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XIV Congresso Brasileiro de Sociologia 28 a 31 de julho de 2009, Rio de Janeiro (RJ) Grupo de Trabalho: Teoria Sociológica
IMAGENS DE WEBER: esboço de uma tipologia
das interpretações do pensamento weberiano
CARLOS EDUARDO SELL (UFSC – UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA)
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RESUMO: Qual o eixo ou o coração da produção intelectual de Max Weber? Esta questão, especialmente atual, tendo em vista o trabalho de re-edição dos escritos weberianos que ainda está em curso, fecunda ainda hoje a rica e diversificada discussão sobre o sentido global do pensamento deste autor. Este trabalho busca situar esta discussão em seu desenvolvimento histórico e apresenta a recepção de Weber no contexto intelectual da Alemanha e dos Estados Unidos. Com base nestes dois contextos são descritas algumas das principais vias de interpretação que se propõem a identificar o núcleo das investigações de Weber, descritas como: sociologia da racionalização, sociologia histórico-comparada e sociologia econômica. Visando fornecer um aperçu do estado da arte em torno deste debate, cada um destes pontos de vista será apresentado para, ao final, identificar e discutir algumas das questões de fundo que subjazem e diferenciam os diferentes modelos hermenêuticos de compreensão do pensamento weberiano. PALAVRAS-CHAVE: Weber, Weberianismo, Recepção, Interpretação.
Em relação ao cânone de autores considerados como “clássicos” do
pensamento sociológico, duas peculiaridades cercam, atualmente, a obra de Max
Weber. Em primeiro lugar, longe de cristalizar-se em um paradigma teórico, com
seu conjunto de autores e premissas compartilhadas, como ocorre no caso do
funcionalismo de Émile Durkheim ou mesmo no marxismo oriundo de Karl Marx, a
teoria weberiana não se tornou um corpo sistemático e auto-referenciado de
conceitos dos quais Weber seria a fonte. Falar em pensamento weberiano não
significa adotar o ponto de vista de uma doutrina ou de um modelo de análise, pois
a expressão remete, em regra, diretamente, ao próprio pensamento do autor
enquanto tal.
A outra peculiaridade reside justamente nas propriedades de sua obra. Neste
campo, enquanto pode-se dizer que o estado da arte da exegese sobre as obras
de Durkheim e Marx encontra-se relativamente pacificado (com nenhuma
novidade ou disputa teórica nova realmente relevante), não é este o caso do
pensamento de Max Weber. Acompanhando o trabalho de re-edição de seus
escritos, iniciado em meados dos anos 70, a interpretação da obra de Weber não
é consensual e a tentativa de localizar as linhas mestras de seu pensamento está
em plena efervescência. Partindo deste dado, o objetivo deste “working paper”1
1 Este texto é parte de uma pesquisa mais ampla (resultado de Bolsa de Produtividade em Pesquisa) cujo tema é o problema da racionalização na obra de Max Weber.
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será apresentar e discutir criticamente algumas das principais interpretações
globais existentes atualmente sobre a obra de Weber, destacando a imagem que
cada uma delas nos fornece de seu pensamento tomado em seu conjunto.
Procuro concentrar-me, de forma ilustrativa, na revisão de autores que buscam
uma visão abrangente do corpus textual weberiano, dispensando a (imensa)
massa de literatura que trata de aspectos particularizados (ainda que relevantes)
de seu pensamento, como é caso de sua epistemologia ou teoria política, por
exemplo.
A consagração de Weber como autor canônico na formação dos cientistas
sociais confere, sem dúvida, uma dimensão transnacional ao seu pensamento e
sua presença e influência repercutem nas mais diversas áreas da pesquisa, como
a sociologia, a economia, a história e a ciência política, entre outras2. Além disso,
Weber foi traduzido e é utilizado nos mais diversos contextos nacionais e
intelectuais em uma miríade de áreas diferentes de aplicação empírica e busca de
compreensão dos fenômenos sociais3. Tudo isto torna imensamente complexo o
empreendimento de caracterização dos padrões de leitura de sua obra. Não
obstante esta imensa diversidade, se isolarmos os contextos em que a reflexão
sobre Weber foi além de sua utilização instrumental no campo da pesquisa
aplicada para converter-se, de forma sistemática e abrangente, no debate sobre o
conteúdo de sua obra, dois países se destacam: a Alemanha e os Estados
2 Para uma visão global do processo de recepção do pensamento weberiano, veja-se: TURNER, Charles. History of Weberian Social Thought. SMELSER, Nei e BALTES, Paul. (eds.). International Encyclopedia of The Soicial and Behaviorral Sciences. Amsterdam: Elsevier, 2001, p.16.407-16.412, Vol.24. 3 Para o caso francês, conferir: HIRSCHHORN, Monique. Max Weber et la sociologie française. Paris: L’Harmattan, 1988; STEINER, Philippe. L´Anné Sociologique et la reception de l’oeuvre de Max Weber L’Archive Européennes de Sociologie, 33, p.329-349, 1992); A recepção japonesa é discutida por: ROTH, Guenter. Max Weber at Home in Japan: On the Troubled Genesis and Sucessfull Reception of His Work. International Journal of Politics, Culture and Sociology, 12, 1999, p.515-525 e SCHWENKER, Wolfgang. Max Weber in Japan: Eine Untersuchung zur Wirkungsgeschichte 1905-1995. Tübingen: J.C.B. Mohr, 1998. Sobre a Itália: DI MARCO, Giuseppe Antonio. Max Weber in Itália: Linee di uma interpretazione. Annali della Facoltá di Lettere e Filosofia dell’Universitá di Napoli, 1983, 23, p.245-370. Para o México: HERNANDEZ, Rafael Farfan. La recepción actual de Weber (1994) e, em se tratando da Espanha: La presencia de Max Weber em el pensamiento espanhol. Ciência, Pensamento e Cultura, 2007, 726, p.545-566. Em relação a Polônia: SZACKI, Jerzy. Max Weber in Polish Sociology. Polish Sociological Buletin, I, 1982, p.25-31.No caso da América Latina, veja-se: ZABLUDOVSKI, Ginal. The reception and utility of Max Weber’s concept of patrimonialism int Latin América. International Sociology, 1989, vol.4 (01), p.51-66.
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Unidos. Não se trata de afirmar que os diferentes processos de recepção nacional
são os fatores determinantes na interpretação da obra de Weber. No entanto, a
adoção desta perspectiva nos fornece um recurso metodológico privilegiado a
partir do qual torna-se possível organizar, de um ponto de vista analítico, as
diferentes perspectivas que guiam, atualmente, a interpretação do pensamento
weberiano. Nesta direção, a primeira e a segunda partes deste trabalho
descrevem a recepção de Weber no ambiente intelectual germânico e americano.
A parte final realiza um balanço geral e aponta para as questões envolvidas no
debate acerca do sentido global da sociologia weberiana.
1. Tradição alemã
Na pátria de Weber, a difusão de sua obra foi bruscamente interrompida pela
Segunda Guerra Mundial, marcando um divisor de águas no fluxo de discussão
sobre o seu pensamento. A emergente discussão filosófica iniciada nos anos 30
foi seguida, no pós-guerra, por uma forte onda de questionamento sobre o caráter
da teoria política weberiana para ressurgir, de forma ampla e sistemática, apenas
no decorrer dos anos 704. A seguir, situo os momentos iniciais desta trajetória,
para, em um segundo momento, caracterizar a principal abordagem da sociologia
weberiana vigente, hoje, na Alemanha: a sociologia da racionalização.
1.1. Antecedentes
Em seus primeiros passos, a propagação do pensamento weberiano contou
com o apoio decisivo de sua esposa, Marianne Weber, que além de organizar e
4 Um dos primeiros esboços de resenha dos trabalhos sobre Weber na Alemanha pode ser encontrado no texto de MITZMAN, Arthur. La jaula de hierro: uma interpretación histórica de Max Weber. Madrid: Alianza Editorial, 1976, p.271-278. Para trabalhos mais recentes, veja-se: SEYFHARTH, C. et al. Max Weber Bibliographie: Eine Dokumentation der Sekundërliteratur. Sttutgart: Enke, 1977 e SEYFARTH, Constans. The West Germany Discussion of Max Webers Sociology of Religion since the 1960s. Social Compass, vol.27, n.1, p.09-25; KAESLER, Dirk. Max Weber, Eine Einfürung in Leben, Werk und Wirkung. Frankurt: Verlag, 1996.
