PSICOLOGIA JURÍDICA: UMA DISCIPLINA AINDA POR FAZER
Jorge Trindade
RESUMO
O presente artigo propõe-se a mostrar que a psicologia jurídica, mesmo gozando de maior popularidade nos últimos anos, continua a ser uma disciplina ainda por fazer. De nascimento experimental, a psicologia, inclusive a jurídica, tem resistido ao discurso jurídico, enquanto o direito, preso a uma hegemonia epistemológica, tem dificuldades em aceitá-la, fazendo apenas concessão para uma disciplina auxiliar. Assim, a psicologia jurídica restringiu-se à psicologia para o direito, permanecendo longe de qualquer interferência no processo dos fundamentos do direito, ou seja, da psicologia do direito, bem como afastada das questões psicológicas que intrinsecamente compõem o mundo normativo, ou seja, da psicologia no direito. Palavras-chave: psicologia jurídica, psicologia do direito, psicologia no direito e psicologia para o direito.
ABSTRACT
This article proposes to show that legal psychology, even enjoying a greater popularity in the last years, is still a subject that to be constructed. Born as an experimental science, psychology, including legal psychology, has resisted to legal speech due to the fact that the law, tied to an epistemologic hegemony, has been having difficulties to accept it, considering it as a secondary subject. As a result, legal psychology has been restricted to a psychology “to” the law, remaining distant of any interference in the fundamental reasons of law; i. e., from the psychology “of” the law, as well as of the psychological questions that internally compose the normative world, a psychology “in” the law.
Key words: legal psychology, psychology “of” the law, psychology “in” the law and psychology “to” the law.
DO DIREITO À PSICOLOGIA E DA PSICOLOGIA AO DIREITO
Escrevemos alhures (Trindade, 2000), na esteira de Muñoz Sabaté (1980),
que a psicologia jurídica é uma disciplina ainda por construir.
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De um lado, porque a impermeabilidade dos juristas, muitas vezes
dissociados do método científico, opera produções essencialmente de compilação,
permanecendo em um nível basicamente discursivo sobre os fenômenos humanos.
De outro, a recenticidade da psicologia experimental e científica. De fato, se
o direito radica historicamente em Roma e se consubstancia no “Corpus Juris
Civilis”, a psicologia, enquanto ciência, é filha do século XX, embora seja possível
desfraldar conteúdos psicológicos em Aristóteles e até mesmo nos pré-socráticos,
como nos fragmentos de Heráclito, para não referir a própria Bíblia. É que a
psicologia arqueologicamente vem mesclada com a filosofia e com a religião e,
nesse sentido, remonta à antiguidade como influência antecedente, uma vez que a
psicologia não nasceu científica.
Realmente, a psicologia tem um longo passado, mas uma curta história.
Nesse sentido é muito jovem e também possui muitos rostos. Como ciência, o
primeiro laboratório de psicologia experimental foi criado em 1879, por Wundt, na
Universidade de Leipzig, destinado à investigação experimental fisiológica dos
fenômenos da consciência. Ademais, é uma disciplina que fala muitas línguas, não
raro instaurando uma verdadeira torre de babel entre suas escolas e dissidências,
linhas e marcos referenciais teóricos, onde poucos se entendem. A ruptura
epistemológica realizada por Freud, com a descoberta do inconsciente, ocorreu com
a publicação de A interpretação dos sonhos, em 1900.
Não obstante, é fácil constatar que o direito e a psicologia possuem um
destino comum, pois ambos tratam do comportamento humano. Fraseando Sobral
Fernández, em excepcional obra conjunta com Arce e Prieto (1994), “a psicologia e
o direito parecem dois mundos condenados a entender-se. A psicologia vive
obcecada pela compreensão das chaves do comportamento humano, enquanto o
direito é o conjunto de regras que buscam regular esse comportamento,
prescrevendo condutas, modos de comportamento, de acordo com os quais se deve
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plasmar o contrato social em que se sustenta a vida em sociedade” (idem, 1994, p.
15).
