Capítulo V – A Ética e a Gestão
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V
A Ética e a Gestão
Contributos das Teorias de Gestão: Teoria das Relações Humanas; Teoria
Estruturalista; Abordagem Sistémica; Teoria Comportamental; Desenvolvimento
Organizacional
Novas Perspectivas sobre a Gestão: Gestão por Valores (Management by Values);
Gestão Crítica (Critical Management Studies)
Áreas Conexas à Ética Empresarial: Âmbito Normativo; Âmbito Orgânico; Âmbito
Institucional
Instrumentos de Institucionalização da Ética Empresarial: Âmbito Normativo;
Âmbito Orgânico; Âmbito Institucional; Considerações finais sobre a
institucionalização da Ética Empresarial em relação à Ética do Discurso no sentido da
pragmática transcendental
Sumário
A relação entre a ética, a economia e a técnica, e a necessidade de a economia recuperar a sua ligação
original à ética, tem ocupado o essencial da nossa reflexão. No entanto, no último capítulo uma outra
questão emergiu – uma questão que fica dormente a partir do momento em que encaramos a ética
enquanto um saber prático que visa orientar a acção (ou seja, desde o seu momento inicial). Ao
enunciarmos a existência de três níveis de ponderação do agir da empresa do ponto de vista ético
colocamos a problemática de saber como intervir em cada uma dessas áreas. Dos três desafios, o
organizacional é de longe o mais importante – não só porque é o que de forma directa coloca a empresa
(o conceito de empresa, a forma de ser empresa, a forma, enfim, de agir enquanto empresa) em questão,
como também porque desse questionamento as respostas aos outros desafios fluirão de forma natural –
uma vez definido o agir próprio de cada organização, ela mesma e os seus membros adquirirão a forma
de responder aos desafios que lhes forem colocados.
É aqui que o problema emerge: não corremos o risco de, como Jesús Conill refere, ao invés de religar a
economia à ética, fazer a ética desaparecer sob a economia e a gestão? Será a ética uma técnica ou pelo
menos transformável numa técnica? Não se pretende neste capítulo realizar uma tentativa de criação de
metodologias de aplicação – não estamos perante uma ética parte B, mas sim perante uma fundamentação
teórica da ética empresarial.
Não obstante, tal como as metodologias devem buscar fundamentação teórica, assim esta deve
enfrentar a prática. O objectivo deste capítulo é pois encontrar pontes entre a ética, bem como formas de
integração da ética nas empresas. Não são respostas que são dadas, mas caminhos que ficam abertos.
Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica
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1 – Contributos das Teorias de Gestão 1.1 – Teoria das Relações Humanas
Em reacção à Escola de Administração Científica (que tem como figura maior Taylor)
e à Teoria Clássica (Fayol, entre outros), a teoria das Relações Humanas foi
desenvolvida nos Estados Unidos e impulsionada tanto pelo desenvolvimento das
ciências sociais e humanas como pela percepção de que o sistema baseado na autocracia
da abordagem clássica não se adequava à sociedade americana, para a qual a
democracia era entendido como elemento identitário e a igualdade estava inscrita como
aspiração natural e legítima. Assim, a um caldo social propício vieram juntar-se as
contribuições de novas áreas do saber em ascensão que punham em causa o
mecanicismo tradicionalmente confundido com racionalismo.
Coordenada por Elton Mayo, a Experiencia de Hawthorne (1927/1932) representou o
primeiro estudo em grande escala que quebrou os dogmas estabelecidos a respeito das
organizações. O homo oeconomicus é posto em causa pelo homem social: ao invés da
concepção do indivíduo como átomos isolados, constatou-se que a integração grupal e
social e a produtividade estão relacionados entre si. Outra das ideias que foi atacada foi
o formalismo organizacional. A abordagem da organização através de perspectivas
fisiologistas e anatomistas é incapaz de dar uma visão real do funcionamento da
organização pois, para lá dos organigramas oficiais, há o funcionamento real, os mapas
informais de interacção dos múltiplos indivíduos e dos vários grupos em que se movem
e que determinam o evoluir da empresa. Os indivíduos não são seres desligados do
meio, mas seres em relação que procuram adaptar-se ao meio que os rodeia. Por fim,
outra ideia que foi posta em causa foi a da especialização. À luz da administração
científica, a produção seria tanto maior quanto maior fosse a especialização. Contudo,
os teóricos das Relações Humanas concluíram que a especialização gera monotonia e
desmotivação, acabando por gerar o fenómeno da desmoralização (que Adela Cortina
de resto aborda na sua polissemia) e consequente perdas de eficiência.
As Relações Humanas (ou abordagem humanística) têm uma importância na definição
de muitos dos percursos que ainda hoje são empreendidos no sentido de tornar as
empresas organizações realmente comprometidas eticamente com a geração de
satisfação social e de respeito pelos seus membros. Entendendo que as empresas têm
tanto objectivos económicos como deveres sociais e que as duas vertentes têm de ser
equilibradas num ambiente de cooperação, influenciará de forma determinante
correntes como o estruturalismo e principalmente o comportamentalismo.
Capítulo V – A Ética e a Gestão
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1.2 – Teoria Estruturalista
Das ciências sociais e humanas e também do desenvolvimento da teoria burocrática
foi trazido o contributo do estruturalismo, que no caso das teorias administrativas
pretendeu, numa aproximação à abordagem humanística, resolver os impasses em que a
crítica, sem alternativas viáveis, realizada por esta última às teorias clássicas
mergulharam o estudo das organizações. O estruturalismo veio trazer a compreensão de
que um todo não é simplesmente a soma das suas partes. Os elementos que compõem
uma estrutura vão a ela buscar pelo menos algumas das suas propriedades; por outro
lado, qualquer alteração na estrutura altera-a nos seus componentes e nas relações que
entre eles se estabelecem.
O grande salto que é dado é pois no sentido de compreender a relevância do conceito
de organização e que de resto já anteriormente tínhamos exposto. Afirma-se que se está
numa quarta fase de desenvolvimento social; as sociedades de hoje são sociedades de
organizações. A primeira fase foi a da natureza (que esta era a única base de
subsistência humana), a segunda foi a do trabalho (que implicam a modificação da
natureza através do trabalho, que passa a modelar as relações sociais). A terceira foi a
do capital, em que este se acrescenta aos outros dois factores, superando-os. Enfim, a
fase organizacional corresponde ao que outros autores como Galbraith (e o novo Estado
industrial) ou Drucker (e a ideia de pós-capitalismo) em que o saber e as capacidades
organizacionais se tornam fundamentais.
A esta nova fase corresponde também uma conceptualização de um homem
organizacional, ou seja, o homem que, vivendo em sociedade, está em permanente
contacto com organizações das quais depende para satisfazer as suas necessidades, as
quais integra e portanto às quais vai buscar muita da sua identidade.
Importante para os objectivos deste capítulo é determo-nos na tipologia de Etzioni
sobre controlo e obediência no seio das organizações. Segundo o autor, há três tipos de
controlo, que geram tipos diferentes de obediência e que se enquadram em concepções
distintas de organização; de resto, elas podem ser específicas de determinados tipos de
organização, mas podem pelo menos parcialmente ser transferidas para o mundo
empresarial. De resto, será importante notar que há uma gradação que se aproxima dos
graus de desenvolvimento moral de Kohlberg. O primeiro tipo de controlo é o físico,
que se baseia na ameaça de sanções, utilizando a força e o medo como instrumentos de
poder. Ele gera uma obediência alienatória, em que o indivíduo apenas permanece
porque a isso é forçado. O segundo tipo é o controlo material, em que as recompensas
Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica
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materiais garantem uma obediência calculista, ou seja, baseada no interesse económico.
Por fim, há o controlo normativo, baseado em valores e regras em que a obediência tem
um fundo moral: o indivíduo adere à organização e aos seus objectivos, reconhecendo-
lhes valor intrínseco.
Outro contributo do estruturalismo é a problematização dos dilemas organizacionais,
ou seja, das tensões centrífugas que se dão primordialmente a três níveis: entre a
coordenação interdepartamental e a livre comunicação entre grupos e indivíduos; entre
a necessidade de uma disciplina burocrática e organizacional e os interesses e
aspirações decorrentes da especialização profissional; por fim entre o planeamento
central que vê a organização como um todo mas que pode ser demasiado conservador e
a iniciativa e criatividade individuais, que podem enriquecê-la mas também colocá-la
em perigo. A par das tensões centrífugas há as centrípetas, onde os estruturalistas
divergem tanto da teoria clássica (que afirmavam a existência de harmonia de interesses
no seio de uma organização) como das Relações Humanas, que pretendiam
compreender e ultrapassar o conflito. Aqui, o conflito é visto como mais do que
inevitável, desejável – como um elemento gerador de mudança, um elemento positivo.
