UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL
MÔNICA REGINA GOMES DA SILVA
Sindicalismo rural, agricultura familiar e desenvolvimento sustentável: uma
aproximação crítica.
Recife 2012
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MÔNICA REGINA GOMES DA SILVA
Sindicalismo rural, agricultura familiar e desenvolvimento sustentável: uma aproximação
crítica.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito para obtenção do grau de Mestre em Serviço Social. Orientadora: Prof.ªDrª. Ana Elizabete Simões da Mota. Coorientador: Prof. Dr. Daniel Álvares Rodrigues.
Recife 2012
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Catalogação na Fonte Bibliotecária Ângela de Fátima Correia Simões, CRB4-773
S586s Silva, Mônica Regina Gomes da Sindicalismo rural, agricultura familiar e desenvolvimento sustentável:
uma aproximação crítica/ Mônica Regina Gomes da Silva. - Recife : O Autor, 2012. 102 folhas : il. 30 cm.
Orientadora: Profa. Dra. Ana Elisabete Simões da Mota e Coorientador
Prof. Dr. Daniel Álvares Rodrigues. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Universidade Federal de
Pernambuco. CCSA, 2012. Inclui referência. 1. Sindicalismo rural. 2. Agricultura familiar. 3. Desenvolvimento
sustentável. 4. Hegemonia do agronegócio. I. Mota, Ana Elisabete Simões da (Orientador). II. Rodrigues, Daniel Álvares ( Coorientador). III. Título.
361CDD (22.ed.) UFPE (CSA 2014 – 042)
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL CURSO DE MESTRADO
Ata da Defesa da Dissertação do Curso de Mestrado em Serviço Social, realizada no Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Pernambuco. Às nove horas do dia oito de maio do ano de dois mil e doze, no Anfiteatro do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Pernambuco, em seção pública, teve início a Defesa de Dissertação intitulada “SINDICALISMO RURAL E DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL: UMA APROXIMAÇÃO CRÍTICA”de autoria da mestranda Mônica Regina Gomes da Silva, a qual já havia preenchido todas as demais condições exigidas para obtenção do grau de mestre em Serviço Social. A Banca Examinadora aprovada pelo Colegiado do Curso e homologada pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, processo número 23076.017424/2012-77, foi constituída pelos seguintes professores:Ana Elizabete Fiuza Simões da Mota, Doutora em Serviço Social, Orientadora e Examinadora Interna; Daniel Alvares Rodrigues, Doutor em Educação, Co-orientador e Examinador Externo; Ângela Santana do Amaral, Doutora em Serviço Social, Examinadora Interna; Maria do Socorro de Abreu e Lima, Doutora em História, Examinadora Externa; Juliane FeixPeruzzo, Doutora em Serviço Social, Suplente Interna. Na qualidade de examinadora, a Dra. Ângela Santana do Amaral presidiu os trabalhos e após as devidas apresentações, convidou a candidata a discorrer sobre o conteúdo da dissertação. Concluída a apresentação, a candidata foi arguida pela Banca Examinadora, que após as devidas considerações realizou os trabalhos e decidiu aprovar a dissertação com as seguintes menções: Dr.Daniel Alvares Rodrigues: Aprovada;Dra.Ângela Santana do Amaral: Aprovada; Dra.Maria do Socorro de Abreu e Lima: Aprovada. E para finalizar lavrei a presente ata que será assinada por mim e por quem de direito. Recife, 8 de maio de 2012. BANCA:
____________________________________ Prof. Dr.Daniel Alvares Rodrigues
____________________________________
Profa. Dra. Ângela Santana do Amaral
____________________________________ Profa. Dra. Maria do Socorro de Abreu e Lima
MESTRE:
____________________________________ Mônica Regina Gomes da Silva
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AGRADECIMENTOS
Meus agradecimentos seguem para os amigos mais sinceros, que tornaram essa
trajetória e a própria vida mais leves.
Para Ymira Silva, Emmanuelle Chaves, ItalaOna, Mayara Mendes, Luciana Espíndola,
Fabiana Costa, Ana Cristina, Michela Calaça, Suamy Soares, Heloísa Bandeira, Adiliane
Valéria, Thiago Pereira e Evandro Alves, amigos da vida, da profissão e da luta, da boemia,
da crítica e da poesia, pelo sentido que dão a minha existência no espaço da vida cotidiana tão
pobre, na verdade com vocês pude entender o real significado da suspensão do cotidiano.
À Patrícia Moreira e Jacqueline Paula, meu melhor vínculo com o passado no
presente.
A minha Mãe e meu pai, minha eterna sensação de pertencimento a alguma coisa
muito grande.
Ao colo do namorado, o melhor lugar para estar no auge da improdutividade
acadêmica, livre de culpa, pois a pós - graduação não me tirou o direito de amar.
Ao meu grande amigo e maior exemplo de intelectual orgânico da classe trabalhadora
Daniel Rodrigues, pelo companheirismo, atenção, disponibilidade, contribuições, simpatia,
respeito e amizade, pessoa muito querida! À Ana Elizabete Mota pela honestidade intelectual.
À Ângela Amaral e Socorro Abreu e Lima, pela disponibilidade em contribuir com o
trabalho no momento de sua defesa.
À Stella Brandão, pela compreensão da ausência no espaço de trabalho.
A toda equipe de Serviço Social do IMIP, em especial à Leila Benício e Juliana Alves,
pela força, compreensão e respeito ao momento de minha produção.
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RESUMO
A presente dissertação intitulada “Sindicalismo Rural, Agricultura Familiar e Desenvolvimento Sustentável: Uma Aproximação Crítica” trata da adesão do sindicalismo de trabalhadores rurais à pauta da agricultura familiar associada ao desenvolvimento sustentável e do impacto dessa adesão para a luta de classes no campo. Para tanto realizei um estudo das particularidades da questão agrária no Brasil, do sindicalismo rural, considerando sua história e a crise que se abateu sobre os sindicatos nos anos noventa, bem como da pauta da agricultura familiar associada ao desenvolvimento sustentável no âmbito dessa organização. Considerando o movimento do capitalismo agrário em âmbito econômico e político ideológico, concluo que ao apontar o produtivismo de mercado como a saída comum para os problemas sociais do campo, esta pauta, ao mesmo tempo em que apresenta limites para fazer enfrentamento aos interesses capitalistas, por desconsiderar o conflito entre capital e trabalho presente na agricultura, significou a afirmação de valores burgueses e um avanço na consolidação da hegemonia do agronegócio, pelo que inaugurou uma nova forma de colaboração entre os trabalhadores e as elites rurais.
Palavras-chave: Sindicalismo Rural. Agricultura Familiar. Desenvolvimento sustentável.
Hegemonia do Agronegócio.
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ABSTRACT This dissertation entitled "Unionism Rural, Family Agriculture and Sustainable Development: A Critical Approach" addresses the membership of the unions of rural workers to the agenda of family farming associated with sustainable development and the impact of membership to the class struggle in the countryside. For both performed a study of the peculiarities of the agrarian question in Brazil, the rural unionism, considering its history and the crisis that befell the unions in the nineties as well as the agenda of family farming linked to sustainable development within this organization. Considering the movement of agrarian capitalism in economic and political ideological framework, I conclude that the point of market productivism as the common outlet for the social problems of the field, this agenda, while presenting limits to coping with capitalist interests, by disregard the conflict between capital and labor in agriculture this meant the assertion of bourgeois values and a step forward in consolidating the hegemony of agribusiness, by which inaugurated a new form of collaboration between workers and rural elites. Keywords: Rural Unionism. Family Farming. Sustainable development. Hegemony of Agribusiness.
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABAG – Associação Brasileira de Agronegócio.
BID – Banco Internacional Para o Desenvolvimento.
BM – Banco Mundial.
CAI’S –Complexos Agroindustriais.
CMDR – Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.
CNTR – Congresso Nacional de Trabalhadores Rurais.
CNTTR – Congresso Nacional de trabalhadores e Trabalhadoras Rurais.
CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura.
CUT – Central Única dos Trabalhadores.
DNTR/CUT – Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais da Central Única dos
Trabalhadores.
EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária.
ETR – Estatuto do Trabalhador Rural.
FAAB – Frente Agrícola para Agropecuária Brasileira.
FUNAGRI – Fundo Geral para Agricultura e Indústria.
FUNRURAL – Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural.
GTB – Grito da Terra Brasil.
MEB – Movimento de Educação de Base.
MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra.
MSTR – Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais.
MSTTR – Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais.
OCB – Organização das Cooperativas do Brasil.
ONU – Organização das Nações Unidas.
PADRS – Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável.
PADRSS – Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável Solidário.
PCB – Partido Comunista Brasileiro.
PC do B – Partido Comunista do Brasil.
PNRF – Plano Nacional de Reforma Agrária.
PPGSS – Programa de Pós Graduação em Serviço Social.
PRONAF – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar.
PRORURAL – Programa de Assistência ao Trabalhador Rural.
