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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Marina Costin Fuser
Palavras que dançam à beira de um abismo
Mulher na Dramaturgia de Hilda Hilst
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para a obtenção
do título de MESTRE em CIÊNCIAS
SOCIAIS, sob a orientação da Profa
Doutora Carla Cristina Garcia
SÃO PAULO
2012
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Dissertação intitulada “Palavras que dançam à beira do abismo – Mulher na
dramaturgia de Hilda Hilst”, de autoria da mestranda Marina Costin Fuser,
apresentada à banca examinadora constituída pelos seguintes professores:
Banca Examinadora
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RESUMO
A presente dissertação lança luz sobre um teatro escrito à sombra da
ditadura brasileira. A dramaturgia de Hilda Hilst é um grito de protesto frente às
arbitrariedades perpetradas pelos algozes do regime. Em meio aos escombros da
barbárie humana, resplandece a donzela guerreira. Através da análise de duas
peças de Hilda Hilst – A Empresa / A Possessa – estória de austeridade e exceção
(1967) e O Verdugo (1969) – procuro mapear as trajetórias de mulheres que
buscaram caminhos de transcendência. Seu lirismo remete a possibilidades,
movimentos e viradas de jogo. A mulher em Hilst não se encerra em definições
fechadas; ela se desdobra tal como um leque, feito de múltiplas camadas. Hilst
vislumbra o transitório, no calor dos processos metamórficos que atravessam suas
personagens. Sua dramaturgia é feita de alegorias, que se entrelaçam em uma
tessitura delicada, onde poesia e teatro se encontram. O objetivo desse trabalho é
percorrer esses caminhos labirínticos, em uma análise sensível aos
desdobramentos de um lirismo que não se deixa fixar. Quais silêncios e quais
gritos habitam suas personagens, e o que ocorre quando estes são levados ao
extremo limite?
Palavras-chave:
Hilda Hilst, Teatro, Dramaturgia, Mulher, Transcendência, Metamorfoses,
Silêncio, Grito, Resistência, Herói, Ditadura.
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ABSTRACT
This present dissertation throws light upon a theater written through the
shadows of Brazilian dictatorship. Hilda Hilst’s dramaturgy is a scream of protest
facing the arbitrariness portrayed by the executioners of the regime. Among the
ruins of human barbarism, the lady warrior shines. Though the analysis of two of
Hilda Hilst’s plays – The Enterprise / The Possessed – story of austerity and
exception (1969) – I intend to map the trails of women that serached the path of
transcendence. Her lyrism is related to possissibilities, mouvements, and game
turns. The woman in Hilda Hilst does not suit closed definitions; it unfolds just
like a hand fan, made by multiple layers. Hilst enhances the trasitory, in the heat
of metamorphic processes that come across her characters. Her dramaturgy is
composed by allegories, that interweave in a delicate fabric, where poetry and
theatre combine. The purpouse of this work is to go through these labyrinthic
paths, in a senstive analysis of the unfoldings of this lyrism which does not let
itself be fixed. Which silences and which screams inhabit her characters, and what
happens when they are driven to their extreme limits?
Keywords:
Hilda Hilst, Theatre, Dramaturgy, Woman, Transcendence, Metamorphose,
Silence, Scream, Resistance, Hero, Dictatorship.
5
À minha avó Marlene
6
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha orientadora por ter me acolhido com muita dedicação e
ternura, e esteve comigo desde o início, ajudando a cortar minhas asinhas, para
voar mais alto com maior precisão, nesse processo de metamorfose, que teve
início com o projeto sobre a militância de mulheres nos anos de chumbo e se
encerrou em leveza, com o voo poético de Hilda Hilst. Ainda assim, em nenhum
momento perdemos de vista a mulher que atravessou a ditadura militar brasileira.
O que mudou foi a militância, que percorreu outro caminho. Agradeço à Carla
pelas referências bibliográficas, por acompanhar as minhas ideias mirabolantes,
por passar horas a fio relendo linha por linha desta dissertação em pleno sábado de
carnaval. Vai ser difícil encontrar outra orientadora como você.
Agradeço ao meu pai e à minha mãe, por apostarem em minha carreira
acadêmica e estarem ao meu lado, como referência e ponto de apoio. Agradeço à
minha avó Marlene por me ajudar na revisão do português e por ser uma artista
que conseguiu traduzir sua experiência nos porões do DOI-CODI em lindas
gravuras. Uma pessoa muito especial. Agradeço aos meus avós Maurice e Lídia
por todo o carinho e a ternura sem os quais seria impensável chegar até aqui.
Agradeço ao meu avô Fausto e à Raquel Araújo, aos meus irmãos Rafael,
Maurício e Vivian, aos meus tios Ricardo, Bruno, Carlos, Gil, Ana e Neide, aos
meus primos Guilherme, Cecília, Charline, Luca, Laura, Daniel, Bia, Francisco,
João, à minha pequena sobrinha Ariana, ao meu sobrinho Zion, à Brea, à Márcia
Leal, à Luísa Cusnir e ao meu querido afilhado Ian por fazerem parte da minha
vida. Agradeço à minha prima Cynthia por ter tido a paciência de me deixar ler
em voz alta alguns capítulos dessa dissertação. Agradeço à Valéria Fuser e ao
pessoal do Grupo Anima pelas maravilhosas donzelas guerreiras, que inspiraram a
conclusão deste trabalho.
Agradeço à Helena Corvini, por viver esse processo junto comigo, na
alegria e na tristeza. Agradeço aos amigos que contribuem com ideias, que de
algum modo repercutiram aqui: Renata Lofrano, Juliana Hereda, Vivas Pereira,
Débora Lessa, José Luiz Goldfarb, Amelinha e Criméia Telles, Ana Carolina
Gebrim, Mayra Castro, Klaus Troetschel, Rafael Leão, Fábio Ralston, Renato
Carvalho Intakli, Maria Fernanda Borio, Célio Ishikawa, Adriana Soares, Rodrigo
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Ramos Lavich, Martha Lemos de Moraes, Beto Pi, Marcos Carrijo, Inaê Sampaio,
Josie Berezin, Rachel D´Amico, Ana Kelson, Stella Segal, Bertile Giusti, Edna
Matos, Marcelo Doca Sobral, Camila Valle, Camila Sant´Anna, Isabelle Pignot,
Maitê Fanchini, Marcelo Rocco, Alexandre Plessman, Mariana Gehring, Janaína
Mello, Marcos Vinícius Maia, Caru Alves de Souza, Natasha Bachini, Andressa
Nozue, Michelle Watkins, Tatiana Gonçalves, Clarissa Menezes, Aline da Silva,
Mariana Cristtal, Marina Rodrigues, Leda Vasconcellos, Ale Ezabella, Amanda
Bacaleinick, Lilian Breschigliaro, Sarah Oakley, Rebecca Beers, Kate Birney,
Tamar Kalkstein, Lissa Noctis, Vilma Bokany, Zeca Vidal, João Paulo Pinheiro
Paiva, Franco Chiariello, Marina Trivelli Tambelli, Bianca Koch e Rose Katsanos.
Agradeço ao CNPq e ao programa de Pós Graduação em Ciências Sociais
por viabilizarem a bolsa que custeou meus estudos, e por zelar por um ensino
crítico e de qualidade. Agradeço à Carmen Junqueira pela maravilhosa aula de
métodos de pesquisa, aos professoresMiguel Chaia, Caterina Koltai, Sívia Borelli
e Edson Nunes, por fazerem da sala-de-aula um ambiente inspirador. Agradeço ao
Prof. Ferdinando Martins por me aceitar como aluna especial na ECA-USP e me
guiar nesse ambiente cheio de sonho, paetês e purpurina, que é a história do teatro
brasileiro. Agradeço à professora Mariza Werneck por conduzir um círculo
literário bastante acolhedor. Agradeço ao grupo Inanna pelas construções
coletivas quanto ao gênero e suas possibilidades.
Agradeço à Hilda Hilst por sua escrita maravilhosa. Agradeço ao Caio
Fernando Abreu, à Virgínia Woolf, ao James Joyce, ao Oscar Wilde, ao Marcel
Proust, ao James Douglas Morrison, ao Sid Vicious, à Patty Smith, à P.J Harvey, à
Clarice Lispector, à Björk, ao Franz Kafka, e ao TS. Elliot. Agradeço às
feministas por fazerem desta uma bandeira para a vida. Enfim: tudo que toca meu
coração contribui para a minha escrita.
Agradeço àquela força estranha que alguns chamam de Deus, pois sou uma
pessoa de muita sorte.
8
SUMÁRIO
1- Apresentação …………………………………………………….. 09
2- Capítulo I: Fale baixo, senão elas gritam...................................... 13
3- Capítulo II: A casa que habito, o corpo que habito, o rio que me
atravessa............................................................................................ 27
4- Capítulo III: A lírica de Hilst invade o palco ................................. 41
5- Capítulo IV: A Epopeia de América
e a Beatitude da Verdade ................................................................... 48
6- Capítulo V: O Maravilhoso Disforme
e as Intermitências do Carrasco ......................................................... 81
7- Capítulo VI : Donzelas Guerreiras .................................................... 144
8- Bibliografia .......................................................................................... 152
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APRESENTAÇÃO
Acabo de te olhar nos olhos, vida; vi reluzir ouro nos teus olhos
noturnos, e essa voluptuosidade paralisou-me o coração: vi brilhar
uma barca dourada que se submergia em águas noturnas, uma barca
dourada que se submergia e reaparecia fazendo sinais!
Tu dirigias um olhar aos meus pés, doidos por dançar, um olhar
acariciador, terno, risonho e interrogador,
Duas vezes apenas agitaste com as mãos as tuas castanholas e já os
pés me pulavam, ébrios.
Os calcanhares erguiam-se; os dedos escutavam para te
compreender; não tens os dançarinos os ouvidos nos dedos dos pés?
(Friedrich Nietzsche)1
Hilda Hilst escreve palavras de leveza num momento em que uma cortina de
chumbo recobria o solo brasileiro. Em seu recolhimento na Casa do Sol, Hilda
Hilst não é alheia aos acontecimentos atrozes que silenciam gritos de liberdade, e
levam ao confinamento cavernoso as chamas de luz que brilham em direção
contrária ao estado de exceção. É pelo teatro que Hilst faz o seu protesto contra as
arbitrariedades de um regime onde a exceção vira regra.
São palavras que comunicam o indizível, que suscitam uma miríade de imagens,
que não se definem nem fixam num único ponto, mas dançam com seus leves
calcanhares à beira do abismo, e pairam sobre as cinzas da barbárie sem encostar
os pés no chão. O abismo é a situação-limite, onde os nervos afloram a um ponto
insuportável. O abismo é a crise levada a seu ápice, é o fim da linha, o prenúncio
de uma catástrofe, a iminência da morte, em ambos os sentidos, figurativo ou
literal. O abismo é mistério, é a vertigem da queda, ou a possibilidade de se
metamorfosear em pássaro e alçar voo.
Nietzsche dizia que é preciso ter coragem para ver o abismo com olhos de
águia. De peito aberto, Hilda Hilst cria coragem de alçar voo sobre um universo
cênico, deixa de lado sua poesia para escrever seu teatro. Como dizia o filósofo
Gaston Bachelard, o voo é uma metáfora da imaginação.
O movimento de voo dá imediatamente, numa abstração fulminante,
uma imagem dinâmica perfeita, acabada, total. (...) Se os pássaros
constituem o ensejo de um grande voo de nossa imaginação, não é por
causa de suas cores brilhantes. O que é belo no pássaro,
primitivamente, é o voo. (...) As cores múltiplas pestanejam, são as
1 NIETZSCHE, F. “Assim falava Zaratustra”. Tradução: José Mendes de Souza. Versão para
eBook eBooksBrasil.com. 2002. P-358. Link: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/zara.pdf
10
colorações de movimentos que pestanejam. (...) Quando um
sentimento se eleva no coração humano, a imaginação evoca o céu e o
pássaro.2
A imaginação da autora não desenha, mas vive os valores abstratos que ela
ilustra em seu movimento ascensional. Seus personagens se metamorfoseiam em
pássaros, coiotes e outras criaturas selvagens. Um sopro de Morfeu dá substância
às suas parábolas polimorfas, que ganham corpo e invertem as premissas em uma
sucessão de movimentos intermitentes. Nesse universo fantástico habita a mulher
e seus silêncios, que ensaiam um grito em surdina frente ao insuportável. A
mulher cujo brilho é ofuscado pelas sombras da austeridade, pelos dualismos que
dilaceram o universo, pelas hierarquias que esmagam as pequenas partículas de
vida. Seja América, a mulher colonizada; seja a mulher que precisa se vestir de
verdugo para afirmar sua existência. Dos rastros das grandes fogueiras que
lançaram chamas sobre saberes desprezados pela soberba da Ciência, resplandece
a mulher. A donzela guerreira, que veio para vingar a morte de Joana D’Arc,
queimada como bruxa por sua ousadia, pelo travestimento em soldado, suas
visões, a força ardente de suas palavras. Como descreve Walnice Nogueira
Galvão: “Figura meio histórica, meio mítica, a Donzela Guerreira transgride
simultaneamente duas fronteiras. A primeira delas entre os gêneros, ao colocar-se
a cavaleiro do masculino e do feminino; a segunda entre os estatutos do real e do
imaginário.” 3
O primeiro capítulo leva o título “Fale baixo senão elas gritam”, em
alusão à peça de Leilah Assumpção (Fale baixo senão eu grito). Trata de
apontamentos históricos acerca das dramaturgas que fizeram parte de uma geração
de dramaturgos politicamente engajados em diferentes níveis, mas que modificou
o teatro brasileiro em forma e conteúdo. Procuro contextualizar historicamente o
período em que Hilda Hilst resolve escrever peças de teatro. Quem eram as
dramaturgas nesse período? Sobre o que elas escreviam? Qual era a relação dessas
dramaturgas com a censura? Procuro responder a essas perguntas, no intuito de
ressaltar delineamentos e nuances que interpelam as trajetórias de suas
2 BACHELARD, G. “O Ar e os Sonhos”. Tradução: Antonio de Pádua Danesi. 2ª Edição. São
Paulo: Martins Fontes, 2001. P-68 3 GALVÃO, W. N. “A Donzela Guerreira”. In: Grupo Anima. “Dozela Guerreira”. São Paulo:
SESC, 2011. P-7
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correligionárias, as quais, assim como ela, tratam das questões de seu tempo.
Viviam, em um tempo bastante peculiar; sob a égide da ditadura.
O segundo capítulo, “A casa que habito, o corpo que habito, o rio que me
atravessa”, trata da vida e da obra da autora. Quem foi Hilda Hilst? Destaco
alguns momentos angulares que marcaram sua trajetória, como a sua relação com
seu pai, a quem ela declara ter dedicado a totalidade de sua obra. Depois procuro
pinçar alguns elementos que atravessam sua trajetória. Ela flui tal como o curso de
um rio, que atravessa seu corpo e deságua em desfiladeiros. Interessa aquilo que
adensa essas águas escaldantes, seus declives, suas encostas, o que inspira seu
movimento intermitente. Falo de sentimentos, de metáforas e alegorias, de
metamorfoses; das fantasias, do grotesco, e dos silêncios que habitam seu corpo e
sua escrita.
No terceiro capítulo, “A lírica de Hilst invade o palco”, faço uma breve
introdução ao teatro de Hilda Hilst. Lanço luz sobre sua lírica, essa voz que coloca
para fora o seu íntimo, algo que ela importa de sua poesia para o texto cênico.
Vem à baila o Absurdo, e sua referência no dramaturgo irlandês Samuel Beckett
(1906 – 1989). Busco uma compreensão sobre o porquê de a autora ter recorrido
ao teatro, e não a outra forma de expressão, no período mais sombrio da ditadura
militar brasileira – entre 1967 e 1969, quando o “regime de exceção” assume uma
política de linha dura. Esboço em linhas gerais como as chagas do seu tempo
encontram ressonância em seu teatro. Coloco em relevo o que críticos teatrais,
como Anatol Rosenfeld e Sábato Magaldi, tinham a dizer sobre sua dramaturgia.
Falo um pouco de seus símbolos, suas linguagens. Por último, justifico a escolha
das peças a serem analisadas nos capítulos seguintes.
O quarto capítulo consiste na análise de A Empresa / A Possessa – Estória
de austeridade e exceção, sua primeira peça, escrita em 1967. Leva o título de “A
Epopeia de América e a Beatitude da Verdade”, sendo América a protagonista,
uma mulher com o nome de um continente que atravessa tempos de crise. A peça
trata das esperanças depositadas em um herói, capaz de mudar o curso dos
acontecimentos. Esse herói se personifica na Verdade da Ciência, que se choca
contra uma Verdade religiosa. Tudo se inverte, mas a inversão apresenta também
a sua arbitrariedade. A tirania persiste. Nessa peça, a autora trata de uma
dimensão dúplice, que se presta a uma armadilha epistemológica. A figura do
12
herói se projeta na própria América, cuja epopeia culmina em um silêncio
avassalador. Seu martírio serve à reflexão e não à tão esperada ascese.
No quinto capítulo analiso O Verdugo, sua penúltima peça, escrita em
1969, premiada por sua qualidade cênica e a afinidade temática com o tempo em
que foi escrita. Chamo o capítulo de “O Maravilhoso Disforme e as Intermitências
do Carrasco”, pelas sucessivas metamorfoses com que a autora descreve o
caminho da liberdade e sua luta. A peça trata de um verdugo que se recusa a matar
um homem, indo contra os anseios de sua esposa, que vê nesse ato inglório a
possibilidade de mudar de vida. O lugar do carrasco se inverte, ela veste o seu
capuz e encontra um sentido para sua vida. A peça trata suscita deslocamentos,
viradas do jogo, uma frágil convicção, tão fugaz como todas as certezas que
morrem junto a um paradigma.
No sexto e último capítulo eu esboço algumas conclusões, aproximando
as duas peças, analisadas sob o crivo das questões previamente destacadas: os
silêncios e os gritos do corpo, as situações-limite e a transitoriedade dos
personagens e suas parábolas mirabolantes e aproximo a trajetória das
protagonistas à das donzelas guerreiras, cujo combate persiste até se alcance a
morte sublime. Finalmente, abordo a transformação em amor, proposta audaciosa
de Hilst, presente nas duas peças. Relaciono seu caminho de liberdade com as
concepções das filósofas Luisa Muraro e Luce Irigaray, que lançam luz sobre a
mulher liberta das sombras que a relegam à condição de alteridade.
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Capítulo I
FALE BAIXO, SENÃO ELAS GRITAM
Se o signo da época é a confusão, vejo na base dessa confusão uma
ruptura entre as coisas e as palavras, as idéias, os signos que são as
representação dessas coisas. (...) Se o teatro é feito para permitir que
nossos recalques adquiram vida, uma espécie de poesia atroz
expressa-se através dos atos estranhos em que as alterações do fato de
viver demonstram que a intensidade da vida está intacta e que bastaria
dirigi-la melhor. (...) Toda verdadeira efígie tem sua sombra que a
duplica e a arte sucumbe a partir do momento em que o escultor que
modela acredita liberar uma espécie de sombra cuja existência
dilacerará seu repouso. Para o teatro assim como para a cultura, a
questão continua sendo nomear e dirigir as sombras; e o teatro, que
não se fixa na linguagem e nas formas, com isso destrói as falsas
sombras, mas prepara o caminho para um outro nascimento de
sombras a cuja volta agrega-se o verdadeiro espetáculo da vida.4
A relação entre o teatro e tempos de barbárie relatada por Antonin Artaud
encontra ressonância no compasso da ditadura militar brasileira, quando se tentava
amordaçar as bocas daqueles que clamavam por uma cultura de resistência e
confinar as manifestações espontâneas de arte que podiam ser sentidas como
ameaça à moral conservadora. Encontramos em Hilda Hilst um ímpeto que
articula gesto, palavra, grito, som e fogo, indo além da linguagem para tocar a
vida, cujo sentido renasce pelo teatro, assim como pretendia Artaud.
A poeta resolve trazer ao palco o ato de “ensolarar”, de dar leveza, trilhando
pelo caminho inverso ao escuro e pesado cárcere dos porões do DOPS e do DOI-
CODI.5 Sua poiésis se confunde com o espírito de um tempo que se movimenta e
se comunica pelas entrelinhas: liberdade é um grito que se faz quase em uníssono,
aproximando essas muitas vozes atormentadas pela inquietude de um país
silenciado pelo medo.
A influência do teatro épico de Bertolt Brecht adquiriu proporções
consideráveis nos palcos brasileiros desde a Escola de Artes Dramáticas até o
Teatro de Arena. Neste último, o teatro passa a ser um propulsor de um projeto de 4 Artaud, Antonin. Trad: Teixeira Coelho, 3ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2006. P-2/7.
5 Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e Destacamento de Operações de Informações
– Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI): locais que mancham a nossa história com
as marcas da tortura por agentes do Estado brasileiro.
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transformação do mundo. Sua trajetória apresenta alguns ícones consagrados do
teatro brasileiro, como Eles não usam Black-tie de Gianfrancesco Guarnieri, A
revolução na América do Sul de Augusto Boal, e Arena Conta Tirandentes de
Boal e Guarnieri. Ambos trazem ao palco o musical Arena Conta Zumbi em 1965,
fazendo uma analogia entre a histórica revolta no quilombo de Palmares e a luta
contra a ditadura. No segundo ato, a adaptação de um poema de Brecht explicita o
convite à ação direta:
Eu vivi na cidade nos tempos da desordem. Eu vivi no meio da minha
gente no tempo da revolta. Assim passei o tempo que me deram pra
viver. Eu me levantei com a minha gente, comi minha comida no meio
da batalha. Amei, sem ter cuidado... Olhei tudo o que via sem tempo
de bem ver... Assim passei o tempo que me deram pra viver. A voz da
minha gente se levantou e minha voz junto com a dela. Minha voz não
pôde muito, mas gritar eu bem gritei. Tenho certeza que os donos
dessa terra e Sesmaria ficariam mais contentes se não ouvissem a
minha voz... Assim passei o tempo que me deram pra viver.6
O Opinião, filho carioca do Teatro de Arena dá o tom de um teatro que
mistura tendências em sua musicalidade, trazendo ao palco a voz de Maria
Bethânia, que canta Carcará com a força magistral de uma ave de rapina dos
confins do sertão nordestino, cuja fúria impele o espectador a uma reviravolta:
“Carcará, pega, mata e come!” Figuram entre os musicais do Opinião Se correr o
bicho pega, se ficar o bicho come, de Vianinha e Ferreira Gullar e o clássico
“Liberdade, liberdade”, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel.
A ideia de um teatro que dá voz ao povo norteia em grande medida os
palcos nas grandes cidades, sobretudo São Paulo e Rio de Janeiro. De acordo com
Décio de Almeida Prado, o personagem “povo” figurava dentre os diversos palcos
da época, em múltiplas abordagens, desempenhando distintos papéis, mas cuja
presença não se pode deixar de notar. “Buscava-se tanto articular a voz do povo,
quase inaudível em meio à cacofonia moderna, quanto adivinhar-lhe as obscuras
intenções. Obedecia-se ou supunha-se obedecer ao povo, mas também ordenava-
se ao povo, em tom exortativo ou imperativo.”7 Para alguns, se tratava de buscar o
6 Guarnieri, G, Boal, A. e Lobo, E. “Arena Conta Zumbi”. Teatro de Arena de São Paulo, 1965.
Texto disponibilizado pelo sítio eletrônico do Projeto Pyndorama: http://pyndorama.com/wp-
content/uploads/2009/01/arena-conta-zumbi.pdf. Segundo ato, movimento 76.
7 Prado, D.A. “O Teatro Brasileiro Moderno”, 3ª Edição, 2ª reimpressão. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2007. P-100.
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povo na arte popular, voltando-se aos romances de cordel, ao teatro dos autos
pastoris, aos espetáculos de mamulengo, no esforço por um retorno às origens
autênticas e primitivas. O operário urbano também desempenha um papel central,
ensaiando no teatro o que seria o êxito de um despertar da classe trabalhadora, que
cumpriria em cena o seu papel histórico, em sua acepção marxista: a revolução
social, o grande acerto de contas entre os oprimidos e seus opressores.
O afronte aparecia de maneira menos explícita no Teatro Oficina, mediado
por recursos cênicos que recriavam um universo sombrio, explorando o jogo e a
provocação para colocar em xeque os tabus das classes médias. Nas palavras de
Roberto Schwartz: “Imitação e indignação, levadas ao extremo, transformam-se
uma na outra, uma guinada de grande efeito teatral, em que se encerra e expõe
com força artística uma posição política”8. O Oficina chega ao ápice de sua
radicalidade em 1967 com a encenação de O Rei da Vela. Dirigido por José Celso
Martinez Corrêa, que introduz o personagem Mister Jones como semblante do
imperialismo estadunidense. Esbanjando toda a sua crueza, o Oficina lança luz
sobre a sexualidade sem cerimônias, em uma combinação entre cinismo e
deboche, que ridiculariza todo o moralismo. O texto corrosivo posto em cena
produz um efeito inestimável em seus espectadores. Revolucionário, tanto em
forma quanto em conteúdo, o Oficina propõe um antiteatro. O texto é de Oswald
de Andrade:
ABELARDO I
- Com muita honra! O Rei da Vela miserável dos agonizantes. O Rei
da Vela de sebo. E da vela feudal que nos fez adormecer em criança
pensando nas histórias das negras velhas... Da vela pequeno-burguesa
dos oratórios e das escritas em casa... As empresas elétricas fecharam
com a crise... Ninguém mais pôde pagar o preço da luz... A vela
voltou ao mercado pela minha mão previdente. Veja como eu produzo
de todos os tamanhos e cores. (Indica o mostruário) Para o Mês de
Maria das cidades caipiras, para os armazéns do interior onde se vende
e se joga à noite, para a hora de estudos das crianças, para os
contrabandistas no mar, mas a grande vela é a vela da agonia, aquela
pequena velinha de sebo que espalhei pelo Brasil inteiro... Num país
medieval como o nosso, quem se atreve a passar os umbrais da
eternidade sem uma vela na mão? Herdo um tostão de cada morto
nacional! 9
8 Schwarz, R. “Cultura e Política”. 3ª Edição. São Paulo: Paz e Terra, 2009. P-49.
9 Andrade, O. de. “O Rei da Vela”. Rio de Janeiro: MEDIAfashion, 2008. P-36
16
A vaga avassaladora que faz fervilhar o teatro das principais cidades do
país ganha a atenção da mídia e do grande público. A censura, que já existia desde
a Coroa Portuguesa, não deixa passar em branco a ousadia do teatro brasileiro,
tanto do ponto de vista da sexualidade como do que é considerado subversivo na
política. Nos anos que se seguiram ao golpe, ainda havia um respiro considerável
frente aos agentes da censura, que só assumiram posturas mais contundentes
quando o Estado tomou medidas mais radicais, no período que se inaugura com o
Ato Institucional número 5 e a declaração de estado de sítio. Em 1968 em São
Paulo, uma apresentação do musical “Roda Viva” no Teatro Escobar foi invadida
pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC por sua sigla), o elenco foi
espancado e o cenário, destruído. Em Porto Alegre, no mesmo ano, alguns atores
que participavam do musical foram sequestrados. Após esses acontecimentos, a
peça é finalmente proibida.10
Augusto Boal é preso em 1971 e em seguida
mandado ao exílio. No ano seguinte, a repressão ordena o fechamento do Teatro
de Arena. Em 1974 o Teatro Oficina se dissolveu. José Celso Martinez Corrêa é
preso e torturado. Até a música e a poesia tornam-se perigosas para o regime, que,
ao ver-se impotente frente ao florescer das artes, responde com cadeia e exílio
para os artistas.
Estamos vivendo em S. Paulo o ano maior do teatro brasileiro.
A temporada de 1969 se vem caracterizando por uma sucessão
de textos importantes, desde os clássicos até os modernos: mas
o que marca este ano como o mais expressivo de nossa história
teatral, não é somente o privilégio de podermos ver, antes de
dezembro, três Shakespeares (...) um Ibsen (...) um Brecht (...)
um Schiller (...) um Molière (...) e um Genet (...). 1969 é o ano
do autor brasileiro. E especialmente o ano do jovem autor
brasileiro, que está enriquecendo a nossa dramaturgia com um
vigor e uma linguagem novas. Há pelo menos 4 lançamentos
muito significativos: Fala Baixo Senão Eu Grito, de Leilah
Assumpção e O Assalto de José Vicente, já estreados; À Flor
da Pele de Consuelo de Castro e As Moças de Isabel Câmara
que ainda começarão carreira. Nunca se registrou aqui ou no
Rio, um movimento tão rico, atestando, sem discussão, a
maturidade do nosso palco. (...) Todos se confessam no palco,
exprimem, sem rodeios, a sua experiência, vomitam com
sinceridade o mundo que reprimiram nos poucos anos de vida.
(...) Eles põe a nu, com uma liberdade de linguagem que
poderia assustar certos pudores e os ouvidos tímidos. Como o
teatro funciona pela autenticidade, as peças novas representam
10 Ventura, Z. “1968: O ano que não terminou”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
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a iluminação de um mundo interior que a platéia tem o prazer
em devassar.11
As palavras de Sábado Magaldi inspiram a constatação de Elza Cunha de
Vincenzo de que “dos quatro lançamentos significativos, como se vê, três trazem
a assinatura de mulheres”. Esta onda criativa que incorpora o feminino modifica
as bases de um teatro de autoria nacional, quando a prática mais corriqueira
consistia em importar textos de grandes autores já consagrados no estrangeiro. O
TBC12
era famoso pela importação de grandes talentos. Estava na hora de nadar
na contracorrente do mainstream e inaugurar novos espaços capazes de acomodar
essa camada mais jovem, composta também por mulheres, que sorvia o espírito
contestador de seu tempo, e colocava em xeque os anacronismos de um teatro que
havia envelhecido rapidamente, e não era capaz de propor novas saídas ao mal-
estar produzido pelo golpe de 1964 e seus desdobramentos mais contundentes.
Após a proclamação do AI-5, os palcos se tornaram perigosos para o status quo. A
repressão roubou a cena. O ano de 1969 corresponde ao período imediatamente
posterior ao “golpe dentro do golpe” e não por acaso o teatro viu-se obrigado a
rejuvenescer: a dinâmica social mudara bruscamente, e se o golpe de 1964 parecia
invisível para algumas camadas sociais, inclusive no campo das artes, nesse
momento rasga-se o invólucro da invisibilidade para uma repressão mais aberta e
contundente.
Sob a égide do poderio militar, os agentes censores, que até então se empenhavam
em zelar pela moralidade e pelos bons costumes, passaram a ter um relativo cuidado
com a infiltração ideológica nos palcos brasileiros. O teatro politizado coloca em xeque
não só os algozes de um regime de exceção, mas as mazelas sociais que configuram o
cotidiano do “cidadão de bem”. A escrita de mulheres dramaturgas lançava novos
olhares sobre a sociedade.
Por “escrita de mulher”, entendo que haja certo deslocamento de perspectiva;
olhares a partir de finas angulares cujo prisma perpassa por diferentes maneiras de se
apreender o mundo. Simone de Beauvoir já dizia: “Não se nasce mulher, torna-se
mulher”. O ato de tornar-se mulher pressupõe uma construção histórica do Ser mulher.
O que se entende por mulher vai além de um fator fisiológico, mas como a sociedade
11
Magaldi, S. “A Grande Força do Nosso Teatro”, Jornal da Tarde, 26.08.1969 apud Vincenzo,
E.C. de. “Um teatro da mulher: dramaturgia feminina no palco brasileiro contemporâneo” São
Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1992. P-4. 12
Teatro Brasileiro de Comédia, por sua sigla.
18
interpreta a mulher, isto é, de acordo com os valores e premissas de seu tempo. Tais
valores são históricos e engendram em seu cerne as relações humanas e as concepções
de mundo que norteiam a sociedade no decorrer do processo de construção de uma
cultura tal como ela se apresenta no presente. A mulher é designada como Outro, aquele
que só se faz existir através de seu duplo transcendente ao qual lhe é subordinada: ao
homem. De acordo com Beauvoir, à mulher não se atribui um projeto; seu destino é
pautado na repetição cíclica da vida e da atividade humana em sua contingência e
facticidade. A partir do lugar de suposta inação imposta de fora, ela age. A partir desse
lugar de suposta inércia, ela se movimenta. A partir desse lugar de suposto
obscurantismo, ela cria. A partir desse lugar de suposta opacidade, ela brilha. Escrever
no feminino implica em driblar as barreiras socialmente construídas, o que exige o
dispêndio de esforço criativo e intelectual e a iminência de subjetividades nômades,
capazes de contornar, movimentar ou enfraquecer essa barreira. Essa barreira passou
por sensíveis modificações no decorrer do período entre a publicação de “O Segundo
Sexo” (1949) de Beauvoir e a dramaturgia de Hilda Hilst (entre 1967 e 1969). Não
obstante, os deslocamentos subjetivos femininos podem se desdobrar em um imenso
leque de possibilidades a partir de diversas abordagens e pontos de vista. Ainda assim, a
barreira permanece, acentuando deslocamentos na escrita feminina.
É uma estranha experiência, para o indivíduo que se sente como um
sujeito, autonomia, transcendência, como um absoluto, descobrir em
si, a título de essência dada, a inferioridade: é uma estranha
experiência para quem, para si, se arvora em Um, ser revelado a si
mesmo como alteridade. É o que acontece à menina quando, fazendo
o aprendizado do mundo, nele se percebe mulher. A esfera a que
pertence é por todos os lados cercada, limitada, dominada pelo
universo masculino; por mais alto que se eleve, por mais longe que se
aventure, haverá sempre um teto acima de sua cabeça, muros que lhe
barrarão o caminho.
(Simone de Beauvoir) 13
No teatro, esses deslocamentos adquirem relevo com a iminência do
“teatro intimista”. Elza Cunha de Vincenzo14
observa uma fusão entre o caráter
coletivo de um teatro que reflete as questões da sociedade e um teatro individual,
que trata da vida doméstica e cotidiana. Uma análise da dramaturgia feminina
13
Beauvoir, S. (1975). O Segundo Sexo. Volume II, 3ª Edição. Difel/Difusão Editorial, São Paulo-
SP. P-39.
14 Vincenzo, E.C. de. “Um teatro da mulher: dramaturgia feminina no palco brasileiro
contemporâneo” São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1992. P-283
19
desse período nos possibilita a chegar a um entendimento de como o coletivo e o
individual se davam enquanto relação, e como a sociedade é vivenciada no
interior do lar, nas relações entre pais e filhos, marido e mulher, etc. O lar torna-se
um espelho difuso do que acontece no mundo do trabalho, nas relações de
comunidade e vizinhança. No lar é difícil fugir do campo das contradições, pois
no espaço da intimidade os pequenos defeitos adquirem proporções mais agudas,
as mentiras não se sustentam por muito tempo e os conflitos são menos velados. A
tendência ao “teatro intimista” traz ao palco as nuances do espaço doméstico,
observadas por olhos de mulher, que amarram o individual e o coletivo com
sensibilidade e humor, incitando a platéia a rir de seus próprios ridículos. O
potencial crítico e autocrítico é avassalador, e o riso é explorado por sua função
reflexiva, ora como identificação, ora como estranhamento.
Porém a nova dramaturgia não se encerra no espaço doméstico, como
constata Vincenzo, e mesmo quando retrata a vida no núcleo familiar, a autora
coloca a desnudo o conflito entre o papel da mulher no cotidiano e suas
possibilidades. O pêndulo se inclina para a temática da modernização, que assume
um viés cultural profundo e avassalador. Segundo a autora:
A dramaturgia feminina que começa a tomar vulto precisamente num
dos momentos altos da modernização e da repressão política pós-68 e
que representa mesmo, em termos históricos brasileiros, um
desdobramento dessa modernização, revela claramente, a partir de seu
interior, a presença dos elementos contraditórios que a constituem e
definem: por um lado, a liberalização dos costumes, a ampliação e
diversificação de oportunidades de trabalho – inclusive para a mulher
– , certa mobilidade social que por vezes permite o trânsito de
indivíduos de uma classe para a outra; mas, por outro, também os
mecanismos do processo que mantém alienados, ao envolve-los em
sua trama, os indivíduos em geral, que se utiliza deles para depois
descartá-los, que os prepara tecnicamente para determinadas funções,
mas os leva em seguida a se desviarem dos objetivos que essa
preparação supunha.15
Contudo, as autoras que compunham essa nova dramaturgia entre as
décadas de 1960 e 1970 encontravam linguagens distintas, evocando imagens que
provém de universos particulares e diversificados. Quando está em voga a
temática do cotidiano doméstico, cada núcleo familiar adquire as suas
peculiaridades de acordo com a visão da autora, e cada história se desenrola
dentro de um tempo específico, que dá o ritmo e molda a linguagem, tanto
15
Vincenzo, E.C. de. “Um teatro da mulher: dramaturgia feminina no palco brasileiro
contemporâneo” São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1992. P-283.
20
corporal, como textual. As narrativas também ocupam cenários diversos, como o
ambiente de estudo e de trabalho, a praça pública, os lugares onde se dá o choque
entre o individual e o universal.
A Luz completa-se a si própria
Se Outros quiserem vê-la
Ela se mostra em certas horas
Nos Vidros da Janela.
(Emily Dickinson) 16
Renata Pallotini figura entre as dramaturgas que precederam a vaga
criativa de 1969. Formada em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo e em direito pela Universidade de São Paulo, Pallotini foi a primeira
mulher a ingressar no curso de dramaturgia na Escola de Arte Dramática em 1961.
Sua primeira peça, A Lâmpada, foi redigida em 1958 e levada ao palco em 1960
no Teatro do Estudante de Campinas sob a direção de Teresa Aguiar. A temática
já se antecipa ao movimento inovador que dará o tom da nova dramaturgia,
enfatizando algo até hoje bastante marginal: a homossexualidade. Em seguida,
escreve Sarapalha, adaptação de um conto homônimo de Guimarães Rosa
elaborada em função de um concurso de dramaturgia promovido pelo Teatro de
Arena. Sua sensibilidade e firmeza em trabalhar a dramaticidade da narrativa de
Guimarães Rosa foi muito bem recebida, e levada ao palco por Alberto D’Aversa
em 1961. No ano seguinte, escreve e dirige O Exercício da Justiça na EAD, onde
ela volta os holofotes para uma imagem de justiça cega, incapaz de ver os estratos
marginalizados da sociedade. Vincenzo atenta para os aspectos que conformam e
definem uma personalidade própria, inerente à obra da autora:
A manipulação do tempo e do espaço, bem como a intersecção dos
vários níveis de realidade, característica da estruturação épica do
teatro, será uma das possibilidades técnicas desta autora, e vai revelar-
se completamente nas peças dos anos 70 e 80. Mas esta linha épica,
desde a primeira peça em que aparece (que é justamente o Exercício
da Justiça) assumirá um caráter especial: o da elaboração poemática.
Daí podermos considerar o teatro de Renata Pallotini, em sua maior
parte, um teatro poético, do qual não está contudo ausente um correto
sentido da linguagem coloquial, do dia a dia, e, em alguns casos
mesmo, um torneio particularmente popular e brasileiro. 17
16
Dickinson, E. Älguns Poemas / Emily Dickinson”. Tradução: José Lira. São Paulo: Iluminuras,
2008. P-131 17
Vincenzo, E.C. de. “Um teatro da mulher: dramaturgia feminina no palco brasileiro
contemporâneo” São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1992. P-30.
21
Segundo Vincenzo, esse teatro poemático deu o tom de sua primeira fase,
em peças como O Escorpião de Numância (1967), Pedro Pedreiro (1964) e o
Crime de Cabra (1961). Este último foi redigido em 1961 e levado ao palco em
1965, brindando à autora os prêmios Molière e Governador do Estado. Foi sua
primeira montagem profissional e o que ela traz de peculiar é sedimentar os
contornos de um teatro genuinamente popular. Pedro Pedreiro, levado ao palco
em 1968, também traz para o centro da cena o protagonismo do homem simples,
migrante nordestino que pretende se ajustar ao meio urbano. Em 1973, a autora se
depara mais uma vez com a barreira do Estado. Nas palavras de Pallotini:
Terminei de escrever Enquanto se vai morrer... em 1973 e, em julho
do mesmo ano, a Escola de Comunicação de Artes da USP, primeira
interessada na montagem da peça, através de Moroel Silveira, então
diretor do que seria o TECA [Teatro da Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo], enviou o texto à Censura.
Começamos a esperar pela resposta que não vinha. Depois soube que
a censura age também assim: não se proíbe, mas também não se
libera. Simplesmente se deixa que o decurso do tempo desgaste e
envelheça intenções e projetos.18
No fim daquele ano, ela recebe uma resposta negativa, por supostamente
contrariar a “legislação em vigor”, o que deu vazão ao veto, que impediu sua peça
de ser encenada. Vincenzo descreve a peça, buscando dar algumas pistas do que
pode ter chamado a atenção dos censores:
Discutia a natureza da liberdade e da punição, tanto quanto a
legitimidade dos métodos empregados para obter confissões, a prisão
arbitrária, a tortura. E se voltava também para um problema
característico do período: o problema do exílio, que além de envolver
aspectos humanos evidentes, apresentava traços de um fenômeno
político de natureza muito especial: a eliminação violenta e repentina
de elementos significativos na vida do país. A eliminação desses
elementos abria claros no quadro da vida política e cultural difíceis de
preencher, e podia provocar desacertos cujas conseqüências se
sentiriam ainda muito tempo depois. 19
Inaugura-se uma segunda fase do legado dramatúrgico da autora, em um
sopro nostálgico que se remete ao passado e à memória de tempos longínquos.
Conformado por pequenos fragmentos articulados que compõem um todo
coerente, a dramaturgia poética aberta da autora coloca à baila uma multiplicidade
de personagens, cenas e grandes painéis. Peças acadêmicas – Enquanto se vai
18
Pallotini, R. Cópia do relato fornecida pela autora. In: Vincenzo, E.C. de. “Um teatro da mulher:
dramaturgia feminina no palco brasileiro contemporâneo” São Paulo: Perspectiva: Editora da
Universidade de São Paulo, 1992. P-233. 19
Vincenzo, E.C. de. “Um teatro da mulher: dramaturgia feminina no palco brasileiro
contemporâneo” São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1992. P-235.
22
morrer (1972/1973) e Serenata Cantada aos Companheiros (1974) e sua fase
ítalo-brasileira – O País do Sol (1982), Colônia Cecília (1985) e Tarantella
(1986) caracterizam essa segunda fase, onde se brinda a maturidade de sua obra,
que a consagra como uma das mais notáveis dramaturgas brasileiras.
Leilah Assumpção inaugura o ano em que despontam as peças de autoria
feminina com Fala baixo senão eu grito em 1969, que recebeu os prêmios
Molière e da Associação Paulista dos Críticos Teatrais atribuídos ao melhor autor
do ano. Sua encenação contou com a direção de Clóvis Bueno, e com os
intérpretes Marília Pêra e Paulo Villaça e se estendeu por longas temporadas em
São Paulo, Rio de Janeiro, depois Curitiba, Belo Horizonte e Salvador. Esteve em
cartaz por bastante tempo em Bruxelas, além de Paris e Buenos Aires. O
reconhecimento imediato brinda a autora com o cânone e suas possibilidades se
multiplicam em uma trajetória de sucesso. A peça trata de uma solteirona
estereotipada, que se envolve com um soturno ladrão, confundido com suas mais
íntimas fantasias. Leilah trata de quebrar o universo feminino, enquanto o ladrão
permanece indefinido – uma força viril, alguém real ou um devaneio criado pela
mente inventiva da solitária protagonista. Vincenzo o descreve como “algo vindo
de fora e que se opõe a princípio a atinge violentamente; e por algum tempo o seu
mundo, o mundo ilusório em que se abrigava para defender-se, é abalado.”20
Para Sábado Magaldi, trata-se do encontro de duas solidões, que
pretendem romper com o tédio do cotidiano para propor novos desenlaces. O
ladrão apresenta um convite ao erotismo, à fantasia lírica e a uma liberdade
caótica que revela que a vida pode ir além daquela vidinha remota e desprovida de
sentido. O desfecho, porém, se dá como no despertar de um sonho: sete horas da
manhã, hora da labuta, se não se apressar, ela perde o ponto. A trama se encerra
com um final realista: triunfa o compromisso. “O Homem quis roubar-lhe a paz
artificial dos mortos em vida”21
– conclui Magaldi. O crítico observa como a
autora explora o ludismo, recriando textualmente o jogo teatral, estraçalhando
valores cristalizados em pequenos bibelôs, presentes no nosso cotidiano, ao passo
que se projetam imagens à revelia da vulnerabilidade humana e suas flutuações. O
diálogo físico e corporal exige uma coreografia, que coloca em ação elementos
dramáticos, risíveis, grotescos e poéticos, configurando um universo cênico em
sua plenitude.