Assim, o objectivo não é acabar com o conflito, mas introduzir um nível de cooperação
e canalizar a par disso o conflito para fins produtivos e úteis à organização.
Por fim, a teoria estruturalista realiza uma separação entre duas visões diferentes, dois
modelos de organização: o modelo racional e o modelo natural. O modelo racional
agrega as visões de Taylor, Fayol e Weber, segue uma lógica de sistema fechado e
enfatiza o planeamento e controlo e por pretender garantir a estabilidade e a certeza
focaliza-se na repressão do indivíduo, dado que o factor mais imprevisível é o humano.
O modelo natural, pelo contrário, aquele que temos defendido e que ao longo deste
capítulo descrevemos nas suas múltiplas concretizações, segue uma lógica de sistema
aberto e agrega a maior parte das modernas teorias aplicadas à gestão. Centra-se no
sistema como um todo e não já sobre simplesmente as suas partes, aceita a sua
interdependência com o ambiente (a envolvente externa) e pretende fornecer
instrumentos para que a incerteza e a imprevisibilidade não sejam encaradas
negativamente.
1.3 – Abordagem Sistémica
No período subsequente à Segunda Guerra Mundial e a partir dos trabalhos do
biólogo Von Bertalanffy1 deu-se o desenvolvimento da Teoria Geral de Sistemas, que se
1 Karl Ludwig von Bertalanffy (1907-1972) partiu da biologia para criticar a separação da realidade
Capítulo V – A Ética e a Gestão
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fundamenta em três premissas: os sistemas existem dentro de sistemas (ou seja, há
sempre sub e supra-sistemas); os sistemas são abertos (existindo num meio ambiente
composto por outros sistemas há um processo imparável de intercâmbio); as funções de
um sistema dependem da sua estrutura. Há assim dois preceitos que para o conceito de
sistema, enquanto conjunto de elementos dinamicamente relacionados, são cruciais: o
de objectivo (as relações entre os elementos visam atingir um fim comum); o de
holismo, totalidade ou globalismo, que segue o mesmo princípio do estruturalismo
segundo o qual o todo é maior que as partes.
Aplicada a partir da década de 60 à gestão, a teoria sistémica encontrou uma das
concretizações no chamado modelo sociotécnico de Tavistock, que encara a organização
como um sistema composto por um subsistema técnico (tecnologia, espaço e tempo) e
um subsistema social (as pessoas e as relações individuais, sociais e organizacionais,
tanto formais como informais). Por sua vez, este sistema está em contacto com o meio
ambiente, com o qual mantém uma relação de importação (matérias-primas), conversão
(em bens ou serviços) e exportação. O que o modelo sociotécnico traz é a compreensão
da relevância do subsistema social na transformação da potência em facto, ou seja, que
sem ele as instalações, equipamento e técnicas não podem produzir “exportações” ou
fá-lo-ão de forma ineficaz.
Da abordagem sistémica resultou também a cibernética, enquanto teoria dos sistemas
de controlo baseada na transferência de informação entre sistema e meio, e dentro do
sistema e do controlo/retroacção dos sistemas em relação ao ambiente para o qual a
homeostasia dos sistemas, ou seja, a sua capacidade de manterem uma auto-regulação, a
manutenção dinâmica de um estádio de equilíbrio, é uma condição de sobrevivência.
Para que esta auto-regulação possa existir outra coisa tem de estar presente: a cadeia de
acção-reacção que é a base de um processo comunicativo.
A teoria da comunicação2 veio sistematizar a compreensão do processo
comunicacional através d estabelecimento de seis elementos: a fonte (o emissor da
mensagem), o transmissor (o codificador da mensagem), o canal (espaço ou
equipamento no qual a mensagem é transmitida), o receptor (processo ou equipamento
que recebe a mensagem), o destino (pessoa ou coisa a que se destina a mensagem) e por
fim o ruído, ou seja, as interferências que ao longo do processo comunicacional podem
em diferentes áreas, advogando pelo contrário o estudo holístico dos sistemas enquanto organismos e enquanto todo superior às partes. Austríaco, desenvolveu o seu trabalho no seu país de origem e também no Reino Unido, Canadá e EUA.
2 Lançada com o livro de Shannon e Weaver The Mathematical Theory of Communication, em 1948.
Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica
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existir. A comunicação pressupõe a existência de dados (registo relativo a eventos) e de
informações (conjunto significante de dados, ou seja, articulação específica de dados
que no seu conjunto constituem uma mensagem transmissível).
Um processo comunicacional será tanto mais eficaz quanto menos precisar de
recorrer à redundância, ou seja, à repetição da mensagem; a redundância é pois uma
tentativa de controlar um processo que padece de algum tipo de deficiência. Assim, se
no seio de uma empresa a direcção precisa de recorrer a controlos muito apertados dos
empregados é porque algo funciona mal na organização (da mesma forma, uma
sociedade que precise de forte regulamentação jurídica e controlo policial não tem em si
mesma as forças para que funcione bem por si própria). Percebe-se por conseguinte a
centralidade da comunicação e a sua produtividade para uma abordagem dialógica da
ética ao nível da elaboração de metodologias.
1.4 – Teoria Comportamental
O comportamentalismo, ou behaviorismo, trouxe ao estudo da gestão uma abordagem
menos prescritiva e mais explicativa, sendo no entanto a fonte de outras abordagens
(como o Desenvolvimento Organizacional) que se empenham em ter um cariz
instrumental e prático. O comportamentalismo poderá dar contributos de grande
relevância para a concepção de uma ética empresarial sobretudo através dos seus
estudos sobre a motivação, sobre os estilos de liderança e sobre o homem
administrativo e a teorização da decisão.
A análise das organizações aqui abandona quase por completo os elementos
estruturais/formais, sendo a cultura, as crenças, as relações, as atitudes o principal foco
de atenção. O homem administrativo, diferentemente do homo oeconomicus, não
procura o máximo benefício, dado que o máximo benefício seria aquele que um ser
absolutamente consciente de todas as variáveis conseguiria obter. Trata-se, pois, de
obter não o melhor resultado absoluto, mas o resultado mais satisfatório. Pode-se
portnto falar de uma situação de rcionalidade limitada em que as decisões têm de ser
aceites como imperfeitas, relativas, embora também hierarquizáveis e submetíveis a
uma racionalidade administrativa (resultante da rotina organizacional).
O comportamentalismo procura melhorar a qualidade de vida nas organizações e para
tal a compreensão da motivação é fundamental. A pirâmide de Maslow hierarquiza as
necessidades humanas em cinco categorias, distribuídas por dois níveis: no nível
primário estão as fisiológicas (alimentação, repouso, abrigo, sexo) e a segurança
(estabilidade, protecção contra o perigo e as ameaças); no nível secundário estão as
Capítulo V – A Ética e a Gestão
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sociais (aceitação social, afectos, participação), as de estima (auto-confiança, prestígio)
e por fim as necessidades de auto-realização, que têm que ver com o desenvolvimento
contínuo do indivíduo. O que esta hierarquização permite é a compreensão de que, de
uma forma geral, as necessidades superiores não podem ser satisfeitas se as inferiores o
não estiverem. Por conseguinte, uma empresa que pretenda incutir nos funcionários um
sentido de profissionalismo e lealdade à organização sem conceder estabilidade laboral
nem remuneração adequada estará ou a laborar num erro ou a agir cinicamente.
Inversamente, a teoria dos dois factores de Herzberg divide a prévia hierarquização
em dois tipos de factores, os higiénicos, que agrupam as necessidades fisiológicas, de
segurança e sociais e os factores motivacionais. Ao passo que os primeiros geram ou
insatisfação (se não forem supridas as necessidades) ou não-insatisfação (se o forem),
ou factores motivacionais oscilam entre a não-insatisfação e a satisfação. Isto também
permite compreender que mesmo os acréscimos salariais a prazo não significam um
aumento da satisfação, redundando numa nova situação de equilíbrio.
A compreensão de que há diferentes estilos de gestão e de liderança é outro dos
contributos do comportamentalismo, sendo de referir as teorias X e Y de McGregor e os
sistemas administrativos de Likert.
As teorias X e Y são ideais-tipo de duas linhas de gestão possível, a X tradicional,
mecanicista, pragmática e autocrática e baseada numa concepção pessimista da natureza
humana: as pessoas são preguiçosas, furtam-se ao trabalho, preferem a
irresponsabilidade, ser dirigidas e sem iniciativa, preferindo a segurança ao risco. A
teoria Y corresponde às correntes que entroncam na concepção humanística (teoria das
Relações Humanas e as múltiplas variações que daí decorreram) e baseia-se numa
concepção mais optimista do Homem: as pessoas são dotadas de criatividade, iniciativa,
espírito crítico, sendo o trabalho um elemento que as pessoas aceitam naturalmente e
que faz parte integrante das suas vidas e da sua identidade. Likert3 elaborou quatro tipos
de sistemas administrativos, que percorrem as teorias X e Y de forma gradual, indo do
sistema autoritário-coercitivo para o autoritário-benevolente, daí para o consultivo e
terminando no sistema participativo. No último sistema, que deverá corresponder ao
tipo de empresa comprometida com uma ética dialógica e baseada na confiança, o
processo decisório é descentralizado, sendo o topo responsável pelas políticas gerais e
pelo controlo de resultados; os sistemas de comunicação são fluidos e eficientes, sem
barreiras nem “ruído” (conforme expusemos aquando da teoria da comunicação), as 3 Rensis Likert (1903–1981), psicólogo americano cujo trabalho se centrou no estudo do
comportamento organizacional.
Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica
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relações interpessoais baseiam-se no trabalho em equipa, com participação dos
indivíduos intensa e por fim o sistema de controlo é baseado em recompensas sociais e
materiais, sendo a punição rara4.
1.5 – Desenvolvimento Organizacional
O Desenvolvimento Organizacional (comummente designado apenas pelas iniciais,
DO) corresponde, mais que a uma teoria, a uma prática e a um conjunto de técnicas
especificamente destinadas a criar organizações diferentes, a saber, organizações
hierarquicamente planas, abertas à mudança e de tipo democrático. O DO supera o
carácter descritivo da Teoria Comportamental e aproxima-se também da abordagem
sistémica. Tem como pressupostos básicos a mutação permanente do ambiente a
necessidade de adaptação, pretendendo-se responder e planear a mudança. Ele encara a
organização como um sistema de interacções pessoais em que, para os indivíduos serem
motivados e se sentirem comprometidos, têm de participar: a mudança planeada só
pode existir se for um esforço colectivo. A cultura, como já dissemos, é conservadora
(reage à mudança) mas também tem um elemento democrático (não no sentido em que
liberte, porque não o faz necessariamente, mas no sentido em que abarca todos os
indivíduos); para que a mudança possa existir ela tem de envolver todos os afectados,
todos os que estão imersos na cultura organizacional.
Contrariamente às teorias de tipo X, o DO não se centra apenas nas mudanças de tipo
estrutural (ou seja, nas mudanças dos elementos estáticos), mas visa também as
mudanças processuais, as mudanças dinâmicas que afectam a própria cultura
organizacional, o conjunto de normas não escritas que influenciam o comportamento
dos indivíduos, dos grupos e da organização no seu conjunto. A partir de quatro
variáveis interdependentes (ambiente, organização, grupo e indivíduo) pretende-se
afastar as organizações sistemas de base mecânica e transformá-los em sistemas
orgânicos, enfatizando as relações, a confiança, a partilha, descentralização da
responsabilidade e a negociação. Pretende-se obter o desenvolvimento sistemático (por
oposição às mudanças evolucionárias, demasiado lentas e conservadores e às
revolucionárias, que podem pôr a empresa em perigo).
Para tal é necessário sistematizar a mudança, incorporá-la na empresa e compreender
a existência de três fases: o descongelamento (em que os hábitos são desaprendidos; a
mudança em si (em que as novas ideias são aplicadas e aprendidas) e o recongelamento
4 Recordemos, a este propósito, a distinção entre a ameaça de morte da tanatopolítica, que neste caso
poderá corresponder a perdas de remuneração, sanções disciplinares e eventualmente despedimento, e a biopolítica, o controlo dos indivíduos através de factores positivamente valorados.
Capítulo V – A Ética e a Gestão
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(em que há a incorporação das novas ideias, transformadas em hábitos). A mudança é
influenciada por um balanço dinâmico entre dois campos de forças, descritas por Kurt
Lewin5, sendo bem ou mal sucedida consoante as forças positivas sejam superiores ou
inferiores às forças negativas. De entre os quatro tipos de mudança (estrutural,
tecnológica, produtos/ serviços e cultural) a mudança cultural é a mais difícil e portanto
a que exige uma gestão mais cuidadosa. Precisamente por isso, é aqui que a
participação de todos os afectados se revela não apenas vantajosa, mas decisiva. A
abertura da liderança em dar poder aos indivíduos determinará o seu sucesso ou o seu
fracasso.
Para além dos conceitos de administração participativa e do concomitante
desenvolvimento das equipas, o DO assenta a sua abordagem no conceito de
investigação-acção, ou seja, um processo demorado (o que implica um compromisso da
administração com objectivos de longo prazo e não meramente com uma visão
imediatista da empresa) que inclui essencialmente seis passos: diagnóstico da situação;
recolha de dados para avaliação do diagnóstico preliminar; retroacção dos dados aos
participantes; estudo dos dados pelos participantes; planeamento das acções a
empreender e por fim execução das acções previamente determinadas.
2 – Novas Perspectivas sobre a Gestão 2.1 – Gestão por Valores (Management by Values)
A Gestão por Valores (GPV) é um aprofundamento do trabalho teórico e prático
resultante do DO, visando a redefinição cultural das empresas. À luz da MBV a
estabilidade organizacional não é atingível através de uma cultura hierárquica de
comando e controlo; numa economia de mutação acelerada, a adaptação fracassará
nessas condições. Para além disso, a GPV entende a ética empresarial não como uma
ameaça à liberdade de acção dos gestores e empresários, mas como uma vantagem
competitiva. A missão da empresa é compreendida em três dimensões diferentes: a do
negócio, a dos indivíduos e a da sociedade, harmonizando-se valores entre proprietários
e colaboradores. Há uma focagem nos valores essenciais e um alinhamento destes e dos
objectivos estratégicos, o que se entende ser possível através de uma liderança orientada
por valores e para os indivíduos.
5 Kurt Lewin (1890-1947), psicólogo alemão foi influenciado pela Escola de Frankfurt e
principalmente pela Gestalt, sendo considerado um dos pais da psicologia social. Fugindo ao nazismo, instalou-se nos EUA em 1933.
Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica
116
Pretende-se que o compromisso organizacional reúna três condições: simplicidade
(redução da complexidade, tornar as mensagens mais claras); orientação (para o futuro,
para o desenvolvimento da organização); sustentado nas pessoas e no seu
desenvolvimento. Simultaneamente, há quatro requisitos fundamentais, quatro
necessidades que às quais as empresas têm saber responder. Tem de haver uma
orientação para o cliente, pelo que o produto deve ser adaptado, personalizado. A
autonomia e a responsabilização dos indivíduos são aqui fulcrais. De facto, isso é
visível na forma como o topo das empresas é encarado. A teoria clássica, no início do
século XX, através da gestão por instruções, tinha a figura do chefe; a teoria
neoclássica, na década de 60 centrava-se numa figura menos autoritária mas que
concentrava ainda assim o essencial do poder, o administrador da gestão por objectivos;
a gestão por valores atribui a cada indivíduo a autonomia não meramente de cumprir
instruções minuciosamente impostas nem tampouco de se ater a objectivos
predeterminados, mas de se guiar pelos valores em torno dos quais a empresa gira. Os
líderes devem então essencialmente gerir estes valores nucleares e facilitarem o
desenvolvimento do trabalho dos colaboradores, garantindo a comunicação interna e a
coesão organizacional. Consequentemente, as estruturas devem tornar-se menos
hierárquicas, mais planas e ágeis. Os colaboradores devem aceitar a complexidade e
tolerar a ambiguidade para que possam ser flexíveis e autónomos. De facto, a
complexidade é o que caracteriza as organizações actuais, pelo que a capacidade para
inteligi-las passa pela compreensão dos valores, o que permite a adaptação à mudança.
A desmoralização de uma empresa será pois a ausência de costumes, de boas-práticas
– de valores organizacionais que dêem um cimento a entidades que diariamente lidam
com um mundo em permanente mutação. Os valores desempenham um papel
intermédio entre as crenças (ou seja, e segundo Simon Dolan e Salvador García, as
“estruturas de pensamento desenvolvidas e profundamente enraizadas ao longo dos
anos, através da aprendizagem e experiência, que servem para explicar e dar sentido à
nossa realidade”6) e os resultados. Os valores são condicionados pelas crenças, pelo que
a capacidade de introduzir mudança na organização depende muito da capacidade para
promover a desaprendizagem de crenças, de verdades tautológicas. Por sua vez, os
valores determinam as normas em vigor na organização, ou seja, as regras explícitas de
conduta dotadas de sanção externa. Valores e normas geram atitudes, formas de reagir
perante a realidade e que denunciam o sentimento de cada indivíduo perante um acto ou 6 Simon L. Dolan e Salvador García, Managing by Values. Tradução portugues, Gestão por Valores,
Biorumo, Porto, 2006, pág. 36.
Capítulo V – A Ética e a Gestão
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uma situação. As atitudes generalizam-se em comportamentos, que são formas
idiossincráticas de encarnar os valores e normas organizacionais.