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SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................10
2 BREVE INCURSÃO NAS PARTICULARIDADES DA QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL E NA FORMAÇÃO DO CAMPESINATO BRASILEIRO. ..................14
2.1 Particularidades da questão agrária no Brasil: sobre o desenvolvimento das relações sociais de produção na agricultura. ............................................................ 15
2.2 SOBRE A ORIGEM E ATUALIZAÇÃO DA QUESTÃO CAMPONESA NO BRASIL. ...........................................................................................................23
3A PERSPECTIVA DA CONCILIAÇÃO DE CLASSES NA HISTÓRIA DO SINDICALISMO RURAL: UMA TENDÊNCIA PREVALECENTE. ................33
3.1 Raízes históricas do sindicalismo rural....................................................................... 33 3.2 Sindicalismo rural nos anos 90: filiação da CONTAG à CUT e adesão à ideologia
sustentável.................................................................................................................... 45 4 AGRICULTURA FAMILIAR, SUTENTABILIDADE E A NOVA RETÓRICA DAS
ELITES RURAIS: CONTEXTO MAIS GERAL DE CONSOLIDAÇÃO DA HEGEMONIA DO AGRONEGÓCIO. ...............................................................50
4.1 O âmbito da proposta sindical ...................................................................................... 50
4.1.2 Concepção de desenvolvimento .................................................................................... 51 4.1.3 Reforma agrária centrada na agricultura familiar como a via para consolidação do
PADRSS. ...................................................................................................................... 55 4.1.4 Novo perfil de agricultor. .............................................................................................. 59 4.1.5 Atuação institucional na efetivação do PADRSS ........................................................ 75
4.2 SOBRE A HEGEMONIA DO AGRONEGÓCIO. .................................................77 4.2.1 A nova retórica das elites rurais ................................................................................... 78
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................86 6 REFERÊNCIAS ..........................................................................................................92
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1 INTRODUÇÃO
A presente dissertação intitulada “Sindicalismo Rural, Agricultura Familiar e
Desenvolvimento Sustentável: Uma Aproximação Crítica” trata da adesão do sindicalismo de
trabalhadores rurais, organizado em torno da Confederação Nacional dos Trabalhadores da
Agricultura – CONTAG, à pauta da agricultura familiar associada ao desenvolvimento
sustentável. Essa aproximação realizou-se em meados dos anos noventa do século XX, e foi
mediada por um contexto de profunda crise do sindicalismo classista e pelo avanço da
configuração de um sindicalismo de colaboração entre capital e trabalho. Em 1995, após a
filiação da CONTAG à Central Única dos Trabalhadores – CUT começou-se a desenhar no
discurso e na ação sindical a opção por um modelo alternativo de desenvolvimento, que
possibilitasse conciliar crescimento econômico com justiça social, configurando determinado
ideal de sustentabilidade, perseguido a partir das reivindicações por incentivos à agricultura
familiar, no sentido de sua inserção no circuito produtivo de alimentos para o mercado
interno.
Esse novo direcionamento assumido no interior da CONTAG expressa a opção
política que foi amadurecida pela entidade para enfrentar os efeitos sociais regressivos do
padrão de desenvolvimento do agronegócio, estabelecido a partir da modernização
conservadora da agricultura, bem como para possibilitar determinada renovação de bandeiras
que historicamente pareciam desgastadas e de determinada ação sindical amparada em
excessivo legalismo e colaboração de classes, marca da atuação contaguiana após a
intervenção da ditadura militar.
O ideal de sustentabilidade a ser atingido a partir da realização de uma reforma agrária
centrada na agricultura familiar é apontado como aquele capaz de fazer o enfrentamento a
questão da pobreza, a falta de oportunidades e ao desemprego característicos do mundo rural,
gerando renda e preservando o meio ambiente. Nesse sentido, no 7° Congresso Nacional de
Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais – CNTTR a CONTAG passa a apresentar as primeiras
formulações em torno dessa pauta da sustentabilidade, pela formulação do Projeto Alternativo
de Desenvolvimento Rural Sustentável – PADRS, que a partir de então toma a centralidade de
suas reivindicações diante dos governos e no diálogo com a sociedade.
Destarte, o objetivo geral do estudo que se segue consistiu em analisar o impacto dessa
disseminação do PADRS para a luta de classes no campo brasileiro, as principais perguntas de
pesquisa consistiram em indagar acerca de quais as categoriais centrais na estruturação do
PADRS? Qual o direcionamento político assumido pelo sindicalismo rural a partir de então?
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Pode-se dizer que se trata da estruturação de um novo colaboracionismo entre Estado e
sindicalismo rural? Se sim, quais as formas concretas que tem assumido esse novo
colaboracionismo?
O referencial teórico assenta-se nos fundamentos da questão agrária e de uma questão
camponesa no Brasil, com ênfase no exame das relações sociais de produção presentes no
desenvolvimento do capitalismo na agricultura brasileira, apontando para determinada
localização de um campesinato subordinado aos interesses de reprodução do capital, como um
“agente necessário da acumulação” (WANDERLEY, 2009, p.128). Da mesma forma buscou-
se aprofundar determinada tendência presente no sindicalismo rural organizado em torno da
CONTAG, na qual apesar das particularidades regionais de suas federações e da atuação de
determinadas lideranças em contextos específicos, prevaleceu uma tendência de conciliação
entre as classes, materializada na conformação de um determinado perfil de dirigente, não
propenso à luta política por fora do espaço “permitido” pelo Estado, que tende a práticas de
conciliação de interesses no âmbito institucional, evitando o conflito ou enfrentamento direto.
Há que ressaltar ainda a influência da Igreja, por onde foi disseminado no interior do
sindicalismo rural forte anticomunismo e o apelo à religiosidade como a saída para os
problemas sociais.
Além da pesquisa bibliográfica, que buscou identificar os contextos histórico,
econômico e ideológico presentes na adesão da proposta da agricultura familiar associada ao
desenvolvimento sustentável no âmbito do sindicalismo rural, optei como procedimento
metodológico pela análise temática de fonte lingüística escrita, relaciona à notas e
documentos. Estes últimos apareceram-me como a fonte direta dos dados necessários, e nesse
sentido como a metodologia mais adequada para me permitir identificar as tendências mais
gerais nacionalmente colocadas para a conformação do PADRS, suas categorias centrais e as
tendências teóricas que lhe dão corpo.
Para atingir tal intento foram consideradas as produções do movimento sindical rural
sobre o Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável - PADRS, mais
especificamente os anais de seus eventos nacionais, quais sejam, os Congressos Nacionais de
Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais – CNTTR, sobretudo, por sintetizarem o acúmulo
teórico e político do movimento em torno da pauta do desenvolvimento sustentável. Foram
analisados o 6° CNTTR (1995), de tema “Nem fome, Nem Miséria o Campo é uma Solução”,
o 7° CNTTR (1998), de tema “Rumo a um Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural
Sustentável”, o 8° CNTTR (2001), de tema “Avançar na Construção de um Projeto
Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável”, o 9° CNTTR (2005), cujo tema não está
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expresso nos anais, e o 10° CNTTR (2009), de tema “Desenvolvimento Sustentável com
Distribuição de Renda e Cidadania para os Trabalhadores e Trabalhadores Rurais” todos
realizados na cidade de Brasília – DF, onde está sediada a CONTAG.
Inicialmente foi realizada uma leitura compreensiva do conjunto do material
selecionado. Buscou-se estabelecer uma visão de conjunto, apreender as particularidades de
sua totalidade, elaborar os pressupostos iniciais para análise e interpretação,da mesma forma
foi escolhido um formato para classificação dos temas encontrados. Na segunda etapa,
realizou-se uma exploração do material já selecionado, a fase da análise propriamente dita,
elaborou-se uma espécie de redação por tema, de modo a dar conta dos sentidos do material
coletado e classificado, promovendo neste momento uma articulação com os pressupostos da
pesquisa.
Nesse sentido, a fim de realizar uma síntese interpretativa dividi o material
selecionado para análise em quatro temas centrais, quais sejam: Concepção de
Desenvolvimento; Reforma Agrária Centrada na Agricultura Familiar; Novo Perfil de
Agricultor e Atuação Institucional na Efetivação do PADRSS.Esses temas informam o
conteúdo e as linhas gerais do PADRS associados às inferências realizadas sobre o seu
conteúdo a partir de pesquisa bibliográfica. Para Bardim apud Gomes (1979) “O tema é a
unidade de significação que se liberta naturalmente de um texto analisado, segundo critérios
relativos à teoria que serve de guia a leitura” (p. 105), nesse sentido, no processo de análise
pôde-se caminhar na descoberta do que está por trás dos conceitos manifestos, indo além das
aparências do que está sendo comunicado.
A aproximação com o tema do sindicalismo rural surgiu dos estudos iniciados na
graduação em Serviço Social, a partir da experiência de Iniciação Científica no período de
2005 a 2007, no projeto Trabalho, corpo e documentos: O acesso das mulheres Agricultoras
ao salário-maternidade no Sertão de Pernambuco1. No momento pude analisar o acesso das
agricultoras ao salário maternidade numa interface com o movimento sindical de
trabalhadores rurais organizado em torno da CONTAG. O processo da referida pesquisa ao
possibilitar o contato com a pauta política construída pelo movimento sindical rural em seus
congressos e encontros, com a realidade dos sindicatos em pesquisa de campo e com a
literatura existente sobre sindicalismo rural suscitou a necessidade de dar vazão a novas
questões, ligadas a um olhar crítico sobre os pressupostos norteadores da ação do movimento,
os quais tento materializar no presente estudo.
1Coordenado pela professora Dra. do Departamento de Serviço Social, Roseneide Cordeiro.
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O tema a ser trabalhado se insere no eixo temático Serviço Social, Ação Política e
Sujeitos Coletivos, do Programa de Pós Graduação em Serviço Social – PPGSS. Sua
relevância consiste na possibilidade de trazer para a produção do conhecimento em Serviço
Social aproximações com a realidade do sindicalismo no campo. Tenho identificado um
campo consolidado de estudos rurais ligados às questões de gênero e ao Movimento Sem
Terra – MST, e raras produções de estudos afiliados às tendências sindicais mais
contemporâneas no campo. O movimento sindical de trabalhadores rurais organizado em
torno da CONTAG converteu-se desde sua fundação em uma organização nacional de
impressionante abrangência e capilaridade, e por suas particularidades conforma um terreno
interessante para a análise crítica, compondo um segmento social que demanda atenção da
área.
Esse estudo também consiste em uma tentativa de trazer uma abordagem de mais
crítica e menos positividade à adesão do sindicalismo de trabalhadores rurais a pauta do
desenvolvimento sustentável e da agricultura familiar no âmbito da produção teórica
vinculada a sociologia rural, e a partir disto também se pode mensurar determinada
relevância. No momento da pesquisa bibliográfica identifiquei um grande número de estudos
que atribuíam ao desenvolvimento rural sustentável a via mais acertada para construção de
novas relações sociais mais justas no campo brasileiro. O presente estudo, pois, vai na
perspectiva oposta de problematizar as contradições que envolvem o direcionamento dessa via
apontada para emancipação dos trabalhadores.
Sendo assim, inicialmentediscorro sobre o desenvolvimento do capitalismo na
agricultura e a formação de uma questão camponesa no Brasil, com ênfase nos complexos
processos sociais e econômicos que sedimentaram a existência e localização do campesinato.