Com Fala Baixo, senão Eu grito, Leilah Assumpção conquista sua
cidadania teatral num território fronteiro ao dos novos colegas, em
vários aspectos com características iguais às deles, mas acrescentando
20
Vincenzo, E.C. de. “Um teatro da mulher: dramaturgia feminina no palco brasileiro
contemporâneo” São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1992. P-86/87. 21
Magaldi, S. “Fala Baixo, senão Eu Grito”. In: “Moderna Dramaturgia Brasileira”, primeira série.
São Paulo: Perspectiva, 2008. P-239.
23
–lhes uma inconfundível sensibilidade feminina, além de um conceito
próprio de espetáculo. A peça inscreve-se no que se poderia chamar de
“teatro novo”, e ao mesmo tempo o enriquece com uma personalidade
estranha, cheia de vida interior e um susto imenso diante do mundo.
(...) A encenação encontra matéria-prima, também, para enfeixar o
particular e o geral, a experiência precisa e a universalidade, um caso
recortado no cotidiano e o diagnóstico amplo de um mundo. Tudo isso
faz da estréia de Fala Baixo, senão Eu Grito mais do que uma
promessa: a peça é já a afirmação de um talento.22
A semelhança temática que lança luz sobre os temas do cotidiano no
ambiente familiar leva Vincenzo a caracterizar Fala Baixo, senão Eu Grito como
parte constitutiva de um bloco, que denomina “Trilogia da Família”, junto a
Jorginho o Machão (1970) e Roda Cor-de-Roda (1975). Leilah declara na Folha
de S. Paulo de 15.07.1979 que o único fio condutor entre as três peças é o fato de
terem sido suas três primeiras levadas para o palco, mas alguns elementos cênicos
e temáticos fazem com que Vincenzo insista na idéia de uma trilogia, que se situa
no questionamento e na quebra de valores enraizados na família burguesa. A
sátira, o estranhamento risível e a ênfase ao papel da mulher, que se vê imersa em
novas questões, tais como sua inserção no mundo do trabalho, liberação sexual e
excesso de eletrodomésticos e bens de consumo pertinentes ao universo das
classes médias, no compasso de uma modernização fascinante e incompreensível.
Isabel Câmara está entre os jovens dramaturgos que estreiam sua carreira
profissional em 1969. Seu repertório literário traz à baila referências sofisticadas e
uma escrita delicada, pertinente a um universo ficcional onde o escritor, mais que
o dramaturgo, dá a última palavra. Sábato Magaldi a considera antes uma
escritora, que dramaturga, mas não deixa de enxergar seu potencial: “Pode-se ter a
certeza (...) que Isabel Câmara, ao afeiçoar-se mais à linguagem própria do palco,
acabará realizando um grande teatro.” 23
O rigor da escrita, cujo vocabulário goza
de certo requinte, recria um universo enigmático, onde o espectador vagueia por
um labirinto de possibilidades que permanecem abertas no decorrer da trama. Sua
estreia se dá com a encenação de As Moças, onde a dramaturga retrata as solidões
de duas mulheres, a velha tia e sua sobrinha, cuja relação intercala afeto e
desafeto, amor e ódio, em um diálogo oscilante, que revela algo além do que a
fala pretende. A troca de insultos entre as personagens cria uma aproximação de
duas angústias, que encontram subterfúgios diferentes para lidar com o assombro
22
Id. Ibidem. P-237 e 240. 23
Magaldi, S. “As Moças”. In: “Moderna Dramaturgia Brasileira”, primeira série. São Paulo:
Perspectiva, 2008. P-246.
24
de uma falta de sentido para a existência humana. A paralisia do medo e a entrega
aos prazeres frívolos e mundanos entram em choque com violência, mas o
estranhamento promove uma identificação entre as possibilidades da mulher se
ajustar psicologicamente a uma vida fragmentada propiciada pela ruptura da
estrutura familiar tradicional. A problemática da existência desempenha um papel
central e tempera a peça com um ar melancólico. São ultrapassadas as barreiras
convencionais, por via de um mergulho no universo interior das personagens, em
uma perspectiva que combina elementos da psicanálise com a filosofia
existencialista. Nas palavras de Sábato Magaldi:
Não se destina a peça ao êxito fácil nem os que gostam de situações
claras terão satisfeito o seu desejo. Quando a psicanálise ao alcance de
todos se veiculou principalmente num certo teatro e cinema de
digestão imediata, As Moças repele as exegeses simplificadas e não
esgota, até o fim, a sondagem proposta, porque sugere que há sempre
novas zonas a explorar.24
Consuelo de Castro inaugura sua carreira como dramaturga com uma
voracidade implacável e um engajamento político contundente contra o poderio
do Estado ditatorial. “Minha única arma contra a violência é o teatro, que é minha
própria violência respondendo à violência deles”25
, diz em um depoimento para
Samuel Weirner e Joana Fomm da Revista Aqui, São Paulo em 1976. O conteúdo
político de suas primeiras peças entrava em confronto direto com a censura, com a
qual teve que bater de frente, em um jogo que intercala proibições e premiações.
Ao receber um prêmio pelo Serviço Nacional de Teatro (SNT) em 1976, a
dramaturga Consuelo de Castro se manifesta:
Declaro aqui, com toda a raiva do mundo que sinto, que recusarei
terminantemente qualquer prêmio do SNT ou de qualquer outro órgão
deste governo. Se alguém quiser me premiar, libere minhas peças.
Libere Papa Highirt de Vianinha, também premiado pelo SNT em
1968. Libere Plínio Marcos... Deixem a gente ir para o palco, que não
24
Magaldi, S. “As Moças”. In: “Moderna Dramaturgia Brasileira”, primeira série. São Paulo:
Perspectiva, 2008. P-246. 25
Castro, C. “O Teatro Não Precisa de Prêmios, mas de Liberdade”, Aqui, São Paulo, 04.11.1976.
25
é de prêmios que precisamos todos, público e escritores: é de
liberdade.26
No teatro infantil, a escrita de Maria Clara Machado e Tatiana Belinky é
recebida com bastante apreço. A primeira, autora do consagrado “Pluft, O
Fantasminha” e fundadora do Teatro Tablado, escreveu incessantemente, do início
da década de 1950 até o fim da vida, em 2000, quando lançou sua última peça
“Jonas e a Baleia”. Sua obra rendeu-lhe prêmios e homenagens carnavalescas, em
enredos de escolas de samba como Porto da Pedra, União da Ilha e Unidos do
Jacarezinho. Belinky escreveu uma adaptação de “Sítio do Pica-pau Amarelo” de
Monteiro Lobato, e o roteiro de “Três Ursos” e “Fábulas Animadas” para a TV
Tupi, entre 1952 e 1966. Desde 1948 ela já escrevia peças para o público infantil
juntamente com seu marido, o médico e educador Júlio de Gouveia, encenados
nos teatros da Prefeitura de São Paulo. Sua trajetória também obtém
reconhecimento, rendendo-lhe o Prêmio Mérito Educacional em 1979 e o Prêmio
Jabuti de Personalidade Literária do ano em 1989. Ambas conseguem ocupar
lugar de destaque e renome, antes mesmo da iminência do teatro politizado
sessentista, quiçá por escreverem para crianças, um público bastante particular.
De acordo com Elza Cunha de Vincenzo, podemos entender a inclinação
política da dramaturgia feminina sessentista em sua dupla acepção: seja pela
política anti-sistêmica que ganha espaço nos palcos brasileiros, seja pelos ecos dos
movimentos feministas que eclodem na Europa e nos Estados Unidos. São postos
em questão o lugar da mulher na sociedade, o tédio da vida conjugal, os valores
cristãos, a sexualidade feminina e homoafetiva. A complexidade dá o tom de uma
política que encontra seus opressores não apenas no Estado, mas também dentro
de casa. A mulher se recria e se ressignifica no palco, ao sopro dos ventos que
aspiram mudanças radicais.
Dalva de Oliveira, Maria Callas, Coco Chanel, Carmen Miranda...
Na minha carreira teatral vivo envolvida com mulheres que existiram
de verdade. Mulheres fortes e importantes, que me obrigam a um
estudo maior da história da época, além da voz e do gestual. Lendo a
história delas e o entorno, procuro tirar as minhas próprias
26 Vincenzo, E. C. “Um Teatro da Mulher: Dramaturgia Feminina no Palco Brasileiro
Contemporâneo” São Paulo, Edusp/ Perspectiva, 1992. P-110.
26
conclusões. (...) Não me comparo a elas, porque foram
internacionalmente revolucionárias. Mas, se me perguntarem, acho
que tenho um pouco da perseverança da Chanel e da alegria e do
humor da Carmen.
(Ítala Nandi) 27
Inspirada por esse turbilhão criativo, Hilda Hilst não resiste à tentação de
mergulhar pelo universo cênico. De acordo com Vincenzo, Hilst não é aplaudida
no teatro com os mesmos louvores que a sua recepção poética, permanecendo
relativamente marginal. A dificuldade em se destacar como uma mulher
dramaturga soma-se aos desafios decorrentes de uma linguagem poética, recheada
de recursos líricos e metáforas de difícil compreensão. Mas isso não a impede de
ser homenageada em 1969 com o Prêmio Anchieta da Comissão Estadual de
Teatro, pela peça O Verdugo. O lugar marginal ao qual a autora foi relegada está
em aberto, e suas peças ainda podem ser descobertas por novos e audazes
encenadores. Afinal, essas peças falam de descobertas, articulando vozes que
sugerem a impotência humana em diferentes cenários. Este trabalho pretende
mergulhar nesse universo de descobertas, esboçado e recriado múltiplas vezes
pela autora. Ela conversa com os paradigmas do seu tempo numa linguagem
misteriosa, que precisa ser analisada detidamente, com cuidado e imaginação.
Ah, essa voz cega, e esses instantes de respiração suspensa em que
todo o mundo escuta perdidamente, e a voz que recomeça a tatear,
sem saber o que procura, e denovo o ínfimo silêncio, à espreita de
não se sabe o quê, (...) um alfinete que cai, uma folha que se agita, ou
um gritinho que soltam as rãs quando a foice as cortam em duas (...)
Talvez fosse preciso ser cego, cego ouve-se melhor, não são
informações que faltam, temos em nossa bagagem afinadores de
piano, dão o lá e ouvem o sol, dois minutos depois, não se vê nada de
qualquer modo, esse olho é uma miragem.
(Samuel Beckett) 28
27
Ítala Nandi. Entrevista concedida à Revista Aplauso, ano 2005, edição 69, disponível no sítio
eletrônico: http://www.aplauso.art.br/home/revistaaplauso/revista_atual.php?id=69. 28
Beckett, S. “O Inominável”. Tradução Ana Helena Souza. São Paulo: Globo, 2009. P-132.
27
Capítulo II
A CASA QUE HABITO, O CORPO QUE HABITO, O RIO QUE ME
ATRAVESSA
Dever cumprido. Eu fiz o que pude. Meu pai não pode fazer isso,
ficou louco. Eu pude. Minha mãe me contou que, quando eu nasci, ao
saber que era uma menina, ele disse: “Que azar!” Eles, na verdade, se
separaram porque minha mãe estava grávida. Ele não queria isso.
Queria uma amante. Aí, minha mãe engravidou. Quando ele soube
que era uma menina, falou daquele jeito. Uma palavra que me
impressionou demais: azar. Aí eu quis mostrar que eu era
deslumbrante.29
Hilda de Almeida Prado Hilst nasceu no dia 21 de abril de 1930 na cidade
de Jaú, no interior paulista. Apolônio de Almeida Prado Hilst, seu pai, era também
um poeta e ensaísta, além de jornalista e fazendeiro. Sua mãe, Bedecilda Vaz
Cardoso era quem arcava com o sustento da família, já que seu pai fora
diagnosticado como esquizofrênico paranóico, e internado aos 35 anos em um
sanatório em Campinas. Após a separação dos pais, ela se muda para Santos com
sua mãe. Em 1937, é encaminhada para o internato do Colégio Santa Marcelina
em São Paulo, onde estuda por cerca de oito anos em um ambiente rígido e
religioso. A relação com o pai é regida por fantasias e memórias que marcaram.
Ela visita o pai apenas duas vezes. Sua infância é impregnada pelo sentimento de
rejeição paterna, mas ela trata isso como uma fonte de inspiração em sua escrita.
Quase todo meu trabalho está ligado a ele [o pai] porque eu quis. Eu
pude fazer toda a minha obra através dele. Meu pai ficou louco, a obra
dele acabou. E eu tentei fazer uma obra muito boa para que ele
pudesse ter orgulho de mim [a voz embarga nas últimas palavras]. (...)
Então eu me esforcei muito, trabalhei muito porque eu escrevia
basicamente para ele.30
Seu primeiro livro de poesias fora publicado em 1950, quando ainda cursava
Direito na Universidade de São Paulo em 1948. Poucos anos depois decide
dedicar-se integralmente à poesia. Sua produção é vasta, atravessa e dá sentido ao
29
Cadernos de Literatura Brasileira, n. 8, São Paulo, outubro de 1999, entrevista concedida ao
Instituto Moreira Salles. P-26/41 30
Cadernos de Literatura Brasileira, n. 8, São Paulo, outubro de 1999, entrevista concedida ao
Instituto Moreira Salles. P-26
28
curso de sua vida, perpassando por diversos desdobramentos: poesia, ficção
literária, crônicas e teatro.
George Eliot e Charlotte Brontë devem dividir entre elas a
paternidade de muitos romances (...), pois revelam o segredo de que o
precioso recheio de que os livros são feitos está em derredor, nas
salas de visitas e cozinhas onde as mulheres vivem, e se acumula ao
tique-taque do relógio. Miss Willatt (...) era capaz de escrever
páginas sobre “montanhas que se assemelhavam a muralhas de
nuvem, a não ser pelas ravinas fundas e azuis que lhes rasgavam os
flancos, e as cascatas diamantinas que caíam brilhando, ora em
dourado, ora em púrpura, quando entravam na sombra dos
pinheirais, passando depois ao sol para perder-se na miríade de
arroios pelo pasto matizado de flores em sua base”. Porém, quando
ela tinha que encarar seus amantes e a conversa das mulheres nas
tendas, ao crepúsculo (...), ela então gaguejava e corava
perceptivelmente. (...) A mesma autoconsciência (...) a voz portentosa
que unia os diálogos e explicava como as mesmas tentações nos
assaltam, seja sob estrelas tropicais, seja embaixo dos umbrosos
olmos da Inglaterra.
(Virgínia Woolf ) 31
O corpo na obra de Hilda Hilst lança luz sobre uma multiplicidade de
vozes e vontades, que flui como a correnteza de um rio atravessado por ares que
sopram de vértices opostos da rosa dos ventos, provocando efeitos bastante
avassaladores, descontínuos, e cuja inventividade escorrega na cadência de seus
sonhos e desejos mais recônditos.
As barcas afundadas. Cintilantes Sob o Rio. E é assim o poema. Cintilante E obscura barca ardendo sob as águas. Palavras eu as fiz nascer Dentro da tua garganta. Úmidas algumas, de transparente raiz: Um molhado de línguas e de dentes. Outras de geometria. Finas, angulosas Como são as tuas Quando falam de poetas, de poesia As barcas afundadas. Minhas palavras...
32
Esse corpo híbrido que atravessa a poética de Hilst se assemelha a uma
concepção de corpo formulada por Friedrich Nietzsche: um corpo habitado por
diversos fluxos de força de vontade em permanente dissonância. A força que se
31
Woolf, V. “Memórias de Uma Romancista”. In: “Contos Completos / Virginia Woolf “.
Tradução: Leonardo Fróes, São Paulo: Cosac Naify, 2a Reimpressão, 2007. P-95/96 32
Hilst, H. “Do Desejo” Sâo Paulo: Editora Globo, 2004. P-58.
29
projeta com maior intensidade corresponde à vontade de potência (ou vontade de
poder). É a vontade que grita mais alto em um dado momento. Nesse jogo de
forças não há um vencedor invicto, pois tão logo uma força se sobrepõe às
demais, outras vozes se reanimam e preparam terreno para uma retomada. Em
Nietzsche, o corpo passa a ser pensado como um campo de batalhas, tendo sua
própria história inculcada da medula à epiderme, história que por sua vez coexiste
em um cenário mais amplo, atravessado por uma multiplicidade de fluxos de
vontade no compasso da sociedade.
Como uma tempestade, percorrem os sóis, velozmente, suas órbitas: é
esse o seu curso. Seguem, inexoráveis, a sua vontade: é essa a sua
frieza.
Ó seres escuros, noturnos, somente vós criais o calor, haurindo-o dos
corpos luminosos! Somente vós bebeis o leite e o bálsamo dos ubres
da luz!
Ah, há gelo em volta de mim; queima-se minha mão tocando em gelo!
Ah, há uma sede, em mim, que almeja pela vossa sede!
É noite; ai de mim, que tenho de ser luz! E sede que é noturno. E
solidão!
É noite: como uma nascente, rompe de mim, agora, o meu desejo – e
pede-me que fale.
É noite: falam mais alto, agora, todas as fontes borbulhantes. E
também a minha alma é uma fonte borbulhante.
É noite: somente agora despertam todos os cantos dos que amam. E
também a minha alma é o canto de alguém que ama.
Assim falou Zaratustra.
(Friedrich Nietzsche)33
A história de Hilda Hilst precisa atravessar seu corpo; corpo este que se
faz presente a cada momento de sua obra. Corpo híbrido, poesia corpórea e
visceral. O teatro de Hilst é um teatro encarnado, ou seja, que atravessa o corpo
passando por todos os pontos nevrálgicos e sensitivos, aquilo que Artaud chama
de “sensibilidade fisiológica”, por onde vibram as cores e suas intensidades, a
trepidação, o envolvimento comunicativo, e as paixões, que pululam de um
33
Nietzsche,F. “Assim falou Zaratustra : Um livro para todos e para ninguém”. Tradução: Mário
da Silva. 4ª Edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986. P-120
30
sentido para outro, da palavra para um feixe de luz, do gesto para um grito. Hilst
vai além das imagens que a retina capta com retidão, e explora a linguagem para
além da palavra literal. A linguagem se corporifica e seus sentidos se expandem
abrangendo gesto, voz, tom, respiração, olhar, grito, silêncio, noite. O texto
produz imagens que se multiplicam e criam novas possibilidades. Assim como em
Artaud:
O encavalamento das imagens e dos movimentos levará, através de
conluios de objetos, silêncios, gritos e ritmos, à criação de uma
verdadeira linguagem física com base em signos e não mais em
palavras. (...) Nessa quantidade de movimentos e de imagens tomados
num tempo determinado, introduzimos tanto o silêncio e o ritmo como
uma certa vibração e uma certa agitação material, composta por
objetos e gestos (...) Pode-se dizer que o espírito dos mais antigos
hieróglifos presidirá a criação dessa linguagem teatral pura.34
Os sentimentos movimentam o corpo. A separação entre corpo e mente,
espírito e matéria não encontra ressonância em Hilst. Seu desejo atravessa o
corpo, mas vai além de sua acepção material. Hilst imerge naquela materialidade
fluídica da alma, aquilo que Artaud considera indispensável ao universo cênico.
Tornar cônscios os pontos onde timbram os afetos, algo que corre no sangue
palpitante, em jorros que seguem os movimentos que inspiram e expiram o ar.
Com a respiração, circulam os afetos introjetados pelo corpo. Os músculos se
contraem em um trabalho extenuante, mas a tensão se alterna com jatos de vazio.
A afetividade toca os músculos, e se desdobra de um jogo de respirações por onde
penetra a poesia, e irrompe com uma força incomensurável, como sugere o
atletismo da alma de Antonin Artaud. Afetos que em Hilst se localizam no frágil
limite entre a pele e o desejo.
Empoçada de instantes, cresce a noite Descosendo as falas. Um poema entre-muros Quer nascer, de carne jubilosa E longo corpo escuro. Pergunto-me Se a perfeição não seria o não dizer E deixar aquietadas as palavras Nos noturnos desvãos. Um poema pulsante Ainda que imperfeito, quer nascer. Estendo sobre a mesa o grande corpo Envolto na sua bruma. Expiro amor e ar Sobre as suas ventas. Nasce intensa E luzente a minha cria No azulecer da tinta e à luz do dia.
35 34
Artaud, Antonin. Trad: Teixeira Coelho, 3ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2006. P-146. 35 Hilst, H. “Do Desejo” Sâo Paulo: Editora Globo, 2004. P-60.
31
O corpo de Hilst ocupa o espaço do entre-muros, de uma noite adentro que
se encontra no limiar do crepúsculo. Algo está para nascer. Seu poema pulsante
passa pela respiração, junto com amor e ar, como elementos indissociáveis,
alimento indispensável para a alma. O crepúsculo assinala o nascer de um novo
dia, de um poema ensolarado que se desdobra em diferentes intensidades de azul.
O corpo se estende, se envolve na bruma, é um elemento participante do
espetáculo que dá luz a um novo dia.
Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um
fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um
intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir – nos
interstícios de matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é
a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo
que ouvimos e chamamos de silêncio.
(Clarice Lispector) 36
Michel Foucault define o corpo como “superfície de inscrição dos
acontecimentos (...), lugar de dissociação do Eu que supõe a quimera de uma
unidade substancial, volume em perpétua pulverização.”37
A história molda o
corpo e o corpo interfere na história, como dois elementos imbricados que se
confundem em suas trajetórias. Como em Nietzsche e depois em Foucault, o
corpo em Hilst passa pelo poderio do Estado. A violência se faz presente nesse
corpo, ele é amestrado por forças que vêm de fora em forma de imperativos e
imposições. O corpo resiste: encontra maneiras de burlar aquilo que o impele a
um estado de passividade, ele escorrega para depois se expandir pelas brechas
onde a ordem de dominação não penetra. Alteram-se os fluxos que atravessam o
corpo, altera-se a ordem discursiva; metáforas e alegorias burlam a censura, a
expressividade cênica encontra outros meios de dizer o indizível. O corpo assume
outras formas para escapar à passividade que lhe é esperada, as antigas palavras se
desfazem para dar luz a outras linguagens, a mente encontra subterfúgios para
exteriorizar o que foi proibido pelos novos censores.
No contexto do estado de exceção, novos movimentos entram em voga,
imprimindo novos ritmos à história, que agora dança “na corda-bamba de
36
Lispector, C. “A paixão segundo G.H.” Rio de Janeiro: Rocco, 1998. P-98 37
Foucault, M. “Microfísica do Poder”. Org. e Trad: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1979. P-22.
32
sombrinha”, sabendo que em cada passo em falso pode se machucar. A analogia
expressa na música de João Bosco e de Aldir Branc é apenas uma possibilidade de
traduzir em imagens os “malabares” que o artista tinha que aprender em um breve
perímetro de tempo para comunicar sua mensagem a um mundo recortado e
segmentado por novas fronteiras.
Hilda Hilst traduz os grandes temas de seu tempo em alegorias, cuja
assimilação requer um mínimo de criatividade. Metáforas que são mais que
metáforas. De acordo com o filósofo John Dewey, as palavras passam por um
processo de transmutação: os afetos recriam-se em um casulo até que a palavra
alce voo no papel e no imaginário do leitor que imergir nesse universo
enigmático. A metamorfose envolve essa conversão, que vai além de criar
metáforas, pois não isenta de sentido suas ilustrações, suas evocações táteis, seus
perfumes, seus gritos e seus silêncios. Há uma verdadeira fusão desses elementos,
que opera para além do que impele diretamente o poeta. Nas palavras de Dewey:
Ao consultarmos os poetas, constatamos que o amor encontra
expressão em torrentes impetuosas, em lagos serenos, no suspense que
antecede a tempestade, no pássaro equilibrado em seu vôo, na estrela
longínqua ou na lua inconstante. E esse material tampouco tem caráter
metafórico, se por “metáfora” entendermos o resultado de qualquer
ato de comparação consciente. A metáfora proposital na poesia é o
recurso da mente quando a emoção não satura o material. A expressão
verbal pode assumir a forma da metáfora, mas há por trás das palavras
um ato de identificação afetiva, não uma comparação intelectual.38
Ampliemos, pois, o conceito de “metáfora”, deixemos que ela se dissocie
de uma função consciente para alcançar amplitudes mais vastas. Um ato de
transportar-se, como um devaneio da imaginação, algo incomensurável, que
transpõe os limites das palavras e seus significados. Gaston Bachelard vê na
poesia uma espécie de “convite à viagem”, algo que vai além de uma imaginação
evasiva. O convite do poeta nos propõe um doce impulso, que quando posto em
voga é capaz de provocar abalos sísmicos. Desperta um “devaneio salutar”, que se
desdobra em uma sucessão de imagens, flutuando na imaginação. Nas palavras de
Bachelard:
Esse movimento não será uma simples metáfora. Nós o
experimentamos efetivamente em nós mesmos, quase sempre como
um alívio, como uma facilidade para imaginar imagens anexas, como
38
Dewey, J. “Arte como experiência”. Tradução: Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
P-171
33
um ardor em perseguir o sonho encantador. (...) Uma realidade
iluminada por um poeta tem pelo menos a novidade de uma nova
iluminação. Já que o poeta descobre um matiz fugidio, aprendamos a
imaginar todo matiz como uma mudança. Só a imaginação pode ver os
matizes; ela os apreende na passagem do uma cor para outra. Há neste
velho mundo, portanto, flores que tínhamos visto mal! Tínhamo-las
visto mal porque não as tínhamos visto mudar de matizes. Florescer é
deslocar matizes, é sempre um movimento matizado. Quem segue em
seu jardim todas as flores que se abrem e se colorem já tem mil
modelos para a dinâmica das imagens.39
As imagens que a poesia evoca estão em constante movimento, e só
podem ser traduzidas quando sorvidas pelo imaginário, por pequenos córregos que
ora seguem solitários em seus capilares fios, ora se encontram em magníficas
cataratas. Deslocamentos, gotejos e relampejos moldam a poesia e a prosa de
Hilda Hilst, como uma caverna repleta de estalactites móveis, que se enche de luz
em certo momento do dia, para depois se esvair na escuridão profunda. Essas
estruturas enigmáticas de Hilst não são apresentadas de forma pronta, pois sua
linguagem aberta permite sempre novos deslocamentos.
No posfácio da compilação do Teatro Completo de Hilda, publicada em
2008, Renata Pallotini procura revelar em termos gerais o que está em jogo em
cada peça, ou seja, uma entre as muitas leituras possíveis. Meu intuito é manter
uma linguagem polifônica, onde há margem para diferentes leituras possíveis.
Interessa a complexidade, os fios que se entrelaçam e irrompem num emaranhado
aparentemente incompreensível, mas que, se vistos de perto em relação com os
outros, podem esboçar uma imagem mais densa e em finos traços da artista.
É bom que seja assim, Dionísio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora. (...)
Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
39
Bachelard, G. “O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. Tradução: Antônio
de Pádua Danesi -, 2ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2001. P-4/5.
34
Pensando: amanhã sim, virá. (...)
Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado, te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu
Ainda que tu me vejas extrema e suplicante
Quando amanhece e me dizes adeus.40
Hilda Hilst presta suas reverências ao deus Dionísio e evoca seu próprio
estado de transe, entre os desafetos e seus mais recônditos ímpetos. Como uma
mênade, suas palavras dançam à beira de um abismo, libertam-na de suas
angústias, por via de um estado de êxtase que se despe de um fluxo que aproxima
música com o corpo, o corpo com outros corpos, o corpo com a natureza, numa
espécie de reconciliação que vai para além do corpo mesmo. Assim como em um
rito dionisíaco, sua poesia restabelece a ordem cósmica. Em meio a rodopios
dançantes, chega ao dispêndio de desaprender a falar. A experiência transcende a
fala.
Estou absolutamente cansado de literatura; só a mudez me faz
companhia. Se ainda escrevo é porque nada mais tenho a fazer no
mundo enquanto espero a morte. A procura da palavra no escuro. O
pequeno sucesso me invade e me põe no olho da rua. Eu queria
chafurdar no lodo, minha necessidade de baixeza eu mal controlo, a
necessidade da orgia e do pior gozo absoluto. O pecado me atrai, o
que é proibido me fascina. Quero ser porco e galinha e depois matá-
los e beber-lhes o sangue.
(Clarice Lispector)41
Entre beleza e verdade, entre medida e desmedida, entre a lucidez e a
embriaguez há um universo intermediário que torna possível tal conjugação. O
40
Hilst, H. “Júbilo Memória Noviciado da Paixão”, Globo, 2001. 41
Lispector, C. “A hora da estrela”. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. P-70
35
apolíneo e o dionisíaco estabelecem esse frágil laço por um jogo, que consiste em
não se deixar levar completamente pela embriaguez. Em seus versos é possível
ouvir o doce timbre da flauta em seus delicados arranjos, que se mistura ao ritmo
frenético dos tambores de Dionísio, inspirando o corpo a movimentar-se, na
espreita de atingir o ápice de um transe inebriante no qual o indivíduo se esquece
de si, abdica de sua vida profana para penetrar um universo sagrado. É do sagrado
que trata sua poesia. Por esses caminhos labirínticos que Hilst inaugura, corre o
vinho, os sonhos, os ímpetos que fazem um movimento de dentro para fora,
expelindo algo da ordem do mistério, do íntimo. O inacessível torna-se acessível
pela embriaguez e pela eventual perda das estribeiras.
Nietzsche diz em Crepúsculo dos Ídolos:
Para que haja arte, para que haja uma ação ou uma contemplação
estética qualquer é indispensável uma condição fisiológica prévia: a
embriaguez. É mister que a embriaguez tenha aumentado a
embriaguez de toda a máquina; sem isso a arte é impossível. Todos os
tipos de embriaguez, ainda que estejam condicionados o mais
diretamente possível, têm a potência artística e acima de todos, a
embriaguez da excitação sexual, que é a forma de embriaguez mais
antiga e primitiva. (...) O essencial na embriaguez é o sentimento de
força e de plentitude. 42
Isso que Nietzsche chama de embriaguez aparece como um estado de
consciência difuso, que consiste em deixar-se levar de maneira a ultrapassar os
limites que a sociedade edificou em nossos corpos por meio da introjeção de uma
auto-censura. Esse estado de embriaguez nos ajuda a driblar com maior facilidade
os nossos mecanismos de censura, adquirindo leveza e intensidade, trazendo para
fora algo que estava resguardado, aquilo que Hilda Hilst chama de “o de dentro”.
É um ato de extravasar inerente ao processo criativo.
Conquistando um fulcro potente na garganta Um látego, uma chama, um canto. Ama-me Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos Quando não sou líquida.
43
Antonin Artaud certa vez dissera: “Há em todo demente um gênio
incompreendido, cuja idéia que luzia na cabeça provocou medo, e que só no
delírio pode encontrar uma saída para os estrangulamentos que a vida lhe
42
Nietzsche, F. “Crepúsculo dos Ídolos; ou, A filosofia a golpes de martelo”. Tradução: Edson
Bini e Márcio Pugliesi. São Paulo: Hemus, 1976. P-67/68. 43
Id. Ibidem. P-103.
36
prepara”.44
No texto ele se referia a como Van Gogh caiu em descrédito frente ao
moralismo da sociedade, que, incapaz de compreender a genialidade, não
encontrara outra palavra para defini-lo que não a de um louco, e como louco foi
condenado a sofrer as mazelas da vida hospitalar, dos manicômios, de um certo
tipo de tratamento que a sociedade de seu tempo conferia aos ditos loucos. Mas
aquilo que chamam de “loucura”, seria exatamente esse lugar inventivo de alguém
capaz de criar na tela as cores e as , em que configuram nas pinceladas seus
devaneios. Algo que, dadas as devidas proporções, podemos dizer que Hilst faz
em sua escrita. Quando faltam palavras, ela cria, ela estilhaça sua própria medida,
se reinventando a todo momento em suas descargas de emoções, que vêm como
em um turbilhão, todas juntas, sem discernimento.
E você de papisa, você no meio do seu jardim com o seu revólver.
Não, não. No seu jardim muito perfumado, cheio de rosas vivas, cheio
de gente. Você os matou, você lhes tirou toda a decência. Safada.
Pare, pare. Essa lucidez escorrendo sobre as coisas. Eu, o irmão
pederasta, sou lúcido, mas os acontecimentos me invadem,...45
Os personagens fugidios dos contos de Hilda Hilst revezam-se para
expressar essa fluidez na qual correm descargas de lucidez e de loucura, sempre
no limiar, como se os estados de consciência estivessem imbricados de tal forma
que um não existiria sem o outro. O dia não existe sem a noite. Ela fala no solar,
mas a escuridão para ela adquire um sentido mais enigmático que a idéia bíblica
das trevas, do perverso e do sombrio. Do mesmo modo, o sagrado aparece em
Hilst como algo entrelaçado ao profano. O lugar de ambos é no corpo. O corpo
entendido como um corpo genérico, humano, animal ou vegetal, por onde corre
sangue ou seiva, dor e prazer. A dimensão sagrada é algo que está no “de dentro”,
naquilo que não se pode ver a olho nu. Sua curiosidade a leva a dissecar esse
corpo em busca de uma essência sagrada, e a esse corpo dirige toda a sua angústia
frente às mazelas do mundo.
E só dar dois três passos, ver o olho do cavalo, ver o olho da vaca, ver
o homem meu Deus, o homem, esse abismo mais fundo que me come,
meu Deus a memória tristíssima de tanta inocência, como eu gostaria
de arrancar a minha pele sem medo e mostrar o meu todo para o outro.
Ele dizia meu Deus, assim com esse corpo, assim com esse sangue,
44
Artaud, A. “Van Gogh. O Suicidado da Sociedade”. In: “Linguagem e vida”. Org. Jacó
Guinsburg, Sílvia Fernandes Telesi e Antonio Mercado Neto. 4ª Reimpressão da 1ª edição de 1995
– São Paulo, Perspectiva, 2008. P-267 45
Hilst, H. “O Unicórnio”. In: “Fluxo Floema”. São Paulo: Globo, 2003. P-162/163
37
AHHH, eu existo até onde, eu existo até... até... até que grande muro
eu existo?46
A autora fala em Deus, acredita e desacredita, pergunta, questiona, duvida,
reafirma. Testa os limites desse limiar entre o sagrado e o profano, e traz algo do
sagrado para o carnal, para o proibido, para o íntimo. Alcir Pécora aponta “A
obscena senhora D” como a obra em que os grandes temas da autora confluem
para um maior equilíbrio.
Estão aí (...) os votos amorosos, sinceros, terrenamente sensuais, até
os extremos dramáticos de despojamento em favor do outro pelo bem
dele mesmo; as inquietações metafísicas mais sanguíneas e
arrebatadas, como as dúvidas teológicas mais rigorosamente
inteligentes, nascidas muitas vezes como questões do corpo, mas
perdidas já de seu caminho, desviadas de todo hábito, pisando num
terreno em que o método aporético tanto pode ser loucura, quanto
ciência.47
O corpo é celebrado em sua obra como algo intimamente conectado com
o universo e o meio ambiente. Em algumas obras, o corpo humano
metamorfoseia-se no de um animal, como no caso do personagem que se
transforma em unicórnio em um dos contos de Fluxo-Floema. Homens-lobo
reaparecem em algumas de suas obras. Uma mulher é penetrada pela cauda de
uma serpente, homens ganham asas, asas se quebram. Homens confundem-se com
porcos. Há em Hilst uma profunda identificação entre o humano e o animal, o
animal no humano, o desumano no humano, o humano no animal. O corpo fareja,
rumina, grunhe, ruge e devora em seus estados de espírito que titubeiam frente aos
acontecimentos. Essa textura líquida não é uma exclusividade do corpo humano,
ela é uma força que funde o sangue e a seiva, a pele e as encostas crispadas por
onde correm os afetos, as cavidades das vísceras e as cavernas, os vulcões por
onde corre o deleite, os pulmões por onde respira o universo. Está tudo misturado,
como em um elixir que é ao mesmo tempo veneno, que se desfaz em gotas
infinitas, assumindo as mais incríveis formas: é dessa matéria que é feito o
mundo. Matéria transcendente. O sagrado se encarna, o profano cria asas, depois
tudo se dissolve e o ciclo recomeça.
Todo o seu corpo se tornara neblina. Só seus olhos brilhavam, como
se, modificados, vivessem só por si mesmos; olhos sem corpo; olhos
cinza-azulados, vendo alguma coisa invisível. Movendo-se no ar
46
Hilst, H. “Fluxo”. In: Fluxo-Floema”. São Paulo: Globo, 2003. P-45. 47
Pécora, A. “Nota do organizador”. In: A obscena senhora D”. São Paulo, Globo, 2001. P-12.
38
nublado e irradiando seu brilho, de modo a serem na atmosfera
sepulcral – havia névoas na janela e, nas lâmpadas, halos de bruma –
como luzes dançantes, como fogos-fátuos que se movem sobre as
campas dos dormintes inquietos, segundo dizem, nos cemitérios. Uma
idéia absurda? Mera fantasia. Entretanto, já que nada há que não
deixe algum resíduo, e como a memória afinal é uma luz que dança na
mente quando a realidade é sepulta, por que não haveriam de ser os
olhos, que ali brilhavam tanto ao mover-se, o fantasma de uma
família, de uma era, de uma civilização que dança sobre o túmulo?
(Virginia Woolf) 48
A fantasia desempenha um papel furtivo no imaginário da autora, que se
entrega a seus devaneios como quem se atira do cume de um rochedo com a
certeza de que pode voar. Ela voa alto, com suas asas de águia. Quando mergulha,
cria escamas. Tudo o que faz parte de seu pequeno paraíso recluso, a Casa do Sol,
é ingrediente para o seu caldeirão inventivo, onde a magia sorve as pequenas
gotas cintilantes, que borbulham em sua mente fértil. O resultado ela joga no
papel. A linguagem vem do corpo, corpo habitado pelos gritos e pelos silêncios do
mundo, como se pudesse reter o universo dentro de si.
O corpo é levado ao extremo do grotesco, contornado por hipérboles,
dotado de orifícios por onde saem excrementos. Esse corpo é capaz de vomitar
palavras, sentimentos. Desbocada, Hilst não hesita em falar palavras obscenas, e
evocar a sexualidade de maneira explícita, gozando de detalhes escatológicos.
Essa fase grotesca encontra sua expressão máxima com a trilogia obscena no
início da década de 1990, composta por O caderno rosa de Lori Lamby, Contos
d’escárnio e textos grotescos e Cartas de um sedutor. Segundo Mikhail Bakhtin:
...A lógica artística da imagem grotesca ignora a superfície do corpo e
ocupa-se apenas das saídas, excrescências, rebentos e orifícios, isto é,
unicamente daquilo que faz atravessar os limites do corpo e introduz
ao fundo desse corpo. Montanhas e abismos, tal é o relevo do corpo
grotesco, ou, para empregar a linguagem arquitetural, torres e
subterrâneos. (...) O grotesco ignora a superfície sem falha que fecha e
limita o corpo, fazendo dele um fenômeno isolado e acabado.
Também, a imagem grotesca mostra a fisionomia não apenas externa,
mas ainda interna do corpo: sangue, entranhas, coração e outros
órgãos. Muitas vezes, ainda, as fisionomias interna e externa fundem-
se numa única imagem.49
48
Woolf, V. “A Caçada”. In: “Contos Completos / Virginia Woolf”. Tradução: Leonardo Fróes,
São Paulo: Cosac Naify, 2a Reimpressão, 2007. P-379
49
Bakhtin, M. “A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais”. Tradução: Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2008. P-277/278.
39
Natureza e corpo estão imbricados, e o sangue que corre em nossas
veias pode se desdobrar no fluxo de um rio nascente. Para Bakhtin a ênfase na
excrescência e na cavidade sugere a idéia cíclica de renovação, presente nos
tempos da natureza. O mesmo também alude à própria idéia de concepção, tanto
no ato consumado, como nos atributos fisiológicos que tornam possível o coito
sexual levar a cabo sua função vital. Vitalidade e vida inscrevem-se em uma
dimensão cósmica e universal. Segundo o autor, o corpo grotesco engendra
elementos cósmicos tais como:
Terra, água, fogo, ar; ele liga-se diretamente ao sol e aos astros,
contém os signos do zodíaco, reflete a hierarquia cósmica; esse corpo
pode misturar-se a diversos fenômenos da natureza: montanhas, rios
mares, ilhas e continentes, e pode também encher todo o universo.50
Embora haja uma fase em que os aspectos grotescos adquirem uma
dimensão mais enfática na obra de Hilst, traços desse corpo grotesco acompanham
a sua escrita, ainda que a linguagem não permaneça a mesma, seguindo o
emaranhado complexo de uma escritora que se dedicou à poesia, à prosa, a contos
e crônicas sobre diferentes temas. O corpo é mais que um tema, ele é parte
constitutiva de sua escrita: tudo em Hilst passa pelo corpo. Ela disseca o corpo,
corta a carne e abre para ver como é “o de dentro”:
Vestíbulo do nada. Até... onde está a lacuna. Vê, apalpa. A fronte.
Chega até o osso. Depois a matéria quente, o vivo. Pega os
instrumentos, a faca e abre. Koyo, não entendes, vestíbulo do nada, eu
disse, aí não há mais dor, aprende na minha fronte o que
desaprendeste. Abre. Primeiro a primeira, incisão mais funda, depois a
segunda, pensa: não me importo, estou cortando o que não conheço.
Koyo, o que digo é impreciso, não é, não anotes, tudo está para dizer,
e se eu digo emudeci, nada do que eu digo estou dizendo.51
O corpo também é feito de silêncios. Nem tudo é expresso em palavras,
palavras podem ser supérfluas ou imprecisas. Nessa escrita aberta e corporificada,
Hilst busca ressaltar o espaço do interstício, dois vazios necessários, onde tudo se
cala. Se estamos tão intimamente ligados ao cosmos, precisamos aprender a sentir
o universo, expandindo os nossos sentidos para além da fala. Pegar na terra, senti-
50
Id. Ibidem. P-278. 51
“Floema”. In: Fluxo-Floema”. São Paulo: Globo, 2003. P-225.
40
la entre os dedos, aspirar o perfume que se exala dos crisântemos, saborear as
tâmaras, estender o corpo sob o sol, respirar, não pensar em nada.
Por intuições e por sofismas
O coração fica sabendo
Sobre o Nada – “Nada”é a força
Que renova o mundo.
(Emily Dickinson) 52
52
Dickinson, Emily. “Alguns Poemas / Emily Dickinson”. Tradução: José Lira. São Paulo:
Iluminuras, 2008. P-99
41
Capítulo III
A LÍRICA DE HILST INVADE O PALCO
O lírico, enquanto voz do íntimo, do subjetivo, da emoção e do
irracional, enquanto fala do eu do poeta, também toma sua parte nessa
penetração, quando o dramático ideal do teatro cede espaço às vozes
do não-lógico, da sugestão e do sentimento. (...) O lírico no drama é,
muitas vezes, a voz da impotência humana. Outras vezes é a expressão
de uma profunda perplexidade diante de um deus absurdo, ou do
Absurdo simplesmente como tal, ou de uma das constantes do
Absurdo, a incomunicação. 53
Assim a dramaturga Renata Pallottini trata o teatro de Hilda Hilst como
uma abordagem lírica no campo da dramaturgia, escrita por uma poeta por
excelência. Quando a poesia lírica invade o palco, as torrentes de significações
tramitam de personagem para personagem, colocando para fora algo que vem de
dentro: desejos, anseios, angústias, medos, silêncios. O lírico traz para a cena a
expressão de uma impossibilidade. A ação encontra uma barreira, um interdito
que coíbe sua realização. A palavra entra em descompasso com o corpo de
personagens atravessados por certa angústia inerente aos limites do que é
humanamente possível. Algo que grita de dentro, um anseio por desafiar as leis da
gravidade, algo que almeja transcender o humano e ir além do que se acredita real.
