirable than the development of Reason so understood The one thing
whose admirableness is not due to an ulterior reason is Reason itself comprehended in all its fullness so far as we
can comprehend it Under this conception the ideal of conduct will be to execute our little function in the operation
of the creation by giving a hand toward rendering the world more reasonable whenever as the slang is it is up to
us to do so In logic it will be observed that knowledge is reasonableness and the ideal of reasoning will be to
follow such methods as must develop knowledge the most speedily
164
dito considerava-se um seguidor da noccedilatildeo aristoteacutelica de causa final juiacutezo que natildeo nos parece
ser totalmente preciso Indicaremos a seguir para efeito de comparaccedilatildeo alguns aspectos
presentes em ambas as noccedilotildees
Natildeo eacute pretensatildeo deste trabalho realizar um estudo que compreenda o todo da noccedilatildeo de
causalidade final presente na obra aristoteacutelica A quantidade de estudos sobre esse toacutepico eacute
bastante grande de tal maneira que propor uma interpretaccedilatildeo da noccedilatildeo sem o estabelecimento de
um diaacutelogo com essa produccedilatildeo seria visto como suspeito Todavia dada a proximidade entre as
ideias sobre causalidade final dos dois filoacutesofos reconhecida por Peirce e pelos estudiosos de sua
obra cabe aqui apenas a indicaccedilatildeo daqueles aspectos que satildeo semelhantes em ambas as
concepccedilotildees e aqueles que diferenciam a concepccedilatildeo peirceana e expressam sua originalidade
Para contrastar com a concepccedilatildeo peirceana veremos o que Aristoacuteteles diz no segundo livro
da Fiacutesica texto claacutessico para a compreensatildeo da noccedilatildeo de causa final no autor Para o que nos
interessa neste momento podemos perceber que Aristoacuteteles busca responder agraves seguintes
questotildees que podem ser colocadas na forma de um dilema ldquoa natureza procede apenas por
necessidade e natildeo com vista de finsrdquo ou ldquoa natureza aleacutem de proceder por necessidade opera
tambeacutem teleologicamenterdquo como indica Angioni (2006 p 37) Tendo estabelecido que as coisas
acontecem por necessidade na natureza mas tambeacutem motivadas pelo acaso o que acaba por
produzir acontecimentos que satildeo frutos natildeo da necessidade mas do encontro de cadeias causais
necessaacuterias independentes Cabe perguntar qual a causa do encontro dessas cadeias
independentes de eventos Angioni indica que Aristoacuteteles reconhece duas possibilidades ou as
coisas se datildeo por concomitacircncia isto eacute ldquoas seacuteries causais se agrupam bdquoespontaneamente‟ () sem
que nenhuma causa anterior explique por que tal conjunccedilatildeo de seacuteries viria a ser necessaacuteriardquo
(2006 p 42) e acrescenta ldquoou tais seacuteries compotildeem-se entre si sob um princiacutepio anterior que
exige a composiccedilatildeo das mesmas sob certa ordemrdquo (ANGIONI 2006 p 46)
O exemplo da parede de pedra pode ajudar na compreensatildeo da relaccedilatildeo entre aquilo que
acontece por natureza isto eacute necessariamente e aquilo que ocorre em vista de um fim Na
parede as pedras e alicerces naturalmente pesados tecircm a tendecircncia a se deslocar para baixo e
165
constituem a base e acima deles se encontram as estruturas de madeira que sendo mais leves tecircm
a tendecircncia de se deslocarem para o alto (com relaccedilatildeo agraves pedras) A parede seraacute necessariamente
construiacuteda com pedras que teratildeo a tendecircncia de se deslocar para baixo As caracteriacutesticas
inerentes aos materiais como a pedra e a funccedilatildeo a ser desempenhada pela parede se combinam de
modo que podemos dizer que haacute uma necessidade que ela seja desse modo Aristoacuteteles diz que
ldquoessas coisas natildeo se geram sem os itens que possuem uma natureza necessaacuteria mas natildeo satildeo
devido a esses itens a natildeo ser como mateacuteria mas satildeo em vista de algordquo (ARISTOacuteTELES 2002