Importante é também compreender o processo de aparecimento, formação,
amadurecimento e substituição de valores. Eles variam não só no tempo, como no
espaço, havendo pelo menos nove factores a reter. Desde logo, as crenças e valores do
fundador (que com o tempo tenderão a esbater-se, mas que poderão ser vitais para
solidez da empresa); as crenças e valores das administrações (desde a fundação de uma
empresa até ao momento presente), que vão moldando e por vezes refundando as
empresas. As crenças e valores dos trabalhadores também formatam o sistema de
valores internos. Uma das questões na qual a GPV (influenciada também pelo DO neste
ponto) insiste é a da necessidade de haver recompensas – inclusive a nível material –
para que os trabalhadores adiram à cultura empresarial. A existência de consultores
pode ser decisivo para a criação de novas crenças e para a adesão a novos valores. O
historial da empresa, a sucessão de eventos – sucessos e insucessos – imprimem um
conjunto de características únicas em cada empresa. Há depois factores externos às
mesmas. Entre eles contam-se as tradições culturais de cada sociedade, os valores
dominantes em cada período histórico, o enquadramento legal e o funcionamento dos
mercados em que cada empresa se move. Isto vem exactamente de encontro ao que já
tínhamos referido a respeito do carácter único de cada empresa: a liberdade de cada
empresa na definição dos seus valores vem-lhe, contraditoriamente, desta coacção que a
realidade exerce sobre ela. Cada empresa tem uma identidade única. A sua
responsabilidade será pois encontrar o equilíbrio entre o respeito por critérios de
validade universal e a sua individualidade.
A GPV adopta um modelo triaxial de sistema de valores baseado nas seguintes
dimensões: os valores económico-pragmáticos; os valores ético-sociais; os valores
emocionais-desenvolvimento. Esta taxinomia permite separar os diferentes níveis
semânticos que a palavra valor pode encerrar.
A dimensão económico-pragmática refere-se a valores como eficácia, desempenho e
disciplina, sendo aqui “valor” o critério para avaliar algo em relação com o seu preço
ou relevância. Outro conceito que importa ter aqui presente é o de “cadeia de valor”,
enquanto conjunto de actividades empreendidas pela empresa, relacionadas entre si e
que determinam o valor final dos produtos ou serviços. A dimensão emocional-
desenvolvimento refere-se à realização dos indivíduos e implica a aceitação de acordos
e partilha de valores que permitam simultaneamente alcançar os valores organizacionais
Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica
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e a realização pessoal.
Por fim, a dimensão ético-social remete-nos para as escolhas preferenciais, estando
aqui o cerne da liberdade humana, ou seja, a liberdade de escolha, a liberdade moral.
Separam-se os valores finais (que podem ser a paz, a justiça, etc.) de valores
instrumentais (que, enquanto meios para atingir os valores finais, podem incluir,
consoante a circunstância, a honestidade, a solidariedade, etc.). Esta dimensão
influencia os comportamentos que por sua vez reflectem as verdadeiras opções dos
indivíduos e das empresas, muito mais que os enunciados que a esse respeito são
realizados.
A conjugação entre as três dimensões enunciadas permite identificar uma cultura
organizacional e alinhas os valores chave e os objectivos estratégicos. Para a GPV a
coerência entre a cultura formal e a prática quotidiana é um factor crítico de sucesso,
entendendo-se que o facto de se dar um significado ao trabalho de cada um reforça o
estímulo que a compensação financeira representa na concretização dos objectivos.
Desta forma, se não houver a formulação expressa de um núcleo de valores que dê
sentido ao trabalho, ou se os comportamentos individuais e principalmente
organizacionais não corresponderem aos valores expressos, a inclinação para o bom
desempenho será necessariamente menor.
Tal como acontece na corrente-mãe da GPV, o DO, a mudança é fundamental. O
objectivo é fazer compreender que as empresas são entidades dinâmicas que devem
procurar continuamente renovar-se. A cultura organizacional deve ser alinhada
permanentemente tanto com as condições existentes no meio envolvente, como com o
próprio evoluir da empresa e das suas partes interessadas. Para além disso, aceita-se a
existência de pelo menos quatro ordens de razões para ter a mudança como uma
preocupação: estratégicas (lucros, liderança, sustentabilidade do negócio), optimização
do trabalho e dos recursos, motivos legais (adaptação às modificações na legislação),
mas também há motivos de ordem ética. Estes podem incluir questões ambientais, o
respeito pelos consumidores ou pelos colaboradores, a adopção de práticas mais
conformes a valores expressos e a adaptação à própria mudança ao nível da consciência
moral da sociedade.
Em suma, a GPV é mais uma manifestação no âmbito da linha da teoria y, portanto,
nas teorias de base humanista. Assenta na ideia de fortalecimento dos indivíduos,
contrapondo-se à lógica racional-económica7 que procura controlar o desempenho das
7 Conforme ibid., pág. 78.
Capítulo V – A Ética e a Gestão
119
pessoas, ao invés de fomentar o seu desempenho. São, pois, duas culturas distintas: a
cultura de controlo (teoria x) e a cultura de desenvolvimento (teoria y). De seguida
iremos abordar uma corrente igualmente recente mas que se coloca numa posição mais
distanciada face à gestão.
2.2 – Gestão Crítica (Critical Management Studies)
1 – Contrariamente às teorias que temos vindo a descrever, os “estudos de gestão
crítica” têm, desde a publicação do livro de Mats Alvesson e Hugh Wilmott Critical
Manament Studies em 1992, representado uma corrente de pensamento e análise da
gestão que simultaneamente se coloca aparte dos estudos tradicionais, “pró-
managerialistas” mas que, ao contrário de muitos sectores que realizam um combate
político e externo ao pensamento dominante nas escolas de gestão, estão dentro dessas
mesmas escolas. Trata-se, portanto, de uma visão crítica interna à gestão. Não se trata
necessariamente de um ataque à gestão, mas antes de um ataque aos “dados
adquiridos”, aos dogmas vigentes no meio.
A base da gestão crítica é a teoria crítica da Escola de Frankfurt (Horkheimer,
Adorno, Marcuse, Habermas), pela sua defesa de indivíduos mais autónomos.
Genericamente, um dos seus maiores contributos é a percepção de como trabalhadores e
consumidores são condicionados para caberem nos parâmetros dos sistemas político e
económico, em suma, de como os indivíduos são dominados, transformados por uma
razão instrumentalizadora que os transforma em componentes de uma máquina. No
entanto, a gestão crítica não se limita a Frankfurt, havendo autores que abordam a
gestão a partir das obras de Deleuze, Derrida, Foucault (contraposto a Habermas,
representando os dois os extremos da tensão entre distopia e utopia, tensão da qual,
espera-se, algo de produtivo possa nascer).
A gestão crítica opõe-se ao enquistamento doutrinário de uma suposta neutralidade
mas que tem um forte pendor estratégico. Na gestão há uma pulsão tecnocrática que
apresenta os gestores como os depositários da racionalidade empresarial (como se não
estivessem eles próprios, como qualquer outra parte interessada, numa teia de interesses
e objectivos muitas vezes conflituosos) e os únicos detentores de iniciativa, remetendo
os restantes stakeholders para a posição de meros objectos/ meios. A posição de partida
desta corrente é pois a de que esta área é demasiado poderosa e tem demasiados efeitos
sobre empregados, consumidores e cidadãos em geral para ser entendida apenas numa
lógica unívoca de meios e fins. A gestão e a economia, enquanto ciências sociais, são
entendidas como tendo uma dimensão ético-política que está no seu núcleo principal; os
Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica
120
seus objectos de estudo nascem em contextos específicos de relações de poder que
podem eventualmente ser transformadas para desenvolver objectos diferentes.
Muitas vezes – e isso é visível mesmo nas teorias de base humanista que previamente
apresentámos – o objectivo da gestão é apenas obter empregados ou consumidores mais
dóceis. Esta lógica deve, à luz da gestão crítica, ser combatida, submetendo esta área a
novas e mais amplas formas de prestação de contas. Muito para lá da mera produção de
bens e serviços, o mundo empresarial influi sobre múltiplas facetas da vida humana;
aceitar pacificamente a generalização do pensamento tecnocrático acarreta a
consequência inevitável do colapso da democracia cívica (política). Aceitando-se que as
lutas de poder ocorrerão sempre, afirma-se aqui que tão problemática é a sua negação
como também a mera formalização de práticas de empowerment de outras partes
interessadas, sem que se ponha em causa o discurso corrente – para lá da defesa da
participação, a gestão crítica pretende pôr em causa muitos dos pressupostos em que se
funda esta área do saber.