Essa vontade de transcendência opera por uma certa metafísica, como uma força
que vem de fora e acima do humano, algo que se busca no palco, e que gera um
sentimento de paralisia. Seus personagens, como afirma Pallottini, lançam-se
“desesperadamente contra o muro da sua própria impotência”, assim como os
personagens de Samuel Beckett, que passam dias a se torturar numa ansiosa
espera pelo Sr. Godot, esse alguém que pode ser que venha, pode ser que não
venha nunca. O Absurdo não precisa ser algo de grandioso, mas exige um
deslocamento no que ordinariamente se vive no cotidiano, uma ruptura com a
normalidade aparente.
ESTRAGON: Enquanto esperamos, vamos tratar de conversar com
calma, já que calados não conseguimos ficar.
53
Pallottini, R. “Posfácio do Teatro”; In: Hilst, H. “Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. P-
494/ 495
42
VLADIMIR: É verdade. Somos inesgotáveis.
ESTRAGON: Para não pensar.
VLADIMIR: Temos nossas desculpas.
ESTRAGON: Para não ouvir.
VLADIMIR: Temos nossas razões.
ESTRAGON: Todas as vozes mortas.
VLADIMIR: Um rumor de asas.
ESTRAGON: De folhas. (...)
Longo silêncio.
VLADIMIR: (Angustiado) Diga alguma coisa.
ESTRAGON: Estou tentando.
VLADIMIR: (Angustiado) Diga qualquer coisa!
ESTRAGON: O que vamos fazer agora?
VLADIMIR: Estamos esperando Godot. 54
Os personagens de Hilda Hilst são construídos com cuidado, como
expressão de sentimentos, desprovidos de personalidades definidas e estruturadas
em um sentido lógico. Os fluxos de vontade criam os personagens, subjetivados
pelas vozes que atravessam a poeta. A escrita de Hilst persegue o que é limítrofe,
o que está por um triz de explodir em mil pedacinhos, como um momento
apocalíptico, mas que não se encontra do lado de fora, e sim no interior de seus
personagens. A dramaturgia de Hilda Hilst fala das crises que interpelam as
tramas; crises estas que estão inscritas no seio de uma grande crise, que é a crise
da poeta. Fala de uma busca por Deus. A escrita de Hilst se embebeda de dor e
prazer nessa busca labiríntica, que é capaz de dar mil voltas, mergulhos e
sobrevoos. Para ela, Deus não é uma metáfora, é essa força estranha que pertence
à ordem do enigmático, de um amor humanamente impossível. Hilst toma todas as
liberdades na formulação de seus enredos, levando os recursos líricos ao ápice.
Ela mistura poesia e prosa, e tempera suas tramas com elementos épicos, que se
dissolvem em uma narrativa mais livre, como no leito de um rio em movimento.
John Dewey vê na experiência poética um fluxo singular:
54
Beckett, S. “Esperando Godot”. Tradução: Fábio de Sousa Andrade. São Paulo: Cosac Naify,
2005. P-120/122.
43
Um rio, como algo distinto de um lago, flui. Mas seu fluxo dá a suas
partes sucessivas uma clareza e interesse maiores do que os existentes
nas partes homogêneas de um lago. O todo duradouro se diversifica
em fases sucessivas, que são ênfases de suas cores variadas. Por causa
da fusão contínua, não há buracos, junções mecânicas nem centros
mortos quando temos uma experiência singular. Há pausas, lugares de
repouso, mas eles pontuam e definem a qualidade do movimento. 55
Seu movimento pode ser tempestuoso, a depender dos ventos que
assopram da nau à proa. A dramaturgia de Hilst surge em meio a um redemoinho
avassalador, num período em que o mundo externo era sentido à flor da pele. Foi
quando o Estado colocou suas garras para fora, rasgando o invólucro de uma
aparente normalidade, que primou nos anos que sucederam ao golpe militar de
1964. O teatro responde a um grito interno que irrompe no intuito de dizer o
indizível, para fora e para além do papel. Se o corpo ocupa um lugar central em
sua escrita poética, na dramaturgia o corpo encarna os seus anseios, e aciona
outras formas de comunicação que literalmente saem do papel, abrangendo gesto,
voz, espaço, luz, sombra e silêncio.
“Nós vivemos nu mundo e que as pessoas quere se comunicar de uma
forma urgente e terrível. Comigo aconteceu também isso. Só a poesia já não me
bastava (...) Então procurei o Teatro.”56
Sua declaração atesta essa necessidade de
comunicar isso que o Estado procura silenciar, algo que urge da ordem de seu
tempo, algo que quer desesperadamente ser posto para fora. A barbárie humana é
um tema bastante tratado e suas peças, mas sempre como um personagem sem
corpo, algo que se faz presente mais pela invocação do medo que por seus
capatazes. Esse teatro alegórico recria seus mais recônditos desejos
personificados, mas cuja ação é irrealizável. Não há panacéias. As asas se
quebram, a alma se dilacera, mas há sempre uma força que persiste no limiar.
Uma voz que escapa, alguém que indaga, um estranhamento face ao Absurdo. É
disso que trata a dramaturgia de Hilda Hilst.
A dificuldade reside em dar corpo a esses personagens alegóricos. As
imagens que o texto evoca não são de simples compreensão, e sua abstração
característica de uma linguagem mais poética que cênica, apresenta empecilhos
55
Dewey, John. “Arte como experiência”. Tradução: Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes,
2010. P-111.
56 Reportagem de Regina Helena para o Correio da Manhã (sucursal de São Paulo), 27/12/1969.
44
para sua realização. O fato é que suas peças foram poucas vezes levadas ao palco.
Isso não a impediu de ser elogiada por Anatol Rosenfeld, cujas expectativas foram
superadas ao assistir a O Rato no Muro e O Visitante, ambos encenados sob a
direção de Teresinha Aguiar, no Teatro da Escola de Artes Dramáticas da
Universidade de São Paulo (EAD / USP). De acordo com Elza Cunha de
Vincenzo:
Uma dificuldade de interpretação que provém não só da linguagem de
teor intensamente poético (a mesma, aliás, de sua prosa), como do tipo
de universo ficcional que elabora, da complexidade das ideias e do “
sentimento do mundo” que exprime naquela linguagem, enfim, da
própria qualidade quase lírica da construção dramática que adota. Na
realidade uma construção livre, de onde praticamente desapareceram
as balizas do tempo, em que o espaço é no mais das vezes o símbolo
de certo universo e o lugar e que se movimentam personagens
tipificadas, vivendo intensas experiências de pensamento e de
emoção.57
A linguagem complexa e sofisticada em sentido poético abre espaço à
possibilidade de uma interpretação criativa, cuja imagética pode ser explorada de
diversas formas. As temáticas de teatro tratam das questões de seu tempo: a
barbárie, a impossibilidade do amor, os muros que nos cerceiam, uma
desconfiança frente ao avanço de uma ciência que serve de matriz explicativa para
tudo e indagações sobre o que é humanamente possível. A dramaturgia de Hilda
Hilst é escrita no terreno das incertezas, onde a dúvida cumpre um papel central.
Perguntar é perigoso, perguntar é um elemento desestruturante e está na base do
estranhamento das situações absurdas que ela recria em suas peças.
As rubricas que precedem cada peça trazem à baila a relação entre
cenário, figurino e a construção afetiva dos personagens, no intuito de conferir
maior fluidez à peça, sem preocupação de tecer algum tipo de nexo, mas para que
o personagem acompanhe os fluxos e as intensidades que atravessam os enredos.
A autora sugere impressões e sentimentos que devem incidir sobre a espacialidade
cênica. Além de rubricas, ela inclui desenhos, imagens que situam o palco em
relação à plateia. O apelo imagético procura exprimir a espacialidade por onde
circulam os afetos e as angústias no centro da trama, estabelecendo linhas
fronteiriças, que ora se alargam, ora se estreitam, aproximando ou distanciando os
personagens em cena, e sua relação com o público. O palco pode ser o espaço
57
Vincenzo, E. C. “Um Teatro de mulher: dramaturgia feminina no palco brasileiro
contemporâneo”. São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1992. P-35.
45
intimista do lar, o encolhimento claustrofóbico de uma cela, o misterioso e
inóspito laboratório de experimentos científicos, o arcaico e empoeirado tribunal
ou adquire dimensões externas: a praça pública, o átrio do colégio, a sacada papal.
Os ambientes que a poeta recria fazem alusões a um paralelismo entre
outros tempos históricos e situações que simbolizam algo vivido de dentro para
fora, sentimentos de alhures que se remetem ao momento atual através de uma
simbologia inerente à ordem do sensível. Por esse fio condutor corre um grito
silenciado, onde a poeta assume sua voz mais política. Para falar da ditadura, ela
volta no tempo e cria um paralelismo com o Holocausto, ou pendura cadáveres
nos postes. Sons de rajadas de metralhadora irrompem o silêncio em uma longa e
extenuante sessão no julgamento do guerrilheiro, provocando um estranhamento
reflexivo, pois não fica claro de quem são as armas: da justiça ou dos justiceiros.
Estátuas de santos ou caudilhos, algumas brancas, outras desgastadas pelo tempo,
um grande tabuleiro de xadrez, um muro gigantesco, entre outros recursos,
veiculam suas críticas, que se dirigem ao que vivencia em seu tempo sem a
necessidade de palavras. Algumas palavras são supérfluas.
Esse paralelismo temático se dá, em parte pela necessidade de se esquivar
da censura vigente para se referir à ditadura e, por outro lado, é expressão da
própria linguagem poética da autora, que se desdobra em metáforas para dar
forma aos seus anseios. A dimensão política em Hilst se volta para dentro, e busca
nos mais íntimos recônditos da alma uma relação com o mundo externo, ou seja,
como o de fora é sentido no íntimo. Para tornar possível esse mergulho na
intimidade, Hilst recorre a alguns temas autobiográficos, como no caso de A
Possessa, onde a trama ocorre em um pensionato de freiras, e a protagonista é
uma menina perseguida por perguntar demais. Algo semelhante fora vivenciado
em seu passado, nos anos em que a autora cursara o ginasial no internato de
freiras da Escola Santa Marcelina. Embora esta seja a forma mais direta de
identificação entre a vivência pessoal e a configuração temática, ecos de seus
anseios se deslocam para dar vida aos afetos de seus personagens. Pelo
deslocamento, a poesia encontra sua dimensão prosaica, poemas se convertem em
voz, corpo, palavras e movimento, e adquirem espacialidade. Pelo deslocamento,
Hilda traz para o palco aquilo que é de sua vida, e de como ela se relaciona com o
cosmo que a transcende. Os personagens transitam de um para o outro, em um
campo abstrato, onde desejos e sentimentos ultrapassam as definições que os
46
personificam, apresentando-os, antes, como metáforas desses fluxos. O verbo não
é entender, mas sentir.
De acordo com a leitura de Éder Rodrigues, a autora:
Compartilha de uma tessitura de plano simbólico quando recorre não a
personagens estruturados, facilmente nomeados e de realística
inserção no meio. No teatro hilstiano os personagens muitas vezes
nem são nomeados, funcionam no aspecto simbólico situacional de
onde se encontram ou da cíclica rede de significados que performam
no decorrer da ação. Os aspectos simbólicos operam ainda na
estratégia que a autora utiliza para falar de um sistema externo a partir
do interno, do micro para alcançar o macro onde se insere e pelo qual
responde enquanto artista enunciadora. 58
Essa ordem do simbólico exige um trabalho mais atento, que se atenha aos
fluxos sensitivos que atravessam o pensamento da autora, tramitando de
personagem para personagem, no intuito de acompanhar seus movimentos vitais.
É preciso percorrer a tessitura dessa rede de significados, desatando os nós que se
entrelaçam na complexidade do seu imaginário inventivo. Para entender suas
sutilezas, seria interessante aproximar de seu teatro os conteúdos de sua obra
poética.
No próximo capítulo pretendo decodificar sua linguagem labiríntica, mas
sem a pretensão de desvendar seus mistérios. Limito-me a pontuar lugares-
comuns em sua cartografia afetiva. Interessa preservar sua estrutura aberta,
ampliando o leque de significados que podem estar implícitos na estrutura
narrativa, nos diálogos entre os personagens e nas entrelinhas. Mapear a
transitoriedade, a partir de uma análise sensitiva, entre as vozes, os ecos e os
silêncios que tramitam em seus personagens pitorescos. Como se distribuem os
corpos nos espaços cênicos recriados pela autora? Pretendo lançar um olhar mais
atento aos deslocamentos, aos movimentos, e aos afetos que circulam por entre os
corpos. De quais corpos estamos falando? Que função eles desempenham? Quais
os gritos, os barulhos, os ruídos, os silêncios, quais vozes habitam esses corpos?
Cabe localizar os interditos e os estímulos que atravessam os corpos dos
personagens. Que política governa esses corpos?
58
Rodrigues, E. “O Teatro Performático de Hilda Hilst”. Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), como requisito para a obtenção do título de Mestre em Letras. Orientadora: Prof.
Dra. Sara Del Carmen Rojo de La Rosa, 2010. P-61
47
Das oito peças escritas pela autora, selecionei duas: a primeira é a A
Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção, concluída em 1967. É a
primeira peça teatral escrita por Hilst. A segunda é O Verdugo, a penúltima peça
teatral de sua carreira, escrita em 1969. Neste mesmo ano, ela é consagrada com
Prêmio Anchieta de Dramaturgia. Enquanto a primeira peça inaugura o
deslocamento de sua escrita poética para o engajamento político através do teatro,
a segunda alcança o clímax de sua carreira como dramaturga, com um texto
cenicamente completo. Ambas as peças tramitam em torno da liberdade, temática
recorrente em toda a sua obra teatral, e bastante relevante em sua poesia. Em
ambas, os caminhos de libertação percorridos pelas protagonistas seguem direções
radicalmente destoantes, mas abordam duas facetas de um mesmo problema: a
opressão da mulher. Este tema aparece em ambas as peças, e enfatiza corpos
dilacerados, seja pelas mazelas cotidianas, seja pela exceção que dita a regra.
48
Capítulo IV
A EPOPÉIA DE AMÉRICA E A BEATITUDE DA VERDADE
A peça se passa em um internato de freiras. América é a jovem no centro
da trama, acusada de formular perguntas petulantes, de compartilhar seus sonhos
mirabolantes e inquietar corações. Tudo começa pelas perguntas a que as freiras
são incapazes de responder, por partir de outras premissas que não as verdades
petrificadas pelo Cristianismo. O lugar de quem pergunta é outro. Pelo amor à
ciência, ela questiona os dogmas da Igreja. Pelo amor ao progresso, ela questiona
a ordem das coisas. Seria preciso um deslocamento, de um vértice a outro, do
essencialismo ao logocentrismo, a fé se orienta para um Outro Deus, capaz de
explicar o mundo e dar respostas às perguntas da jovem América.
A primeira cena se inaugura com uma conversa entre América e suas
postulantes, em que América, em tom professoral, discorre sobre a saga de um
herói, cujo nome não parece ter para Hilst a menor importância. Um herói
genérico, que manda matar algumas pessoas, mas frente a um perigo de vida,
sempre uma situação limite, questionada por uma de suas postulantes mais astuta.
O herói que tinha uma tarefa, uma idéia grandiosa, um amor de herói.
In golden light you flow. Firm density, so light. Before the separation
of earth and sky, sea and continents, light and dark. A mixture of
rock,, fire, water, ether. Where violence can still espouse gentleness.
The heroic body overflowing with tenderness. Its weapons still those
of a native innocence. Which blurs all Sharp distinctions and brings
all divisions back to the original nuptials. An alliance in which the
opposing parties unite in an intense intermingling.
(Luce Irigaray) 59
59
“Sob luz de ouro você flui. Densidade firme, tão leve. Antes da separação entre terra e céu, mar
e continentes, luz e escuridão. Uma mistura de pedra, fogo, água, éter. Onde a violência ainda
possa desposar a docilidade. O corpo heroico a transbordar de ternura. Suas armas preservam uma
inocência nativa. Que borram todas as distinções definidas e restituem todas as divisões às suas
núpcias originiais. Uma aliança na qual os lados opostos se unificam em uma mistura intensa.”
Tradução livre. IRIGARAY, L. “Elemental Passions”. Tradução francês-inglês: Joanne Collie e
Judith Still. Nova Yorl, Routledge, 1992. P-102.
49
Preocupado e ao mesmo tempo interessado em suas histórias, o
Monsenhor resolve recebê-la em seu escritório. Diferente das freiras, que
reprovam diretamente sua conduta, Monsenhor desempenha um papel mais
ambíguo: ele a adverte, recomendando-lhe a ter cautela, mas considera prudente
ouvir aquilo que as freiras pareciam incapazes de compreender. Ele quer ouvir
suas histórias, e ela as narra de bom grado. Ela fala de máquinas pequeninas e
ruidosas, que ficavam dentro de caixinhas de matéria brilhante. Seus nomes eram
Eta e Dzeta. Elas se alimentavam de luz e percorriam sempre o mesmo caminho
no interior de suas respectivas caixas. Elas viviam sob a tutela de um Vigia, que
acompanhava seus movimentos dia e noite. Até que um dia elas oscilaram.
Gradativamente, passaram a modificar seus percursos. Seus invólucros acabaram
por ludibriar o Vigia, que deixara de enxergar aquilo que as impelia a proceder
sempre à mesma maneira, o que está dentro, seu núcleo de ação. Etza e Dzeta
eram resultado de pesquisas tecnológicas de ponta, produto de um cálculo
racional. Mesmo assim, falharam. O mistério permanece, mas América encontra
resposta para todas as perguntas do Monsenhor, que parece fascinado pela
narrativa. Ele acredita que América tem potencial para abrir caminho para algo
novo, uma reformulação que os lançaria para um futuro promissor. Ela precisa ser
provada.
Espero o amanhã que cante
El nombre del hombre muerto
Não sejam palavras tristes
Soy loco por ti de amores
Um poema ainda existe
Com palmeiras, com trincheiras
Canções de guerra
Quem sabe canções do mar
Ay hasta te comover (...)
Soy loco por ti América
(Capinam / Gilberto Gil) 60
O plano escurece e a comunidade passa por uma súbita transformação: Eta
e Dzeta ganham vida e forma e correm no interior de suas caixinhas. A irmã
superintendente perde o hábito e veste-se com uma indumentária simples. O
sistema criado na parábola de América é posto em prática tal qual ela havia
60
“Soy loco por America”. Composição: Capinam, Gilberto Gil. Cantado por Caetano Veloso.
Letra disponível no sítio eletrônico: http://letras.terra.com.br/caetano-veloso/76612/
50
pensado, embora seus efeitos não correspondam às expectativas: uma sociedade
que detém minucioso controle sobre os movimentos de cada um. Cooperadores
que integram um sistema aparentemente perfeito e altamente disciplinado, sem
lugar para o erro ou o mistério. O grito de América substituíra o antigo Verbo
divino: estava instaurada a Verdade da ciência, o novo Deus. Para Nietzsche, ao
ocupar o lugar até então ocupado pela ascese Cristã, a ciência reproduz seus
artífices de fé, que apresentam certezas monolíticas.
O ideal ascético tem uma finalidade, uma meta (– e houve jamais um
sistema de interpretação mais elaborado?); ele não se submete a poder
algum, acredita, isto sim, na sua primazia perante qualquer poder, na
sua incondicional distância hierárquica em relação a qualquer poder –
ele acredita que nada existe com poder na Terra que não receba
somente dele um sentido, um valor, um direito à existência, como
instrumento para a sua obra, como meio e caminho para a sua meta,
para uma meta... Esta ciência moderna que (...) crê apenas em si
mesma, evidentemente possui a coragem, a vontade de ser ela mesma,
e até agora saiu-se bastante bem sem Deus, sem Além e sem virtudes
negadoras. 61
América também mudara: suas paixões se calaram, seu sorriso se desfez,
ao passo que fora tomada por certo assombro, ao ver que seu sonho se tornara um
pesadelo. A Superintendente quer agradá-la: ela é útil ao novo sistema. América
solicita dois livros O primeiro conta a história de um homem que se transforma
em inseto (Kafka: “A Metamorfose”), para o espanto de suas postulantes, que
assim como a Superintendente, consideram-no inútil. Sob a chave da mais
absoluta racionalidade, quem daria crédito (em sua acepção útil) a um autor capaz
de escrever um livro assim:
Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa,
encontrou-se em uma cama metamorfoseado num inseto monstruoso.
Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, quando
levantou um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom,
dividido em segmentos arqueados, sobre o qual a coberta, prestes a
deslizar de vez, apenas se mantinha com dificuldade. Suas muitas
pernas, lamentavelmente finas em comparação com o volume do resto
do corpo, vibravam desamparadas ante seus olhos. (...) Fechou os
olhos afim de não precisar ver mais suas pernas se debatendo, e
apenas desistiu quando passou a sentir no lado uma dor leve e
sombria, que jamais havia sentido. “Oh Deus”, pensou ele, “que
profissão extenuante que fui escolher!...” 62
61
NIETZSCHE, F. “Genealogia da Moral: uma Polêmica”. Tradução: Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009. Pp- 126 / 127. 62
KAFKA, F. “A Metamorfose”. Tradução: Marcelo Backes. Porto Alegre: LP&M, 2008. Pp- 12
e 15.
51
O segundo livro conta a história do homem que ressuscitou. A
superintendente se faz de desentendida, e questiona o absurdo da ressurreição de
Cristo, filho de uma Virgem (virgem?). Metamorfoses e ressurreições são
consideradas heresias para o novo sistema. Tida como subversiva à luz desse
sistema, por invocar transformações e ressurreições que não podem ser explicadas
pela ciência, América é punida. Suas próprias postulantes, com o auxílio da
Superintendente, vestem-na com um camisolão cuja abertura é demasiado
pequena para passar sua cabeça. Sem a cabeça visível, América declara seu luto,
uma lamúria que agoniza um mundo apartado de seu sentir, de olhos que não mais
veem, de ouvidos que não mais ouvem. Sob a ótica desse novo sistema, o
Monsenhor passa a ser o Inquisidor: o mesmo personagem, mas sem as vestes
sacerdotais. Ele se assemelha à figura de um psicanalista, que indaga sobre sua
relação com a família em um passado remoto, como quem pretende arrancar uma
confissão. O corpo de América é fadado à inspeção e atravessado por interditos
que têm por meta torná-la dócil, submissa. Michel Foucault lança luz sobre esse
processo, cujo fim último é tornar o corpo economicamente útil ao sistema de
produção:
O corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e
corpo submisso. Essa submissão não é obtida só pelos instrumentos da
violência ou da ideologia; pode muito bem ser direta, física, usar força
contra a força, agir sobre elementos materiais sem no entanto ser
violenta; pode ser calculada, organizada, tecnicamente pensada, pode
ser sutil, não fazer uso de armas nem do terror, e no entanto continua a
ser de ordem física. Quer dizer que pode haver um “saber” do corpo
que não é exatamente a ciência de seu funcionamento, e um controle
de suas forças que é mais que a capacidade de vencê-las: esse saber e
esse controle constituem o que se poderia chamar a tecnologia política
do corpo. 63
América resiste. A nova tecnologia ainda não se apoderara de seu íntimo,
cuja opacidade suscita receios. Seria preciso aprimorar os dispositivos de controle
sobre a personagem, que ainda não se deixara dobrar. Mas havia esperanças, pois
nem todos os recursos tinham sido investidos. América é então levada para o
tribunal.
Estes teus olhos de lince
espiaram algo em mim,
de mim algo latente arrancaram,
63
FOUCAULT, M. “Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão”. Tradução: Ligia M. Pondé Vassalo.
Petrópolis, 1983. P-28.
52
algo nascido do silêncio,
opressivo e tão difícil de suportar
quanto o calor do meio-dia em Termez.
(Anna Akhmátova) 64
Em sua cadeira de réu, no centro da cena, América é ridicularizada pelo
Bispo e pelo Inquisidor, que incitam a divinização do Novo Deus: o Homem.
Estavam interessados em saber por que ela mudara sua conduta. Da primeira
tentativa de resposta de América, só se ouviam ruídos. A filósofa Luce Irigaray
trata da imposição do silêncio em um texto poético, que leva o título de Elemental
Passions (Paixões Elementares). Se lhes roubam as palavras, na expectativa de
que sejam conduzidas de acordo com uma determinada diretriz, ou linha de
pensamento, a resistência pode se apropriar do silêncio, tal como uma catedral ou
um santuário: lugar de recolhimento.
Was it your tongue in my mouth which forced me into speech? Was it
that blade between my lips which Drew forth floods of words to speak
of you? And, as you wanted words other than those already uttered,
words never yet imagined, unique in your tongue, to name you and
you alone, you kept on prying me open, further and further open.
Honing and sharpening your instrument, till it was almost
imperceptible, piercing further into my silence. Further into my flesh
were you not thus discovering the path of your being?65
O silêncio ou ruído inaudível, dura pouco. Ela finalmente diz que
entendera o mistério, o imponderável. Ela teria sido uma reformuladora, um
termômetro através do qual eles souberam o momento de agir. Ela volta atrás e se
arrepende de seu anseio tolo em procurar desvendar o onisciente, o onipresente.
Seus sinais de fé são considerados delirantes. Eles exigem que ela comprove
cientificamente a existência da divindade tríplice, com giz e um quadro-negro.
América vacila, mas acaba por desenhar um triângulo equilátero dentro de um
círculo. A esfera representaria o sol, as laterais do triângulo, asas. A esfera
arquetípica de unicidade, e o triângulo em seu interior, tríplice. O desenho de
64
AKHMÁTOVA, A. “Antologia Poética”. Tradução: Lauro Machado Coelho. Porto Alegre::
LP&M, 2009. P-105. 65
“Foi a sua língua na minha boca que me forçou à fala? Foi aquela lâmina entre meus lábios que
desatou jorros de palavras além daquelas já pronunciadas, palavras nunca imaginadas, únicas na
sua língua, para nomear a você, e só a você, você insistiu em me invadir, me manter aberta, mais e
mais aberta. Afia seu instrumento, até que se torne quase imperceptível, perfurando cada vez mais
a fundo em meu silêncio. Mais fundo na minha carne, você não estava a descobrir o caminho de
seu ser?” Tradução livre. IRIGARAY, L. “Elemental Passions”. Tradução francês-inglês: Joanne
Collie e Judith Still. Nova Yorl, Routledge, 1992. P-09.
53
América seria a representação do infinito. Com um tom professoral, o Inquisidor
contesta sua teoria, acusando-a de autismo. Ele vale da equação T = C, C = T, ou
seja, “trabalhar para comer, comer para trabalhar” no interior da circunferência da
técnica: eis o novo essencialismo do novo sistema. O tribunal insinua aspirar à sua
salvação sob a magnificência desse novo Deus-Ciência.
Cada um ao nascer
traz sua dose de amor
mas os empregos,
o dinheiro,
tudo isso,
nos resseca o solo do coração.
(...) O amor floresce
floresce,
e depois desfolha.
(Vladímir Maiakóvski) 66
Sua sentença consiste em desempenhar o papel do vigilante de Eta e
Dzeta, que andavam oscilando gradativamente, com menor intensidade. O projeto
consistiria em reintegrar América, adaptando-a ao sistema que ela própria criara.
América reaparece adocicada, vestida de noiva. Em face à entrada de América,
uma das cooperadoras, tomada por um fascínio discursivo, põe-se a discorrer
sobre as maravilhas da técnica. Sua colega a escuta com afinco. Nenhuma das
cooperadoras percebeu que América agoniza e morre. A morte de América parece
o último suspiro de uma súplica por um mundo uno, que reintegre o mistério, o
imponderável, o sonho, a fantasia. Logo após sua morte, Eta e Dzeta passaram a
funcionar perfeitamente.
A ideia ganha corpo, tudo se inverte
O sonho que América compartilha com suas postulantes traz em seu cerne
uma utopia, não quanto à possibilidade de ser posto em prática, mas quanto aos
seus desdobramentos. Ela inverte a ordem, mas não a subverte, trocando a ascese
religiosa pela verdade da ciência. A utopia de América está em idealizar um
mundo perfeito, sem espaço para o erro ou o mistério. O messias é substituído
66
MAIAKÓVSKI, V. “Maiakóvski – Poemas”. Tradução: Haroldo de Campos. São Paulo:
Perspectiva, 1982.
54
pela figura do revolucionário, do herói. Com ele viria a grande panaceia: “Depois
dele tudo mudou. Todos teriam todas as coisas que desejassem. Tudo. Não é
bom?” A pausa que vem a seguir desloca o significado da frase. Trata-se de uma
pausa reflexiva, que põe em relevo a interrogação. Será que isso é bom?
A dúvida dá o tom da primeira cena. Desconfiada, uma das postulantes
pondera: “Porque você disse que ele era bom, muito bom, mas ele mandou matar
os outros.” 67
O herói é posto à prova, mas os ossos do ofício obrigam-no a matar:
em sua saga, os fins justificam os meios. No campo de batalha, tudo vira uma
questão de vida ou morte. O tom apocalíptico de América apresenta dois campos
diametralmente opostos: o bem e o mal, o sagrado e o profano. Não deixa espaço
para a ambiguidade. Se existe o bem, suas ações se justificam, pois ele visa o bem
comum. Ela deposita sua fé na verdade, acreditando assim libertar sua mente. Ela
propaga sua palavra a fim de libertar as colegas, com base na afirmação da
verdade da ciência como um bem supremo. Mas o ideal ascético que ela coloca
em xeque é também o seu ideal. Ela inunda a alma desse ideal. Como dizia
Nietzsche, faz dele a “sua mais avançada falange de guerreiros e batedores, sua
mais insidiosa, delicada e inapreensível forma de sedução” 68
. A ciência, para
Nietzsche, não cria valores, tornando-se um valor enclausurado em si mesmo,
portanto inerte. Acrescenta:
[A relação da ciência] com o ideal ascético não é absolutamente
antagonística em si, ela antes representa, no essencial, a força
propulsora na configuração interna deste. Um exame mais atento
mostra que ela contradiz e combate não o ideal mesmo, mas o que
nele é exterior, revestimento, jogo de máscaras, seu ocasional
endurecimento, ressecamento, dogmatização – ela liberta nele a vida,
ao negar o que nele é exotérico. Ambos, ciência e ideal ascético,
acham-se no mesmo terreno (...) na mesma superstimação da
verdade.69
Porém de pouco ou a nada serviram as dúvidas das postulantes. A Ciência,
com toda a sua soberba, fala em nome de verdades inquestionáveis. Seria o
homem um pássaro grande, contente e vivo, como sugere uma das postulantes?
67
HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst
- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. 68
HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst
- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. 69
NIETZSCHE, F. “Genealogia da Moral: Uma Polêmica”. Tradução: Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009. P-131. Colchetes meus.
55
Ou forte como uma pedra? As imagens elucidadas pelas postulantes abarcam
leituras poéticas do que viria a ser esse homem que habita os sonhos de América.
Até que uma das postulantes, em tom quase infantil, traduz a narrativa de América
em uma imagem interessante: “Como se a gente descobrisse de repente que existe
um outro lá dentro da gente” .70
A ideia seria como um embrião, que se
desenvolve dentro da gente, até ser lançada para o mundo. A metáfora da gestação
de uma ideia ressignifica a gestação de Jesus Cristo. O Evangelho segundo São
João exorta a criação pela Palavra divina:
No princípio era a Palavra e a palavra estava com Deus, e a palavra
era Deus. No princípio ela estava com Deus. Todas as coisas foram
feitas por meio dela e sem ela nada se fez do que foi feito. Nela estava
a vida, e a vida era a luz dos seres humanos. (...) E a Palavra se fez
carne e habitou entre nós; vimos a sua glória, a glória de Filho único
do Pai, cheio de graça e verdade.71
(Jo 1:1-1:4 e 1:12 -1:14)
Se a gestação de espírito pela Palavra divina deu luz ao Messias, como o
salvador, a gestação da ideia humana (“nenhuma é tão grande como essa”), dá luz
ao herói. Ambos portadores de glória, graça e verdade. A Palavra prevalece como
prenúncio do mito das origens. Em sua repetição mimética, o sentido se desloca e
celebra-se o rito iniciático, em que se revive a gestação de Cristo, não pelo
batismo, mas em sua acepção profana: o nascimento da ideia ascética por uma
verdade que se inscreve na ciência. A salvação pelo humano e no humano. Nasce
o herói. Mas que herói?
O filólogo clássico de origem húngara, Károly Kerényi situa o herói na
elipse do tempo histórico, mas suas trajetórias de vida os impelem para fora da
história, aproximando-os do tempo dos deuses. O aspecto mitológico que os
vincula aos deuses consiste nas virtudes e ações que faz deles protótipos. O autor
constata que “herói” não traduz exatamente o sentido do “heros” grego, mas por
falta de palavras, atém-se a esta. Em diversos mitos, há uma partilha entre deuses
e heróis de uma notável solidez, que se preserva na representação poética. Há uma
parte imutável, um núcleo inabalável inerente ao herói. Ele é dotado de unicidade
sólida e de uma irradiação ou esplendor que o autor denomina “glória do divino”,
por sua proporção sobre-humana.
70
HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst
- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. 71
JOÃO 1:1-1:4 e 1:12 -1:14. In: Bíblia Sagrada. Coordenação geral e tradução: Ludovico
Garmus. 1ª Edição. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2010. P-718
56
A glória do divino, que recai sobre a figura do herói, combina-se
estranhamente com a sombra da mortalidade do que resulta um caráter
mitológico, o de um ser peculiar, a quem pertence, ao menos, uma
história em que a narrativa diz respeito exatamente àquele herói e a
nenhum outro. Se o caráter mitológico for substituído pelo caráter
puramente humano, as lendas dos heróis se tornarão histórias de
guerreiros, aos quais o epíteto de “herói” só se aplica no sentido
divorciado do culto, em que o usa Homero, mais ou menos o de
“nobre cavalheiro”; e assim a mitologia, incluindo a mitologia dos
heróis, encontra o seu limite. 72
Para Kerényi, seu centro imutável engendra a “glória do divino”, que por
sua vez é ofuscada pelas sombras do destino inexorável. Ao herói são ofertadas
libações, cujo sangue escorre em seu fosso sacrificial. Ao palco trágico, elevam-se
os heróis solenes, lendários, cujas virtudes provocam comoções na plateia.
O culto e o mito do herói contém o germe da Tragédia, não só no
tocante ao material, ao princípio formativo e sua significação, mas
também no que concerne ao tempo. A Tragédia Ática apega-se ao
culto e à mitologia dos heróis. Aqui não há rompimento, não há
abismo entre eles. Há, isso sim, uma continuidade ininterrupta de
atividade intelectual que, no que se refere à mitologia dos heróis, ao
culto do herói pela narrativa, já se pode denominar um ato de culto. A
Tragédia não é menos um ato de culto do que os procedimentos
sagrados da adoração dos heróis. 73
Há, porém, outras interpretações menos rigorosas do herói, deslocando
sentidos em uma acepção moderna. Para Joseph Campbell, a tragédia teria o
mesmo local de culto que o cinema e seus grandes personagens, que podem ou
não ter existido em um sentido histórico real. O cinema fabrica novos mitos,
porém bastante diversos dos que habitam as epopeias gregas. O herói é um “mito
vivo”, que opera como padrão mitológico em diversas camadas temporais,
multiplicando-se em diversas réplicas. Segundo Campbell:
Um herói lendário é normalmente o fundador de algo, o fundador de
uma nova era, de uma nova religião, uma nova cidade, uma nova
modalidade de vida. Para fundar algo novo, ele deve abandonar o
velho e partir em busca da ideia-semente, a ideia germinal que tenha a
potencialidade de fazer aflorar aquele algo novo. 74
72
KERÉNYI, K. “Os Heróis gregos”. São Paulo: Editora Cultrix, 1996. P-18. 73
KERÉNYI, K. “Os Heróis gregos”. São Paulo: Editora Cultrix, 1996. P-25.
74
CAMBELL, J. “O Poder do Mito”. Com Bill Moyers. Tradução: Carlos Felipe Moisés. São
Paulo: Palas Athena, 1990. P-145.
57
Na concepção assinalada por Campbell o herói é consagrado por se
mostrar disposto a dar sua vida em nome de algo que esteja além de si mesmo. Ele
desbrava caminhos nunca dantes percorridos, enfrenta monstros funestos, salva
vidas e serve como um exemplo a seguir.
Não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis de
todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido
em toda a sua extensão. Temos apenas de seguir a trilha do herói, e lá,
onde temíamos encontrar algo abominável, encontraremos um deus. E
lá, onde esperávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde
imaginávamos viajar para longe, iremos ter ao centro da nossa própria
existência. E lá, onde pensávamos estar sós, estaremos na companhia
do mundo todo.75
Para o filósofo búlgaro Tvetan Todorov76
, a figura do herói compreende a
vida e a morte. Todorov lança luz sobre o culto ao herói socialmente construído, que
reverbera nas escolas, nos locais de trabalho, nas mídias, e em suma, no espaço público.
Trata-se do herói viril, o herói que sente coragem e não se dobra pelo medo. O herói que
“entra pra história” pela narrativa fantástica do ato heroico. Esse herói está presente entre
os algozes e as vítimas. Seu combate e sua ação são orientados em prol de uma ideia que
está além dos indivíduos. Ao designar alguém por herói, seus fiéis servidores curvam-se à
sua liderança, alimentando uma confiança irrestrita em torno de sua figura.
Eu não sou besta pra tirar onda de herói
Sou vacinado, eu sou cowboy
Cowboy fora da lei
Durango Kid só existe no gibi
E quem quiser que fique aqui
Entrar pra história é com vocês!
(Raul Seixas)77
Seguindo o modelo espartano, a coragem é ensinada pela dor. Aprende-se a
resistir. De acordo com o psicanalista Christophe Dejours: “O aprendizado da coragem
passaria (...) pelo aprendizado da submissão voluntária e da cumplicidade com os que
exercem a violência, mesmo sob pretexto ‘didático’!78
” A violência precisa de uma
justificativa, calcada na ideia de virtude. Os heróis devem estar aptos a infligir violência
75
CAMBELL, J. “O Poder do Mito”. Com Bill Moyers. Tradução: Carlos Felipe Moisés. São
Paulo: Palas Athena, 1990. P-131. 76
TODOROV, Tzvetan. “Em face do extremo”, Tradução: Egon de Oliveira Rangel e Enid Abreu
Dobránzsky. Campinas: Editora Papirus, 1995. p-139-141.
77
“Cowboy fora da lei” – Composição de Raul Seixas e Cláudio Roberto. Letra disponível no sítio
eletrônico: http://letras.terra.com.br/raul-seixas/48307/ 78
DEJOURS, Christophe (2000). “A banalização da injustiça social”. Tradução: Luiz Alberto
Monjardim. 3ª Edição, Editora Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro-RJ. p-129.
58
quando julgarem necessário, ainda que essa violência seja praticada em nome da paz.
Qualquer ímpeto de compaixão frente à dor alheia deve ser afastado. Para Dejours:
Tolerar o próprio sofrimento e não reagir pela violência é antes
visto como resignação, derrota, desistência e até covardia ou
complacência com a dor, o que certamente não é uma conduta
viril. (...) invariavelmente, a virilidade é solicitada quando o
medo está no cerne da relação.79
A virilidade é essencialmente masculina, e está inscrita em oposição à ideia de
fragilidade, atribuída à “natureza feminina”. O mito do herói viril, corajoso, que não
chora e não sente medo está imbricado no cerne da educação infantil, nas histórias em
que o príncipe desembainha sua espada contra monstros tenebrosos para salvar a bela e
frágil princesinha no topo de uma torre. A figura fálica do poder masculino está presente
nos mais diversos âmbitos. Para Dejours:
Recusar a se exercer a violência, para uma mulher, não é jamais
demérito aos olhos das outras mulheres. O fato de uma mulher se
recusar a praticar o mal contra outrem só pode ser tido como um
defeito pelos homens que associam tal recusa à fragilidade, e essa
fragilidade à inferioridade congênita das mulheres, o sexo frágil. A
fragilidade do sexo frágil não é poder suportar o sofrimento, mas não
poder infringi-lo a outrem.80
A aproximação do herói com o Messias na peça de Hilda Hilst é
decorrente da aproximação da ascese divina com a ascese científica. Pois como
vimos em Kerényi, o herói nasce como descendente direto de um deus. Assim
como Cristo, o herói para América era todo amor:
PRIMEIRA POSTULANTE (interrompendo com bastante interesse):
E você acha que ele amava os outros como um herói?
AMÉRICA (apaixonada): O amor era para ele como uma bola de
fogo que ele podia arrancar de dentro de si mesmo e sustentar nas
mãos, e se quisesse também, poderia até mesmo desfazer-se dela, tudo
isso sem deixar de possuí-la. 81
O fogo se remete ao calor do acolhimento e à intensidade de suas chamas.
O sol, figura apolínea, é uma gigantesca bola de fogo em torno da qual tramita a
terra e os demais planetas. A bola de fogo está no centro: o amor desempenha um
papel crucial na saga do herói. Mas ao mesmo tempo, o herói brinca com a bola
79
DEJOURS, Christophe (2000). “A banalização da injustiça social”. Tradução: Luiz Alberto
Monjardim. 3ª Edição, Editora Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro-RJ. p-131. 80
DEJOURS, Christophe (2000). “A banalização da injustiça social”. Tradução: Luiz Alberto
Monjardim. 3ª Edição, Editora Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro-RJ. p-132. 81
HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst
- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
59
de fogo e faz o que bem quer dela. Seu poder é tamanho, que ele pode fazê-la ruir
se assim o desejar. Mas acima de tudo, ele possui a bola de fogo, como quem se
apropria do sol. O amor constitui matéria-prima do herói, e através de sua Palavra,
propaga-o por toda a humanidade. Mas o sol, epicentro do amor, permanece em
suas mãos, como um joguete. E assim, por malabares, o herói domina a
humanidade. Pelo amor.
Pois eu quero entrar num peito
Para poder esquentar-me!
Um coração para mim!
Bem quente! Que se derrame (...)
Meus raios
hão de entrar por toda parte
e haja nos troncos um rumor de claridade (...)
Quem se esconde? Saia já!
De mim não vai escapar!
Farei brilhar o cavalo
numa febre de diamante.
(Federico García Lorca) 82
América conclui sua narrativa em tom sugestivo, dando a entender que o
herói pode estar entre as postulantes: “E um dia essa estória que eu contei, pode
ser a sua estória. Você já imaginou? (para todas) Vocês já imaginaram?”.83
Assim,
impelida pelo entusiasmo de quem quer reformar o mundo, ela consegue conduzir
suas postulantes a um patamar heroico. Todos podem ser heróis: a bola de fogo
está em você, basta você a desejar. Um desejo que impele à ação.
I, I will be king
And you, you will be queen
Though nothing will drive them away
We can be heroes, just for one day
We can be us, just for one day
(David Bowie) 84
Mas a cena é interrompida pela campainha e a decorrente entrada da Irmã
Superintendente. Prima a ordem: todas em fila. Menos América, que mede forças
com aquelas que encarnam a figura do poder que ela desafia. Um ímpeto rebelde
82
LORCA, F. G. “Bodas de Sangue”. Tradução: Rubia Prates Goldoni. São Paulo: Peixoto Neto,
2004. Pp- 19 / 20. 83
HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst
- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. 84
“Eu, eu serei um rei / E você, você será uma rainha. / Embora nada os afaste / Nós podemos ser
heróis, só por um dia / Nós podemos ser nós mesmos, só por um dia.” Tradução livre. “Heroes”.
