1. 1 Psicoterapias: elementos para uma reflexo filosfica(1)
Carlos Roberto Drawin (2) 1. Este texto resumo de um trabalho mais
amplo um conjunto de notas que serviu como base para as exposies
feitas em dois eventos: o III Psicologia nas Gerais: Cincia,
Profisso, Compromisso Social e Valorizao do Trabalho do Psiclogo e
o VIII Congresso da Federao Latino-Americana de Psicoterapia. Como
o argumento longo e foi muito resumido, alguns de seus nexos podem
ter ficado obscuros. Fica, apesar de tudo, como uma provocao para a
discusso. 2. Psiclogo. Professor do Curso de especializao em Teoria
Psicanaltica e do Departamento de Filosofia da UFMG. Podemos tomar
como ponto de partida da nossa reflexo a Resoluo CFP n 10/00, de 20
de dezembro de 2000. Nela, aps as consideraes que justificam a
resoluo, o artigo primeiro estabelece que A psicoterapia prtica do
psiclogo, por se constituir, tcnica e conceitualmente, um processo
cientfico de compreenso, anlise e interveno que se realiza atravs
da aplicao sistematizada e controlada de mtodos e tcnicas
psicolgicas reconhecidos pela cincia, pela prtica e pela tica
profissional, promovendo a sade mental e
2. 2 propiciando condies para o enfrentamento de conflitos e/ou
transtornos psquicos de indivduos ou grupos. (3) 3. A exposio que
se segue est baseada em extensa bibliografia. No entanto,
eliminamos todas as referncias bibliogrficas e quase todas as notas
explicativas com a finalidade de tornar este texto que no tem
objetivo acadmico uma leitura mais leve. Apesar disso, reconhecemos
que as referncias filosficas podem dificultar a compreenso por
parte daqueles que tm menos conhecimento de histria da filosofia.
Estes podem, porm, se ater apenas aos pontos essenciais da
argumentao. uma boa definio se considerarmos a finalidade maior dos
conselhos profissionais, que consiste em legislar com o intuito de
orientar tanto a comunidade quanto os profissionais que devem
servi-la com excelncia tcnica e responsabilidade tica. No entanto,
sob a aparente serenidade da definio e do consenso, as questes so
complexas, as dvidas, cruciantes e as discordncias fervilham.
Basta-nos uma breve rememorao da histria das ideias psicolgicas
para constatarmos que a associao entre psicologia e cincia
altamente problemtica. Afinal de contas, o que Cincia? Ela se
confunde com a imagem popular do cientista e com a sua autoridade
difusa? Ou um gnero de conhecimento cujos contornos os epistemlogos
se esforam em demarcar? E o que Psicologia? um domnio bem
3. 3 estabelecido de fenmenos a ser estudados, de mtodos a ser
seguidos e de teorias a ser refutadas ou aceitas provisoriamente?
Ou um campo heterclito de todas essas coisas? E qual seria a
inter-relao entre esses dois termos, cincia e psicologia? So
questes intrincadas e de difcil elucidao e este pequeno texto no
tem o objetivo de adentrar em terreno to espinhoso, mas apenas
assinalar a imensa complexidade subjacente s definies aparentemente
claras e quase consensuais. Por outro lado, a reflexo no deve
recuar diante das dificuldades, pois, ainda que precria, talvez ela
seja capaz de suscitar a discusso necessria acerca de uma rea de
atuao profissional de imensa difuso e inegvel relevncia social.
Vamos ento fazer uma brevssima rememorao filosfica sobre a ideia de
psicologia. A palavra rememorao no fortuita e nem significa um
registro histrico irrelevante para a discusso contempornea. O
esquecimento do passado um sintoma social, a outra face da
hipertrofia do presente, e ambos so modos de subjetivao prprios de
um mundo unidimensional, centrado na satisfao real ou virtual dos
indivduos e avesso a todo distanciamento crtico. A rememorao
simultaneamente distanciamento e apropriao do tempo pelo sujeito
humano, uma operao atravs da qual a vida potenciada, a morte
4. 4 existencialmente apropriada e o presente relativizado. 1.
Breve percurso histrico 1.1. A Razo Clssica: podemos considerar a
expresso razo clssica num sentido bem amplo. No a referindo apenas
ao perodo estritamente clssico do pensamento grego poca exemplar
representada por Scrates, Plato e Aristteles , mas abrangendo toda
a concepo pr-moderna de razo. Para caracterizar a concepo clssica
de razo podemos diferenciar, apenas com um objetivo didtico, dois
termos que podem ser considerados como sinnimos: paradigma e
modelo. Vamos definir paradigma como um modelo de extenso mais
ampla dentro do qual podemos identificar diversos modelos mais
restritos. Assim, a razo clssica pode ser definida, de modo muito
esquemtico, segundo um paradigma metafsico e um modelo, ou um modo
de pensar (Denkform), de tipo cosmocntrico.(4) 4. Essa exposio
histrica obviamente superficial, mas tem como objetivo defender
algumas teses sobre o significado filosfico das psicoterapias.