A relação entre psicologia e justiça parece ser verdadeiramente uma questão
de justiça (Martins da Agra, 1986). Psicologia e direito necessariamente hão de
relacionar-se porque tratam da conduta humana. O comportamento humano não é
nada mais do que um objeto de estudo, sendo consabido que um mesmo objeto pode
ser apropriado por vários saberes simultaneamente, em diferentes perspectivas, sem
com isso esgotar-se epistemologicamente. Diversas leituras e diversas ciências
podem compartir o mesmo objeto material imediato, porque, do ponto de vista
finalístico, todos os saberes são obrigatoriamente convergentes na pessoa humana,
pois o fim último de toda ciência é diminuir o sofrimento humano. Como asseverou
Japiassu (1991, p. 177), “os processos de especialização e de diferenciação das
ciências humanas são fontes geradoras de distâncias e de ignorâncias recíprocas
entre os especialistas: eles engendram o esmigalhamento das disciplinas pela
compartimentalização das faculdades universitárias, pela criação de uma hierarquia
rígida e pela manutenção de uma prudência metodológica que freia a pesquisa das
interações entre as disciplinas”.
O mundo moderno necessita superar o âmbito das disciplinas e do fazer
separado responsável pelas abordagens reducionistas, tanto do ser humano, como da
vida e do mundo. A crise da ciência é uma crise pós-disciplinar. Um saber
individualizado e disciplinário já não possui vez num mundo marcado pela
complexidade e pela globalização. O tempo da solidão epistemológica das
disciplinas isoladas, cada qual no seu mundo e dedicada ao seu objeto próprio,
pertence, senão a um passado consciente, pelo menos a um tempo que deve
urgentemente ser reformado em nome da própria sobrevivência da ciência. Nesse
sentido, a teoria do direito deve atender à premência do processo de integração dos
conhecimentos sociais, pois a crise do pensamento jurídico contemporâneo está
perpassada pela crença de que o direito é uma ciência autônoma e independente, que
pode desprezar as conexões com os demais ramos do saber e que o jurista é um
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técnico da subsunção do fato concreto esterilizado à esterilidade da norma abstrata.
A tendência tradicional dos juristas de fugir do encontro marcado com a metodologia
científica e de tratar as ciências humanas através de uma abordagem secundarizada,
geralmente remetida à história do próprio direito, tem instaurado uma fetichização do
jurídico e levado a um desprezo dos demais saberes não normatizantes. Esse
afastamento do direito das demais ciências humanas, entretanto, fez o feitiço virar
contra o feiticeiro, pois o jurista tem permanecido alijado dos embates científicos
atuais e vem sendo pouco considerado quanto a sua própria ciência e arte, remetidas
às técnicas de controle social, cuja real significância decorre apenas do poder
concreto sobre o social e a sociedade, que flui no caminho do novo e da
transformação, a qual não raro se opõe em nome da segurança jurídica.
A ciência do direito parece haver se embretado em um getho aporético-
epistemológico responsável por uma certa paralisia do pensamento jurídico. A saída
desse labirinto aponta a integração do direito ao patrimônio das modernas ciências
como via de acesso capaz de superar o caminho da auto-justificação a que conduz a
ideologia da separação.
Não obstante tantos indicadores para a convergência entre direito e psicologia
no sentido da construção de uma área no espaço de tangência interdisciplinária, há
aqueles que continuam a firmar a impossibilidade da formulação psicojurídica,
alegando que direito e psicologia pertencem a mundos muitos diferentes: a
psicologia ao mundo do ser, o direito ao mundo do dever-ser; a psicologia assentada
na relação de causalidade, o direito no princípio da finalidade. Essa linha de
pensamento, por vezes referenciada à distinção entre as ciências naturais, as
exociências, e as ciências do espírito, as endociências, esquecem que o homem, na
realidade, é cidadão de dois mundos, que ele pertence simultaneamente ao ser e ao
dever-ser.