Em seguida, trato do histórico do sindicalismo rural organizado em torno da CONTAG, com
recorte na prevalência de uma perspectiva de conciliação entre as classes no âmbito desta
organização. E por último, abordo o movimento mais geral de consolidação da hegemonia do
agronegócio na sociedade brasileira nos anos noventa do século XX, onde inferimos que o
PADRSS contribui nesta consolidação, inaugurando uma nova forma de colaboracionismo
entre as classes.
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2 BREVE INCURSÃO NAS PARTICULARIDADES DA QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL E NA FORMAÇÃO DO CAMPESINATO BRASILEIRO.
Na tentativa de aprofundar o conhecimento histórico e crítico acerca da localização
social e econômica dos trabalhadores rurais na sociedade brasileira é que buscamos, neste
capítulo, o conhecimento das relações sociais de produção que moveram e movem o
capitalismo agrário no Brasil. De toda forma, pela perspectiva teórica adotada, de antemão
pode-se afirmar que o contingente de trabalhadores originariamente expropriados da livre
disposição dos meios necessários para satisfação de suas necessidades é que estão na base de
determinação questão agrária no Brasil, e que pelas particularidades de nossa história pode-se
falar neste país de um movimento de (re)criação do campesinato subordinado aos interesses
dominantes da classe capitalista, e tão logo da presença de uma questão camponesa, a qual
moverá em âmbito político a formação de sindicatos rurais e de movimentos camponeses não
institucionalizados.
Para Fabrine (2010), no âmbito do marxismo a questão agrária geralmente é
compreendida por esse duplo olhar, de um lado como análise das relações sociais de produção
presentes na agricultura, cujas particularidades próprias a diferenciam da indústria, e de outro
lado como análise mesmo da questão camponesa, do ponto de vista da transitoriedade
estrutural ou histórica de uma classe de camponeses. No primeiro caso, a transitoriedade
estrutural dos camponeses refere-se a sua caracterização enquanto uma classe de transição
entre as duas classes fundamentais do capitalismo, a operária e a dos capitalistas, e que
fatalmente tende a diluir-se entre estas duas. No segundo caso, no que se refere a sua
transitoriedade histórica, sua caracterização é feita enquanto uma formação social tipicamente
feudal que não desapareceu com o capitalismo, e que ao contrário, passa a ser produto do seu
próprio desenvolvimento e garantia de sua expansão.
Neste sentido, segue uma breve incursão nas particularidades da questão agrária no
Brasil, no sentido do exame das relações sociais de produção na agricultura brasileira desde os
primórdios da colonização até a fase de sua modernização conservadora, bem como da
formação de uma questão camponesa no Brasil, no sentido de sua transitoriedade histórica,
apontando para permanência de um campesinato subordinado aos interesses de reprodução do
capital. Para tal utilizei a título de revisão as referências de Prado Júnior (2004), Fernandes
(1979), Oliveira (1945), Martins (1975) e Wanderley (2009), que seguem esquematicamente.
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2.1 Particularidades da questão agrária no Brasil: sobre o desenvolvimento das relações sociais de produção na agricultura.
No final dos anos de 1960 um intenso debate em torno de questões relacionadas à
natureza da agricultura no Brasil,ao dilema feudalismo – capitalismo associado à existência de
resquícios feudais em nossa formação social, que sobreviveriam em consonância com o
desenvolvimento do capitalismo é levado a cabo nas ciências sociais e nos meios político-
acadêmicos, o que culminou com a prevalência das teses que afirmavam a natureza capitalista
da agricultura brasileira e o reconhecimento da centralidade do processo de acumulação
capitalista no país.
De fato, se atentarmos para o decorrer da história do Brasil, ficará clara a natureza
predominantemente capitalista da agricultura, voltada desde os primórdios da colonização
para satisfação de necessidades do mercado externo e assentada na grande propriedade, na
exploração de grandes contingentes de terra pela mão - de - obra escrava. Esta última
inscreveu-se já no contexto do estabelecimento de relações mercantis entre os países
Europeus e colonizados. A condição de colônia impunha ao país a produção a baixo custo
dos produtos primários destinados aos mercados externos, sob o uso da mão – de – obra
escrava no atendimento dos interesses mercantis da metrópole. Essa foi a base e o caráter
originário da economia brasileira, que condicionou a sua estrutura e desenvolvimento.
Em “A Revolução Brasileira” Caio Prado Junior irá avançar na constituição de um
novo paradigma para pensar o rural brasileiro, a partir da superação daquelas concepções que
apontavam para existência de resquícios feudais no contexto das relações de produção na
agricultura.
Para o autor, a afirmação parte de um método falseado de análise da realidade, pelo
qual
Inverte-se o processo metodológico adequado, e em vez de partir da análise dos fatos a fim de derivar daí os conceitos com que se estruturará a teoria, procede-se em sentido inverso, partindo da teoria e dos conceitos, que se buscam em textos consagrados e clássicos, para em seguida procurar os fatos ajustáveis em tais conceitos e teorias (PRADO JÚNIOR, 2004, p.7).
Desse equívoco metodológico surgiria uma equivocada assimilação entre a economia
agrária brasileira com o modelo dos países europeus. Para o autor, a economia agrária nesses
países trazia a marca de uma economia egressa da Idade Média e do feudalismo, com a
presença de uma estrutura econômica e social de pequenos produtores individuais em
unidades familiares, voltados para a produção de subsistência e onde o mercado representava
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papel secundário, o que se poderia chamar de distribuição “parcelada” ou “parcelaria" da
terra.
Assim, a grande propriedade feudal nesses países oprimia a classe dos camponeses em
termos sociais e econômicos, seja pela imposição de restrições à livre disposição dos produtos
produzidos para a sua subsistência, seja em casos extremos pela imposição das relações de
servidão na gleba. O rompimento com essa estrutura era apresentado pelo estabelecimento de
relações capitalistas de produção e de trabalho, onde pela via da reforma agrária poder-se-ia
abrir espaço para uma economia mercantil, isto é, de produção para o mercado.
No caso brasileiro, a economia agrária esteve associada à grande exploração voltada
para o mercado externo, o que já a caracteriza como essencialmente mercantil.
A economia agrária brasileira não se constituiu a base de produção individual ou familiar, e da ocupação parcelada da terra, como na Europa, e sim se estruturou na grande exploração agrária voltada para o mercado. E o que é mais, o marcado externo, o que acentua ainda mais a natureza essencialmente mercantil da economia agrária brasileira, em contraste com a dos países europeus. (...) E o que tivemos foi uma estrutura de grandes unidades produtoras de mercadorias de exportação trabalhadas pela mão-de-obra escrava (PRADO JÚNIOR, 2004, p. 79).
No contexto da economia colonial voltada para o atendimento de necessidades
estranhas ao país, ao suprimento do mercado externo, o mesmo autor irá aprofundar o real
estatuto das relações coloniais de trabalho. Para este, estas relações resultam do caráter em
que o trabalhador é incluído na organização econômica, enquanto escravo era mero
“instrumento vivo destinado a fornecer energia física necessária à realização dos objetivos
mercantis da colonização” (PRADO JÚNIOR, 2004, p. 95).
O caráter imprimido a essa mão-de-obra no momento de sua incorporação era de
simples estado de coisas, ditada pela dimensão jurídica de propriedade. No desenrolar da
história do Brasil, apesar da supressão do tráfico africano, da imigração e incorporação de
trabalhadores europeus e finalmente a abolição da escravidão em 1888 - fatores que
concorreram para o progresso das relações capitalistas de produção no país – Para Prado
Júnior (2004) é também certo que não foram eliminados traços escravistas no âmbito das
relações de trabalho predominantes na agricultura.
Ao contrário, este autor observou que em determinados contextos a sobrevivência do
sistema escravista foi altamente favorável ao desenvolvimento do capitalismo por contribuir
na compressão da remuneração do trabalho, o que conseguintemente amplia a taxa de mais-
valia e o acúmulo de capital. Nesse sentido, o capitalismo se apoiou e desenvolveu no que
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sobrou do sistema escravista pelo fato deste último proporcionar um elemento altamente
rentável aos empreendimentos – o baixíssimo custo da mão de obra. Nesse sentido,
O que sobra do escravismo representa assim um elemento de que o capitalismo se prevalece, e em que frequentemente se apoia, uma vez que o baixo custo da mão-de-obra torna possível em muitos casos a sobrevivência de empreendimentos de outra forma deficitários. É assim errado, e da maior gravidade para os efeitos da revolução brasileira, supor que tais remanescentes escravistas poderão ser eliminados e eliminadas com isso algumas formas mais brutais de exploração do trabalho, pelo simples progresso e maior difusão das relações capitalistas de trabalho e produção (PRADO JÚNIOR, 2004, p. 99).
A partir do debate instaurado por Prado Júnior (2004), levando-se em consideração as
particularidades do desenvolvimento do capitalismo no Brasil, pode-se compreender como as
relações de trabalho e de produção predominantes em determinados contextos da economia
agrária brasileira, não corresponderam a relações próprias do capitalismo ou a relação capital
x trabalho, mas desencadearam um processo no qual o próprio capitalismo reproduziu e gerou
relações de trabalho não capitalistas, apoiando-se no que nelas existia de mais atrasado do
ponto de vista do desenvolvimento das relações sociais. Nesse contexto, essas relações pré-
capitalistas não seriam fruto de resquícios feudais, mas seriam a forma mesmo que assume o
capitalismo na agricultura.
Discorrendo sobre a natureza do capitalismo agrário no Brasil, Fernandes (1979) inicia
uma discussão na qual, aprofundando o debate sociológico acerca dos elementos
fundamentais a serem considerados na formação de nossa economia agrária, apontando para
os complexos processos enraizados na história, refere-se a um fenômeno que denomina de
“dependência dentro da dependência”. Segundo este autor, na passagem de nosso estado
colonial para o neocolonial - grosso modo marcado pela abertura dos portos nacionais para o
mercado externo, até a extinção do tráfico negreiro e as primeiras leis emancipacionais –, e
posteriormente para o status de capitalismo dependente, a eclosão de um mercado capitalista
moderno, marcado pela transformação do trabalho em mercadoria e a universalização do
trabalho livre, não teria gerado efeitos que modificassem a inserção da economia agrária no
conjunto do novo quadro estabelecido.