Desta forma, a gestão crítica pretende reunir um conjunto de temas base e de
orientações de investigação e trabalho. Entre elas, contam-se o desenvolvimento de uma
visão não objectivista das técnicas de gestão e dos processos organizacionais, o
desnudar das relações assimétricas de poder, o ataque ao fechamento discursivo e à
proliferação de “verdades” presumidas, o revelar da parcialidade dos interesses
partilhados mas também dos conflitos (ao contrário dos marxistas, os autores desta área
recusam a presunção de um conflito insuperável entre trabalho e capital) bem como, por
fim, a revelação da centralidade da linguagem e da acção comunicativa, tanto nas
relações que se estabelecem entre emissores e receptores, mas também nos significados
historicamente construídos.
2 – No seu artigo “Critical Approaches to Strategic Management”8 David Levy, Mats
Alvesson e Hugh Willmott reiteram o intento de desmantelar “o predomínio de uma
racionalidade técnica obcecada com a ostensivamente eficiente perseguição de
objectivos não questionados, [procurando] ao invés despertar o debate social sobre os
fins e os valores.”9 Seguindo a análise gramsciana, os autores fazem uma crítica do
determinismo e do economicismo, interligando economia, ideologia e política,
utilizando em particular o conceito de hegemonia enquanto alinhamento historicamente
peculiar de forças aos três níveis referidos e que coordena os principais grupos sociais
numa aliança de dominação. Assim, o discurso hegemónico sobre a gestão estratégica 8 Studying Management Critically, págs. 92-110. 9 Ibid, pág. 93.
Capítulo V – A Ética e a Gestão
121
está mergulhado em vários pré-conceitos que é necessário ter em conta. Desde logo,
estando a estratégia enraizada nos valores e quadros conceptuais da gestão de topo, é
provável que seja direccionada para satisfazer os interesses da gestão de topo e não da
empresa no seu todo10. De facto este sector é visto como, em termos práticos, o único
verdadeiro actor organizacional, o que peca por simplismo; se a isso somarmos a
aproximação que é sempre feita entre a estratégia empresarial e a estratégia militar
reforça o conceito de empresa como espaço de elitismo e de direcção autoritária11. Esta
mesma imagem, que deveria limitar o interesse desta área a um número muito reduzido
de administradores, acaba por desempenhar um papel muito importante pela fuga à
realidade que permite ao leitor ou ao estudante de gestão: ela é apelativa na medida em
que é fantasiosa, promove uma comunidade de experiência puramente imaginada entre
um auditório relativamente vasto e o número muito reduzido dos verdadeiros
“estrategas”.
O aparecimento de conceitos como a responsabilidade social, stakeholders ou
cidadania empresarial pode introduzir uma maior tendência para a adopção de uma
racionalidade comunicativa, reduzindo-se as tendências de alguma forma totalitárias do
pensamento managerialista. Não obstante, isto pode redundar em novas e mais
elaboradas formas de impor a visão da gestão de topo. Naturalmente isso vai contra
todos os objectivos da teoria crítica, arriscando-se a falência do objectivo de construir
organizações mais transparentes e nas quais o compromisso ético seja efectivo. Focar
todas as pistas que a gestão crítica tem lançado seria absolutamente impossível, mas
interessar-nos-ia abordar justamente a questão da transparência, por um lado, e por
outro a tensão que se desenvolve entre a gestão crítica e o seu objecto de estudo,
nomeadamente, a tensão entre esta corrente, as potencialidades que encerra para uma
reflexão ética e as possibilidades de ela própria ser absorvida pela racionalidade
tecnocrática.
3 – Em Accounting and Critical Theory12 Michael Power, Richard Laughlin e David
Cooper questionam a contabilidade enquanto fonte fidedigna da realidade. Ela é
habitualmente apresentada como um retrato da situação real, de tal forma que quando
falha a lógica é procurar “melhorar” a contabilidade. Em termos habermasianos,
10 Situação que já abordámos nos capítulos II e III. 11 É questionável que este conceito de estratégia seja compatível com qualquer orientação no âmbito
das teorias y; de facto, as teorias x vão mergulhar as suas raízes à burocracia weberiana e esta à organização militar prussiana. Qualquer empresa que queira de facto envolver-se numa mudança cultural de compromisso, desenvolvimento e responsabilização dos indivíduos terá de aceitar abandonar paulatinamente este quadro conceptual “militarista”.
12 Ibid., págs. 132-156.
Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica
122
referem os autores que ela é entendida enquanto trabalho, não enquanto interacção, ou
seja, enquanto práticas puramente técnicas, procedimentos formais com vista a alcançar
um fim. Esse fim é transmitir informação fiel à realidade aos decisores, de forma
neutra. Contudo, não deixa de ser curioso que desde logo a contabilidade seja dividida
em duas grandes áreas, uma para fins internos (a contabilidade de gestão) e outra para
fins externos (a contabilidade financeira). As contradições e as falhas na representação
do real levam alguns autores13 a ir à base e a fazer uma crítica não apenas da
contabilidade como representação do real, mas da própria ideia de “representação”.
Segundo esta perspectiva, não haverá realidade económica independente, sendo a
contabilidade um meio entre outros para a criação dessa mesma realidade (que depois
se propõe representar).
Esta questão revela-se crucial na relação entre a contabilidade e o mundo da vida,
portanto, com os seus utilizadores e com os processos comunicacionais ao nível social.
A complexidade crescente nos conhecimentos envolvidos na contabilidade tem
promovido a multidisciplinaridade, o que não é necessariamente positivo: a
complexidade gera a fragmentação e esta dificulta um discurso público nos termos que
previamente definimos ao nível do modelo pragmatista defendido por Jürgen
Habermas. Simultaneamente, o alargamento das áreas de reporte de tipo contabilístico
pode significar um aumento das áreas de juridificação. De facto, não é suficiente a
contabilidade escolher quais as variáveis sociais e ambientais relevantes – mais
relevante será uma real alteração nas práticas empresariais. A intensificação
juridificadora distorce o discurso público e ignora a formação, a partir de normas
geradas no mundo da vida, de conceitos de racionalidade económica distintos dos
tradicionais.
Muito importante na ligação que se estabelece entre a contabilidade e a transparência,
e entre esta e a responsabilização, está a expressão utilizada pelos autores de
“contabilidadização” (accountingization)14. Esse conceito serve para criticar a
possibilidade de a “contabilidade enquanto método [poder] eclipsar mais amplas
questões de responsabilização [accountability].” A proximidade dos termos em inglês
não encontra paralelo em português, mas demonstra a proximidade e a relevância da
área numa lógica de “prestação de contas”. Quem é responsável “presta contas” perante
aqueles em relação a quem é responsável. Consequentemente, uma alteração ou uma
atenuação da visão da contabilidade essencialmente como instrumento para a tomada de 13 Ibid., pág. 136. 14 Ibid, pág. 151.
Capítulo V – A Ética e a Gestão
123
decisão e para a fabricação de uma realidade favorável a determinados grupos,
introduzindo-lhe uma maior e mais vincada preocupação com a “prestação de contas”
face a todos as partes interessadas das empresas (e organizações em geral, privadas ou
públicas) poderia revelar-se produtiva.
4 – No artigo Business, Ethics and Business Ethics: Critical Theory and Negative
Dialectics15 Martin Parker faz uma análise e uma crítica da ética empresarial como mais
uma área que pretende exercer um domínio sobre a totalidade da gestão (da mesma
forma que qualquer área tende a considerar-se como central, seja ela o marketing, a
estratégia, as finanças, etc.) em detrimento das restantes. Segundo o autor a ética
empresarial assenta em duas ideias aceites de forma acrítica: a tese da insuficiência (a
ética empresarial vem responder a uma necessidade sentida pelos negócios, que não
teriam os recursos para responder aos dilemas que lhes eram colocados) e a tese do
declínio (ou seja, a ideia de que as pessoas já não confiam nas empresas). A abordagem
vulgarmente seguida nos textos de ética empresarial é uma perspectiva “melhorista”,
reformista e pouco ambiciosa e que, ao enfatizar a racionalidade individual segue a
lógica dominante pró-managerialista. Ao invés de conter em si elementos de
emancipação, a ética empresarial transforma-se em mais um instrumento de marketing
estratégico, sendo o seu potencial enquanto meio de controlo sobre os funcionários da
empresa igualmente apreciado.
Para fugir a esta perda de sentido de uma área que devia servir justamente para
devolver sentido à actividade empresarial, Michael Parker defende uma abordagem
dialéctica que, apesar de se basear em autores marxistas (Horkheimer e Adorno) recusa
o marxismo ortodoxo, para o qual “ética empresarial” é um oxímoro. Esta é uma visão
estática e que portanto pouco ou nada tem a oferecer à reflexão sobre a ética
empresarial. Trata-se de uma posição irredutível e que termina sendo uma crítica moral
(portanto, correspondente de certa forma às éticas de máximos) à qual não é possível
responder pois a resposta está dada à partida. Pelo contrário a visão de Horkheimer
apresenta-se como não dogmática, vendo a dialéctica com algo que não foge
completamente ao controlo humano e que por outro lado é impossível ter uma visão
clara de quais os “verdadeiros” interesses ou qual a “verdadeira” emancipação a
alcançar. Desta forma a ética empresarial pode ser aproveitada com um fim
emancipatório, ainda que sempre e apenas como saber impuro. Há aqui uma noção de
fim, em que a síntese pode ser encontrada ainda que de forma imperfeita e que abre
15 Ibid, págs. 197-219.
Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica
124
caminho a uma negação enquanto forma de reconciliação com a razão.