Na realidade, a pobreza das relações interdisciplinares constitui o grande
problema das ciências humanas. Nesse particular, também a psicologia tem
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claudicado de forma persistente na medida em que não tem calado onde é incapaz de
falar ou, pelo menos, não tem calado quando ainda incapaz de falar. De outro lado,
tem fraquejado quando não apresenta a necessária profundidade e consistência
filosóficas, sucumbindo ao universo da cultura, do pensamento e particularmente do
pensamento crítico.
A psicologia igualmente tem vivido apegada aos seus dogmas fundamentais
em nome da mesma segurança com a qual se escuda o direito e feito ouvidos moucos
às contribuições de outras disciplinas humanas. Como natural conseqüência, não tem
recebido bons tratos das ciências biológicas, nomeadamente das ciências médicas,
pois as relações de vizinhança com a psiquiatria, com a psiquiatria forense, com a
psicopatologia e até mesmo com a psicanálise, imbricam uma questão de poder cujas
raízes profundas se entrelaçam num terreno pantanoso de propriedades, apropriações
e expropriações, que em nada tem contribuído para o progresso da ciência global.
A humildade e a modéstia epistemológicas têm sido noção faltante não só na
ciência jurídica. Também a psicologia, na sua adolescência científica, por vezes tem
se ressentido da sabedoria da história.
Tampouco essa interdisciplinariedade que se reclama para a ciência moderna
pode ser encerrada numa mera justaposição de pontos de vista. Também nesse
aspecto o todo transcende a soma das partes. Por isso, a noção de
transdisciplinariedade tem sido evocada na perspectiva de uma melhor compreensão
desse novo modo de agir da ciência, inscrita num modelo da complexidade.
Se, na concepção clássica, o mundo da objetividade era o mundo da ciência, e
o mundo da subjetividade era o mundo da reflexão e da filosofia, domínios que,
legitimados separadamente, se auto-excluíam, a contemporaneidade promoveu uma
convergência na medida em que restituiu o sujeito à ciência e a ciência ao sujeito,
rumo a um paradigma da complexidade. Essa nova tendência veio questionar o
observador e seu locus fora do sistema, incluindo-o na descriptio, assim como
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propôs o abandono dos modelos de deficit e promoveu a emergência de perspectivas
multidimensionais, dinâmicas, abertas, compartidas, complexas e plurais. Do ponto
de vista epistemológico, pode-se dizer que a ciência contemporânea é forçosamente
plural.
Como mostram Pena-Veja e Stroh (1999, p.181), “a antologia do
pensamento complexo está alojada no interior da nossa contemporaneidade, por
uma diversificação do campo de saber cujos matizes e particularidades estão
enraizadas na criatividade de Bateson, A. Simon, H. Maturana, I. Prigogine, H.
Barel, E. Morin. Um denominador liga estas personalidades fora do comum: a
vontade de recusar as soluções rápidas e simplistas, de buscar a união da Epistéme
com o Logos, de tentar, por meio de incursões em disciplinas circunstancialmente
afastadas, a reconstrução de um paradigma que possa juntar diferentes ciências que
tenham incidências interdisciplinares”.
Nesse contexto, é preciso estar disposto a interligar conhecimentos e fazer
conexões. Não esquecer que a ciência da pós-modernidade se produz mais por
ligações do que por isolamentos. Nenhuma ciência sobreviverá, nem a jurídica nem a
psicológica, enquanto saber fechado, nutrido pelo mito da autonomia. Se as ciências
jurídicas estão cientes de que a norma é um conjunto de palavras em busca de
sentido, as disciplinas psicológicas precisam se dar conta de que o sentido passa e
perpassa pelo que é sentido. A ciência de hoje é mais plural e mais afeta à
complexidade. Em outras palavras, é menos autônoma, menos auto-suficiente, mais
humilde e democrática, menos disciplinária e mais transdisciplinar.
DA PSICOLOGIA E DO DIREITO À PSICOLOGIA JURÍDICA
Nesse contraditório contexto, onde a ciência jurídica historicamente se
apresenta numa situação epistemologicamente hegemônica, Clemente (1998) mostra
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como psicologia jurídica só existe a partir da dura realidade, limitando-se, ao lado de
outras ciências, a uma condição de disciplina auxiliar do direito.