O autor refere-se a “várias pressões simultâneas” que operaram no sentido de impedir
que a economia agrária se alterasse fundamentalmente, no sentido de sua modernização e do
estabelecimento de relações capitalistas “puras”. Assim sendo, desenhou-se um quadro no
qual o crescimento econômico dos pólos modernos, urbanos, comerciais e industriais, passou
a depender da captação dos excedentes econômicos daquela economia agrária, processo que
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redundou numa verdadeira “drenagem” das riquezas produzidas no campo para as cidades.
Logo, a empresa rural não esteve voltada para o crescimento econômico ou para o
desenvolvimento sociocultural do campo, já que o excedente econômico foi convertido para o
atendimento das necessidades da industrialização nascente nas cidades.
A revolução urbana condenou,portanto, a revolução agrícola, o que fez com que o capitalismo agrário fosse reduzido, de fato, a um subcapitalismo, destinado a funcionar como força de alimentação, de propulsão e de sustentação dos “pólos dinâmicos” da economia
interna. O pior é que o nível de desenvolvimento capitalista do sistema de produção urbano-industrial não era bastante forte para estabelecer efeitos circulares compensadores. A economia agrária viu-se convertida em bomba de sucção, que transferia para outros setores da economia e da sociedade a maior parte das riquezas que conseguia gerar, sem nunca dispor de meios ou de condições de pleno aproveitamento de suas próprias potencialidades de desenvolvimento econômico (FERNANDES, 1974, p. 109).
Ao contrário do que se poderia supor as elites econômicas rurais não foram
prejudicadas nesse processo. Para Fernandes (1974), toda essa complexa drenagem de
riquezas do campo para a cidade, estruturou-se e desenvolveu-se largamente ao invés de
definhar e exaurir-se porque foi justamente a garantia da maximização das vantagens
econômicas daquelas elites, e foi esse desde o início o nível de racionalidade perseguido por
essas no decorrer de todo processo. Em outras palavras, a racionalidade do desenvolvimento
do capitalismo agrário foi mesma pautada na irracionalidade da subtração total das riquezas e
do potencial de desenvolvimento do campo para as cidades.
Para o autor, “o agente econômico privilegiado procura superar a dependência dentro
da dependência” Fernandes (1974, p.110). E esse processo é feito concretamente através dos
elementos pré-capitalistas conservados no interior da empresa rural, garantindo a
maximização de seus lucros através de índices descomunais de exploração do trabalho,
mediante as atividades econômicas relacionadas ao abastecimento do mercado interno urbano
e do mercado internacional. A partir de então parece desenvolver-se determinada consciência
de classe que relaciona a dependência a uma espécie de “mal necessário”, onde a interrupção
desse processo de “subcaptalização” da economia agrária e de intensificação do
desenvolvimento das cidades exporia o agente econômico privilegiado ao risco de perder as
bases materiais concretas de sua própria posição.
Portanto, o desenvolvimento do capitalismo ainda se acha no estágio de satelização permanente e de espoliação sistemática da economia agrária. Os estratos possuidores rurais não se ressentem dessa situação, porque eles extraem de ambos os processos o privilegiamento relativo de sua própria condição econômica, sociocultural e política. O mesmo não sucede com as massas despossuídas rurais, que se vêem irremediavelmente compelidas ao pauperismo e a marginalização. É nesse nível que se desvendam as
19
iniquidades e a impotência da economia agrária brasileira: uma moenda que destrói inexoravelmente os agentes humanos de sua força de trabalho (FERNANDES, 1974, p. 107).
Como desdobramentos resultantes desse processo de solapamento dos dinamismos
capitalistas da economia agrária, Fernandes (1974, p.111) aponta “1) A tendência a bloquear a
transformação estrutural da própria economia agrária”, a qual relaciona-se com a dissociação
entre as formas de produção e as formas de comercialização dos produtos agrários, as
primeiras seriam variavelmente capitalistas, pré-capitalistas ou subcapitalistas e as últimas
seriam em regra capitalistas, estando os detentores do controle dos processos econômicos no
campo identificados com o capitalismo comercial e realmente interessados por este.
Derivada dessa primeira tendência tem-se “2) A tendência da economia agrária de
reproduzir formas pré-capitalistas ou subcapitalistas de exploração do trabalho, projetando as
relações de trabalho para fora do mercado interno ou deprimindo severamente o valor do
trabalho assalariado, frequentemente tratado como “trabalho semilivre”. (FERNANDES,
1974, p.111). O autor reitera que essa tendência seria parte de uma defesa ordenada e
consciente da ênfase na mercantilização dos produtos, que se expressaria igualmente
acompanhada da resistência à extensão do mercado interno às relações de trabalho na
economia agrária. Essas tendências terminam logicamente por conformar o quadro mais geral
de “atrofiamento crônico da intensidade do desenvolvimento capitalista no campo.”
A partir de então fica claro o caráter paradoxal da economia agrária desenvolvida no
país desde seus primórdios e a base histórica sobre a qual se ergue as relações de produção no
campo, onde motivações econômicas puramente capitalistas originam fortes obstáculos à
expansão do próprio capitalismo. Nesse sentido, em diversos contextos do mundo rural, as
condições concretas de existência e de reprodução da vida social aparecem aquém daquelas
desenvolvidas por relações de trabalho puramente capitalistas, onde o direito à satisfação das
necessidades básicas consubstanciado no contrato de trabalho pela via do assalariamento é
negado, e são estabelecidos como valor de troca da força de trabalho viva níveis irrisórios de
remuneração até mesmo para subsistência.
Portanto, a dependência dentro da dependência dá origem a uma estratificação social típica no meio imediato da economia agrária, da qual as maiores vítimas são os despossuídos e os agentes da força de trabalho, que vivem dentro das fronteiras do capitalismo, mas fora de sua rede de compensações de garantias sociais. Esses setores, no caso brasileiro, atingem por vezes de cinquenta a setenta por centro, ou mais, das populações rurais, formando maiorias que continuam destituídas sob o regime capitalista, que não lhes oferece condições econômicas, socioculturais, psicológicas e políticas de uma classe social. Constituem o vasto contingente dos condenados do sistema, os segmentos da população brasileira que suportam os maiores
20
sacrifícios, decorrentes dos custos diretos e indiretos da existência de uma sociedade de classes e da prosperidade urbana, mas que são ignorados na partilha dos benefícios da “civilização” e do “progresso”
(FERNANDES, 1974, p.116).
Francisco de Oliveira (1945), em seu texto A economia Brasileira: Crítica à Razão
Dualista vai apontar elementos no sentido de construir uma nova forma de pensar a economia
brasileira em seu momento histórico de passagem de uma hegemonia agrário-exportadora
para uma hegemonia urbano-industrial, mais precisamente a partir da revolução de 1930.
Segundo o autor, a partir de então se instauram dinâmicas quantitativas e qualitativamente
distintas de acumulação, no momento em que a industrialização passa a ser o setor chave para
a dinâmica do sistema capitalista no Brasil.
Preocupado em desmistificar a construção teórica existente em torno da dualidade do
“atrasado” e do “moderno”, que localiza as economias ditas “subdesenvolvidas” como formas
históricas em “trânsito” para o desenvolvimento de dinâmicas avançadas de organização
social e de elevação dos padrões médios de vida, que se efetivariam a partir da instauração
plena e avançada da dinâmica capitalista, ele irá localizar esse fenômeno do
“subdesenvolvimento” como um produto do próprio capitalismo.
No plano teórico, o conceito do subdesenvolvimento como uma formação histórico-econômica singular, constituída polarmente em torno da oposição formal de um setor “atrasado” e um setor
“moderno”, não se sustenta como singularidade: esse tipo de
dualidade é encontrável não apenas em quase todos os sistemas, como em quase todos os períodos. Por outro lado, a oposição na maioria dos casos é tão somente formal: de fato, o processo real mostra uma simbiose e uma organicidade, uma unidade de contrários, em que o chamado “moderno” cresce e se alimenta da existência do “atrasado”,
se se quer manter a terminologia (OLIVEIRA, 1975, p. 9).
Esse quadro onde o novo parece mesmo surgir e apoiar-se na existência do arcaico é
que vai delinear todo o processo de constituição do padrão urbano-industrial brasileiro, e é no
sentido de esmiuçar a complexidade presente nesse processo - do qual não se pode esquecer
quando se quer entender a conformação mesmo do quadro atual de relações atrasadas que
teimam em reproduzir-se seja em âmbito político, econômico ou ideológico em nossos dias –
que o autor referido discorrerá, dentre outros elementos, sobre o papel e localização da
agricultura no financiamento das novas bases de acumulação do sistema.
É fato que nesse novo ciclo da economia, pelo caráter de suas atividades relacionadas
diretamente a extração dos recursos da natureza, a agricultura continuará a desempenhar papel
fundamental, seja no fornecimento dos bens de capital e intermediários destinados ao mercado
de exportações - onde apesar da passagem para outra fase da economia este nunca foi
21
negligenciado - seja pelo suprimento do mercado interno que então passava a aumentar seus
índices de realização pela satisfação das necessidades das massas urbanas.
Oliveira (1974, p. 15) destaca que neste último aspecto a importância da não elevação
do custo dos alimentos e das matérias-primas é fator fundamental na manutenção do processo
de acumulação urbano-industrial. Para ele, “em torno desse ponto girará a estabilidade social
do sistema e de sua realização dependerá a viabilidade do processo de acumulação pela
empresa capitalista industrial, fundada numa ampla expansão do exército industrial de
reserva”. A partir de então, colocou-se um “problema agrário” no cenário político e
econômico nacional, onde o compromisso entre manter ativa e não estimular a agricultura
como unidade central do sistema, a fim de destruir a velha dinâmica centrada exclusivamente
nas atividades agrícolas, será um dos pontos decisivos na estabilização da nova conjuntura.