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publicar o corpus textual weberiano5, redigiu a principal biografia6 existente sobre
o autor. Após a segunda guerra, este papel institucional caberá a Johannes
Winckelmann que, além de ter participado da edição de Economia e Sociedade7,
também publicou importantes escritos de divulgação8 da teoria de Weber. Nos
anos da década de 30, a obra de Weber já começava a ser apreciada em termos
analíticos globais, emergindo daí trabalhos que destacam sua face política (Carl
Schmidt)9 ou mesmo epistemológica (Alexander Von Schelting10). Neste contexto,
é especialmente o tema da racionalização, em um sentido fortemente filosófico,
que receberá a atenção dos primeiros intérpretes de Weber, como testemunham
os trabalhos de Andreas Walther (1926), Siegfried Landshutt (1929), Hans Frayer
(1930), Christop Steding (1932) e Karl Löwith (1932)11. Nesta fase inicial, a teoria
weberiana também se difunde por outros contextos teóricos e passa a influenciar
trabalhos como o de Georg Lukács (1922)12, ponto de partida do chamado
5 É da autoria de Marianne Weber a organização dos textos weberianos de acordo com a seguinte divisão temática: Gesammelte Aufsätze zur Religionsoziologie (3 vols.), 1920-1921; Gesammelte Politische Schriften, 1921; Wirtschaft und Gesellchaft, 1922; Gesammelte Aufsätze zur Wissenchaftleren, 1922; Gesammelte Aufsätze zur Sozial und Wirtschaftgeschichte, 1924; Gesammelte Aufsätze zur Soziologie und Sozialpolitik, 1924; Jugendbriefe, 1936. 6 O texto foi publicado, pela primeira vez, em 1926: WEBER, Marianne. Max Weber: Eins Lebensbild. Tübingen: Mohr-Siebeck. A comparação entre a biografia de Marianne Weber e os textos biográficos posteriores é realizada por KAESLER, Dirk. Still Waiting for a Intelectual Biography of Max Weber. Max Weber Studies, 2007, vol.7(1), p. 97-118. 7 Estes prefácios estão disponíveis na edição brasileira de Economia e Sociedade: Cohn (1991). Dentre os trabalhos mais recentes do autor, conferir também: Die Herkunft von Max Webers ‘Entzauberungs’-Konzeption. Kölner Zeitschrift für Soziologie und Sozialpsychologie, 32, 1980, p.312-353 e Max Webers hinterlassenes Hauptwerk: Die Wirtschaft und die gesellschaflichen Ordungen und Mächte. Tübingen: J.C.B. Mohrs, 1986. 8WINCKELMANN, Johannes . Lebenslauf. München: BayHStA, Abt. V, NL Winckelmann, Nr.1, 1945; WINCKELMANN, Johannes. Max Webers opus posthumum. Zeitschrift für die Gesamte Staatswissenschaft, Bd. 105, 1949, pp. 368- 387; WINCKELMANN, Johannes. Max Weber: Soziologie, Weltgeschichtliche Analysen, Politik. Stuttgart, 1956. 9 SCHMIDT, Carl. Legalität und Legitimität. München & Lepzig: Duncker & Humboldt, 1932. 10 SCHELTING, Alexander Von. Max Weber Wissenchafslehren. Tübingen: J.C. Mohr, 1934. 11 WALHTER, Andreas. Max Weber als Soziologe. Jahrbuch für Soziologie. Ed. H. Salomon, 2, 1926, p.1-65; FREYER, Hans. Soziologie als Wirklichdeitswissenchaf. Lepzig-Berlin, 1930, p. 157; STEDING, Christop. Politik und Wissenchaft bei Max Weber. Breslau, 1932. LÖWITH, Karl. Max Weber und Karl Marx. Archiv für Sozialwissechenften und Sozialpolitik, 67, 1929. No Brasil, podem-se encontrar dois diferentes conjuntos de excertos destes textos: FORACHI, Marialice M. e, MARTINS, José de Souza. Sociologia e Sociedade: leituras de introdução à sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1977, p.145-162 e GERTZ, René E. Max Weber & Karl Marx. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1997, p.17-31. 12 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. Porto: Publicações Escorpião, 1974.
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webero-marxismo13, a fenomenologia social de Alfred Schütz (1932)14, ou mesma
a sociologia do conhecimento de Karl Mannheim (1935)15.
Nas décadas do pós-guerra, embora determinados trabalhos continuassem a
aprofundar importantes aspectos da sociologia weberiana, como os estudos de
Dieter Heinrich16 (sobre epistemologia de Weber) e Günter Abramowksi17 (sobre
sua teoria da história), o eixo em torno do qual gravitou a discussão sobre este
autor na Alemanha, em reconstrução, foi de ordem política. Neste contexto, seu
pensamento passou por uma forte onda de críticas. Em uma perspectiva liberal, a
teoria política weberiana foi alvo de uma série de polêmicas que apontavam sua
concepção de democracia plebiscitária como reflexo da dubiedade do liberalismo
alemão, como argumentaram, especialmente, os trabalhos de Jean Paul Mayer18 e
Wolfgang Mommsen19. O marxismo, por sua vez, distanciava-se de Weber,
apontado agora como reflexo do capitalismo na sua fase imperialista, conforme a
acepção de Georg Lukács (195420). Neste sentido, o Congresso Alemão de
Sociologia, que seu reuniu em Heidelberg, em 1964, na ocasião do centenário de
nascimento de Max Weber, foi uma síntese destas tendências. No Congresso,
enquanto o americano Talcott Parsons se dedicava ao aspecto epistemológico de
sua obra, coube ao francês Raymond Aron a tarefa de vincular o pensamento
político de Weber à tradição do realismo maquiaveliano. Enquanto isso, a tradição
alemã da teoria crítica, representada por Herbert Marcuse, re-atualizava a visão
13 Para uma ampla revisão da recepção de Weber na tradição marxista, veja-se: WEISS, Johannes. Weber and the Marxist World. London: Routledge & Kegan Paul, 1981. 14 SCHUTZ, Alfred. The Fenomenology of the Social World. Evanston, IL: Northwertern University Press, [1932]1967. 15 Mensch und Gesellschaft im Zeitalter des Umbaus. A.W. Sijthoff’s uitegeversmaatschappij N.V., Leiden, 1935. Texto inglês em: MANNHEIM, Karl. Man and Society in an Age of Reconstruction. London: Routhlegde & Kegan Paul, 1940, p.39-78. 16 HENRICH, Dieter. Die Einheit der Wissenchaftslehre Max Webers. Tübingen: Mohr, 1952. 17 ABRAMOWSKI, Günter. Das Geschichtsbild Max Weber’s. Stuttgart: Klett Verlag, 1966. 18 MAYER, Jacob Peter. Max Weber and German Politics: a study in political sociology. London: Faber and Faber, 1943. 19 MOMMSEN, Wolfgang. Max Weber und die Deutsche Politik 1890-1920. Tübingen: Mohr Siebeck, 1959 e MOMMSEN, Wolfgang. Max Weber: Gesellschaft, Politik und Geschichte. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1974. Para uma crítica desta tese em perspectiva liberal: LOEWENSTEIN, Karl. Max Weber als ‘Anherr’ des plebizitären Führestaats. Kölner Zeitschrif für Soziologie und Sozialpsychologie, 13, 1961. 20 LUKÁCS, Georg. Die Zerstörung der Vernunft. Berlin-Est, 1954.
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marxista de que no centro da teoria da racionalização weberiana vicejava, em
verdade, a racionalidade capitalista21.
Em meio a esta forte onda de críticas, no início dos anos 70, uma importante
iniciativa deu um novo impulso a retomada dos estudos globais da obra de Max
Weber. O projeto de publicação integral dos manuscritos weberianos, veio aliado a
um conjunto de estudos que, desde a década de 60, voltaram a chamar a atenção
para a centralidade do tema da racionalização na sociologia weberiana22.
Atualmente, a tese de que o tema da racionalização constitui o eixo dos escritos
de Weber constitui a perspectiva preponderante dos programas de pesquisa sobre
Weber na Alemanha. O tópico a seguir esboça os principais autores e idéias
contidas nesta perspectiva.
1.2. . Sociologia da racionalização
Por um lado, a perspectiva que entende ser a racionalização o tema central
do pensamento weberiano volta às origens da discussão sobre Weber na
Alemanha e, por outro, ela se conecta também com a discussão norte-americana,
na medida em que adota um esquema evolucionista como mecanismo auxiliar na
interpretação do autor. A retomada desta perspectiva foi inaugurada na Alemanha
com o trabalho seminal do sociólogo Friedrich Tenbruck23. O ponto de partida da
tese do autor é a rejeição de Economia e Sociedade como a obra central
(Hauptwerk) do pensamento weberiano, operação que ele credita aos esforços de
Marianne Weber e Johannes Winckelman (editores da obra). No entendimento do
autor, é apenas nos Ensaios Reunidos de Sociologia da Religião que Weber
formula sua principal categoria teórica: o desencantamento do mundo.
21 Os textos de Parsons (Value-freedom and Objectivity), Aron (Max Weber and Power-politics) e Marcuse (Industrialization and Capitalism) estão reunidos em Otto Stammer (org). Max Weber and Sociology Today. New York: Harper Torchback, 1971. 22 ABRAMOWSKI, Günther. Das Geschichtbild Max Webers. Stuttgart: Klett, 1966; NELSON, Benjamin. Max Webers ‘Authors Introduction’ (1920): A Master Clue to His Main Aims. Sociological Inquiry, 44, 4, 1974, p.267-278; SEYFARTH, C. e SPRONDEL, W. Seminar: Religion und gesellchaftliche Entwicklung (eds.). Frankfurt: Suhrkamp, 1973. 23 Das Werks Max Weber. Kölner Zeitschrift für Soziologie und Sozialpsychologie, 1975, vol.27, n.4, p.663-702. Uma versão resumida, em inglês, recebeu o título de: The problem of thematic unity in the works of Max Weber. British Journal of Sociology, 31, 3, 1980, p.316-351.
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Com base neste dado, Tenbruck propõe uma compreensão do conjunto da
obra weberiana com base em três teses interligadas. A primeira situa o trabalho de
Weber no campo teórico do evolucionismo. Rompendo com as narrativas
positivistas e iluministas, que concebem a religião como etapa precursora e até
oposta à razão, Weber procurou mostrar que a religião é o próprio veículo da
progressão da racionalidade. A racionalização é um processo que decorre da
própria lógica interna do campo religioso e não contra ela. Resulta desta premissa
uma segunda tese pela qual Tenbruck postula que a interpretação weberiana é,
fundamentalmente, idealista. Partindo do célebre trecho em que se afirma que as
idéias atuam como manobreiros de uma linha de trem, Tenbruck conclui que
Weber assume a tese de que ocorrem períodos na história em que sua direção é
determinada pela influência das idéias. A hipótese weberiana seria, portanto, a de
que certas idéias, sob a compulsão de sua lógica interna, desenvolvem
conseqüências sociais e, desse modo, explicam o processo e o curso histórico-
universal. Resta, então, para Tenbruck, a tarefa de explicar qual o mecanismo
responsável pela complexificação das idéias religiosas. Conforme o autor, Weber
entendia que as imagens do mundo sucumbem à pressão racionalizadora em um
duplo plano, teórico e prático. É desse ponto que trata a sua terceira tese.
Tenbruck parte da teodicéia da fortuna e do sofrimento, exposta por Weber
em sua Einleintung [A psicologia social das religiões mundiais], para derivar dela
os fatores causais da evolução religiosa. O teorema é que as religiões evoluem na
medida em que proporcionam respostas cada vez mais satisfatórias às exigências
colocadas pelas indagações existenciais. Cada resposta ao problema da
teodicéia, ao se esgotar, demanda um nível de resposta qualitativamente superior.
Ou seja, o desenvolvimento da religião é racionalização porque sistematiza
concepções e unifica a ação sob a pressão dos problemas colocados pelas
teodicéias religiosas. As respostas culturais a este problema foram sendo
moldadas no interior das grandes religiões mundiais. No caso do Ocidente, os
interesses materiais foram modelados pelas idéias religiosas, pois a teodicéia
ocidental, começando no judaísmo antigo até chegar ao protestantismo ascético,
eliminou a magia como meio de salvação (desencantamento do mundo),
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conduzindo a disciplinarização das condutas sociais, fator essencial para
compreender, em um segundo passo, a modernização européia, incluindo-se aí
especialmente o capitalismo.
