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A FORMAO DAS REPRESENTAES SOBRE A CIDADE COLONIAL NO BRASIL
George Alexandre Ferreira Dantas
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A formao das representaes sobrea cidade colonial no Brasil
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao
em Arquitetura e Urbanismo da Escola deEngenharia de So Carlos Universidade de SoPaulo como requisito parcial para obteno do ttulode Doutor
DoutorandoGeorge Alexandre Ferreira Dantas
OrientadorProf. Dr. Carlos Roberto Monteiro de Andrade
FinanciamentoFundao de Amparo Pesquisa do Estado deSo Paulo [05/51462-8]
EESC-USP
So Carlos, junho de 2009
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Capa: talo Dantas de Arajo MaiaImagem da capa: J. M. Rugendas, Rua Direita no Rio de JaneiroFonte: BELLUZZO, Ana Maria de M. O Brasil dos viajantes. 2 ed. So Paulo: Metalivros: Rio deJaneiro: Objetiva, 1999, vol. III, p.79.
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ParaAna KarinaeAna Helena.
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Todo lenguaje es un alfabeto de smbolos cuyo ejercicio presuponeum pasado que los interlocutores comparten
Jorge Luis Borges, El Aleph,El Aleph
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AGRADECIMENTOS
Sou um leitor de pginas de agradecimentos. Repetitivas, por vezes,
inusitadas outras tantas, mesmo assim sempre ajudam a contar a histria pessoal e de
pesquisa de uma tese, as interlocues e os alicerces tericos, metodolgicos e,
antes de mais nada, afetivos que a sustentam. No posso deixar de fazer o mesmo e
espero que essas pginas possam assim ser lidas.
Os anos para o desenvolvimento de uma tese de doutorado so intensos,
longos. uma tessitura sem fim, pea que recebeu mos amigas no desenrolar inicial,
na construo da estrutura, na distribuio dos fios e nos arremates, moldando
pequenas mas significativas iluminuras no resultado final, cujo desenho, ainda
incompleto, foi rabiscado em vrios momentos tambm literalmente, em uma folha
sulfite avulsa no mais to branca que acompanha meu caderno de notas de pesquisa
, acrescentando linhas, palavras-chaves e muitas interrogaes. Assim, dessas mos
me ocupo agora.
Antes de mais nada, lembro que voltar a So Carlos foi enriquecedor, pessoal,
profissional e academicamente. E dessa satisfao pessoal de estar por mais de
sete anos, somando o perodo de mestrado, em uma cidade que aprecio que inicio
meus agradecimentos:
Uma vez mais, ao Prof. Carlos Roberto Monteiro de Andrade, pelo
compromisso intelectual de ajudar a levantar os alicerces desta tese, pelos contatos e
conversas inmeras, mesmo distncia, desde o incio do mestrado em 1999 e na
volta para o doutorado em 2005, pelo incentivo, confiana e pela amizade que vo
alm da orientao;
Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Arquitetura e
Urbanismo da EESC-USP, cujas reflexes, dentro e fora das disciplinas curriculares,
foram importantes para meus prprios questionamentos. Dentre todos, no posso
deixar de citar nominalmente Carlos Martins, Renato Anelli, Telma Correia, Cibele
Saliba Rizek e Sarah Feldman;
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Aos funcionrios do Departamento de Arquitetura, pelo apoio para desfazer
ns burocrticos e pelas amenidades da hora do caf: Joo Tessarin, Paulo Ceneviva,
Ben, Geraldo, Osvaldo, Zanardi e, em especial, Ftima e Marcelo Celestini, por
meio de quem agradeo aos outros no nomeados;
Aos funcionrios das diversas bibliotecas da USP onde pesquisei ao longo
dos ltimos quatro anos (da Faculdade de Direito do Largo So Francisco, da Central
da Politcnica, da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, da Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo na Cidade Universitria e na Rua Maranho, e, em
especial, do Instituto de Estudos Brasileiros e da Central da EESC); importante
tambm o trabalho da equipe do Lig Doc, sobretudo Adriana Perez Gomes,
operadora constante dos meus inmeros pedidos de artigos e captulos;
Do mesmo modo, aos funcionrios das diversas bibliotecas e arquivos de
outras cidades por onde pude passar e trabalhar: em Natal, na Biblioteca Central Zila
Mamede, da UFRN; em Recife, na Fundao Joaquim Nabuco; no Rio de Janeiro, na
Biblioteca Nacional e na Biblioteca Paulo Santos; em Campinas, na Biblioteca
Central da Unicamp (em especial, na seo de obras raras), do IFCH e no Arquivo
Edgard Leuenroth, a quem agradeo em especial ao Mrio e Isabel, que sempre
facilitaram e agilizaram a pesquisa nas micro-fichas; em Buenos Aires, na Biblioteca
Nacional, no acervo da Sociedad Central de Arquitectos e na Academia Nacional de
Historia; em So Carlos, na Biblioteca Comunitria da UFSCar, em especial aos que
mantm a sala de colees especiais;
Em meio s viagens de pesquisa, recebi a ajuda de vrias pessoas. Em Buenos
Aires, o prof. Luis Maria Calvo (da Universidad de Buenos Aires) deu-me indicaes
importantes para o trabalho nos arquivos; Maria Martina Acosta tambm apontou
arquivos e ajudou-me com informaes diversas sobre Buenos Aires; o prof. AdrinGorelik (Universidad de Quilmes) discutiu meu projeto e apontou vrias
possibilidades de histria comparada (que teremos que guardar para depois). Em
Quito, o prof. Eduardo Kingman (Flacso-Ecuador) foi muito gentil ao nos receber
na sesso de histria urbana do Congreso Latinoamericano de Cincias Sociales e nas
andanas pela cidade;
s professoras Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno (FAUUSP) e Cibele Saliba
Rizek (EESC-USP) pela leitura cuidadosa, pelas indagaes inspiradoras e pelas
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inmeras contribuies para pensar esta tese, seus argumentos e estrutura; na banca
final, tive a satisfao de contar tambm com as argies precisas dos professores
Paulo Cesar Garcez Marins (Museu Paulista-USP) e Carlos Alberto Ferreira Martins
(EESC-USP).
Ao professor Nestor Goulart Reis (FAUUSP), pela entrevista/conversa que
ajudou a esclarecer vrias questes na reta final da escrita e me levou a repensar
algumas partes e concluses;
Aos professores Jos Xaides e Antonio Carlos, do Departamento de
Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo da UNESP, campus de Bauru-SP, pela
confiana e oportunidade oferecidas durante o ano e meio que trabalhei como
professor na disciplina de Linguagem e valor esttico; aos alunos que aceitaram
partilhar (e, assim, se enlevar em) a trama fugidia que a discusso sobre arte,
cultura, arquitetura e histria; l contei tambm com a gentileza do Leopoldo e da
Mitsue na secretaria do curso;
Aos amigos que so tambm parceiros intelectuais leais e crticos, por vezes
severa e necessariamente crticos, mas, antes de tudo, afetuosos: Hamilton Varela,
Paula e famlia, que sempre nos deram muito apoio; Giuseppe Cmara e Janete Giz;
Francisco Sales e Ingrid; Rodrigo Firmino e Alessandra; Michelly Ramos e Vitor de
ngelo. Dentre esses, no posso esquecer do Fernando Atique, cujo apoio material e
fraterno foi imprescindvel tantas vezes, em So Carlos e, depois, em Campinas; na
reta final, o incentivo da Renata Cabral foi decisivo;
No posso esquecer tambm que foi com Rodrigo, Sales e Michelly que
partilhamos a construo do projeto do Caf com Pesquisa, srie de seminrios
(realizados entre 2005 e 2008) que nos ajudou a conversar mais entre ns mesmos e
com nossos colegas, afastando-nos, ainda que por alguns momentos, do
encastelamento por vezes inevitvel da pesquisa e da reflexo; a nossas amizades e
respeito se fortaleceram;
Aos amigos e colegas que partilharam os anos iniciais, em meio disciplinas,
elaborao de monografias, conversas, cafs, angstias, risadas, enfim ao cotidiano
acadmico da ps-graduao: Amanda Ruggiero, Caliane Almeida, Carolina Rossetti,
Ceclia Almeida, Dbora Foresti, Flvio Teixeira, Juliano Ceclio, Luiz Peixe
Teixeira, Marcus Vincius Queiroz, Paula Francisca, Sara Grubert, Teresa Cordido;
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depois, tambm, Adriana Almeida, Carolina Chaves, Mayara Mendona, Marcos
Santos e Olvia Maia; no posso deixar de lembrar tambm de Claudius Barbosa,
Cristina Campos, Fabiano Oliveira e Pedro Rossetto;
Aos inestimveis colegas e amigos do Urbis, que sempre acreditaram e
torceram muito por mim: Ceclia Lucchese, Fabola Cordovil, Lucas Cestaro, Luisa
Videsot, Maristela Janjulio, Thais Cruz e, depois, Ana Carolina Froes e Lorenza
Pavesi;
Tenho uma dvida grande para com o HCUrb (grupo de estudo em Histria
da Cidade e do Urbanismo, vinculado Base de Pesquisa Estudos do Habitat, do
Depto. de Arquitetura da UFRN), pelo incentivo constante s minhas pesquisas, pelo
aprendizado que o trabalho e a reflexo coletivos so possveis e importantes e,
enfim, pela amizade: a Angela Ferreira, Ana Caroline Dias, Anna Rachel Eduardo,
Alexsandro Ferreira, Gabriel Medeiros, Hlio Farias, Yuri Simonini, alm de Adriano
Wagner, Luiza Lima, Clara Rodrigues, Fabiano Fechine, Giovana Oliveira e Paulo
Nobre; no final, Yuri, Gabriel e Rachel deram-me um grande ajuda na reviso dos
captulos e Hlio ps nos eixos o que eu tinha alinhavado como abstract;
Aos amigos de Natal, Joo Pessoa e alhures: Alex e Janana, Andr e Alndia,
Marco Coutinho, Marcos Dantas Jr., Nilton Santos, Philippe Guaigner e Rosa,
Rossana Honorato, Sheila Paiva, Vincius Dantas, Wagner Martins e tantos outros;
A Fapesp (processo 05/51462-8), cujo apoio material e conceitual (por meio
das contribuies e crticas do/a parecerista) foi de fundamental importncia para o
desenvolvimento desta tese;
Por fim, minha famlia, sempre presente e divertida, ainda que distncia:
aos meus pais, Edmundo Eugnio e Expedita Ferreira, e a meus irmos, cunhadas esobrinhos, Leonardo, Sunia, Murilo e Diogo, Gustavo, Aline, Anastcia e Alicia
(recm-nascida), Cludio e Jamile. Em Campinas, contei sempre com o apoio e o
entusiasmo de Hlio Ferreira e Idati Sigo, Alexander e Raquel, Alessandro, Ana Paula
e Vincius. Aos meus sogros, Marcos e Albanita; a Marcos Jr. e rika. H outros que
gostaria de aqui nomear, mas a tarefa seria longa, ainda assim registro que so
tambm especiais para mim. Por fim e em especial, para Ana Karina e Ana Helena,
que construram comigo esta tese. Helena nasceu em meio a toda essa histria (em
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julho de 2006) e fez-me reescrever minhas escolhas, planos, itinerrios, para faz-las
nossas, para fazer tudo valer a pena, nossa iluminura.