A solução do chamado “problema agrário” nos anos da “passagem”
da economia de base agrário-exportadora para urbano-industrial é um ponto fundamental para a reprodução das condições da expansão capitalista. (...) Ela é um complexo de soluções cujo denominador comum reside na permanente expansão horizontal da ocupação com baixíssimos coeficientes de capitalização e até sem nenhuma capitalização prévia: numa palavra, opera como uma sorte de “acumulação primitiva”. O conceito, tomado de Marx, ao descrever o
processo de expropriação do campesinato como uma das condições prévias para a acumulação capitalista, deve ser, para nossos fins, redefinido: em primeiro lugar, trata-se de um processo em que não se expropria a propriedade (...) mas se expropria o excedente que se forma pela posse transitória da terra. Em segundo lugar, a acumulação primitiva não se dá apenas na gênese do capitalismo: sob certas condições específicas, principalmente quando esse capitalismo cresce por elaboração de periferias, a acumulação primitiva é estrutural e não apenas genética (OLIVEIRA, 1975, p. 16).
Nesse sentido, o autor parte da redefinição do conceito de acumulação primitiva em
Marx para referir-se a um processo no qual, após a ocupação transitória da terra pelos
trabalhadores rurais, concomitante ao cultivo para subsistência estes sedimentam as condições
necessárias no preparo da terra para as lavouras permanentes ou para formação de pastagens,
que não são dele, mas do proprietário, havendo uma transferência de “trabalho morto” para o
valor das culturas do proprietário. Em troca das condições mínimas de subsistência, o
trabalhador rural preparou todo o abastecimento de gêneros alimentícios como feijão, milho e
arroz para os grandes centros urbanos, garantindo a uma só vez dois elementos fundamentais
no equacionamento do processo de acumulação nas cidades: o abastecimento do mercado
interno com menor custo de produção, o que contribui na baixa considerável do preço dos
alimentos, e o rebaixamento dos padrões de custo de reprodução da força de trabalho e do
nível de vida dos trabalhadores rurais. Não obstante, “o proletariado rural que se formou não
ganhou estatuto de proletariado” (OLIVEIRA, 1975, p. 18), neste momento, tanto a legislação
22
trabalhista como a previdência social fizeram-se completamente inexistentes, e é perceptível
como o conjunto das relações modernas de produção capitalistas se apoiaram e estruturaram a
partir da manutenção de relações atrasadas na agricultura. A “combinação de desigualdades”
foi a marca da expansão do capitalismo no Brasil.
Se é verdade que a criação do “novo mercado” urbano -industrial exigiu um tratamento discriminatório e até confiscatório sobre a agricultura, de outro lado é também verdade que isso foi compensado até certo ponto pelo fato de que esse crescimento industrial permitiu às atividades agropecuárias manterem seu padrão “primitivo”, baseado
numa alta taxa de exploração da força de trabalho.(...) Assim, não é simplesmente o fato de que, em termos de produtividade, os dois setores – agricultura e indústria – estejam distanciando-se, que autoriza a construção do modelo dual; por detrás dessa aparente dualidade, existe uma integração dialética. A agricultura, nesse modelo, cumpre um papel vital para as virtualidades de expansão do sistema: seja fornecendo os contingentes de força de trabalho, seja fornecendo os alimentos no esquema já descrito, ela tem uma contribuição importante na compatibilização do processo de acumulação global da economia (OLIVEIRA, 1975, p.19).
Conveniente para os objetivos do presente capítulo são algumas considerações feitas
por Martins (1975) acerca do sentido dos processos sociais e econômicos que marcam o
mundo rural, que definem seus problemas e sua vinculação característica ao conjunto da
sociedade brasileira. Ao pensar estas questões, devem-se levar em consideração as condições
de existência do homem rural de um lado, e do outro, as condições de acumulação e
desenvolvimento do capitalismo na economia nacional.
Como a relação estabelecida entre o rural e o urbano é marcada por uma desigualdade
e intercâmbios desfavoráveis ao primeiro, por razões históricas e econômicas já explicadas
por outros autores, a partir de Martins (1975,p.37) desenvolve-se no interior da própria
dinâmica produtiva rural “um sistema de troca de mercadorias e trabalho “em espécie” como
resultado da acumulação dos traços irracionais e dos riscos do conjunto da economia de
mercado, transferidos pelos setores urbanos”. Ao que parece, o resultado foi um custo de
produção de mercadorias agrárias no nível mesmo da subsistência, pela troca não monetária
de força de trabalho e escassez geral de dinheiro. Desse processo resultaram efeitos
relacionados à intensa transferência de mão-de-obra para as cidades, onde o menor salário é
sempre maior do que a quase subsistência das áreas de origem rurais.
A situação agrária, tal como foi descrita, não constitui uma “aberração” ante o desenvolvimento atingido pela sociedade urbana
brasileira. Antes, o desenvolvimento urbano, particularmente o da economia industrial, só foi e tem sido possível graças à existência de uma economia agraria estruturada de molde a suportar e absorver os custos da acumulação do capital e da industrialização. Ao contrário do que ideologicamente parece, a situação agrária não é produto da “impossibilidade” cultural e social do homem rural absorver e
23
acompanhar o “progresso” do país, nem é produto, portanto, de
valores, concepções e caracteres de personalidade incompatíveis com o desenvolvimento econômico (MARTINS, 1975, p.39)
As reflexões mais gerais de ordem histórica e econômica relacionadas à caracterização
das relações socias de produção na agricultura, nessa dinâmica de acumulação instaurada na
passagem de uma economia de base agrária exportadora para uma econômica de base urbana
industrial, abordadas aqui ainda que a título de revisão, permite visualizar os elementos que
levaram aos altos índices de exploração do trabalhador rural, o atraso das relações de
produção no campo com o estabelecimento de custos irrisórios de reprodução da força de
trabalho, o consequente rebaixamento dos níveis de vida e do padrão de satisfação das
necessidades desses trabalhadores, a extensão tardia das relações contratuais de trabalho
regidas pela CLT, bem como seus nexos com o desenvolvimento do padrão urbano-industrial.
De toda forma, esses elementos merecem ser complementados para os objetivos do presente
capítulo por uma explanação mais específica acerca da formação de uma questão camponesa
no Brasil. Para tal, utilizarei as questões trazidas por Wanderley (2009).
2.2Sobre a origem e atualização da questão camponesa no Brasil.
Após rigorosa revisão teórica sobre o tema do capitalismo agrário no Brasil e fora
dele, a autora apontará um conjunto de hipóteses que vão definir o quadro mesmo de
conformação de uma questão camponesa no Brasil. Inicialmente, é sabido que o nódulo
central do desenvolvimento do capitalismo agrário em nosso país assenta-se na grande
propriedade capitalista da terra. Esta foi largamente incentivada, conduzida e preservada pelo
Estado, onde muitas são as manifestações concretas desse movimento, desde a doação de
terras em sesmarias no período colonial, a promulgação da Lei n° 601 em 1850 - conhecida
como Lei de terras, estabelecendo que a terra fosse ocupada unicamente por meio de compra,
já se supondo e no sentido de impedir que o amplo contingente de terras livres pudesse vir a
ser ocupado por trabalhadores escravos libertos –até medidas institucionais mais recentes na
história que não resolveram o problema da grande propriedade, como o Estatuto da Terra, a
própria Constituição Federal de 1988, até as diretrizes da política agrícola de nossos dias2.
Desta feita, para Wanderley (2009) a grande propriedade irá constituir-se, em
inúmeros momentos, como um primeiro elo no sistema de produção e comercialização de
2 Estas últimas serão trabalhadas noquarto capítulo.
24
produtos agrícolas, e dois segmentos que mantêm ainda uma base familiar de subsistência - e
que chamo aqui de originariamente expropriados – é que vão inserir-se de forma subordinada
como força de trabalho nas vastas extensões de produção agrícola. Detendo-se na
identificação dos segmentos sociais que se inserem subalternizadamente no processo de
reprodução da grande propriedade, pois originariamente expropriados dos meios de vida
necessários à própria reprodução, a classificação de Wanderley (2009, p.116-122) definirá “a
pequena produção familiar no interior da grande propriedade” e a “exploração familiar fora da
grande propriedade”.
Referindo-se aos elementos que dão sustentação a essa formação social da “pequena
produção familiar no interior da grande propriedade”, a autora faz referências a dois
movimentos históricos centrais, relacionados ao crescimento extensivo da produção agrícola e
à continuidade da utilização da força de trabalho não proletarizada no campo, justamente na
passagem da hegemonia agrário exportadora para hegemonia urbano-industrial na economia.
Fora o crescimento extensivo caracterizado pela exploração da fertilidade natural dos
solos, ou seja, sem a utilização prévia de maiores recursos ou investimentos de capital no
processo produtivo, que teria permitido largamente a expansão e reprodução da grande
propriedade no contexto de abastecimento e financiamento da economia das cidades. Como
exemplo podemos citar até 1929 o desenvolvimento da cultura do café e posteriormente até os
anos de 1960 do algodão e pecuária bovina no sudeste, por onde a estrutura produtiva
convergia na absorção e exploração de mais terras. Essa prática, chamada de agricultura
itinerante, exigia sempre uma maior quantidade de terras disponíveis e novas frentes de
ocupação agrícola.
A força de trabalho disponível e largamente utilizada nesse processo foi àquela
legatária do processo social e político de exclusão dos trabalhadores escravos libertos da
economia, estes se vincularam a terra e dela extraíram a satisfação de suas necessidades mais
básicas, como única forma de garantia da subsistência, pois a abolição da escravatura parece
ter originado um trabalhador livre juridicamente, que ao não ser absorvido pela economia
vinculou-se a um trabalho familiar de subsistência, exercido em uma pequena parcela de terra.
A partir de então, com o avanço da ocupação extensiva para regiões anteriormente
ocupadas, esses trabalhadores juntamente com suas famílias vincularam-se a grande
propriedade sob diferentes formas, como descreve Wanderley (2009, p. 117).
(...) o morador, o colono, o parceiro, o arrendatário, trabalham em terras pertencentes aos grandes proprietários e transferem para estes, também sob formas diversificadas, o sobretrabalho que produzem. Todos eles viabilizam a grande propriedade, na medida em que,
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através do trabalho familiar, assumem total ou parcialmente, o custo de sua própria reprodução, ou os riscos da atividade agrícola.