Pelo contrário, a perspectiva de Adorno reúne a radicalidade da crítica da visão
marxista tradicional com a visão dialéctica da segunda opção. A sua dialéctica negativa
afirma que qualquer negação da negação é um puro historicismo e portanto tem pouco
potencial como síntese. A tarefa da ética empresarial será, a esta luz, negar e afirmar-se
permanentemente, não havendo na afirmação, mas tampouco na negação, qualquer tipo
de superioridade lógica ou moral.
5 – Parker termina o artigo questionando o motivo pelo qual duas áreas tão próximas
quanto a disciplina da ética empresarial e a corrente da gestão crítica não estabeleceram
mais pontes entre si. O essencial da sua resposta é tem tanto interesse para a
compreensão da segunda quanto da primeira. Afirma ele que a separação que possa
existir acaba por ser “uma forma de disputa entre kantianos e hegelianos, entre aqueles
que pretendem tratar da noção moderna da soberania individual e aqueles que
pretendem frisar que o sujeito só consegue alguma vez atingir significado em relação
com um contexto social e político.”16 No entanto, e para lá desta divisão básica, mesmo
no seio da teoria crítica existe uma fronteira entre autores como Horkheimer e
Habermas, por um lado, e Adorno por outro – este inserindo-se numa linha que vai
buscar mais a Nietszche que a Marx e que encontra as suas mais recentes expressões em
Derrida ou Foucault. Ao passo que os primeiros se inserem de forma mais ou menos
explícita numa busca “optimista” e da razão, os segundos recusam em absoluto a
modernidade. Naturalmente, optar por qualquer uma destas visões terá efeitos não
despiciendos sobre o conceito de ética empresarial apresentado.
3 – Áreas conexas à Ética Empresarial 3.1 – Corporate governance
O governo das sociedades (ou governo corporativo) surge como produto das mesmas
condições que a ética empresarial. Os procedimentos menos claros levados a cabo no
seio das empresas trouxeram a necessidade de estudar a distribuição de poder no seu
seio e de estabelecer regras de boas práticas. Assim, o governo das sociedades será,
segundo o chamado Relatório Cadbury “o sistema através do qual as companhias são
dirigidas e controladas”17 devendo haver da parte dos conselhos de administração o
16 Ibid., pág. 214. 17 Report of the Committee on The Financial aspects of Corporate Governance,
http://rru.worldbank.org/Documents/PapersLinks/1253.pdf, pág. 14.
Capítulo V – A Ética e a Gestão
125
respeito pelas leis, normas internas das empresas e interesses dos accionistas. Ter em
mente os interesses dos accionistas é, precisamente um dos pontos fulcrais do corporate
governance e vem de encontro ao que já afirmámos a respeito do lucro. Esta questão
assume particular gravidade no que concerne aos rendimentos dos administradores das
empresas, tendo motivado a realização de relatórios específicos, como o Relatório
Greenbury18.
O governo das sociedades partilha igualmente com a ética empresarial algumas das
suas debilidades. Apesar da proliferação (especialmente no primeiro caso) de ofertas de
formação nesse âmbito e da instauração por praticamente todas as grandes empresas de
políticas de governança corporativa, os abusos estão longe de deixar de suceder
(empresas como a Enron por exemplo, em que havia já políticas sólidas). O objectivo
primordial – a mudança comportamental – é suficientemente difícil para que se deva ter
a consciência de que as vitórias são pequenas e graduais. A passagem de paradigmas
baseados no medo, na depredação de recursos e no falseamento de resultados para um
clima de abertura, cooperação e de procura equilibrada do benefício não se fará de um
momento para o outro.
As principais partes interessadas no seio desta área são os accionistas e os
administradores.19 Isto não significa que outros stakeholders (trataremos dessa questão
mais adiante) estejam totalmente excluídos desta área, mas não lhe são fundamentais.
Desta forma, adquire centralidade o chamado princípio do agenciamento, à luz do qual
se estabelece que, sendo os accionistas os donos da empresa, os administradores são em
relação aos primeiros meros agentes da sua vontade. Este princípio visa regular a
ambição desmedida que muitos gestores de topo têm, lesando os interesses dos
accionistas (obtenção de lucro) através de sistemas de remuneração fabricados de forma
desproporcional aos resultados obtidos. Ele responsabiliza a administração e traz
problemas como o risco moral associado a relações de informação assimétrica, ou seja,
o problema da relação mandante/agente (principal-agent problem). O governo das
sociedades tem como um dos seus maiores objectivos produzir e manter um governo
empresarial que ultrapasse esta questão e salvaguarde os interesses dos accionistas,
equilibrando a correlação de forças em seu benefício.
18 Texto completo disponível em http://www.ecgi.org/codes/documents/greenbury.pdf. 19 Adrian Davies, em Corporate Governance, Boas Práticas de Governo das Sociedades, pág. 10, faz
notar que historicamente os conselhos de administração eram exclusivamente não-executivos. Posteriormente, os gestores (que se tinham mantido afastados dos conselhos) começaram gradualmente a ganhar relevância, em função da própria complexificação das empresas e da economia.
Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica
126
O governo das sociedades tem oito dimensões principais, três das quais nucleares, a
saber, a liderança (que não é estática nem propriedade de ninguém, tendo por outro lado
um lado formal e outro informal), a distribuição do poder (o âmago do corporate
governance é efectuar uma boa distribuição de poder) e o padrão de responsabilização
(pretende-se que na economia privada, tal como na política, os indivíduos saibam ser
exigentes e imponham padrões elevados de responsabilidade). Os elementos acessórios
serão a identidade da organização (o conjunto de valores que a define), o seu propósito
(construção de consensos sobre objectivos comuns), a inclusão e comunicação
(necessárias para construir a confiança entre as várias partes interessadas), a
maximização da eficácia (satisfazer o cliente, reduzir o desperdício e assegurar uma
reputação sustentável) e por fim a garantia da sustentabilidade (a procura do benefício
deve ser balanceada para que a procura, por parte da administração, da apresentação de
bons resultados não comprometa o futuro da empresa nem seja a causa do falseamento
estatístico).
A implementação de um sistema de governo corporativo passa necessariamente por
cinco elementos. De entre eles, assume particular relevância a liderança, que tem
simultaneamente ser direccionada por um objectivo superior ao poder em si, e de
disseminar os objectivos comuns pela empresa (não só pelas suas decisões, mas
também pelas acções, ou seja, pelo exemplo quotidiano). Uma das pedras de toque do
governo das sociedades é efectuar uma separação entre administração (que deve
assumir uma liderança efectiva e fazer a ligação entre a empresa e as múltiplas partes
interessadas) e a gestão, essencialmente técnica e virada para o bom desempenho da
organização. A cultura, agregando a visão, missão e os valores da empresa, constitui
uma visão partilhada que une a organização. A cultura organizacional, sendo relevante
para a corporate governance é, provavelmente, o elemento determinante da ética
empresarial. Sobre ela falaremos novamente mais tarde. A estrutura (tanto a formal
como – e este é um dos desafios do governo das sociedades – a informal) e os processos
(meio para accionar medidas e atingir resultados) tem uma função operativa e a marca,
ao acumular a reputação e a confiança é enfim é o produto final de um processo de
governo corporativo.
Há enfim muitos pontos de contacto entre o corporate governance e a ética
empresarial, muito em particular atendendo à visão que pretendemos defender. No
entanto, esses pontos são ainda mais profundos no que concerne à responsabilidade
social, em que a sobreposição pode chegar a ser total.
Capítulo V – A Ética e a Gestão
127
3.2 – Responsabilidade social
De facto, a responsabilidade social das empresas tem uma origem não apenas
concomitante, mas comum com a ética empresarial. O célebre artigo de Friedman de
1970, a afirmação do autor é a de que “A responsabilidade social da empresa resume-se
[etc.]”.
A responsabilidade social das empresas é um desenvolvimento particular do conceito
de responsabilidade social, que tanto inclui empresas como governos, organizações e
instituições sociais ou indivíduos. Trata-se no fundo de assumir que cada uma dessas
entidades tem deveres para com a sociedade (para com os outros) e que esses deveres
tanto podem ser negativos (abstenção da prática de actos nocivos) como positivos (pró-
activamente beneficiar a sociedade). Tendo isto em atenção, a responsabilidade social
das empresas encontra na teoria dos stakeholders (que mais tarde aprofundaremos) a
sua mais sólida base, de resto partilhada com o corporate governance a ética
empresarial. A esta luz, as empresas deverão agir tendo em conta os interesses de todos
os que possam ser afectados pela actuação da empresa.