Caracterizamos o paradigma metafsico por meio da seguinte proposio
: a razo tem um alcance ontolgico, isto , h uma identidade ou
homologia entre o ser e o pensar e h uma inteligibilidade intrnseca
da realidade, do ser (noets) que
5. 5 corresponde inteligncia espiritual do ser humano (nos),
que, enquanto tal, capaz de aprend-la. A inteligncia acolhe a
experincia humana em toda sua riqueza e procura transcrev-la em
diferentes nveis discursivos. Caracterizamos o modelo cosmocntrico
por meio da seguinte proposio: a inteligibilidade consiste na ordem
da totalidade das coisas, que o cosmos, o que implica, portanto,
que h uma correspondncia entre o homem e o cosmos no qual ele est
inserido. H diversas formulaes dessa correspondncia: o homem como
um microcosmos (Demcrito), a co- pertinncia (syngneia) entre a alma
e as formas (Plato), a vida contemplativa possibilitada pela notica
aristotlica, o axioma helenstico do seguimento da natureza enquanto
ordem racional, etc. Ora, o advento do Cristianismo introduziu uma
forte tenso estrutural nessa concepo da razo clssica. Em sntese,
pode-se dizer que a doutrina da criao do mundo a partir do nada
(ex-nihilo) implica o abandono da ideia de que o cosmos a fonte
ltima de inteligibilidade. Ou seja, implica o abandono do modo de
pensar cosmocntrico. A questo fundamental do pensamento cristo ser,
ento, a seguinte: possvel desvincular o paradigma metafsico do
modelo cosmocntrico ou possvel reconstruir o paradigma metafsico a
partir de um outro modo de pensar? Essa questo atravessa e
6. 6 polariza todo o pensamento medieval, e em seu solo se
enraza o que ir se tornar a frondosa rvore da modernidade. O que
nos interessa nessas breves e esquemticas consideraes sobre a razo
clssica? Em primeiro lugar, a ideia de que h uma correspondncia
entre a inteligncia e o inteligvel, porque a realidade no estranha
demanda humana por sentido. Uma vez que a inteligibilidade inclui a
inquietao existencial e a exigncia moral, ento a demanda por
sentido no uma iluso, mas brota do exerccio mesmo da razo. Por
isso, seja na concepo platnica da convergncia constitutiva e ideal
da alma e do mundo, seja na concepo bblica do homem como imagem de
Deus (imago Dei), a inteligibilidade, do cosmos em si mesmo ou
proveniente do ato criador de Deus, inclui necessariamente uma
dimenso tica. Isso significa que h quase que uma interpenetrao
entre a ontologia, a antropologia e a tica. Mesmo na orientao mais
naturalista da antropologia aristotlica ou na orientao materialista
da antropologia epicurista, a pergunta pela essncia do humano
(eidos) no pode estar dissociada da pergunta pelo fim do humano
(telos). Vamos formular as coisas do seguinte modo: as aporias do
saber antropolgico tanto na teoria aristotlica da alma como forma
do corpo, quanto na teoria epicurista da alma como agregado de
tomos sutis
7. 7 so de alguma forma ultrapassadas no domnio da sabedoria
prtica. Ou seja, embora possamos falar de uma psicologia ou de uma
antropologia enquanto cincia ou enquanto saber, este saber est
intimamente vinculado sabedoria. Por isso, podemos dizer que o sbio
ou o homem prudente (phrnimos) o verdadeiro psiclogo do mundo
antigo, assim como o mestre espiritual o que orienta o
discernimento entre a carne (srx) e o esprito (pneuma) na
intimidade do corao humano (karda) o verdadeiro psiclogo do mundo
cristo e medieval. Em segundo lugar a dificuldade em conciliar a
teologia crist com o modo de pensar cosmocntrico acabou levando
sobretudo aps a condenao por parte da Igreja, em 1277, das
tentativas mais ousadas de conciliao a uma profunda transformao do
paradigma metafsico. Podemos formular o problema de fundo do
seguinte modo: se a inteligibilidade provm de Deus e o homem,
enquanto imagem de Deus (imago Dei), o nico ser intramundano
vocacionado para a transcendncia, ento apenas do homem espiritual
aberto a Deus e tocado por sua Graa que pode provir a verdade e
somente nessa abertura interior a salvao pode ser realizada. Esta a
profunda intuio agostiniana: no se deve buscar a salvao nas coisas
exteriores, mas antes permanecer em si mesmo, pois na interioridade
do homem que habita
8. 8 a verdade (Noli foras ire, in teipsum redi, in interiori
homine habitat veritas). Esta proposio agostiniana, que inspirar
todo o pensamento cristo posterior, significa que no podemos nem
nos identificar com a ordem csmica em relao qual Deus absolutamente
transcendente e nem nela encontrar uma sada tica. Nessa
perspectiva, a face negativa de nossa vocao para a transcendncia o
pecado, aquilo que Kant posteriormente designou como o mal radical
(das radikale Bse). Nossa cura, portanto, s pode provir de nossa
interioridade, da converso ao mais profundo de ns mesmos, que a
maior transcendncia na mais ntima interioridade (interior intimo
meo et superior summo meo). Essa concepo agostiniana a da valorizao
da interioridade como radicalmente diferente de todas as coisas vai
levar revoluo cartesiana da filosofia e racionalidade moderna.