No processo de ocupação extensiva pela grande propriedade, é necessário pontuar o
tipo de consequência relacionada à sua larga utilização, impulsionada seja pelo exaurimento
dos solos ou da capacidade produtiva deste, seja pelo alcance de novas terras cultiváveis em
regiões largamente dispersas. Lentamente, o processo de ocupação extensiva passava a dar
sinais de exaurimento, e a intervenção governamental vem a ser amplamente discutida no
sentido de se modernizar a produção agrícola, com a introdução de novas técnicas mais
modernas de produção, sob pena de se verem ruídas as bases do fornecimento de bens de
capital para economia de exportação e ao mesmo tempo a falência do abastecimento do
mercado interno, pois a terra já dava sinais de cansaço e de impossibilidade de abarcar a
grande demanda de produtos necessários na manutenção da industrialização da economia.
É em função destas contradições que são definidas as novas formas de articulação entre a grande propriedade e o grande capital. Este objetivo, que se concretiza no contexto de uma nova reestruturação do bloco do poder, em 1964, reflete a clara opção do Estado pelo projeto de “modernização conservadora”, que a partir de então se intensifica,
em oposição à reforma agrária proposta pelo campesinato e seus aliados políticos (WANDERLEY, 2009, p. 119).
A partir do avanço da modernização conservadora no interior da grande propriedade,
que caracterizou uma nova articulação entre o capital industrial e a propriedade fundiária,
inaugurando um padrão de acumulação quantitativo e qualitativamente distinto, com sua
expressão máxima conduzida a cabo pelo governo militar, significativos efeitos impactaram a
exploração familiar que então se reproduzia no interior da grande propriedade. Observou-se
um continuo processo de desaparecimento da base familiar no trabalho neste âmbito, com a
expulsão de um grande contingente de trabalhadores das fazendas, e com a impossibilidade de
conservação dos sítios, de onde a base familiar extraia produtos para sua subsistência em troca
do trabalho exercido na fazenda, prática histórica e presente em vários momentos da
economia brasileira, desde os “sítios volantes” e as posses nos interstícios das sesmarias, das
roças dentro dos engenhos de açúcar ou das fazendas de café, até os atuais posseiros da
Amazônia e parceiros do Nordeste3.
É importante destacar a resistência ao paulatino processo de proletarização que foi se
dando no campo, tanto com o avanço da ocupação extensiva, tanto com o avanço de uma
ocupação de face mais modernizada que vai se consolidando progressivamente. Na verdade,
esse processo está na origem do movimento camponês que eclodiu nacionalmente nos anos de
3 Como aponta SILVA (1982).
26
1950, quando os sujeitos do campo passam a questionar o avanço da grande propriedade sobre
as suas áreas de exploração familiar. Nesse processo, a luta que inicialmente começa contra a
proletarização acumulou para uma luta contra a grande propriedade pela propriedade
camponesa, o que constituiu uma ameaça à aliança dominante do capital com a propriedade
fundiária, processo ao qual me referirei em mais detalhes no próximo capítulo.
Quanto à formação da “exploração familiar fora da grande propriedade”, a partir de
Wanderley (2009) pode-se entender como a localização deste segmento fez-se historicamente
subordinada, estando sua condição mesmo relacionada como à de um “trabalhador para o
capital”, em que nos diferentes momentos históricos até nossos dias teve sua possibilidade de
existência real limitada ao estreito espaço forjado pelos proprietários de terra e pelo grande
capital, como um “agente necessário da acumulação”, em nada se assemelhando a sua
caracterização no seio de sociedades rurais de capitalismo desenvolvido a partir da realização
de uma Reforma Agrária4.
Retrocedendo historicamente para melhor situar a questão, a autora afirma que ainda
na fase colonial de nossa história, a ocupação legal de terras era vedada ao camponês, pois o
único título jurídico de posse reconhecido era o da sesmaria. Caracterizada pelo controle
exclusivo da terra em grandes dimensões, esta foi a base do sistema Plantation de produção
agrícola, nos auspícios da fase mercantilista do capitalismo e de sua expansão pela América
Latina. De toda forma, a ocupação extralegal de terras para além dos limites das glebas
concedidas por doação, compra ou herança, caracterizadas desde o início pela imensidão e
pela imprecisão de seus limites, possuía entraves de dificil superação.
A autora refere-se a “adversidade das condições naturais, ao isolamento do produtor e
a precariedade dos instrumentos técnicos de que dispõe” (WANDERLEY, 2009, p. 122), que
fizeram dos segmentos em questão um setor vulnerável a toda sorte intempéreis e carências,
de onde conseguiam apenas extrair o consumo mais próximo do mínimo vital, a subsistência
mais ínfima e a satisfação das necessedidades da forma mais precária.
O quadro vai ser redefinido e afetado pela extinsão das sesmarias e pelo avanço da
ocupação progessiva nas regiões interioranas. No primeiro caso, a posse passou a campear
mais livremente no país, pois a legislação não versava mais sobre a ocupação exclusiva e em
grandes extensões de terra, por outro lado, nessas regiões de avanço da ocupação progressiva
pelo latifúndio, as armas jurídicas parecem ter sido substituíudas pela violência direta, de
4 Como exemplo nos países da Europa e mesmo nos EUA assiste-se a formação da via fammerdo capitalismo na agricultura, marcada pela estruturação empresarial familiar, iniciativas com altos índices de tecnologia empregada e lucratividade a partir de sua inserção nos mercados nacionais e internacionais.
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forma que as possibilidades colocadas ao camponês impunham a incorporação direta ao
latifundio, como mão-de-obra na garantia da reprodução daquele, no cultivo das grandes
lavouras em troca da subsistencia, ou refazer sua exploração em outra localidade, até que
novamete fosse tocado pelo processo da ocupação progressiva das regiões dispersas do
território.
Nesse momento, logo após a lei que aboliu a escravidão, a tensão que permeava o
avanço da ocupação pelo latifundio e a permanência do camponês como posseiro nestas
regiões, é revestida pela necessidade de se controlar a força de trabalho dos pequenos
produtores.
A disputa pela terra, longe de ser esvaziada, se amplia, tomando-se o locus de um conflito em que se confrontam mais claramente o objetivo da obtenção de braços para grande lavoura e o projeto de independência do camponês. As políticas de imigração e de colonização refletem o conteúdo deste conflito e a Lei das terras de 1850 marca a posição de força de trabalho da grande propriedade (WANDERLEY, 2009, p. 122)
Sobre as políticas de imigração, vale a pena referir-se ao argumento desenvolvido por
Martins (2010) acerca do porquê da não absorção da mão-de-obra escrava recém liberta pela
economia e ao invés disso a ênfase na utilização da força de trabalho do imigrante Europeu. O
autor afirma que é fato que a crise do trabalho escravo havia gerado a modalidade de trabalho
que o superaria – o trabalho livre – por sua vez diferente do trabalho assalariado. O fim da
escravidão e o advento do trabalho livre tiveram impactos particulares para quem foi escravo
e para quem não foi escravo, no caso dos imigrantes Europeus.
No primeiro caso, a circunstância da abolição lhe rendeu a propriedade de sua força de
trabalho, no segundo caso, despojado de toda propriedade, a força de trabalho seria o que lhe
restara. Esse pequeno detalhe ideológico imprime um grande diferencial do ponto de vista da
disposição da força de trabalho, “para um a força de trabalho era o que ganhara com a
libertação; para outro, era o que lhe restara” (MARTINS, 2010, p. 34). Vê-se por isso que o
trabalho livre imprimia a necessidade de novos mecanismos de coerção para os trabalhadores,
de modo que a exploração do trabalho fosse considerada legítima pelo trabalhador. É fato que
a mão-de-obra escrava recém liberta, tendo recebido a liberdade como negação do trabalho,
não o consideraria como uma virtude, mas sim como uma nova forma de sujeição. Seria
necessário então buscar esse trabalhador em outro lugar, onde a condição de homem livre
tivesse outro sentido, processo que desembocou na busca pela mão de obra imigrante. Este
trabalhador, por sua determinada localização histórica, atribuía outro sentido à exploração do
trabalho. A partir de então se ergueu o regime de trabalho conhecido como regime de
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colonato, absorvido nas fazendas de café de São Paulo, em fins do século XIX, e que também
se estendeu para produção do açúcar na região. O trabalhador escravo teria se convertido,
então, em trabalhador livre, porém não assalariado, lançando-se muitas vezes em busca da
própria subsistência e da sua família para regiões inóspitas, no processo referido em
parágrafos anteriores.
A promulgação da lei de terras de 1850 ao instituir que o acesso à posse legal da terra
só poderia efetivar-se a partir da compra, implicou para o camponês o fato de que para obter
os recursos monetários para a aquisição legal da terra que ocupava teria que contar apenas
com o próprio trabalho, que deveria realizar-se mesmo a partir das condições de precariedade
e ausência de recursos em que se encontrava, foi nesse sentido que se estabeleceu a
necessidade de comercialização da parcela maior da produção, alterando-se a proporção do
autoconsumo no interior da unidade camponesa (WANDERLEY, 2009, p. 123).
Nesse sentido, algumas considerações de grande importância para o entendimento
acerca da natureza e localização dos camponeses que se reproduzem fora da grande
propriedade necessitam ser feitas.
Inicialmente, a relação estabelecida com o mercado deu-se despida de qualquer
possibilidade de autosuficiência, os produtos que passam a ser comercializados pelo
camponês não são produtos destinados à obtenção de lucro no mercado, nem sempre
representam um excedente produzido além do necessário à reprodução do camponês. O
importante a destacar é que o caráter da produção posta à venda é o de complementar dos seus
meios de vida, por meio da qual o camponês consegue outros produtos necessários a sua
reprodução e de sua família, dos quais não dispõe no interior de sua unidade produtiva, e
também por onde obtém os meios e instrumentos de trabalho necessários à reprodução desta,
a própria terra e os seus instrumentos de trabalho, de forma que o caráter complementar e de
subsistência são determinantes na relação estabelecida com a venda de produtos no mercado.