200a 7-10) Haacute portanto um plano de desenvolvimento conduzido pela necessidade de
acabamento que natildeo pode se dar a natildeo ser com a junccedilatildeo com aquilo que eacute necessaacuterio As quatro
causas atuariam concomitantemente sendo a mais primordial a causa final ou acabamento
Angioni indica que para Aristoacuteteles ldquoa causa final () deve receber mais atenccedilatildeo porque ela eacute
bdquocausa da mateacuteria‟ natildeo o inverso ()rdquo (ANGIONI 2006 P 54)
A partir da diferenciaccedilatildeo das causas em quatro tipos distintos proposta por Aristoacuteteles
(Fiacutesica 194b15-195b30) Peirce elabora uma aplicaccedilatildeo das noccedilotildees agraves suas proacuteprias ideias e
afirma
A causa interna de individuaccedilatildeo eacute chamada a causa material Assim partes
integrantes de um assunto ou de um fato formam sua mateacuteria ou causa
material A causa externa de individuaccedilatildeo eacute chamada de eficiente ou a causa
eficiente e o causatum eacute chamado de efeito A causa interna de definiccedilatildeo eacute
chamada causa formal ou forma Todos estes fatos que constituem a definiccedilatildeo
de um assunto ou fato compotildeem sua forma A causa externa de definiccedilatildeo eacute
chamada de causa final ou fim Espera-se que estas declaraccedilotildees seratildeo
consideradas mais certeiras do que aquelas de Aristoacuteteles e os escolaacutesticos como
o alvo que eles miravam (EP 2 315-6 1904)229
229 The individuating internal cause is called the material cause Thus the integrant parts of a subject or fact form its
matter or material cause The individuating external cause is called the efficient or efficient cause and the causatum
is called the effect The defining internal cause is called the formal cause or form All these facts which constitute
the definition of a subject or fact make up its form The defining external cause is called the final cause or end It is
hoped that these statements will be found to hit a little more squarely than did those of Aristotle and the scholastics
the bull‟s eye at which they aimed (EP 2 p 315-6 1904)
166
Assim como a de Aristoacuteteles a noccedilatildeo de causa final peirceana eacute explicitamente
antropomoacuterfica Como jaacute indicamos anteriormente Peirce reconhecia esse aspecto de sua teoria e
o endossava indicando que natildeo poderia ser de outra forma A principal justificativa para esta
forma de exposiccedilatildeo reside na ideia de que tudo o que pode ser conhecido tudo que eacute
compreensiacutevel para o homem deve ter a sua marca Isso no entanto natildeo significa que a accedilatildeo
propositada a forma de causalidade final mais familiar aos homens seja sua uacutenica expressatildeo A
causalidade final eacute como vimos na obra de Peirce ubiacutequa
Toda causalidade final eacute um tipo ideal para ambos os filoacutesofos aquilo que exerce o poder
causal do tipo final natildeo pode ser algo atual ou individual mas antes eacute a expressatildeo de certas
potencialidades jaacute delineadas no presente Natildeo existe qualquer evento real futuro que exerccedila
algum tipo de atraccedilatildeo sobre o desenrolar dos eventos conduzindo-os a um predeterminado fim
Causalidade final e causalidade eficiente natildeo podem existir de maneira autocircnoma a
consciecircncia desta complementaridade eacute ainda mais viva em Peirce Como vimos todas as
instacircncias de atuaccedilatildeo causal recebem a influecircncia de trecircs diferentes forccedilas causais da causa
eficiente do acaso e da causa final
Por outro lado para Aristoacuteteles eacute como indica Short (1981b p 371) ldquoUm tipo geral eacute uma
causa final por causa do bem que caracterizaccedilatildeo qualquer uma de suas atualizaccedilotildeesrdquo Haacute na obra
Aristoteacutelica uma relaccedilatildeo estreita entre causa final e a realizaccedilatildeo do bem supremo de cada ser ou
objeto Esse aspecto natildeo se encontra presente nas consideraccedilotildees de Peirce a causalidade final natildeo