Queremos enfatizar que a psicoterapia com seus diferentes
objetivos, mtodos e tcnicas concebida enquanto cuidado da alma que
vincula o homem ao cosmos ou a Deus, pode ser considerada como uma
cincia apenas porque na razo clssica no se pode desvincular cincia
de moralidade e de sabedoria. A psicoterapia racional porque a razo
sapiencial. 1.2. A razo moderna: podemos compreender, ento, a
partir da orientao agostiniana para a interioridade, o profundo
significado tico e existencial da filosofia cartesiana (5) . A
mente que
9. 9 se exprime na primeira pessoa como um eu inteiramente
diferente de todas as outras coisas, pois todas as outras coisas se
colocam diante do eu que as percebe, sente e pensa. Elas esto
postas diante de mim e so, portanto, ob-jetos, enquanto eu estou e
sou numa posio de sujeito. Ns devemos nos curar de uma ateno
polarizada para fora, para o mundo dos sentidos e, por isso,
devemos nos submeter ao mtodo da razo pura, ao mtodo desta mathesis
universalis que se pode vislumbrar nas cincias da natureza. Na
Segunda Meditao, no experimento mental do pedao de cera podemos
acompanhar a inteno radical deste procedimento: 5. Tomamos aqui a
filosofia de Ren Descartes (1596-1650) como referncia exemplar para
o diagnstico de alguns impasses da razo moderna. Mas, na lgica
esquemtica de nossa exposio, tais impasses no se restringem ao
pensamento cartesiano. os corpos no so conhecidos pelos sentidos ou
pela faculdade de imaginao, mas apenas pela compreenso, e... no so
conhecidos pelo fato de serem vistos ou tocados, mas apenas por
serem concebidos pelo pensamento. Assim, a inteligibilidade no
provm da estrutura ontolgica do cosmos inteligvel como em
Plato,
10. 10 nem da forma inteligvel presente nas substncias, como em
Aristteles, mas provm do cogito, da inteligncia humana, que, se
submetendo ascese do mtodo, apreende a verdade em sua
interioridade. No entanto, a verdade s pode ser apreendida pelo
sujeito pensante, pela res cogitans, porque o acesso ao real nos
assegurado por Deus, pela Res Infinita. Essa a funo essencial do
chamado argumento ontolgico: assegurar a passagem da certeza do
sujeito verdade do real pela superao da diferena entre o
conhecimento (ordo cognoscendi) e a realidade (ordo essendi).
Temos, ento, um novo modo de pensar no interior do paradigma
metafsico, o modelo ontoantropolgico, que pode ser designado, em
contraposio metafsica do ser, como metafsica do sujeito. Aqui
aparece a clebre objeo do crculo cartesiano, mas, deixando de lado
este problema estrutural da filosofia cartesiana, ns gostaramos de
enfatizar algumas dificuldades que decorrem desse modo de pensar e
que interessam ao tema que estamos abordando. Em primeiro lugar
coloca-se a questo acerca da verdade da realidade. A realidade
verdadeira no pode ser aquela apreendida pela experincia sensvel,
pois esta s pode ser fonte de erro e iluso. No mundo vazio da dvida
metdica a realidade verdadeira s pode ser aquela reconstruda pela
razo e que satisfaa as exigncias da compreenso racional e esta a
realidade geometrizada dos
11. 11 objetos cientficos, a res extensa. O mundo
matematicamente reconstrudo deve ser efetivado pela atividade da
inteligncia tcnica e produtiva (poitica), pois a natureza
objetivada da fsica- matemtica indiferente ao ser humano e s se
humaniza quando por ele submetida e plasmada. Esta radical
objetivao do mundo, a incluindo o corpo humano, enquanto objeto da
anatomia e da fisiologia, significa que o homem, na ausncia de uma
ordem prvia exigncia crtica da racionalidade moderna (cogito), deve
construir uma ordem e, por isso, a Medicina e a Mecnica so os
frutos maduros do sistema cartesiano. Apesar disso, essa ordem na
qual o homem pode encontrar o sentido de sua vida no pode ser
produzida pela ambio desmedida, pela hybris humana, mas deve se
submeter ascese da razo e a uma tica da autodeterminao racional. Em
segundo lugar coloca-se a questo acerca da instncia normativa que
orienta a construo da ordem humana do mundo. Se o homem encontra o
sentido de sua vida numa ordem reconstruda por ele por meio de uma