So Carlos, junho (ainda outono) e agosto de 2009.
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RESUMO
A formao das representaes sobre a cidade colonial no Brasil.
A crtica da cidade colonial foi um dos principais temas nas discusses e justificativas para as
reformas e melhoramentos por que passaram muitas cidades na virada para o sculo XX.Desde aquelas mais importantes administrativa e economicamente nos trs primeiros sculosde colonizao, como o Rio de Janeiro, Salvador e Recife, at as que pouca relevncia tinhamna incipiente rede urbana do perodo colonial, como Natal, a crtica repetiu-se,homogeneamente primeira vista, nas vrias cidades em transformao, independente dasparticularidades das vrias estruturas urbanas e da maior ou menor irregularidade dos seustraados. Para alm da questo sobre a existncia ou no de planejamento por parte docolonizador portugus, esta tese discute como se formaram as representaes sobre a cidadecolonial no Brasil. Nas trilhas dessa imagem construda amide em negativo, aborda-se: aleitura empreendida pelos viajantes estrangeiros no incio do sculo XIX, com nfase nolivro de Henry Koster, Travels in Brazil (1816); a problematizao e instrumentalizao dotema em meio s formulaes higienista e sanitarista sobre a necessidade de reformar e
modernizar o espao urbano ao longo do sculo XIX; da mesma maneira, no processo deformao do campo disciplinar do urbanismo no Brasil na virada para o sculo XX; e, aapropriao do tema na constituio da historiografia sobre a arquitetura brasileira. Por fim,tecem-se algumas consideraes sobre o texto que seria tomado como o momento fundantedessa representao: o captulo O semeador e o ladrilhador, de Razes do Brasil (1936), deSrgio Buarque de Holanda.
Palavras-chaves: cidade colonial representaes historiografia arquitetura urbanismo
ABSTRACT
The formation of representations on Brazilian colonial cities.
The critique of the colonial city was one of the most usual themes on the discussion andjustification of reforms and improvement plans targeted at several Brazilian cities in the turnto the twentieth century. The critique was reiterated in a virtually homogeneous fashion allover Brazil, regardless of the specific urban characteristics in each settlement, whether it wasbeing applied to cities that concentrated great administrative and economic importanceduring the colonial times, such as Rio de Janeiro, Salvador and Recife, or to those thatcarried little relevance in the colonys fledgling urban network, such as Natal. Beyond theissue of whether the Portuguese colonizers were planning settlements, this thesis discusseshow representations on Brazilian colonial cities came to be. As the development of thisgenerally negative image is tracked down, this work explores the images of Brazilian citiesforged by foreigner travelers, focusing on Travels in Brazil (1816), by Henry Koster; thethemes problematization by physicians and sanitary and polytechnic engineers, for whomthe theme of colonial city was instrumental to demand for the urban reforms andmodernization they sought over the nineteenth century; the appropriation of this themeduring the process of formation of urbanism as a discipline; and in the many texts and booksthat delineated modern historiography on Brazilian architecture. Finally, some considerationsare made on the text that could be considered the foundation for these representations:Srgio Buarque de Holandas O semeador e o ladrilhador, a chapter from his 1936 work,Razes do Brasil.
Key-words: colonial city representations historiography architecture urbanism
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SUMRIO
Introduo
19Primeiras cartografias de representaes
As partes da teseNotas sobre o conceito de representao
252833
Captulo 1Leituras Viajantes: a cidade colonial entre olhares estrangeiros 63
1.1 Leituras formativas1.2 O observador que participa1.3 Narrar a cidade, viver a cidade
738593
Captulo 2As cidades estreitas e sujas: esforos para constituio de uma (nova)ordem urbana 105
2.1 Higiene para as cidades2.2 o traado sanitrio das cidades
110134
Captulo 3A arte que lhe falta: legitimaes do campo disciplinar do urbanismo 147
3.1 A primeira cidade da Amrica do Sul 157
Captulo 4A cidade colonial na histria da arquitetura: usos, indcios, ecircularidades 171
4.1 Antiurbanismo ou as limitaes impostas pelo passado4.2 delineamentos narrativos4.3 estudos sobre arte e arquitetura colonial
177185194
Consideraes finaisImagens e representaes em um texto fundador 203
Referncias 213
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INTRODUO
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introduo________________________________________________________________________________________________________________
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E se estiver na pausa e no no assovio o significado da mensagem?Se for no silncio que os melros se falam?
Italo Calvino, Palomar
Os textos de abertura de dois livros pioneiros e importantes sobre o estudo
das vilas e cidades do perodo colonial brasileiro1 so significativos em suas
preocupaes congneres, revelando um esforo historiogrfico de discusso
aprofundada, baseada em um amplo levantamento documental que abrangeuarquivos brasileiros e europeus, sobremaneira, para refutar e estabelecer novas bases
para o tema.
Tanto Nestor Goulart Reis quanto Roberta Delson apontam para a imagem
comum e inconteste, de conotao negativa, que at ento se tinha sobre a cidade
colonial no Brasil. Imagem que, diga-se, constitua-se numa premissa dos estudos de
histria latino-americana e dos compndios de arquitetura: o desalinho, o
enviesamento das ruas, a ocupao espontnea e aleatria, a trama urbana irregular eestreita, escura e insalubre, denunciariam a falta de ordem e de plano na sua
construo, reflexo do desleixo portugus na colonizao do Brasil. Como
lembraria Delson, a construo de Braslia na dcada de 1960 representou para
muitos o incio da planificao urbana formal no pas2 o que desconsideraria at
mesmo a criao de Belo Horizonte e Goinia.
Ambos os trabalhos viriam desmontar portanto esta imagem, o carter
negativo na leitura do espao urbano colonial brasileiro, que homogeneizara umainterpretao sobre o seu processo de urbanizao e at mesmo obscurecera os
1Nestor G. Reis, Contribuio ao estudo da Evoluo Urbana do Brasil 1500/1720 , 2000, e Roberta Delson,Novas vilas para o Brasil-Colnia: planejamento espacial e social no sculo XVIII, 1997; o trabalho do professorNestor Goulart foi apresentado em 1964 e conheceu sua primeira edio em 1968, pela LivrariaEditora Pioneira; o livro de Delson foi publicado originalmente em ingls, em 1979.
Observao: optamos por uma entrada simplificada, em nota de rodap, das referncias completas quese encontram no final desta tese, permitindo assim saber desde logo quem o autor e qual o ttulo daobra; assim, nem nos limitamos ao sistema autor-data, nem nos estendemos demais para anotar todasas informaes bibliogrficas. Esse procedimento foi adotado ao longo de toda a tese.2R. Delson, op. cit., p.xi.
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introduo________________________________________________________________________________________________________________
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vrios exemplos de novas comunidades planejadas no sculo XVIII. Primeiro, dando
a lume alguns planos urbansticos dos dois primeiros sculos de colonizao em
especial o que orientou a criao de Salvador ainda na primeira metade do sculo
XVI e o processo social de ocupao do territrio, ao qual certa preocupao com
o ordenamento urbano esteve desde o princpio vinculado, quer em traados
regulares ou no;3em segundo lugar, deslindando o amplo programa de criao de
vilas e cidades para o serto do Brasil durante o Setecentos, uma clara poltica
urbana dos administradores portugueses para expandir e garantir o controle da Coroa
sobre a colnia; ademais, a regularidade e a homogeneidade dos novos espaos
seriam tambm expresso do pensamento racional iluminista e absolutista europeu e
indutores de novos padres culturais e sociais.4
Outros estudos avanaram nessas questes, colocando novos elementos na
discusso sobre a existncia de um processo de ordenamento e de planificao
portuguesas na sua maior colnia ultramarina, desde um chamado urbanismo
vernacular portugus no interior, passando pela definio dos diversos agentes
modeladores do espao urbano, em especial o papel do almotac e do engenheiro
militar, at a relao entre a forma urbana e as tecnologias de guerra. 5Contudo, se
todos esses estudos tm demonstrado que de fato houve planejamento na criao demuitas vilas e cidades desde o sculo XVI, e no apenas sob o governo absolutista do
Marqus de Pombal, o que evidenciaria uma poltica urbanizadora para a Amrica
Portuguesa, permanece em aberto a questo sobre a formao dessa representao
sobre a cidade do perodo colonial no Brasil. Afinal, como essa imagem se forma e
adquire carter historiogrfico? Quais as suas razes e quais as suas repercusses no
estudo e, conseqentemente, na transformao das cidades brasileiras? Como ela
assume um vis predominantemente negativo que, como afirmaria Nestor Goulart,
3N. G. Reis, op. cit.4R. Delson, op. cit.5Como exemplo no avano nas discusses sobre a cidade colonial brasileira, basta ver o crescenteinteresse e nmero de trabalhos sobre o tema nos ltimos Seminrios de Histria da Cidade e doUrbanismo, em especial a partir da IV edio (Rio de Janeiro, 1996), dos quais fizemos aqui algumasreferncias. A esses, somem-se pesquisas recentes que se constituem referncias fundamentais paraesta discusso, como: Laurent Vidal,Mazago, 2008; Amlcar Torro,A arquitetura da alteridade: a cidadeluso-brasileira na literatura de viagem (1783-1845), 2008; Rodrigo Baeta, Ouro Preto cidade barroca, 2003;
Beatriz Bueno, Desenho e Desgnio, 2001; Manuel Teixeira e Margarida Valla, O urbanismo portugus: sculosXIII-XVIII, 1999.