atua em funccedilatildeo da atualizaccedilatildeo de algum elemento substancial Embora natildeo possa existir qualquer
processo do qual ela esteja ausente isso natildeo implica para Peirce que ela tenha que estar definida
com algum grau de precisatildeo desde o princiacutepio Haacute reconhece o filoacutesofo a possibilidade de que
no decorrer do processo a proacutepria causa final se altere e gere novos resultados em funccedilatildeo de
novos elementos ou situaccedilotildees que podem ter sido colocados em cena pela atuaccedilatildeo do acaso
Como vimos a atuaccedilatildeo do acaso eacute uma condiccedilatildeo para a existecircncia de causas finais na concepccedilatildeo
peirceana e nisto elas se distinguem do conceito aristoteacutelico pois para o estagirita a atuaccedilatildeo do
167
acaso implica na ausecircncia de causa final Pode-se acrescentar a essas diferenccedilas a ideia peirceana
de que aacutegape ndash ou amor criativo ndash eacute a mais pura expressatildeo da causalidade final
5 CAUSA FINAL E CLASSIFICACcedilAtildeO NATURAL
O esforccedilo para tornar a causalidade final compreensiacutevel e a defesa do seu lugar nos eventos
do cosmo respondem a uma necessidade bastante presente nos vaacuterios periacuteodos da produccedilatildeo
peirceana o de tornar a ciecircncia um empreendimento possiacutevel e natildeo uma mera ficccedilatildeo arbitraacuteria O
problema da relaccedilatildeo do homem com o mundo tambeacutem denominado de problema da existecircncia do
mundo exterior eacute o objeto da inquietaccedilatildeo de Peirce Esse aspecto da justificaccedilatildeo da causalidade
final ficaraacute mais claro ao tratarmos das ideias de Peirce quanto agrave classificaccedilatildeo natural (cf
HULSWIT 1997)
Hawkins (2007) afirma que o tratamento que Peirce dispensa agrave classificaccedilatildeo natural no
texto On science and natural classes de 1902 pode parecer estranho pois ldquoEm vez de comeccedilar
com os elementos baacutesicos do mundo fiacutesico tratados como se o caraacuteter que ele nos parece ter seja
de fato o seu caraacuteter independente de nossa observaccedilatildeo (em si mesmos) Peirce comeccedila com a
questatildeo de como o mundo da cientista se revela para elardquo (HAWKINS 2007 p 530) E a
resposta a partir da qual Peirce desenvolve seu texto eacute a de que o mundo se revela natildeo como um
caos desordenado mas antes se apresenta pleno de regularidades que permite ao cientista dividi-
lo em grupos distintos
Eacute a causa final o princiacutepio que permite ao cientista agrupar os diferentes aspectos do
mundo Em particular ldquo() o desejo [como vimos a mais familiar forma de causa final] cria
classes e classes extremamente amplasrdquo (EP 2 p 118 1902)230
Ao tratar da classificaccedilatildeo
natural das ciecircncias Peirce afirma que se queremos conhecer em quais classes as ciecircncias estatildeo
230 () desire creates classes and extremely broad classes
168
naturalmente divididas basta consultar uma lista dos perioacutedicos existentes O que cria as classes
eacute o desejo de conhecer dos cientistas Esse desejo contudo natildeo eacute o produtor de uma lista
arbitraacuteria o mundo impotildee limites Embora algueacutem possa querer inventar uma ciecircncia que ainda
natildeo exista ela soacute sobreviveraacute se espelhar alguns aspectos do mundo que lhe resiste O mundo eacute
definido por Peirce da seguinte maneira
() o mundo externo (isto eacute o mundo que eacute comparativamente externo) natildeo
consiste apenas de objetos existentes nem apenas destes e de suas reaccedilotildees mas
ao contraacuterio seus mais importantes reais tecircm o modo de ser daquilo que o
nominalista chama de meras palavras isto eacute tipos gerais e would-bes O
nominalista estaacute certo em dizer que eles satildeo substancialmente da natureza das
palavras mas o seu bdquomero‟ revela uma completa incompreensatildeo do que o nosso
mundo cotidiano consiste (CP 8 sect 191 1904)231
Para finalizar Peirce indica que as causas finais possuem trecircs caracteriacutesticas elas satildeo