razo assegurada por Deus, pois Deus o fundamento do mtodo, ento a
sua realizao moral de algum modo projetada no futuro. A Mecnica e a
Medicina esto racionalmente ordenadas, mas como estabelecer uma
tica tambm racionalmente ordenada? Ou seja, se o mtodo matemtico
(more geomtrico) possibilita a
12. 12 ordenao cientfica do mundo exatamente porque o mundo
reconstrudo como uma estrita objetividade, como ele poderia
possibilitar tambm a orientao tica da ao humana fundada na
liberdade e na histria? Ora, a imensa dificuldade deste problema
leva Descartes proposio, na terceira parte do Discurso do Mtodo, da
chamada moral provisria (morale par provision). Esta, na
impossibilidade de se construir uma tica no espao conceptual do
modelo matemtico e mecanicista do mundo, torna-se uma tica de
contedo convencional, de respeito aos costumes e tradies. Apesar da
pretenso cartesiana de alcanar uma tica estritamente racional, ela
permanece provisria, isto , como uma proviso de sabedoria prtica
que nos ajuda na travessia de nossa existncia. Teramos, portanto,
dois domnios na racionalidade moderna: - O campo cientfico: que o
domnio emprico, caracterizado pela rigorosa objetivao proporcionada
pela racionalidade matemtica e separado da experincia antropolgica
concreta, isto , a experincia histrica e existencial. - O campo
filosfico: que o domnio metafsico que visa fundamentao da cincia no
eu penso, no cogito cartesiano. Este uma subjetividade pura que
possui um estatuto transcendental, ou seja, no
13. 13 se confunde com a experincia dos sujeitos concretos
mergulhados no mundo e na vida. Essas consideraes filosficas tm
como objetivo delinear o seguinte problema: a psicologia parece no
ter um lugar no sistema de saber construdo pela razo moderna. Ela
no se inclui na esfera da alma, que o domnio metafsico da
subjetividade pura e no se identifica com a esfera do corpo, que o
domnio cientifico da objetividade anatmica e fisiolgica. A histria
da Psicologia um imenso esforo de escapar a este dilema. No
possvel, no entanto, examinar aqui os xitos e fracassos das
alternativas tericas que foram propostas. O que queremos ressaltar
que a Psicologia ao menos em sua dimenso clnica parece fora de
lugar, carente de um espao racional legtimo. Ao voltar-se para o
sujeito concreto, na trama de suas vivncias e nas dobras obscuras
de seus afetos, a Psicologia clnica, comprometida com o cuidado,
com a cura do ser humano, encontra-se exilada do logos, da razo em
sua concepo moderna. Isso no significa que ela se perde no inefvel
das vivncias, mas que o discurso que a expressa e estrutura no pode
ser o mesmo que adequado ao estudo da natureza e tambm no se
confunde com a pretenso filosfica de alcanar um conhecimento
apodctico e autofundante. A incluso da psicologia no domnio
cientfico implica uma exigncia de objetivao que apenas a
14. 14 fisiologia pode responder, uma vez que a sua estratgia
metodolgica concebe o corpo como inteiramente exteriorizado em
relao experincia subjetiva. Da a tendncia contempornea de assimilao
da psicologia pela fisiologia, como ocorrer no mbito da polmica
anticartesiana das neurocincias. Por outro lado, a incluso da
psicologia no domnio filosfico implicaria sua transformao num saber
metafsico do tipo da antiga psicologia racional (psychologia
rationalis), estudo das faculdades da alma que se distancia da
experincia concreta dos sujeitos no esforo de apreender a essncia
universal do ser humano. A idia fundamental que queremos enfatizar
por meio desta breve incurso na histria da Filosofia que no h lugar
para a Psicologia clnica no espao epistmico da racionalidade
moderna. Algo semelhante ocorre com a tica enquanto sabedoria
prtica. No entanto, o avano do processo de modernizao, ao abalar os
referenciais simblicos da sociedade tradicional, impe de modo cada
vez mais intenso uma resposta angstia e ao desamparo humanos. A
aporia pode ser formulada do seguinte modo: a psicologia clnica e a
tica sapiencial so, ao mesmo tempo, impossveis e necessrias. Desse
modo, a demanda de sentido, no sendo acolhida no universo da
racionalidade moderna, converter-se- em crtica da razo.