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desqualificaria os ncleos urbanos brasileiros como objeto de estudo?6Estas so
algumas das questes que moveram os interesses das pesquisas que fundamentam
esta tese desde o incio.
Responder a tais questes no obviamente o interesse dos estudos acima
citados, voltados que esto ao problema da interpretao dos significados da
colonizao portuguesa, na qual a forma das cidades e a conduo ou no no seu
processo de construo constitui-se como uma das expresses mais fortes. De
forma esquemtica, pode-se afirmar que a oposio se coloca entre aqueles que
defendem a existncia de uma clara poltica de urbanizao portuguesa para o Brasil,
expressa em modelos, ordenamentos e planos, e aqueles que a negam ou diminuem a
sua importncia frente ao poder do mundo rural ou s especificidades da colonizao
lusitana.
Cabe aqui abrir um parntese: ao discutir os estudos sobre as cidades
coloniais no Brasil, Paulo Santos identificaria trs enfoques que estruturavam essa
discusso: o primeiro, tributrio da oposio semeador-ladrilhador de Srgio
Buarque, enfatizaria o desleixo do colonizador portugus; o segundo leria com
complacncia a suposta ingenuidade canhestra das solues do povoador; o terceiro
elogiaria a diligncia e o sinal de progresso das cidades construdas a partir de
traados regulares. Insatisfeito com tais enfoques, Santos proporia um quarto:
reconhecer a genuinidade das cidades de traado irregular como herdeiras de um
outro sistema de conceitos urbansticos, que remontariam Idade Mdia.7 Antes
ainda, o crtico de arte Maria Barata, durante sua exposio na primeira sesso
(dedicada ao tema da Cidade nova) do Congresso Internacional Extraordinrio de
Crticos de Arte, em 1959, afirmaria que mesmo construdas de acordo com tradio
medieval lusa, essas primeiras cidades brasileiras parecem ter tido traado originalmais regular e ortogonal do que geralmente se supe. A expanso posterior,
6N. G. Reis, op. cit., p.13.7Paulo Santos, Formao de cidades no Brasil colonial, 2001 [1968]; Cf. tambm a reviso bibliogrfica deA. Torro Filho, Imagens de pitoresca confuso: a cidade colonial na Amrica Portuguesa, RevistaUSP, 2003. No se pode deixar de mencionar que tanto Formao quanto Quatro sculos de
Arquitetura (1965) so posteriores participao de Santos na banca de livre-docncia do professorNestor Goulart.
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descendo as acrpoles originais de defesa dos stios, que teria acentuado as
irregularidades.8
Seguindo a exposio de Roberta Delson e Nestor Goulart, estariam na
segunda categoria alguns autores como Robert Smith, Richard Morse e Henrique
Mindlin, aqueles para quem a ordem era ignorada pelos portugueses (a frase de
Smith, em Arquitetura colonial, de 1955). Poder-se-ia acrescentar ainda entre esses
Yves Bruand. Quando o palegrafo francs concluiu o seu amplo panorama sobre a
arquitetura brasileira do sculo XX, a primeira edio do livro de Nestor j era
conhecida no meio acadmico; contudo, considerando o exemplo da planificao de
Salvador inconsistente, embasar-se-ia em Srgio Buarque (no que diz respeito ao tipo
de cidades criadas pelos portugueses, em oposio aquele dos espanhis) para
afirmar que o urbanismo portugus foi mais negativo do que positivo em relao
tarefa de planificao....9
Estaria a, portanto, a oposio bsica e fundamental que, diga-se, tem
fomentado algumas importantes discusses e controvrsias no campo disciplinar da
histria urbana, da arquitetura e, principalmente, do urbanismo. A polmica de
fundo, congnere aos dois estudos iniciais j citados, abre-se a partir do captulo O
semeador e o ladrilhador, do clssico Razes do Brasil, no qual Srgio Buarque
trabalha com a metodologia dos contrastes10 para comparar e estabelecer as
diferenas entre o empreendimento colonizador espanhol e o portugus em matria
de urbanismo.
A fantasia com que em nossas cidades, comparadas s da Amricaespanhola, se dispunham muitas vezes as ruas e habitaes , semdvida, um reflexo de tais circunstncias [a primazia do mundorural, o carter mercantil da colonizao portuguesa, a maiorliberalidade de sua administrao, etc.]. Na prpria Bahia, o maiorcentro urbano da colnia, um viajante do princpio do sculoXVIII [L.G. de la Barbinais] notava que as casas se achavamdispostas segundo o capricho dos moradores. Tudo ali era
8Atas do Congresso Internacional Extraordinrio de Crticos de Arte, Braslia, So Paulo e Rio de Janeiro, set.1959, p.13-15.9 Y. Bruand, Arquitetura contempornea do Brasil, 1997, p.325; o seu livro foi fruto de uma pesquisarealizada durante a dcada de 1960, que resultou em tese defendida na Universit de Paris IV, em 1971;foi publicado em portugus apenas em 1981.10A. Candido, O significado de Razes do Brasil [1967], in Razes do Brasil, 2006, p.237.
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irregular, de modo que a praa principal, onde se erguia o Palciodos Vice-Reis, parecia estar s por acaso no seu lugar. 11
Se a riqueza da anlise concisa e sinttica, mas no menos profunda e erudita,
de Srgio Buarque influenciou decisivamente estudos posteriores sobre a formao
social brasileira advinda do perodo colonial, inegvel que o tema da cidade colonial
j estava presente, bem antes da dcada de 1930, no meio intelectual e tcnico
brasileiro. Uma das representaes iria tom-la, em negativo, como a expresso
material do atraso que deveria ser superado para a construo da cidade moderna no
Brasil e, no fim, para a constituio de uma moderna nao.
Primeiras cartografias de representaes
A crtica da cidade colonial foi um dos principais temas nas discusses e
justificativas para as reformas e melhoramentos por que passaram muitas cidades na
virada para o sculo XX, formulada por mdicos, higienistas, sanitaristas,
engenheiros, mas tambm como objeto dos ensaios e textos de carter
historiogrfico. Desde aquelas mais importantes administrativa e economicamente
nos dois primeiros sculos de colonizao, como o Rio de Janeiro, Salvador e Recife,at as que pouca relevncia tinham na incipiente rede urbana do perodo colonial,
como Natal, a crtica repetiu-se, homogeneamente primeira vista, nas vrias cidades
em transformao, independente das particularidades das vrias estruturas urbanas e
da maior ou menor irregularidade dos seus traados. O engenheiro sanitarista
Saturnino de Brito, por exemplo, um dos nomes mais importantes na constituio do
urbanismo moderno no Brasil e cuja original e vasta obra terica e prtica teve
grande ressonncia no pas,12no deixou de comentar e condenar a chamada cidade
antiga em muitos dos seus planos de extenso, saneamento e melhoramentos para
cidades como Campos, Recife e Santos.
Deve-se afirmar, ademais, que o interesse por essa questo nasceu de certas
indagaes e constataes sobre o processo de transformaes urbanas de Natal nos
anos 1920. Trabalhando com o contraste entre as leituras histrico-literrias
11S. B. Holanda, Razes do Brasil, 2006 [1936], p.109.12Cf. C. Andrade,A peste e o Plano: o urbanista sanitarista do Eng. Saturnino de Brito, 1992.
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formuladas durante a Primeira Repblica sobre a cidade colonial e a sua forma fsica,
representada na parca iconografia existente sobre a cidade at o incio do sculo XX,
seria aventada a hiptese de que o seu processo de modernizao pressups a
construo historiogrfica da (imagem da) cidade colonial.13
Isto , a transformao fsica dar-se-ia no apenas sobre a trama urbana
herdada do perodo colonial e imperial, mas principalmente sobre o conjunto de
significaes (negativas) do qual foi eivado este espao: territrio de prticas
incivilizadas e rudes, de insalubridade, de estagnao econmica, do capricho, do
acaso, contra o qual era erguida e sustentada a ordem do plano urbano, produto da
razo humana guiando os caminhos do futuro. Mas, poder-se-ia questionar, esse
processo ocorreu apenas em Natal ou conheceu correlatos e similares em outros
contextos de modernizao de cidades, onde a herana urbana do perodo colonial
era bem mais presente?
Sabe-se que Saturnino de Brito, j mencionado aqui, apoiava a sua teoria da
urbanizao numa leitura evolucionista do crescimento das cidades brasileiras que
tinha forte correlao com o positivismo comteano. maneira dos trs estados
intelectuais da humanidade, haveria trs fases na vida de uma cidade, das quais a
primeira era a lenta expanso do acaso colonial. Significativamente, Brito concordaria
com Camillo Sitte outra de suas grandes referncias tericas no elogio do espao
orgnico das cidades medievais europias, mas no o faz na anlise do espao urbano
do perodo colonial brasileiro mesmo quando a disposio de praas e igrejas
poderia ser enquadrada em exemplos sitteanos.14
No Recife, evocava-se uma ordem mtica da cidade Maurcia, fruto da
presena holandesa no sculo XVII, que buscava legitimar, no passado, a
racionalidade dos planos do urbanismo moderno do sculo XX. Mauritzstadt, a
urbanizao da ilha de Antonio Vaz, formaria ento o contraste com o espao (mal)
construdo pelos portugueses ao longo dos sculos. Os aplogos da modernizao
tentavam mostrar assim que havia no prprio passado da cidade uma vocao natural
para a regularidade e a racionalidade, e no apenas as tipologias e a morfologia do
13Cf. George Dantas, Linhas convulsas e tortuosas retificaes: transformaes urbanas em Natal nos ano 1920,2003, em especial o captulo 2, No h-tal, Natal: movimentos de construo e desconstruo dacidade colonial.14Essas questes sero retomadas no captulo 2.