Na mesma direção dos trabalhos de Tenbruck, também Wolfgang Schluchter24 busca reconstruir a sociologia weberiana sob uma ótica neo-
evolucionista, embora busque corrigir a unilateralidade do primeiro destacando
também os aspectos estruturais e históricos da obra de Weber. Sua busca
consiste em reconciliar a teoria evolucionária (anti-histórica) e a abordagem
histórico-comparativa (anti-evolucionária) a partir de um modelo que Schluchter
chama de “história desenvolvimental” (Entwicklungsgeschichte), distinto tanto de
uma teoria universal da evolução quanto de uma descrição meramnte tipológica
da história mundial.
Do ponto de vista sociológico25, Schluchter recorre ao pensamento neo-
evolucionista visando reconstruir, de forma abstrata, o esquema sociológico das
análises weberianas. Este esquema, particularmente complexo, distingue em
Weber, dois níveis de análise: as configurações sociais básicas e suas variantes
históricas. As configurações sociais são formadas por elementos simbólicos,
institucionais e interacionais e as variantes históricas, respondem pela sua
concretude histórica, tornando-se, então, ordens sociais. Do ponto de vista ético,
cada configuração social pode ser avaliada conforme o nível de desenvolvimento
da moralidade: pré-convencional (ética mágica), convencional (ética legal) e pós-
convencional (ética da convicção e da responsabilidade). Concretamente, esta 24 Schluchter realizou diversos estudos sistemáticos sobre a sociologia das religiões de Weber: Max Webers Studie über das antike Judentum: Interpretation und Kritik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1881; Max Webers Studie über Konfuzionismus und Taoismus: Intepretation und Kritik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1983; Max Webers Studie über Hinduismus und Budhismus: Interpretation und Kritik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1984; Max Webers Sicht des antiken Christemtums: Interpretation und Kritik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985; Max Webers Sicht des Islams: Interpretation und Kritik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1987. Os principais textos que apresentam a visão global do autor sobre a sociologia de Weber são: The Rise of Western Rationalism: Max Webers Developmental History. Berkeley: University Press, 1981; Rationalism, Religion and Domination: A Weberian Perspective. Berkeley: University of Press, 1989 e, ROTH, Guenter e SCHLUCHTER, Wolfgang. Max Weber Vision of History: Ethics und Methods. Berkeley: University Press, 1979; Paradoxes of Modernity: Culture and Conduct in the Theory of Max Weber. Stanford: University Press, 1996; Psycophysis and Culture in TURNER, Stephen (org.). Cambridge Companion to Weber. Cambridge: University Press, 2000. 25 SCHLUCHTER, Wolfgang. The Rise of Western Rationalism: Max Weber’s Developmental History. Berkeley: California Press, 1985.
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evolução pode ser percebida colocando-se em relação à sociologia da dominação
e a sociologia do direto de Weber. Temos, então, o seguinte esquema: a
dominação racional corresponde ao direito formal-racional, a dominação
tradicional ao direito substantivo não racional e a dominação carismática às
formais legais do direito formal não racional e substantivo-racional. Por fim, sob o
ponto de vista histórico, identificam-se três variantes históricas fundamentais na
obra de Weber: civilização primitiva, civilização arcaica e civilização moderna. É
justamente a passagem do segundo para o terceiro nível que configura a
preocupação intelectual fundamental de Weber, ou seja, a origem e as
características do racionalismo da dominação do mundo predominante no
Ocidente.
Na perspectiva histórica, Schluchter esquematiza os estudos empíricos de
Weber, oferecendo ao leitor um amplo quadro comparativo de sua sociologia da
religião. Em princípio ele retoma os argumentos da primeira versão da Ética
Protestante (1904) lembrando que neste momento o estudo weberiano: 1) não
analisa as condições econômicas, mas as conseqüências econômicas do
protestantismo ascético, 2) estabelecendo uma relação entre a ética do
protestantismo ascético e importantes aspectos da moderna cultura vocacional, 3)
a partir da idéia da afinidade eletiva entre ambos os fenômenos. Não obstante, na
Ética Econômicas das Religiões Mundiais e nos textos que introduzem seus
Ensaios Reunidos de Sociologia da Religião, a problemática weberiana se amplia,
tendo como foco o papel do protestantismo no processo de transição para a
modernidade, particularmente no seu papel causal na gestação do racionalismo
da dominação do mundo. Este processo implica em uma análise inter-cultural
(para identificar a especificidade do cristianismo ocidental no quadro das religiões
mundiais) e intra-cultural (para identificar a especificidade do protestantismo no
quadro da própria religião cristã).
Em relação ao primeiro aspecto, Schluchter aponta quatro modelos
diferenciados de processos de racionalização sócio-religiosa identificados por
Weber: na esfera ocidental, 1) o racionalismo da superação do mundo (judaísmo
antigo e monasticismo ocidental) e, 2) o racionalismo da dominação do mundo
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(protestantismo ascético) e; na esfera oriental, 3) o racionalismo da acomodação
ao mundo (confucionismo) e, 4) o racionalismo da fuga do mundo (budismo).
Quanto à especificidade do protestantismo ascético no quadro do cristianismo
ocidental, Schluchter nos apresenta uma nova tipologia que compreende a
diferenciação, também, de quatro modelos: o catolicismo institucional, o
catolicismo monástico, o protestantismo luterano e o protestantismo ascético.
Somente o protestantismo ascético foi o movimento religioso que combinou
características singulares no quadro das religiões mundiais e da história do
cristianismo: teocentrismo, ascetismo, direção intramundana, santificação pessoal
e virtuosidade. É o seu absoluto individualismo, acentua Schluchter, que conduz
os impulsos psico-sociais do protestantismo ascético na direção da neutralização
das relações éticas entre os indivíduos, ou seja, produzem uma ética monológica
da convicção com conseqüências não fraternais. Além disso, é a especificidade
desta ética que, como fator cultural, contribuiu para o surgimento do racionalismo
ocidental e de suas instituições e ordens sociais próprias26.
Na mesma direção dos trabalhos de Tenbruck e Schluchter, também para
Jürgen Habermas, a problemática central do pensamento weberiano estaria na
elucidação da índole específica do racionalismo da cultura ocidental. No entanto,
Habermas atribui a Weber apenas um evolucionismo no que tange a superioridade
moral da cultura ocidental, e busca distinguir entre a evolução dos aspectos de
conteúdo da sociologia da religião de seus aspectos sócio-estruturais,
restabelecendo a dialética weberiana entre idéias e interesses. A partir desta
premissa, o autor distingue em Weber duas jornadas de racionalização: de um
lado a racionalização cultural ou das imagens do mundo e, de outro, sua
materialização institucional das estruturas de consciência modernas que se
formaram do processo de racionalização religiosa, ou seja, sua transformação em
racionalização social.
26 Para uma apreciação crítica deste ponto de vista, veja-se: KALBERG, Stephen. The search for Thematic Orientations in a Fragmented Oeuvre: The Discussion of Max Weber in Recent German Sociological Literature. Sociology, 1979, 13, p.127-139.
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Para reconstruir o conteúdo (ou dinâmica evolutiva) da racionalização
cultural, Habermas esquematiza os escritos de sociologia da religião de Weber a
partir dos múltiplos elementos que formam seu conteúdo: imagem de Deus
(teocêntrica ou cosmocêntrica), imagem do mundo (positiva e negativa), vias de
salvação (misticismo e ascetismo) e a valoração do mundo (visão teorética e
acomodação prática). Como resultado, a visão weberiana sobre os diferentes
potenciais de racionalização das religiões universais é assim apresentada: no
Ocidente, o judaísmo e o cristianismo com seu racionalismo da dominação do
mundo (valorizando a dimensão ética), bem como a filosofia grega com sua
contemplação do mundo (valorizando a dimensão cognitiva) apresentam
potenciais positivos de racionalização. Já no Oriente, o hinduísmo com sua fuga
do mundo (sob o ponto de vista cognitivo); e o confucionismo, com sua lógica de
acomodação ao mundo (sob o ponto de vista ético), apontam para um baixo grau
potencial de racionalização cultural.
A racionalização social implica em considerar de que forma a compreensão
moderna do mundo institucionaliza-se enquanto ação social. Ou seja, neste nível
Weber busca explicar a institucionalização da ação social com relação a fins nos
complexos institucionais da economia capitalista e do Estado moderno. Em sua
Ética Protestante, Weber demonstra a importância funcional do calvinismo para
um modo de vida objetivizado. No modo metódico de vida a esfera pós-
convencional fica objetivizada, pois se torna moralmente neutra em relação a
outros atores sociais (ética monológica de intenção com conseqüências
afraternais). Assim, o protestantismo tem o potencial de produzir as condições
necessárias para o surgimento de uma base motivacional da ação racional com
relação a fins na esfera do trabalho social. É neste aspecto que reside seu
potencial evolutivo. No escrito Rejeições Religiosas [Zwischenbetrachtung], por
sua vez, Weber apresenta o conflito entre as ordens sociais intramundanas e as
religiões da fraternidade, demonstrando que, diante da emergência do capitalismo,
o protestantismo também solapa as possibilidades de sua sobrevivência. Desta
forma, a ancoragem dos sistemas de ação social no mundo da vida é transferida
para a esfera do direito, objeto final da análise de Habermas. No esquema da
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sociologia do direito de Weber, o direito ocupa um papel ambíguo pois, se por um
lado permite a institucionalização da ação racional com relação a fins, por outro,
não lhe fornece bases prático-morais. É justamente esta duplicidade que configura
o que Habermas entende ser a tese de uma equívoca racionalização do direito.
Embora situado, em termos globais, na perspectiva da racionalização, a
original interpretação que Wilhelm Hennis nos fornece dos trabalhos de Weber, o
distancia fortemente da forte unidade que, vimos, aproxima os estudos dos
autores anteriores. Para Hennis, a perspectiva que informa os trabalhos de Weber
não é estritamente sociológica, pois incorpora nela um problema de ordem
filosófica27 e; além disso, o que dá sentido a temática da racionalização é uma
questão de caráter antropológico: o “desenvolvimento da humanidade”
(Menchestum)28.