Triple Bottom Line é a expressão que agrupa os três tipos de preocupações que a
actuação das empresas deve ter: as económicas (resultados), as sociais (valorizar as
pessoas) e as ambientais (minimização de externalidades negativas). Simultaneamente,
a responsabilização pode ser efectuada a quatro níveis distintos: a económica, a legal, a
ética e a discricionária. Estes dois últimos tendem a formar o corpo principal da
responsabilidade social das empresas, sendo que o elemento discricionário (a
filantropia) é o que fornece maior especificidade à área. De facto, a ligação entre o
sector privado e o terceiro sector, em que os dois se aproximam embora mantendo as
suas especificidades pode ser considerada a trave mestra da responsabilidade social das
empresas. Há aí o desenvolvimento de uma relação simbiótica entre as empresas (que
fornecem os recursos de que o sector social necessita) e as instituições de solidariedade
e organizações não-governamentais (que fornecem a boa reputação desejada pelas
empresas).
Conceito distinto será o avançado por alguns autores20, substituindo o conceito
restrito de responsabilidade social das empresas por “responsabilidade empresarial”.
Problemática, esta abordagem arrisca-se a anular todas as áreas adjacentes (governo das
sociedades, desenvolvimento sustentável e ética empresarial) e a tornar o conceito de
responsabilidade social das empresas vazio ou desligado dos outros tipos de 20 Maria João Nicolau Santos et al, Desenvolvimento Sustentável e Responsabilidade Empresarial, pág.
2.
Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica
128
responsabilidade social (individual, governamental, etc.). Não há a este respeito
qualquer consenso, e de facto a expressão dominante é a responsabilidade social das
empresas, cuja prática tem incidido essencialmente na vertente filantrópica (causas
sociais e ambientais) e também em boas práticas ao nível da gestão dos recursos
humanos.
Assim, a responsabilidade social poderá coincidir no essencial com a ética
empresarial parte B (ou seja, com a parte aplicada da ética empresarial). De fora fica a
fundamentação teórica, por um lado; por outro, ao passo que na responsabilidade social
das empresas pode haver lugar para uma vertente filantrópica – embora haja quem
argumente que a filantropia empresarial clássica esteja em declínio.21 Podemos no
entanto questionar-nos se será o declínio verdadeiramente da filantropia, ou será que o
momento em que mais se divulga a ideia da responsabilidade social não coincidirá
também com uma alteração dos paradigmas de empresa que a tornam menos
responsável, podendo tratar-se de uma reacção que visa repor, actualizando, um
equilíbrio antigo. De facto, a morte das empresas paternalistas do passado e a reforma
do Estado de Bem-Estar levantam problemas sociais graves que obrigam a rever a
posição das empresas na sociedade. No entanto, esta vertente filantrópica deve, como se
pode verificar na menção que fazemos à questão no tópico sobre o agir no seio de uma
ética empresarial, ficar excluída da ética empresarial. Por seu turno, esta última, na sua
vertente aplicada, inclui elementos formais (os códigos éticos) que a responsabilidade
social dispensa em si, embora naturalmente possa (ou, na verdade, deva) utilizar como
repositório de princípios orientadores de acção.
II.3.3 – Desenvolvimento Sustentável
Conceito que acompanha sempre a responsabilidade social, o desenvolvimento
sustentável consiste na preocupação de ter em conta o impacte ambiental do
desenvolvimento económico. Deste modo, a par das preocupações sociais surgem as
ambientais, visando-se garantir que ao longo do tempo as actividades sejam
sustentáveis. Nos alvores do conceito estará a Cimeira de Estocolmo de 1972, na qual
se pretendia conter a poluição equilibrando os anseios de maior desenvolvimento
económico com a protecção do meio ambiente. Quinze anos depois o Relatório
Brundtland apela à responsabilização dos Estados e das organizações; a estrita
21 Michael Porter, citado por Fernando Ribeiro Mendes no prefácio ao livro Desenvolvimento
Sustentável e Responsabilidade Empresarial, pág. IX. Podendo esta afirmação ser razoável, a questão também surge: serão as empresas hoje socialmente mais responsáveis que no tempo da filantropia empresarial clássica? Por exemplo, estão elas mais empenhadas em construir comunidades? Tratam melhor os seus funcionários, em remuneração, estabilidade ou oportunidades de desenvolvimento?
Capítulo V – A Ética e a Gestão
129
protecção do meio ambiente, opondo-o ao crescimento económico dá lugar ao conceito
de desenvolvimento sustentável em sentido próprio, ou seja, não se visa articular dois
objectivos distintos mas integrá-los numa perspectiva de crescimento contínuo
(sustentado). Na Cimeira do Rio de 1992 estabelece-se a Agenda 21, que firma o
conceito de desenvolvimento sustentável, integrando os elementos do crescimento
económico, equidade social e protecção ambiental.
A Agenda 21 marca uma nova etapa e estabelece as linhas orientadoras que vão
marcar o essencial da reflexão sobre o tema do ambiente e do desenvolvimento
humano. A imbricação de questões até então apartadas (como os direitos humanos, o
ambiente ou o bem estar) gera um conceito abrangente de desenvolvimento que,
segundo Amartya Sen “[…] exige que se eliminem as principais fontes de falta de
liberdade: a pobreza e a tirania, a escassez de oportunidades económicas e as privações
sociais sistemáticas, o abandono em que se podem encontrar os serviços públicos e a
intolerância ou o excesso de intervenção de Estados repressivos. Trata-se de um
processo de expansão das liberdades reais de que desfrutam as pessoas. O facto de
centrarmos a atenção directamente nas liberdades humanas contrasta com as
concepções mais estreitas do desenvolvimento que o identificam com o crescimento do
PIB, com a industrialização ou com o progresso tecnológico. [...] Conceber o
desenvolvimento como um processo de expansão das liberdades fundamentais leva a
centrar a atenção nos fins a partir dos quais ganha importância o desenvolvimento, mais
que em alguns dos meios que inter alia desempenham um destacado papel no
processo.”22 Um dos objectivos fundamentais será então produzir uma nova distribuição
dos custos e dos benefícios do crescimento, tarefa na qual a responsabilidade social das
empresas e uma noção de ética empresarial são insubstituíveis: tratando-se de
negociações efectuadas a uma escala global, a acção terá de ser local e para-legal.
4 – Instrumentos de Institucionalização da Ética
Empresarial Neste terceiro ponto daremos apenas uma visão genérica das possibilidades de
institucionalização – portanto, de concretização da ética empresarial não apenas
enquanto prática (que deve, de resto, permanecer como a parte essencial, a parte
22 Ética de la Empresa y Desarollo Económico, in Construir Confianza, Ética de le empresa en la
sociedad de la información y las comunicaciones, pág 40.
Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica
130
determinante, da ética empresarial, enquanto ética vivida) mas também nos
instrumentos que podem servir para a sua concretização. Nas duas partes precedentes
deste capítulo vimos a relação que a ética tinha com a gestão, nomeadamente os
contributos que a gestão tem para dar neste âmbito, aqueles elementos que nela já
trazem uma preocupação ética (e não apenas um intuito tecnicista). Neste momento
pretende-se sistematizar os tipos de mecanismos de regulamentação, implementação e
controlo ético.
Seguimos a distinção seguida por Robert Solomon23 entre ética micro, macro e molar.
Adaptando os níveis em causa aos instrumentos disponíveis, podemos dizer que o nível
micro remete para os instrumentos destinados a regular o comportamento individual, o
agir de cada indivíduo. O nível macro remete-nos para relações de maior complexidade,
interindividual, grupal, organizacional. É essencialmente o nível da empresa. O nível
molar é o nível intergrupal, interorganizacional ou o nível social. Remete para as
relações entre as empresas e entre estas e a sociedade em geral ou o Estado.
Paralelamente, os diferentes instrumentos podem ser divididos em três âmbitos ou
tipos de intervenção. O primeiro tipo é o normativo, remetendo para codificações
(aquilo que por vezes designamos como “ética formal”). O segundo é o orgânico,
tratando-se aqui de instrumentos que corporizam ou requerem integração no seio da
estrutura de cada empresa. Por fim, encontramos instrumentos que habitualmente se
encontram fora das empresas e que não têm relação necessária com nenhuma empresa
em particular, embora tal possa suceder.
Âmbito Instrumento Nível
Código Profissional Micro Código de Conduta
Normativo Código Ético
Conselho de Empresa, Comissão de
Trabalhadores,etc. Provedoria/ Ombudsman
Macro
Orgânico
Assessoria Ética
Associações e Centros de estudos especializados Institucional Organizações Patronais, Sindicatos, Associações de
Consumidores, ONG, etc.