15. 15 2. Um breve diagnstico filosfico A crtica da razo pode
ser configurada como uma crise no interior da modernidade. Para que
essa ideia fique mais clara precisamos de alguns rpidos
esclarecimentos. Denominamos como modernidade no apenas um perodo
cronolgico bem delimitado, mas uma poca na qual o presente goza de
primazia axiolgica em relao ao passado e tradio. Ora, ao refluir
para o presente, a poca moderna desconstri a solidez do mundo e
impe a problemtica da subjetividade, isto , impe a diferenciao
entre o ser humano e a totalidade das coisas. justamente essa
diferenciao da conscincia em relao ao mundo que podemos definir
como subjetividade. Da a relao intrnseca entre subjetividade e
modernidade. Como, no entanto, podemos restabelecer a relao entre o
sujeito e o mundo? Na razo clssica o restabelecimento dessa relao
foi justamente a tarefa do modo de pensar cosmocntrico e
teoantropocntrico. Na razo moderna essa relao foi submetida a uma
severa crtica, como acabamos de ver ao tomarmos como exemplo
paradigmtico o pensamento cartesiano. As aporias do sistema
cartesiano expressam no plano da reflexo as contradies da
modernidade, o que pode ser resumido filosoficamente do seguinte
modo: a) No plano da modernizao social: o pensamento moderno se
realiza como eminentemente
16. 16 epistemolgico e voltado para a justificao da cincia,
porque h na modernidade um projeto de objetivao do mundo, um
projeto de dominao da natureza e do homem, enquanto parte da
natureza, atravs da atividade da inteligncia tcnica, da
racionalidade instrumental e da lgica sistmica O progresso da
racionalidade cientfica se inscreve na perspectiva da modernizao
social, isto , da construo de uma ordem social que maximiza o
desempenho, a funcionalidade e a produo. b) No plano da modernizao
cultural: o pensamento moderno atravessado em sua realizao por uma
exigncia antropolgica, a de responder o que antes designamos como
demanda de sentido. Esta carncia existencial da racionalidade
moderna acompanha como uma sombra, que no pode ser eliminada, o
ideal iluminista de uma natureza dominada e posta a servio do homem
e de uma sociedade democrtica, eficientemente organizada e
transparente. J no pensamento moderno clssico essa exigncia se
expressou em pensadores como Montaigne, Pascal e Rousseau para, nos
sculos seguintes encontrar uma ressonncia cada vez mais forte em
Kierkegaard, Schopenhauer, Nietzsche e Heidegger. Esta exigncia
antropolgica afirma que a natureza do ser humano traz consigo um
excesso que transborda do continente da objetividade cientfica. A
experincia humana concreta, o ethos em seus diversos aspectos
17. 17 religioso, moral, esttico e psicolgico irredutvel aos
esforos de objetivao. A ciso entre os dois campos ou entre as duas
vertentes da modernizao, a modernizao social e a modernizao
cultural, insustentvel, porque o progresso social, a construo da
ordem sistmica, no pode prescindir da dimenso antropolgica na qual
se inclui a instncia sapiencial. Por outro lado, a experincia
humana que se d no espao de um mundo racionalizado no pode
prescindir de uma forma discursiva que a expresse, estruture e a
justifique. Ora, campo da tica aparece justamente na articulao
entre esses dois outros campos, o epistemolgico e o antropolgico,
uma vez que a tica impe, como Kant pretendeu genialmente instaurar,
uma ampliao da racionalidade. A tica coloca-se para alm da
objetividade das cincias da natureza e mostra que a racionalidade
cientfica no pode satisfazer a nossa busca de conhecimento, pois
esta se enraza no solo mais profundo do interesse prtico da razo.
Com isso abre-se um abismo entre a teoria e a prtica, entre a
Cincia e a tica, um abismo que deve ser transposto pela faculdade
de julgar como aquela que interroga acerca do fim ou acerca do
sentido da vida humana no mundo. Por isso, as trs questes que regem
o pensamento crtico Que posso saber?, O que devo fazer?, O que me
permitido esperar? so articuladas, como bem viu
18. 18 Heidegger, numa profunda retomada da questo antropolgica
fundamental: O que o Homem? Kant foi um pensador da modernidade e,
portanto, a pergunta pelo ser do humano expressa a demanda de
sentido como exigncia de se passar da subjetividade transcendental,
instncia de fundamentao da cincia, ao plano da experincia histrica
e existencial na qual o sentido se expressa e se realiza. 3.
Psicologia clnica e Cincia A partir desse breve diagnstico
filosfico pode-se perguntar: a Psicologia clnica e, em especial, as
psicoterapias, podem e/ou devem ser definidas como cincias? A nossa
resposta direta, lapidar e prvia que as psicoterapias no podem e no
devem ser definidas enquanto cincia. No podem porque como
argumentamos acima elas no se enquadram no espao epistmico da
racionalidade moderna. No devem porque sua no cientificidade no um
defeito a ser corrigido no futuro, mas o trao essencial de um saber
cuja fecundidade reside justamente em resistir pretenso de uma
objetividade e de uma operacionalidade universais. As psicoterapias
possuem um carter sapiencial que as aproxima dos antigos exerccios
espirituais e sua riqueza consiste no s em resistir ao avano da
administrao total da vida, mas em preservar o lugar antes ocupado
pela sabedoria antiga.(6)
19. 19 6. A expresso exerccios espirituais foi consagrada pela
espiritualidade crist. Mas aqui tomamos a expresso em sentido
amplo, como o fizeram Pierre Hadot e Michel Foucault, quando
discorreram sobre o autoconhecimento (gnthi seautn) e as prticas do
cuidado e da formao de si (epimleia heauto) na cultura antiga. Esta
resposta que definimos como lapidar nada tem, entretanto, de
primorosa, definitiva ou fechada, mas antes uma resposta prvia.