Para fundamentar sua leitura filo-antropológica (ou sociológico existencialista)
do pensamento weberiano, Hennis recorre especialmente aos textos nos quais
Weber rebate aos críticos diretos da obra A ética protestante e o espírito do
capitalismo29. Surpreso com a falta de atenção dada a estes escritos, ele afirma
que neles a preocupação explícita de Weber é esclarecer e elucidar o seu ponto
de vista e, nesta medida, eles revelam o coração de seu projeto. Hennis destaca
ainda que a última das respostas de Weber a seus críticos foi redigida em 1910,
quando ele já tinha começado a redação dos estudos dedicados às religiões
mundiais. Além disso, as referências de Weber à conduta de vida (Lebensfürung)
do homem contemporâneo, contidas no final da versão da Ética Protestante,
redigida em 1905, foram mantidas na sua versão de 1920. Este dado, acredita o
autor, refuta a tese de que haveria uma evolução interna nas preocupações
27 A versão original alemã do texto é: HENNIS, Wilhelm. Max Weber Fragestellung. Tübingen: J.C.M. Mohr, 1987. Em ingles; Max Weber: Essays in Reconstruction. London and Boston; Allen & Unwin, 1987. O presente artigo faz uso da tradução francesa, a saber: HENNIS, Wilhelm. La problématique de Max Weber. Paris: Presses Universitaires de France, 1996. 28 Nas palavras do próprio autor: “Não é de todo inexato ver no processo de racionalização o tema essencial de Weber. Mas, e é o estado atual da pesquisa de Weber que o demonstra, tal tese é apta ao contra-senso quando interpretada ad libitum e, no fundo das coisas, superficial” (idem, p.18). 29 Estes textos podem ser encontrados em: WINCKELMANN, Johannes (ed). Die Protestantische Ethik II: kritiken und antrikritiken. Gütersloh: Gütersloh Verlagshaus Gerd Mohn, 1978.
14
intelectuais de Weber na direção da temática da racionalização, como sustentam
Tenbruck, Schluchter e Habermas.
De um ponto sistemático, Hennis elucida o conteúdo da problemática
antropológica (também chamada de caracterológica ou ética) de Weber em dois
níveis principais: 1) o nível ‘estrutural’ que trata de suas pesquisas sobre a relação
entre ‘humanidade’ e organizações e poderes sociais; 2) o nível dos julgamentos
de valor antropológicos e éticos que estariam imbricados nas descobertas
empíricas de Weber.
O nível estrutural refere-se à relação que Weber estabelece entre a
personalidade e as ordens de vida. Nesta perspectiva, busca-se pensar as
tensões entre as diversas esferas sociais e suas legalidades (lógicas de
funcionamento próprias) e a reivindicação interior do desenvolvimento da
personalidade. O segundo nível situa-se no plano normativo. Neste caso trata-se
de identificar o ideal de homem que serve de parâmetro para suas reflexões.
Quais são as qualidades que Weber enxerga no ser humano? Para o estudioso, a
noção central da ética antropológica weberiana é a idéia de personalidade. Nas
condições da sociedade moderna o cultivo da personalidade estaria assentado,
por sua vez, na busca de uma causa ao qual o indivíduo deveria devotar sua
existência. Aliás, é este elemento que perpassa a profissão, que responde, nas
condições modernas, pelo núcleo da conduta de vida orientada moralmente. De
origem protestante, a idéia de profissão permitiu orientar a conduta de vida
segundo critérios que organizam o agir humano. Para Hennis, o desafio do
pensamento weberiano era apontar a contradição entre a idéia de personalidade e
vocação com a ordem racionalizada das diversas esferas sociais. A reflexão
weberiana ganha uma conotação crítica, pois aponta para a impossibilidade de
uma moralização do agir cotidiano diante dos imperativos sistêmicos das ordens
sociais como o problema chave da ordem social moderna.
A perspectiva filosófica que Hennis confere à obra weberiana sustenta-se,
também, no estudo das fontes histórico-intelectuais de seu pensamento. Em
primeiro lugar, Weber é recolocado no quadro intelectual da Escola Histórica
Alemã de Economia, de onde ele teria derivado seu programa de análise. Nesta
15
base, o pensamento de Weber é entendido como uma filosofia moral, dado que a
visão de ciência adotada por esta escola não seria similar à compreensão da
economia como ciência especializada na produção de bens e aumento da riqueza,
como passou a ocorrer depois. Outra contribuição fundamental para o
desenvolvimento da temática weberiana é a influência do pensamento de
Nietzsche que Weber foi incorporando ao longo de sua carreira. A tese de Hennis
é que, geralmente ignorada pela sociologia, entre os dois autores, muito mais do
que influência, existiria uma consonância, na medida em que Weber participa do
clima intelectual de seu tempo, do qual Nietzsche fazia parte integrante. A terceira
fonte do pensamento filosófico weberiano seria de ordem política. O valor central
a guiar o liberalismo weberiano, Hennis julga encontrá-lo em sua epistemologia,
resgatando o conceito de “faculdade de julgar”. Seu liberalismo não significa
adesão aos valores substantivos defendidos historicamente por esta ideologia
política, mas significa a busca de olhar com clareza a realidade das situações e
pensá-la a luz de critérios de valor. Aliás, seu valor essencial era à busca da ética
responsável do julgamento. Weber, estaria, assim, na tradição do pensamento
burguês cuja busca é o aperfeiçoamento do homem e o cultivo das virtudes. Em
Weber, tal desiderato responde não pela idéia de conservação de si, mas pela
idéia de devotamento, qual seja, dedicação a uma causa e as pessoas.
Considerada em seu conjunto, a perspectiva dos teóricos que apontam ser a
racionalização a pedra angular do sistema weberiano tem na adoção da ótica
evolucionista como recurso metodológico auxiliar um dos seus principais alvos de
crítica30. Todavia, comprometida com amplos e rigorosos estudos exegéticos e
sistemáticos dos textos de Weber, não seria exagerado dizer que a perspectiva da
racionalização pode ser caracterizada como verdadeira “escola”, cuja
30 Críticas a esta interpretação foram feitas nos seguintes trabalhos: LOVE, John. Developmentalism in Max Weber´s Sociology of Religion: a critique of F.H. Tenbruck. Archives Européenes de Sociologie 34, 2, 1993, p.339-363; e em RIESEBRODT, Martin. Ideen, Interessen, Rationalisiergung: kritische Anmerkungen zu F. H. Tenbrucks Interpretationen des Werkes Max Webers. Kölner Zeitscrifft für Soziologie und Sozialpsychologie, 32, 1980, p.111-129.
16
interpretação estende-se, hoje, para muito além do cenário intelectual
germânico31.
2. Tradição americana A leitura de Max Weber como um dos fundadores e inegável clássico da
sociologia deve muito à sua tradução e absorção pela sociologia estaduniense32.
Tal como procedi acima, começarei situando, historicamente, as origens do
processo de discussão deste autor no mundo intelectual norte-americano. Os
tópicos seguintes caracterizam as duas principais linhas de leitura presentes hoje
nos Estados Unidos: a sociologia histórico-comparada e a sociologia econômica.
2.1. Antecedentes O primeiro texto weberiano de fato traduzido em inglês nos Estados Unidos
foi o escrito História Geral da Economia que apareceu em 1927 pelas mãos de
Frank Knights, professor em Chicago. Mas, é com a obra de Talcott Parsons que
Weber realmente se consagra como autor fundamental no pensamento norte-
americano. Tendo estudado na Alemanha, ele foi o responsável pelas primeiras
publicações das mais importantes obras de Max Weber, especialmente a Ética
31 O que não significa que a tese da racionalização seja exclusiva do cenário intelectual alemão. No contexto de língua inglesa, adotam a mesma tese publicações como: BRUBAKER, Roger. The limits of rationality. London: Allen & Unwinn, 1985; WHIMSTER, Sam e LASH, Scott (eds.). Max Weber, Rationality and Modernity. London: Allen & Unwin, 1987; GLASMANN, Ronald e MURVAR, Vatro (eds.). Max Weber’s Political Sociology: a Pessimistic Vision of a Rationalized World. Westpont: Greenwood Press, 1983. 32 Dentre os autores que discutem a trajetória da obra de Weber nos Estados Unidos, pode-se citar: OAKES, Guy. Guenter Roth and weberian studies in América (1997). International Journal of Politics, Culture and Sociology II (I), 1997, p.175-179; OAKES, Guy. Ghert, Mills and Shils: the origin from Max Weber. International Journal of Politics, Culture and Sociology, II, 3, 1999, p.399-433; KALBERG, Stephen. On the Neglect of Webers Protestantic Ethic as a Theoretical Treatise: Demarcating the Parameters of Postwar American Sociological Theory. Sociological Theory 14, 1, 1996, p.49-70.; KOLKO, Gabriel. Max Weber on America. Theory and Evidence. History and Theory, 1961, I, p.243-260; ROTH, Guenter. Marx and Weber on the United States today. Max Weber Dialogue. Lawrence: University Press of Kansas, 1985m p.215-233; WENGER, Morton. The transmutation of Weber´s Stand in American Sociology and Its Social Roots. Current Perspectives in Social Theory, I, 1980, p.357-378.; SCAFF, Lawrence. Max Weber and the Social Sciences in América. European Journal of Political Theory, 2004, 3, p.121-132. ANTONIO, Roberto. Max Weber in the Post-World War II US and after. Ethics & Politics, 2005,2.
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Protestante e o Espírito do Capitalismo (que foi traduzida em 193033) e alguns
capítulos de Economia e Sociedade que apareceu em 194734. Porém, mais do que
isso, Parsons incluiu Weber (ao lado de Durkheim, Marshall e Pareto) na teoria
voluntarista da ação exposta, em 1937, no seu livro A estrutura da ação social35.
Ao fazê-lo, ele não apenas inseriu Weber em seu próprio quadro teórico, como
também realizou uma leitura da obra weberiana que se tornou paradigmática no
contexto norte-americano. Partindo da teoria da ação, Parsons destacou os
aspectos metodológicos da obra weberiana e divorciou-a de suas bases históricas,
empíricas e políticas36. Resultou daí uma leitura fortemente funcionalista da obra
de Weber, concebido enquanto teórico da integração normativa da conduta social.