Para ele (idem, p.25), a psicologia jurídica “é o estudo do comportamento das
pessoas e dos grupos enquanto têm a necessidade de desenvolver-se dentro de
ambientes regulados juridicamente, assim como da evolução dessas
regulamentações jurídicas ou leis enquanto os grupos sociais se desenvolvem
neles”.
Já Muñoz Sabaté (1980), alertando para o perigo das classificações,
estabelece três grandes caminhos para o método psicojurídicico, a saber:
1. a psicologia do direito, cujo escopo seria explicar a essência
jurídica, a fundamentação psicológica do direito, uma vez que todo o
direito está prenhe de conteúdos psicológicos. Essa tarefa de investigação
psicológica do direito recebeu a denominação de psicologismo jurídico e
apresenta-se eminentemente teórica até o momento, além de não
suficientemente investigada.
2. a psicologia no direito, que estudaria a estrutura das normas
jurídicas enquanto estímulos vetores das condutas humanas. As normas
jurídicas destinam-se a produzir ou evitar determinadas condutas e nesse
mister são portadoras de inúmeros conceitos de natureza psicológica.
Nesse aspecto, a psicologia no direito é uma disciplina aplicada e prática.
3. a psicologia para o direito, esta sim a psicologia como ciência
auxiliar do direito, tal como a medicina legal, a engenharia legal, a
economia e a contabilidade, e a antropologia, dentre outras. É a
psicologia convocada a iluminar os fins do direito.
Para o mesmo autor (idem, 1980), numa outra perspectiva, os conhecimentos
que a psicologia jurídica é capaz de aportar ao mundo jurídico, podem ser exercidos de
duas maneiras: uma, na forma de assessoramento legislativo, contribuindo na elaboração
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de leis mais adequadas à sociedade, e, a outra, na tarefa de assessoria judicial, colaborando
na organização do sistema de administração da justiça.
Ainda que alguns autores identifiquem a psicologia jurídica com a psicologia
judicial, forense ou legal (Muñoz Sabaté, 1980; Garzón, 1990), na trajetória da psicologia
e do direito foi historicamente relevante diferenciar essas duas modalidades de atuação. A
psicologia jurídica, tratando dos fundamentos psicológicos da justiça, enquanto a
psicologia judicial apareceu como o estudo dos processos psicológicos da prática do
direito. A psicologia jurídica teria a ver com os fundamentos psicológicos do direito. Já a
psicologia judicial seria a aplicação da psicologia à prática profissional do jurista e foi
inaugurada com a psicologia criminal.
A propósito, Garzón (idem) mostra os aspectos diferenciais que definiram a
psicologia jurídica e a psicologia judicial ou forense.
É importante salientar que tanto a psicologia jurídica como a psicologia judicial,
embora com uma origem histórica distinta, são realmente inseparáveis. Ademais, hoje em
dia parece não haver mais razão para essa distinção terminológica. Mesmo assim, cumpre
referir que no universo do direito tem sido mais freqüente a utilização do termo psicologia
jurídica, enquanto a expressão psicologia judicial tem sido mais comum no âmbito dos
psicólogos (ibidem, 1990, p. 24).
Por outro lado, parece haver chegado o momento de arrancar a psicologia do estatuto
restritivo de ciência meramente auxiliar do direito e constituí-la num ramo do pensamento
e da aplicação do direito. Isso exige uma tomada de consciência epistêmica que obriga a
criação de um verdadeiro espaço de interlocução, de transdisciplinariedade, que não é nem
metapsicológico nem metajurídico, mas a um só tempo psicojurídico. Como refere
Martins da Agra (1986, p. 311), “antes de sabermos como é que a justiça se pode tornar
sábia pelo recurso à psicologia, temos de pensar como é que o saber psicológico se
epistemologiza numa racionalidade de saber fazer justiça”.