Composição de David Bowie e Brian Eno. Letra disponível no sítio eletrônico:
http://letras.terra.com.br/david-bowie/5354/.
60
se apropria da protagonista, aquele de quem tem uma causa e não se dobrará com
facilidade. Uma rigidez pétrea, que não permitiria qualquer tipo de concessão.
Assim, dá-se início as orações, das quais ela permanece alheia. Não se trata de
nenhum pai-nosso ou ave-maria, mas um apelo contra presenças indesejáveis no
colégio. América. Ela, cujo nome não fora dito, mas insinuado, teria sido enviada
pelo divino com o propósito de “acrescentar dificuldades à nossa escalada e com
isso tornar mais difícil e meritório nosso lugar no céu”.85
As postulantes
respondem com riso, que tentam disfarçar para não serem punidas. A Irmã então
apela para um exame de consciência, exaltando o martírio dos santos que
cumpriram tarefas que nem todos são capazes de compreender. O santo se revela
naquele que se humilha frente a seus semelhantes, em sua beatitude. Por amor a
Deus, chega ao descalabro de beijar as feridas dos leprosos. América reage com
nojo e fúria: por que será que ela insistia nessa estória macabra?
Crispei minhas unhas na parede: eu sentia agora o nojento na minha
boca, e então comecei a cuspir a cuspir furiosamente aquele gosto de
coisa alguma, gosto de um nada que no entanto me parecia quase
adocicado como o de certas pétalas de flor gosto de mim mesma - eu
cuspia a mim mesma, sem chegar jamais ao ponto de sentir que enfim
tivesse cuspido minha alma toda. "... porque não és nem frio nem
quente, porque és morno, eu te vomitarei da minha boca , era
Apocalipse segundo São João, e a frase que devia se referir a outras
coisas das quais eu já não me lembrava mais, a frase me veio do fundo
da memória, servindo para o insípido do que eu comera - e eu cuspia.
(...) Eu que pensara que a maior prova de transmutação de mim em
mim mesma seria botar na boca a massa branca de barata. E que assim
me aproximaria do... divino? do que é real? O divino para mim é o real.
(Clarice Lispector)
86
O tom paternal do Monsenhor difere da Irmã Superintendente, sua inimiga
declarada. No início ele reprova aquela conduta, enfatizando as verdades
imutáveis e a fé divina, mas titubeia, e um fascínio sombrio toma conta de seu
corpo. Ele vê em América certo brilhantismo, um potencial para liderança. À
medida que América elabora e desenvolve sua narrativa, o Monsenhor muda de
expressão: ele resolve embarcar em sua ideia. A estória de América é uma
invenção de improviso:
85
HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst
- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. 86
LISPECTOR, C. “A Paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.
61
América, ainda com certa precaução, vai inventar uma história
porque sabe que a única maneira de dizer o que pensa é inventar uma
estória nos moldes tradicionais, inventando pais mais ou menos
normais e uma irmão mais velho para que o Monsenhor dê maior
importância ao seu relato. Eta e Dzeta são para América apenas
símbolos de sua história, mas o Monsenhor vai encarar tais símbolos
de maneira diversa, dando-lhes uma nova realidade, realidade essa
insuspeitada para América. 87
A rubrica de Hilst coloca em evidência os sonhos de uma mente inventiva,
levados ao pé da letra por aquele que a escuta. A narrativa alegórica é entendida
em seu sentido literal. A filósofa Jeanne Marie Gagnebin observa que a função da
alegoria é a de uma “desestruturação crítica e redentora”88
, ou seja, é inerente ao
processo de segmentação do real. Trata-se, em última análise, de uma imagem que
engendra a denúncia à aparência falseada da totalidade. A alegoria tem algo de
arbitrário, ela não opera por esquemas fixos, e coloca em relevo o aspecto
transitório e efêmero da modernidade.
Enquanto América tenta elaborar seu ideário através de uma narrativa
fictícia, inventando personagens de seu convívio familiar, o Monsenhor a
interpreta da maneira o mais realista possível. A alegoria ganha corpo e encarna
personagens reais. Se eles não existiam até então, eles passam a existir, e
adquirem materialidade na passagem da segunda para a quarta cena, sendo a
terceira uma cena intermediária, em que a Superintendente, a pedido do
Monsenhor, procura testar América. Dessa vez, quem faz as perguntas é a
Superintendente, que a despreza, mas ao mesmo tempo diz que quer entender o
sentido de sua parábola.
Gagnebin resgata a corporalidade de sentido alegórico inerente aos
processos inteligíveis e espirituais, cuja separação é ilusória: estão, pois,
imbricados, e só podem ser interpretados em sua totalidade unívoca. Segundo a
autora, “essa imbricação é tão profunda que não a percebemos mais, não
escutamos mais o sentido ‘literal’ sob o sentido ‘figurado’”89
É na quarta cena que os desdobramentos da fantasia de América vêm à
tona. O repertório da primeira cena se repete: América conta suas estórias
87
HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst
- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. 88
GAGNEBIN, J. M. “Alegoria, Morte, Modernidade”. In: “História e Narração em Walter
Benjamin”, São Paulo: Perspectiva, 1999. P-43. 89
GAGNEBIN, J. M. “No Feminino Plural”. In:”Mulheres, Filosofia ou Coisas do Gênero”.
TIBURI, Márcia e VALLE, Bárbara. (Org.) Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2008. P-176.
62
mirabolantes às três postulantes no mesmo pátio escolar. Porém a cena provoca
um estranhamento, como se algo estivesse fora do lugar. A começar pela
narrativa, que já não vinha carregada de certezas como nas demais, mas pelo
contrário: falava de mistério. Quando as pessoas em seu redor insistiam que a
estrada terminaria ali onde ele estava, o andarilho segue em frente, certo de que
seu caminho teria continuidade rumo ao desconhecido. Aquela trilha na floresta,
reservada aos cordeiros dóceis e bem-comportados, dava indícios de que haveria
um longo caminho pela frente. Era a recusa do fim da estrada, por aqueles que não
aceitaram a condição de cordeiro obediente. A estória de América testa os limites
que apontam o fim da linha, e a recusa a acreditar naquilo que seus olhos viam.
Deve haver algo além. Como quem procura por brechas entre as folhagens ou
pontes que atravessem o rio, América diz não.
(Nada sei do que te faz tão poderosa
ao me mover; mas algo em mim compreende apenas
que a voz de teus olhos é mais profunda que todas as rosas
ninguém, nem mesmo a chuva, tem as mãos tão pequenas.)
(E. E. Cummings) 90
Sua atitude mudara. Suas postulantes observam a transformação de sua
líder, que agora é posta à prova por desafiar a ordem racional do mundo. Ela cai
em descrédito por contar estórias de um sonhador, e por sofrer ela mesma dessa
perigosa patologia: o sonho. A Superintendente entra em cena, a princípio como
quem deseja ajudá-la. Ela lhe concede dois livros. Mas quais?
AMÉRICA: O primeiro aquele que conta a estória de um homem que
virou bicho.
PRIMEIRA POSTULANTE: Um louco?
SUPERINTENDENTE: Sem nenhum interesse.
SEGUNDA POSTULANTE: Mas como é essa estória, Irmã?
SUPERINTENDENTE: É a estória de um homem que se transformou
num inseto, e a família quase enlouqueceu por causa dele.
TERCEIRA POSTULANTE (rindo): Lógico, era pra enlouquecer.
SUPERINTENDENTE: A família sofre humilhações, desprestígio. É
horrível. Esse livro não. Peça um razoável. 91
90
CUMMINGS, E. E. “Antologia da Nova Poesia Norte-Americana”. Tradução Jorge Wanderley.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.
63
América escolhe um livro subversivo, pois reintroduz o sonho onde tudo
precisaria fazer sentido a olho nu. No campo das verdades absolutas outorgadas
pelo primado de um saber científico, só existe lugar para aquilo que é dedutível
em termos racionais. A ordem do sensível confunde, escorrega às classificações, e
requer o mínimo de criatividade para que se possa deixar tocar nesses termos.
Como dizia Artaud, é preciso captar com o olhar, e antes um olhar sensível aos
fazeres e refazeres do mundo, acompanhando os movimentos não decodificáveis,
sem se deixar permear pelas pressões costumeiras do cotidiano. Para Artaud,
antes, importa:
Deixar-se levar pelas coisas em lugar de se fixar sobre certos lados
especiosos, de pesquisar sem fim definições que não nos mostram
senão os pequenos lados. Mas para isto tem em si a corrente das
coisas, estar ao nível de sua corrente, estar enfim ao nível da vida, em
lugar de permitir que nossas deploráveis circunstâncias mentais nos
deixem perpetuamente no entremeio, estar ao nível dos objetos e das
coisas, ter em si sua forma global e sua definição ao mesmo tempo, e
que as localizações de tua substância pensante entrem em movimento
ao mesmo tempo que seu sentimento e sua visão em ti.92
América escolhe a “Metamorfose” de Franz Kafka: A estória do homem
que amanheceu metamorfoseado em uma barata. A interpretação da
Superintendente e das postulantes é conotativa de uma ciência maior, que
despreza aquilo que lhes parece cientificamente inconcebível.
Tinha de fato vontade de mandar que seu quarto, aquele quarto
morno, confortavelmente instalado com móveis herdados, fosse
transformado em uma toca, na qual ele poderia se arrastar com
liberdade em todas as direções, sem ser perturbado, mas pagando o
preço de esquecer de modo simultâneo, rápido e completo seu
passado humano? De fato agora já estava próximo de esquecer, e
apenas a voz de sua mãe, que ele não ouvia há tempo, dera-lhe uma
sacudida interna.
(Franz Kafka) 93
O fato de que Superintendente continue a zelar pelos valores da família
deflagra certa ambiguidade. Mudou o paradigma, mas a antiga estrutura
permanece em pé sob outras roupagens. O desprestígio da família é um pilar que
se mantém, e que recoloca a injúria e a vergonha em seu devido lugar. Desafiar os
91
HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst
- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. 92
ARTAUD, A. “Na Luz da Evidência”. In: “Linguagem e Vida”. Tradução: Jacó Guinsburg. São
Paulo: Perspectiva, 2008. Pp-247 / 248. 93
KAFKA, F. “A Metamorfose”. Tradução: Marcelo Backes. Porto Alegre: LP&M, 2008. P-62.
64
parâmetros racionais segue como um dogma, mas a vergonha é aquela mesma
atribuída àqueles que cometem heresias sob a crista e a cruz. A família permanece
um bem supremo. Ainda mais paradoxal é o fato de uma das postulantes chamá-la
de “irmã”, deixando vestígios do que aquela instituição outrora representara. Até
que ponto houve uma ruptura com aquele passado religioso?
O segundo livro “é a estória daquele que ressuscitou” 94
. A alusão a Cristo
remete a um antigo imperativo, em nome do qual se falava para reforçar a ordem e
o controle. Hilst vira Cristo de cabeça para baixo, e pela inversão paródica, a
repetição provoca um estranhamento. Aqui entra a autocrítica: em um primeiro
momento o sagrado fora posto em questionamento pelo profano, e agora é a vez
de desconstruir o profano. Tomo o profano como a verdade da ciência, aquilo que
se pretende como vértice antagônico na oposição binária “evolucionismo-
criacionismo”. O que está em relevo é a imagem de Cristo, filho de uma Virgem,
o Messias. As antigas perguntas de América indagam através de outros locutores.
Como pode um homem ser filho de uma virgem? Isso é inconcebível aos olhos da
ciência.
“É verdade que Deus está em toda a parte? (...) mas acho isso
indecente”.
(Friedrich Nietzsche) 95
A menção aos dois livros remete a um paradoxo discrepante: enquanto o
primeiro animaliza, assumindo a forma de um inseto que suscita repulsa e nojo, o
segundo espiritualiza, e restitui a humanidade em amor. Após sofrer deboche de
suas postulantes com a mesma arrogância e pretensão de verdade com que
América questionara os ensinamentos da Igreja, a Superintendente chega ao
descalabro de compará-la a uma alquimista.
A figura do alquimista, aquele que transforma metais em ouro, através de
procedimentos mágicos e enigmáticos. Em seu duplo e ambíguo sentido, a
conversão em ouro pode ser interpretada como uma tomada de consciência. Sem
sombra de dúvida, o alquimista é uma figura perigosa, e ao mesmo tempo
depreciada pela alta ciência. Enquanto as ciências duras trilhavam as linhas do
94
HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst
- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. 95
NIETZSCHE, F. apud FERRAZ, M.C.F. “Mulher, Amor e Amizade em Nietzsche”. In:
In:”Mulheres, Filosofia ou Coisas do Gênero”. TIBURI, Márcia e VALLE, Bárbara. (Org.) Santa
Cruz do Sul: EDUNISC, 2008. P-180.
65
progresso, lançando-se para o futuro como em um trampolim, os alquimistas se
voltavam para trás, debruçando-se nos segredos de um passado mais remoto, com
as receitas das poções ditas mágicas e elixires pagãos, desprezados tanto pelos
católicos, como pelos cientistas. A alquimia era uma conotação depreciativa
atribuída à alteridade, tanto nos focos de resistência do Ocidente, como de
maneira mais geral e abstrata no Oriente. Uma coisa é certa: alquimista é um
termo cunhado no Ocidente pelo cânone branco, masculino, europeu, católico e
dominador, adquirindo verniz científico; ao passo que a verdade da cruz se
converte em verdade da ciência, pois o que se entende por revolução científica
não elimina a antiga moral católico-cristã. Mas ainda assim pertence à ordem do
mito, pois o termo é usado para traduzir o inconcebível, o imponderável, o
mistério.
Mircea Eliade entende o alquimista como o "senhor do fogo"96
, uma vez
que é a partir do fogo que se dá a transmutação entre metais. Estaria no fogo uma
força mágico-religiosa capaz de acelerar a natureza e moldar o mundo de acordo
com os desejos do homem. O fogo é poder, é uma força cuja maestria pertence à
ordem do sagrado. Há uma série de mitos que remetem à apropriação do fogo
pelos homens. Prometeu fora acorrentado por roubar o fogo dos deuses. Pelo
domínio do fogo, o xamã ou o iogue atravessariam o campo do humano para
ascender a uma espiritualidade elevada. De acordo com James Hillman:
O fogo como uma criança sempre faminta, fogo como uma criança
crescendo rápido, jovem e flamejante, fogo como uma virgem sempre
renovável. Lareira como útero, berço, abraçando o centro em torno do
qual a opus circumambula. (...) Como um dos quatro elementos que dá
base ao ser do cosmo, o fogo não pertence nem mesmo aos deuses. O
fogo não pode ser roubado e tornado disponível para o uso humano
mais que a terra, o ar e a água podem ser usurpados para o benefício
de uma espécie apenas.97
Para Hillman, caberia ao alquimista ir além de um humanismo
prometeico, e pelo fogo animar as substâncias, imergir no mistério não humano
das coisas. Quanto mais pura a substância, mais puro o fogo. Tudo o que é
supérfluo, é queimado, resta apenas o carvão, de substância leve e preta. O carvão
simboliza o ato de nascer duas vezes: primeiro como madeira, depois como sua
96
ELIADE, M. "Ferreiros e Alquimistas". Tradução: Carlos Pessoa. Lisboa: Relógio d'Água
Editores Lda, Coleção Antropos, 1983. P-63 97
HILLMAN, J. "Psicologia alquímica". Tradução Gustavo Barcellos. Petrópolis – RJ: Vozes,
Coleção Reflexões Junguianas, 2011. P- 46
66
essência purificada pelo rito sagrado da alquimia. Hillman conclui: "O fogo dá à
alquimia suas leituras espirituais".98
Acusada de alquimista, América precisaria ser punida. Seu primeiro
veredicto foi sentenciado pela Superintendente, que incita as postulantes a
cobrirem sua cabeça, já que ela não fazia uso adequado da mesma:
SUPERINTENDENTE (objetiva): Muito bem, minha filha. Na
verdade a cabeça de América não existe. E para que essa verdade
fique bem clara, é necessário que daqui por diante ninguém mais
veja... (com ironia) essa cabeça não existe.
As Postulantes tiram de algum canto um camisolão preto e jogam
por cima de América como se fossem vesti-la. Mas fazem-no de forma
a não deixar que a cabeça de América passe pela abertura.
(...)
SUPERINTENDENTE (para América): E pode pensar à vontade
agora. (sorrindo com desdém) Mas naturalmente sem a cabeça. 99
As lamúrias de América, despida de sua pretensão de verdade, vestida
com seu camisolão como quem traja uma camisa de força denotam um luto, uma
indignação por esse mundo entrecortado e apodrecido pelas sombras daquilo que
se pretendia luz. O obscurantismo da ciência, que eclipsa o brilho da luz solar.
A fúria do meu tempo separou-nos
E há entre nós uma extensão de pedra.
Orfeu apodrece
Luminoso de asas e de vermes 100
América fala de Orfeu, o argonauta que acompanha Jasão em sua epopéia
em busca do Velocino de Ouro. Orfeu, o pacificador de brigas e o encantador de
sereias, graças à lira que recebera de presente de Apolo. Perdeu sua amada
Eurídice para uma serpente, que a surpreendeu quando colhia flores em seu
jardim. Seu amor é tão grande, que ele vai até os reinos subterrâneos, vence o
Cérbero, um cão de três cabeças, guardião dos portões e consegue chegar até
Hades. Suas lágrimas de ferro são capazes de comover Perséfone, que entrega de
volta sua amada com a condição de que ele não olhe para ela até que atravessem o
98
HILLMAN, J. "Psicologia alquímica". Tradução Gustavo Barcellos. Petrópolis – RJ: Vozes,
Coleção Reflexões Junguianas, 2011. P-43 e 46 99
HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst
- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. 100
HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst
- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
67
Rio Estige. Temendo tratar-se de uma trapaça, seus olhos o traem e Eurídice
retorna para o mundo das sombras. Triste, ele passa três anos a vagar pelas
florestas da Trácia, tocando sua lira. Sua melodia seduz as Mênades, que celebram
seus ritos dionisíacos atrás dos arbustos. Orfeu paga caro por desprezá-las. Os
gritos furiosos das Mênades abafam a melodia de sua harpa, enquanto seu corpo é
atravessado por dardos, e depois esquartejado. Sua cabeça e sua harpa são
lançadas ao rio. As noves musas choram por sua morte trágica, juntando os
pedaços de seu corpo e transportando-o ao Monte Olimpo. Sua alma encontra
Eurídice no mundo das sombras e ambos são acolhidos por Apolo e transportados
para os Campos Elíseos, onde vivem o amor eterno. Como castigo dos deuses, as
Mênades foram transformadas em carvalho. Diz-se que a doce melodia dos
rouxinóis da região tem origem na harpa orfeica.
Joseph Campbell entende a história de Orfeu como um mito do fracasso
que nos remete à tragédia da vida:
O mito grego de Orfeu e Eurídice , assim como centenas de contos
análogos em todo o mundo, sugerem (...) que existe a possibilidade de
o amante retornar com sua amada perdida do terrível limiar, apesar do
fracasso registrado. É sempre alguma pequena falha, algum sintoma,
leve mas crítico, da fragilidade humana, a causa da impossibilidade de
um relacionamento franco entre os dois mundos; dessa maneira, quase
somos tentados a acreditar que, se o pequeno acidente perturbador
pudesse ter sido evitado, tudo correria bem. 101
América experimenta um desespero semelhante ao de Orfeu, apartado de
sua amada, que paira no reino das sombras. A frieza de seu tempo amplia o
abismo que separa os dois mundos por extensões de pedra. Há uma angústia
extrema frente ao apartheid, entre as asas dos anjos e os vermes que habitam o
mundo das sombras. Não há espaço para uma comunicação que tramita no
interstício entre o céu e a terra. Distanciado das estrelas celestes, o mundo fica
frio, inóspito, podre e sem vida. As lamúrias de América clamam por algo que não
é da ordem do sagrado nem do profano, mas desse espaço do entre, onde a ciência
e a espiritualidade coexistem: eis o grande fracasso que dá o tom da tragédia
humana.
101
Campbell, J. "O herói de mil faces". Tradução: Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Pensamento,
2007.
68
Ilumina-se (...) o plano B, onde está o Monsenhor sentado na sua
cadeira negra, , alta, fazendo agora o papel de Inquisidor. Não deve
ter roupas sacerdotais, mas algumas indicações de que ele foi
Monsenhor e agora é Inquisidor. Pode haver movimentação do
Monsenhor nos dois planos.102
As rubricas ilustram o quão sutil é a troca de papéis: é como se o
Monsenhor deslizasse para o Inquisidor, deixando evidente que algo do antigo
personagem permanece em cena. Eles desempenham o mesmo papel, mas mudam
as vestimentas, para sugerir que a situação efetivamente mudou. Ele analisa os
papéis como um inquérito. Seu fim é obter uma confissão, dados que justifiquem
sua conduta. Sua primeira pergunta poderia ser a de um psicanalista: "Como era
sua mãe? (pausa)" 103
Michel Foucault observa como se amplia a extensão da confissão após a
Contra-Reforma. A prática da confissão tornou-se mais meticulosa. É preciso
investigar as mais singelas minúcias: "uma sombra num devaneio, uma imagem
expulsa com demasiada lentidão, uma cumplicidade mal afastada entre a mecânica
do corpo e a complacência do espírito: tudo deve ser dito"104
. Foucault observa
como o imperativo "examinai" passa desempenhar um papel crucial nas práticas
confessionais, visando acompanhar cada desvio que sobressai à linha que liga o
corpo com a alma: "ela revela, sob a superfície dos pecados, a nervura ininterrupta
da carne". Os dispositivos discursivos utilizados pelas instituições do Estado nas
práticas de perícia e inquérito não só acompanham esse movimento, como
aprimoram as técnicas investigativas, para encontrar saídas cada vez mais limpas,
insípidas, inodoras e racionais de exercer controle sobre os corpos. Órgãos de
controle sanitário determinam o que é adequado para a saúde do organismo social,
o panóptico, a torre de vidro no centro das prisões de onde se pode ver tudo, dita a
tendência da arquitetura das grandes cidades, a psicologia passa a analisar os
lugares mais recônditos da história do sujeito para inserir o sujeito à sociedade e
contribuir para ordenar o mundo.
A censura atribuída a América é organizada como um tipo de lógica de
cadeia, como diz Foucault:
102
HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst
- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. 103
HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst
- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. 104
FOUCAULT, M. "História da sexualidade I: A vontade de saber". Tradução: Maria Thereza da
Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque, Rio de Janeiro: Edições Graal, 2010. P-25
69
Liga o inexistente, o ilícito e o informulável de tal maneira que cada
um seja, ao mesmo tempo, princípio e efeito do outro: do que é
interdito não se deve falar até ser anulado no real, o que é inexistente
não tem direito a manifestação nenhuma, mesmo na ordem da palavra
que enuncia sua inexistência, e o que deve ser calado encontra-se
banido do real como interdito por excelência.105
Desse modo, Foucault nos fornece pistas dessa lógica que nega aquilo que
escapa ao protocolo: é preciso falar a mesma língua, orientar pelos mesmos
paradigmas, seguir ipsis litteris as regras de conduta apropriadas ao que é
considerado socialmente admissível. No âmbito da revolução científico-racional,
seria inapropriado falar de mistérios, de poesia, de metáforas ou de metafísica. A
justificativa que o Inquisidor buscava era da ordem racional: encontrar uma
justificativa em seu âmbito familiar. Que tipo de herança teriam seus pais deixado
em seu histórico, que pudesse justificar sua conduta? A resposta de América foi
insatisfatória, pois não teria como ser devidamente catalogada no campo da
objetividade:
Os olhos velhos e a vontade de amar sem saber como. Crescemos
tanto as duas, tão inutilmente. Crescemos tanto que nem mais nos
abraçávamos, nem sorríamos, como acontece àqueles que se amam.
Eu dizia: "Dá-me um pouco de ti, eu tenho sede. Tenho os olhos
pisados de sonhar". 106
A frieza da sua relação com a mãe não parecia comover o Inquisidor, cuja
resposta lhe parecia insatisfatória. Não é da carência e do sofrimento humano,
pois, que isso se trata. Ao constatar que a estória previamente narrada ao
Monsenhor era uma invenção de sua cabeça, o Inquisidor quer saber sobre sua
verdadeira relação com o pai. Ela diz que ele não seria capaz de compreender a
conversa que teve com seu pai, afinal, não é da ordem racional. A pretensão da
ciência de tudo explicar, podendo entender "até o demônio" encontra eco na voz
articulada do Inquisidor. Ele exige respostas e tem pressa. Após uma longa pausa,
ela responde lentamente, como se falasse sozinha:
Pai, uns ventos te guardaram, outros guardam-me a mim. E
aparentemente separados, guardamo-nos os dois, enquanto os homens
no tempo se devoram. Será lícito guardarmo-nos assim? (...)
105
FOUCAULT, M. "História da sexualidade I: A vontade de saber". Tradução: Maria Thereza da
Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque, Rio de Janeiro: Edições Graal, 2010. P-94. 106
HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst
- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
70
Pai, tocaram-te nas tardes brandamente, assim como tocaste,
adolescente, a superfície parada de umas águas? Tens ainda nas mãos
a pequena raiz, e a fibra delicada que a si se construía em solidão? (...)
Assim somos tocados sempre. Pai, este é um tempo de silêncio.
Tocam-te apenas. E no gesto, te empobrecem de afeto. E no gesto te
consomem. (...)
Pai, este é um tempo de cegueira. Os homens não se vêem. Sob as
vestes, um suor invisível toma corpo e, na morte, nosso corpo de
medo é que floresce. Mortos nos vemos. Mortos amamos. E de olhos
fechados, uns espaços de luz rompem a treva (abaixa a cabeça como
se soubesse a inutilidade de todas as confissões) (...)
(angustiada) Pai, este é um tempo de treva. 107
América rememora a conversa que teve com o pai, que bem poderia ser
uma memória inventada ou reinventada, mas isso não faz a menor importância. O
que está em relevo não é a figura real ou fictícia do pai, mas a maneira poética
com que ela retrata a angústia de seu tempo. Os ventos guardam, acolhem e levam
a filha e o pai para lugares distantes um do outro, mas isso não sela o fim da
relação de acolhimento entre pai e filha. Ambos estão à margem da barbárie atroz
de seu tempo. Homens se devoram, em um ato que Oswald de Andrade define
como "baixa-antropofagia", calcada na mesquinhez, na inveja, na calúnia e no
assassinato. Homens se matam por pouca coisa, sangue é derramado por dinheiro
e pelo poder mesquinho dos governantes. As águas de superfície nos tocam a
retina, mas não recobrem o corpo, não chegam a tocar a raiz, submersa nas
profundezas, onde a retina do homem racional não penetra. Uma raiz solitária,
mas que difícil de arrancar. Ela pertence à terra e lá permanece, ainda que careça
da luz do sol.
O toque brando é um toque não corporificado, é algo que vem de fora, e
que provoca certo mal-estar, mas que não atravessa a superfície da pele. América
fala em consumir como força de trabalho, a exploração que exige um dispêndio de
energia para benefício de um capitalista. Consome-se a força vital, consome-se o
tempo, consome-se a mercadoria. Como diz Oswald, até a consciência já vem
pronta e enlatada, trazida de fora. Assim também o silêncio é imposto de fora. É o
silêncio do ato de silenciar, como quem aplica mordaças aos descontentes. É o
tempo em que o desagradável não pode ser dito, e calando-se, a humanidade
107
HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst
- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
71
consente aquilo que vem de fora. É um tempo em que a visão é deformada,
recortada e transposta em molduras pré-configuradas que impedem o ser humano
de enxergar seu semelhante. Esse corpo recortado, amestrado, e adocicado pelos
dispositivos de controle do Estado e dos capitalistas de olho no panóptico, acaba
aprendendo a sentir medo. A doçura não vem da candura interna, mas de um
procedimento que o obriga a dizer sempre sim e abaixar a cabeça para seu
superior. O corpo é dócil, como diz Foucault108
, pois ele se quebra e se submete
ao status quo. O corpo é amestrado, pois as instituições sociais, da escola à prisão,
ensinam-lhe como deve se conduzir. A prisão pode ser uma presença
subentendida, o medo provém antes da ideia de prisão, que do fato consumado.
Basta que alguns sejam presos para que os demais assimilem a punição enquanto
potência latente. O medo é o que ordena a sociedade.
Apartados da propriedade de seus corpos e de suas forças vitais, os
homens definham por dentro, conduzindo-se tal como mortos-vivos. Perde-se a
noção do que é corpóreo, dos desejos que atravessam os corpos. De autônomos, os
gestos passam a ser automáticos e repetitivos, tal como ocorre com Carlitos,
personagem de Charles Chaplin em Tempos Modernos. A maquinaria se apropria
do homem, como se ele fosse peça de uma engrenagem, já não mais capaz de
viver, sentir e sonhar. É preciso comer para trabalhar e trabalhar para comer, eis o
único sentido atribuído de fora ao que se entende por vida. Em tempos sombrios,
para enxergar o mais singelo feixe de luz interno é preciso fechar os olhos e dar
asas à imaginação. A luz do fim do túnel está no lado de dentro, em uma
introspecção no escuro. Desse pequeno feixe de luz provém o grito, que faz
estremecer o corpo silenciado.
O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O
antropomorfismo. Necessidade de vacina antropofágica. Para o
equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições
exteriores. (...)
Só podemos atender ao mundo orecular.
Tínhamos a justiça categorização da vingança. A ciência codificação
da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em
totem.
Contra o mundo reversível e as ideias objetivadas. Cadaverizadas. O
stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vítima do sistema.
Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o
esquecimento das conquistas interiores.
108
FOUCAULT, M. “Vigiar e Punir - Nascimento da Prisão”. Tradução Ligia M. Pondé Vassalo.
Petrópolis, Vozes, 2ª Edição, 1983.
72
Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.
Roteiros.(...)
A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela
contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e
o modusvivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro.
Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena
finalidade. (...) A escala termométrica do instinto antropofágico. De
carnal, ele se torna eletivo e cria amizade. Afetivo, o amor.
Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao
aviltamento.
(Oswald de Andrade) 109
A cena do julgamento se inaugura pela fala do Bispo. A poesia que
exorta a crença na figura divina do Homem se dá em frases que deslizam de uma
boca para outra, alternando-se entre as vozes do Bispo e do Inquisidor. Em
uníssono, a sintonia entre as falas dos dois personagens é harmônica, como se não
fosse possível haver qualquer diferença entre as duas mentes. A entonação
indicada pelas rubricas oscila entre o sarcasmo e a benevolência, em um fluxo
contínuo, que faz com que um acompanhe o tom do outro, como em uma
orquestra. A combinação entre as falas dos dois personagens conflui para um
único poema:
BISPO (para o público): O Deus de que vos falo não é um Deus de
afagos.
INQUISIDOR: É mudo.
BISPO: Está só.
INQUISIDOR: E sabe da vileza do homem.
BISPO: E no tempo contempla o ser que assim se fez: O Homem.
(pausa)
INQUISIDOR (irônico): É difícil ser Deus.
BISPO (amável): As coisas O comovem.
INQUISIDOR (ameaçador, apontando o público): Mas não da
comoção que vos é familiar.
BISPO (sarcástico): Essa que vos inunda os olhos (apontando
América com bastante ironia) quando o canto da infância se refaz.
(pausa)
INQUISIDOR (suave, íntimo, contínuo): A comoção divina não tem
nome.
109
ANDRADE, O. de "Manifesto Antropófago". In: "A utopia antropofágica". São Paulo: Globo,
2001.
73
BISPO (suave, íntimo, contínuo): O Nascimento...
INQUISIDOR (suave, íntimo, contínuo): A Morte...
BISPO (suave, íntimo, contínuo): O martírio do herói...
INQUISIDOR (suave, íntimo, contínuo): Vossas crianças claras sobre
a laje.
BISPO (com pretensa piedade): Vossas mães no vazio das horas...
(pausa)
INQUISIDOR (imperativo): E deveis amá-Lo se eu vos disser sereno,
sem cuidados, que a comoção divina, contemplando se faz.
OS DOIS JUNTOS (apontam-se): O Homem. O Homem diviniza-se. 110
Esse Homem, com "H" maiúsculo substitui o antigo Deus no cânone que
ocupa o centro do universo. Esse Homem já não mais precisa de Deus para
explicar o mundo. Ele assume o lugar de Deus através do rito que o sacraliza: pelo
martírio do herói. Assim como a crucificação e a ressurreição de Cristo, esse
Homem passa por uma morte simbólica – o martírio do revolucionário –, para
então renascer como a mão que tateia constrói o mundo. Esse Homem, o herói,
também comove e serve de modelo para as futuras gerações. Ele abre caminho
para um futuro promissor. As oscilações de entonação obedecem a uma rítmica
imprimida por certo deslumbre frente à descoberta do Humano como o centro e a
medida de todas as coisas, e certo sarcasmo que menospreza a ré e sua fé em outro
Deus, que acreditam ter deixado para trás. Há certa prepotência na postura
daqueles que falam em nome da Verdade do conhecimento científico, certa
arrogância que despreza todos os outros modos de se apreender o mundo, todos os
outros parâmetro que não o do Humano em seu pedestal. Esse Homem não é
qualquer Homem, mas uma tipificação do homem racional, heroicizado. Ele
segura o martelo que sela o veredicto dos descrentes como quem está prestes a
podar as ervas daninhas que empesteiam o mundo. Há um descompasso entre essa
pretensão de grandeza do homem diante da infinitude das constelações, das quais
temos pouco conhecimento. Já dizia Nietzsche:
Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um
sem-número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que
animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais
soberbo e mais mentiroso da "história universal": mas também foi
110
HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst
- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
74
somente um minuto. Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se
o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer. – Assim poderia
alguém inventar uma fábula e nem por isso teria ilustrado
suficientemente quão lamentável, quão fantasmagórico e fugaz, quão
sem finalidade e gratuito fica o intelecto humano dentro da natureza.
Houve eternidades, em que ele não estava: quando denovo ele tiver
passado, nada terá acontecido. Pois não há para aquele intelecto
nenhuma missão mais vasta, que conduzisse além da vida humana. Ao
contrário, ele é humano, e somente seu possuidor e genitor o toma tão
pateticamente como se os gonzos do mundo girassem nele. 111
O mundo é infinitamente mais amplo que a pretensão de se explicá-lo, seja
qual for o paradigma. Com tantos vértices e angulares, a simples ideia de
encontrar uma única matriz explicativa para o mundo é risível. O Humano é um
parâmetro que serve apenas ao humano, e mesmo assim, diferentes sociedades
encontram diferentes meios de se apreender o mundo. A preponderância do
discurso científico-racional sobre os demais se sustenta pela configuração das
relações de poder, por exercer posição hegemônica no cânone Ocidental. Mas
enquanto o Homem despende sua energia para explicar o universo, a vida
acontece em torno e apesar do Humano.
América não está disposta a dar o braço a torcer, e reafirma sua fé "no
Anjo, na Anunciação e na Grande Senhora que foi Virgem antes do parto, no
parto e depois do parto, na ressurreição..."112
Ela diz ter o coração abrasado de
amor pelo Divino. A afirmação de sua fé é acusada de heresia pela Irmã
Superintendente. O vocabulário eclesiástico que predomina no discurso que se
insurge contra a fé Cristã é denotativo do paradoxo que a autora pretende colocar
em evidência. Se posto em prática em um contexto realista, esse paralelismo não
seria possível. Como o teatro de Hilst não tem essa pretensão, o jogo com os
jargões religiosos para referir-se à ciência arrancam riso e provocam
estranhamento. O intuito é aproximar ambos os discursos como espelhos um do
outro, incitando o espectador a enxergar além deles.
Mas como fazer um cientista entender que há algo de definitivamente
desregrado no cálculo diferencial, na teoria dos quanta, ou nos
obsenos e tão ingenuamente litúrgicos ordálios da precessão dos
equinócios, por causa daquele acolchoado rosa camarão que Van
111
NIETZSCHE, F. "Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral". In: Friedrich Nietzsche:
Obras Incompletas. São Paulo: Abril Cultural, Coleção Os Pensadores, 1974. P-53. 112
HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst
- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
75
Gogh faz espumar tão suavemente num lugar eleito de seu leito, por
causa de uma pequena insurreição verde veronese, azul molhado,
barca diante da qual uma lavadeira de Auvers-sur-Oise está se
levantando após o trabalho, por causa também daquele sol fixado por
trás do ângulo cinzento do campanário da aldeia, pontiagudo, lá
embaixo, no fundo; em frente, aquela enorme massa de terra que, no
primeiro plano da música, procura a onda antes de se congelar.
(Antonin Artaud) 113
Mais uma vez, o Bispo e o Inquisidor procuram desmentir as estórias da
Bíblia a partir de uma leitura fria e objetiva, que prova através de um cálculo
racional que os milagres aos quais se refere América são desprovidos de
fundamento científico. Tudo o que ela diz é ridicularizado à luz de um
pragmatismo rígido e soberano. É-lhe apresentado um quadro-negro e um pedaço
de giz, para que ela demonstre e comprove a sua Verdade. Ela hesita, mas acaba
por desenhar um círculo com um triângulo equilátero. Ela entende o círculo como
o universo, que a rigor não precisaria de uma linha. É um círculo por compreender
o compasso que circunda o globo ocular. Também o sol assume esse formato de
esfera. Os vértices do triângulo sugerem as asas de um Anjo, e também o Tríplice
sagrado: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Em seguida quem vai ao quadro é o
Inquisidor, que escreve T = C, C= T, ou seja, comer para trabalhar, trabalhar para
comer, e depois traça um grande círculo em torno da equação, que representaria a
técnica.
LUCIANO – Agiota! Lá, quem não é agiota é capacho de agiota! E
nós somos capacho de agiota! E a gente leva o dia inteiro
falando “sim senhor, sim senhor, sim senhor”! Mal pago,
ordenadinho que não dá nem pra atravessar quinze dias!
Mal pago, mal tratado, mal reconhecido! Ninguém olha
pela gente, ninguém se importa com a gente...
(Renata Pallotini) 114
Desde a revolução industrial, novas técnicas e novos sistemas trataram de
aprimorar a técnica que potencializa um lado da equação trabalhar para comer,
comer para trabalhar. Come-se o suficiente para trabalhar, mas do trabalho extrai-
se o máximo de mais-valia, ou seja, o valor excedente do trabalho consumado, tal
113
ARTAUD, A. “Van Gogh. O Suicidado da Sociedade”. In: “Linguagem e Vida”. Tradução:
Sílvia Fernandes e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2008. P-272.
114
PALLOTINI, R. “A Lâmpada”. In: “Teatro Completo”. São Paulo: Perspectiva, 2006. P-67.
76
como Karl Marx115
explica em O Capital. Quanto mais excedente, maior é o lucro
do proprietário dos meios de produção. O sistema é bastante simples e eficaz,
quando enxergado sob o prisma da engrenagem. A margem de erro está fora, pois
o trabalho é exercido por estruturas mais complexas, humanas. A finitude dos
recursos naturais fornecedores de matérias-primas também impõe limites. O
Homem é capaz de manipular a natureza, mas não a domina. Quanto à força de
trabalho, sua manipulação alcançou parâmetros bastante ordenados, maximizando
a produção de mercadorias em um tempo mais comprimido. O avanço da técnica
permitiu a inserção da esteira de montagem, permitindo a rápida circulação de
materiais pela fábrica, exigindo que as mãos desempenhem um trabalho cada vez
mais repetitivo, em uma divisão mais setorializada, que aparta do planejamento o
processo produtivo. Em termos marxianos, a separação do trabalho manual do
trabalho intelectual. O trabalho passa a ser cronometrado e controlado por agentes
vigilantes. Introduz-se o ponto, que registra o horário de entrada e saída dos
funcionários. O rigor da técnica dá a impressão de que o homem assemelha-se
cada vez mais a um robô, que se comporta e se orienta automaticamente, sem
pensar, sem sentir, sem sequer exercer o domínio de seu próprio corpo, que se
encontra cada vez mais atrofiado pelo movimentos contínuos.
Mas o humano ainda sonha, e os pensamentos acabam por escapar ao que
só em aparência é um domínio em sua plenitude. Ainda cabe ao Homem a recusa.
Ainda cabe ao Homem uma retomada de sua subjetividade apartada. Por isso o
pensamento e o sonho são tão perigosos para o sistema.
BISPO: Nós a recompensaríamos se ela ficasse passeando nos nossos
jardins... passeando e pensando, passeando e pensando. Uma natureza
imaginosa pode de repente descobrir coisa nova. 116
A morte também não lhe cairia bem, pois a morte poderia significar o
martírio em sua beatitude, e os paladinos da ciência ainda temiam a sua Ascensão.
Eles diziam que o tribunal aspirava à sua salvação, mas não pareciam ter clareza
sobre o que isso viria a ser em termos concretos. É a própria América quem sem
querer fornece pistas do que poderia ser sua "ascese":
115
MARX, K. “O Capital: Crítica da Economia Política”. Tradução: Regis Barbosa e Flávio R.
Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 116
HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst
- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
77
AMÉRICA (lentamente): Ofereço-vos minha mão aberta. Queimada
de uma luz tão viva como se ardesse viva sob o sol. Olhai se possível
a mão que se queimou de coisas limpas. E se souberdes o que em vós
é justiça, podereis refazê-la à imagem de vossa mão. E depois
igualada, aproveitá-la a cada hora. A cada hora e... 117
América sequer teve tempo de concluir seu raciocínio, e foi interrompida
pelo Inquisidor, que balbuciava a palavra "aproveitá-la"como quem acabava de ter
uma boa ideia, ainda sem conseguir formulá-la até o final. Seria um grande
desafio aproveitá-la "com as asas que tem". Qualquer pisada em falso, ela corria o
risco de voar longe em pensamento. Talvez fosse o caso de deixar que o tempo
sossegasse os ânimos e apaziguasse os anseios de um pensamento convulsivo.
INQUISIDOR: Um aproveitamento eficiente e concreto é bem
da competência do poder temporal. Eles têm sempre ótimas
ideias. E para os casos assim são primorosos.
BISPO: E o poder temporal não é representado pelo colégio?
INQUISIDOR (cansado): Pela empresa, pela empresa,
Reverendíssimo.
BISPO: A empresa, o colégio, o instituto, e logo mais haverá
uma só palavra para tudo. Será a síntese, meu amigo.
INQUISIDOR: Irmã Superintendente, por favor, queira
aproximar-se.
Todos ficam de pé.
INQUISIDOR (continuando solene): Nós entregamos à
senhora, neste ato, com especial cuidado, a moça América (luz
diminuindo gradativamente). E pedimos clemência.
BISPO: Benignidade. 118
O colégio indica a passagem de tempo: fora lá que América crescera, e
também fora lá onde produzira suas ideias mirabolantes que culminariam na
reformulação do mundo. O colégio funciona como um tubo de ensaio para que o
experimento de transmutação ou conversão seja aplicado nas demais repartições
sistêmicas onde se produz o trabalho intelectual: as empresas, os institutos. A
origem e o estopim da reviravolta se deram efetivamente no colégio. Esse
ambiente familiar, onde América despertou suas paixões mais irreverentes. Se
América tivesse que ser cooptada e aproveitada pelo novo sistema, seria no
117
HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst
- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008. 118
HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst
- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
78
acolhimento do ambiente escolar, lá onde as paixões pulsam com mais vigor. No
lugar da ambiguidade por excelência, onde aprendera os ensinamentos bíblicos
que outrora não faziam sentido para ela, onde pela paixão pela ciência provocara
essa inversão, que assevera o primado da ciência sobre o primado da cruz.
Una relación de exclusión recíproca divide, para concluir, modos de
ser que en la infancia practicamos sin separaciones, y que ahora
conseguimos significar solo mediante paradojas, como la necesidad
de lo gratuito, la espera de ló imprevisible... La lógica es una
admirable disciplina del pensamiento. Pero forma um pensamiento
que, para funcionar a la perfección, descompone el orden según el
cual la vida da inicio y la gente, bien o mal, seguimos en la vida, casi
haciéndolo parecer um desorden. Por lo cual, yendo contra el sentir
humano, ló gratuito es considerado menos precioso que lo
obligatorio, a la fuerza de la ley se la atribuye más eficácia que al
amor, y la regularidad mecânica ocupa el lugar de la ocasión
imprevista.