O trabalho que inaugura o rompimento com a abstrata visão parsoniana de
Weber é a coletânea de Hans Gerth e Charles Wright Mills (From Max Weber,
de 194637). Na busca por distanciar-se de Parsons, estes autores não apenas
ressaltaram a convergência das teses de Weber com Marx e Nietzsche, como
também apresentaram a sociologia weberiana sob uma nova chave de leitura: a
dicotomia entre burocratização e carisma. Neste prisma, eles trocam a perspectiva
funcionalista e integrativa ressaltada por Parsons, chamando a atenção para a
dimensão do conflito e da coerção contidos no pensamento weberiano. A
continuidade de uma abordagem empírica da obra de Weber foi, após,
amplamente aprofundada mediante o trabalho de Reinhard Bendix38. A pesquisa
33 WEBER, Maxt. The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism. (Trans. Talcott Parsons). New York: Scribners, 1958 (1930). 34 WEBER, Max. The Theory of Social and Economic Organization. (Trans. Talcott Parsons with A.M. Henderson). Glencoe, IL: Free Press, 1947. 35 PARSONS, Talcott. The Structure of Social Action. New York: MacGraw-Hill, 1937. 36 COHEN, Jere, HAZELRIGG, Lawrence e POPE, Whitney Pope. De-Parsonizing Weber: a critique of Parsons Interpretation of Weber’s Sociology. American Sociological Review, 40, 1975,p.220-241. Para o debate que se seguir após, veja-se a resposta de Parsons (On De-Parsonizing Weber: comment on Cohen et al. American Sociological Review, 40, 5, p.666-670) e a réplica dos autores (Cohen et al. Reply to Parsons. American Sociological Review, 40, 5, p.670-674). Outras análises encontram-se ainda em: ZARET, David. From Weber to Parsons and Schutz: The Eclipse of History in Modern Social Theory. The American Journal of Sociology, v. 85, n.05, 1980, p.1180-1201 e ANTONIO, Robert J. Weber vs. Parsons: Domination or Technocratic Models of Social Organization. GLASSMAN, Ronald e MURVAR, Vatro. Max Weber’s Political Sociology: a pessimistic vision of a rationalized word. London: Greenwood, 1984, p.155-174. 37 GERTH, H.H e MILLS, C. Wright. From Max Weber: Essays in Sociology. New York: Oxford University Press, 1946. 38 BENDIX, Reinhard. Max Weber: An Intellectual Portrait. New York: Doubleday, 1960.
18
deste autor tinha uma explícita orientação histórica e pode ser situada dentro dos
marcos de uma sociologia histórico-comparada39, como aliás testemunha o
conjunto de seu trabalho que, em boa parte, possui esta temática de fundo40.
Dessa forma, ele rompeu com a orientação a-histórica e evolucionista da visão
parsoniana que concebia a sociedade como sistema e o curso histórico como
processo evolutivo. Contrariando a visão evolucionista da interpretação
parsoniana, Bendix retomou a sociologia da religião e a sociologia política da
dominação de Weber, e apresentou-o como um grande historiador cultural, cujo
foco seria a singularidade e o destino paradoxal de cultura e da sociedade
ocidental41. A interpretação histórica dada por Bendix aos trabalhos de Weber
constitui, ainda hoje, uma das principais abordagens interpretativas deste autor,
como mostrarei a seguir.
2.1. Sociologia histórico-comparada Referencia fundamental no debate intelectual americano, a vertente
historicista, que concebe a obra weberiana essencialmente enquanto esforço de
construção de uma sociologia histórico-comparada42, alimenta-se, ainda hoje, do
seguinte debate: de que forma os elementos teóricos (sociológicos) e empíricos
(históricos) combinam-se em suas análises: trata-se de investigações que tem
como foco a especificidade das civilizações mundiais ou, ao contrário, eles são
39 Raymond CALDWELL, Raymond. Between Cylla and Charybdis: Reinhard Bendix on theory, concepts on comparison in Max Weber’s Historical sociology. History of the Human Sciences, 2002, 15, 25. 40 É o caso de trabalhos como: Nation Building and citizenship: studies in our Changing Social Order. New York: Wiley, 1964. Para um depoimento sobre sua obra, veja-se SMELSER, Neil, 1991, Portrait, International Sociology, 6, 4, p.481-485. 41 BENDIX, Reinhard. Max Weber’s Sociology Today. American Journal of Sociology, 1965, v.30, p.233-245. 42 Leitura predominante, mas não exclusiva, obviamente. Para uma apreciação do estado da arte da leitura de Weber nos Estados Unidos, remeto o leitor à nota de número 26. Um exemplo de postura diferenciada pode ser ilustrado recorrendo-se ao trabalho de Casanova, que endossa enfaticamente a leitura centrada na temática da racionalização: CASANOVA, Jose V. Interpretations and Misinterpretations of Max Weber: The Problem of Rationalization. GLASSMAN, Ronald e MURVAR, Vatro (orgs.). Max Weber’s Political Sociology: a pessimistic vision of a rationalization Word. London: Greenwood Press, 1984, p.141-154.
19
material empírico com vista a formular generalizações sociológicas de caráter
amplo e universal?
A tendência para reforçar o caráter empírico da investigação weberiana tem
na figura de Guenther Roth, discípulo de Reinhard Bendix43, um de seus
principais representantes. As premissas anti-parsonianas e a tendência historicista
do autor já ficam evidentes na extensa introdução que publicou para a nova e
integral publicação de Economia e Sociedade, patrocinada por ele em 196844.
Dando continuidade aos esforços de Bendix, Roth tende a subordinar a dimensão
sociológica à dimensão histórica, pois, segundo ele, Weber concebe a sociologia
como etapa preparatória e preliminar para análises históricas. Ainda que
estratégias complementares, argumenta, ambas estão situadas em diferentes
níveis45. O primeiro nível – configuracional - envolve a construção de modelos
sócio-históricos, ou seja, conceitos com específico conteúdo sócio-histórico, em
contraste com categorias sociológicas universais como as propriedades da ação
social, por exemplo (estas, situadas no plano formal da epistemologia). O segundo
nível (desenvolvimental) refere-se à construção de teorias seculares, qual seja, a
descrição e explanação do curso, gênese e conseqüências de eventos históricos
concretos (neste tipo estaria seu estudo sobre o papel da Ética Protestante). A
pesquisa empírica de Weber desenvolve-se tendo como referência a combinação
de modelos sócio-históricos (sociologia) e de teorias seculares (história).
A primeira etapa consiste na construção de tipologias sociológicas ou de
modelos teóricos que sumarizam casos empíricos semelhantes e extraem seus
traços comuns. Trata-se de generalizações que enfatizam o geral e o repetitivo,
mas sem assumir a hipótese de leis causais, ainda que a busca seja por
43 Seus trabalhos conjuntos acham-se reunidos em: BENDIX, Reinhard e ROTH, Guenter. Scholarship and partisanship. Berkeley: University of Califórnia Press, 1971. 44 ROTH, Guenther. Introduction. WEBER, Max. Economy and Society. New York: Bedminster, 1968, 1, p. xxvii - civ. 45 O autor dedicou particular atenção a este problema no início de sua carreira e o apresentou em três textos, com pequenas variações entre eles: ROTH, Guenther. Sociological Typology and Historical Explanation. In BENDIX, Reinhard e ROTH, Guenther. Scholarship and partisanship. Berkeley: University of Califórnia Press, 1971, p. 109-128; ROTH, Guenther. History and Sociology in the Work of Max Weber. The British Journal of Sociology, 27,3, 1976, p.306-318; e, por fim, em quatro capítulos publicados em co-autoria com Wolfgang Schluchter: (Max Weber’s Vision of History: ethics & methods. Berkeley: Califórnia Press, 1979).
20
tendências de caráter geral. Exemplos deste tipo seriam seus modelos típico-
ideais de burocracia, patrimonialismo, feudalismo ou carisma, ou ainda igreja,
seita e outros. E nesse plano que Roth localiza os tipos ideais que orientam a
pesquisa weberiana e que, segundo ele, foram desenvolvidos de forma
sistemática em Economia e Sociedade. Após esta etapa preparatória de
construção de tipologias, as teorias seculares realizam o trabalho da análise
empírica propriamente dita. Ou seja, é neste nível que é realizada a descrição e
explanação do curso da gênese e das conseqüências de eventos históricos
particulares. Em outros termos, aqui estamos diante da tarefa de explanações
causais que se referem a processos sociais no curso da história. No entanto, não
se trata de descrever os eventos em sua absoluta singularidade, tarefa estrita do
historiador, pois o objetivo de Weber é identificar padrões de causação e é
exatamente nesta medida que se tratam de “teorias”. Assim, partindo dos
conceitos anteriores, a formação do Estado Moderno, a rotinização do carisma e a
racionalização ocidental seriam alguns dos exemplos deste tipo. No mesmo
patamar podem ser colocados seus estudos comparativos sobre as religiões
mundiais.
Por fim, o terceiro nível (situacional) consiste em analisar uma dada situação
em termos de suas causas e conseqüências, atuais ou potenciais. Ele não
constitui um passo do método sócio-histórico, na medida em que ele se refere, na
verdade, aos escritos conjunturais de Weber que se referem, como sabemos, aos
acontecimentos políticos da Alemanha. De qualquer forma, no nível da análise
situacional, os modelos sócio-históricos e as teorias seculares são retomados
parar permitir a análise de situações específicas, com ênfase para seu conteúdo
político. Ao comparar o pensamento de Weber com os trabalhos de Fernand
Braudel46, por exemplo, Roth não chega a reduzi-lo a condição de mero
historiador, mas é bastante claro que, para este intérprete, é a dimensão histórica
e, portanto, empírica, que responde pela especificidade da sociologia weberiana47.
46 ROTH, Guenter. Duration and Rationalization. In ROTH, Guenther e SCHLUCHTER, Wolfgang. Max Weber’s Vision of History: ethics & methods. Berkeley: Califórnia Press, 1979, p.166-193. 47 Atualmente, o interesse do autor convergiu em outras direções de trabalho, que incluem uma nova versão em inglês da Ética Protestante, bem como ao estudo de elementos biográficos de
21
Se Reinhard Bendix tem na figura de Guenther Roth um de seus principais
continuadores, o trabalho de Stephen Kalberg situa-se na perspectiva contrária e
possui naquele autor o contraponto fundamental de sua abordagem48. Nesta
direção, se ele retoma daquele a inspiração para compreender Weber como
sociólogo histórico-comparativo, ele também o reprova por menosprezar os
elementos generalizantes e teóricos da obra weberiana. Para Kalberg, Bendix
tratou Weber muito mais como historiador (atento às particularidades dos
processos sociais) do que como sociólogo (atento às regularidades dos padrões
históricos). O esforço de Kalberg se concentra, assim, na tentativa de determinar a
especificidade dos métodos e procedimentos comparativos de Weber que ele julga
serem cruciais para superar os impasses das análises sócio-históricas
contemporâneas.