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espao tradicional.15 Em meados do sculo XIX, os elementos materiais que
marcavam os usos religiosos do espao pblico da capital pernambucana foram
considerados, de maneira reiterada, como a expresso de um passado obscuro que
deveria ser expurgado. As formas antigas eram tomadas como entraves fsicos e
simblicos ao progresso. Assim, defendia-se como
Indispensvel [a] demolio dos arcos de Santo Antonio e daConceio, logo antes da abertura do trnsito. A existncia dessesarcos hoje incompatvelcom o estado atual (...).
Pelo lado material vemos que o aumento extraordinrio daedificao e aformoseamento da cidade reclama semelhanteprovidncia, por quanto esses arcos, alm de impedirem o livrotrnsito da grande massa de povo que por ali ter de passar, so por
suas antigas formas, um completo antagonismo da atualidade, umaanomaliaperfeita.16
No Rio de Janeiro, a modernizao da cidade para transform-la numa capital
integrada ao circuito internacional do capitalismo comercial pressups a destruio a
golpes de picareta da configurao scio-espacial antiga, substituindo-a pelos
referenciais ditos civilizados, importados da Belle poqueeuropia.17Em So Paulo,
cidade que se assemelhava a Natal no tamanho acanhado e na menor importncia
econmica durante o perodo colonial, transformar-se em metrpole significaria nosomente a ruptura com os limites de fundao, o chamado Tringulo, mas a defesa
da destruio dos resqucios da cidade antiga, como faria Alexandre de Albuquerque
em seu plano de melhoramentos para o Vale do Anhangaba, em 1910.18
Percebe-se assim que a questo da cidade colonial seus significados, sua
herana estava em disputa e em construo. Neste processo, vrias referncias
fazem-se presentes e revelam o olhar que se volta e inquire o passado colonial.
Olhares que como toda operao historiogrfica constroem e, ao faz-lo,selecionam, recortam, eliminam, hierarquizam. Essas referncias so diversas e
provm de vrias disciplinas e matrizes do pensamento, quer vinculadas gnese do
15Jos Lira,Mocambo e Cidade: regionalismo na arquitetura e ordenao do espao habitado,1996, p. 212-225.16Jornal do Recife, 26 jul. 1865, apud Raimundo Arrais, O Pntano e o Riacho: a formao do espao pblico noRecife do sculo XIX, 2004, p.334-35.17Cf. Giovana Del Brenna, O Rio de Janeiro de Pereira Passos, 1985; e Nicolau Sevcenko, Literatura comomiss: tenses sociais e criao cultural na Primeira Repblica, 1999 [1983].18
H. Segawa, Preldio da metrpole : arquitetura e urbanismo em So Paulo na passagem do sculo XIX ao XX,So Paulo: Ateli Editorial, 2000, p.16; Jose Geraldo Simes Jr,Anhangaba: histria e urbanismo, 2004.
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introduo________________________________________________________________________________________________________________
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urbanismo moderno no Brasil, quer s influncias tericas (histricas, filosficas,
cientificistas, etc.) do pensamento social brasileiro.
Assim, esta tese partiu da hiptese de que a cidade moderna constituiu-se
tambm como oposio aos chamados valores confusos, s ruas estreitas e
desalinhadas, aos registros fsicos de uma cidade sem ordem do perodo colonial. So
representaes que, portanto, revelariam muito mais sobre o carter e os significados
do projeto de modernizao que se pretendia para o pas do que sobre a prpria
cidade do perodo colonial.
Assim, quando, e.g., um importante engenheiro como Loureno Baeta Neves
atestava, na introduo s Obras Completas de Saturnino de Brito, que
(...) a realizao do servio de esgotos de Santos onde pelaprimeira vez se concretizaram em larga escala ensinamentos deSaturnino de Brito afirma de modo eloqente e positivo a grandevitria do Brasil moderno contra o torpor colonial que abatia o seu esprito enos colocava numa dependncia passiva da intervenoestranha nas solues prticas dos nossos problemas sanitrios.19
entrev-se um momento em que uma certa leitura da cidade colonial estava
consolidada. Mas, que leitura essa? unvoca, homognea, ou, ao contrrio,
resultado de uma batalha pelos sistemas de percepo e enunciao de conceitos,
interpretaes, leituras, imagens que, por sua vez, passam a ter valor operativo (a
produzir e ou orientar estratgias e prticas, como lembra o historiador Roger
Chartier)?20Como se formou? e, em conseqncia, qual sua lgica narrativa, quais
referncias, quais palavras-chaves (com poder de sntese), quais recorrncias?
As partes da tese
Interessa a esta pesquisa, ento, discutir o que se reputa como o problema
historiogrfico da formao de uma determinada representao negativa sobre as
vilas e cidades do Brasil colonial. Assim, a problemtica, em muitos aspectos
superada, sobre a existncia ou no de planejamento portugus para suas colnias
ultramarinas e, em especial, para o Brasil, , aqui, de relevncia, a princpio,
19L. Baeta Neves, Introduo, in Obras Completas de Saturnino de Brito, v.1, 1943, p.xv.20O conceito de representao ser discutido na nota final introduo.
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secundria e quando ajudam a cartografar essa representao, seus lugares-comuns
e fundos-comuns.
Quais os elementos formativos, quais as matrizes do pensamento que
informaram e influenciaram a construo historiogrfica sobre a cidade colonial no
Brasil? Quais representaes se formam para alm da longeva e quase inconteste
imagem negativa que se lhe foi atribuda? Um problema de fundo historiogrfico,
como dito, que, defende-se, pode ser revelador das estratgias de legitimao e
justificao de diversos saberes modernos em emergncia e consolidao no Brasil.
Para enfrentar esse problema, foram propostos trs eixos investigativos para
tentar deslindar os possveis emaranhados na construo da narrativa historiogrfica
sobre a cidade colonial, procurando identificar sobreposio de teses e argumentos,
dilogos entre textos de campos disciplinares distintos, referncias comuns, etc. O
primeiro eixo aborda o que se chamou aqui de matriz higienista/sanitarista,
enfatizando as representaes oriundas da emergncia do saber mdico e do papel
reformador do engenheiro sobre a cidade, ao longo do sculo XIX e das primeiras
dcadas do sculo XX. O segundo eixo discute a matriz urbanstica, acompanhando
de perto as representaes provenientes da consolidao de uma disciplina que
arrogaria autoridade, autonomia e especificidade para transformar, reformar, derrubar
a cidade e seu legado urbano do perodo colonial (que, seguindo essa formulao,
adentraria e marcaria o perodo imperial). O terceiro eixo inquire a formao da
historiografia da arquitetura no Brasil no sculo XX ao tomar as relaes com o
passado como moto explicativo fundamental, permitiu reconstruir uma ou mais das
possveis genealogias das representaes que aqui se problematizam, perceber
referncias que se repetem, palavras que emulam ou que deslizam semanticamente.
Eixos que, invariavelmente, remetem-se, direta ou indiretamente, crtica ou
acriticamente, aos relatos dos viajantes estrangeiros que vieram ao Brasil desde o
sculo XVI e, em especial, aqueles que testemunhariam a acelerao do processo de
transformaes por que a ainda colnia passaria a partir do incio do sculo XIX.
Afinal, o olhar de fora foi fundamental para a conformao das maneiras como se
leu e como se deu a ler as paisagens natural, urbana e cultural do Brasil, implicando
na construo do prprio olhar de dentro, do conhecimento e das formas de ler e
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introduo________________________________________________________________________________________________________________
3
narrar o passado do pas21 nesse sentido, significativo que o marco inicial da
historiografia brasileira seja o ensaio de Carl Friedrich von Martius (autor da longa e
abrangente Viagem pelo Brasil, ao lado de Johann Baptiste von Spix), vencedor do
concurso promovido pelo Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro e publicado em
1845, intitulado Como se deve escrever a histria do Brasil. Martius no escreveu
tal histria, mas os princpios de seu ensaio teria larga circulao entre os prprios
membros do IHGB, desde a Histria de Varnhagen.22
Assim, a presente tese parte, no captulo 1, da discusso sobre a leitura acerca
das cidades coloniais luso-brasileiras que seriam construdas pelos viajantes
estrangeiros no incio do sculo XIX, enfatizando o livro Travels in Brazil, de Henry
Koster, publicado em Londres em 1816. Apenas um livro para construir
generalizaes, encontrar respostas e delimitar os elementos constitutivos da
representao que esta tese persegue? No h tal pretenso. Aqui, mais do que nos
outros captulos, reconhecem-se as limitaes que se enfrenta forosamente ao tentar
articular tramas e formulaes derivadas de diversos campos de conhecimento.
Assim, foi necessrio o trabalho constante com fontes secundrias e
compilaes, seletas de texto, etc., para contemplar um conjunto amplo e variado de
reas de interesse que, reconhea-se, amide se cruzam. Entretanto, isso no implica
a desconsiderao das fontes primrias, do acesso direto e sempre que possvel
fsico e no apenas virtual aos documentos originais, s edies originais. Enfatizar
tal dimenso explica-se porque, e.g., ao propor abarcar as representaes de cidade
formuladas pelo olhar de fora no se possvel no mbito de uma pesquisa de
doutorado que no as tem como objeto principal abarcar todos os documentos
originais da mirade de relatos deixados pelos viajantes durante o sculo XIX (e, veja-
se, tal recorte j aponta para uma circunscrio dentro de uma produo queremonta, com muitos exemplos, ao sculo XVI). Assim, o acmulo de releituras e
discusses sobre o tema torna-se ainda mais fundamental,23 ajudando a iluminar o
21Ana Maria Belluzzo, O Brasil dos viajantes, 1999; Flora Sussekind, O Brasil no longe daqui, 1990.22 Amlcar Torro Filho, A arquitetura da alteridade: a cidade luso-brasileira na literatura de viagem (1783-1845), 2008, p.249 et seq.23 Nesse sentido, os textos j citados de Amlcar Torro Filho (2008) e de Ana Maria de Moraes
Belluzzo (1999) foram referncias importantes, abrindo-nos portas e apontando possibilidades deanlises e mesmo possveis concluses.
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prprio texto de Koster e a compreend-lo dentro de uma rede de significaes
sobre o tema no perodo.