(Luisa Muraro)119
América, no ano de 1967, quando Hilda Hilst escreveu essa peça era o
lugar da combustão, o lugar das ideias subversivas. Se a revolução socialista
fracassara nos países centrais, na América Central e do Sul anseios
revolucionários se faziam sentir, em maior ou menor grau, mas pareciam
representar uma ameaça latente. Governos de esquerda e ascensos operários
eclodiam no Chile, na Argentina, no Brasil... Em 1959, Cuba brindou o triunfo de
uma revolução popular, que expropriou terras e propriedades fabris. Em plena
Guerra Fria, o temor de que ascensos revolucionários pudessem se espalhar pela
América Latina era incomensurável. O apoio político e possivelmente financeiro a
golpes militares por grupos de extrema-direita em países latino-americanos foi a
maneira que os Estados Unidos e seus aliados europeus encontraram para silenciar
os insurgentes. Mas essas mordaças não bastavam: seria preciso cooptar seu
núcleo pensante, fazer com que cérebros propagadores de novas ideias
trabalhassem para eles. A analogia entre o nome da protagonista e a América, que
119
“Uma relação de exclusão recíproca divide, para concluir, modos de ser que na infância
praticamos sem separações, e que agora só conseguimos significar mediante paradoxos, como a
necessidade do gratuito, a espera do imprevisível... A lógica é uma disciplina admirável do
pensamento, que, para funcionar perfeitamente, decompõe a ordem segundo a qual a vida se
inaugura, e nós, bem ou mal, seguimos a vida quase fazendo parecer uma desordem. Indo,
portanto, contra o sentir humano, o gratuito é considerado menos valioso que o obrigatório, à força
da lei se atribui mais eficácia que ao amor, e a regularidade mecânica ocupa o lugar da ocasião
imprevista.” Tradução livre. MURARO, L. “El Dios de las Mujeres”. Tradução italiano-espanhol:
María-Milagros Rivera Garretas. Madrí: horas & HORAS, la editorial, 2006. P-179.
79
sempre fora colonizada, desde a vinda dos jesuítas com as primeiras embarcações
portuguesas até a inserção do capital estrangeiro. América é a pureza, é a menina
sonhadora, é a idealista, aquela que não se satisfaz com a inércia. América é
movimento vital, é transmutação, América é fogo que arde com paixão e quer
alcançar o infinito.
AMÉRICA (grave e comovida): Sendo quem sou, em nada me
pareço. Sendo quem sou, não seria melhor ser diferente, e ter
olhos a mais, visíveis, úmidos, ser um pouco de anjo e de
duende? (pausa. Escuro total. Voz muito alta e apaixonada)
Ah, boca de uma fome antiga, rindo um riso de sangue. Se
pudésseis abri-la para cantar meu canto. 120
Ao olhar em sua volta pouco se identifica com sua figura humana. Ela
preferiria ter outras formas, talvez um híbrido que aproximasse o Anjo da fé
Cristã com os duendes das mitologias pagãs. Nem uma coisa, nem outra, mas algo
que se situa no lugar do interstício, onde essa comunicação seria possível. O
silêncio aqui comunica, reforçado pela escuridão, um mergulho introspectivo nas
profunduras de sua Alma. Sua voz se ergue e um grito apaixonado exalta sua
fome. É certo que há fome na América, uma fome antiga por alimentos, sobretudo
em regiões secas e desérticas. Mas a fome de América não é por alimentos: é uma
fome de liberdade. Um clamor antigo, que assola o Humano. América nunca fora
livre. Sim, o riso é possível. Mas o riso sangra, o riso dói, ele custa a sair frente
aos sofrimentos que lhe são incutidos. Mas para cantar seu canto, já não há forças.
América, aos poucos, está morrendo.
Tateio. A fronte. O braço. O ombro.
O fundo sortilégio da omoplata.
Matéria-menina a tua fronte e eu
Madurez, ausência nos teus claros
Guardados.
Ai, ai de mim. Enquanto caminhas
Em lúcida altivez, eu já sou o passado.
Esta fronte que é minha, prodigiosa
De núpcias e caminho
É tão diversa da tua fronte descuidada.
Tateio. E a um só tempo vivo
E vou morrendo. Entre terra e água
Meu existir anfíbio. Passeia
Sobre mim, amor, e colhe o que me resta:
Noturno girassol. Rama secreta.
120
HILST, H. “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e exceção” (1967). In: Hilda Hilst
- Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
80
(Hilda Hilst) 121
Enquanto uma das Cooperadoras discursa sobre a cooptação de América e
o papel que esta pode vir a desempenhar para restabelecer o equilíbrio de Eta e
Dzeta, evitando que estes oscilem em seus percursos, América agoniza em seu
leito de morte. Entretidas e maravilhadas pelos avanços da ciência, a morte de
América aconteceu sem que dessem conta. Seu silêncio a recobria como um
manto invisível. O discurso rouba a cena e retira o foco do acontecimento real. A
atenção para essas criaturas devoradoras de luz ofusca o brilho que ilumina o
momento exato da morte. América morre como se fosse o último suspiro de uma
Humanidade mais humana. Sua morte sela a salvação de Eta e Dzeta, que
voltaram a funcionar a todo vapor. O foco continua no fascínio pelas engenhosas
criaturas. Ninguém chorou por América.
São os grandes visionários
Dos abismos tumultuários.
As sombras das sombras mortas,
Cegos a tatear nas portas. (...)
Que essas cabeças errantes
Trazem louros verdejantes.
E a languidez fugitiva
De alguma esperança viva..122
(João da Cruz e Sousa)
121
HILST, H. “Prelúdios intensos para os desmemoriados do amor”. In: “Júbilo, Memória,
Noviciado da Paixão”. São Paulo: Globo, 2001. 122
CRUZ e SOUSA, J. da. "Litania dos Pobres". In: "Obras Completas". Rio de Janeiro: Editora
José Aguilar, 1961.
81
Capítulo V
O MARAVILHOSO DISFORME E AS INTERMITÊNCIAS DO
CARRASCO
“Em algum lugar triste do mundo”, em uma pequena vila esquecida pelo
tempo, vive um verdugo. Sua casa é protótipo da morada de um homem simples:
modesta, porém decente. Pouca mobília, dois pequenos lampiões, paredes
brancas, uma mesa ao centro. Assim Hilda Hilst descreve o cenário em que passa
sua mais célebre peça. Não há quadros na parede, ou porta-retratos. As rubricas
sugerem que não haja quaisquer rastros ou vestígios que caracterizem a família. O
cenário deve ser o mais genérico possível, para dar a impressão de que se trata de
uma família qualquer. A mesa está posta para o jantar. A primeira cena tem início
com a mulher a servir sopa para o marido. Também encontram-se à mesa os dois
filhos do casal.
MULHER (ríspida. Para o Verdugo): Come, come, durante a comida
pelo menos você deve se esquecer dessas coisas. Que te importa se o
homem tem boa cara ou não? É apenas mais um para o repasto da
terra. (pausa)
VERDUGO (manso): Você não compreende.123
Hilda Hilst apresenta o dilema do personagem em um diálogo bastante
indigesto para um jantar de família, sem muitas delongas ou floreios: um homem
é condenado à morte e o Verdugo é o único habilitado para levar a cabo o serviço.
Por algum motivo, dessa vez ele se mostra relutante em desempenhar sua função
de carrasco: o homem lhe parece bom, e falara coisas que aparentemente haviam-
no sensibilizado. A crise interna se instaurara, mas sem o apoio de sua esposa,
interessada em uma provável recompensa pelo serviço sujo. A filha, que está
prestes a se casar com um sujeito desempregado e bastante acomodado em sua
condição, vê nessa recompensa uma possibilidade de realizar o sonho de adquirir
uma casa própria. O único a solidarizar-se com o pai é o jovem filho, que parece
não se dar com a mãe e a irmã. As alianças estão seladas no que seria uma guerra
dos sexos, se não fosse pela entrada em cena do noivo, o que ocorre na segunda
123
HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
P-367.
82
metade da primeira cena. O clima aparece cindido, entre a rispidez mesquinha das
moças, e a crise de identidade que atravessa o Verdugo, talhando uma expressão
pacata em sua face. Seu filho está perplexo frente à mesquinhez da mãe e da irmã,
ao passo que dá razão ao pai em abrir mão de fazer o serviço sujo: afinal, não se
trata de um homem ordinário, mas de alguém particularmente bom. Quem sabe
um santo...
Parece-me ser igual dos deuses
aquele homem que, à tua frente
sentado, tua voz deliciosa, de perto,
escuta, inclinando o rosto,
e teu riso luminoso que acorda desejos – ah! eu juro
(...)
um frio suor me recobre, um frêmito do corpo
se apodera, mais verde do que as ervas eu fico;
que estou a um passo da morte
parece
(Safo de Lesbos)124
No diálogo, aparece um outro personagem que está ausente: o povo da
vila, aquele de quem se fala. O povo supostamente estaria contra a morte do
homem. Com base nesse argumento, o filho parte em defesa do pai, enquanto as
duas se tornam cada vez mais histéricas e agressivas. Os argumentos do filho são
rebatidos com alfinetadas, que variam entre o “cale a boca” e o “que te importa
aqueles coitados”, ou tentativas toscas de colocar em descrédito suas palavras.
Enquanto isso, o Verdugo tenta comer, imerso em pensamentos, como se o bate-
boca à mesa fosse música de fundo. De tempos em tempos, o pai vem ao socorro
do filho, quando julga que a consorte e a filha passam do limite. Ainda assim, sua
entonação explicita uma reação passiva, desprovida de agressividade. Até que
explode:
VERDUGO: Ô merda, mulher! A minha cabeça aguenta algum
tempo, depois eu me esqueço, ouviu? Esqueço que sou um homem e
viro... chega! (pausa. Brando) O homem tem uma cara
impressionante. (pausa)
FILHO: Como ele é bem de perto, pai? (pausa) Fala.
VERDUGO: O homem tem um olhar...um olhar... honesto.
MULHER: Honesto, ha?
124
SAFO DE LESBOS “Poemas e Fragmentos da Lírica” Tradução: Joaquim Brasil Fontes. São
Paulo: Iluminuras, 2003. P-21.
83
VERDUGO: Limpo, limpo. Limpo por dentro.
MULHER (com desprezo): Ah, isso!
FILHA: Por dentro ninguém sabe como ele é. Ninguém sabe como
ninguém é por dentro.
FILHO: Eu sei como você é por dentro.
FILHA: Ah, sabe? Fala então.
FILHO: Por dentro você não tem nada. É oca.
VERDUGO (manso): Chega.
FILHA (para o irmão): Mas vou deixar de ser. Vou casar vou ter
filhos...125
A paciência do Verdugo apresenta sinais de esgotamento, porém ele não
se volta contra o mal-estar instaurado, explicitando, por sua vez, a angústia que o
atormenta, em um movimento de dentro para fora. Ele soçobra e anseia pela
compreensão de sua consorte, que permanece alheia ao compadecimento do
marido e indiferente à morte do homem. Ela não explicita qualquer indício de
compaixão. Ele é o provedor da família e a sorte de sua família depende desse
serviço. Ela se alimenta da esperança de que esse encargo viesse a abrir caminho
para uma ascensão social. Já o filho é tomado por uma curiosidade que provém de
certo encantamento, dirigido ao personagem ausente. O homem misterioso suscita
dúvidas dentro e fora do palco, já que sua identidade não nos é revelada. Apenas o
Verdugo o conhece de perto. De certa forma o povo, outro personagem ausente,
parece ter bastante afinidade com o condenado. A irmã apresenta sinais de
sensatez, ao constatar que ninguém conhece alguém por dentro. Tanto o santo
quanto o herói são mitificados desde fora com base em supostas virtudes internas
não verificáveis a olho nu.
ELA – Sonhadores habituais,
presos eternos às correntes temporais,
cativos das cadeiras de hospitais
em devaneios, ilusões, delírios,
viajamos pelos mares infinitos
descobrimos atlântidas e antilhas,
imergimos em naves submarinas...
(Renata Pallotini) 126
125
HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
P-369/ 370. 126
PALLOTINI, R. “Os Loucos de Antes”. In: Teatro Completo”. São Paulo: Perspectiva, 2006.
P-89.
84
Em seguida, o irmão resolve provocá-la, chamando-a de oca por dentro. A
tentativa de insulto não surte o efeito desejado, uma vez que ela parece não se
importar em ser oca por dentro. O vazio, afinal, estaria prestes a ser preenchido
por um marido e filhos. A ideia de vacuidade pode ser interpretada em diversos
sentidos. Para a filósofa Jeanne Marie Gagnebin, nem todo vazio precisa ser
preenchido: “Pensar também é ousar deixar à vida, ao sexo e à morte sua força de
interrogação, ousar dar à luz sem presumir da imortalidade, ousar não suturar a
cisão, ousar não preencher o vazio.” 127
Hilda Hilst brinca com os significados,
visto que para o irmão tratar-se-ia de um vazio de pensamento, como se a irmã
não tivesse nenhuma ideia substancial, nada além de futilidade e mesquinhez. Já a
irmã pensa o vazio como um espaço a ser preenchido por um projeto de vida. Tal
projeto confluiria com uma promessa de felicidade bastante trivial, algo
incorporado socialmente desde a infância: o matrimônio. Sob a égide patriarcal, à
mulher o matrimônio é apresentado como a única chance de felicidade. Uma vez
liberta dos ditames do patriarca, ela parece adquirir certa autonomia, até que se
desfaça a ilusão de liberdade, ao constatar que a autoridade do pai fora substituída
pela de seu consorte. Porém isso pode ocorrer em diferentes níveis: as amarras se
afrouxam ou se estreitam de acordo com a configuração subjetiva que se dá no
interior do núcleo familiar. São múltiplas e complexas as relações de poder que se
estabelecem no espaço de convivência atribuído à família. Não obstante, os papéis
podem se inverter, dando vazão a novas possibilidades de convívio. Na família
genérica retratada nessa peça, isso é bastante fluido, pois é a esposa quem joga o
consorte contra a parede. Por outro lado, a irmã reafirma valores socialmente
instituídos, impelida para a realização de um projeto antigo que preencheria pelo
matrimônio o vazio de sentidos, no compasso da repetição cíclica da vida. Simone
de Beauvoir constatou em “O Segundo Sexo”:
O destino que a sociedade propõe tradicionalmente à mulher é o
casamento. (...) Para as jovens, o casamento é o único meio de se
integrarem na coletividade e, se ficam solteiras, tornam-se socialmente
resíduos. Eis por que as mães sempre procuraram encarniçadamente
colocá-las. (...) A mulher está voltada à perpetuação da espécie e à
manutenção do lar, isto é, à imanência. (...) Ela não tem outra tarefa
senão a de manter e sustentar a vida em sua pura e idêntica
generalidade; ela perpetua a espécie imutável, assegura o ritmo igual
127
GAGNEBIN, J. M. “No Feminino Plural”. In: Marcia Tiburi e Bárbara Valle (Org.).
“Mulheres, filosofia ou coisas do gênero” Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2008. P-178
85
dos dias e a permanência do lar cujas portas conserva fechadas; não
lhe dão nenhuma possibilidade de influir no futuro nem no universo;
ela só se ultrapassa para a coletividade por intermédio do esposo.128
Beauvoir descreve a situação da mulher na Paris do após-guerra. O ano de
sua publicação é 1949, ou seja, vinte anos antes da publicação da peça de Hilst.
Ainda que nesse ínterim muita coisa tenha mudado, resquícios consideráveis dessa
imanência permanecem em vigor. No texto, o casamento se figura para a
personagem como algo que a situa em seu lugar de mulher na sociedade. O fato de
seu noivo estar desempregado não constitui um impedimento para que o
casamento se realize. Mãe e filha estão dispostas a fazer o que estiver a seu
alcance para que tudo saia conforme planejado. Por outro lado, a filha não
demonstra sinais de afeto para com o futuro consorte. A ideia do casamento
parece lhe agradar mais que a presença do noivo.
A esposa do verdugo faz questão de lembrá-lo da função social que
desempenhara até o momento, diante da crise instaurada frente à execução do
homem misterioso. É, afinal, um verdugo. Aquele que garante o sustento da
família pelo derramamento de sangue, com base em uma fé cega na lei dos
homens.
MULHER: Trate de ficar sabendo logo. Não é o primeiro nas
tuas mãos.
VERDUGO (seco): Ele é diferente.
MULHER: Diferente, limpo, uf! É igual aos outros.
FILHO: Ninguém tem o mesmo rosto.
MULHER: Eu quero dizer que ele é igual a todos os outros
filhos-da-puta que morreram porque a lei mandou. (para o
Verdugo. Sorrindo com ironia) Você se lembra daquele que
parecia um anjinho? Hein? Lembra? Todos diziam...
VERDUGO (interrompe): Eu não.
MULHER: ... mas os outros diziam ele tem cara de anjo. E
vocês se lembram do que ele fez? (para o Verdugo e para o
Filho) Se lembram? Acho que vocês dois não estão lembrados.
(para a Filha) Conta, filha, porque aquele outro anjinho foi
condenado.
FILHA (sorrindo): Ele matou aqueles dois menininhos.
MULHER (irônica): Só isso?
128
BEAUVOIR, S. “O Segundo Sexo – Volume 2: A Experiência Vivida”. Tradução: Sérgio
Milliet São Paulo: DIFEL, 3ª Edição, 1975. P-165/ 170.
86
FILHA (sorrindo): Não. Primeiro ele queimou as plantas dos
pés e as mãozinhas dos menininhos.
MULHER: E depois?
VERDUGO (seco): Já sabemos, chega. 129
A esposa tenta persuadi-lo, resgatando experiências passadas que se
inscrevem em seu histórico como verdugo. Seria preciso depurar as aparências
dos fatos. A cara de anjo fora apenas fachada, que servira para encobrir o crime
bárbaro que o condenado ocultara: o assassinato a sangue frio de duas crianças.
Não satisfeita em lembrá-lo do ocorrido, a mulher faz questão de cutucar a ferida,
pedindo à filha que narre os detalhes sórdidos do crime perpetrado por um sujeito
que tinha cara de anjo. O povo também tivera compaixão pelo réu, mas a verdade
viera à tona. A tentativa de igualar o homem a um assassino impiedoso provoca-
lhe calafrios. Essas lembranças despertam fantasmas do passado, produzindo uma
tormenta que beira o insuportável. A mulher e a filha se regozijam de prazer ao
perceber que sua pressão psicológica surte efeito, mas o impasse permanece.
FILHO: Mas esse é diferente, não é nada disso, mãe. Esse só falou.
MULHER: Deve ter falado besteira.
FILHO: Ele falava de Deus também.
MULHER: Deus, Deus, onde é que está esse Deus? (para o Filho)
Não foi você mesmo que andou lendo que naquele lugar, lá longe...
FILHO (interrompe): Na Índia.
MULHER: Sei lá, na Índia, onde for, as criancinhas de seis anos vão
para o puteiro? Deus, Deus... e depois não foi você mesmo quem disse
que se elas não fossem para os puteiros aos seis anos elas morreriam
de qualquer jeito, de fome? Hein?
FILHO: Foi, sim, mãe. Fui eu mesmo.
MULHER: Então deixa o teu pai fazer o serviço. Se Deus não
consegue ajudar aquelas criancinhas, você acha que esse homem é que
vai nos ajudar? (pausa) 130
129
HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
P-371/ 372 130
HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
P-372/ 373
87
Nesse diálogo a esposa do Verdugo apresenta argumentos fortes,
evocando um questionamento quanto aos limites da força Divina. A que serve
falar em Deus quando crianças de seis anos são prostituídas e vivem sob a
constante ameaça de morte por inanição? Até que ponto poderiam contar com
Deus para tirá-la da pobreza, quando injustiças de tamanha magnitude assombram
o universo infantil? Pela segunda vez a mulher menciona com certa comoção
atrocidades ocorridas com criancinhas. Se por um lado, o intuito é usar os
argumentos mais desconcertantes e eficazes para comover o marido, ela mesma é
mãe de dois filhos. Injustiças praticadas contra crianças são sentidas de maneira
bastante distinta das injustiças praticadas contra adultos. Ao machucar uma
criança, machuca-se a mãe. Mais do que isso: machuca-se a mulher. Na sociedade
patriarcal, a maternidade desempenha um papel central, em que toda mulher é
uma mãe em potencial. De acordo com a filósofa Luisa Muraro, maternidade e
mulher são conceitos imbricados, situados em uma margem estreita. Para Muraro:
Mujer es el nombre de uma condición muy común (no menos que
hombre), (...) interviene el dominio patriarcal, sí, pero quizá interviene
más algo que afecta a la condición em sí, independientemente del
hombre (pero dependiente de las demás mujeres, em primer lugar la
madre). Por lo que yo sé, mujer quiere decir poder convertirse em
madre y encontrarse de este modo reclamada por el reconocimiento de
la vida recibida y de la precariedad de la vida a transmitir, habitada em
alma y cuerpo por tres generaciones... 131
O homem supostamente mereceria o seu fardo, mas as crianças seriam
criaturas inocentes. Em todo caso, Deus não fora capaz de atender às suas
súplicas. Em um primeiro momento, o filho fica sem argumentos, uma vez que
fora ele mesmo quem compartilhara essas informações, apreendidas em suas
leituras. Sua visão de mundo parece inspirada nos livros. Apesar de seu apreço
pela figura do pai, suas convicções se remetem, em grande medida, ao universo
literário. Daí provém o conhecimento compartilhado com os demais membros da
família, que, se sabem ler, não têm afinidade com o hábito da leitura. Às
mulheres, cabe desempenhar a função de dona-de-casa. As oportunidades
131
“Mulher é o nome de uma condição muito comum (não menos que homem), (...) intercede o
domínio patriarcal, sim, mas quem sabe intercede mais algo que afeta a condição em si,
independente do homem (mas dependente das outras mulheres, da mãe em primeiro lugar). Pelo
que eu sei, mulher quer dizer poder se converter em mãe e estar nessa situação a partir de uma
exigência de reconhecimento da vidarecebida e da precariedade da vida a transmitir, habitada em
alma e corpo e corpo por três gerações...” – Tradução livre. MURARO, L. “El Dios de las
Mujeres”. Tradução para o espanhol: María-Milagros Rivera Garretas. Madrí: horas y HORAS, la
editorial, 2006. P-115
88
atribuídas ao universo feminino são demasiado restritas. A casa é o espaço
privado, o espaço do confinamento, o espaço que, segundo a ótica patriarcal, é
designado para as mulheres. Nas palavras da filósofa Marcia Tiburi:
A mulher não é apenas o lugar onde o útero habita, mas o que habita o
útero, metonímia da casa. O espaço público, compartilhado por todos,
não llhe é disponível. Ela é um objeto que carrega um espaço que se
confina dentro de um espaço. O útero: metonímia da vida privada. 132
O chefe da família, por sua vez, é verdugo, trabalho que não exige grande
esforço intelectual. O filho é o único na família cuja função é voltada para os
estudos, quem sabe o único que efetivamente tivera essa possibilidade. A mãe
presta atenção, e grava bem os argumentos do filho, a ponto de usá-los a seu
proveito quando necessário. Afinal, a função de elaborar os saberes assimilados é
de outra natureza. A mãe aprendera com a experiência de vida, algo que os livros
não ensinam. Luisa Muraro narra um diálogo entre Platão e Diótima133
, sua
suposta tutora, em que ela ensina coisas que não estavam nos livros, como o amor
e a experiência de vida. Platão aprendeu com ela que nem toda verdade pode ser
expressada em palavras. Saber está além das palavras. Muraro desenvolve:
El campo del saber no se divide todo entre ciencia e ignorancia, le dijo
la maestra extranjera a su alumno ateniense: hay otra manera de estar
em él, la de quien sabe algo aunque teniendo que prescindir de las
certezas absolutas, la de quien conoce la verdad sin estar em
condiciones de demonstrar que lo es. 134
Mas desta vez quem ficou sem palavras foi o filho. Sem saber como
responder à provocação da mãe, ele então se vira para o pai e retoma o assunto:
FILHO (para o pai): O pai não quer fazer, não é?
MULHER: Essa é a profissão de teu pai.
FILHO (olhando para o pai): Verdugo.
132
TIBURI, M. “Branca de neve ou corpo, lar e campo de concentração – As mulheres e a questão
biopolítica”. In: Marcia Tiburi e Bárbara Valle (Org.). “Mulheres, filosofia ou coisas do gênero”
Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2008. P-56. 133
De acordo com Muraro, muitos estudiosos sustentam que Diótima sequer existira: tratar-se-ia
de uma personagem imaginada por Platão para servir de base à sua filosofia. Diótima interessa a
Muraro por situar-se entre uma história documentada e a inexistência, ou o anonimato que recai
sobre as mulheres que ocupam lugares marginais. Em última instância, pouco importa à autora se
Diótima tenha de fato existido. 134
“O campo do saber não se divide todo entre ciência e ignorância, disse a tutora estrangeira a seu
aluno ateniense, há outra maneira de estar com ele, a de quem sabe algo apesar de ter que
prescindir das certezas absolutas, a de quem conhece a verdade sem ter condições de demonstrá-la
como tal” – Tradução livre. MURARO, L. “El Dios de las Mujeres”. Tradução para o espanhol:
María-Milagros Rivera Garretas. Madrí: horas y HORAS, la editorial, 2006. P-148
89
MULHER: Verdugo sim. Uma profissão como qualquer outra.
(pausa)
VERDUGO: Mas esse homem eu não quero matar, mulher.
MULHER (impaciente): Mas não é você quem vai matar. É a lei que
mata. Você é o único aqui na vila que pode fazer o serviço. Ninguém
mais. Ora, que besteira.
VERDUGO: Mas a gente da vila não quer que o homem morra. O
povo...
MULHER (interrompe): Deixa disso, o povo é filho-da-puta, eles
fazem assim só pra não dar gosto para aqueles juízes. 135
A simples menção ao ofício de seu estimado pai produz certo desconforto,
sugerindo que o filho desaprova a profissão de seu progenitor. A mãe está ciente
do rancor que isso suscita, e explora essa desavença, ao constatar que se trata de
uma profissão como outra qualquer. A pausa indicada pela rubrica é elucidativa de
um estranhamento, chamando atenção para o absurdo da frase. Ele presta serviços
ao Estado, como qualquer outro cidadão que vende sua força de trabalho, porém
esse serviço consiste em matar em nome da lei. Uma linha tênue delimita onde
começa a força da lei e onde termina a força da vontade do sujeito, o livre-arbítrio.
Quem seria responsável pela morte do condenado: o carrasco ou a lei em nome da
qual o sangue seria derramado? O Verdugo não deseja matá-lo, mas a lei firma o
veredito, cuja função recai em suas costas, tal como um fardo. Seria possível uma
recusa, e a que preço? Não havia na vila outra pessoa habilitada para substituí-lo
em sua função.
Acima de tudo, o livre está subordinado ao preso. E eis que o homem
de fato está livre, ele poderia ir para onde quiser, apenas a entrada
na lei lhe é proibida, e além disso, apenas por uma única pessoa, o
porteiro. Se ele se senta sobre o tamborete ao lado da porta e fica por
lá durante sua vida inteira, isso acontece voluntariamente, a história
não diz nada acerca de uma coação. O porteiro, ao contrário, está
preso a seu posto por seu ofício, ele não pode se afastar e, segundo
tudo indica, também não poderia ir para o interior, mesmo que
quisesse. Além disso, ele está a serviço da lei, mas serve apenas para
aquela entrada, portanto apenas àquele homem, para o qual e
somente para o qual está destinada aquela entrada.
(Franz Kafka) 136
O Verdugo então pondera que a morte do homem não condiz com a
vontade do povo, mas logo é interrompido pela esposa, que chega ao disparate de
135
HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
P-373. 136
KAFKA, F. “O Processo”. Tradução: Marcelo Backes. Porto Alegre – RS: L&PM, 2007. P-
251.
90
chamar o povo de “filho-da-puta”. O ultraje que a mulher dirige contra o povo
leva até o limite o egoísmo intrínseco que a impele a pensar somente em seus
interesses mesquinhos. Ela se imagina fora e acima dos demais habitantes da vila,
trata-os com desprezo por se colocarem no caminho de sua recompensa. “Filho-da
puta” equivale a uma blasfêmia, que tem por alvo o caráter do indivíduo. Aquele
que já nasce fruto da desonra de sua mãe, cuja identidade paterna é ignorada. A
historiadora Luzia Margareth Rago situa a prostituição, a partir do período da
belle époque paulistana (1900 a 1930), no cerne de uma polarização socialmente
construída entre a casta e a devassa, sendo a primeira a mulher honrada, a mãe de
família exemplar, e a segunda, ao contrário, é aquela que coloca em xeque a moral
e os bons costumes das jovens, educadas para o recolhimento no ninho domiciliar.
Urge uma ameaça latente, em que a segunda possa corromper a primeira com sua
devassidão. A segunda seria o avesso da primeira. Segundo Rago:
A preocupação em delimitar claramente os lugares permitidos para a
circulação das jovens de família, distantes das meretrizes acentuou-se,
enquanto diversificavam-se e expandiam-se as novas formas de
consumo dos amores ilícitos e da cultura erótica. Pela primeira vez
constituíam-se espaços destinados à fruição dos prazeres, como
cabarés, cafés-concertos, bordéis de luxo, ao lado dos restaurantes,
teatros e music-halls.137
Um sujeito criado em um espaço socialmente concebido em um antro de
pecado e desonra não poderia ser movido por outra coisa que não a má-fé. O
“filho-da-puta” seria o filho renegado, afundado em vergonha desde o seu
nascimento. A esposa acusa o povo de “filho-da-puta”, pois entende que tenha
agido de má-fé, ao criar um alvoroço pelo simples prazer de contrariar os juízes.
FILHO: O homem era bom de perto, pai?
VERDUGO (manso): Não sei, meu filho, não sei. (pausa) É muito
difícil para mim. É asssim como se eu tivesse que cortar uma árvore,
você entende? Eu nunca derrubei uma árvore, eu não saberia, é difícil,
não é o meu ofício.
MULHER: Uma árvore... Você cortou cabeças, enforca gente e fala de
uma árvore. Parece que está louco.
137
RAGO, L. M. “Imagens da Prostituição na Belle Époque Paulistana”. Artigo apresentado na 1ª
Conferência Internacional sobre Moças, Alice in Wonderland: Transitions and Dilemas, realizado
em Amsterdã entre 16 e 19 de junho de 1992. Disponível em arquivo PDF pelo sítio eletrônico:
http://www.ieg.ufsc.br/admin/downloads/artigos/03112009-103553rago.pdf. P-34.
91
VERDUGO: É diferente, mulher. É diferente. Esse homem é como se
fosse uma árvore para mim. (pausa)
FILHO: Que cara ele tem bem de perto, pai?
(...)
VERDUGO: De perto, meu filho... ele parece o mar. Você olha, olha e
não sabe pra onde olhar. Ele parece que tem vários rostos.
MULHER: Todo mundo só tem um rosto.
VERDUGO (para o Filho): ... de repente, ele olha firme, você sabe?
Assim como se eu te atravessasse. É muito difícil olhar para ele
quando ele olha assim. E depois... ele também pode olhar de um
jeito... Você se lembra daquele cavalo que um dia te seguiu?
FILHA (rindo): Quem é que não se lembra? O cavalo não aguentava
subir aquela ladeira. O dono do cavalo dava umas palmadas no
focinho do coitado.(ri. Para o irmão) Aí você gritou: “se você é tão
macho para bater em mim como bate nesse cavalo, eu corto o meu...”
(ri) e pulou em cima do homem como um leão. O coitado fugiu feito
doido. E o cavalo só podia te seguir, lógico. (ri) Até o cavalo
compreendeu. Foi engraçado aquele dia.
Todos riem. Pausa.
VERDUGO (para o Filho): Mas você se lembra dos olhos do cavalo?
FILHO: Eu me lembro sim, pai, eu me lembro. (pausa)
VERDUGO: Pois o homem tem às vezes aquele olho.
FILHO: Então ele é bom, pai.
MULHER: mas o que adianta vocês ficarem falando que ele é bom, se
ele tem os olhos de cavalo ou não? (para o Filho) O homem tem de
morrer e é seu pai quem vai fazer o serviço. E vai ganhar bem desta
vez. Vamos começar outra vida, tenho certeza. 138
Sem argumentos para responder à provocação da mãe, o filho logo muda
de assunto, ao indagar sobre a bondade do homem misterioso. Para o verdugo, ele
é como uma árvore. Uma árvore, por onde corre a seiva vital. Uma árvore que
fornece sombra, flor e frutos e se modifica conforme a estação do ano. Para o
pesquisador de mitologia Joseph Campbell, a árvore é “o mitológico axis mundi,
aquele ponto em que tempo e eternidade, movimento e repouso, são um só, e ao
redor do qual revolvem todas as coisas”.139
Uma árvore, em torno da qual as
crianças brincam, em cujos galhos é possível pendurar-se. Diferente dos homens,
138
HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
P-374 / 376.
139
CAMBELL, J. “O Poder do Mito”. Com Bill Moyers. Tradução: Carlos Felipe Moisés. São
Paulo: Palas Athena, 1990. P-149.
92
uma árvore não seria capaz de cometer crime algum. Ela simboliza a vida, mas
não pode tirá-la. O verdugo não seria capaz de derrubar uma árvore. Uma árvore
supera os seres humanos em bondade. A aproximação dos seres humanos com a
figura de uma árvore pode ser levada ao limite, com a transmutação de Mirra,
filha do rei Cíniras em “Metamorfoses”de Ovídio:
A terra (...) cobre as pernas; unhas dos pés fendem-se e espalham-se
em raízes oblíquas, suporte de um longo caule, os ossos fazem-se de
madeira, embora reste no interior a medula, o sangue converte-se em
seiva, os braços em grandes ramos e os dedos em ramitos, a pele
endurece, fazendo-se casca.Agora, a árvore, crescendo, já envolvera o
útero grávido e submergira o peito e estava a ponto de cobrir o
pescoço. Ela não suportou a demora; e baixando-se ao encontro dfo
lenho que crescia, mergulhou o rosto debaixo da casca. E embora
tenha com o corpo perdido os sentidos antigos, todavia ela ainda
chora, e tépidas gotas jorram da árvore. Até as lágrimas podem
receber honras: destilada do tronco, a mirra retém o nome da senhora e
fica famosa para sempre.140
A mulher mais uma vez esfrega em sua cara os ossos de seu ofício,
enfatizando o absurdo de um sujeito que enforca e decapita seres humanos dizer
que jamais cortaria uma árvore. A contradição está posta a desnudo como um
apêlo à reflexividade, como quem diz: “como assim?” Quando o Verdugo
responde que esse não é seu ofício, fica implícito um trabalho irrefletido,
executado mecanicamente. Ele é um funcionário que segue ordens, e extermina
seres humanos tal como o bom soldado ou o bom operário cumprem sua labuta.
Em um ofício não se pensa, ele se faz. Segundo o filósofo búlgaro Tzvetan
Todorov: “Matando e torturando, os guardas conformam-se às leis de seu país e às
ordens de seus superiores”141
. Mata-se fria e sistematicamente em nome de um
“imperativo categórico militar”. Ao ser burocratizado e incorporado à rotina do
Estado, o mal é exacerbado, sendo operado por funcionários obedientes, homens
comuns, que seguem as leis, fazem jus ao “imperativo categórico militar”, em
operações racionais com o emprego da mais avançada tecnologia, destinada à
tortura e à morte dos elementos subversivos.
Uma organização que não apenas emprega vigias(...), inspetores e
juízes de instrução atoleimados, que na melhor das hipóteses são
140
OVÍDIO. “Metamorfoses”. Tradução: Paulo Farmhouse Alberto. Lisboa: Livros Cotovia, 2007.
P-259. 141
TODOROV, Tzvetan (1995). “Em face do extremo”, Tradução: Egon de Oliveira Rangel e
Enid Abreu Dobránzsky. Editora Papirus, Campinas-SP. p-139-141.
93
simplórios, mas sustenta inclusive uma magistratura de grau elevado
e superior, com um séquito inumerável e inevitável de contínuos,
escriturários, gendarmes e outros auxiliares, talvez até mesmo de
carrascos, não tenho o menor receio de mencionar essa palavra.
Franz Kafka 142
A segunda pergunta do filho sugere certo distanciamento: “Que cara ele
tem de perto, pai?” A imagem do homem que só lhe é apresentada de longe. A
distância reforça a mitifição do personagem: aquilo que não se sabe ao certo se
inventa. A imaginação fértil daqueles que procuram interpretá-lo de um ponto de
vista distanciado fornece materialidade para a projeção de fantasias coletivas. De
um homem simples, ele passa a ser imaginado como um santo, ou um herói, no
qual são depositadas as esperanças de um corpo social. Como o corpo social é
configurado por uma miríade de desejos dissonantes, o homem parece apresentar
mil faces, tal como imagens refletidas por um globo de espelhos. Não é de um
homem que se trata, mas de um mito cuja história é observada a partir de
múltiplos pontos de vista.
Ao mirar-me [nos espelhos] ficava de certa forma estupefata por ver
tão claramente que eu era apenas aquilo que via ali: limitada,
enjaulada, forçada a deixar de ser no restante, até mesmo no mais
próximo. Não me olhando no espelho, isso não me perturbava tanto,
mas, de qualquer forma, meu próprio sentir recusava a circunstância
de eu não existir em e com qualquer coisa, mas, sim, inaceitada, como
que desabrigada. Afigura-se bastante normal, já que me parece ter
ficado perturbada com isso outras vezes quando a imagem do espelho
há muito expressava apenas uma referência interessada na própria
imagem. De qualquer forma, tais representações precoces
contribuíam para que eu não achasse chocantes nem a onipresença
nem a invisibilidade do Bom Deus.
(Lou Salomé)143
O Verdugo então alude a uma segunda alegoria: o homem é como o mar.
Na imensidão de um mar é difícil fixar os olhos em um único ponto. As retinas
vagueiam pela imensidão azul, borram a nitidez e diluem a perspectiva da
imagem. A vista mareia, perde o foco, e produz uma miríade de imagens com a
refratação da luz sobre as águas que se movimentam em ângulos contrastantes. O
mar é profundo e guarda seus segredos . Um imenso véu azul esverdeado recai
sobre um universo fantástico, habitado por cardumes, corais multicoloridos, e
142
KAFKA, F. “O Processo”. Tradução: Marcelo Backes. Porto Alegre – RS: L&PM, 2007. P-63. 143
SALOMÉ, L. A. “Minha vida” Tradução: Nicolino Simone Neto e Valter Fernandes. São
Paulo: Brasiliense, 1985. P-11.
94
espécies marinhas das mais variadas formas. Ao olhar para o mar que se esvai
com a linha do horizonte, é possível imaginar as criaturas fantásticas que nele
habitam, ou imergir nos pensamentos mais recônditos, inspirados pela imensidão
azul, no embalo do barulho das ondas quando atingem a superfície. Olhar para o
mar é contemplar um abismo de mistério.
Já o mar e a terra não ofereciam qualquer distinção: tudo não era
mais que mar, mar a que faltavam costas. Um sobe a um monte,
outro senta-se na curva barca e maneja os remos no sítio onde há
pouco lavrara. Aquele navega sobre as searas e os telhados da quinta
submersa, este pesca um peixe no cimo de um ulmeiro. Segundo a
sorte, a âncora fixa-se num verde prado, as encurvadas quilhas
raspam os vinhedos de baixo. E onde antes as esbeltas cabrinhas
pastavam a erva, agora aí mesmo disformes focas estendem os
corpos. Sob as águas, as Nereides vêem pasmadas bosques, cidades,
casas; golfinhos ocupam florestas e chocam contra as altas ramagens,
embatem e abanam os carvalhos. Nada o lobo entre ovelhas, a onda
leva fulvos leões, tigres leva a onda; de nada vale a força das
fulminantes presas ao javali, ou velozes pernas ao cervo arrastado.
(...) O desatino desmesurado do marsepultara montanhas, e vagas
inéditas embatiam nos píncaros das serranias.
(Ovídio)144
Para a filósofa Luce Irigaray, para se aproximar do mistério é preciso
imergir no silêncio, abdicar de um ímpeto racional que nos leva a traduzi-lo em
palavras. Há um imenso abismo que aparta as subjetividades, habitado por vastos
espaços de silêncio, e canduras impenetráveis. As linhas que demarcam as
palavras podem ser borradas, como as águas do mar, cuja placidez aparente se
desfaz à medida que nos aproximamos. As camadas que à distância parecem
linhas definidas descortinam um movimento intermitente, ora próximo, ora
distante, mas que não pode ser capturado. Contemplar o mar requer um olhar
aberto, sem delimitações. Na peça de Hilst, não é o homem que atravessa o mar,
mas o mar que atravessa o homem. O mar que deságua nos homens através de um
olhar penetrante. Pelo olhar, ele penetra a alma. Como em Irigaray, trata-se de um
movimento vital, de algo que flui na superfície e nas funduras do entre. Nas
palavras da filósofa:
Deep, deeper than the greatest depths your daylight could imagine (...)
Luminous night, touched with a quickening whose denseness never
appears in the light. (...) Nothing solid survives, yet that thickness
responding to its own rhythms is not nothing. Quickening in
144
OVÍDIO. “Metamorfoses”. Tradução: Paulo Farmhouse Alberto. Lisboa: Livros Cotovia, 2007.
Pp-42/ 44
95
movements both expected and unexpected. Your space, your time are
unable to grasp their regularity or contain their foldings and
unfoldings. The force unleashed has na intensity which cannot
anywhere be measured, nor contained. Can never be obliterated unless
it is poured out in mortal ecstasy. (...) It flows between. (...) Flowing
everywhere without boundaries – deathly boundaries. 145
A terceira imagem aludida pelo verdugo para referir-se ao misterioso
homem é a de um cavalo. Seus olhos são como os de um cavalo. Não se trata de
qualquer cavalo, mas de um específico, que atravessou seu caminho. É a filha
quem relata a experiência do encontro com o cavalo, que subia a duras penas uma
ladeira íngrime, a custa das pauladas de seu dono, ferindo-lhe o focinho. O irmão
vem em defesa do animal, desafiando-o para que bata nele no lugar do cavalo.
Seria preciso ser “macho” o bastante para aceitar o desafio. Ser “macho” aparece
como sinônimo de coragem. Nem todo homem é “macho” o bastante para erguer a
mão contra ele.
Michel Foucault assinala que uma moral elaborada pelos homens e para os
homens implica em criar para si uma estrutura de virilidade, baseada no domínio
de si e de seus subordinados, pela imposição da obediência por meio da força e da
exaltação dos princípios da razão frente aos inaptos ao raciocínio e ao governo de
si. Nesse sentido, todos aqueles que não correspondem a um certo modelo de
virilidade encontram-se do lado oposto da linha que demarca o homem que
governa do homem governado, sendo o primeiro portador de uma virtude
solidamente ética, e o segundo, tal como a mulher, se desvia desse modelo, e
exige, portanto, outro modelo a seguir, um tutor que o situe no eixo. Os segundos
se subordinam aos primeiros por encontrarem nele o modelo acabado de perfeição
e princípio de funcionamento. Sob a ótica dessa moral, o homem efeminado é
aquele que se iguala à mulher, ao demonstrar fraqueza e submissão frente aos
prazeres e desejos que o habitam. É o homem passivo, desprovido de coragem.