Para realizar este intento, Kalberg se distancia da literatura especializada na
obra de Weber, reprovando-a pela sua tentativa de determinar seu sentido global
a partir de uma temática primordial, como é o caso da obra de Schluchter,
centrada na questão do desencantamento e da racionalização ou mesmo das
tentativas de ler a obra weberiana enquanto fundamentada na dicotomia
burocracia e carisma. O caminho escolhido por Kalberg consiste em privilegiar os
aspectos formais da sociologia de Weber. Sob este prisma, ele identifica em
Weber cinco diferentes procedimentos de pesquisa e estratégias de investigação.
A primeira tem a ver com a articulação entre a dimensão micro e macro da
análise, conciliando assim o papel dos atores com o papel das estruturas. Embora
seu ponto de partida seja o individualismo metodológico (com seus tipos de ação e
metodologia compreensiva), Kalberg identifica no autor três modos de
configuração da ação, ou seja, três modos diferentes de pensar os
microfundamentos das instituições sociais, articulando agência e estrutura: os
conceitos de ordem social, legitimidade e os contextos (locii) sociológicos da ação.
A segunda estratégia descreve a concepção radicalmente multi-causal de Weber,
Weber, com especial ênfase para suas raízes familiares: ROTH, Guenther. Max Webers deutsch-englische Familengeschichte (1800-1950). Tübingen: J.C.B. Mohr, 2001. 48 KALBERG, Stephen. Max Weber’s Comparative Historical Sociology. Chicago: University Press, 1994.
22
em que nenhum fator exerce, necessariamente, papel preponderante. Toda forma
de imputação causal unilateral é vigorosamente rejeitada. Segue, em terceiro
lugar, a exposição de como Weber também teria sido capaz de determinar com
precisão os níveis da análise, articulando de forma adequada o plano geral com o
plano particular. Papel crucial cabe aqui aos tipos ideais, concebidos como
instrumentos de determinação dos casos empíricos. Neste ponto, portanto,
Kalberg rejeita a dissociação entre sociologia e história no pensamento de Weber
e insiste sobre a tese de que, neste autor, a preocupação teórica e o estudo de
problemas ou casos delimitados articulam-se igualmente. Para Kalberg, é
especialmente em Economia e Sociedade que os principais tipos ideais de caráter
sociológico são desenvolvidos por Weber.
Em quarto lugar, descreve-se a metodologia weberiana de construção de
modelos geradores de hipóteses. Os modelos oferecem generalizações analíticas
limitadas através da formulação de hipóteses causais circunscritas, verificáveis
empiricamente. Cada modelo é concebido para permitir ao estudioso
comparativista um vai e vem constante entre o caso concreto, a relação ou
desenvolvimento estudado e o quadro conceitual adotado. Partindo novamente de
Economia e Sociedade, ele descreve cinco diferentes modelos empregados por
Weber nos seus estudos históricos: dinâmico (burocracia, patrimonialismo, etc.),
contextual (impacto das leis, prestígio social, etc.), afinidade eletiva (moral
protestante e espírito do capitalismo, etc.), antagonismo (ética burocrática e
patrimonialismo, liderança carismática e economia racional, etc.) e, finalmente o
modelo desenvolvimental. Entre os exemplos citados por Kalberg em relação a
este último modelo está o caso do conflito entre burocracia e carisma e, por outro
lado, a análise weberiana dos processos de racionalização teórica e formal.
Portanto, para Kalberg, temáticas como a rotinização do carisma e a
racionalização são apenas alguns dos exemplos dos modelos analíticos
empregados por Weber. Eles não podem ser tomados como o centro temático de
sua obra, mas apenas como estratégias diferenciadas de suas pesquisas
histórico-comparativas. Por fim, e como quinta preocupação, Weber também
reconheceu a necessidade da análise causal. Coerente com o pressuposto da
23
multicausalidade, seu método leva em conta a multiplicidade de forças em
interação, de ordem sincrônica e diacrônica, e aponta para o caráter conjuntural e
contingente da interação entre ambos os fatores.
Embora o ponto de partida da perspectiva histórico-comparativa de
interpretação da sociologia weberiana seja o mesmo da perspectiva da
racionalização (os amplos estudos de Weber sobre as religiões universais), ela
difere da primeira na medida em que não aponta para um tema que informa e
articula as investigações de Weber, preferindo concebê-la, em geral, como um
amplo esforço de compreensão do curso histórico das civilizações, com especial
ênfase para o mundo moderno ocidental.
2.2. Sociologia econômica
Ao lado da interpretação histórica, uma abordagem econômica da teoria
weberiana tem sido, atualmente, outra tendência importante da leitura de Weber
nos Estados Unidos. Esta interpretação apresenta duas variantes. A primeira, de
ordem epistemológica, vê em Max Weber o início de uma abordagem específica
de entendimento das relações sociais e políticas: a teoria da escolha racional. A
segunda, de caráter substantivo, caracteriza-se por deslocar a tradicional ênfase
em seus textos metodológicos e histórico-religiosos para os seus estudos
econômicos. Ambas as leituras possuem suas raízes na teoria social norte-
americana, mas, em comparação com as demais, possuem um caráter fortemente
transnacional.
A perspectiva da escolha racional caracteriza-se muito mais como um amplo
paradigma de análise social do que por ser um programa específico e voltado
exclusivamente para a interpretação da obra weberiana49. Resulta daí que a leitura
que esta perspectiva realiza de Weber está preocupada, de forma geral, em
encontrar neste autor as mesmas premissas que guiam a teoria, sem a pretensão
de afirmar, necessariamente, que o pensamento weberiano explica-se, por inteiro,
49 Para maiores esclarecimentos sobre o status desta vertente na sociologia em geral remeto o leitor ao texto de COLEMAN, James. S. Foundations of Social Theory. Cambridge: University Press, 1990.
24
a partir desta análise. Weber é convertido, assim, em uma espécie de precursor (e
legitimador) de um paradigma que virá a configurar-se posteriormente50. Há uma
ampla margem de autores que propõe esta grade de leitura, mas, em termos de
apresentação sistemática, cabe especial destaque ao trabalho de Zenona Norkus51. Na visão do autor, as influências que Weber recebeu de sua formação
econômica (particularmente da escola marginalista), refletem-se particularmente
em sua teoria da ação social e, principalmente, na distinção entre a racionalidade
objetiva e subjetiva. Para o intérprete, é justamente na forma objetiva de
racionalidade (entendida como uma forma de racionalidade procedural, oposta a
uma racionalidade substantiva) que esta influência é mais presente. Particular
atenção também é dada à tipologia da ação de Weber, em relação a qual, de
forma inovadora, ele distingue não apenas os 4 tipos puros, mas também mais 10
tipos intermediários ou mistos. Neste ponto, o autor acompanha a maioria dos
estudos que apontam a teoria da ação social weberiana (e particularmente a ação
racional com relação a fins) como o elemento específico que o liga às modernas
abordagens da rational choice52. No entanto, Norkus dá um passo além, e nos
fornece uma leitura que inclui também as análises sócio-históricas de Weber.
Neste ponto, ele enxerga a dupla herança da formação econômica de Weber, na
medida em que sua análise comparada combina o aspecto histórico (oriundo da
Escola Histórica Alemã) com o problema da racionalidade (fruto da Escola
Marginalista). Em síntese, os estudos histórico-comparativos de Weber podem ser 50 O que não impede que determinados autores designassem esta abordagem como “weberianismo analítico”: KISER, E. e HECHTER, M. The Debate on Historical Sociology: Rational Choice and its Critics. American Journal of Sociology, 104, 1998, p.785-816. 51 NORKUS, Zenona. Max Weber and Rational Choice. Vilnius: Institute of Social Research, 2002. Para uma versão anterior, confira-se: NORKUS, Zenona. Max Weber’s Interpretative Sociology and Rational Choice Approach. Rationality and Society, 2000, 12(3), p.259-282. 52 Esta é, por exemplo, a posição de ELSTER, John. Rationality, economy and society. TURNER, Stephen (org.). The Cambridge Companion to Weber. Cambridge: University Press, 2000. Veja-se também: BOUDON, Raymond. Limitations of Rational Choice Theory. American Journal of Sociology, 104, 1998, p.817-828; BOUDON, Raymond. Beyond Rational ChoiceTheory. Annual Rewiew of Sociology, vol.29, 2003, p.01-21; BOUDON, Raymond. La rationalité du religieux selon Max Weber. L’Anné Sociologique, 2001/I, vol.51, p.09-50; BOUDON, Raymond. Weber’s Notion of Rationality and the Theory of Rationality int the Contemporary Social Sciences.HELLE, H. J. (ed.). Verstehen and Pragmatism. Essays in Interpretative Sociology.Frankfurt: Peter Lang, 1991, p.31-46 e SEGRE, Sandro. Weber’s Foundations of the Social Sciences and Rational Choice Theory. In ADLOFF, Frank e BORUTTA, Manuel (eds). Max Weber in the 21st Century: transdisciplinarity with Social Sciences. San Domenica de Fisole: European University Institute, 2008, p.31-43.
25
entendidos como uma tentativa de compreender as condições históricas de
aplicação de sua teoria econômica abstrata. Seu fio condutor passa pela tentativa
de explicar a institucionalização histórica da ação racional referente a fins
(racionalidade instrumental) no curso histórico da civilização Ocidental. Desta
forma, o modelo de análise e as pesquisas histórico-empíricas weberianas formam
um todo coerente cuja luz nos é dada exatamente pela abordagem do indivíduo
social entendido enquanto homo oeconomicus.
Perspectiva semelhante também nos é oferecida pelas pesquisas oriundas
da “nova sociologia econômica” e que se caracterizam pela tentativa de localizar a
sociologia econômica de Weber e, apresentá-la, se não como o elemento
integrador de seus estudos, pelo menos como seu elemento mais importante.
Pioneiro desta direção, o trabalho de Randall Collins53 sustenta que o texto
chave para se entender o conjunto de esforços teóricos de Weber sobre o
capitalismo não é o livro A ética protestante e o espírito do capitalismo (escrito em
1904), mas o conjunto de suas aulas proferidas em Munique, entre 1918 e 1919
(publicadas postumamente por seus alunos) e que recebem o nome de História
econômica geral. Os demais trabalhos de Weber seriam apenas estudos parciais
e somente neste último podemos localizar sua visão final e definitiva sobre o
fenômeno capitalista.