sempre gerais sempre vagas e sempre possuem certa amplitude (longitude) Satildeo gerais como jaacute
vimos porque aquilo que atrai os acontecimentos eacute sempre de certo tipo fruto da mediaccedilatildeo Satildeo
vagas porque nem o modo de sua realizaccedilatildeo nem o resultado estatildeo determinados de antematildeo
Finalmente satildeo amplas porque ainda quando natildeo realizadas plenamente qualquer outra
possibilidade que dela se aproxima jaacute eacute aceitaacutevel
231 () the external world (that is the world that is comparatively external) does not consist of existent objects
merely nor merely of these and their reactions but on the contrary its most important reals have the mode of being
of what the nominalist calls mere words that is general types and would-bes The nominalist is right in saying that
they are substantially of the nature of words but his mere reveals a complete misunderstanding of what our
everyday world consists of
169
CONCLUSAtildeO
() the only possible justification for a hypothesis is that it renders the facts
comprehensible (CP 8 sect 168 1903)
170
A descriccedilatildeo da cosmogonia elaborada por Peirce como uma hipoacutetese que permite ampliar o
horizonte da inteligibilidade humana e garantir a possibilidade da elaboraccedilatildeo de teorias
cientiacuteficas exitosas forneceu os elementos iniciais para a compreensatildeo de sua filosofia Criada
sob a maacutexima loacutegica mais fundamental sintetizada na expressatildeo ldquonatildeo bloquear o caminho da
investigaccedilatildeordquo a cosmogonia peirceana identifica e nomeia as trecircs categorias metafiacutesicas
formadoras do seu sistema ndash acaso existente e lei ndash e a maneira como se combinam para
constituir a realidade revelada pela experiecircncia Tais categorias satildeo os correlatos hipoteacuteticos das
categorias faneroscoacutepicas232
reveladas pela experiecircncia ndash primeiridade secundidade e
terceiridade Uma boa hipoacutetese explicativa que torna o mundo da experiecircncia ndash tal como o
exprerienciamos ndash compreensiacutevel agrave nossa inteligecircncia eacute a de pensaacute-lo como originaacuterio de um
processo evolutivo a partir do acaso absoluto e cujo desenvolvimento se daacute sob a influecircncia da
lei da mente e da causalidade final
Uma consequecircncia dessa hipoacutetese eacute a de que os fenocircmenos satildeo sem exceccedilatildeo o resultado
de um processo contiacutenuo de aumento da complexidade e da regularidade do mundo Peirce indica
que sua filosofia eacute construiacuteda sobre a hipoacutetese de que todos os fenocircmenos satildeo partes de um
continuum Agrave apresentaccedilatildeo das consequecircncias desta hipoacutetese e a teoria assim constituiacuteda o
filoacutesofo daacute o nome de sinequismo e indica que ela sintetiza sua filosofia em uma uacutenica palavra
(cf CP 4 sect 584 1906) A adoccedilatildeo do sinequismo como de qualquer hipoacutetese tem por motivaccedilatildeo
a esperanccedila de tornar os fenocircmenos inteligiacuteveis sendo esta diz Peirce sua principal justificaccedilatildeo
A ideia de continuidade desenvolvida por Peirce eacute original ainda que elaborada a partir da
reflexatildeo das definiccedilotildees presentes nas obras de Aristoacuteteles e Kant e faz uso da noccedilatildeo de
infinitesimal como seu constituinte fundamental O continuum pensado por Peirce natildeo possui
pontos atuais mas apenas pontos virtuais denominados de infinitesimais a partir dos quais
continuidades podem ser desenvolvidas infinitamente O modelo principal do continuum eacute o
tempo e o espaccedilo
232 Peirce por vezes denomina a ciecircncia do que nos aparece como faneroscopia e em outras de fenomenologia
171
O modo de desenvolvimento ou crescimento do continuum recebe o nome de evoluccedilatildeo O
processo evolutivo faz surgir um universo que apresenta caracteriacutesticas de espontaneidade e
liberdade manifestas em sua grande variedade e novidade mas tambeacutem regularidade expressa