145 “Profundo, mais profundo que a maior das profundezas imaginada à luz do dia (...) Luz
luminosa, impelida por uma aceleração cuja densidade não aparece à luz do dia. (...) Não se fixa
em permanência. (...) Nada sólido sobrevive, ainda que aquela espessura que responde a seus
próprios ritmos não possa ser reduzida a nada. Aceleração em movimento ambos esperado e
inesperado. Seu espaço, seu tempo não podem apreender sua estabilidade ou conter seus
dobramentos e desdobramentos. A força desatada tem uma intensidade que não pode ser medida
ou barrada. Nunca pode ser dissipada a menos que seja derramada em êxtase mortal. (...) Ela flui
entre. (...) Flui por toda parte sem fronteiras – fronteiras mortíferas.” Tradução livre. IRIGARAY,
L. “Elemental Passions”. Tradução franco-anglófona: Joanne Collie e Judith Still. Nova York:
Routledge, 1992. P- 13/ 18.
96
Segundo Foucault: “A temperança e a coragem são no homem virtude plena e
completa de comando.”146
A ameaça do irmão suscita risos incontidos, acentuando e substituindo
palavras que ressaltam a obscenidade intrínseca ao ato de cortar a própria
genitália. Se o dono se atrevesse a bater nele assim como no cavalo, ele mesmo
seria indigno de ser “macho”. Para o filho, o ato da castração expressa uma perda
da dignidade atribuída ao masculino. Porém é anunciada como uma hipótese
remota, quase impossível. O filho considera tão absurdo que o dono do cavalo seja
“macho” o bastante para dar-lhe uma surra, que seria capaz de apostar qualquer
coisa, até mesmo sua genitália. Aos olhos da irmã, a cena toda parece risível. Ele
avança sobre o dono do cavalo, tal como um leão. Ele é corajoso, a ponto de ser
comparado ao rei das selvas. O leão também é protótipo de coragem. Assim como
o leão afugenta suas presas, o dono do cavalo é tomado por um temor verossímil,
e põe-se a correr da fera. O medo é tamanho que ele corre “feito doido”, ou seja,
aflito, desnorteado. Ao entender o que se passara, o cavalo prefere seguir aquele
que o salvara que a seu dono, seu agressor. Os olhos do cavalo expressam uma
compreensão quanto às injustiças do mundo. Ele resiste, não quer subir a ladeira.
Quando alguém mais forte vem a seu socorro, ele prefere segui-lo a perpetuar seu
flagelo. Seus olhos são inundados de esperança.
Mas o mundo foi rodando
Nas patas do meu cavalo
E já que um dia montei
Agora sou cavaleiro
Laço firme e braço forte
Num reino que não tem rei
(Geraldo Vandré / Theo de Barros) 147
As alegorias evocadas pelo verdugo para designar o homem nos fornecem
pistas para ilustrar o invisível. As alegorias são artífices de mistérios, que o
preservam, mas suscitam sutileza. Para a filósofa Luisa Muraro, são palavras que
sugerem o indizível, o inexplicável. Nem tudo é decifrado, decodificado. Há uma
última palavra que se cala. Nas palavras de Muraro:
146
FOUCAULT, M. “História da Sexualidade 2 – O Uso dos Prazeres”. Tradução Maria Thereza
da Costa Albuquerque. São Paulo: GRAAL,13ª edição, 1ª reimpressão, 2010. P-104. 147
Composição: Geraldo Vandré / Theo de Barros. “Disparada”. Letra extraída do sítio eletrônico:
http://letras.terra.com.br/geraldo-vandre/46166/
97
Lo Otro puede ser de tal naturaleza que, sin significarlo con otra cosa,
podría tropezar con el esfuerzo humano de explicarlo todo, y
extinguirse entonces en la banalidad de nuestras representaciones. Há
pasado con el amor. Con Dios. Con la Naturaleza. Com la psicologia
humana, que los antiguos estudiaban alegóricamente.148
O fluxo reflexivo ilustrado pelas alegorias esboçadas pelo verdugo é
interrompido pela entrada do noivo, com seu sorriso idiota, que traz uma notícia
desagradável: os juízes desejam ter com o Verdugo e aguardam do lado de fora. A
tensão segue um fluxo ascendente, como se algo estivesse prestes a explodir a
qualquer momento. A irrupção dos juízes suscita reações adversas: a esposa se
preocupa com a aparência da casa, que não estaria à altura de pessoas tão
importantes. O verdugo se recolhe em seus pensamentos e diz poucas palavras.
Quem faz sala são as mulheres da casa, que cobrem-nos de lisonjas e cordialidade.
Os juízes vão direto ao assunto, sem floreios.
JUIZ VELHO: Fiquem tranquilos. Nós só viemos para
combinar.
MULHER (servil): Por favor, sentem Excelências, sentem.
JUÍZES (sentando-se): Obrigado.
(pausa longa)
JUÍZ JOVEM (para a Mulher): A moça vai casar, não é?
MULHER: Esperamos mas (apontando para o Noivo), ele está
sem serviço.
(pausa longa)
JUÍZ JOVEM: Tudo se arruma, não é?
MULHER: Seria um presente do céu, Excelência.
JUÍZ JOVEM: Pois é.
(pausa longa)
JUÍZ VELHO: Vão melhorar de vida.
MULHER: Se Deus quiser, Excelência.
148
“O Outro pode ser de tal natureza que, sem significá-lo com outra coisa, poderia tropeçar no
esforço humano de explicar tudo, a ponto de extinguir-se na banalidade de nossas representações.
Assim se sucedeu com o amor. Com Deus. Com a Natureza. Com a psicologia humana, que os
antigos estudavam alegoricamente”. (tradução livre) MURARO, L. “El Dios de las Mujeres”.
Tradução para o espanhol: María-Milagros Rivera Garretas. Madrí: horas y HORAS, la editorial,
2006. P-84.
98
JUÍZ VELHO: Parece que Deus quer.
(pausa)
JUÍZ JOVEM (para a Mulher): Mas... 149
A primeira pergunta do juiz vem seguida de uma longa pausa, na qual ele
se prepara para propor o suborno. Já está implícito na pergunta a que vieram os
juízes. A filha estaria para casar-se com um desempregado, logo, precisaria de
dinheiro. Ao dizer que “tudo se arruma”, o jovem juíz sugere que a solução desse
problema estaria em suas mãos.
“Seria um presente do céu”: Assim a mulher se refere ao auxílio
financeiro que talvez viria a ampará-los. A afirmação positiva do jovem juiz dá a
entender que ele se vê acima dos demais membros da vila, como se fosse uma
divindade celeste. Segue uma longa pausa reflexiva. O velho juiz reforça essa
ideia, quando a mulher diz “se Deus quiser”e ele responde como se fosse ele
mesmo Deus, ou alguém bem próximo: “Parece que Deus quer”. Os dois juizes,
cheios de soberba, trajam togas pretas, que distanciam-nos dos demais
personagens, como se falassem de um pedestal.
Não! Não sou o príncipe Hamlet, nem pretendi sê-lo.
Sou um lorde assistente, o que tudo fará
Por ver surgir algum processo, iniciar uma ou duas cenas,
Aconselhar o príncipe; enfim, um instrfumento de fácil
manuseio,
Respeitoso, contente de ser útil,
Político, prudente e meticuloso;
Cheio de máximas e aforismos, mas algo obtuso;
Às vezes, de fato, quase ridículo
Quase Idiota, às vezes.
(T.S. Elliot)150
Por trás da cordialidade exagerada nos pomposos pronomes de tratamento
dirigidos aos juizes, estão interesses pessoais, inspirados pela suposta recompensa.
Isso exige uma contrapartida: o homem tem que ser morto. Os juízes não estão lá
para fazer filantropia. Tão logo o juiz jovem dá a entender que existe um “porém”,
a mulher resolve ganhar tempo e pergunta se pode oferecer-lhes alguma coisa. A
mulher é bastante astuta, e se utiliza de diversas artimanhas para manter os juízes
149
HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
P-374 / 378. 150
ELLIOT, T.S. “Poesia”. Tradução: Ivan Junqueira. São Paulo: Arx, 2004. P-55.
99
ocupados, na esperança de que seu marido tenha tempo para considerar a oferta.
Os juízes têm pressa: sequer tiveram tempo de passar em casa para trocar de
roupa. Ligeira, a filha elogia a toga do jovem juiz, com uma voz feminina
dissimulada, exageradamente dócil. O juiz responde seco: “É pesada”. O peso que
recai sobre a toga pode ser interpretado em um duplo sentido: o peso do pano, e
um peso ainda maior, que corresponde ao peso do poder judiciário: a
responsabilidade de decidir sobre quem é inocente e quem é culpado, quem é livre
e quem é prisioneiro, quem vive e quem morre. O velho juiz lembra à moça que
ela está prestes a se casar, e interrompe sua tentativa fracassada de seduzir seu
companheiro de ofício. Ela olha para o noivo e sorri. Todos sorriem: um riso
amarelo, constrangedor, de quem quer mudar de assunto. E assim o fazem. De um
assunto desagradável, vão para outro mais desagradável ainda.
JUIZ JOVEM (para o Verdugo): Bem, o senhor sabe como é... o
homem... tem de morrer.
MULHER: Sabemos, lógico. Tem de morrer.
JUIZ JOVEM: Não há outro jeito.
JUIZ VELHO (para o Verdugo): Ele falou demais. O senhor
compreende? E boca deve ter uma medida. 151
Ele falou demais, confundiu as pessoas, disse coisas perigosas, passou dos
limites. Sua boca extravasou, ultrapassando a medida que o Estado considera
plausível. Muitos ali presentes parecem não entender as coisas que ele diz. O fato
é que muitas pessoas tramitam em torno do homem, de modo a ser difícil chegar
perto. Segundo a mulher, a multidão é movida por curiosidade. Ele seria a
novidade da vila, afinal, não havia na vila muito o que fazer. Isso é bastante
comum em pequenas cidades e vilarejos pacatos: sempre que algo altera o curso
normal dos acontecimentos, assume o semblante de um grande evento: pode ser a
chegada de uma pessoa de fora, um pequeno incidente ou algo aparentemente
insignificante. Tudo o que é inexplicável se revela como milagre, o homem
estranho torna-se um santo. Os juízes são implacáveis, e não parecem se
sensibilizar com a vontade do povo da vila.
151
HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
P-374 / 378 / 379.
100
JUIZ JOVEM (para o Verdugo): O senhor já está preparado,
então.
MULHER: Ah, está sim, ele não precisa se preparar muito.
(sorri) É o ofício dele, de sempre, (para o marido) não é?
FILHO: O pai não respondeu.
MULHER: Vai saindo, menino. Você não tem a escola?
FILHO: Hoje eu não vou à escola.
MULHER: Imagine, vai de qualquer jeito, vamos.
JUIZ JOVEM: Espera um pouco, senhora. (olha para o rapaz)
O moço quer dizer alguma coisa?
MULHER: Ele não quer dizer nada, Excelência. Ele é um
menino, só isso. (para o Filho) Vai.
JUIZ JOVEM: Não. Ele quer dizer alguma coisa.
JUIZ VELHO: Pode falar, moço. O que é (pausa) Hein?
(pausa)
FILHO: O homem é bom.
MULHER: Cala a boca. 152
O silêncio do verdugo provoca aflição no recinto. A mulher fala em seu
lugar: sim, ele está preparado, afinal este é seu ofício. O filho chama atenção ao
fato de que seu pai não havia respondido coisa alguma, para desconforto da mãe,
que trata de mandá-lo à escola o mais rápido possível. Quanta petulância de seu
filho se atraver a colocar tudo a perder em um momento tão delicado! Ele tinha
que se calar, caso contrário, atrairia suspeitas contra si mesmo. No período em que
a peça foi escrita, falar era perigoso. Qualquer suspeito como “inimigo interno” do
Estado podia ser preso preventivamente. 153
Atenção, ao dobrar uma esquina
Uma alegria, atenção menina
Você vem, quantos anos você tem?
Atenção, precisa ter olhos firmes
Pra este sol, pra esta escuridão
152
HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
P-374 / 379 / 380. 153
Em 1968, menos de um ano antes de a peça ser escita, o governo Costa e Silva decreta o Ato
Institucional número 5 (AI-5), que pressupõe o fechamento do Congresso e das assembléias
estaduais e câmaras municiais; a caçação de mandatos, a suspensão de direitos políticos, a
demissão massiva de funcionários públicos civis e militares, bem como juízes; está decretado o
estado de sítio.
101
Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino maravilhoso
Atenção para o refrão:
É preciso estar atento e forte!
Não temos tempo de temer a morte!
Caetano Veloso / Gilberto Gil 154
O juiz jovem não é ingênuo, e percebe que o filho tem algo a dizer. Os
olhos da justiça se voltam para o filho: consideram-no suspeito em potencial.
Colocam-no contra a parede até que ele enfim confessa sua simpatia pelo
condenado. As especulações sobre a opinião do jovem se assemelham aos
inquéritos policiais analisados por Michel Foucault: “O inquérito, exercício da
razão comum, despoja-se do antigo modelo inquisitorial para acolher o outro
muito mais flexível (e duplamente reconhecido pela ciência e o senso comum) da
pesquisa empírica.” 155
Assim como Foucault observa nas investigações criminais
em “Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão”, os juízes exercem uma pressão
psicológica até arrancar uma confissão. Não tanto pela violência, mas pela força
ideológica da jurisprudência.
JUIZ VELHO (para o Filho): Você acha que a lei se enganou, meu
filho?
MULHER: Por favor, Excelências, o meu menino não sabe nada.
Começou a estudar há pouco tempo.
JUIZ VELHO (insistindo): Hein, moço? A lei se enganou?
(pausa)
FILHO: Eu disse que o homem é bom.
JUIZ JOVEM: Você acha que é bondade falar o que ele fala?
NOIVO (o mesmo sorriso): O meu colega do meu emprego antigo
morreu naquele dia, quando o homem falou.
JUIZ VELHO (para o Filho): Então, meu filho.
FILHO (para o Noivo): Morreu porque mataram. Não foi o homem
quem matou.
154
“Divino Maravilhoso”Composição de Caetano Veloso e Gilberto Gil, cantada por Gal Costa.
Letra disponível no sítio eletrônico: http://letras.terra.com.br/gal-costa/248671/ 155
FOUCAULT, M. “Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão”. Tradução: Raquel Ramalhete. 37ª
Edição. Petrópolis-RJ: Vozes, 2009.
102
JUIZ VELHO: Morreu, meu filho, porque o homem enlouqueceu as
gentes. Agitou.156
As palavras do rapaz podem ser usadas contra ele: cabe ao jovem cidadão
questionar as leis do Estado? O Estado não erra. Se o homem está marcado para
morrer, ele não pode ser bom. Isso suscita novas perguntas, cada vez mais
capciosas. A pressão sobre o verdugo se desvia, e recai em seu filho. Ao ser
questionado, ele se repete, pois sabe que, a qualquer pisada em falso, ele está
sujeito a cair na arapuca dos juízes, defensores das leis. As leis estão acima e
aquém dos humanos. São como dogmas: sagradas e inquestionáveis. Enquanto o
juiz velho se ocupa de colocar o rapaz contra a parede, o jovem juiz prefere
dissuadi-lo de seu equívoco. O primeiro exerce sua autoridade pela força, o
segundo pela persuasão ideológica. O primeiro se faz valer pelo antigo sistema
jurídico, baseado no suplício e na punição espetacular dos corpos, enquanto o
segundo tem em vista o que Foucault chama de “economia calculada do poder de
punir” 157
. O cálculo não se dá em função do crime, mas tem como meta impedir
sua repetição. A discrepância entre as posturas dos dois juízes reflete o conflito
entre duas concepções de jurisprudência, em camadas temporais que coexistem: a
antiga e a moderna. Nas palavras de Foucault:
É preciso punir exatamente o suficiente para impedir. Deslocamento
então namecânica do exemplo: numa penalidade de suplício, o
exemplo era a réplica do crime; devia, por uma espécie de
manifestação germinada, mostrá-lo e mostrar ao mesmo tempo o
poder soberano que o dominava; numa penalidade calculada pelos
seus próprios efeitos, o exemplo deve-se referir ao crime, mas da
maneira mais discreta possível; indicar a intervenção do poder, mas
com a máxima economia, e no caso ideal impedir qualquer
reaparecimento posterior de um e outro. O exemplo não é mais um
ritual que manifesta, é um sinal que cria obstáculo. Através dessa
técnica dos sinais punitivos , que tende a inverter todo o campo
temporal da ação penal, os reformadores pensam dar ao poder de punir
um instrumento econômico, eficaz, generalizável por todo o corpo
social, que possa codificar todos os comportamentos e
consequentemente reduzir todo o domínio difuso das ilegalidades. 158
O noivo, com o mesmo sorriso idiota estampado em seu rosto, fornece um
exemplo medíocre, em uma tentativa tosca de provar que o homem não podia ser
156
HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
P-374 / 380 / 381. 157
FOUCAULT, M. “Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão”. Tradução: Raquel Ramalhete. 37ª
Edição. Petrópolis-RJ: Vozes, 2009. P-95 158
FOUCAULT, M. “Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão”. Tradução: Raquel Ramalhete. 37ª
Edição. Petrópolis-RJ: Vozes, 2009. P-90.
103
bom. Quando o homem falou, seu antigo colega de trabalho morreu. O exemplo
não apresenta uma relação de causa e efeito, mas insinua que o discurso do
homem teria alguma coisa a ver com o falecimento de seu colega. O juiz velho
parece satisfeito com a resposta. O filho está por dentro do ocorrido. Segundo ele,
o colega foi assassinado. Não foi o homem quem cometeu o crime. A acusação
não é direta, mas fica no ar que a responsabilidade do crime recai sobre o Estado,
personificado pela figura soberba dos juízes. O velho juiz não confessa de maneira
explícita, mas dá a impressão de que está se justificando, ao discorrer sobre os
motivos da morte do colega. Sua morte é atribuida ao misterioso homem, pois
fora contaminado por suas ideias. O colega teria sido inflamado pela agitação do
homem.
Quando Hilst escreveu a peça, a agitação política era considerada um
crime inaudito. Se o Estado é sagrado, o ato de incitar contra o governo
corresponde a uma heresia imperdoável. Prisão, tortura e assassinato são
instrumentos de governo utilizados para coibir a agitação política. A noção de
“inimigo interno” serviu de pretexto para o golpe militar de 1964 no Brasil.
Florestan Fernandes entende que a ditadura militar foi o recurso utilizado pelas
classes dominantes enquanto “mecanismo de autodefesa política”159
na tentativa
de conter o acirramento da luta de classes e dizimar o espectro do comunismo,
sentido como uma ameaça no Brasil, tal como em outros países da América
Latina. Foram lançadas as bases da caça às bruxas, como ficou conhecido o
Macartismo, um plano que durante os anos da Guerra Fria (1945-1991) lançou
mão de estratégias de perseguição política aos comunistas dentro e fora do
território estadunidense. Preocupado com o avanço do comunismo pelo mundo, o
Senador Joseph McCarthy desencadeou uma onda de difamação, perseguição e
punição contra os elementos acusados de “subversivos”, que assim como “as
bruxas de Salem”160
de Arthur Miller, não precisavam de provas para ser postos
fora de circulação (seja pela prisão, pelo sequestro, ou pelo assassinato – operando
à margem da legalidade). As bruxas teriam como destino último a fogueira; o
resultado é bastante análogo. Ao recusar-se a delatar um suposto círculo literário
159
FERNANDES, F. “Circuito Fechado – Quatro ensaios sobre o “Poder Istitucional”, São Paulo:
HUCITEC, 2ª Edição, 1977. p-105.
160 MILLER, Arthur .”The Crucible – Penguin Plays (As Bruxas de Salem)” Nova York: Penguin,
6ª Edição, 1982.
104
cujos membros seriam ligados ao Partido Comunista, Arthur Miller escreve essa
peça em 1953, em pleno ápice da histeria macarthista nos Estados Unidos. Ele
admitia ter assistido a algumas reuniões em 1947 e assinado alguns manifestos,
mas alegava a sua inocência frente ao crime de “subversão”, obtendo a anulação
de sua sentença em 1958. Eis que na peça de Hilst, um colega de trabalho do
noivo teria se inspirado nas palavras do misterioso homem, a ponto de apresentar
uma ameaça ao Estado. Ameaça entendida em termos vagos, já que a caça aos
“inimigos internos” faz com que qualquer um seja considerado suspeito, por
motivos aleatórios.
O diálogo termina com um silêncio constrangedor. Todos os olhares
voltam-se para o verdugo. Os olhares são como lâminas, que fulminam o
protagonista, como se ele fosse culpado de um crime terrível e teria que pagar por
isso. Eles já não contam mais com a cooperação do verdugo. Nesse olhar já não há
esperanças. O silêncio às vezes diz mais que mil palavras. Todos entendem sua
recusa. Quando um dos juizes está prestes a elaborar isso em palavras, o verdugo
resolve falar. Seria, pois, arriscado deixar que o juiz rompa o silêncio, podendo
complicar ainda mais as coisas para ele. O protagonista é objetivo, e alega não
estar preparado. Isso suscita um alarde entre os juízes e sua esposa, que o
pressionam para que justifique porque não estaria preparado para cumprir seu
dever. O filho intervém, e diz que seu pai não quer matar o homem. O verdugo
titubeia, abaixa a cabeça, e diz não se sentir capaz de fazer o serviço. As pressões
aumentam, e ele finalmente confessa que considera o homem inocente. Ele não
acha que o homem mereça a morte. Enquanto o velho juiz constata que sua morte
já está decidida, o jovem juiz mais uma vez tenta convencê-lo de que fizeram o
possível para impedir que a situação chegasse a esse ponto. Seus direitos teriam
sido devidamente respeitados.
Todos os julgamentos julgam a nossa vida, assim como todas as
sentenças são sentenças de morte – e eu já fui julgado três vezes. Na
primeira, saí do banco dos réus para a prisão, na segunda para
retornar à prisão, na terceira para passar ainda dois anos no cárcere.
A sociedade, tal como a fizemos, não tem nenhum espaço para me
oferecer, mas a natureza cuja chuva cai tanto sobre o justo quanto
sobre o injusto terá covas nos rochedos onde poderei ocultar-me e
vales secretos em cujo silêncio poderei chorar sem ser perturbado.
Ela encherá a noite de estrelas para que eu possa caminhar na
escuridão sem tropeçar e fará com que o vento apague as minhas
pegadas para que ninguém possa ferir-me.
105
(Oscar Wilde)161
O Verdugo pondera: “mas ninguém ficou satisfeito”, – referindo-se ao
povo da vila. Porém, segundo o jovem juiz, não cabe ao povo da vila o papel de
julgar o réu. Esta função é atribuída a poucos, ou seja, eles mesmos. Ser juiz não é
para qualquer um. Ao perceber que não seria possível convencê-lo por
argumentos, os juízes mudam de tática. Os juízes então apelam para o suborno, o
que já teria surtido os efeitos desejados com outros membros da família (exceto o
filho). Para suavizar seu delito, os juízes preferem se referir ao suborno como um
“auxílio”. As mulheres querem saber no que consiste esse “auxílio” em cifras.
Treze milhões, talvez mais algumas regalias, como um terreno próximo à praça.
Ao contrário do pensam as mulheres, o verdugo parece satisfeito com o que
ganha. Dinheiro nenhum pode convencê-lo. Ele está decidido. Mais uma vez, o
recinto é invadido por um silêncio estarrecedor.
MULHER (para o Verdugo): Você não vai fazer? (pausa)
Hein? (pausa) Pois eu faço.
VERDUGO (encarando-a): Faz o quê, mulher?
MULHER (para o Verdugo, encarando-o): Se você não fizer o
que eles mandam, eu faço.
FILHO (enojado): A mãe faz o serviço do pai? Vai matar o
homem?
MULHER: Matar o homem... Que jeito de falar. Eu quero que
as Excelências saibam que eu posso cumprir a lei.
FILHO (enojado): Mãe, você está louca.
MULHER (irada): Eu posso fazer o serviço que o seu pai faz,
mas que agora por estupidez não quer fazer. Ninguém vai
desconfiar de nada. Eu sou do tamanho dele, (encosta-se ao
Verdugo) olhem. E tem o capuz.
Todos estão surpresos.
NOIVO: A senhora não vai saber... vai?
VERDUGO (ainda sem acreditar): Eu que sou o verdugo,
mulher.
MULHER: Qualquer um pode ser verdugo.162
161
WILDE, O. “De Profundis e Outros Escritos do Cárcere”. Tradução: Júlia Tettamanzy e Maria
Angela Saldanha Vieira de Aguiar. Porto Alegre: LP&M, 1998. P-168.
106
A proposta inusitada da esposa do Verdugo é recebida com grande alarde.
Este momento corresponde a um divisor de águas na peça, em que o papel de
protagonista desliza de um personagem para outro. Os holofotes em torno do
verdugo lançam luz sobre sua esposa, que assume seu lugar. A princípio, isso
evoca um estranhamento que vira a casa às avessas, mas a ideia não é descartada.
As mulheres na peça têm um papel bastante fixo e imanente: foram criadas para
ser donas de casa. A jovem está com o casamento marcado, não vai à escola ou,
tampouco, tem ocupação fora de seu núcleo familiar. Ela se projeta como futura
dona de casa. A esposa é efetivamente dona de casa: essa é sua função social.
Ainda que movida pela ganância, ela está disposta a transcender ao seu
confinamento, tomando o lugar do carrasco. Ela está disposta a matar para saciar
seu desejo, que repousa na recompensa. Mais do que isso: ela pretende se travestir
de homem, ocultada pela opacidade de um capuz preto. Esse não é um papel
desempenhado por mulheres. A fim de ver o caminho livre para assumir o papel
de verdugo, a esposa transcende as barreiras sociais pelo travestimento.
Transcendência em uma acepção negativa, pois ela se torna sujeito por abdicar de
sua condição de mulher. De acordo com a filósofa Simone de Beauvoir:
Para encarar o universo como seu, para se estimar culpada de seus
erros e vangloriar-se de seus progressos, é preciso pertencer à casta
dos privilegiados (homens); é somente a esses, que lhe detém os
comandos, que cabe justificá-lo, modificando-o, pensando-o,
desvendando-o; só eles podem reconhecer-se nele e tentar imprimir-
lhe sua marca. É no homem e não na mulher que até aqui se pôde
encarnar o Homem163
.
Em um ato de desespero diante da recusa do marido, ela assume o lugar
deste, desfazendo tabus em desejo, como quem solta um grito de alforria. Pela
violência masculina, ela encontra uma possibilidade de auto realização, motivada
pela promessa de uma vida melhor.
O dramaturgo João Silvério Trevisan164
esboça um histórico do
travestimento nos palcos brasileiros desde a época da coroa portuguesa. No
reinado de Dona Maria I, em 1780, foi promulgado um decreto proibindo a
162
HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
Pp- 385/ 386. 163
Id. Ibidem. Pg 481. 164
TREVISAN, J. S. “Devassos no Paraíso”. Rio de Janeiro: Record, 2000.
107
presença de mulheres no palco ou nos bastidores, camarins etc. Segundo Trevisan,
a prática profissional do travestimento constituía um chamariz para o grande
público ao longo da história do teatro brasileiro. A personagem “Heloísa de
Lesbos”em O rei da Vela de Oswald de Andrade e seu irmão “Totó Fruta-do-
Conde” aparecem como personagens travestidos, que usam e abusam dos clichês
socialmente edificados em torno das intersecções de gênero. A partir da década de
1970, o desbunde tropicalista e o grupo teatral Dzi Croquetes radicalizam o
travestimento e o cross-gender, inaugurando um questionamento acerca da
ambiguidade dos papéis sexuais, cuja rigidez se revela uma ficção. Hilda Hilst
escreveu “O Verdugo”em 1969, trazendo ao palco uma figura menos comum no
teatro de seu tempo: o travestimento feminino.
Retomando o curso da elocução, o marido lembra a sua consorte que é ele
o verdugo. A resposta de sua esposa é implacável: “qualquer um pode ser
verdugo”. Com isso, ela atenta para o fato de que qualquer pessoa pode se prestar
ao papel de carrasco. Mais do que isso: há um verdugo dentro de cada um de nós.
Um verdugo, que habita os nossos desejos mais recônditos, nossas fantasias,
nossos pensamentos, algo que orienta nosso agir, impelindo-nos para o momento
preciso da execução de quem estiver em nossos caminhos. Qualquer um pode
levantar uma foice para outro ser humano. A barbárie corre pelos fios mais
capilares dos nossos corpos, como uma força que ora se recolhe, ora aflora.
Qualquer um pode ferir outra pessoa. Esse capuz serve a qualquer um.
Porém isso que a esposa do verdugo propõe é ilegal. Os juízes não
respondem aos apelos do verdugo e de seu filho para que as leis sejam respeitadas.
Eles não dizem que sim, nem que não. Mais uma vez o silêncio comunica a
resposta e o filho braveja contra os juízes: “Canalhas, canalhas!” O juiz velho põe
a mão em seu ombro e tenta se explicar, mas o filho o repele, com asco. Suas
emoções afloram, para desconsolo da mãe. O verdugo tenta reagir, mas é
interrompido pelos juízes. A interrupção opera como uma censura: é preciso fazê-
lo calar. Suas palavras podem ser perigosas. Eles temem que o verdugo tente
persuadir sua mulher a desistir de seu plano maluco. Ele é, afinal, seu marido.
JUIZ JOVEM (para a Mulher, objetivo): A senhora acha que pode
fazer o serviço?
108
MULHER (olha para o marido, para o filho, hesita um pouco, mas
olha em seguida para a filha e resolve): Posso, muito bem até.
VERDUGO (muito emocionado): Mulher, não fala assim. Você não
vai fazer nada.
MULHER (exaltada): Não vou fazer? Eu não tenho medo de você. Eu
é que sei... Entra ano, sai ano, é sempre esse desassossego de não
saber o que vai ser de nós. (olha para os juízes) Deviam pagar melhor
os verdugos, sem eles a vida não fica fácil nem para Vossas
Excelências. Sem os verdugos não há segurança. (para o marido,
sumplicante) Homem, pensa no teu filho também...
FILHO: Não me mete nisso, mãe, eu penso como o pai.
MULHER: Ah, pensa? Não é você, seu desgraçado, que diz todo dia
que não quer ser mandado por ninguém? Que quer correr o mundo e
falar com as gentes? E você pensa que vai poder fazer o que quer se
não estudar? E para estudar precisa dinheiro, desgraçado, dinheiro.
FILHO: Eu não quero mais nada, mãe, eu não quero nada à custa da
morte desse homem.
FILHA: Mas esse homem já está morto, imbecil.
JUIZ VELHO: Isso é verdade. Pela lei, ele já está morto.
NOIVO (para o Filho): Olha, meu chapa, a vida é assim mesmo.
Todo mundo morre. 165
Chegou a hora de a mulher selar o seu compromisso com os
representantes do Estado. Apesar de se mostrar bastante decidida, por um instante
ela vacila, ao olhar para o marido e o filho que a desaprovam com olhares
penetrantes. Porém em seguida ela olha para a filha, prestes a se casar e que está
contando com recompensa, então vai em frente. Nada pode fazê-la voltar atrás a
partir desse momento sublime. O marido fica perplexo com o fato de a sua mulher
ir tão longe a ponto de agir contra ele. Ele está profundamente ferido e
decepcionado. O verdugo se encontra invadido por uma sensação de impotência: é
ela quem tem a palavra final, e não há nada que ele possa fazer para modificar o
curso dos acontecimentos. Ou quase nada.
Então ela desabafa: os anos se passam e a vida continua precária. “Deviam
pagar melhor os verdugos”. Afinal, eles tornam a vida mais fácil para todos,
inclusive para os juízes. Ao serem arrancadas as ervas daninhas, a vida se
prolifera no jardim: pela morte. Eis o paradoxo: a morte é necessária para a vida.
165
HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
Pp- 388/ 389.
109
Morrem os elementos indesejáveis, para que a vida dos demais encontre sua
plenitude. Se os “inimigos internos” são postos fora de campo, acredita-se viver
com mais “segurança”. Ambos os conceitos de “inimigo interno” e de “elementos
subversivos” foram definidos em termos vagos, de modo que qualquer opositor
pode se converter em uma ameaça, e merece arcar com severas consequências.
Quando a personagem fala em zelar pela segurança, não se trata de garantir a
integridade física dos habitantes da vila, mas antes de assegurar a “segurança” do
establishment. É preciso que se pague bem aos verdugos, pois eles são necessários
à segurança do Estado. Se eliminassem todos os agitadores, a vila seria um
ambiente “seguro”.
A elipse de um grito
vai de monte
a monte.
Desde as oliveiras
será um arco-íris negro
sobre a noite azul.
Ai!
Como um barco de viola
o grito fez vibrarem
longas cordas do vento.
Ai!
(As pessoas das covas
Erguem seus candeeiros.)
Ai!
(Federico García Lorca)166
Tão logo a mulher alude ao futuro do filho, este, por sua vez, tira seu
corpo fora de campo, ao atestar que compartilha a desaprovação proferida pelo
pai. O apelo à liberdade inverte a prerrogativa de reprovação, ao passo que a mãe
elucida a aversão do filho ao fato de ter que obedecer a ordens. Por que ela teria
que obedecer-lhe, quando ele mesmo se recusa a obedecer? Por que só ele poderia
realizar seus próprios desejos, e ela não? Para a filósofa Simone de Beauvoir, a
relação entre mãe e filho se torna algo complexo à medida que o filho cresce:
Ele é um duplo e por vezes ela é tentada a alienar-se inteiramente nele,
mas ele é um sujeito autônomo, logo rebelde; é hoje vivamente real,
mas no fundo do futuro um adolescente, um adulto imaginário, uma
riqueza, um tesouro; é também um fardo, um tirano. 167
166
LORCA, F. G. “Obra Poética Completa”. Tradução: William nAgel de Melo. São Paulo:
Imprensa Oficial, 5ª Edição, 2004. P-185. 167
BEAUVOIR, S. “O Segundo Sexo – Volume 2: A Experiência Vivida”. Tradução: Sérgio
Milliet São Paulo: DIFEL, 3ª Edição, 1975. P-280.
110
Em seguida, ela ressalta que seus quereres têm um limite. Se ele não
estudar, não vai poder fazer o que quiser, porém os estudos requerem um
investimento prévio. Sem o dinheiro de seus pais, ele não teria condições de
estudar e se realizar de acordo com sua vontade. O ato de se realizar está
intimamente vinculado a uma profissão. Se para a mulher a felicidade, em grande
medida, consiste em casar e procriar, para o jovem, ela está calcada na
constituição de uma carreira promissora. No pensamento patriarcal, uma mulher
bem-sucedida é uma mulher bem casada. Nesse sentido, o espaço reservado à
mulher é da ordem do privado. Só em algumas áreas restritas há espaço para a
mulher fora do domínio do lar. A historiadora Michelle Perrot lança um olhar
atento sobre os deslocamentos desse espaço permitido às mulheres:
[As mulheres] migram quase tanto quanto os homens , atraídas pelo
mercado de trabalho das cidades, onde acham emprego principalmente
como empregadas domésticas. Essas cidades, que as chamam sem
realmente acolhê-las, empenham-se em canalizar a desordem
potencial atribuída à coabitação entre homens e mulheres. Daí uma
segregação sexual do espaço público. Existem lugares praticamente
proibidos às mulheres – políticos, judiciários, intelectuais, e até
esportivos... – ,e outros que lhes são quase exclusivamente reservados
– lavanderias, grandes magazines, salões de chá... Na cidade, espaço
sexuado, vão porém se deslocando, poico a pouco, as fronteiras entre
os sexos.168
Já um homem bem-sucedido é um homem capaz de alcançar um cargo de
prestígio em uma empresa. O homem proveniente de uma família abastada pode
ascender em uma empresa com alguma facilidade. Por exemplo, ele pode herdar a
empresa da família, ou ser indicado para cargos de prestígio por meio de
influências familiares. No caso de uma família humilde, os estudos constituem a
principal via de ascensão socioeconômica. Mas para o filho, a ética custa mais do
que dinheiro. Uma ética que lança luz sobre valores que estão acima do dinheiro.
Ele está disposto a abdicar de tudo em nome daquilo que aquele homem
representa.
Em chamas, fuguras de cifras e palavras
saltam do crânio
como crianças duma casa a arder,
com o mesmo terror
com que se ergueram
ao céu
braços acesos no convés do Lusitânia.
168
PERROT, M. “Mulheres Públicas”. Tradução: Roberto Leal Ferreira. São Paulo: UNESP, 1ª
Reimpressão, 1998. P-37.
111
Ante a gente tremendo
no silêncio do lar,
um brilho de cem olhos explode do refúgio.
Ó meu último grito, –
pelo menos tu
brada que estou a arder pelos séculos fora.
(Vlamidir Maiakóvski)169
A filha é bastante pragmática, e constata que a morte do homem já é um
fato consumado, portanto lutar por sua vida seria uma perda de tempo. Segundo a
personagem, seu irmão teria que aceitar os fatos e dar prosseguimento aos seus
estudos. Caberia a ele se conformar, ater-se a seu lugar. Para ela, questionar a
autoridade equivale a um disparate inaudito. Vem-lhe à baila a ideia de um
confinamento, no compasso de papéis fixos, onde cada um cuida do que lhe cabe.
Se as autoridades determinam que o homem precisa morrer, sua morte deve ser
aceita como uma realidade inquestionável. Ele já é tido como morto, mesmo antes
de sua execução. É cômodo se conformar, porém isso cobra o seu preço: o
engessamento da imanência, a impossibilidade de se constituir como sujeito. Sua
ação só pode se desenvolver em um sentido unívoco, restando uma margem
estreita para a escolha inerente ao sujeito. Conformar-se pressupõe a manutenção
da ordem estabelecida, sem possibilidade de desvio.
O horrível, Madame, está na imobilidade destas paredes, destas
coisas, na familiaridade dos móveis que vos rodeiam, dos acessórios
de vossa adivinhação, na indiferença tranquila da vida na qual vós
participais como eu. E vossas vestes, Madame, essas vestes que tocam
uma pessoa que vê. Vossa carne, todas as vossas funções enfim. Não
posso me acomodar a essa ideia de que estejais submetida às
condições do Espaço, do Tempo, que as necessidades corporais vos
pesem. (...) Aos olhos de meu espírito, não tendes limites nem bordas,
sois absolutamente, profundamente incompreensível.
(Antonin Artaud)170
O noivo compartilha e reforça a postura conformista de sua futura
consorte, ao atestar que todos morrerão um dia. A morte é inerente à vida. A
finitude da vida é uma das poucas certezas que temos, porém o personagem se
utiliza dessa constatação para relativizar seu percurso e duração. Já que todos
morrerão um dia, pouco importa se o Estado tratar de interromper um fluxo vital.
169
MAIAKÓVSKI, V. “A nuvem de calças”. In: “Poetas Russos”. Tradução e Organização:
Manuel de Seabra. Liboa: Relógio D’Água Editores, 1995. P-77. 170
ARTAUD, A. “Carta à Vidente – para André Breton” In: ARTAUD, A. “Linguagem e Vida”.
Tradução: Jacó Guinsburg. São Paulo: Perspectiva 1ª Edição, 4ª Reimpressão, 2008. P-222.
112
A ignorância do personagem, que nunca perde aquele sorriso idiota estampado em
sua face, funciona como uma sátira da opinião pública propagada pelos meios de
comunicação. Ele leva até o limite o conformismo das classes médias, despido de
qualquer indício de pensamento autônomo. No decorrer da peça, ele bajula os
juízes e faz questão de falar que concorda com cada coisa que eles dizem, ainda
que sua opinião jamais seja solicitada. O personagem expressa um
deslumbramento com as autoridades, e repete tal como um papagaio aquilo que
dizem a partir do cânone, exaltando os ridículos que frequentemente se repete sem
pensar, sempre de cima para baixo.
No cemitério, à direita, cobriu-se o túmulo de pó
e, por trás dele, brotou um rio azul.
Tu me disseste: “Então
vai para o convento
ou casa-te com um idiota...”
Só os príncipes falam sempre assim.
Mas eu me lembro dessas palavras:
deixem que elas flutuem por cem séculos
como um manto de arminho jogado sobre os meus
ombros.
(Anna Akhmátova)171
As batidas fortes na porta em uma hora bastante avançada provocam
suspeitas, acentuando um clima de desconfiança que comumente se dissemina em
tempos de incerteza e efervescência. Tem-se a impressão de que algo ou alguém
possa conter o plano engenhoso que os juízes e a esposa do verdugo estavam
prestes a pôr em prática. Quem seria a uma hora dessas? Seria algum truque? Se o
povo da vila está contra a execução do homem, às vésperas da data firmada tudo
pode acontecer: alguém pode aparecer para estragar tudo, pode eclodir uma
rebelião. O apelo à prudência se origina de um temor calcado na incerteza quanto
ao êxito de uma missão. O mistério dura pouco tempo: é o carcereiro. A
infatigável persistência na dúvida leva a prudência a uma dimensão hiperbólica,
uma paranoia dramatizada. O carcereiro insiste, pois tem algo a comunicar com
urgência.
171
AKHMÁTOVA, A. “Antologia Poética”. Tradução: Lauro Machado Coelho. Porto Alegre:
LP&M, 2009. P-54.
113
CARCEREIRO (afobado): Boa noite para todos, Excelências, as
pessoas estão preparando alguma coisa. Tem uma coisa no ar.
JUIZ VELHO: Que coisa, homem? Você está assustado.
CARCEREIRO: Eu não me assusto com poucacoisa, Excelência.
NOIVO: Ele é um homem muito valente.
FILHO: O que é que você sabe da valentia dele, seu bobo?
FILHA (para o irmão): Cala essa boca.
NOIVO: Ele deu na cara daquele que matou os menininhos.
FILHO: O homem estava com as mãos amarradas. Bela valentia essa.
JUIZ VELHO: Silêncio, por favor.
JUIZ JOVEM (para o Carcereiro): Diz direito o que é que há,
homem.
CARCEREIRO (um pouco grotescamente): Eu estou lá em minha
mesa. O homem está quieto. Ele fica num canto da cela, de costas para
mim. É o jeito dele, já me acostumei. De repente, ouço um grito lá
fora: (grita) A vida! A vida!
JUIZ VELHO: Não grite assim.
CARCEREIRO: Desculpe, Excelência.
JUIZ JOVEM: E depois?
CARCEREIRO: Saio depressa. E só aquela escuridão. Nada
(pausa)
JUIZ VELHO: Continuo achando que você está assustado.
CARCEREIRO: Eu sei o que digo, Excelência. É preciso apressar a
morte do homem. Se demorar muito, acontece desgraça. 172
O carcereiro anuncia que algo está no ar, como partículas de gasolina que
se alastram rapidamente, capazes de atear fogo em toda a vila com um simples
riscar de fósforos. Um espectro paira no ar, uma pressão silenciosa, insuportável.
Uma voz contida cuja mordaça estaria prestes a ceder. Seu grito celebra a vida
onde a morte se avizinha. O homem permanece em seu recolhimento, de costas,
sem dizer uma palavra. Um grito no escuro, vindo de fora, de qualquer parte não
identificada. Uma voz anônima, cujo apelo à vida provoca calafrios. Nesse grito
está implícita uma ameaça latente caso a ação planejada não siga seu curso antes
172
HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
Pp- 390/ 391.
114
do amanhecer. Se o homem amanhecer vivo, essa voz pode se multiplicar, a ponto
de fazer o establishment ruir. O momento pedia pressa e cautela, pois
caminhavam em gelo fino.
Cisne redondo no rio,
olho de altas catedrais,
alva fingida nas folhas
sou; de mim não há quem escape!
(...) A lua já mostra o fio
Do seu punhal pelos ares
que, sendo espreita de chumbo,
quer mesmo é ser dor de sangue.
Deixai-me entrar!
(Federico García Lorca)173
A princípio, o velho juiz dá pouca importância ao que diz o carcereiro,
e questiona sua valentia. Um carcereiro precisa ser corajoso e viril, não pode
sentir medo, ou demonstrar qualquer sinal de vulnerabilidade. O psicanalista
Christophe Dejours constata que: “ao medo a filosofia moral opõe à razão, em
nome da qual o sujeito virtuoso deve vencer seu medo, inclusive o medo de
morrer das conseqüências da violência. Essa atitude é a coragem”174
.