O captulo 2 aborda o primeiro eixo de anlise proposto, procurando mapear
como o tema do passado das cidades foi tematizado pelos profissionais que se
debruaram sobre as transformaes por que os espaos urbanos brasileiros
passaram ao longo do sculo XIX. A nfase inicial considera a tica higienista e,
principalmente, a cidade do Rio de Janeiro, porque seria onde os esforos mais
sistemticos foram feitos (e por alguns dos principais profissionais, aqueles que
fizeram parte do crculo real e imperial) e onde primeiro foram discutidos. Na
segunda parte do captulo, aborda-se a instrumentalizao do tema da cidade colonial
pelas formulaes do urbanismo sanitarista, que, desde fins do sculo XIX, vinha
tecnicalizando as discusses higienistas e apontando caminhos decisivos para a
formao do campo disciplinar do urbanismo no Brasil.24
O captulo 3 prope discutir um momento especfico e fundador das
discusses sobre o urbanismo no Brasil embora assim ainda no se nomeasse: o
processo que levaria fundao de Belo Horizonte na dcada de 1890, considerando
em especial os documentos da Comisso, liderada pelo engenheiro Aaro Reis, que
escolheria, dentre cinco localidades preestabelecidas, o antigo arraial de Curral dEl
Rei.25
Para o captulo 4, trabalhou-se com a hiptese de considerar os textos
constituintes da historiografia da arquitetura brasileira como, de certa maneira,
ensaios de interpretao do Brasil. Assim, ao mobilizar temas de fundo como o da
cidade colonial para construir a leitura sobre o objeto principal do ensaio, vrias
palavras, expresses, exemplos e conceitos so utilizados, permitindo mapear quais
referncias eram explicitadas, diretamente ou no, e como eram mobilizadas,
iluminando, assim, linhas narrativas que retrocedem, e.g., de Yves Bruand para
Fernando Azevedo, desse para Gilberto Freyre e, desse, para o relato de muitos
24Para esta segunda parte, os trabalhos do professor Carlos de Andrade (1992 e 1996) serviram comopontos de partida importantes.25A compilao de Ablio Barreto (1996), reeditada por ocasio do centenrio de Belo Horizonte, e os
textos da pesquisadora Heliana Salgueiro (1997; 2001) foram um suporte fundamental para construodesse captulo.
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introduo________________________________________________________________________________________________________________
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viajantes, que, a exemplo de Henry Koster, pousaram no Brasil na primeira metade
do sculo XIX, dentre muitas outras fontes.26
Por fim, estabelecem-se algumas consideraes sobre aquele texto que, ao
longo desta pesquisa, serviu como ponto de partida para as indagaes que a
fundamentam e transformaram-se em ponto de inflexo quando das inescapveis
crticas e auto-crticas sobre a pertinncia da problemtica acerca das representaes
sobre a cidade colonial no Brasil, i.e., questionar se tais representaes foram de fato
to longevas e, mais importante, se foram extensivas, homogneas, operativas.
Assim, pensar como o texto o semeador e o ladrilhador, do clssico Razes do Brasil,
de Sergio Buarque de Holanda, ajudou a construir e a consolidar o estatuto
historiogrfico dessas representaes (principalmente a partir das revises da segunda
edio, de 1948), mesmo que fundamentando debates e querelas que lhe escapavam,
conformam o ponto de chegada desta tese.
Assim, h que se fazer algumas advertncias sobre esta tese. Antes de mais
nada, deve-se reconhecer as limitaes inerentes ao enfrentamento de um problema
historiogrfico que comporta muitas sobreposies, tramas diversas, uma genealogia
no mais das vezes difusa, que parece escapar das mos do investigador envolvido
com muitas fontes primrias e secundrias e sem recorte temporal muito preciso.
A narrativa que articula essas preocupaes, organizada nos quatro captulos
j explicitados, no pretende montar linhas de continuidade de representaes, dos
lugares-comuns e dos fundos-comuns, mas elas se impem vez ou outra, como se
poder perceber. O texto , em alguns momentos mais fragmentrio, quase
episdico, em outros, h mais fluidez na narrativa. De fato, o interesse fincou-se em
cartografar nfases, usos reiterados, indcios, circulaes e mesmo mudanas de
significaes de palavras, cortes especficos em relao a uma crescente construo
da leitura da cidade antiga, da cidade do passado, da cidade colonial brasileira.
Desta maneira, no interessou especificamente, e.g., fazer uma histria da
literatura dos viajantes no Brasil, mas mapear/cartografar/descobrir as peas de um
quebra-cabeas imenso e incompleto; outrossim, no interessou fazer uma histria da
medicina ou da higiene pblica no Brasil ou mesmo da estruturao da engenharia
26
A dissertao do professor Carlos Martins sobre a formao da trama narrativa hegemnica dahistoriografia da arquitetura brasileira deu-nos a moldura para comear a compor esta captulo.
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sanitria. Ao tomar como campo de atuao principal a cidade, pode-se acompanhar
a construo narrativa de justificativas e legitimidades para a ao profissional, como
se nomeou e equacionou o problema a ser enfrentado e a cidade existente foi,
claramente, transformada em problema.
Talvez a imagem do quebra-cabea de Ginzburg e Prosperi, conforme narra
Manfredo Tafuri na introduo ao livro A esfera e o labirinto (quando expe uma
espcie de suma do seu projeto e mtodo de investigao), seja apropriada para
aclarar essas limitaes para enfrentar um problema que eminentemente
historiogrfico mas que, bvio, se rebate nas prticas culturais e materiais que
transformam e significam a cidade. Em determinado momento, as peas acumuladas
nos caminhos tortuosos e complexos do curso labirntico da anlise histrica,
comeam a se juntar e a fazer sentido podem ser colocadas, uma a uma, agrupadas;
contudo, ao contrrio do jogo, nem a imagem a ser composta apenas uma e nem
mesmo todas as peas estaro a mo.27
Cr-se assim que esta tese conseguiu juntar peas diversas em torno do
problema aqui exposto, algumas compondo reas maiores, outras dispersas em torno
de uma idia, uma palavra, uma sugesto a partir de um texto obscuro ou de menor
importncia dentro de tramas disciplinares hegemnicas. Outras reas ficaram como
lacunas explcitas e, acredita-se, de significativas possibilidades (como as
representaes na literatura, na pintura histrica do sculo XIX ou na das vanguardas
artsticas brasileiras do incio do sculo XX).
Notas introduo: sobre o conceito de representao
PrembuloPalomar, personagem irrequieto, meditabundo e nervoso de Calvino, pe-se a
nadar num final de tarde ensolarado. A superfcie ondulada e acobreada do mar
excita o vislumbre do reflexo do sol que o acompanha a espada do sol que se
forma continuamente, inexoravelmente, entre o observador e a manifestao tica da
existncia fsica do astro.
27
M. Tafuri, Introduccin: el proyecto histrico, In La esfera y el laberinto: vanguardias y arquitectura dePiranesi a los aos setenta, 1984, p.05.
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Em um processo de contnuo questionamento, Palomar pensa sobre o seu
lugar no mundo, sobre o lugar do homem no mundo. Existiria o sol sem algum a
nome-lo? a observ-lo? Se a projeo dos raios solares segue o olhar de cada
nadador-observador, continuariam ento a existir sem o olho que a v? Essa
inquietude leva o personagem a afirmar:
Tudo isso acontece no no mar, nem no sol, pensa o nadadorPalomar, mas dentro de minha cabea, nos circuitos entre osolhos e o crebro. Estou nadando em minha mente; apenas alique existe essa espada de luz; e o que me atrai precisamenteisto.28
O sol que refulge, brilha e segue, refulge sobre algo, brilha para algum, segue
algo. Depende daquele que o observa e nomeia a condio de refulgir, de brilhar, de
seguir. Se o reflexo uma construo interna, no haveria outra concluso possvel:
Todo o resto reflexo entre reflexos, inclusive eu.29O silogismo resulta lgico para
Palomar. O que lhe fora a desdobrar o raciocnio num emaranhado relativista:
Seu olhar voltado para cima contempla agora as nuvens vagantes eas colinas nebulosas dos bosques. Seu eu tambm est ao revsnos elementos: o fogo celeste, o ar que corre, a gua que bera e aterra que sustenta. Seria isso a natureza? Mas nada do que v
existe na natureza: o sol no se pe, o mar no tem aquela cor, asformas no so as que a luz projeta na retina. (...). A natureza noexiste?30
Armadilha retrica que o incomoda e que no sobrevive ao primeiro sinal da
presena humana. Um barco irrompe e turva o mar. Espalha resduos de leo e
fumaa. Outros detritos so revelados pela baixa-mar. Palomar, o homem, detrito
entre detritos, que se chocam, se misturam, no pode mais negar a existncia, ainda
que insuportvel, daquilo que est para alm de si.
28 Italo Calvino, Palomar (conto A espada do sol), 1994, p.16 (a referncia completa desta e dasdemais notas de rodap esto listadas ao final). Esse conto foi publicado originalmente em LaRepublica, Roma, 29 jun. 1983 (cf. Valria Arauz, Lentes de Palomar, 2002).29Calvino, op. cit., p.17.30Ibidem, p.17-18.
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Em meio polifonia que marca os discursos internos dessa reflexo (cujo
pndulo toca tanto a negao quanto a descrio ferina do real), Palomar, por fim,
convence-se de algo.31
Pensando bem, tal situao no nova: j durante milhes desculos os raios de sol pousaram sobre a gua antes que existissemolhos capazes de recolh-los.
(...). Um dia o olho saiu do mar, e a espada, que j estava ali a suaespera, pde finalmente ostentar toda a esbelteza de sua pontaaguda e seu fulgor cintilante. Tinham sido feitos um para o outro,a espada e o olho: e talvez no tenha sido o nascimento do olhoque tenha feito nascer a espada, mas vice-versa, porque a espadano podia recusar um olho que a observasse de seu vrtice.
[...].