por suas leis Como vimos essas duas caracteriacutesticas cuja origem encontra-se no acaso e na lei
da mente ou lei de aquisiccedilatildeo de haacutebitos satildeo necessaacuterias para que se possa construir teorias que
natildeo postulem o incognosciacutevel nem produzam uma imagem congelada do universo como aquela
oferecida pelo mecanicismo De um lado a diversidade e a novidade satildeo constatadas tanto por
meio de certas ciecircncias como a biologia e a paleontologia mas tambeacutem pela atitude de qualquer
pessoa que olhe para o mundo com atenccedilatildeo e sem preconceitos A diversidade diz Peirce eacute o
aspecto mais marcante que a experiecircncia nos revela Do outro lado as regularidades tambeacutem se
impotildeem na observaccedilatildeo principalmente para aqueles que desenvolveram grande poder de
abstraccedilatildeo e aprenderam a reconhecer nos mais variados fenocircmenos certos traccedilos que se repetem
Contudo ainda que as regularidades estejam atuando continuamente e sob o efeito da lei da
mente tornando-se mais e mais regular nunca atingem o status de absolutas A atualizaccedilatildeo de
qualquer lei eacute o momento da interferecircncia do acaso que pode ser imperceptiacutevel em certos
fenocircmenos e marcante em outros
A possibilidade de pensarmos um universo que se desenvolve sob a atuaccedilatildeo de princiacutepios
incognosciacuteveis eacute um caminho vedado pela filosofia peirceana Na medida em que a filosofia eacute
uma atividade intelectual que procura tornar a experiecircncia compreensiacutevel a postulaccedilatildeo do
incognosciacutevel eacute a negaccedilatildeo do proacuteprio empreendimento racional Se o universo entretanto fosse
tal como descrito pelo mecanicismo ou bdquonecessitarismo‟ segundo o termo empregado pelo autor
isto eacute completamente determinado por leis absolutas natildeo poderia apresentar as caracteriacutesticas
reveladas pela experiecircncia
Em acreacutescimo agrave tarefa de tornar o mundo em todos os seus detalhes inteligiacutevel pode-se
verificar no surgimento de teorias cientiacuteficas que tratam especificamente de fenocircmenos
irreversiacuteveis uma outra fonte de motivaccedilatildeo para a constituiccedilatildeo de uma filosofia evolutiva que
tem por base uma matriz ontoloacutegica indeterminista como vimos no terceiro capiacutetulo desta tese
172
Uma das tarefas a que nos propomos realizar neste trabalho foi a de compreender o lugar da
cosmogonia proposta por Peirce no interior de seu sistema filosoacutefico A hipoacutetese que motivou
essa investigaccedilatildeo foi a de que sua cosmogonia desempenha um papel importante na validaccedilatildeo do
empreendimento cientiacutefico A constituiccedilatildeo de uma ciecircncia adequada agrave determinaccedilatildeo de uma
conduta racional para o futuro pareceu-nos desde o iniacutecio o alvo que Peirce mirava Vimos no
capiacutetulo trecircs sobre a evoluccedilatildeo de que maneira essa hipoacutetese serve ao propoacutesito de impedir o
regresso infinito das explicaccedilotildees substituindo uma perspectiva (que poderiacuteamos denominar de
bdquofundacionista‟) por outra mais adequada construiacuteda em moldes geneacuteticos
Outro grande problema sobre o qual Peirce se debruccedilou durante muitos anos de sua
investigaccedilatildeo foi o de justificar a esperanccedila de que as hipoacuteteses poderiam de alguma maneira ser
refinadas a ponto de proporem explicaccedilotildees aceitaacuteveis para os fenocircmenos da experiecircncia O
primeiro candidato proposto como capaz de desempenhar esta funccedilatildeo foi a induccedilatildeo que no
entanto apoacutes uma vigorosa anaacutelise mostrou-se muito eficaz quanto agrave tarefa de eliminar hipoacuteteses
equivocadas mas completamente ineficaz quanto agrave tarefa de nos deixar mais proacuteximos de uma
explicaccedilatildeo verdadeira do mundo da experiecircncia A abduccedilatildeo surge entatildeo como a uacutenica esperanccedila
para a realizaccedilatildeo da ciecircncia Se a ciecircncia eacute possiacutevel eacute no momento da elaboraccedilatildeo das hipoacuteteses a