Molar
23 Robert C. Solomon, “Business Ethics”, in A Companion to Ethics, Peter Singer (coord.), Blackwell
Publishers, Oxford, 1993, págs. 354-365.
Capítulo V – A Ética e a Gestão
131
4.1 – Âmbito Normativo
No âmbito normativo caem os códigos profissionais ou deontológicos, os códigos de
conduta e os códigos éticos. Os primeiros regulamentam os comportamentos de
indivíduos pertencentes a actividades que reúnem um conjunto de características que
Adela Cortina, em Ciudadanos del Mundo – Hasta una Teoria de la Ciudadanía24
descreve e que serão sinteticamente oito: há um certo grau de especialização e
institucionalização – normalmente muitas vezes são regidas por ordens, associações
socioprofissionais ou afins que de resto são quem elabora e garante o respeito pelo
código que garantem o monopólio do acesso à função; tradicionalmente são associadas
a um sentido de vocação e de serviço à comunidade (ou seja, o salário, sendo uma
preocupação natural e tendo de haver remuneração do trabalho, não é suficiente para
distinguir uma “profissão” de outra actividade económica, de outro “trabalho”); há um
processo de capacitação teórica e prática, que desemboca no desempenho da função de
forma estável. Há em muitas profissões alguma autonomia, que tem como resultado
também uma maior responsabilidade (donde, os códigos deontológicos assumem
especial relevância).
Os códigos de conduta também regulam o comportamento dos indivíduos de forma
directa mas, sendo elaborados pelas empresas, abrangem todos os indivíduos que nela
trabalham. Situa-se pois numa zona de fronteira entre o nível micro e o macro, entre a
regulamentação do comportamento de cada indivíduo e as normas de funcionamento da
organização. Já os códigos éticos são mais latos. Habitualmente há alguma confusão
entre códigos éticos e códigos de conduta. Quando a intenção da empresa é ter uma
ética fraca, portanto uma ética de controlo e punição, ela impõe códigos de conduta
(situação que já tivemos oportunidade de relevar). Os códigos éticos, seja incluindo a
conduta dos funcionários, seja somando-se ao código de conduta, implicam uma
definição da missão e visão, valores e princípios determinantes para a empresa,
tornando-os patentes, obrigando-a a comportar-se de acordo com o enunciado. Trata-se
pois de uma forma de os múltiplos stakeholders poderem eles próprios avaliar a
empresa, numa lógica de transparência e responsabilização organizacionais.
4.2 – Âmbito Orgânico
O âmbito orgânico não deve ser confundido com a organização. De facto, são os
instrumentos aqui em causa que se concretizam em órgãos, normalmente de staff (ou
seja, não estão incluídos na estrutura hierárquica da empresa, sendo a eles paralelos).
24 Págs 148-161.
Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica
132
Temos assim os conselhos de empresa, órgãos nos quais podem participar os
consumidores (similares portanto às comissões de utentes dos serviços públicos) e que,
podendo dar contributos válidos, fomentando cooperação e confiança, apresentam
dificuldades de funcionamento25. Similares mas mais frequentes, dada a facilidade no
que concerne à definição da sua composição e funcionamento, as comissões de
trabalhadores podem igualmente ser instrumentos que auxiliem a definição e regulação
de uma orientação ética na empresa. Quando existam, a boa comunicação (e isto não
significa concordância absoluta, mas simplesmente confiança e abertura negocial) entre
elas e as administrações são das formas mais intuitivas de avaliar até que ponto os
diferentes actores estão realmente empenhados em agira eticamente, ou seja, em
transportar a ética empresarial das codificações e da mera formalidade para vivência
quotidiana.
Importadas do plano jurídico, as provedorias têm como objectivo dar um tratamento
adequado às reclamações apresentadas e aos afectados por elas. Sendo um órgão de
staff, deve ficar garantida a imparcialidade e a defesa de todos os legítimos interesses
em jogo.
Estão também no âmbito orgânico as assessorias éticas, desempenhadas por
elementos que tanto podem trabalhar exclusivamente para a empresa ou que
desempenhem a função enquanto consultores externos. A assessoria abrange
essencialmente três níveis: o aconselhamento ético (quando o empresário ou gestor
pede opinião externa sobre determinada problemática), o juízo ético (quando se pede
uma tomada de posição concreta) e a auditoria ética (processos mais vastos, não
restringidos a questões concretas e que exigem habitualmente analisar o funcionamento
das empresas como um todo, retirando os pontos essenciais). As assessorias éticas estão
numa zona cinzenta entre o funcionamento organizacional e as suas repercussões
sociais, nomeadamente através das auditorias éticas.
4.3 – Âmbito Institucional
No âmbito institucional encontramos, para além de actores sociais (como
organizações patronais ou sindicatos), centros de investigação, universidades e
associações especializadas. Trata-se já de instrumentos que podem ser utilizados a um
nível social/global. Estes instrumentos tanto podem ser stakeholders em si como servir
de mediadores entre stakeholders. Encontram-se aqui as entidades responsáveis pelos
códigos deontológicos, bem como entidades que criam e monitorizam rankings de 25 Conforme Domingo García Marzá in Ética de la Empresa, Claves para una nueva cultura
empresarial, pág. 119.
Capítulo V – A Ética e a Gestão
133
empresas segundo o seu comportamento ao nível laboral, ambiental ou filantrópico. Por
fim, os centros de investigação relacionados de forma directa ou indirecta com o campo
da ética empresarial.
4.4 – Considerações finais sobre a institucionalização da Ética Empresarial em
relação à Ética do Discurso no sentido da pragmática transcendental
Os três âmbitos (normativo, organizacional e institucional) têm uma gradação
crescente de relação como a ética do discurso, sendo que o âmbito normativo pode
inclusivamente ser posto nos seus limites: como já referimos anteriormente, a definição
das normas materiais é algo que fica delegado para os discursos práticos que se
desenvolvem no seio das empresas (âmbito organizacional) ou da sociedade (âmbito
institucional).
Por sua vez, são os mecanismos encontrados pelas empresas para regular os conflitos
de interesses e os efeitos da sua actividade pelos afectados, e os mecanismos
desenvolvidos a nível social (actividade académica, associações, comissões de
acompanhamento, etc.) para a um nível molar definir linhas orientadoras, que ficam
vinculados aos princípios fundamentadores de uma ética pós-convencional de
responsabilidade e respeito pelos interesses de todos os afectados.
Nesse sentido, os meios de institucionalização da ética empresarial deverão respeitar
três ideias cruciais:
i. Promoção da transparência como fomentadora da confiança entre as empresas
(para as empresas adoptarem um agir eticamente orientado de forma responsável
têm de ter garantias de que as suas concorrentes estão sujeitas às mesmas
pressões e aceitam essa mesma orientação);
ii. Promoção da transparência como fomentadora da racionalidade dos
consumidores (os consumidores têm o direito de aceder à informação sobre os
produtos que consomem pois sobre os consumidores impende também o dever de
premiar as empresas eticamente orientadas – perspectiva maximalista – ou pelo
menos de punir as que de forma clara violem princípios morais universais –
perspectiva minimalista);
iii. Que esses meios se articulem numa rede tal que os agentes económicos se tornem
agentes juridicamente mais livres através de um agir moralmente orientado que
torne a coerção estatal menos premente (a ética empresarial é inseparável da
aceitação de uma economia de mercado, na medida em que se trata de uma
economia descentralizada fundada no conceito de indivíduo autónomo).
Ética Empresarial – Uma fundamentação teórica
134
Estas linhas orientadoras não são obviamente princípios absolutos, e podemos afirmar
com grande certeza que as empresas nunca confiarão inteiramente na honestidade dos
seus concorrentes, que os consumidores nunca pesarão em cada compra que fazem a
maior ou menor eticidade da empresa que produziu ou vendeu o produto ou serviço e
que o mercado funcionará de forma tão perfeita que o Estado nunca seja chamado a
intervir. Pragmaticamente teremos de aceitar que as falhas existem e existirão – mas
somos obrigados por um princípio moral transcendental a procurar formas de superar as
falhas e encontrar uma vivência justa para nós e para os outros, presentes e futuros.
Ao longo deste capítulo procurámos abordar as relações entre a ética
(empresarial) e a técnica (gestão) sob duas perspectivas distintas. Assim, nas
primeiras duas partes abordámos as correntes de gestão que historicamente
se revelaram mais relevantes para uma integração entre a ética e as
empresas. Aqui a técnica surgia enquanto sinónimo de gestão. Nas últimas
duas partes do capítulo as técnicas surgiram já como os instrumentos
actualmente mais em voga ou que podem ser mais úteis na aplicação prática
da ética empresarial.