(...).Est convencido de que a espada existir mesmo sem ele.32
Construindo-se como uma metanarrativa que problematiza tanto a natureza
quanto a confiabilidade da percepo, da capacidade de o homem descrever e
explicar aquilo que v e vivencia (e, em conseqncia, como reflexo acerca do
prprio ato de ler), o final do conto aqui citado expressa aquilo que os
fenomenologistas chamam de o a priori do mundo.33
Esse texto de Calvino serve assim como entrada e provocao ao temas dasrepresentaes na historiografia. Afinal, e aparentemente enredados numa trama sem
fim de referncias, a qual nvel de realidade e ou verdade aspira o historiador? Ou,
afinal, o que cantam as sereias?34
31
Diga-se, a propsito, que o movimento pendular, sempre em suspenso, comum nos demaiscontos que compem a obra, exceo desse conto A espada do sol e de Lua do entardecer (Cf.Arauz, Lentes de Palomar, 2002, p.58-63, 91).32Calvino, Palomar, 1994, p.18-19, grifos nossos.33a priori of the world, its status as always, already there (J. Cannon, Calvinos lattest challenge tothe Labyrinth, Italica, 1985, p.191); a sugesto de ler Palomar como uma metfora do olhar dalinguagem, como uma metanarrativa sobre o prprio ato de ler, de V. Arauz, op. cit., p.82-88.34Ao discutir os usos da literatura e, portanto e mais especificamente, as obras de fico, Calvinoprope uma diferenciao entre o nvel de realidade (que diz respeito ao mundo da obra, within thework) e o nvel de verdade (que se refere ao mundo externo obra), ambos importantes paraconstruir uma compreenso do universo da escrita. A frmula que sintetiza esses vrios nveis queinterpenetram o texto est na assero I write that Homer tells that Ulysses says: I have listened to
the song of the Sirens (cf. Calvino, Levels of reality in literature, The uses of literature, 1986, p.103, 108,111-119).
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36
Introduo
O pesquisador da Escola de Administrao Pblica da University of South
Califrnia, Robert Daland, viajou ao Brasil, no vero de 1965, para realizar as
pesquisas de campo que fundamentariam a publicao do livro Brazilian Planning,
em 1967. Das suas investigaes e entrevistas com personalidades como o ex-
Ministro do Planejamento Celso Furtado, os professor Candido Mendes e Nelson
Mello e Souza, alm do contato com a Fundao Getlio Vargas, resultaria um
esforo de compreender as relaes entre planejamento lato sensu e o processo de
desenvolvimento dos pases no caso, a partir do estudo especfico do Brasil,
which has a twenty-year history of conscious, institutionalized, central planning.35
Dos estudos empreendidos por Darland sobre o conjunto de planos do
governo federal desde o Estado Novo e, principalmente, desde o Plano de Metas de
Juscelino Kubitschek interessa aqui sobremaneira o ponto de partida para entender
a histria do planejamento no Brasil. Observe-se o trecho a seguir, que abre o
captulo 2, intitulado The history and context of Brazilian Planning:
Central government planning has come to Brazil, not because of anyinnate sense of rationality and ordersuch as that attributed to Germany,or because of a statist ideology as in the Soviet Union, or yetbecause of any crisis of survival in a hostile world as in Israel. Inmany respects, on the contrary, the temperament and values ofthe Brazilian people do not accept the order, efficiency, and therationalitywhich planning implies.36
Significativas, apesar de lacunares, tais afirmaes so indcios de um
conjunto de representaes sobre o Brasil (como nao, como povo, como cultura,
como histria) que marcou e, talvez se possa afirmar, ainda marca parte
significativa da sua produo historiogrfica.37Que representaes so essas que se
insinuam em algumas palavras chaves (ou, melhor, como prope a filsofa Myriam
DAllones, lugares-comuns)?38 Em que registro operam? Palavras que funcionam,
35Robert Darland, Brazilian planning, 1967, p.01; cf. tambm o Preface.36Ibidem, p.12; grifos nossos.37 No poderemos aprofundar esse tema (da permanncia de algumas representaes) aqui, masapenas indicar uma importante leitura a respeito: Maria Stella Bresciani, O charme da cincia e a seduo daobjetividade, 2005.38Myriam R. DAllones, Le dpressiment de la politique, 1999; devo essa indicao leitura de Bresciani,
op. cit., p.41 ; o lugar-comum[] constitudo por palavras, crenas, opinies ou mesmo preconceitos quetm significado para uma comunidade poltica efetiva e que, mesmo confusas, errticas e sem
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diga-se desde logo, como registros de ausncias: o brasileiro no aceitaria a ordem, a
eficincia, a racionalidade; ou, mais ainda, tais elementos essenciais cultura do
planejamento, como o brasilianista ressalta no se encontrariam inscritos em sua
histria.
Darland no as inventa ou prope, claro. Tampouco se apia em fontes
primrias para construir tais afirmaes. Apia-se, sim, em um conjunto de autores
que cita direta ou indiretamente (como se revela na lista muito mais longa da selected
bibliographydo que nos usos ao longo do texto). Fernando Azevedo, Gilberto Freyre,
Nelson W. Sodr, Jos Honrio Rodrigues, Vianna Moog, alm do prprio Celso
Furtado e de outros autores, compem o seu quadro de leituras de interpretao do
Brasil. Da certamente advm o seu repertrio de representaes e lugares-comuns
Representaes que no so necessariamente homogneas embora
compartilhem, amide, lugares-comuns, interpretaes, idias e palavras chaves, a
exemplo dessa imagem em negativo (de falta de ordem, eficincia, racionalidade),
uma das representaes mais correntes e significativas (com clara dimenso
operativa), defende-se aqui como hiptese, sobre a histria do Brasil e, mais
especificamente, sobre o passado de suas cidades.
Investigar o processo de formao das representaes sobre a cidade colonial
no Brasil pressupe deslindar uma trama muitas vezes emaranhada e difusa em vrias
matrizes do pensamento e de tradies intelectuais e profissionais do Brasil, seus
lugares-comuns, seus pontos de convergncia e de dissenso, suas lgicas narrativas.
Mais ainda, tal investigao implica, do ponto de vista metodolgico, pr em questo
o prprio conceito de representao seus usos, possibilidades e problemas para a
histria da cidade e do urbanismo.
Para tanto, toma-se como ponto de partida a leitura de textos-chaves do
historiador francs Roger Chartier aquele que talvez mais diretamente tenha
retomado e defendido o conceito de representao e, assim, ajudado a estruturar a
chamada nova histria cultural.39Ademais, por intermdio de Chartier possvel
preciso, deitam razes na vida e na experincia das pessoas; o fundo-comum o repositrio das idias,noes, etc., que subsidiam anlises, interpretaes. Isto , o lugar-comum a imagem resultante, [eo] fundo-comum o material com o qual elaborada e cuja genealogia necessita ser interrogada.
39O professor Ciro Cardoso aponta o papel central de Chartier na conformao da nova histriacultural, cf. Ciro F. Cardoso, Introduo: uma opinio sobre as representaes sociais, in
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ler em dilogo (direto e indireto) autores como Pierre Bourdier e Carlo Ginzburg,
alm de vrios comentadores, atento s questes e mtodos que permitem uma
investigao do passado suspenso no delicado equilbrio entre, por um lado, o
reconhecimento de que a narrativa construda pelas questes postas e repostas a
cada momento e por cada pesquisador; e, por outro, a possibilidade de tornar o
passado inteligvel pela sua (do passado) prpria utensilagem mental (conceito-chave
que Chartier toma emprestado de L. Febvre) ou habitus(de Norbert Elias), i.e., pelos
seus prprios limites, materiais, escolhas.
Articula-se, ainda, a discusso sobre o conceito de representao s noes de
lugar-comum e fundo-comum, como as define DAllones, como suporte analtico
para compreender diacronicamente a construo e ou uso de imagens recorrentes
que formam, conformam ou sustentam as representaes.
Estas notas no tm pretenses de esgotar a discusso ou mesmo de abarcar
os mltiplos aspectos e campos disciplinares que utilizam o conceito (como na
Filosofia, na Psicologia, na Cincia Cognitiva).40Intenta-se, sim, mapear alguns dos
pontos principais das discusses que se articularam em torno do conceito com o
intuito de problematizar o campo disciplinar da histria da cidade e do urbanismo.
Por uma histria cultural
Na introduo coletnea de artigos sobre A histria cultural, Chartier
coloca desde logo o lugar central que o conceito de representao teria para uma
nova abordagem na prtica historiogrfica. Como pedra angular, as representaes
permitiriam discutir e articular trs maneiras com que se constroem as relaes com
o mundo social, a dizer:411) as operaes de classificao e delimitao que os grupos
sociais utilizam para construir e ou apreender a realidade; 2) as prticas que implicam(e que fazem reconhecer) uma identidade social, que estruturam uma maneira de
estar no mundo e que significam (simbolicamente) uma posio e um estatuto; e 3) as
Representaes: contribuies a um debate transdisciplinar, 2000, p.12; cf. tambm J. Devald, Roger Chartierand the fate of cultural history, French Historical Studies, 1998.40 Para tanto, sugiro a leitura dos artigos que compem a coletnea organizada pelos professoresCardoso e Malerba, Representaes: contribuies a um debate transdisciplinar, 2000; cf. tambm M. Alexandre,Representao social: uma genealogia do conceito, Comum, 2004.41
R. Chartier, Introduo: por uma sociologia histrica das prticas culturais, In A Histria Cultural,1988, p.23.
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formas objetivas e institucionais por meio das quais os representantes (coletivos ou
singulares) marcam e perpetuam sua existncia (do grupo, classe ou comunidade).
Mas, o que seriam as representaes para Chartier? Antes de mais, diga-se,
no conformam uma palavra ou conceito que desempenha o mesmo lugar analtico
de ideologia ou mentalidades. De fato, os artigos reunidos na coletnea
supracitada expressam, como afirma o prprio autor, uma insatisfao com a histria
francesa das dcadas de 1960 e 1970, fortemente marcada pela noo das
mentalidades e pela abordagem serial, quantitativa.42
Note-se que no h nenhuma pretenso em desqualificar essas vertentes
historiogrficas. Ao contrrio, Chartier reconhece a importncia e filia-se herana
dos Annales embora invertendo pressupostos estruturais e recuperando o que
chamaria de as inspiraes fundadoras dos anos 1930 (como a noo de
utensilagem mental, de Lucien Febvre). O que o incomoda seria a incapacidade de
enfrentar os impasses que novas disciplinas trouxeram ao campo da Histria, pondo
em xeque tanto objetos quanto certezas metodolgicas.