Assim, a sua conciso no tem outra finalidade do que suscitar a
reflexo e a discusso sobre uma problemtica muito intrincada e que,
segundo nossa opinio, no pode ser circunscrita ao mbito da
epistemologia. Ou seja, o seu ponto central no o de estabelecer
critrios de cientificidade para, ento, demarcar no campo disperso,
fragmentrio e heterogneo das psicoterapias aquelas que so
epistemologicamente legtimas e aquelas que no o so. A discusso no
pode se restringir a uma tarefa disciplinar, ainda que se reconhea
como ser em seguida ressaltado a necessidade de propor parmetros de
referncia normativa para as psicoterapias. H, no entanto, uma
questo prvia, anterior abordagem epistemolgica e que possui um
estatuto antropolgico: qual o significado humano das psicoterapias
num mundo caracterizado pela racionalidade tcnica e econmica, num
mundo em que a rapidez e a eficincia parecem apontar para uma
medicalizao
20. 20 total como correlato de uma sociedade totalmente
administrada? No obstante, para que essas consideraes no sejam
confundidas com simples irracionalismo ou mera defesa de saberes
esotricos e alternativos gostaramos de propor algumas brevssimas
consideraes epistemolgicas. Toda cincia se depara com o problema da
passagem dos enunciados protocolares ou observacionais em sua
condio de particularidade aos enunciados tericos em sua pretenso de
universalidade. Esse um problema central da epistemologia
contempornea. H diversas propostas em filosofia da cincia para
resolv-lo, do critrio verificacionista concepo popperiana da
falsificabilidade. Apesar da ampla aceitao da soluo popperiana, a
ideia de refutao crtica exige a distino entre o observvel e o
inobservvel, sendo essa diferena problemtica, uma vez que ocorreria
no interior de um sistema de crenas. Seja como for, no se pode
negligenciar, conforme mostra a tese de Duhem-Quine, o incmodo
reconhecimento de que as teorias cientficas no decorrem, mas so
subdeterminadas pelos dados observacionais. Essas consideraes no tm
como propsito subsidiar a opo por uma ou outra soluo, mas apenas
assinalar a imensa dificuldade em se
21. 21 estabelecer um critrio universalmente aceitvel de
demarcao entre cincia e no cincia. Para simplificar poderamos
considerar na perspectiva paradigmtica das cincias da natureza que
a cincia normal tende absoro total do individual e do particular,
apesar de sempre nela permanecer um resduo inobjetivvel. O que no
aceitvel para o conjunto dos saberes cientficos como procurou
mostrar a j velha discusso metodolgica (Methodenstreit), iniciada
na segunda metade do sculo XIX, a partir do impacto da concepo
hermenutica de razo. Assim, no caso das cincias do homem que so, na
verdade, cincias humanas, esses resduos no apenas permanecem como
um incmodo, como um problema que deveria ser idealmente resolvido,
mas so irredutveis e, mais do que isso, so essenciais. Se ns
reunirmos esses elementos o individual, o particular, o singular
numa nica rubrica e a designarmos como dimenso clnica, aqui tomada
em seu prprio sentido etimolgico, ento se pode dizer que o polo
clnico est sempre presente nas cincias humanas e, de modo especial,
na Psicologia. Devemos reconhecer, por conseguinte, que o polo
clnico resiste ao projeto de universalizao e objetivao da cincia e
desencadeia uma crise epistemolgica crnica e insanvel na
Psicologia, uma crise atestada justamente pela multiplicidade das
psicoterapias.
22. 22 No h, portanto, algo como a cincia que possa servir de
referncia para as psicoterapias. H, talvez, uma viso cientfica do
mundo que reivindica hegemonia, mas que comporta valores que devem
ser amplamente discutidos pela sociedade. Ser que a viso cientfica
do mundo real e a viso religiosa e metafsica seriam ilusrias? Ou
poderamos supor, como o faz Schopenhauer, por exemplo, que a iluso
se encontra antes do lado da representao e, por conseguinte,
daquilo que consideramos ser a realidade fenomnica e objetiva? De
qualquer forma, o que designamos como real no pode ser confundido
com o reducionismo fisicalista, o real pode bem ser mais rico do
que aquilo que proposto pelas cincias naturais. Assim, o excesso
que nos habita e que alimenta a interrogao filosfica acerca da
verdade ltima das coisas no pode ser simplesmente descartado como
iluso.(7) 7. muito importante sublinhar que no estamos polemizando
contra a cincia ou contra a racionalidade, mas sim contra a pressa
em definir ambas. A atual crise econmica internacional pode
ilustrar o que pretendemos. A Economia, com o seu aparato
matemtico, parecia ser uma cincia quase exata. Nos ltimos vinte
anos o neoliberalismo se colocou como expresso da verdade cientfica
da Economia, o que era continuamente reiterado por grande parte da
comunidade dos economistas. A perplexidade que agora toma conta das
anlises
23. 23 econmicas incluindo as intervenes no ltimo Frum Econmico
Mundial de Davos e o estranho recurso terminologia psicolgica que
invade o debate econmico (confiana, receio, expectativa, etc.)