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Nesse espectro, tomamos de Clemente (1998) a possibilidade de falar em várias
psicologias jurídicas consoante a função da organização jurídica que abordam, podendo,
assim, sem maior preocupação metodológica, ser referidas as inserções que na atualidade
parecem as mais importantes:
1. Psicologia judicial
2. Psicologia penitenciária
3. Psicologia criminal
4. Psicologia civil geral e de família
5. Psicologia laboral e administrativa
6. Psicologia do testemunho
7. Psicologia do menor, da infância e juventude
8. Psicologia das decisões judiciais
9. Psicologia policial
10. Vitimologia
Foi nesse âmbito que Mira y Lopez (2000) definiu a psicologia jurídica “como a
psicologia aplicada ao melhor exercício do Direito”, o que significa considerar outras
possibilidades, dentre as quais se podem incluir, por sua contemporaneidade, estudos
acerca da dinâmica psicossocial das decisões judiciais, dos direitos especiais dos target
groups, sobre os efeitos do labeling approach na esfera dos atos jurídicos ou da justiça
terapêutica.
A PSICOLOGIA DO DIREITO
Pode parecer um tanto estranho tratar especificamente do problema da psicologia do
direito. Esse tema tem sido conscientemente evitado tanto por psicólogos quanto por
juristas. Pelos psicólogos, sob a argumentação de que a psicologia do direito constitui uma
mera teorização acerca do direito (Muñoz Sabaté, 1980), e, como tal, escapa de uma
verdadeira psicologia aplicada ao jurídico, sendo rechaçada de plano porquanto fora da
proposta metodológica da psicologia científica de cunho taxativamente experimental.
Pelos juristas, porque histórica e tradicionalmente a questão dos fundamentos do direito
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sempre mereceu uma reflexão contributiva da filosofia, nomeadamente da filosofia do
direito. A verdade é que a psicologia do direito nunca foi bem recebida (Muñoz Sabaté,
1980) pela tradição jurídica, aliás como também não o foi a própria sociologia jurídica.
Nesse campo, a filosofia sempre foi mais pretensiosa, porquanto, possuindo um objeto que
parece ilimitado, coloca-se como uma espécie de ciência universal, situada acima de todas
as ciências. O filósofo inclina-se para o universal (Villey, 1977).
Somente uma disciplina arquitetônica, que se preocupa em discernir as estruturas
fundamentais do universo, poderia estar autorizada a trazer ao direito esse complemento
indispensável à discussão de seus fins e de seus fundamentos (idem, 1977). Ela
desempenha um papel de pastor da multidão das ciências, apta a colocar cada uma em seu
lugar, a regulamentar entre elas os conflitos das fronteiras, a distinguir entre suas fontes de
respectivos conhecimentos, a assinalar-lhes os limites (ibidem). Em contrapartida, a
psicologia do direito apresenta os perigos do utilitarismo destituído de fins, os riscos do
determinismo sobre as decisões judiciais e sobre os fins mesmos da justiça, pois a ciência
não tem competência sobre o dever-ser. Em outras palavras, as respostas fundamentais
acerca dos fins da ciência não é a ciência que pode dar.
Combatida pelos juristas e desacolhida pelos psicólogos, a psicologia do direito teve
vôos fugidios, logo abatidos pela especificidade dos fins do direito, como se ela não
possuísse nenhuma qualidade ou atributo capaz de cooperar na missão de fazer o direito
alcançar a justiça. Sua tarefa não tem a profundidade nem a extensão da filosofia do
direito, mas juntamente com a sociologia do direito poderia somar esforços no sentido de
encontrar a justiça, pelo menos uma justiça mais humana.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: A PSICOLOGIA PARA O DIREITO COMO PSICOLOGIA JURÍDICA DAS POSSIBILIDADES ATUAIS
A psicologia jurídica é a psicologia que ajuda o direito a atingir seus fins. A
psicologia jurídica é ciência auxiliar do direito e não aquela que o questiona, nem aquela
capaz de o interrogar. Poder-se-ía dizer que sua função não é esfíngica. Por isso, a
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psicologia jurídica, a psicologia para o direito, tem se mantido afastada da questão dos
fundamentos e da essência do direito. A verdade é que a psicologia jurídica não está
autorizada a pensar o direito, ou não é apropriada para esse fim. Ela deve ater-se à norma e
tão somente à norma, descabendo-lhe qualquer exame sobre “se” a norma é justa ou
injusta.