Na percepção de Collins, a tese final de Weber é essencialmente institucional
e o seu núcleo é o entendimento da empresa (entendida como organização
privada de racionalização da produção, que visa o lucro, supondo a calculabilidade
e previsibilidade, fazendo da produção uma rotina burocrático-metódica). A partir
desta definição, a busca de Weber (na História Econômica) consiste em detectar
os dados sócio-estruturais que favoreceram ou criaram obstáculos para o
desenvolvimento destes fatores. Os elementos históricos que produziram a
emergência do capitalismo industrial moderno constituem uma cadeia causal e
formam um complexo interligado, envolvendo fatores econômicos, jurídicos,
políticos e religiosos.
53 COLLINS, Randall. Weber´s Last theory of capitalism: a systematization. American Sociological Review, 1980, Vol. 45 (December):925-942, reproduzido em COLLINS, Randal. Weberian sociological theory. Cambridge: University Press, 1986, p.19-44.
26
Em primeiro lugar são destacados os elementos especificamente
econômicos. Os mercados de bens, trabalho e capital formam uma malha ao redor
da propriedade e da produção industrial (que faz uso da tecnologia e da produção
em massa). Estes fatores, por sua vez, atuam como elementos que racionalizam a
tecnologia e ampliam o mercado. O segundo fator é o sistema legal, pois serve
como um suporte de todo este processo, garantindo-lhe a permanência e
confiabilidade. Já a motivação religiosa para o trabalho e a riqueza funciona em
um terceiro nível, como elemento intermediário, propiciando as condições culturais
necessárias para o comportamento institucionalizado da busca do lucro. O
elemento da variável religiosa aparece em Weber como uma reflexão sobre como
foi possível superar as barreiras éticas que funcionavam como obstáculo para o
comportamento motivado para o lucro e a produção. Por fim, o Estado também
possui um papel central, na medida em que funciona como garantia da ordem
legal e inclui os indivíduos (enquanto cidadãos) em todo o sistema.
Mas, apesar da virtual semelhança com a tese contida na Ética Protestante,
Collins destaca que Weber reformula sua tese da influência da religião em um
sentido apenas negativo. O protestantismo é só a intensificação de uma cadeia de
fatores que conduzem para o capitalismo racional. Ele atuou especialmente como
um fator de remoção dos mosteiros, levando a racionalização do trabalho para
além de círculos restritos. As seitas protestantes, não por causa da doutrina da
predestinação, mas ao exigirem do indivíduo a honra moral, derivada da
honestidade no trabalho, atuaram no sentido do fortalecimento da ética do
trabalho na vida cotidiana. Na interpretação de Collins, portanto, dois elementos
das interpretações tradicionais de Weber são particularmente deslocados. Em
primeiro lugar, os fatores econômicos e sociais, e não mais a ética religiosa
(particularmente o protestantismo), tornam-se o fatores epistemológicos centrais
da análise weberiana. E, em segundo lugar, o centro de gravidade da análise
sócio-histórica de Weber passa do início da era moderna para o período da Idade
Média54.
54 Uma crítica desta tese pode ser encontrada em SCHLUCHTER, Wolfgang. A origem do modo de vida burguês. SOUZA, Jessé de (org.). O malandro e o protestante: a tese weberiana e a singularidade cultural brasileira. Brasília: UnB, 1999, p.121-136.
27
Se o trabalho de Collins resumia-se apenas a descrever, de forma
conscientemente parcial, a visão institucionalista do capitalismo no “último” Weber;
a produção de Richard Swedberg amplia estes limites e busca reconstruir todo o
tecido da teoria weberiana enquanto sociologia econômica55. Aliás, é o próprio
Swedberg que diz surpreender-se com o fato de que a posteridade classifique
Weber como sociólogo, pois “as principais credenciais acadêmicas de Weber
eram todas na área da teoria econômica; a maior parte dos cursos que deu foram
sobre economia; e, durante toda sua vida, ele se apresentou profissionalmente
como um economista” (idem, p.311).
De fato, em seu notável trabalho, Swedberg examina exaustivamente a visão
weberiana da sociologia econômica, entendida enquanto estudo da ação social
econômica, ou seja, aquela que, na sua dimensão social, é movida pelos
interesses e cujos temas principais de análise seriam os diferentes tipos de ação
econômica, o papel da racionalidade na vida econômica, as principais instituições
econômicas bem como os diferentes sistemas econômicos existentes
historicamente. Swedberg parte especialmente de Economia e Sociedade
(concebido, de forma geral, como um texto de sociologia econômica), para mostrar
a influência e relações da esfera econômica com a política, o direito e a religião.
Embora em nenhum momento afirme-se enfaticamente que a temática econômica
seja o centro da análise weberiana, a intenção de reunir o conjunto do corpus
weberiano a partir do esquema econômico/social deixa latente a tese da
centralidade da via econômica como eixo de articulação do pensamento
weberiano.
Esta idéia, por sinal, também se acha implícita na parte exegética do texto,
dedicada a descrição da visão weberiana sobre a sociologia econômica de seu
tempo, bem como sua formação econômica. Aqui Swedberg destaca a filiação de
Weber a tradição alemã de pesquisa econômica que concebia esta ciência
enquanto articulada com a esfera social (Escola Histórica de Economia). Nesta
mesma direção, Swedberg sustenta que a tentativa de Weber seria produzir uma
55 SWEDBERG, Richard. Max Weber e a idéia de sociologia econômica. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2005.
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abordagem integrada dos estudos sócio-econômicos (Sozialökonomik), incluindo a
teoria econômica, a história e as ciências práticas ou mesmo da própria sociologia
econômica (Wirschaftsoziologie). Para Swedberg, esta é a linha que perpassa as
diferentes fases e as principais obras de Weber, principalmente o texto Economia
e Sociedade que fazia parte de uma ampla coleção coordenada por Weber
(Grudriss der Sozialökonomik) e que tinha como finalidade substituir outros
manuais existentes na época. É neste sentido que o conjunto da obra de Weber
pode ser classificada enquanto uma “sociologia econômica”.
No entanto, se no texto Max Weber e a idéia de sociologia econômica a idéia
de que os estudos sócio-econômicos são a linha mestra da obra de Max Weber
era apenas sugerida; em seus trabalhos mais recentes56, Swedberg busca dar
maior viabilidade para esta hipótese. Para o autor, dois elementos particularmente
novos poderiam apontar nesta direção: recentes informações biográficas a
respeito de Weber e a maior clareza quanto aos influxos e influências dos modelos
econômicos na sociologia weberiana. Diante destas pistas, ele busca formar um
novo quadro do pensamento de Weber.
Além das informações biográficas (em que se remete, basicamente, às
pesquisas de Guenther Roth), Swedberg sustenta que tantos os elementos
sociológicos quanto econômicos da obra de Weber apontam em novas direções.
Na direção sociológica, ele descreve a compreensão weberiana dos conceitos de
“interesse” (na qual, diferentemente da abordagem econômica, estaria presente a
dimensão social), “instituição” (constelação estável de interesses na qual as
relações sociais se tornam relativamente independentes dos atores sociais) e
“orientação para os outros”. Estes elementos sociológicos são conectados com a
análise do aspecto econômico da obra weberiana. Partindo da premissa de que a
principal obra de Weber sobre o assunto (Economia e Sociedade), menos do que
um tratado sistemático de sociologia é, antes de tudo, um estudo sobre as
relações entre a economia e as demais esferas sociais, Swedberg procura
elucidar, também, neste caso, três conceitos. Os dois primeiros (organização e
56 SWEDBERG, Richard. The Changing Picture of Max Weber Sociology. Annual Review of Sociology, 2003, n. 29, p.283-306.
29
firma) inserem-se no quadro geral de sua teoria da burocracia. O terceiro deles é o
conceito de capitalismo e seus diferentes tipos (capitalismo racional, político e
tradicional).
Ao integrar este complexo e amplo quadro de conceitos, Swedberg acredita
que se possa obter uma nova imagem do pensamento weberiano, que contrasta
com os modelos dominantes. No primeiro, derivado de Parsons, o ator é regido
por normas e valores e os elementos empíricos privilegiados são a dimensão
religiosa e política da obra de Weber. Na segunda imagem, derivada da
perspectiva da escolha racional, o ponto de partida é a sociologia econômica de
Weber e a ação social é pensada dentro dos moldes do ator auto-interessado.
Swedberg nos aponta, então, para um terceiro modelo que, tendo Bourdieu como
referência paradigmática, distancia-se da noção parsoniana do ator regido por
normas para adotar a visão analítica do ator regido por interesses; e, por outro
lado, reconhece a dimensão social do comportamento do indivíduo. A posição do
autor, neste caso, tende fortemente para um terceiro modelo, na medida em que
entende que a abordagem parsoniana não é condizente com as mais recentes
descobertas bio-biliográficas de Weber, enquanto a segunda tende a interpretar
Weber no contexto de uma teoria elaborada a posteriori. Resta perguntar se o
resultado da empreitada de Swedberg, ao final, não significa apenas uma correção
ou adição à perspectiva da escolha racional, já que, em suma, o que ele faz é
acrescentar uma dimensão “social” (ou relacional) àquela perspectiva, deixando a
idéia de que o “interesse”, enfim, é o móvel último de sua teoria57.
Nos termos aqui expostos, seria perfeitamente possível questionar a
abordagem da escolha racional e da nova sociologia econômica enquanto,
rigorosamente falando, programas de pesquisa do pensamento weberiano. A
objeção, neste caso, reside no fato de que, mais do que modelos hermenêuticos
de interpretação do sentido de seus textos, estamos diante de uma certa “leitura”
de Weber, qual seja, uma forma determinada de apropriação do seu pensamento
57 Outros trabalhos que discutem a sociologia econômica de Weber são: PARSONS, S. Money, Time and Rationality in Max Weber: Austrian Connections. London: Routledge, 2003; PEUKERT, H. Max Weber: precursor of Economic Sociology and Heteredox Economics? American Journal of Economic and Sociology, 63(5), 2004, p.987-1020.
30
a partir de esquemas concebidos em termos exógenos à sua própria obra. No
entanto, não se pode menosprezar a influência (e mesmo importância) desta
leitura, razão pela qual ela constitui-se, hoje, como um padrão que guia, em larga
escala, um modo de apropriação do pensar weberiano.