Seguindo o modelo espartano, a coragem é ensinada pela dor. Aprende-se a
resistir. Para Desjours: “o aprendizado da coragem passaria (...) pelo
aprendizado da submissão voluntária e da cumplicidade com os que exercem a
violência, mesmo sob pretexto ‘didático’!”175
A incredulidade do velho juiz enfatiza alguns julgamentos prévios e
preconceitos que atravessam à pequenez humana. É a voz de uma ignorância
apegada ao poder e ao prestígio, mas que perde de vista os seus propósitos.
A crueldade ordinária é mera estupidez. É uma total falta de
imaginação. É o resultado, hoje em dia, de sistemas estereotipados de
regras rígidas e imutáveis, e de imbecilidade. Onde há centralização
há imbecilidade. O que é desumano na vida moderna é o oficialismo.
A autoridade é destrutiva tanto par os que a exercem como para os
que a sofrem. A Direção da Prisão, e o sistema que ela põe em
prática, é a fonte básica da crueldade. (...) As pessoas que apoiam o
sistema têm excelentes intenções. Aqueles que o executam são,
também, humanos em suas intenções. A responsabilidade é
transferida para as regras disciplinares. Acredita-se que quando uma
173
LORCA, F. G. “Bodas de Sangue”. Tradução: Rubia Prates Goldoni. – 1ª Edição – São Paulo:
Peixoto Neto, 2004. Coleção: Os grandes dramaturgos. P-119. 174
DEJOURS, Christophe (2000). “A banalização da injustiça social”. Tradução: Luiz Alberto
Monjardim. 3ª Edição, Editora Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro-RJ. p-131. 175
Id. Ibidem. p-129.
115
coisa é regra, ela é certa. (...) Os Juízes [são] uma classe via de regra
totalmente ignorante.
(Oscar Wilde)176
O funcionário incompetente se ocupa em se fazer grande reduzindo a
valentia do colega de trabalho, mais do que investir na qualidade e eficiência de
seu próprio ofício. O jovem juiz, pelo contrário, faz questão de ouvir o que o
carcereiro tem a dizer, pois toda informação sobre o caso em princípio lhe parece
útil. Michel Foucault descreve a passagem do antigo sistema penal francês para
um mais moderno, que abre mão do suplício, das masmorras e das grandes
fogueiras para se adentrar na consciência do cidadão.
Sob a suavidade ampliada dos castigos, podemos então verificar um
deslocamento de seu ponto de aplicação; e através desse
deslocamento, todo um campo de objetos recentes todo um novo
regime da verdade e uma quantidade de papéis até então inéditos no
exercício da justiça criminal. Um saber, técnicas, discursos
“científicos” se formam e entrelaçam com a prática do poder de punir. 177
Se o velho juiz se compraz em usar as mãos de ferro do Estado, o jovem
juíz é mais discreto, porém sistemático, frio e eficaz. O juiz novo parece mais bem
preparado, mais apto a escutar e persuadir. Para ele, a punição corresponde a um
cálculo racional. Nenhuma variável pode estar de fora. Tudo precisa ser
milimetricamente calculado. Quando a mulher tenta seduzi-lo, ele é frio e se atém
ao profissionalismo. O personagem é expressão modular do funcionário eficiente,
cujo olhar vigilante não falha. Sua eficácia consiste numa vigilância permanente e
minuciosa e no comprometimento com um sistema integrado de punir. Nas
palavras de Foucault:
A punição vai-se tornando, pois, a parte mais velada do processo
penal, provocando várias consequências: deixa o campo da percepção
quase diária e entra no da consciência abstrata; sua eficácia é atribuída
à sua fatalidade não à sua intensidade visível; a certeza de ser punido é
que deve desviar o homem do crime, e não mais o abominável teatro;
a mecânica exemplar da punição muda as engrenagens.178
176
WILDE, O. “De Profundis e outros escritos do cárcere”. Tradução: Júlia Tettamanzy e Maria
Ângela Saldanha Vieira de Aguiar. Porto Alegre: LP&M, 1998. Pp-174 / 176. 177
FOUCAULT, M. “Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão”. Tradução: Ligia M. Podé Vassalo.
Petrópolis: Vozes, 2ª Edição, 1983. Pp- 25 / 26. 178
FOUCAULT, M. “Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão”. Tradução: Ligia M. Podé Vassalo.
Petrópolis: Vozes, 2ª Edição, 1983. P-15.
116
Os juízes da peça de Hilst expressam o conflito entre o velho e o novo
sistemas penais, em um ambiente em que as camadas temporais coexistem e se
chocam. Ao ser mais uma vez pressionado pelos juízes, o Verdugo tenta se
explicar:
VERDUGO (tentando convencer os juízes): Excelências... é muito
difícil para mim... eu não sei explicar... alguma coisa está me
impedindo de fazer isso. O homem entrou no meu peito, os senhores
entendem? Ele falava que era preciso... amor... ele falava...
MULHER (com desprezo): Amor! Amor! E o que tem isso
JUIZ VELHO: Em nome do amor acontecem baixezas.
FILHO: Que baixezas?
JUIZ JOVEM: As palavras do homem eram palavras de fogo.
FILHA: Foi o que eu disse. Ele pôs fogo nas gentes. (pausa
JUIZ JOVEM: Amor... é comedimento.
JUIZ VELHO: Mansidão.179
Os personagens atribuem significados diferentes à palavra amor. O amor
ao qual o verdugo se refere é um amor vasto e profundo, que tocou seu coração e
modificou sua relação com o mundo em um sentido radical. Um amor capaz de
amolecer o coração do carrasco. Um amor que produz encantamento, que se funde
com sua alma. Um amor que cria asas coloridas, em uma metamorfose
irreversível. Sua esposa parece alheia ao significado de amor. O amor para ela é-
lhe indiferente, desprezível. Talvez jamais o tenha sentido. Se em algum momento
existisse amor em seu coração, ela abdicara dele ao tomar o lugar do carrasco. O
jovem juiz vê o amor como comedimento, afinal ele recolhia seus sentimentos e
emoções sob a égide fria de sua racionalidade. Para ele, tudo tinha que estar em
uma medida passível de controle. Já o seu colega de trabalho via o amor como
mansidão: algo que já fora calejado, passificado, pela força ou pelo hábito. O
velho juiz fala das baixezas que se fazem em nome do amor. Quantos crimes
passionais devem ter passado por seu banco de réus! Pois para ele, o amor tinha
que ser domado, amestrado. O jovem juiz associa as palavras do homem ao fogo:
179
HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
Pp- 393/ 394.
117
elas inflamavam os corações dos habitantes da vila. Para a filha do verdugo, o ato
de atear fogo nas pessoas é mais do que uma metáfora.
JUIZ VELHO: Amor... é respeitar o povo. Ele não respeitava vocês.
Ele insultava vocês.
VERDUGO: Insultava? Não sei disso.
JUIZ JOVEM: Ele chamava vocês de coiotes.
Verdugo e filho entreolham-se.
NOIVO: O que é isso?
FILHA: O que é um coiote?
JUIZ JOVEM: Um animal. Um lobo.
MULHER (para o Filho): E você defende um homem assim?
FILHO (para a mulher, exaltado): Não é isso, mãe. Ele dizia que os
coiotes não costumam viver eternamente amoitados. Que é preciso
sair da moita.
MULHER: E o que é que nós temos com os coiotes?
JUIZ VELHO (para o Filho): Sair da moita para caçar?
FILHO (exaltado): Para que vejam ao menos as nossas caras de
coiotes e respeitem a gente. E se nos respeitarem, nós poderemos um
dia... (lentamente) achar o nosso corpo de pássaro e levantar voo.
(objetivo) Mas primeiro mostrar a cara de coiote.
MULHER (com desprezo): Pássaro... coiote... o homem é louco.
JUIZ JOVEM (aproximando-se do Filho): E como é a cara de um
coiote?
FILHO (encarando fixamente o Juiz jovem com uma expressão de
dureza e ameaça): Uma cara... assim. 180
Tão logo o juiz velho faz menção à palavra coiote como um insulto
proferido contra o povo, pai e filho se entreolham. Eles sabem alguma coisa que
os juízes ignoram. Não se trata de um insulto, mas parte de um vocabulário
interno, que tem um significado compartilhado por um determinado grupo.
Ninguém mais no recinto sabe o que o misterioso homem queria dizer com coiote.
O filho explica que os coiotes não se escondem para sempre atrás das moitas. O
coiote, antes de sair da moita, passa por estratégias de empoderamento, que se
180
HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
Pp- 394/ 395.
118
assemelham ao confinamento da lagarta em seu casulo, antes de virar borboleta. O
ato de sair da moita é como transcender a uma opressão, deixar um espaço de
confinamento e mostrar a cara. Sair da moita é um ato libertador por excelência. A
expressão na cara de um coiote coloca à revelia a coragem do bravo guerreiro,
disposto a lutar até o fim pelo respeito que lhe fora negado. Uma vez alcançado
seu objetivo, a cara de coiote se desfaz, perde sua razão de ser. Os coiotes de
ontem são os pássaros de amanhã, pois, uma vez libertos, eles criam asas, e voam
para onde lhes convenha.
Não é a primeira vez que a Hilda Hilst fala das asas de um pássaro para
aludir à liberdade. As alegorias de Hilda Hilst são como estados da alma, que
passam por processos metamórficos. São alegorias transitórias, que se liquefazem
e depois assumem novas formas de acordo com o roteiro. Como uma poeta lírica,
ela traduz em imagens os sentimentos que atravessam os personagens, dá vida às
vozes que produzem gritos e silêncios nas funduras do íntimo. A complexidade
reside na leveza polimorfa, que não se fixa em uma única figura alegórica, mas
dança conforme a música, cujo ritmo se dá tal como as batidas de um coração, ora
sereno, ora acelerado, ora que se expande, ora se recolhe, e se espraia por todo o
corpo, levando as sensações até o limite. Como dizia Ovídio:
Há (...) seres a quem é permitido assumir muitas formas., como é teu
caso, Proteu, que vives no mar que rodeia a terra. Pois, de fato, hora
te viram de jovem mancebo, ora de leão; ora foste um javali feroz, ora
uma serpente que todos recearam tocar; por vezes, cornos fizeram-te
um touro; tantas vezes podias parecer rocha, tantas vezes também
árvore, e muitas vezes, imitando o aspecto das límpidas águas, foste
um rio, outras vezes foste fogo, o opsto da água.181
Metamorfoses figuram nas tradições hesiódica e alexandrina, nos poemas
homéricos, e de autores helenísticos. Ovídio escreveu um longo poema,
distribuído em quinze livros, que trata do tema das metamorfoses na mitologia
greco-romana, desde o caos até a apoteose que sacraliza Júlio César. O Professor
Paulo Farmhouse Alberto escreve no prefácio do livro que leva o título de
“Metamorfoses” que “a ‘transfiguração’ é algo que pertence ao mundo do sonho e
do imaginário, (...) tratada com ênfase mais na forma do que no corpo
transformado ou a transformar, ou no próprio processo de mutação: (...) ‘formas
181
OVÍDIO. “Metamorfoses”. Tradução: Paulo Farmhouse Alberto. Lisboa: Livros Cotovia, 2007.
P-217.
119
mudadas em corpos’”182
. No poema de Ovídio, o caos seria um estado da natureza
em um só orbe, sem delimitação alguma entre as formas do universo. Tudo se
reduzia a uma massa amorfa, que pairava no ar, em um equilíbrio instável entre
terra, céu e mar. Até que um deus estabeleceu a harmonia entre as formas,
separando cada coisa, cada elemento do cosmos: fogo, água, terra e ar. Nasce
então o homem, moldado à imagem dos deuses, das sementes do céu misturadas
com a água da chuva. Assim tudo começou. Ovídio elabora a história dos homens
e dos deuses através de uma sucessão de processos metamórficos.
Tudo se transforma, nada morre. O espírito vagueia e anda daqui para
ali, dali para aqui, e invade um corpo, qualquer que ele seja, , e dos
animais passa para o corpo humano, e de nós passa para os animais e
em instante algum perece. Tal como a dúctil cera se molda sempre em
novas figuras, e não permanece como era, nem conserva as mesmas
formas, e, no entanto, é sempre a mesma, assim a alma é a mesma,
mas transmigra para uma variedade de formas. (...) Tudo flui, e uma
imagem que se forma é passageira. Até o próprio tempo escorre, num
movimento incessante, , tal como um rio.183
As alegorias de Hilst habitam o corpo dos personagens, e podem ser
assimiladas de maneira visceral. Qualquer um pode ter uma cara de coiote, mas
antes é uma cara que vem de dentro para fora, como se o coiote tivesse estado
sempre estado ali, mas sem que tivéssemos consciência de sua existência. De
acordo com Barre Toelken, em Life and Death of Navajo Coyote Tales184
(“Vida e
Morte dos Contos de Coiote dos Navajos”), o coiote é uma figura mágica para
diversas nações indígenas norte-americanas. É um pequeno lobo, que vive nas
colinas espraiadas pelo continente. Para os Navajos, sua figura engendra uma
intersecção entre o lobo e o cachorro, o selvagem e o dócil, o lobo e o humano.
Sua figura está no centro de diversos ritos de cura, e em alguns contos, simboliza
um poder inestimável ligado aos ciclos elípticos da natureza. Para Toelken, os
coiotes recebem uma dupla acepção: entre aquele que restaura a vida, e aquele que
tem o poder de tirá-la. Os Navajos às vezes se vestem com peles de coiotes em
seus rituais de caça, pois esses são animais predadores. Ainda que não exista
nenhuma referência explícita ou implícita aos mitos do coiote dos indígenas norte-
182
ALBERTO, P.F. Prefácio de: OVÍDIO. “Metamorfoses”. Tradução: Paulo Farmhouse Alberto.
Lisboa: Livros Cotovia, 2007. P-18. 183
OVÍDIO. “Metamorfoses”. Tradução: Paulo Farmhouse Alberto. Lisboa: Livros Cotovia, 2007.
P-369. 184
TOELKEN, B. “Life and Death in Navajo Tales”. In: SWANN, B e KRUPAT, A. “Recovering
the word: essays on native American literature”. University of California Press, 1987.
120
americanos, na peça de Hilda Hilst uma cara de coiote é uma cara de predador,
com seus dentes rangendo, prestes a atacar sua presa.
Off through the new day's mist I run
Off from the new day's mist I have come
I hunt. therefore I am
Harvest the land, taking of the fallen lamb
Off thruogh the new day's mist I run
Off from the new day's mist I have come
We shift, pulsing with the earth
Company we keep, roaming the land while you sleep
(…) I feel a change back to a better day
Hair stands on the back of my neck
"In wildness is the preservation of the world"
So seek the wolf in thyself
Shape shift, nose to the wind
Shape shift, feeding I have been
Move swift, all senses clean
Earth's gift, back to the meaning of wolf and man
(Metallica) 185
Em Hilst, as asas do pássaro permanecem ocultas em nossas entranhas,
mas um dia serão visíveis e poderão voar. Como se verifica em Ovídio, a
metamorfose em ave apresenta o prenúncio de uma vingança, a libertação de uma
alma atormentada pela culpa, a certeza de uma vitória, uma fuga, um castigo
divino. Ao abandonar o poder régio, Cicno metamorfoseia-se em ave nova e
habita as encostas dos rios. A princesa de Lesbos em fuga é lançada às alturas
com a ajuda de Minerva após ter sido violada pelo rei dos mares. As finas asas
translúcidas das filhas de Mínias fogem das chamas de um clarão avassalador. As
Ismênides figuram em voos rasantes como castigo por ter censurado Juno por sua
185 Através da névoa do novo dia eu corro / Saindo da névoa do novo dia eu vim / Eu caço, então
existo / Ceifo a terra, tomando a ovelha caída /Através da névoa do novo dia eu corro / Saindo da
névoa do novo dia eu vim / Nós metamorfoseamos, pulsando com a terra / Companhia nós
mantemos, vagando pela terra enquanto você dorme / (...) Eu sinto a mudança de volta a um tempo
melhor / Pêlos se arrepiam em minha nuca / Na selvageria está a preservação do mundo / Então
procure o lobo em si mesmo/ Metamorfoseamos, nariz ao vento / Metamorfoseamos, me
alimentado eu tenho / Movimento veloz, todos os sentidos claros / Presente da terra, de volta ao
sentido de lobo e homem. METALLICA. Composição: James Hetfield, Kirk Hammett, Lars
Ulrich. Letra disponível no sítio eletrônico:
http://letras.terra.com.br/metallica/25959/traducao.html
121
crueldade. As nove irmãs de Lucina, punidas por sua tagarelice, tornam-se
pássaros roucos empoleirados em ramos, tomados por uma obsessão em falar.
Sorte semelhante teve o delator Aceáfalo, transformado pela rainha de Érebo em
coruja, presságio dos infortúnios vindouros. Os corpos das Cecrópides, filhas de
Pandíon, pairam no ar com as penas manchadas com o sangue de Tereu. Este, por
anseio de vingança, também se transforma em pássaro, com uma crista na cabeça
e um imenso bico em lugar de sua lança. Também a Vitória é um pássaro de asas
hesitantes, que voa de um lado a outro para anunciar ao rei Minos o fortúnio na
guerra de Alcatoo. Círis abandona a popa do navio do rei de Cnossos num ruflar
de asas. Dédalo, que construíra para si próprio e seu filho Ícaro próteses de asas
engenhosas, assiste ao triste fim de Ícaro, que despenca nos profundos mares após
se deixar levar pelo fascínio solar, cujo calor derretera a cera que lhe prendia as
penas. Ao destruir a casa de Portáon, a filha de Latona eleva-se pelos ares com
suas longas asas. O cruel Dedálion, ao lançar-se ao abismo, é salvo por Apolo,
que o transforma em gavião, com bico recurvo semelhante a um gancho, que
subjuga as outras aves tal como outrora subjugara reis e povos em guerras
sanguinárias. Alcíone rasava pelas cristas das ondas com bico delgado e
trepidante, ao lado de seu estimado Céix, também transformado em pássaro,
conservando juntos a perenidade do amor. Eis que uma ave de asas fulvas anuncia
o fim da guerra entre Lápitas e Centauros. Como vimos, a metamorfose em
pássaros apresenta uma miríade de possibilidades: aves de rapina, corujas
soturnas, próteses engenhosas humanamente edificadas, com seus voos rasos ou
elevados, sempre remetem a um afastamento da figura humana de seu peso e seus
grilhões. Por trás dessas asas permeia uma força incomensurável: nem
absolutamente boa, nem absolutamente má. Nas palavras de Ovídio:
Bóreas sacudiu as asas, que, com os batimentos, lançou o sopro sobre
a terra toda e fez o imenso mar estremecer. Arrastando o manto de pó
sobre os altos cumes dos montes, varre a terra e, coberto pela
obscuridade, apaixonado, abraçaria Oritia, tomada de pavor, com as
suas asas fulvas. Enquanto voa, as chamas atiçadas ardem com mais
força, e o raptor não travou com as rédias a corrida pelos ares, antes de
chegar ao território e às muralhas dos Cícones. Ali a rapariga da
região de Acte tornou-se esposa do gélido tirano, e também mãe; e
deu à luz a gêmeos, que tinham as asas do pai e o resto do corpo da
mãe. Diz-se, porém, que as asas não nasceram com o corpo. Enquanto
a barba lhes não despontava sob os cabelos ruivos, os meninos Cálias
e Zetes estiveram implumes. Em breve, duas asas começam a cingir
ambos os flancos à maneira dos pássaros, e ambos os queixos a
122
aloirar-se. E quando o tempo da meninice deu lugar ao da juventude,
partiram por um mar desconhecido na primeira das naus, com o
Mínias, em busca do velo radioso de pêlo fulgente.186
Proferido o discurso do filho sobre as metamorfoses dos homens que
viram coiotes, que viram pássaros, soam batidas afobadas na porta. É o carcereiro,
repetindo a cena, só que dessa vez mais aflito. Um dos juízes abre rapidamente a
porta da casa e lhe pede para entrar.
CARCEREIRO (entra afoito): Não é possível esperar mais. Agora
atiraram uma pedra na janela. Saio para pegar o desgraçado e nada. A
escuridão outra vez. (todos entreolharam-se) Mandem fazer o serviço
depressa, Excelências, acreditem em mim, eu já estou ficando doente.
MULHER (para a Filha): Traz o capuz.
(...)
A mulher do Verdugo volta do quarto. Veste calças compridas,
sapatos masculinos e capuz preto.
JUIZ JOVEM (para a Mulher): Deixa ver (examina-a)
JUIZ VELHO: Parece que está bem.
CARCEREIRO (para a Mulher): Esconda um pouco as mãos, dona.
São menores que as dele.
NOIVO: A senhora ficou bem mesmo.187
Isso não ocorre sem resistência. Ambos, o Verdugo e seu filho são
imobilizados e amarrados para impedir que interfiram na execução do homem. O
prelúdio da execução se dá entre gritos desesperados, soluços de corações feridos
e palavras de indignação. Sua mulher e sua filha não faze nada para protegê-los: o
que está feito, está feito, como algo necessário em prol de um bem maior: a
recompensa. Sempre a recompensa. As luzes se apagam e ambos são abandonados
ao relento. Enfim sós, eles conseguem desatar os nós e se preparam para sair da
moita. Não estão dispostos a aceitar a execução do rapaz. Se a mulher pretende se
fazer passar por verdugo, só o verdadeiro verdugo pode desmascarar a farsa que
os juízes confabularam com sua mulher. O primeiro ato se encerra com um anseio
186
OVÍDIO. “Metamorfoses”. Tradução: Paulo Farmhouse Alberto. Lisboa: Livros Cotovia, 2007.
P-169. 187
HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
Pp- 395/ 399.
123
de vingança, compartilhado entre pai e filho, que se precipitam para a praça onde
se daria a execução do homem.
– É um aparelho singular – disse o oficial ao explorador,
percorrendo com um olhar até certo ponto de admiração, o aparelho
que ele no entanto conhecia bem. O explorador parecia ter aceito só
por polidez o convite do comandante, que o havia exortado a assistir
à execução de um soldado por desobediência e insulto ao superior.
Pelo menos aqui no pequeno vale, profundo e arenoso, cercado de
encostas nuas por todos os lados, estavam presentes, além do oficial
maior e do explorador, apenas o condenado, uma pessoa de ar
estúpido, boca larga, cabelo e rosto em desalinho, e um soldado que
segurava a pesada corrente de onde partiam as correntes menores,
com as quais o condenado estava agrilhoado pelos pulsos e cotovelos
bem como pelo pescoço e que também se uniam umas às outras por
cadeias de ligação.
(Franz Kafka) 188
O segundo ato se inaugura no patíbulo de uma pequena praça. Uma
semiobscuridade pulveriza o lusco-fusco de um dia que ainda não amanhecera. As
dramaticidade das sombras acentua o ar sombrio que prenuncia a chegada hora da
execução. No fundo, sussurros, burburinhos, frases inaudíveis quebram o silêncio
mortífero que se instaura no centro da cena. Os juízes têm pressa e entram
tempestivos, seguidos da mulher-verdugo, devidamente encapuçada. A filha e o
noivo entram na sequência. Só então sobem ao palco o carcereiro e o misterioso
homem, com um capuz branco.
A luz do novo sistema penal, a execução em praça pública é descrita por
Michel Foucault como “a fornalha em que se acende a violência”. A praça pública
na peça é o lugar da execução. Por outro lado, o réu está encapuzado, enfatizando
uma justiça cega, que não vê o rosto do autor do crime, mas executa sua função de
acordo com as leis. Segundo Foucault:
O corpo e o sangue, velhos partidários do fausto punitivo, são
substituídos. Novo personagem entre em cena, mascarado. Terminada
uma tragédia, começa a comédia, com sombrias silhuetas, vozes sem
rosto, entidades impalpáveis. O aparato da justiça punitiva tem que
ater-se, agora, a esta nova realidade, realidade incorpórea.189
Como vimos, a cena apresenta características ambíguas, transicionais
entre um velho sistema decadente centrado na violência explícita, e um novo
188
KAFKA, F. “Na Colônia Penal”. Tradução: Modesto Carone. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1996. P-5. 189
FOUCAULT, M. “Vigiar e Punir – Nascimento da Prisão”. Tradução: Ligia M. Podé Vassalo.
Petrópolis: Vozes, 2ª Edição, 1983. P-21
124
sistema, que tem sua mira no conceito do indivíduo abstrato, cuja identidade
pouco importa: podia ser qualquer um.
Seis cidadãos se aproximam do patíbulo, mas mantém certa distância dos
demais, ocupando a região fronteiriça entre o palco e a plateia.
CIDADÃOS (superpondo frases):
Mas o que é isso?
Ainda é noite.
Nem tocaram os sinos.
Isso é proibido.
Safadeza.
É só depois de amanhã.
Ainda tinha tempo.
Cht! Cht!
Mas é noite.
JUIZ VELHO: Tenham calma.
Rumores continuam.
JUIZ JOVEM: Calma, meus amigos. Nós vamos explicar.
VOZ DE UM CIDADÃO: Mas é noite ainda.
CIDADÃO 1 PARA O 4: Manda tocar o sino.
CIDADÃO 2 PARA O 4: E chama o padre. Ele dá um jeito nisso.
CIDADÃO 3 PARA O 4: Avisa a minha gente.
CIDADÃO 4 (impaciente): Ah, eu não saio daqui. Eu quero ver.
FRASES DE SUPERPONDO:
Mas assim ninguém fica sabendo.
Quem não tá aqui é porque não quer ver.
Com esse barulho, todo mundo já sabe, mas ninguém quer vir.
Deu cagaço na turma.
FRASE BEM AUDÍVEL: E o padre?
FRASE BEM AUDÍVEL: Acho que ele foi até o vale. No asilo.
JUIZ JOVEM: Escutem, só um instante, só um instante.
125
CIDADÃO 5: Deixem a Excelência falar.
JUIZ VELHO: Silêncio, por favor.
Vão silenciando aos poucos. 190
As vozes se complementam, desempenhando uma função verossímil à dos
antigos coros do teatro clássico. Elas inauguram a cena com ruídos inaudíveis,
mas vão ganhando maior nitidez no decorrer da cena. São vozes que gritam e
ecoam sua indignação frente à traição do Estado, que se presta a executar o
homem na calada da noite, antes do raiar do dia, antecipando a data do suplício. O
alarde dura pouco, pois ninguém quer deixar a praça para despertar os demais
membros da vila. Eles são atravessados por um magnetismo que os mantém
paralisados no mesmo lugar, envoltos por curiosidade e preguiça. São vozes
fluidas, transitórias, que se dobram tal como o fluxo de um rio que se espraia nas
encostas rochosas.
He can only touch himself from the outside. In order to recapture the
whole sensation of the inside of a body, he will invent a world. But a
world’s circular horizon always conceals the inner movement of the
womb. The imposiction of disctinctions is the mourning which their
bodies always wear. One + one + one... separated out. And the
gathering of all into One will never amount to the living quality of a
resting place which always pouring out liquid, blurs boundaries.
(Luce Irigaray) 191
Se em um primeiro momento, as vozes se voltam contra os juízes, logo
mudam o alvo: a culpa passa a ser atribuída aos ausentes. Encarregam o cidadão 4
da incumbência de convocar os demais cidadãos da vila, chamar o padre e tocar o
sino, para que eles mesmos se eximam de todas e quaisquer responsabilidades. O
cidadão 4 tampouco deseja deixar a praça; afinal, ele não quer perder sequer um
190
HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
Pp- 406/ 407. 191 Ele só pode se tocar a partir do lado de fora. Para retomar a sensação do corpo em sua
plenitude, ele inventa um mundo. Mas o horizonte circular do mundo esconde o movimento
interno do útero. A imposição de dissociações é o luto que recobre os corpos. Um + um + um...
separados um do outro E a reunião de todos em Um nunca corresponde à qualidade vital de um
local aconchegante que se derrama líquido, borrando fronteiras. IRIGARAY, L. “Elemental
Passions”. Tradução franco-anglófona: Joanne Collie e Judith Still. Nova York: Routledge, 1992.
P-15.
126
instante do espetáculo que estaria prestes a ter início. Vem à baila uma sensação
de impotência compartilhada, que reduz os cidadãos a espectadores. A morte do
homem assume a aparência de um evento colossal, um espetáculo circense. Sua
dimensão política se dilui em entretenimento, como o dos gladiadores da Roma
antiga no centro do Coliseu. Porém ao homem não é fornecida a menor
possibilidade de defesa. Suas mãos estão atadas, seu rosto é coberto. O cidadão 4
responsabiliza os ausentes por não terem despertado com o barulho na praça. Seus
companheiros concordam e reforçam os brados contra a negligência daqueles que
supostamente preferiram dormir. No corredor semântico, os ausentes deslizam
rapidamente do lugar de vítimas frente à traição dos juízes para a cadeira de réu
dos apáticos. Mais do que isso: não passariam de covardes, por não enfrentarem
os próprios medos frente à execução do homem uma vez idolatrado.
Uma rubrica indica o tom enfático com que um dos cidadãos pergunta
pelo padre. Seria mera coincidência o fato de o padre ter se ausentado
precisamente no momento da execução do homem? Aqui subjaz uma crítica
bastante contundente contra a postura da Igreja em momentos em que esta poderia
cumprir um papel progressista. Onde estaria a Igreja quando o Estado cometeu
atrocidades inauditas ao longo da história, tais como as grandes guerras do século
XX, os golpes militares dentro e fora da América Latina e outros fatos tratados
pela autora em outras obras. Não é a primeira vez que a Igreja não se faz presente
nos momentos em que o povo mais precisa dela. Teria o padre se ausentado por
ignorar que a execução seria adiantada? Ou será que ele se distanciara
precisamente para se eximir da responsabilidade perante o povo? O texto insinua,
mas não afirma com todas as letras que se trata de um ato de negligência. Isso fica
a critério da plateia, mas a crítica desliza nas entrelinhas.
Finalmente, um dos cidadãos atende aos apelos dos juizes, que pedem
silêncio. Ao contrário das demais vozes até o presente momento, o cidadão 5
reconhece a autoridade dos magistrados, tal como indica o protocolo: trata-os por
“Excelências”. Pouco a pouco, cessam os ruídos e o silêncio toma conta do
ambiente sombrio. Mas não por muito tempo.
JUIZ JOVEM: Senhores... a lei precisa ser cumprida.
Frases dos cidadãos: “Mas o homem não fez nada” – “Ele só falava”
– “Você entendia?” – “Era só depois de amanhã”.
127
JUIZ VELHO: Esperem um pouco. Nós vamos explicar (rumores.
Silenciam) O verdugo não pode mais esperar té amanhã. Tem outros
serviços longe daqui. E tão importantes quanto este.
Frases dos cidadãos: “O outro que espere” – “A morte vem quando
tem de vir”.
JUIZ JOVEM: Mas a lei precisa ser cumprida.
CIDADÃO 1: Mas o que o homem fez?
CIDADÃO 5: Falem o que ele fez.
CIDADÃO 6: É, ninguém explica.
JUIZ VELHO: Ele já foi julgado.
CIDADÃO 5: Mas ninguém entendeu o que as Excelências disseram.
Foi uma fala enrolada.
Frases: “Nós queremos saber direito” – “Claro”. Rumores.
JUIZ JOVEM: O homem enganou vocês. Colocou vocês contra a lei.
Agitou.
CIDADÃO 5: É bom a gente se agitar um pouco. Desempena.
Risos. 192
A primeira tentativa de explicação do jovem juiz denuncia a primeira
hipocrisia relacionada à execução do homem, uma vez que sua realização se daria
pelas mãos de uma falsária, que se passa por verdugo, sorrateiramente na calada
da noite, dois dias antes, sem avisar a população da vila. As vozes aleatórias
questionam e apregoam a inocência do homem. Um deles quer saber se os outros
entendiam o que ele falava. As vozes não falam em uníssono, podendo divergir
entre si. A atenção desliza de um ponto para o outro, apresentando diferentes
abordagens, sintetizadas em frases curtas, embora expressivas, às vezes
acompanhadas de pontos de interrogação.
A suposta mentira do velho juiz sobre as outras tarefas do verdugo
apresenta uma meia-verdade, que só será revelada com o desfecho da história. De
fato, o verdugo não teria como esperar até o dia seguinte, pois sequer o veria raiar.
Sua execução já está prevista, logo após o último suspiro do homem misterioso.
Ele teria outros serviços longe da vila. A palavra “longe” pressupõe uma distância
que vai além do espaço, uma distância metafísica. Ele seria levado a uma outra
dimensão, para onde são levados os mortos, no mesmo patamar de importância do
192
HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
Pp- 408.
128
homem cuja sentença fora pronunciada. Porém os cidadãos interpretam a
explicação do velho juiz em seu sentido literal.
Mas o verdadeiro sentido histórico reconhece que nós vivemos sem
referências ou sem coordenadas originárias, em miríades de
acontecimentos perdidos. Ele tem também o poder de interverter a
relação entre o próximo e o longínquo tal como fora estabelecido pela
história tradicional em sua fidelidade à obediência metafísica. Esta
de fato se compraz em lançar um olhar para o longínquo, para as
alturas: as épocas mais nobres, as formas mais elevadas, , as ideias
mais abstratas, as individualidades mais puras.
(Michel Foucault) 193
A exigência de explicações por parte dos cidadãos da vila a princípio não
encontra resposta plausível. O velho juiz se atém a dizer que o homem já fora
julgado. O fato está consumado, portanto não se pode questioná-lo. A justiça
tratara de resolver o assunto. O assunto passara pela instância máxima
deliberativa. Pouco importa se o povo não entendeu o que os juízes disseram no
julgamento. Tanto melhor, já que o intuito era confundir, e falar em termos
técnicos para que o povo não tivesse condições de assimilar ou interferir no
processo. O outro juiz, mais perspicaz, responde mais objetivamente à pergunta
dos cidadãos, alegando que o homem teria enganado o povo ao persuadi-lo a
infringir à lei. Seus argumentos se assemelham aos editoriais da imprensa oficial,
que legitima arbitrariedades com argumentos racionalmente verificáveis. Bastaria
um olhar atento para indagar sobre o corredor semântico que atribui uma
conotação negativa ao ato de convencer o povo a infringir às leis. O povo não
estaria ciente dessa manobra, portanto não seria vontade do povo ir contra às leis.
Aí cabe perguntar se o povo teria consciência da ilegalidade de seus atos. Será que
o povo deseja mudar as leis? Caberia ao povo questionar as leis? Caberia ao povo
mudar as leis? O jovem juiz justifica a condenação do réu devido ao fato de ele ter
“agitado”, ou seja, insuflado a população contra o establishment. Pelo humor, a
autora evoca um questionamento reflexivo, brincando com a palavra “agitar”. O
cidadão 5 a emprega com mais leveza: “agitar” teria um sentido de dar
movimento, entreter, mudar o sentido ou a direção de uma força. O deboche é
explícito, todos riem.
193
FOUCAULT,M. “Microfísica do Poder”. Tradução: Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal,
1979. P-29.
129
O número 5 sobe no patíbulo. Entra o Verdugo, correndo.
VERDUGO (gritando): Parem! Parem!
A família e os juízes entreolham-se.
CIDADÃO 5: O verdugo.
Olham para o Verdugo e a mulher-verdugo.
CIDADÃO 1 (apontando a mulher-verdugo): Mas o verdugo está aí.
CIDADÃO 3 (apontando o Verdugo): Mas esse é que é o verdugo.
VERDUGO (para os cidadãos, apontando os juízes): Eles enganaram
vocês. É a minha mulher que está aí.
Silêncio.
CIDADÃO 6 (para a Mulher): Tira o capuz! Tira o capuz!
A Mulher tira o capuz.
CIDADÃOS: A mulher! É mesmo a Mulher! Sai daí de cima! Sai!
Os juízes fazem com que a Mulher fique. Rumores.
JUIZ JOVEM: Esperem, nós podemos explicar.
O verdugo fica no meio dos cidadãos, tentando convencer uns e
outros.
CIDADÃO 5: Mulher não pode ser verdugo. 194
O Verdugo chega correndo com o intuito de revelar ao povo uma
verdade. Como era de se esperar, a verdade vem à tona: está rasgado o invólucro.
Uma vez retirado o capuz, atendendo aos clamores dos cidadãos da vila, o
escândalo se desvela. Porém o povo não me parece tão injuriado pela traição
quanto ao fato de o lugar de verdugo ser ocupado por uma mulher. Que
atrevimento colocar uma mulher para exercer uma tarefa atribuída à virilidade e
ao poder masculino! A ira do povo não se volta contra os juízes traidores, mas
contra o atrevimento da mulher-verdugo. Quando os cidadãos gritam em uníssono
para que a mulher saia do patíbulo, reivindicam que ela se coloque em seu devido
lugar. Pelo travestimento, ela atravessa uma região fronteiriça, exacerba sua
própria medida: se ela não podia exercer o papel de verdugo enquanto mulher, ela
ainda poderia fazê-lo como homem. Porém no momento em que sua identidade é
194
HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
Pp- 409/ 410.
130
desvelada, tudo muda de figura: sua conduta seria ignominiosa frente aos cidadãos
em torno da praça, ou seja, todos homens.
JUIZ VELHO: Esperem, nós queremos ser honestos com vocês. (risos
mais audíveis) Escutem, se nós não cumprirmos a lei agora, amanhã
vocês é que serão mortos.
Frases: “Nós?” – “Mortos?” – “Por quê?”
(...)
CIDADÃO 5: Ninguém vai matar ninguém aqui. (frases dos
cidadãos: “Soltem o homem”. Aproximam-se mais do patíbulo. Para
os juízes) Soltem o homem!
JUIZ JOVEM (dando alguns passos à frente): Vocês serão todos
mortos. Mortos. (os cidadãos estaqueiam. Para outro juiz) Mostra o
papel.
Alguns cidadãos recuam.
CIDADÃO 5: Que papel?
JUIZ JOVEM: Mostra.
JUIZ VELHO (tirando um papel do bolso da toga): Nós vamos ler o
que só teria de ser lido em caso de extrema necessidade. (desdobra o
papel) Senhores, este é um documento dirigido a nós, os juízes.
(começa a ler) As autoridades esperam que o lúcido critério de Vossas
Excelências torne possível a execução do homem, dentro de um prazo
mínimo. Como é nosso dever proteger o povo, zelar por suas vidas...
CIDADÃO 5: Olha aí, eles não querem a nossa morte.
JUIZ JOVEM: Esperem, vamos continuar.
JUIZ VELHO: Como é nosso dever proteger o povo, zelar por suas
vidas, estender-lhe a mão...
CIDADÃO 1 (interrompe, apontando o próprio traseiro): Nessa
direção?
Risos prolongados.
JUIZ VELHO: Silêncio... (continua a ler) lutar contra toda a espécie
de ameaças, sejam elas sutis ou definidas...
CIDADÃO 1 (interrompe): Já começou a fala enrolada, o que quer
dizer... como é? Como é?
CIDADÃO 5: Sutil.
CIDADÃO 3: O que é isso?
JUIZ VELHO: Ameaça é perigo.
CIDADÃO 4: E sutil?
JUIZ JOVEM: Um perigo que é difícil explicar de onde vem.
131
JUIZ VELHO (aponta o homem): Esse homem é um perigo sutil.
CIDADÃO 4: Porque ninguém sabe de onde ele vem?
CIDADÃO 5: Ele vem de algum lugar e isso basta. De longe.
CIDADÃO 2: Longe é lugar nenhum.
CIDADÃO 5: Deixa pra lá, Excelência, continua.
JUIZ VELHO (continua a ler): ...aguardamos o cumprimento da nossa
vontade o mais breve possível. Não queremos ódios, nem
inquietações, queremos apenas, ajudados pelas mãos de Deus,
transformar a confusão dos homens em amor, em justiça. Se não
derem cumprimento à nossa vontade, a vila terá merecido castigo.
(levanta a cabeça) E o merecido castigo é a morte.
CIDADÃO 5: Isso não está escrito aí.
JUIZ VELHO: Mas eu sei o que eu digo.195
Quando caem as máscaras, e a farsa confabulada entre os juízes e a
mulher-verdugo é exposta em praça pública, o juiz velho se atreve a falar em
“honestidade”, o que suscita risos entre os cidadãos. Em seguida, uma ameaça:
caso a lei não fosse cumprida, seriam todos mortos. A princípio, um dos cidadãos
insiste para que soltassem o homem, com o respaldo de seus companheiros. Mas a
ameaça surte efeito, ainda que em diferentes níveis e tempos difusos: uma onda de
medo se alastra entre os cidadãos, que pouco a pouco recuam e querem saber
mais. O jovem juiz, que até o presente momento se mantivera em pleno controle
de si, se exalta, dá alguns passos para frente e repete a ameaça, como quem
pronuncia um veredicto. Então ele pede para que seu companheiro leia o
documento onde consta a ameaça.
O papel registra e legitima a ameaça dos juízes, com base em um estatuto
oficial. A população leva mais a sério o documento que as palavras dos juízes,
caídas em descrédito pela opinião pública. A carta que legitima a ameaça de morte
começa por afirmar o compromisso de proteção e zelo pelas vidas dos cidadãos.
Um dos cidadãos constata que é contraditório uma ameaça de morte, envolvendo
todos os cidadãos da vila, se basear na proteção e no zelo por suas vidas. O velho
juiz repete a frase, enfatizando a hipocrisia intrínseca, e a complementa, alegando
que é dever das autoridades estender as mãos aos cidadãos. Um dos cidadãos mais
afoitos o interrompe com ar de deboche: “nessa direção?” – e aponta para seu
195
HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
Pp- 411/ 413.
132
traseiro, aludindo ao esfíncter. Este lugar por onde saem os excrementos, por onde
tudo o que entra é interpretado como sujo e pecaminoso, um lugar proibido para
onde se mandam aqueles cuja tez se mancha de pecados vis, recobertos de nojo e
vergonha. Com isso, o cidadão pretendia insultar os juízes, pois sujas e
pecaminosas são as mãos da justiça, que introduzem nas cavidades do povo sua
ignominiosa sentença.
Eu ainda não tinha conseguido vê-la até o cu (esse nome, que eu
sempre empregava com Simone era para mim o mais belo entre os
nomes do sexo). (...) O horror e o desespero que exalavam aquelas
carnes, em parte repugnantes, em parte delicadas, recordam os
sentimentos...”
(Geoges Bataille) 196
O velho juiz continua a ler a carta, que assinala como objetivo o combate
a toda sorte de ameaças, tanto as sutis, como as definidas. Os cidadãos ignoram o
que significa “sutil”. Só o jovem juiz parece conhecer o seu significado: um
perigo vago, indeterminado, cuja origem não se conhece. O velho juiz, que se
desviara da pergunta endereçada a ele sobre o significado da palavra, então
exemplifica, apontando o misterioso homem como um “perigo sutil”. Se
seguíssemos à risca a definição do jovem juiz, haveríamos de concluir que seu
perigo é indeterminado, vago, cuja origem não se sabe ao certo. O grau de
abstração com que o texto fora escrito deixa margem para que qualquer um possa
ser identificado como um “perigo sutil”. De onde vem o perigo é algo difícil de
explicar, pois está para além do homem. É a força vital que o impele, uma força
que atravessa subjetividades, recoberta de uma aura sagrada, uma esperança que
inspira a transformação e a reafirmação da vida. Não é algo palpável, com a
origem em um ponto determinado. É como um espectro que paira no ar, e se
instaura no coração do homem. Indeterminável.
Bulbos de narciso em vez de globos
Rompiam das órbitas dos olhos! Sabia
Que o pensamento adere aos membros mortos,
Estreitando-lhe os luxos e luxúrias.
(...)
Conhecia toda a angústia da medula,
O surdo calafrio do esqueleto;
Nenhum toque carnal era capaz
De apaziguar-lhe a febre dos ossos.
196
BATAILLE, G. “História do olho”. Tradução: Eliane Robert Moraes. São Paulo: Cosac &
Naify, 2003.
133
(...)
E até mesmo as Entidades Abstratas
Cortejam seus encantos, mas o nosso
Destino rasteja entre costelas secas
Para manter acesa a nossa metafísica.