serem testadas que a capacidade humana de conhecer deve se manifestar Eacute a hipoacutetese ela
mesma que deve nos colocar na boa direccedilatildeo A suposta capacidade autocorretiva da induccedilatildeo
mostrou-se uma ilusatildeo
A abduccedilatildeo eacute descrita como um dos trecircs tipos de raciociacutenios loacutegicos contudo Peirce eacute muito
claro na indicaccedilatildeo de que ela natildeo passa de uma espeacutecie de adivinhaccedilatildeo desse modo
eminentemente faliacutevel sem qualquer garantia de que a hipoacutetese proposta seraacute a melhor
Entretanto o filoacutesofo jaacute constatava os avanccedilos que a ciecircncia do seu tempo havia atingido e natildeo
poderia haver outra fonte aleacutem da abduccedilatildeo que possui exclusividade heuriacutestica no seu sistema A
efetividade da abduccedilatildeo eacute explicada de iniacutecio a partir de uma perspectiva evolucionista um
instinto para o conhecimento que teria se desenvolvido a partir da necessidade de modelar a
conduta adequada para a sobrevivecircncia
173
A perspectiva evolutiva no entanto dificilmente pode ser aceita como uma explicaccedilatildeo
adequada para a elaboraccedilatildeo de teorias que vatildeo muito aleacutem daquilo que diz respeito agrave necessidade
de sobrevivecircncia humana A causa final entendida como o tipo de causalidade no qual o todo
chama por suas partes (cf CP 1 sect 220 1902) ou evoluccedilatildeo (cf CP 2 sect 86 1902) pode ser vista
natildeo apenas como o princiacutepio que deu origem e continua atuando atualmente na constituiccedilatildeo do
universo como tambeacutem o princiacutepio por meio do qual o ser humano fruto do mesmo processo
evolutivo consegue adivinhar as boas hipoacuteteses explicativas
Desse modo o que Peirce faz ao elaborar a hipoacutetese que explica a origem a
desenvolvimento do universo vai aleacutem da criaccedilatildeo de uma cosmogonia O filoacutesofo identifica um
princiacutepio sob o qual o universo se desenvolveu ndash a causalidade final cujo principal efeito indica
Peirce eacute a de tornar o universo mais razoaacutevel desenvolver a sua razoabilidade concreta (cf CP
1 sect 602 1903 CP 1 sect 615 1903)
A perspectiva evolucionaacuteria de Peirce prevecirc que quanto ao ser humano o futuro traraacute por
meio do desenvolvimento do conhecimento racional do mundo a possibilidade do
estabelecimento de condutas mais e mais autocontroladas quanto ao universo o futuro muito
mais amplo traraacute a crescente influecircncia da lei na determinaccedilatildeo de cada evento Em um futuro
suficiente distante as regularidades estaratildeo tatildeo presentes que impossibilitaratildeo a existecircncia da
vida manifestaccedilatildeo por excelecircncia da espontaneidade cada acontecimento seraacute fundamentalmente
determinado pela atuaccedilatildeo das leis em um universo que poderia ser comparado a um imenso
cristal Essa descriccedilatildeo como vimos eacute apresentada por Peirce em sua cosmogonia (cf CP 6 sect 33
1891) e parece indicar que a cristalizaccedilatildeo dos haacutebitos no futuro distante do universo corresponde
agrave realizaccedilatildeo da razoabilidade concreta Entretanto se esta interpretaccedilatildeo estaacute correta o estado
final a que tende o universo eacute aquele descrito pelos necessitarista e muito criticado por Peirce
como vimos A alternativa que nos parece mais adequada e coerente ao conjunto das ideias
peirceanas algumas delas apresentadas neste trabalho eacute a de pensar as categorias como
inesgotaacuteveis e atuantes em qualquer momento do desenvolvimento do universo propiciando o
infinito crescimento da ordem e da diversidade A filosofia de Peirce pode ser entendida como a
tentativa de mostrar o modo como essas duas caracteriacutesticas inerentes agrave nossa experiecircncia do
174
mundo ndash a diversidade e a regularidade ndash satildeo compatibilizadas na concepccedilatildeo de uma matriz
ontoloacutegica indeterminista mas geradora de ordem
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