3. Considerações finais
Se determinar o eixo da obra weberiana constitui motivo de dificuldades e
discussões, o mesmo poderia ser dito também da tentativa de estabelecer as
linhas deste debate. Neste sentido, não pretendo que esta apresentação seja uma
descrição de supostas correntes ou escolas existentes, porém, mais
modestamente, um esforço de identificação e apreensão de padrões e tendências
que podem nos auxiliar a retratar o estado da arte sobre a interpretação da obra
de Weber. Nesta direção, por sinal, penso que se adotarmos uma postura
rigorosamente epistemológica e hermenêutica, ou seja, compreendendo a
tipologia aqui esboçada enquanto “programas de pesquisa”, os modelos que
buscam compreender os escritos weberianos como sociologia da racionalização,
sociologia histórico-comparada ou sociologia econômica, possuem pesos
desiguais, na medida em que, esta última (pelo menos como determinação do
sentido último da obra weberiana) reconhece seu caráter ainda parcial e tentativo.
Restam, com maior força, o programa da sociologia histórico-comparativa e da
sociologia da racionalização. As diferenças entre elas, por sinal, ainda que
significativas, não são abissais, elemento que, aliás, só torna o debate ainda mais
complexo. Dado este quadro, minha tarefa final não consiste em buscar discutir a
viabilidade de cada um destes modelos interpretativos, posto que sua
verificabilidade depende, em última instância, da continuidade do debate e da
pesquisa em torno dos textos de Weber. Visando fornecer um balanço final do
debate, buscarei apontar algumas linhas de força, ou, posto de outra forma,
identificar algumas das questões de fundo que permeiam e subjazem os diferentes
modelos de compreensão do pensamento de Weber.
31
A primeira destas questões é de ordem externa e diz respeito à influência
que as tradições nacionais de pesquisa exercem em relação a este debate.
Adotando este fator como fio condutor da exposição, revela-se, com nitidez que,
em relação aos Estados Unidos, por exemplo, é possível localizar uma clara
tensão entre uma leitura teorético/metodológica da obra weberiana em contraste
com uma versão histórico-empírica. Além disso, recentemente, a tradição
pragmática norte-americana também exerce seus influxos na direção de uma
leitura fortemente economicista e utilitarista da sociologia de Weber. No caso da
Alemanha é a dimensão filosófica que ganha relevo, seja em torno da retomada
da ótica da racionalização e do desencantamento como o centro da empreitada
weberiana; seja em torno de uma versão antropológico/existencialista da mesma.
Estas tradições nacionais, contudo, não estão completamente isoladas e nem são
rigidamente estanques, com claros pontos de contato e de mútua influência. Ao
mesmo tempo, não se pode menosprezar a tendência cada vez mais
transnacionalizada e difusa da produção sobre Weber. De qualquer forma, como
se evidencia, o curso histórico da difusão e recepção da obra de Weber é fator
importante para se entender o andamento dos debates e ajuda a explicar as
diferenças em torno da interpretação sobre o eixo dos escritos deste pensador.
Um segundo plano de análise nos remete às questões histórico-
exegéticas, ou seja, que dizem respeito à compreensão imanente da evolução e
da relação entre os textos escritos por Weber. Boa parte das discussões
intelectuais em torno do coração do projeto weberiano está relacionada
diretamente com o estado atual de seus escritos, particularmente com as
dificuldades em determinar as diferenças entre a seqüência cronológica de sua
produção e sua edição atual. Deste estado de coisas, duas questões, em especial,
emergem. A primeira tem a ver com a evolução das preocupações intelectuais que
informam estes escritos. Mais do que determinar uma periodização dos seus
textos em fases, o que está em jogo é se o constante acréscimo de temas que
Weber foi agregando a sua análise implica também uma “evolução” em seu
pensamento. Nesta direção, há quem entenda que o tema da racionalização e do
desencantamento, que emerge apenas no Weber tardio, absorve e redefine (sem
32
implicar em ruptura) as investigações iniciais de Weber, dedicadas a relação
protestantismo e ethos econômico. Mas, a tese é contestada entre aqueles que
apontam para a tese da continuidade em um conjunto reflexivo que apenas se
desdobra em extensão e intensidade em torno de marcos que já estavam dados
desde o início. Se este debate já nos deixa com o problema de determinar a
relação entre os escritos iniciais e finais de Weber, o mesmo se diga desta última
fase de sua produção. Em relação a este ponto, as interpretações
contemporâneas de Weber tendem a diferenciar-se, especialmente, em torno da
importância sobre os principais projetos de investigação científica que mobilizaram
o autor a partir da década de 1910 até a sua morte: o escrito póstumo intitulado
Economia e Sociedade e o conjunto de manuscritos que compõem sua Ética
Econômica das Religiões Mundiais58. Portanto, é possível perceber que os
programas de pesquisa e interpretação sobre Weber tendem a dividir-se entre
aqueles que privilegiam o primeiro escrito (e seus outros textos de economia),
como é o caso da “nova sociologia econômica”; ou deslocam a importância desta
obra em nome de seus escritos sócio-históricos (Tenbruck). Mesmo os estudiosos
que sustentam a complementaridade destes textos não deixam de conferir certa
prioridade a um deles, como é o caso dos componentes da abordagem sócio-
histórica e da racionalização que, em última instância, gravitam em torno das
análises weberianas sobre as religiões mundiais.
Finalmente, em um terceiro plano de análise, desta vez estritamente
teórico, outro complexo de questões também emerge. Dentre eles, novo quesito
de discordância entre os analistas diz respeito à complexa relação que Weber
estabeleceu os fatores ideais e materiais dos processos sociais. Embora não se
possa mais afirmar, como já o fez Albert Salomon59, que a intenção de Weber era
refutar a análise marxista, de caráter materialista, com uma explicação idealista
58 A composição das obras e a relação entre estes dois textos é discutida em: SCHLUCHTER, Wolfgang. The End of a Myth. Rationalism, Religion and Domination: a weberian perspective. Berkeley: University of Press, 1989, p.433-464 e MOMMSEN, Wolfgang. Max Weber “Grand Sociology”: the origins and compositon of Wirtschaft und Gesellschaft Soziologie. History and Theory, 39, 2000, p.364-383. 59 SALOMON, Albert. Max Weber´s Methodology. Social Research 1, (2), 1934, p.147-168; Max Weber´s Sociology. Social Research, 2(3), 1935a, p.60-73. Max Weber´s Political Ideas. Social Research, 1935b, 2(3), p. 368-384.
33
sobre o mundo social (o Marx da burguesia), é fato que o próprio Weber chegou a
caracterizar seu estudo sobre o protestantismo como “espiritualista60”. É somente
nos seus estudos posteriores que ele recoloca os fatores materiais no mesmo
plano da análise. Registre-se, em relação a este ponto, a explicação do próprio
autor, feita no Prólogo [Vorbermkung] ao estudo das religiões mundiais, de que,
enquanto seu estudo sobre o protestantismo só estuda um lado da relação causal
(entre o moderno ethos econômico e a ética racional do protestantismo ascético,
“os trabalhos subseqüentes, sobre a Ética Econômica das Religiões Mundiais,
tentam, através de uma observação geral das relações entre as mais importantes
religiões culturais com a economia e a estrutura social de seu contexto, destacar
as duas relações causais, até onde for necessário para achar pontos de
comparação com o subseqüente desenvolvimento ocidental”61. Mas, embora
alguns intérpretes busquem acompanhar a preocupação dialética de Weber,
pesquisadores como Tenbruck não hesitam em classificá-lo, enfaticamente, no
campo do idealismo, enquanto para a sociologia econômica o que temos, de fato,
é um Weber preocupado com a dimensão do interesse.
Uma segunda discordância teórica, próxima, mas não idêntica a anterior,
diz respeito ao equilíbrio entre a dimensão ontológica e a dimensão
epistemológica dos trabalhos de Weber. Mesmo pressupondo-se a coerência do
pensamento weberiano, resta que permanece em aberto como se articulam a
dimensão da teoria e da empiria no processo de intelecção da obra deste
pensador. Colocando em outros termos: Weber quis estabelecer uma metodologia
de análise para a qual seus estudos empíricos servem como material de apoio ou,
ao contrário, são suas investigações sociológico-empíricas que recebem
proeminência, restando seu quadro teórico-metodológico na condição de
instrumento auxiliar de pesquisa? Para ilustrar a complexidade do debate, basta
voltar às teses das tendências aqui esboçadas. A questão, como vimos, atravessa 60 Conforme relata Marianne Weber, em 02 de abril de 1905, Weber escreveu uma carta a Heinrich Rickhert, na qual declarava: “Em junho ou julho você vai receber um ensaio sobre história cultural com particular interesse para você: o protestantismo ascético como o fundamento da moderna civilização ética – uma espécie de construção ‘espiritualista’ da economia moderna” (apud Schluchter, 1985, p.140) 61 WEBER, Max. Introdução. In A ética protestante e espírito do capitalismo. 11. ed. São Paulo: Pioneira, 1996, p.12 (itálico meu).
34
por dentro todo o debate interno do modelo histórico-comparativo, dividido na
ênfase maior ao aspecto empírico (Bendix e Roth) ou teórico-formal (Kalberg) dos
seus extensos trabalhos sobre as religiões mundiais. A sociologia da
racionalização utiliza enfoques evolucionistas (ou desenvolvimentais) para clarear
o enfoque weberiano, mas, é o tema substantivo da racionalização e do
desencantamento que é apontado como o eixo de sua produção. No caso das
abordagens econômicas, a teoria da escolha racional, não resta dúvida, tende a
enfatizar o aspecto epistemológico, enquanto os partidários da nova sociologia
econômica tendem a reforçar os estudos empírico-econômicos de sua obra.
Ainda que cada uma destas questões mereça ser retomada e
aprofundada, por hora, contudo, penso que a identificação dos problemas já
constitui passo importante nesta direção. Por sinal, aqui também vale a
observação já feita antes: a resolução de cada um dos temas em debate depende
do andamento da pesquisa e da discussão, e do que ele nos possa ensinar. Tudo
somado, se a querela a respeito do sentido global da obra weberiana ainda se
acha em aberto, ao mesmo tempo, ele revela a força e a fecundidade de um autor
que continua a nos desafiar, não apenas pelas múltiplas contribuições que deixou
para o entendimento do mundo contemporâneo, mas também porque nos provoca
para um renovado esforço de reflexão e compreensão para o significado de sua
obra.