Sendo assim, a psicologia jurídica tem se mantido fundamentalmente como uma
psicologia para o direito, pois o direito só pelo direito pode ser pensado. Dessa forma, o
problema da justiça parece estar confiado à filosofia do direito, que é do direito,
compreendendo-se, quanto muito, a própria psicologia do direito como uma vertente, de
menor significância é verdade, da mesma filosofia do direito, representada basicamente
pela escola do psicologismo jurídico, o realismo americano e escandinavo.
Nesse contexto, a psicologia para o direito passou a ser denominada simplesmente
psicologia jurídica. Ela, de longe, não é toda a psicologia jurídica, nem, por certo, a fatia
mais nobre da reflexão psicojurídica. Entretanto, no momento e no estágio atual de seu
desenvolvimento, a psicologia para o direito é a única psicologia jurídica possível. Nessa
dimensão bem restrita, propõe um apanhado amplo das principais áreas de informação
psicológica ou das mais utilizáveis da psicologia no sentido único de auxiliar o direito a
atingir os seus fins, apresentando esses conteúdos, por isso mesmo, sem uma preocupação
metodológica maior.
Entretanto, a psicologia jurídica, mesmo assim considerada, não é apenas uma
simples justaposição da psicologia com o direito. Assim como duas figuras pretas não
fazem uma branca, a psicologia jurídica não é a soma de dois ramos diferentes do
conhecimento unidos por um objeto comum, mas um espaço complexo, um produto da
transdisciplinariedade. Mais que uma nova disciplina é um território. Um território novo
onde quase tudo está por ser explorado ainda.
Das idéias trazidas até aqui resultam muitas controvérsias, mas parece inquestionável
a necessidade de algumas convergências, sem as quais não se poderá vislumbrar, num
futuro próximo, a possibilidade da psicologia jurídica cumprir seus mais importantes
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papéis no mundo jurídico: vir a ser, também, uma psicologia jurídica no direito e,
sobretudo, do direito, sem dúvida as suas duas contribuições mais nobres, capazes de, em
última instância, fazer a psicologia participar das questões dos fundamentos do direito,
sem o que ele mesmo corre o risco de sérias críticas em sua própria legitimação. Não
parece necessário, mesmo no espaço de uma reflexão crítica mais adequado à psicologia
para o direito, recorrer a argumentos ad terrorem, mas é razoável e conseqüente considerar
que o desconhecimento da psicologia, nomeadamente da psicologia jurídica, insere-se
entre as causas do erro judicial.
Como asseverou Laborinho Lúcio, citado por Sani (2002, p.15), “para se chegar à
Justiça, precisa-se do direito e da psicologia” (...). Bem mais do que isso, “a psicologia
até pode ser exterior ao direito, mas não é exterior à Justiça” (idem, 2002).
Mesmo se admitindo que a psicologia nada tivesse a oferecer para o direito, ainda
assim, muito teria a contribuir para a Justiça. A psicologia, de um modo geral, pode
permitir ao homem conhecer melhor o mundo, os outros e a si próprio (Nosche te ipsum).
A psicologia jurídica, em particular, pode auxiliar a compreender o hommo juridicus, e a
melhorá-lo, mas também pode ajudar a compreender as leis e as suas conflitualidades,
principalmente as instituições jurídicas, e melhorá-las. Afinal de contas, a história do
homem e de suas instituições constitui um caminhar para o infinito, “locus” noumênico
onde a metáfora autoriza o encontro com a verdade e com a justiça.
Assim sendo, a aproximação do direito e da psicologia, bem como a criação de um
território transdisciplinar, como resultado de convergências-divergências capazes de
instaurar um novo estatuto epistemológico, configura uma verdadeira questão essencial de
Justiça.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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