mostram o estatuto imaginrio daquilo que se julgava como realidade
cientificamente demonstrada. Neste caso, onde estaria a iluso? No
estaria do lado daquela pretensa cincia que antes se posicionava
altaneira diante do que estigmatizava como velha e renitente
ideologia? A ideia de disciplina cientfica est, portanto, sob
contestao. A ideia de cincia se baseia na derivao dos diversos
modelos tericos da Fsica Bsica. Mas isso uma crena e no algo
demonstrvel. No h um conjunto consistente e nico de leis
fundamentais, pois na prpria Fsica Bsica o mundo macroscpico e o
mundo quntico no esto ainda completamente unificados. A crtica
epistemolgica que julga como ilusria ou como uma projeo subjetiva
uma determinada suposio de existncia, como, por exemplo, a dos
deuses apenas formaliza um processo histrico de transformao
cultural, de reordenao do espao simblico, mas no o cria. Isto
significa que a razo, a racionalidade cientfica, no independente do
processo histrico e cultural. ilustrativo o caso da Biologia
Molecular: seu imenso xito como programa de pesquisa no provm
apenas de sua
24. 24 fecundidade, da verdade que contm e que reflete como as
coisas so em si mesmas, mas a sua concepo cartesiana da natureza e
do corpo o resultado de um caminho histrico especfico, um caminho,
inclusive, de menor resistncia. Os procedimentos metdicos
hegemnicos, que parecem definir uma disciplina cientfica, costumam
pressupor objetos altamente limitados e podem eliminar ou sufocar
por muito tempo interrogaes complexas e fundamentais. Muitas vezes
alguns dos problemas mais difceis so deixados de lado porque, como
alguns estudiosos da cincia j observaram, no se podem construir
carreiras cientficas brilhantes com fracassos persistentes. Os
programas de pesquisa no so esquemas metodolgicos puros, orientados
por critrios racionais asspticos, mas seguem um sistema de crenas e
os fenmenos que resistem ao mtodo so deixados de lado. 4. tica e
Psicologia Clnica H, no entanto, outro argumento muito mais tangvel
do que o da discusso metafsica. A concepo fisicalista do mundo que
afirma 32 que o mundo o que as cincias da natureza supostamente
descrevem no capaz de fundar uma tica. preciso, portanto, discutir
a axiognese da viso cientfica do mundo, tanto no sentido da origem
valorativa da Cincia como no sentido de produo de valores pela
prpria Cincia. Uma discusso que
25. 25 se nos impe, pois a partir da gravssima crise ecolgica
na qual estamos todos mergulhados, no mais admissvel considerar que
o progresso da racionalidade tecnocientfica por si mesmo desejvel e
contribui para a realizao e emancipao humanas. Esse argumento faz
da tica enquanto experincia antropolgica fundamental medida da
racionalidade cientfica. A tica torna-se, ento, mais do que a
epistemologia, como defende Paul Feyerabend, um dos mais eminentes
filsofos da cincia do sculo passado, o mtron da verdade cientfica.
Se aceitarmos que as psicoterapias se inscrevem no polo clnico,
embora no o esgotem, e que esto voltadas para o homem concreto,
ento podemos problematizar a ideia da cientificidade das
psicoterapias. Ou seja, problematizar a ideia que elas possam ser
includas num conjunto bem demarcado que possa ser nomeado como
cincia. A associao entre psicoterapia e cincia no , entretanto,
insensata. Mas , ao contrrio, uma preocupao legtima do legislador,
que no pode se conformar com a anarquia do campo psicoterpico,
mergulhado numa temvel escurido impressionista na qual todos os
gatos so pardos, ameaada pelo caos do ecletismo em que tudo seria
possvel e, portanto, aceitvel. Tal advertncia, porm, no deve ser um
obstculo, mas uma exigncia para o aprofundamento de nossa reflexo
crtica o que
26. 26 implica levantar a suspeita acerca da facilidade com que
o termo cincia circula como moeda de legitimao de determinados
saberes, ou seja, como um engodo do imaginrio que faz de um nome,
de uma universalidade vazia, de um sopro de voz (flatus vocis) a
garantia ideologicamente eficiente da racionalidade e da
respeitabilidade institucional. Vejamos o que diz um conhecido
manual sobre as psicoterapias: Na atualidade, existem mais de 250
modalidades distintas de psicoterapias, descritas de uma ou de
outra forma em mais de 10 mil livros e em milhares de artigos
cientficos relatando pesquisas realizadas com a finalidade de
compreender a natureza do processo psicoterpico e os mecanismos de
mudana e de comprovar a sua efetividade, especificando em que
condies devem ser usados e para quais pacientes. Apesar de todo
esse esforo, evidncias convergentes so escassas. A controvrsia
ainda grande, e o reconhecimento da psicoterapia como cincia tnue.
(Cf.: CORDIOLI, Aristides Volpato e col. Psicoterapias: abordagens
atuais. 3. Ed. revista. Porto Alegre: Artmed, 2008. p. 20).
27. 27 A partir dessa citao gostaramos de propor trs hipteses
bem simples como elementos para a reflexo e a discusso: Em primeiro
lugar, queremos assinalar a aparente contradio entre as expresses
artigos cientficos relacionados psicoterapia e a psicoterapia como
cincia tnue. Falamos em aparente contradio porque acreditamos que a
questo a seguinte: a cientificidade parece ser interna ao modelo
adotado. Ou seja, pode-se discutir sobre a cientificidade ou
pode-se dizer sobre o rigor crtico ou a especificidade epistmica de
uma psicoterapia luz de determinado modelo (cognitivista,
comportamental, psicanaltico, existencial, etc.), mas no se pode
faz-lo do ponto de vista de um critrio universal de cincia. Isso
implica aceitarmos a pluralidade dos modelos no conjunto das
psicoterapias. A terapia analtica junguiana no seria menos
cientfica do que a psicanlise lacaniana ou a terapia cognitiva.