A histria das mentalidades, afirma Chartier, teria se construdo, de maneira
geral, buscando fundar-se nos mesmos critrios de inteligibilidade da histria
econmica e social (i.e., atenta s estruturas na longa durao, aos nmeros e
quantificaes, s repeties encontradas nas sries, etc.). No toa, Le Goff
apontaria que a histria das mentalidades foca a ateno no quantitativo cultural.
Busca, assim, pelo que escapa aos sujeitos particulares da histria, porque revelador
do contedo impessoal de seu pensamento.43Isso teria gerado alguns problemas aos
quais Chartier resumiria sob o epteto do primado quase tirnico do social.44
Tal primado implicava como premissa analtica uma srie de
enquadramentos que impediam a ateno s formas de apropriao (de idias,
objetos, modelos culturais, representaes, etc.), quer individuais, quer de um grupo
mais especfico. Relacionava-se, assim, quase mecanicamente, grupos sociais a nveis
42R. Chartier, A Histria Cultural, 1988, p.13-14, 40-44; sobre a crtica abordagem quantitativa dahistria, em especial a cultural, e a retomada da narrativa, Cf. P. Burke, A Escola dos Annales, 1997,p.93-107.43J. Le Goff, As mentalidades: uma histria ambgua, in Histria: novos objetos, 1988, p. 71.44
R. Chartier, A Histria Cultural, 1988, p.45; essa discusso est presente tambm em Idem, Omundo como representao,Estudos Avanados, 1991.
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culturais; distines sociais (por renda, profisso, etc.) a diferentes sistemas de
pensamentos sem considerar tenses internas, e.g. Mais ainda, a noo de
mentalidades considerava e investigava principalmente os pontos comuns de um
indivduo com os demais homens e mulheres de seu tempo por mais extraordinrio
que tenha sido esse sujeito. Da, inclusive, como j alertaram Carlo Ginzburg e Peter
Burke, a redundncia de apor o adjetivo coletivas a mentalidades.45
Quais as mentalidades dos engenheiros sanitaristas envolvidos com as
reformas urbanas da virada para o sculo XX no Brasil? A identificao de pontos
comuns, conquanto importantes, seriam suficientes para discutir atuaes especficas
de indivduos ou para construir histrias urbanas atentas s escalas locais e regionais?
A noo positivista de progresso que permeia a formao de tantos politcnicos,
desde Andr Rebouas at Aaro Reis ou Francisco de Paula Souza, dentre muitos,
explicaria os vrios projetos de construo do territrio nacional (por meio das infra-
estruturas de suporte s atividades produtivas) na segunda metade do sculo XIX?
Listam-se essas questes sem a pretenso de respond-las para traar um
paralelo com as inquietaes levantadas por Chartier em prol da necessidade de
construo de um esforo metodolgico e conceitual que aponte para uma
abordagem, sem redues deterministas, das relaes entre sistemas de crenas, de
valores e de representaes, por um lado, e de pertenas sociais, por outro.46
Se certo que, por um lado, a compreenso das mentalidades dos grupos
sociais (no caso, de crculos profissionais, se pensarmos nos engenheiros
politcnicos) importante para compreender processos de institucionalizao, de
organizao de saberes e poderes, alm dos repertrios de abordagens e construo
de solues tcnicas o horizonte de possibilidades latentes do qual fala Carlo
45C. Ginzburg, O queijo e os vermes, 2005, p.28; Peter Burke, Abertura: a nova histria, seu passado eseu futuro, in A Escrita da Histria, 1992. No se pode esquecer que, j na dcada de 1970, Le Goffapontava para os potenciais e, ao mesmo tempo, para as dificuldades da histria das mentalidades emmeio a objetos e fontes de pesquisa difusos, a pontos e lugares-comuns, a elementos de repetio docotidiano, dos textos, dos monumentos, etc., enfim, ao chamado quantitativo cultural; no deixavatambm de ressaltar a necessidade de ficar atento s especificidades de cada forma de expresso mentalidade no reflexo, diria e de manter uma relao estreita com a histria da cultura,levando em conta o equipamento intelectual no qual as mentalidades se formam, se desenvolvem evivem, cf. J. Le Goff, As mentalidades: uma histria ambgua, in Histria: novos objetos, 1988 [ed. orig.1974].46R. Chartier,A histria cultural, 1988, p.53.
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Ginzburg;47por outro, ser preciso ficar atento s idiossincrasias, aos movimentos
individuais, para entender como os motivos intelectuais e ou as formas culturais
so apropriados, como circulam, como se enrazam e (se quisermos seguir a
metfora) como do novos frutos.48
Por exemplo, e sem nos aprofundarmos muito, no se pode entender a
circulao da noo de cidade-jardim no Brasil (ou, se quisermos, para alm do seu
ambiente cultural de origem, a Inglaterra do final do XIX) sem considerar as
discusses pr-existentes sobre a cidade salubre no Brasil mobilizadas desde
meados do sculo XIX. Obviamente, no se estava falando em cidade-jardim antes
do incio do sculo XX.49 Falava-se (por vrios vieses, como o moralista, o
econmico, o tcnico, sobretudo higienista, etc.) em como construir a cidade
moderna e saudvel nos trpicos. Tema recorrente que encontraria nas discusses
sobre a cidade-jardim um, considerava-se, slido fundamento para a formulao de
polticas e propostas de ao e de reforma urbana. No toa o mdico Alfredo da
Matta, ao levantar e descrever a topografia mdica de Manaus, em 1916, propugnaria
a cidade-jardim como soluo para o tema no Brasil.50
E, observe-se, essa ateno s maneiras e s condies de circulao e de
apropriao no implica apenas uma escolha metodolgica (e conceitual ou de escala
de abordagem). Implica, sim, reconhecer o papel ativo daqueles que lem na
construo do conhecimento; implica reconhecer inclusive os suportes materiais dos
textos, das idias, dos modelos culturais, alm dos anteparos ou filtros prvios que
conformam as maneiras das leituras.
47
C. Ginzburg, O queijo e os vermes, 2005, p.25.48Cf. Chartier,A histria cultural, p.51.49No no sentido howardiano (strictu sensu) ou no da tradio cidade-jardim (lato sensu) que se formoua partir dos esforos para concretizar as propostas originais na Inglaterra e alhures no incio do sculoXX; contudo, falava-se em cidade jardim (para enfatizar o verde, a presena dos elementos naturaisordenados como fato da civilizao e do progresso) no XIX, como se usou para, e.g., a cidade deChicago reconstruda ps-incndio de 1871 (a propsito, uma provvel inspirao para Howard, cf. P.Hall, Cidades do amanh, 1995, p.104-06).50Cf. George Dantas et alli, A difuso do termo cidade-jardim, in Surge et Ambula, 2006, p. 155-168;para uma discusso ainda mais abrangente sobre o tema no Brasil, cf. Carlos de Andrade, Barry Parker,1998.
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Depois de materializado, o texto escapa ao autor.51A insistncia em analisar
os processos de apropriao e circulao de idias, textos e modelos pelo vis da
comparao ao original (o que leva, invariavelmente, ao tema do desvirtuamento) ,
no mnimo, problemtico pelo pressuposto que desconsidera (como incapaz ou
qualquer outro adjetivo restritivo) o ambiente cultural de recepo que desvirtuaria
o original. No limite, essa insistncia idealiza e autonomiza o prprio texto original,
desconsiderando as condies culturais e materiais de sua gestao.
Se voltarmos ao exemplo da circulao da noo de cidade-jardim, seria
ilustrativo um exerccio (apenas retrico) do uso de tal abordagem na anlise dos
esforos e embates para institucionalizar a proposta de cidade-jardim na prpria
Inglaterra. Como se discutiriam ento os empreendimentos para Letchworth e
Welwyn, os desenhos de Unwin e Parker para Hampstead ou mesmo a constituio
da Garden City Associatione os seus esforos para manter a perspectiva de construo
de redes de cidades ao invs de subrbios-jardins como alternativa para a
reconstruo do primeiro ps-guerra? O prprio Howard e epgonos, como Frederic
J. Osborn, estariam desvirtuando o texto sagrado ao buscar adequar as propostas
de 1898 para torn-las possveis e disputar espao (e verbas estatais, obviamente) em
meio a outros projetos?52
Reconhecer as maneiras de circulao e apropriao no significa, assim,
limitar-se ao possvel ou aceitar os fatos como inexorabilidade histrica esse seria
uma outra armadilha determinista que desemboca, invariavelmente, no conformismo
diante dos processos sociais. No, ao contrrio, tal reconhecimento implica mapear e
analisar as lutas, os embates, os jogos de interesse, as foras, os smbolos e os
51Utiliza-se aqui a palavra texto mas sem a inteno de restringi-la aos documentos impressos. Otexto pode ser, em sentido lato, um modelo, um plano, um projeto, um monumento, um conjuntoiconogrfico, etc., enfim, um elemento que sirva de referncia, sintetize e expresse idias, sentimentos,etc. Ao mesmo tempo, essa extenso da noo de texto, embora reconhea, no se apia naantropologia cultural de C. Geertz, i.e., no procura tratar tudo (comportamentos no-escritos, festas,folguedos, crenas, etc., os elementos da histria cultural) a partir da grade da textualizao (EliasSaliba, Perspectivas para uma histria cultural, Dilogos, 1997, p.14). Assim, no se pretende incorrer natextualizao semitica do mundo que nos rodeia, como adverte de maneira divertida R. Darton: (...)tentem se comportar como se todo comportamento fosse um texto, e [como se] todos os textospudessem ser desconstrudos: logo vocs se vero presos num labirinto de espelhos, perdidos numreino semitico encantado, tomados por tremedeiras epistemolgicas (cf. Introduo, in O beijo deLamourette, 1990, p.18).52Cf. P. Hall, cidades do amanh, 1995, cap. 4; observe-se que esse rico e instigante captulo do livro de
Peter Hall marcado pela condenao do que considera apostasias em relao ao texto original deHoward.