O camponês não escolhe, por conseguinte, entre plantar para vender ou plantar para consumir, mas vende como única alternativa para garantir as condições mínimas de sua reprodução. Deste modo, a relação entre autoconsumo e “excedente” comercializado não se
identifica à distinção entre trabalho assalariado e trabalho excedente. Se a proporção da produção vendida em relação ao volume total produzido se eleva, isso decorre menos da formação de um produto excedente, que poderia constituir a base de um processo de acumulação para o camponês, do que das condições em que seu trabalho se insere no mercado. Com efeito, a organização do trabalho familiar depende cada vez mais dos mecanismos estruturais do mercado. Este passa a constituir uma mediação indispensável à obtenção, pelo camponês, de seus meios de vida, da terra e dos instrumentos técnicos da produção e da transferência, para fora da unidade familiar, do sobretrabalho nela produzido, e que irá alimentar
29
o processo global de acumulação do país (WANDERLEY, 2009, p.124).
Mas a caracterização da subalternidade como a marca da inserção dos camponeses no
mercado é mais claramente visualizada quando se faz referência ao fato de que quem
realmente lucra com a inserção dos camponeses pobres no mercado é justamente quem vende
a terra – na maioria dos casos o próprio Estado, que foi o encarregado da venda das terras
devolutas na Lei de Terras de 1850 - e os ditos intermediários do processo de
comercialização, que reúnem as condições necessárias para concentrar a produção camponesa
dispersa no território e de manipular sua oferta nos centros comerciais urbanos. Há ainda a
acrescentar o fato da renda acumulada com a venda das terras devolutas ter sido direcionada
para o financiamento da imigração de trabalhadores Europeus, destarte, não seria abusiva a
conclusão de que o pagamento destinado à aquisição das terras por pequenos camponeses
pobres foi, neste contexto determinado e pela mediação do Estado, apropriada por grandes
proprietários de terras. Toda essa fase da nossa história convergiu para afirmação colocada
por Wanderley (2009, p.124), onde “a produção assumida pelo pequeno produtor é rentável,
só não o é para ele próprio” .
A partir de um salto dado na história, mas necessário aos objetivos do presente
capítulo, há que mencionar a localização “da unidade familiar que se reproduz fora da grande
propriedade” no processo de modernização da agricultura já em seu estado de
desenvolvimento mais avançado, em meados da década de 1970, e o processo denominado de
“incorporação vertical”. Observou-se que com a centralização cada vez mais acentuada dos
capitais, grandes conglomerados industriais passam a controlar internacionalmente toda a
produção agrícola de determinados cultivos, como nos casos dos gêneros alimentícios de soja
e milho5, ao mesmo tempo em que a comercialização destes produtos realizada durante muito
tempo tradicionalmente por pequenos e médios comerciantes, sedem lugar paulatinamente aos
agentes industriais. Nesse sentido, o capital industrial passa a articula-se com a agricultura
através da integração da produção dos camponeses no interior de grandes complexos
agroindustriais. Dessa forma, em determinadas regiões do país, a depender da conjuntura
disposta e da existência ou não de largos incentivos a ocupação da terra, os capitais industriais
podem evitar o investimento na aquisição de propriedades e utilizar como matéria prima na
produção dos gêneros alimentícios produtos originários das pequenas produções camponesas.
Há que ressaltar dois elementos que interferem diretamente na impossibilidade da
constituição da autonomia dos agricultores diante desse processo, o baixo preço em troca da 5 Ver Pedrosa Júnior e Takano apud Wanderley (2009).
30
obtenção das materiais primas fixados pelo capital industrial, o que obviamente constitui a
condição da elevação máxima da lucratividade deste último, pois a quantidade de
sobretrabalho presente nas matérias-primas produzidas é de toda forma assegurada quando em
troca de sua obtenção paga-se apenas o custo da reprodução da força de trabalho, ou seja, dos
produtores diretos. Outro elemento refere-se às condições impostas pelos contratos de
produção, que em todas as circunstancia determinam o preço das matérias-primas, a
quantidade a ser produzida, padrões de qualidade, técnicas e tipos de cultivo, metas e prazos
de fornecimento, etc.
Os contratos de produção preveem normas de qualidade, de produtividade, de preços e prazos, que reorientam a organização interna da produção agrícola em todos os níveis. Mesmo nos casos em que há este tipo de integração, não é difícil perceber o controle que o grande capital exerce sobre o pequeno produtor, através dos mecanismos de mercado: tipo de cultivo, formas de comercialização, a alocação da força de trabalho, os processos produtivos e etc., todos objetos de um poder de decisão que cada vez mais escapa ao pequeno produtor. Isto não quer dizer que ele não realize seu próprio calculo econômico, nem desenvolva uma estratégia especifica. Mas é necessário não superestimar sua capacidade de iniciativa e situá-la em sua verdadeira dimensão. Na melhor das hipóteses suas iniciativas são limitadas e restritas ao estreito espaço estabelecido pelo capital (WANDERLEY, 2009, p.126).
É vital destacar, para coerência da perspectiva de trabalho adotada, que o fato do
capital industrial ter “recorrido” a pequena produção camponesa em algumas conjunturas para
produção direta de suas matérias – primas não invalida sua aliança com a propriedade
fundiária, pois o processo da “integração vertical” não anula a sua presença como
proprietários de vastas extensões territoriais em outras localidades. A realização ou não da
“integração vertical”, ou seja, dos contratos de produção com pequenos produtores, ocorre
onde a conjuntura para aquisição de terras e a natureza da matéria-prima a ser extraída da
natureza for mais conveniente para um ou outro recurso. Mas de toda forma, a mesma sinaliza
o máximo de autonomia alcançada no interior da dinâmica de mercado capitalista pelos
camponeses no Brasil, uma margem de espaço estritamente definida a priori pelo capital,
atuando como funcionais a maximização de seus lucros.
Resta ainda pontuar, a partir do esquema analítico descrito por Wanderley (2009), as
iniciativas dos camponeses de comercialização direta de sua produção, quando estes tentam
assumir todo o controle do processo produtivo das matérias primas, desde o cultivo até sua
oferta direta no mercado, através das cooperativas. As cooperativas parecem ser marcadas
pelo ideal de solidariedade e união entre seus membros, na perspectiva de garantir a
realização de seus interesses que devem ser comuns, sua expressão é maior nas regiões onde
31
por razões históricas prevaleceu em número a ocupação legal ou extralegal por famílias
camponesas.
Apesar da legitimidade dos interesses que movem as iniciativas de produção
cooperada, estas não têm se manifestado como uma alternativa consolidada na direção do
rompimento com a dominação do capital, pelo contrário, têm sido frequentemente utilizadas
pelos empresários industriais como estratégia de apropriação do sobretrabalho dos
camponeses, no processo semelhante ao já descrito no que se refere a “integração vertical”
aos complexos agroindustriais, pois os camponeses não têm conseguido romper na maioria
dos casos com os “muros” impostos pelos grandes oligopólios industriais. Tem sido através
das cooperativas que o capital tem incorporado o pequeno produtor ao mercado industrial,
ditando os contratos de produção, prazos, quantidades, preços, incremento da produção,
utilização de insumos modernos, não restando espaço para o projeto de autonomia almejado.
Finalmente, concluindo a exposição dos complexos processos sociais e econômicos
que sedimentaram a existência e localização do campesinato no Brasil, é imprescindível
destacar que a reprodução da pequena propriedade, pela serie de desvantagens que
historicamente abateram-se sobre a mesma, não eliminou a necessidade das famílias
complementarem sua renda com a venda da força de trabalhado na grande propriedade. Neste
fato reside um aspecto intrínseco a essa formação social tipicamente familiar Brasil, sua
incapacidade de eliminar a dependência de seus membros em relação a grande propriedade.
Wanderley (2009, p. 127) alerta que não foi por acaso que os preços das terras desde a Lei de
terras foram fixados em níveis muito altos e que os lotes vendidos aos pequenos produtores
nunca ultrapassavam um certo alcance, “incapaz de garantir a suficiência econômica da
família”. De toda forma, vê-se por todas as questões levantadas que,
este é o estreito espaço estabelecido pelo capital às iniciativas do camponês, espaço delimitado pela condição, que é a sua, de trabalhador para o capital. Esta condição impede as possibilidades de acumulação, pelo próprio produtor, porém o torna – e é para isso que ele é reproduzido – um agente necessário da acumulação, que se realiza a partir de seu sobretrabalho, mas fora de sua unidade de produção e não em seu próprio proveito (WANDERLEY, 2009, p. 128).
É nesse sentido que se pode falar da existência de uma questão camponesa no Brasil.
Em âmbito econômico está expressa pela (re)criação de um campesinato subordinado aos
interesses da reprodução capitalistas,historicamente marcado pela ausência da disposição livre
dos meios necessários a uma reprodução social justa e consequentemente por uma localização
subalterna diante dos interesses da grande propriedade e do grande capital. No campo político,
segundo a autora já mencionada, está expressa nas reivindicações por Reforma Agrária
32
encampadas tanto pelo movimento sindical rural, como por movimentos camponeses fora do
arco da sindicalização. Acredito também que em última instância a questão camponesa se
expressa no quadro de ebulição das lutas sociais que historicamente eclodiram e eclodem no
campo, que conseguem associar a pauta da reforma agrária ao questionamento acerca dos
fundamentos da ordem social capitalista.
De toda forma, a condição imposta ao camponês conforma um setor de expropriados e
explorados pelo capital, uma resultante do processo de exclusão social e econômica que dá
forma as expressões da questão agrária no Brasil.
Ao que me parece, a vivência de experiências comuns e com isso a partilha dos
mesmos interesses, conformou as condições necessárias no plano político para um
reconhecimento de classe no interior desse segmento. Acerca dos elementos que fundam uma
classe, no plano político, é imprescindível pontuar que,
a classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou entraram involutariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais. (THOMPSON, 1987, p. 10).
Sendo assim, no capítulo terceiro que se segue, pretendo discorrer acerca da
organização dos trabalhadores rurais na cena política nacional, com recorte nas contradições
que permearam o surgimento e consolidação do sindicalismo de trabalhadores rurais no
Brasil. Resta afirmar que o surgimento das iniciativas de organização de classe no campo,
pelo próprio caráter do desenvolvimento do capitalismo na agricultura, - sustentando-se nas
formas mais atrasadas de relações sociais - foram marcadas por uma profunda resistência das
oligarquias rurais e da burguesia agrária, pelo que promoveram todo tipo de perseguição e
repressão, e nesse contexto, representando o interesse das classes dominantes, o Estado fez-se
presente enquanto maior promotor da tutela sobre as organizações que surgiam.