Essa afirmao pode suscitar indignao, sobretudo entre aqueles que
consideram a sua opo terica como indiscutivelmente superior e
dotada de consistncia racional incomparvel. Diante dessa atitude no
se pode fazer muito seno reiterar o convite para a tolerncia
epistemolgica, o que inclui a explicitao dos pressupostos que
sustentam esse juzo de superioridade. A aceitao de tal convite
implica reconhecer o outro como interlocutor legtimo capaz de
compreender e
28. 28 argumentar acerca desses pressupostos e de suas
alternativas. Em segundo lugar, acreditamos que as psicoterapias
como um conjunto de contornos indefinidos no qual convivem no
apenas diferentes modelos tericos, mas diferentes tcnicas (breve,
focal, apoio, etc.) que so adequadas a diversos objetivos e
relativas a especficos segmentos sociais (grupo, famlia, casal,
hospital, etc.) e determinados tipos de afeco psicopatolgica
(depresso, pnico, transtornos alimentares, etc.) no podem ser
enquadradas numa ideia unitria de cincia. Que essas diferenas
tendem a se fragmentar ainda mais na prtica concreta dos
terapeutas, se considerarmos que a personalidade do terapeuta, como
a do paciente, um fator a ser considerado no processo psicoterpico.
As psicoterapias podem ser consideradas, se quisermos, como um
mtodo, como um caminho ou uma ponte, entre a cincia e a clnica,
possuindo, portanto, um carter mediador entre a teoria e a prtica.
Em terceiro lugar, afirmamos que as psicoterapias no s no podem,
mas sobretudo no devem ser concebidas como cincia no sentido
hegemnico da racionalidade tecnocientfica. As chamadas tcnicas
psicoterpicas no se aproximam tanto do logos cientfico no
constituem uma tecnologia , mas, antes, da prtica clnica, que no
apenas um polo residual, mas um polo irredutvel e
29. 29 constitutivo do campo do humano. A ideia aqui muito
simples: as psicoterapias, enquanto se inserem na clnica, devem
resistir hipertrofia de um tipo de saber que no s pretende ser
paradigma para todos os outros tipos de saber, mas se coloca na
perspectiva da dominao da natureza, nela incluindo o ser humano.
Elas no s no se deixam apropriar, por razes epistmicas, pelo modelo
cientfico hegemnico, mas devem resistir eticamente a sua ilimitada
expanso. Para concluir essa exposio provisria que ainda est muito
distante de ser uma reflexo madura, queramos ainda reiterar uma
questo dramtica que nos parece estar na raiz da preocupao do
legislador: retirada a referncia cincia, o universo das
psicoterapias ficaria deriva? Ficaramos desamparados de qualquer
critrio crtico? Ou como j observamos acima, as psicoterapias
estariam aprisionadas numa noite da razo em que todos os gatos so
pardos? Estariam exiladas na terra de ningum do mercado a
incentivar todo tipo de abuso, desacreditando os bons profissionais
e desservindo a comunidade? Diante dessa questo inegavelmente
pertinente, nossa proposta seria, em princpio, a seguinte: a razo
que deve nos orientar na prtica psicoterpica no a razo terica e
cientfica, mas a razo prtica. Limitemo-nos apenas a uma observao
bem simples: no registro tico, o que antes foi designado
30. 30 como polo do particular e do individual poderia ser
designado com mais propriedade como polo clnico da singularidade, o
que no se confunde com a mera particularidade. Por qu? Porque o
singular refere-se ao no indivduo enquanto tomo social,
idiossincrtico, mas enquanto ele estruturalmente aberto
universalidade do humano. A razo que deve nos orientar na prtica
psicoterpica no a razo terica e cientfica, mas a razo prtica.
perfeitamente possvel concebermos uma perspectiva de unificao das
psicoterapias se nos deslocarmos do registro epistemolgico ao
registro tico. Em outras palavras, o ser humano enquanto sujeito
tico e sujeito de direito e aqui o termo sujeito no sinnimo de
mente, psiquismo, alma, conscincia, etc., e no implica, portanto,
uma posio mentalista jamais pode ser meio para outro ser humano.
Assim, por exemplo, ele no pode jamais servir de cobaia para minhas
necessidades, carncias ou crenas. O respeito a este ser que se
distingue, por eminncia, de todos os outros entes e que aqui
designamos pelo termo sujeito, independe de nossas opes religiosas
ou metafsicas. Assim, mesmo o mais empedernido materialista
eliminativista, que recusa terminantemente a ideia de autonomia da
mente, pode reconhecer na perspectiva utilitarista da sade, do
bem-estar e da cura que o ser humano
31. 31 um sujeito de direito. Acreditamos que seja para essa
razo prtica transparadigmtica, independente dos modelos tericos que
adotamos, que parece apontar o bom senso do legislador em sua
preocupao de submeter a atuao profissional aos princpios universais
da tica social.