(T. S. Eliot) 197
O discurso se segue em chave abstrata, falando em nome de valores
nobres. Conta com a ajuda de Deus e se volta contra a inquietação e o ódio, no
intuito de ordenar a sociedade com base em amor e justiça. Caso a vontade das
autoridades não fosse atendida, a vila contaria com “merecido castigo”. O velho
juiz aproveita a indeterminação da sentença e acrescenta, de cabeça erguida, que o
“merecido castigo”seria a morte. Os cidadãos atentos percebem que isso foi uma
livre interpretação do juiz, que ainda de cabeça erguida, responde que sabe o que
está falando. Afinal, ele e seu companheiro de toga são os legítimos intérpretes
das leis. Os demais teriam que se calar, pois ainda que discordassem do veredicto,
não se atreveriam a contrariar valores tão estimados em nome dos quais a carta
fora redigida. São inúmeras as injustiças praticadas em nome da justiça, e dos
valores mais caros à humanidade. Em um jogo dos contrários, a ordem do
discurso inverte os sentidos, embaralha os significados, e transforma a mais cruel
das sentenças em uma prédica sedutora.
Um dos cidadãos coloca em relevo a palavra “amor”, presente na carta que
documenta a ameaça dirigida aos habitantes da vila. O misterioso homem também
falava em “amor”. Outro cidadão pondera: “Todo mundo fala em amor, mas
ninguém resolve o problema da gente”. Quem estaria mentindo em nome do amor:
o homem ou as autoridades? Estariam todos mentindo em nome do amor? Por
meio desse diálogo, Hilst retoma a pergunta: “mas afinal, o que é o amor?” A filha
do casal de verdugos toma a palavra:
FILHA (aflita): Mas amor é... (não sabe o que dizer mas lembra-se da
fala do juiz. Olha para o Juiz jovem) ... comedimento.
CIDADÃO 6: E o que é isso?
JUIZ JOVEM (adiantando-se): É não fazer coisas violentas.
CIDADÃO 5: E matar o homem não é uma coisa violenta?
FILHA: Mas o amor... tem dois jeitos de ser.
197
ELIOT, T. S. “Poesia”. Tradução: Ivan Junqueira. São Paulo: Arx, 2004. Pp-125 / 127.
134
CIDADÃO 3: Qual é o teu jeito, hein?
Risos.
FILHA (com raiva): A gente deve matar aqueles que nos confundem.
CIDADÃO 2: Todo mundo é confuso.
FILHA: Vocês entendiam o que ele falava?
CIDADÃO 5: Entendia, sim. Ele falava da alma.
FILHA: Mas o corpo é que interessa.
VERDUGO: O que ele falava... era verdade. Ainda que fosse para
daqui a muito tempo.
FILHA (para os cidadãos): E a barriga de vocês aguenta muito
tempo? (rumores. Olha para os juízes e, de repente, enquanto os
rumores continuam, ela parece descobrir a fórmula para vencer os
cidadãos) Olhem, (refere-se ao homem) ele queria é que a gente não
prestasse atenção no problema de agora. Falando pra daqui a muito
tempo, a gente pensa nesse tempo que importa.
Silêncio. Um certo rumor.
CIDADÃO 1: Como é? Como é que você disse?
Frases: “Você entendeu?” – “Deve ser assim”. Cochicham. Os juízes
se entreolham. A mulher do Verdugo está rígida, de olhar altivo
durante quase todo o tempo.
CIDADÃO 2: O homem era contra nós, então?
CIDADÃO 4: Falava do jeito que falava pra gente não pensar na
barriga de hoje?
(...)
FILHA (aponta para os cidadãos): Se a gente está morrendo, cheio
de dor mesmo, e vem o padre... isso (para o 5) te alivia?
CIDADÃO 5: O quê?
FILHA: O padre te alivia a dor?
Rumores.
CIDADÃO 5: Não... O padre não alivia a dor.
Rumores.
FILHA: E você não deixa de morrer porque o padre veio, deixa?
CIDADÃO 1: Se chegou a hora da gente, não.
Rumores.
FILHA: Mas enquanto o padre está por perto você pensa que está
aliviado, não é?
135
CIDADÃO 5: E daí?
FILHA (apontando o homem. Voz muito alta): Esse homem é como
um padre na hora da morte. Só isso.. Mais nada.
Silêncio completo. 198
A filha começa seu discurso insegura, sem saber ao certo o que dizer, mas
pouco a pouco, encontra a brecha por onde incidir na opinião pública, e vai
ganhando confiança para virar a mesa. O amor tem dois jeitos de ser: existe o
amor em verdade e aquele que confunde. Se amor é comedimento, no sentido da
não violência, matar um homem seria uma contradição – observa o cidadão 5.
Para a filha, seria preciso eliminar aqueles que nos confundem. O cidadão 2 faz
uma observação interessante, ao constatar que todos são confusos. A confusão não
é característica de um ou de outro, é um estado subjetivo que pode ser abordado a
partir de diferentes pontos de vista. Enquanto o misterioso homem fala da alma, a
filha parte da premissa do corpo. Assim Hilst ilustra a duplicidade de um amor
cindido, entre corpo e alma.
A verdade da alma é uma verdade perene, que não pode ser traduzida em
números ou prazos específicos sob a ótica da duração terrena. A filha desloca a
questão para a dimensão da materialidade, e toca em um ponto delicado, mas
crucial, que necessita de alimentos no tempo dos homens. Não é na cabeça ou no
coração, mas na barriga que se encontra a fórmula para virar contra o homem a
opinião pública. Quando desviamos nossa fome para a alma, as necessidades do
corpo não cessam de existir. As necessidades fisiológicas requerem respostas
terrenas, situadas no corpo. A fome do corpo está na ordem do dia, e não pode ser
saciada em um tempo distante. O homem confunde, pois desvia a atenção dos
problemas de hoje, e deposita todas as esperanças em um porvir longínquo. Em
nome desse porvir longínquo, abandona-se a dimensão corpórea.
Em Hambre del Alma, a antropóloga Carla Cristina Garcia lança luz sobre
a literatura de mulheres, como Emily Dickinson, Noira Ephron, Karen Blixen, e
Clarice Lispector, entre outras. Há escritoras cuja criação ativa apetites que
anseiam por alimentos para a alma: “o alimento se metamorfoseia no próprio
corpo, a palavra assume o poder do pão”. Hilda Hilst poderia facilmente se
198
HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
Pp- 414/ 416.
136
encaixar nessa categoria. Em alusão à “Festa de Babette”, de Karen Blixen, sob o
pseudônimo de Isak Dinesen, Garcia constata que há uma “incompatibilidade
entre os prazeres corporais que descuidavam de alimentar a alma e almas devotas
que precisam mortificar o corpo. Esferas incompatíveis quando vistas apenas no
plano da oposição...”199
É em nome de um porvir longínquo em um tempo perene que falam as
religiões. A crítica materialista tem em mira o augúrio de uma ascese divina. No
catolicismo, a carne é revestida de pecado: é preciso abdicar dessa carcaça suja
para chegar ao miolo sagrado por onde penetra o espírito. É uma outra fome
aquela que se inunda de esperanças sob o brio de uma promessa de salvação. O
ato de salvar a alma implica na redenção da carne. Mas a barriga continua vazia.
Chegada a hora da morte, a carne padece e se deteriora até perecer por completo.
O padre não pode saciar a fome dos corpos ou adiar o momento da morte. Ao
aproximar o delito perpetrado pelo homem misterioso do papel desempenhado
pelo padre, a morte os torna cúmplices de um crime inaudito. O crime de ludibriar
o povo, confundir as fomes, deixando a barriga vazia.
Os rumores dos cidadãos, indicados pelas rubricas, se assemelham a
burburinhos resultantes de um processo em curso. Pensamentos dissonantes
ativados pelas provocações da filha, compartilhados no seio do coletivo. Eles não
falam em uníssono, mas em polifonia. Algo que fervilha, borbulha, evapora,
modifica seu estado físico. Uma transformação está em curso, à medida que a
filha fora capaz de tocá-los com seus argumentos. A racionalidade materialista da
filha faz sentido para eles. Há uma identificação entre a verdade da filha e a
verdade dos cidadãos, que não desejam encontrar suas panelas vazias. Ela aponta
os limites ao que o homem representa e propõe uma inversão diametralmente
oposta: se ele não pode salvá-los terrenamente, ele passa a ocupar o lugar do
inimigo. Quando caem as asas de um anjo, ele é relegado a queimar nas chamas
do inferno, pois ele mesmo torna-se o capeta. Se cai a aura sagrada do Messias,
ele se converte em perdição. Sob a ótica dualista, não existe meio-termo. Por
outro lado, as duas premissas se imiscuem, pois se a verdade do espírito não enche
a barriga, tão pouco a comida no prato é capaz de saciar a fome da alma. Através
do exercício de uma retórica construída com base em uma lógica formal, a filha
199
GARCIA, C. C. “Hambre del Alma – Escritoras e o banquete das palavras”. São Paulo: Limiar,
2007. Pp-64 e 74.
137
alcança o êxito desejado pelos juízes, que consiste em tirar o homem de seu
pedestal e jogá-lo às chamas inflamadas da opinião pública. De sagrado, ele se
torna profano. Sua condenação se dá na mesma proporção de sua devoção.
CIDADÃO 5: Nós podemos deixar o homem fugir.
VERDUGO: Isso não tem sentido.
CIDADÃO 3: Não adianta... Ele foge... e nós ficamos?
JUIZ JOVEM: Vocês no lugar dele.
Silêncio prolongado.
VERDUGO (com determinação): Eu fico no lugar dele. Eu não me
importo.
CIDADÃO 5: O teu negócio é matar, não é morrer. 200
Os porta-vozes do Estado são enfáticos e reiteram que não hesitariam em
matar todos os habitantes da vila no lugar do homem. Seu intuito é vencê-los pelo
medo. A eficácia da força das armas que engatilham em nome do Estado consiste
em que sua simples menção pode surtir os efeitos desejados. Pelo medo da
coerção, a ordem é mantida. Seria preciso matar apenas um, para dar o exemplo
aos demais, e mostrar que se for preciso, haverá derramamento de sangue no
futuro. Sacrificam o líder para que os outros se desarticulem, e recuem, temendo
futuras represálias.
O verdugo é inexorável, oferecendo sua própria cabeça no lugar do tão
estimado homem. Ele está disposto ao martírio, a morte digna do herói, para
salvar a vida de seu líder. Seu grau de abnegação é tão profundo, que nada mais
importa. Ele está entregue de corpo e alma a uma causa, que adquire materialidade
na carne desse homem. O homem representa a transformação em amor, a salvação
da humanidade metamorfoseada em coiote. No limite, ele encarna uma promessa
de liberdade. Com humor, o cidadão faz questão de lembrá-lo que sua função
social consiste em matar, e não morrer. O estranhamento reflexivo imbricado
nessa frase satírica retoma algo sobre o personagem que não condiz com sua
postura imaculada: afinal, é um verdugo, não um santo. O sacrifício, portanto, não
lhe convém. Ambas, filha e esposa, também reprovam sua oferta, só que por outro
motivo.
200
HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
P-419.
138
MULHER (seca): Pensa em mim, homem.
VERDUGO (para a Mulher): Você está pensando no dinheiro. Não
em mim.
(pausa)
Frases se superpondo: “Qual dinheiro?” – “Ah, tem dinheiro no
negócio” – “Eu sabia, tava tudo muito complicado” – “Assim não”.
(...)
VERDUGO (olhando para a Filha): As Excelências me ofereceram
dinheiro se eu matasse o homem.
Todos olham para os juízes.
MULHER (seca, voz alta): Não foi assim.
CIDADÃO 3 (referindo-se à Mulher): Por isso ela resolveu fazer o
serviço.
Rumores.
JUIZ JOVEM: Silêncio, por favor. (pausa) Oferecemos sim.
Oferecemos dinheiro para salvar vocês.
CIDADÃO 3: E dar dinheiro para o verdugo nos salva?
CIDADÃO 5: Salva ele.
(...)
CIDADÃO 3: É muito dinheiro? Desembucha logo.
MULHER (olhando o Verdugo, que está desesperado): Doze... treze
milhões.
(...)
CIDADÃO 5: E vocês sabem se eles (aponta os juízes) vão dar o
dinheiro para nós?
Silêncio. Expectativa tensa.
JUIZ JOVEM: Damos o que for preciso.
JUIZ VELHO: Talvez um pouco mais... se é para tantos.
Cidadãos entreolham-se. Silenciam. 201
A revelação sobre a oferta dos juízes surtiu os efeitos contrários aos
anseios do verdugo. Pouco a pouco, a indignação dá lugar à ganância. Se o
dinheiro oferecido pelo serviço seria capaz de salvar o verdugo caso ele aceitasse
201
HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
Pp- 419/ 421.
139
a proposta dos juízes, estaria no dinheiro a salvação da vila. As expectativas da
população se voltam para questões materiais; afinal, é preciso encher a barriga.
Nem todos dedicam ao homem a mesma abnegação, a ponto de abrir mão da
própria vida para salvá-lo. A eficácia da persuasão por meio de uma oferta em
dinheiro é tentadora, em um mundo voltado para o consumo, em que o poder
aquisitivo assume uma importância cabalística. O dinheiro é capaz de resolver
muitos problemas, suprir necessidades, dar luz a novas necessidades, recriar a
vida em um amplo leque de opções. A esperança que o homem oferece é abstrata
e a longo prazo, já o dinheiro abre portas, desbrava caminhos imediatos, pode
mudar materialmente a vida das pessoas. A ascensão social não é um desejo
exclusivo da mesquinhez da mulher-verdugo e sua filha, mas de toda a vila, ainda
que em diferentes níveis. O ato de subornar é uma saída fácil para resolver
determinados impasses, e já havia funcionado com as duas personagens nessa
peça; funciona como freio de muitas greves e mobilizações ao longo da história do
Ocidente. O dinheiro se apresenta como panaceia para todos os males, nele se
inscreve uma promessa de salvação cujos efeitos são imediatos. A cabeça do
homem é trocada por uma nova ascese.
Como dizia Walter Benjamin202
, prestamos um culto ao Capitalismo e as
suas mercadorias, que reluzem junto ao vidro e o mármore das grandes galerias.
Expostas nos mostruários, as mercadorias seduzem, despertam desejos. Acredita-
se que, com a aquisição de um dado produto, é possível superar as adversidades
do cotidiano. Para Benjamin, a maquinaria, imbricada numa engrenagem de
paixões mecanicistas e cabalistas, fabrica um país das maravilhas, aniquilando
toda a ética e sensibilidade para com o outro. O fetiche da mercadoria inaugura os
seus templos, locais de peregrinação, como as exposições universais da Paris do
século XIX. O mundo é permeado por alegrias descartáveis, com prazo de
validade, que pede sempre mais e mais. A ascese do dinheiro desencadeia um
turbilhão de desejos infindáveis, e desperta os interesses mais mesquinhos.
A população negocia, e finalmente aceita a proposta dos juízes. Eles
haviam tentado de tudo: a substituição dos carrascos; a persuasão pelas ideias
racionalmente verificáveis, invertendo as variáveis; a ameaça pela força de um
202
BENJAMIN, Walter. “Paris: a capital do século XIX – Exposé de 1935”. In: “Passagens” Belo
Horizonte: Editora da UFMG, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.
Organização: Willi Bolle e Olgária C. F. Matos. P-41.
140
decreto e das armas; e finalmente o suborno coletivo, que sela o corolário do
impasse em torno do qual circula a trama, que remete à morte do homem e o que
ele representa para os personagens, em diferentes níveis. O dinheiro sela o
desfecho, como a cereja do bolo. Se até então, algum cidadão mantinha firmes
suas convicções, todos acabam por se deixar seduzir pela ascese monetária. O
único que não aceita se vender é o Verdugo.
O Verdugo protege o corpo do homem com seu próprio corpo. O
Carcereiro tenta empurrá-lo, mas é violentamente empurrado pelo
Verdugo.
CIDADÃO 3: Mas afinal esse homem é teu parente ou o que é? Você
prefere ele a nós. (rumores) Olha, nós vamos fazer uma comunidade
onde todo mundo vai entrar e melhorar de vida. Com esse dinheiro
que ofereceram, todos vão trabalhar e encher a barriga. Você também
não tem filhos? A moça (aponta a Filha) não vai casar com aquele
ali? (aponta o Noivo)
NOIVO: E eu estou sem emprego. Ajudava muito.
VERDUGO (voltando para o homem, emocionado): Fala, homem de
Deus, explica pra todos quem você é.
JUIZ VELHO: Ele não tem mais o direito de falar.
JUIZ JOVEM: Pela lei, ele já está morto.
CIDADÃO 3: E de qualquer jeito, ninguém vai entender o que ele
fala. (para o Verdugo) Anda logo com isso.
Expectativa. Silêncio.
HOMEM (lentamente): Eu não soube dizer. Eu não soube dizer como
devia. Eu não me fiz entender. Eu não me fiz entender. (para o
Verdugo) Faz o teu serviço.
Silêncio completo.
VERDUGO (para o homem): Eu não posso. Eu não posso.
CIDADÃO 5: Então sai daí. 203
No ápice de seu desespero, o verdugo usa seu próprio corpo como escudo
para blindar o homem de seu destino infeliz, que nessa altura do campeonato,
parece inevitável. Todos estão pela morte do homem. Até que o próprio homem
resolve se pronunciar, contrariando os juízes que não lhe outorgaram o direito à
palavra. Em poucas palavras proferidas lentamente, o homem reconhece que
fracassara. O espetáculo que se desenrolara frente a seus olhos de cavalo
203
HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
P- 424.
141
demonstra que ele não fora capaz de se fazer entender. Suas palavras não haviam
entrado no coração das pessoas, senão superficialmente. Se seus ideais estavam
perdidos, não fazia mais sentido relutar em viver. Sua vida não faria diferença a
partir daquele momento. Estava selado o veredicto. O Verdugo não precisa dar
sua vida por uma causa perdida. O homem exorta o verdugo a levar a cabo seu
serviço, mas o verdugo mantém firme sua recusa. Ele não quer aceitar que tudo
termine assim. O cidadão 5, que outrora defendera o homem com muito afinco, é
o primeiro a rechaçá-lo, exigindo que saia da frente. O poeta estadunidense T. S.
Eliot, já dizia:
E o fiz inconsciente, semiconsciente, ignoto, meu.
O verdugo da carcaça faz água, as fendas reclamam o calafate.
Esta forma, este rosto, esta vida
Vivendo por viver numa esfera de tempo que me excede. Que eu
possa
Renunciar à minha vida por esta vida, à minha fala pelo inexpresso,
O desperto, lábios abertos, a esperança, os novos barcos.204
O filho entra em cena, correndo, e tenta se aproximar de seu pai. Os
cidadãos da vila procuram impedi-lo, afinal, ele poderia colocar tudo a perder. Os
cidadãos têm pressa. Seguram-no com força. O Verdugo ensaia uma última
tentativa de convencer o povo da vila de que o homem é bom, e tem os olhos de
cavalo. Antes mesmo que ele conclua sua frase, os cidadãos interrompem-no e
põem-se a rir. Sua nobreza de espírito é interpretada como devaneio: só mesmo
um louco seria capaz de falar assim. Repetem-se os mesmos argumentos da cena
do diálogo entre o verdugo, a mulher e os filhos na mesa de jantar. Porém altera-
se a correlação de forças, e o impasse é levado até as últimas consequências.
Nesse momento, mãe e filha parecem voltar atrás. O estranhamento provocado
pela repetição da cena leva-as a uma compreensão mais profunda do papel ao qual
haviam se prestado, e seus desdobramentos. Tentam se aproximar do verdugo em
um ato de súbito desespero, mas são empurradas pelos cidadãos.
Os cidadãos aproximam-se perigosamente do patíbulo. Os juízes
descem. Nesse instante entram na praça os dois homens coiotes. Estão
vestidos da seguinte maneira: calça e camisa comuns, cabeça e rosto
de lobos, mãos para trás. Ficam de frente para o público, examinam o
público fixamente e depois voltam as cabeças em direção ao patíbulo.
Tem-se a impressão de que não foram vistos por nenhum dos
cidadãos, nem pelo juízes etc. Apenas o filho do Verdugo dá a
impressão não só de que os conhece, mas de que os esperava.
204
ELIOT, T.S. “Poesia”. Tradução: Ivan Junqueira.São Paulo: Arx, 2004. P-225.
142
VERDUGO (protegendo o homem com seu próprio corpo. Com
determinação): Ninguém chega perto
CIDADÃO 5: O homem tem de morrer. Vamos, vai andando. (entra
em luta com o Verdugo)
Os cidadãos atacam em conjunto, o Filho tenta escapar das mãos do
Carcereiro, mas não consegue. Frases: “Mata logo o homem” –
“Mata do nosso jeito”.
VOZ DO VERDUGO (com intensa comoção): Não. Não. Eu morro
mas...
Frase: “Então morre”. Começam a dar pauladas no homem e no
Verdugo. Cena de intensa violência. Frases soltas: “Dá uma no olho
de cavalo” – “Toma você também, seu porco”. Terminam a chacina.
Recuam vagarosamente. Silêncio esticado. Descem do patíbulo. Vê-se
o homem e o Verdugo lado a lado, mortos. 205
Ninguém é capaz de conter o furor inexorável com que os cidadãos se
dirigem contra o verdugo e seu protegido misterioso. Ambos são mortos pelas
mãos impiedosas dos cidadãos. Os seguidores do misterioso homem haviam se
convertido em seus assassinos. Sua vida é sacrificada por um bem comum, o mais
caro dos bens no sistema capitalista: o dinheiro. Não é preciso um tribunal para
que o verdugo tenha a mesma sorte que o réu condenado. A sentença já fora
pronunciada. Pelas leis, o homem já era considerado morto. Qualquer um que se
atrevesse a tentar impedir o seu remate, seria eliminado do mesmo modo, ainda
que se tratasse de toda a população da vila. Os juízes já haviam-no anunciado, está
tudo registrado em decreto. A morte do verdugo é legítima perante as leis e seus
intérpretes e se dá com o auxílio ativo dos cidadãos da vila. As lamúrias da
mulher e da filha do verdugo são tardias. O silêncio se instaura sobre as cinzas da
barbárie humana.
Como dizia Antonin Artaud, não somos senão sombras de nós mesmos,
que deixamos para um tempo fictício nosssas carcaças e cavernas do ser, para
buscarmos o maravilhoso que finca raízes no espírito. Precisamos despertar esse
espírito atordoado por um “Todo-Pensamento” imposto por decreto, que fixa a
vida tal como ela se apresenta, porém apartada, alheia à realidade de um íntimo
abandonado a valores frívolos, determinados de fora. Em vão cultuamos o
205
HILST, H. “O Verdugo” (1969). In: Hilda Hilst - Teatro Completo”. São Paulo: Globo, 2008.
Pp- 426/ 427.
143
Dinheiro, a Verdade, a Ordem, a Racionalidade, traçando um desvio com relação
a nós mesmos. Nos tornamos fantoches inanimados, manipulados por joguetes
sistêmicos que se comunicam por meio de signos inculcados no pensamento.
Segundo o autor:
Quem nos julga, não nasceu no espírito, neste espírito que nós
queremos viver e que existe para nós fora daquilo que chamais de
espírito. Não se deve atrair demais nossa atenção para as cadeias que
nos prendem à petrificante imbelicilidade do espírito. Nós pusemos a
mão sobre um animal novo. Os céus respondem à nossa atitude de
absurdo insensato. Estes hábitos que tendes de voltar as costas às
questões não impedirão, no dito dia, os céus de se abrirem, e uma
nova língua de se instalar em meio a vossos tratados imbecis,
queremos dizer, dos tratados imbecis do vosso pensamento.206
Solto das garras do Carcereiro, o filho observa atentamente o corpo do pai
antes de juntar-se aos homens-coiotes. A aparição dos homens-coiotes em cena é
algo curioso, a última alegoria absurda à qual Hilda Hilst recorrera para que o
texto se encerrasse em chave de esperança. Ela deu vida à alegoria da resistência,
por meio de homens com cara de coiote, que mantém firmemente a promessa de
um novo porvir. Ninguém mais é capaz de vê-los, como se fossem a materialidade
de uma ideia, um espectro de esperança que só é visível aos olhos dos sonhadores.
O destino do filho é incorporar-se à resistência e trabalhar atrás das moitas até
poder enfim mostrar sua cara de coiote, em seu para-si triunfal. Eles perderam
uma batalha, mas a luta continua. Antes que o palco se dissipe na escuridão, uma
luz violenta destaca as patas de lobo dos homens-coiotes, com suas garras afiadas,
sedentas de vingança. Seria o fim, ou o princípio de um novo começo?
El salto de ser que se realiza con el nuevo inicio no substituye el antes
com el después; em um nuevo incio, lo que ya estaba se afina del todo
y del todo se salva.
(Luisa Muraro)
206
ARTAUD, A. “Está na Mesa”. In: “Linguagem e Vida”. Tradução: Jacó Guinsburg. São Paulo:
Perspectiva, 2008. P-254.
144
Capítulo VI
DONZELAS GUERREIRAS
A saga do herói de “A Empresa / A Possessa – Estória de austeridade e
exceção” se inscreve na afirmação de uma Verdade, que se revela frágil e
relutante no decorrer na peça, enquanto em “O Verdugo”, a figura do herói é
substituída pelo protagonismo do carrasco, mas é também em função de uma
Verdade que o homem morre, em vão. Ninguém entendera a mensagem do
misterioso homem. Sua beatitude se dissipa com o fracasso de sua palavra. O tiro
sai pela culatra, e a tão esperada salvação se perde em um universo sombrio, que
cultua o dinheiro e não a liberdade. O dinheiro mesmo engendra uma promessa de
liberdade: a liberdade do consumo, que realiza e recria desejos. Também com
América a Verdade se ressignifica à luz de asceses que se invertem: a salvação
pelo amor em Cristo é substituída pelos dogmas da Ciência, um novo Deus.
Carne e espírito, profano e sagrado, materialidade e abstração, a vigília e a
fantasia. Os dualismos atravessam as duas peças, entre a fome do corpo e a fome
do espírito, aquilo que se pode comprovar cientificamente e aquilo que é da ordem
do sensível. Por exemplo, as figuras alegóricas com que o Verdugo tenta
descrever o misterioso homem – a árvore, o mar, os olhos de cavalo – são risíveis
aos olhos pragmáticos de sua esposa, sua filha e os juízes. Do mesmo modo, o
homem metamorfoseado em barata de Kafka e a ressurreição de Cristo são
ridicularizados pela Superintendente e suas postulantes por apresentarem
situações absurdas sob as lentes da ciência. As duas peças colocam em marcha um
questionamento em torno do logocentrismo e da soberba da Ciência, que despreza
todas as variáveis que não se encaixam na equação racional. O que é passível de
erro se descarta. Assim como no internato de freiras, onde América é recriminada
por questionar a Bíblia e os dogmas do Cristianismo. Os antagonismos de Ciência
versus Religião dão a tônica dos dualismos em América, e se reforçam quando os
vértices se invertem, mantendo intacto o pilar sobre o qual se sustenta a estrutura
hierárquica e excludente da sociedade. Mudam as premissas, mudam as pessoas,
mas o jogo de contrários continua em pleno vigor. Pois na base desse grande pilar
está a ideia de Verdade. Verdade entendida em sua acepção absoluta, uma
145
pretensão de explicar o mundo em sua totalidade por um único viés. Em “O
Verdugo”, é em nome de uma Verdade que a beatitude do homem é levada até as
últimas consequências: o martírio. A que servira o martírio do herói? Seria em
nome de uma Verdade que ele sacrificara a vida? Mas fora outra Verdade a
responsável pela sua morte. Uma Verdade que adquire força de lei, imprime sua
efígie no dinheiro e se arvora na retidão do cálculo racional. Tanto em “O
Verdugo”, quanto em “A Empresa”, Hilda Hilst faz questão de suscitar a
ambiguidade intrínseca à ideia de Verdade. Isso se ilustra bem com as perguntas
das postulantes, quando América narra as aventuras do revolucionário, que
exterminara seus oponentes. Também quando o coro muda de posição tão logo a
filha do verdugo revela a quantia em dinheiro que ofereceram pela morte do
misterioso homem. Que Verdade é esta que se coloca à venda? Que Verdade é
esta que parece se adequar tão perfeitamente ao novo paradigma, conservando
suas hierarquias, suas linguagens, suas estruturas de pensamento?
A Verdade da ciência cai por terra quando Eta e Dzeta, estruturas
imaginárias criadas na parábola de América, começam a falhar. Mesmo a ciência
é fadada ao erro. Eliminado o erro, com a morte da protagonista, a máquina
retoma o seu curso de normalidade. O triunfo da ciência só é consagrado com a
morte do espírito, após seu último suspiro. Diferente do misterioso homem que se
arrepende no final, o verdugo leva para a cova sua verdade, consagrando uma
Verdade tacanha, acolhida pelo povo. O julgamento do homem, antes rechaçado
pela população, é finalmente legitimado. Mas não por todos. A peça termina com
a fuga do filho do verdugo, que se refugia no vale junto aos homens-coiotes. A luz
sinistra sobre a pata do coiote suscita esperanças que se projetam para o futuro.
Qual esperança se inscreve na pata desse homem metamorfoseado em animal?
Seria uma nova inversão de paradigmas ou a subversão de uma ordem de
dominação?
A metamorfose aparece em Hilda Hilst como uma transição entre o
homem e o animal que habita o homem. A alegoria que corrompe a ordem normal
das coisas para ressaltar sentidos que estão além do humano. É algo que de fora
que está dentro, que é do homem, mas também é do lobo, uma dimensão selvagem
que nos empenhamos em adestrar, do espírito convulsivo que grita dentro de nós,
e que de fora, é silenciado. O homem transformado em pássaro que personaliza o
ar livre, como a cotovia de Bachelard, de cores discretas e tamanho ínfimo, que
146
se mistura com a paisagem, de maneira quase imperceptível. Sua aparente
invisibilidade camufla um canto que é também um voo. “Como uma nuvem de
fogo, ela dá asas à profundidade azul. Para a cotovia (...) a canção é voo e o voo é
canção, ela é uma flecha aguda que corre na esfera de prata”.207
Com suas cores e
formas indefinidas, ela encarna a metáfora literária, que desafia todas as metáforas
de cores e formas. Ela é uma “poesia pura”, indescritível, que transcende a
representação, sorvendo – ambos sujeito e objeto – em sua totalidade. A promessa
de salvação do misterioso homem ganha asas e alça voo, em uma abstração
radical, que remete a anseios imaginários, atravessa regiões fronteiriças e percorre
espaços infinitos, em divina leveza. Para Bachelard, “no reino de uma imaginação
criadora aérea, o corpo do pássaro é feito do ar que o cerca, e sua vida do
movimento que o arrebata.” 208
Ele não foge à realidade, mas a transcende,
fazendo das coisas que o cercam matéria-prima de criação. A libertação que o
misterioso homem propõe e ninguém entendeu é a possibilidade de abrir mão dos
fardos pesados que se abatem sobre o ser humano, e ganhar asas, como metáfora
de uma leveza, de uma transitoriedade que está além da gravidade, e de todas as
fronteiras que apartam e cindem a mente humana. O voo, real ou imaginário na
dimensão dúplice inerente à alegoria remete a uma possibilidade de criar em
movimento intermitente.
Hilda Hilst traz da poesia uma miríade de imagens, que se personificam
ou são aludidas em palavras, dotando-as de prodigalidade e de um teor explosivo,
que atravessa seu lirismo poético. As imagens dão vigor aos silêncios e gritos que
habitam os personagens, para além do curso ordinário de vidas que há muito
perderam seus sentidos. O Verdugo ressignifica sua vida, sensibilizado por
palavras novas, que só podem ser descritas através de imagens. A inversão entre o
paradigma da Verdade da ciência e a Verdade religiosa opera em América por
meio de imagens, como a parábola de Eta e Dzeta. É pelas imagens cambiantes
que Hilst realiza sua alquimia, transformando poesia em teatro.
Os cenários, não só nessas duas peças, como por toda a extensão de sua
obra, remetem a situações-limite. Tanto o corpo quanto o espírito são levados ao
insuportável, à beira de abismos fulminantes. Não há saída pela tangente, é
207
BACHELARD, G. “O Ar e os Sonhos – Ensaios sobre a imaginação do movimento”. Tradução:
Antônio de Pádua Danesi. 2ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2001. P-86 208
BACHELARD, G. “O Ar e os Sonhos – Ensaios sobre a imaginação do movimento”. Tradução:
Antônio de Pádua Danesi. 2ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2001. P-69.
147
preciso rasgar todas as roupagens e encarar de peito aberto o dilema que se coloca
entre os protagonistas e o mundo. A tônica apocalíptica acompanha todo o curso
de seu teatro, levando seus questionamentos até o limite. Nessas duas peças, a
saída é a morte, que sela o fim, ou o adormecimento, de um paradigma. Mas antes
da morte, vem o suplício. O árduo fardo que recai sobre o Verdugo em sua recusa
de matar o misterioso homem, as lamúrias de América, confinada em um quarto
escuro ao se deparar com o assombro da materialização de sua ideia. A política
de Hilst passa pelas entranhas de corpos colonizados, habitados por silêncios que
abafam um grito de desespero.
Os silêncios e os gritos que habitam o corpo dos personagens de Hilst são
os silêncios de seu tempo. Homens e mulheres silenciados, confinados nos porões
do DOI-CODI, dilacerados pela tortura, física e psicológica. Os silêncios
impostos pelos verdugos de seu tempo. A dor e o suplício dos que aspiram por
liberdade. Os silêncios de América, um continente sob estado de exceção,
ditaduras que calam o povo e perseguem as ervas as daninhas questionadoras para
fazer passar a sua Verdade. América é a mulher, colonizada pelos interditos que
impedem seu livre-pensamento e calam a sua voz. América sofre, tanto sob o peso
da cruz, como sob a soberba da ciência. Ela busca uma espiritualidade em leveza,
uma liberdade de invenção que comporta, mas vai além da ciência. Algo que se
assemelha às asas do pássaro, que alçam voo na amplidão.
América e a mulher-verdugo são sombras dissonantes da donzela
guerreira, que opera uma fusão entre animus e anima. Essa alquimia é descrita
pelo músico Luiz Fiaminghi, e levada ao palco pelo Grupo Anima.
Sendo a guerra um emblema do animus, do espírito masculino, no
qual a força e o ímpeto se sobrepõem à lógica e ao verbo – outros
atributos do animus – e, por outro lado, tendo as donzelas guerreiras
adotado Palas Atena como protótipo – cujo mito representa o tecer de
estratégias, o combate por justiça e o convencimento pela sabedoria,
que são, juntamente com o dom da predição, a intuição e o espírito
criativo, atributos também associados ao anima – as donzelas
guerreiras transitam obrigatoriamente entre esses dois polos. As
narrativas das donzelas guerreiras, que se metamorfosearam ao
longo do tempo e das culturas, transmitem, portanto, a essência desse
encontro.209
209
FIAMINGHI, L. “O encontro entre animus e anima”. In: Grupo Anima. “Donzela Guerreira”.
São Paulo: SESC, 2010. P-16.
148
Assim como a donzela guerreira, América e a mulher-verdugo
problematizam os polos apresentados como opostos e inconciliáveis. Ambas são
dotadas de uma dimensão heroica, bastante masculina, que nutre esse ímpeto de
transgredir os limites e o confinamento que lhe interpuseram. América bate de
frente com as irmãs como se estivesse em combate, defende com um escudo de
aço a Verdade da ciência: sua postura é, pois, dotada de um animus, algo que é
levado ao limite com o travestimento da mulher-verdugo. Para elas é preciso
recriar estratégias de empoderamento por um viés masculino. O poder é uma
palavra masculina por excelência. Mas por trás dessa couraça subsiste uma
mulher, que se realiza em sua anima. Essa luta consiste em libertar a mulher que
fora colonizada, enclausurada, relegada à esfera da privação.
Ao contrário da beatitude de América, que resiste pelo silêncio, a mulher-
verdugo encontra transcendência pela ação. Vestir o capuz do carrasco para ela é
um ato criador, mas seu livre voo é como o de uma ave de rapina, que persegue
sua presa em nome de seus desejos. Com suas pequenas mãos de carrasco, ela
encontra um sentido para sua vida, e abandona o seu silêncio. Na primeira cena,
ela está a servir seu marido e o filho com um prato de sopa, em um lar ordinário,
situado em um lugar qualquer, reproduzindo tristemente a repetição cíclica da
vida. Seu filho a considera ignorante, mas ela encontra no capuz do verdugo o
espaço para dar o seu grito. Pois ela é o “homem” com uma tarefa, tal como o
herói, disposta a sacrificar o amor de seu marido, que, por sinal, parecia-lhe
indiferente, e sua vidinha sem sentido, para realizar sua obra. O dinheiro, em
nome do qual ela arquiteta seu plano engenhoso, parece menor que a paixão que a
move, uma avidez por sair do lugar que lhe fora relegado. O dinheiro tem
relevância à medida que ele abre caminho para mudar sua vida.
Mudança, transitoriedade, metamorfose, hibridez e movimento são
palavras que dançam à beira dos abismos, e precisam ganhar asas para vencer as
vertigens que nos habitam. Com sua escrita, Hilda Hilst realiza um deslocamento
de perspectivas, problematiza as premissas existentes para criar algo novo. O
movimento que faz transbordar a medida imposta de fora, desafia a métrica que
comumente aceitamos sem pensar, a qual sacia a fome, mas evoca novos apetites.
É um movimento de amor, o amor que figura nos livros de América como uma
bola de fogo, e reaparece em “O Verdugo” como elemento transformador. O fogo
mesmo é transformador. É por ele que opera a alquimia. É o fogo que mantém a
149
vida acesa, pois a gigantesca bola de fogo à qual se refere América é o sol. É
preciso ter cuidado, ele dá, mas também pode tirar a vida, ao derreter a cera que
prende asas ao corpo de Ícaro. Mas também é o sol que o fascina. Fascinante, mas
inapreensível. Como dizia Luce Irigaray:
Above all, do not swallow the Sun. Do not digest the sun. Do not
forget that, if it is inside you, it is also outside you. And that the
impossibility of our relationship arises from the imprisoning of the sun
inside a world. It can no longer flow everywhere. Irradiate everything
with light and heat. Eating the sun means reflecting its benefaction
back to it. In the end it will go out if it is never returned to itself.210
O sol precisa brilhar na amplidão. É impossível retê-lo. Porém se algum
dia alguém conseguisse o engolir, seu brilho seria ofuscado, e jamais completaria
sua elipse. Assim como o sol, o amor só existe quando compartilhado. Por que
retê-lo? Aprisionar o amor é tão estúpido quanto o ato de engolir o sol. Não se
pode apreender o inapreensível. É preciso abrir mão, e aceitar de bom grado o seu
brilho, e se deixar irradiar por seus raios. O mesmo raio que em todos brilha. Nem
mais, nem menos. O amor ao qual Hilda Hilst se refere, seja pelas reflexões de
América, seja pelo amor que maravilhara o verdugo, tem a ver com uma
concepção de amor descrita por Luisa Muraro: “una concepción del amor livre y
nómada, una concepción del ser que desconoce su contingéncia, em uma práctica
de lectura de los textos que se opone a su porosidad...” 211
Ele não se fixa em
algum ponto, mas se movimenta pelos mapas afetivos e cognitivos. O amor se
desdobra em diversos sentidos, permeáveis e móveis tal como ele mesmo, feito de
sentidos antigos, que se metamorfoseiam e inspiram novas criações.
Muraro narra o episódio mítico do nascimento de Eros (amor). Estavam os
deuses a celebrar com um farto banquete o nascimento de Afrodite, que nascera
em meio às espumas do mar. Eis que chega uma intrusa, uma mortal que atende
210
“Acima de tudo, não engula o sol. Não digira o sol. Não se esqueça que , mesmo dentro de
você, ele também está fora. E que a impossibilidade da nossa relação se remete ao aprisionamento
do sol dentro de um mundo. Ele não pode mais fluir por toda a parte. Irradiar tudo com luz e calor.
Comer o sol significa refletir seus benefícios nele mesmo. No limite, é como se eles jamais
retornassem a ele.” Tradução livre. IRIGARAY, L. “Elemental Passions”. Tradução franco-
anglófona: Joanne Collie e Judith Still. Nova York: Routledge, 1992. P-43 211
“Esta é a empresa própria do amor, sua acrobacia, porque assim há lugar para o outro passa a
ter lugar, não de intruso nem de complemento, não parte nem extra, não amo nem servo, não
absoluto nem relativo, não objeto de fé nem objeto de vontade. Ocorre, simplesmente, que há algo
outro e o reconheça, ainda que dele não saiba nada mais, porque em ti se revela como ação de um
centro de gravidade transposto para fora de ti: é como perder o equilíbrio e descobrir outro,
vertiginoso modo de se apoiar. ” MURARO, L. “El Dios de las Mujeres”. Tradução italiano-
espanhol: María-Milagros Rivera Garretas. Madrí: horas y HORAS, 2006. P-170.
150
pelo nome de Carestia ou Miséria (do grego penia), e pede aos deuses algo para
comer. Fitou de soslaio a Poros, que se encontrava estirado no jardim, embriagado
de néctar divino, e resolve se aproveitar de seu estado para fazer um filho dele.
Muraro conclui que o amor, nascido da privação e da carência, desloca o centro da
gravidade para o outro, que está fora de si. É um equilíbrio difícil, que requer
malabarismos mirabolantes para que aceitemos a impossibilidade de a pessoa
realizar plenamente em um fora de si também dotado de desejos e anseios, que
não se encaixam milimetricamente. Nas palavras de Muraro:
Esta es la empresa propia del amor, su acrobacia, porque entonces hay
sitio para lo otro y lo otro tiene lugar, no de intruso ni de
complemento, no parte ni extra, no amo ni siervo, no absoluto ni
relativo, no objeto de fe ni objeto de voluntad. Sucede, simplemente,
que hay algo outro y lo sabes, aunque no sepas nada más, porque em ti
se muestra como acción de um centro de gravedad que se ha puesto
fuera de ti: es como perder al equilibrio y descobrir otro, vestiginoso
modo de sostenerse. 212
Em um equilíbrio instável, a mulher tece suas próprias parábolas, inverte o
jogo, muda de perspectiva, se desloca, grita, se cala. O teatro de Hilda Hilst não
absolutiza a mulher, mas antes enfatiza as vozes que a atravessam, desvela seu
íntimo, cria imagens para comunicar o incomunicável. Pois toda a palavra é
imprecisa quando se quer colocar em termos aquilo que é inerente ao sensitivo.
São palavras que dançam à beira do abismo e só podem se comunicar pela
ativação dos sentidos pelos quais apreendemos o mundo. A força da imagem, a
vacuidade trepidante do silêncio, o timbre agudo do grito e o sabor do néctar, que
escorre pelas entranhas e exala almíscar em tudo o que Hilda Hilst escreve.
Ao desafiar as leis da gravidade
Uma força me impele para longe do teu olhar réptil
Um grito de liberdade acalenta meu coração,
quando seus rastros se desmancham na distância
Longe do teu frio, num flanar de asas sobre o oceano
Um crepúsculo de mar e de nuvens movimenta
lentamente o respiro do universo
Uma coisa só, uma força incomensurável
Olho pela janela da minha liberdade-passarinho
Afrouxam-se os laços que me aprisionam, cala-se o interdito
Não poder amar de novo, não poder me lançar por inteiro
num precipício de sonho e de nuvens
Mal posso ouvir o pesar dos seus passos
Perdem-se no tempo e no espaço, labirinto soturno
Um raio se apaga, fraqueja a lembrança
No calcanhar uma leveza
212
MURARO, L. “El Dios de las Mujeres”. Tradução italiano-espanhol: María-Milagros Rivera
Garretas. Madrí: horas y HORAS, 2006. P-
151
Coração aberto em meu voar-borboleta
Você fica pequeno, a ideia de você:
Um pontinho incandescente no escuro,
prestes a se apagar nos primeiros raios de sol
(Marina Costin Fuser)
152
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