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projetos (de cidade, de sociedade, de mundo) em disputa, a construo (ou a
destruio) de possibilidades. Como j afirmou Beatriz Sarlo, interessa no apenas
afirmar que um fato ocorreu, mas, sim, entender como pde ocorrer.53
Isso implica reconhecer tambm que h falseamentos e deformaes,
deliberadas ou no, conscientes ou no, em relao a textos originais. H inclusive o
esforo do autor em tentar controlar e manter a ortodoxia do seu texto. O glossrio
que F. J. Osborn prope em 1949, na 3 edio inglesa do livro de Howard,
ilustrativo desse embate. A terminologia compulsada no prefcio revela a
preocupao em distinguir, ao menos dentro da literatura sobre planejamento
urbano, o iderio original das vrias propostas e tendncias que se desenvolveram a
partir de ento.54
Assim, acompanhar esses movimentos, jogos e disputas resulta mais
produtivo (para a prtica historiogrfica) do que a condenao a priori (pelo
afastamento do metro original) ou do que o exerccio estril de lamentar a no
realizao conforme esse mesmo metro; ou, mais ainda, de especular como teria sido
se a proposta original fosse implementada tal qual, aqui ou alhures. Diante de tal
postura, teramos que argir, diga-se de passagem, onde, quando e como algum plano
urbanstico foi realizado integralmente.
Natal teria se tornado uma cidade melhor se o Plano Geral de Sistematizao
tivesse sido implementado integralmente (ou em grande parte)? Ou o Rio de Janeiro
com o Plano Agache? E So Paulo, com o Plano de Avenidas? Difcil (e, talvez,
intil) responder. H mais problemas na formulao desse tipo de pergunta para
alm do (frequentemente lembrado) anacronismo do uso da conjuno condicional
se na disciplina historiogrfica.
Afinal, assume-se que o plano (o projeto de interveno urbana) seria
portador de uma virtude parti pris. Assim, autonomiza-se o plano como um objeto
que pairasse acima do tecido social e cultural. H a, de fato, um lamento de fundo
que se remete s pretenses totalizantes do projeto ilustrado no qual se nutriria a
53A crtica argentina, nessa passagem, discutia o holocausto a partir do filme Shoah, do diretor ClaudeLanzmann, que lhe suscitava tais questes fundamentais, i.e., no apenas o lamento e o pesar peloocorrido, mas a reflexo sobre os processos que o tornaram possvel, cf. B. Sarlo, A histria contra oesquecimento, in Paisagens imaginrias, 2005, p. 38, 42.54Frederic J. Osborn, Preface, in E. Howard, Garden cities of To-morrow, 1949, p.26.
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cultura tcnica moderna e, consequentemente, o campo disciplinar da arquitetura e
do urbanismo. Lamento que, vez ou outra, se insinua nos trabalhos de histria
urbana e urbanstica, dominados predominantemente ainda, no Brasil, por
profissionais de formao de base em Arquitetura e Urbanismo.55
O outro lado dessa moeda considerar o plano apenas como uma pea do
jogo poltico em busca de hegemonia, um engodo para mascarar ou atender
interesses de (setores das) classes dominantes, enfim, como ideologia em seu sentido
mais determinista.
Ideologia e representaesInvestigar as representaes pressupe, como discute Chartier, tom-las
dentro do campo de disputa e concorrncias em que se inserem e ajudam a
estruturar, cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominao.
Destarte, as lutas de e pelas representaes seriam to importantes quanto as lutas
econmicas e polticas para o ofcio historiogrfico porque aquelas as
representaes podem revelar as estratgias dos grupos e ou classes sociais para
elaborar e (tentar) impor vises e valores de mundo. Indo alm, enfatiza-se que a,nas representaes, pode-se identificar pontos de confrontamento decisivos
conquanto menos ou mesmo no materiais.56
Apoiando-se nos estudos de Pierre Bourdieu e recuperando textos inaugurais
de Emile Durkheim e Marcel Mauss,57o historiador francs afirmaria a necessidade
de deitar por terra de vez os falsos debates entre a objetividade das estruturas e a
subjetividade das representaes.
H, de fato, a uma oposio noo de ideologia tal qual tomada da matrizmarxista do materialismo histrico. No sentido mais restrito da palavra em Marx, a
55Como se percebe claramente na composio de participantes e conferencistas dos Seminrios deHistria da Cidade e do Urbanismo, desde a sua primeira edio, em 1990, em Salvador; a asseroaqui claramente especulativa, mas pode encontrar fundamento, como j apontaram os professoresMarco Aurlio Gomes e Elosa Pinheiro, na constatao de que as pesquisas em histria urbana e dourbanismo no Brasil caracterizaram-se, desde o final dos anos 1970, pela perspectiva de repensar acidade (e a possibilidade do projeto) pelas dimenses da cultura e da histria (Cf. Os arquitetos, acidade e o fascnio pela histria, inA cidade como histria, 2004, p.09-18).56R. Chartier,A histria cultural, 1988, p.17-18.57
A referncia ao texto De quelques formes primitives de classification. Contribuition ltude desreprsentations collectives, publicado emAnne sociologique, em 1903.
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ideologia conceito que englobaria as representaes aparece marcada e
diferenciada pelos cortes sociais, expressando os interesses de cada classe e operando
principalmente pelo ilusrio e pelo irreal. Numa perspectiva teleolgica, a emergncia
da classe operria como fora histrica levaria ao desvelamento de todo e qualquer
aparato ideolgico (mitos, representaes, etc.) porque no haveria a necessidade
num futuro sem classes de criar iluses sobre si mesma; sem divises sociais, no
haveria a necessidade da ideologia para embotar os conflitos e suas causas. Baczko
ressalta, contudo, que na leitura de situaes histricas coetneas, como em o 18
Brumrio, Marx empreenderia um uso mais complexo da noo de ideologia,
considerando a construo de imagens, as disputas do imaginrio, etc., como parte
das prticas sociais.58
De fato, deve-se reconhecer que, a despeito da crtica acertada prtica
historiogrfica da chamada vulgata marxista ou da leitura ortodoxa de autores de
inspirao marxista, o materialismo histrico apontava para uma abordagem mais
complexa do chamado fenmeno histrico-social do que o mero determinismo
economicista denunciado a posteriori.
Outro trao caracterstico oriundo dessas formulaes encontra-se na leitura
especular entre, para se utilizar os termos marxistas, estrutura e superestrutura; essa
refletiria, no necessariamente de maneira sincrnica, os elementos fundamentais
daquela. No toa, ao abrir o clebre ensaio sobre a obra de arte na era de sua
reprodutibilidade tcnica, Walter Benjamim partiria da anlise de Marx sobre o
modo de produo capitalista para afirmar que a superestrutura se modifica mais
lentamente que a base econmica; da porque aquelas mudanas percebidas por
Marx nas condies de produo da primeira metade do sculo XIX tivessem levado
mais de cinqenta anos para refletir-se na cultura.59
Obviamente, no se pretende reduzir a complexa e por vezes contraditria
prtica historiogrfica de Benjamim a essa relao especular e determinista entre a
58B. Baczko, Imaginacin social, imaginarios sociales, in Los imaginrios sociales, 1991, p.20-21; lembre-se que no prefcio a A Ideologia Alem, Marx conclamaria seus pares a se libertarem das quimeras,idias, dogmas e seres imaginrios que moldariam as false conceptions about themselves, about whatthey are and what they ought to be, cf. K. Marx, Preface, in The German Ideology, 1968, p.03. Dequalquer maneira, reconhea-se a distncia entre o pensamento complexo de Marx e a reduo aquioperada, em prol de um determinado corte narrativo sobre um uso preciso da noo de ideologia.59W. Benjamim,Magia e tcnica, arte e poltica, 1994 [1935-36], p. 165.
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base econmica e as manifestaes culturais, artsticas, sociais, etc. Afinal, o prprio
Benjamim, nas suas teses sobre o conceito de histria, lembraria que as coisas
refinadas e espirituais no so meros despojos deixados ao vencedor da luta de
classes, da luta pelas coisas brutas e materiais luta que deveria interessar a
qualquer historiador educado em Marx; ao contrrio, as coisas refinadas, sob a forma
da coragem, da astcia, da confiana, etc., pem em xeque sempre, ontem e hoje, a
vitria dos dominadores. Uma porta de entrada, portanto, para uma histria que,
opondo-se perspectiva teleolgica, volta-se para o sofrimento do passado e no
para as promessas do futuro.60 De resto, o interesse de Benjamim estava voltado,
nesse aspecto, para a expresso da economia na cultura e no para a origem
econmica da cultura.61
Essa pequena digresso sobre a questo da ideologia praticamente
inescapvel, tendo em vista a influncia na prtica historiogrfica e no
questionamento do prprio lugar do historiador. Em relao aos usos da noo de
ideologia na construo da narrativa historiogrfica, h dois trabalhos (importantes,
diga-se) que mostram os limites da sua aplicao (como o que vela o real) nos
escritos de histria do urbanismo.62
Nesse sentido, faa-se ainda outra observao: nas ltimas dcadas, os
trabalhos da filsofa Marilena Chau parecem ter sido decisivos para disseminar essa
leitura do conceito de ideologia no Brasil, amplamente fundamentado nas teses de
Marx (em especial nA Ideologia alem).63
60Ibidem [1940], tese 4, p. 223-24.61B. Sarlo, Esquecer Benjamim, in Paisagens imaginrias, 2005, p.102 esse ensaio da crtica argentina particularmente importante para entender a platitude de muitas apropriaes de temas e categorias deBenjamim na onda dos estudos culturais das ltimas dcadas. Adrin Gorelik recupera essa discusso,apontando um certo mal-estar (e mesmo esgotamento) dos estudos sobre os imaginrios urbanos, cf.Transformaciones urbanas e estudios culturales (para um recorrido por los lugares comunes de losestdios culturales urbanos), in Miradas sobre Buenos Aires, 2004, p.259-279. Srgio Paulo Rouanetestabeleceu discusso prxima: embora reconhea a existncia de muitos e vlidos Benjamims,condenaria ainda assim a leitura irracionalista que se daria no Brasil, segundo a qual ele [Benjamim]defenderia o primado da vida contra a razo, da experincia imediata contra a abstrao, da atualidadehistrica contra a histria (cf. Benjamim, falso irracionalista, inAs razes do iluminismo, 1987, p.111).62V. Rezende, Planejamento urbano e ideologia, 1982, e F. Villaa, Uma contribuio para a histria doplanejamento urbano no Brasil, In C. Dek e S. R. Schiffer (orgs.), O processo de urbanizao no Brasil,1999.63M. Chau, O que