33
3A PERSPECTIVA DA CONCILIAÇÃO DE CLASSES NA HISTÓRIA DO SINDICALISMO RURAL: UMA TENDÊNCIA PREVALECENTE. 3.1 Raízes históricas do sindicalismo rural.
Os sindicatos de trabalhadores rurais expandem-se no Brasil como parte de uma
estrutura que lhes foi anterior: O sindicalismo de Estado.
Para Boito Júnior (1991) a característica fundamental deste sindicalismo reside numa
estrutura subordinada ao reconhecimento oficial-legal do sindicato pelo Estado. Nesta
estrutura, para representar um determinado segmento de trabalhadores, o sindicato necessita
obter um registro junto a um ramo do aparelho de Estado - o Ministério do Trabalho -, este lhe
concederá legitimidade política para fins de negociação, acordos e convenções coletivas de
trabalho e recebimento de contribuições sindicais.
Para o autor referido, a ideologia que serve de “cimento” à estrutura sindical é o
estatismo, podendo ser um estatismo populista ou de direita, a depender da conjuntura política
nacional. No estatismo populista a tutela do Estado sobre os sindicatos aparece aos olhos do
trabalhador ou sindicalista como uma vantagem, isso porque a ideologia populista é “a
mitificação do Estado como entidade supostamente acima das classes sociais, cuja finalidade
seria proteger, a partir de sua própria iniciativa livre e soberana, os trabalhadores da
exploração capitalista” (BOITO JÚNIOR, 1991, p. 56). Já no estatismo de direita, a tutela do
Estado é percebida não como uma proteção dos trabalhadores diante da ação gananciosa dos
capitalistas, mas sim como instrumento adequado para barrar a ascensão das correntes
reformistas e revolucionárias no movimento, contribuindo ativamente para a manutenção da
ordem capitalista dependente, tal qual essa ordem existe no Brasil.
Segundo Boito Júnior (1991), a ideologia estatista no plano sindical apresenta-se sob a
forma de um legalismo sindical, que por sua vez, contribui para uma mesma função política, a
de limitar e moderar a ação sindical dos trabalhadores.
Sobre a extensão desta estrutura ao campo, até 1943 toda a legislação vigente6 excluía
os trabalhadores rurais e sua sindicalização. Em 1944, através do Decreto-Lei n°7.038 de 10
de novembro, o Estado Novo passa a regulamentar a sindicalização rural, atrelando-a a
estrutura sindical oficial definida pela CLT. O Decreto – Lei n°7.038 estabelecia a
6Colleti (1998) cita o decreto n°19.433, de 26/11/1930, a “Lei de Sindicalização” Decreto – Lei n°19.770, de
19/03/1931, e ainda vários outros decretos durante os anos 30 e inicio dos anos 40 que resultaram finalmente na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1° de maio de 1943.
34
necessidade de reconhecimento dos sindicatos pelo Ministério do Trabalho, Indústria e
Comércio e definia os deveres dos sindicatos rurais, estes assentados num colaboracionismo
com o Estado, na solidariedade social, e na subordinação dos interesses profissionais ao
interesse da nação, também eram ressaltadas a manutenção dos serviços assistenciais para os
sindicalizados, a busca de conciliação dos conflitos entre trabalhadores e empregados, etc.
Contudo, tratou-se apenas de um formalismo, visto que a conjuntura política de
intolerância e perseguição por parte das oligarquias agrárias quanto a qualquer forma de
organização dos trabalhadores, associada às dificuldades burocráticas existentes para a criação
de sindicatos inviabilizaram por bastante tempo o surgimento dessas organizações, sendo que
segundo Coletti (1998) até 1960, o número de sindicatos de trabalhadores rurais
reconhecimentos pelo Ministério do Trabalho não chegava a uma dezena em todo território
nacional.
Somente no inicio dos anos 60 o sindicalismo oficial chegaria efetivamente ao campo
com a promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural – ETR. Para Coletti (1998) este foi
quase uma cópia do Decreto-Lei 7.038, contendo as mesmas diretrizes gerais para a atuação
dos sindicatos rurais, mas com uma diferença, enquanto o último não representava nenhum
resultado prático no sentido de incentivar a abertura de sindicatos, o ETR surgia em meio à
emergência de centenas de sindicatos de trabalhadores agrícolas espalhados por várias regiões
do país. Há que se indagar o que teria ocorrido nesse intervalo de tempo. Sobre esse processo,
o autor supracitado conclui,
As oligarquias rurais e a burguesia agrária opuseram-se, de forma veemente, a qualquer possibilidade de extensão da legislação trabalhista ao campo e de alteração, através de uma reforma agrária, na estrutura fundiária brasileira. Até o inicio dos anos 60 foi possível manter intocados seus interesses. Entretanto, a partir do momento em que a mobilização e a organização crescente do campesinato deixava claro que as massas rurais fugiam ao controle de seus antigos senhores, foi necessário que o Estado interviesse a fim de conter e canalizar institucionalmente a inquietação camponesa. (...) O sindicalismo oficial foi estendido ao campo numa tentativa do Estado de trazer a organização política autônoma do campesinato para o âmbito de seu controle (COLETTI, 1998, p.55).
De fato, as mobilizações dos trabalhadores agrícolas nos anos 50 romperam com as
relações de dominação e dependência pessoal entre os grandes proprietários de terra e os
trabalhadores rurais. O poder das oligarquias rurais começava a ser ameaçado e se delineava o
esgotamento do coronelismo7. A estrutura fundiária, sinônimo de grande propriedade nas
7Segundo Coletti (1998), o fenômeno do coronelismo correspondia a capacidade de manipulação do comportamento eleitoral das massas rurais, que viviam sob a dependência das terras dos grandes proprietários.
35
áreas rurais, sintetizava as formas de dominação que historicamente oprimiram os
trabalhadores do campo. Através das organizações nascentes estes passaram a questionar as
desigualdades sociais tendo como direcionamento privilegiado de contestação o latifúndio.
O exemplo mais emblemático desse período foi o das ligas camponesas.
Após a segunda guerra mundial houve uma aceleração do processo de penetração capitalista no campo no Brasil, com a construção de grandes obras e expansão de crédito (...). A intervenção do Estado levou a uma modernização conservadora, que solidificou o bloco dominante. No caso do açúcar em Pernambuco, manteve-se a concentração fundiária e acentuou-se o caráter monocultor da economia, bem como o baixo nível de renda da população, expropriando e proletarizando o produtor direto que foi perdendo, com a expansão da cana, os espaços ocupados pelas culturas de subsistência (ABREU E LIMA, 2005, p.28).
A parcela do campo mais afetada com as transformações foram os pequenos
produtores, que sofriam sucessivos processos de desapropriação de suas terras e eram
transformados em assalariados, perdendo seus sítios e roçados. Contra esse processo de
proletarização, foi que surgiram as ligas camponesas. Segundo Medeiros (1989), as ligas
camponesas foram um símbolo das lutas dos trabalhadores rurais no período pré-64 e estavam
ligadas a uma contestação radical à monocultura, à mecanização e à estrutura fundiária
nordestina.
Apesar de ser o exemplo de maior visibilidade no século xx das lutas camponesas no
Brasil, as ligas não se constituíram na única expressão da organização dos rurais neste período
pré-64.
A inquietação social no campo nos anos 50 e 60 extrapolava o Nordeste e espalhava-se por vários outros cantos do país. Citaremos aqui apenas alguns exemplos: os posseiros, ameaçados de despejo, desencadeavam longas batalhas em Formoso e Trombas (Goiás), no Sudoeste do Paraná e na Baixada da Guanabara; em Santa Fé do Sul, no Estado de São Paulo, houve sérios conflitos nos anos de 1959/1960, envolvendo pequenos arrendatários e os proprietários de terras; as greves no campo multiplicavam-se numa escala sem precedentes, no Rio Grande do Sul surgia o Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master). Enfim, as classes dominadas no campo rebelavam-se, transformando, aqui e acolá, o “pacato” mundo
rural em verdadeiro campo de batalha (COLETTI, 1998, p.44).
Esta capacidade de manipulação decorria da obrigação subjetiva de lealdade pessoa l e de fidelidade política do trabalhador àquele que lhe cedeu a terra para trabalhar, significa, a um só tempo, a capacidade do “coronel” de
obrigar as massas do campo a participar do processo eleitoral e a capacidade de impor-lhes candidatos, através do chamado “voto de cabresto”. Esse processo garantia, no contexto de um Estado burguês democrático, a
intocabilidade da grande propriedade fundiária.
36
De fato a conjuntura do período pré-64 foi marcada pelo questionamento da grande
propriedade, vivia-se o momento de transição de uma agricultura pautada na ocupação
extensiva dos solos, que esgotava a sua fertilidade natural e posteriormente avançava para
novas regiões, para uma agricultura de face mais modernizada que então ia consolidando-se
progressivamente. O impacto sobre os trabalhadores rurais nesse movimento de reprodução
da grande propriedade expressou-se ora a partir de violentos processos de expropriação - onde
restava aos trabalhadores seguir o caminho das cidades incrementando o maciço êxodo rural -
ora a partir de violentos processos de proletarização, pelo estabelecimento de vínculos de
trabalho instáveis, marcado pelas mais duras condições de trabalho.Destarte, direitos
trabalhistas mais básicos foram negados, para Silva (1999) revelou-se a falência do Estatuto
do Trabalhador Rural - ETR na garantia dos direitos que regulamentava, pois a legislação
previa a extensão de uma série de direitos trabalhistas aos trabalhadores rurais, inclusive
indenização por justa causa, estabilidade no trabalho e etc, apenas aos trabalhadores
permanentes. Nesse sentido, os trabalhadores permanentes ao tornarem-se mais onerosos
passaram a ser despedidos, para serem depois incorporados às atividades agrícolas como
volantes, temporários, ou seja, como força de trabalho menos onerosa.
Graziano da Silva (1996) destaca como características do contingente de trabalhadores
assalariados no campo: A sua crescente especialização, ou seja, sua localização em fases
isoladas e específicas da produção – o que muitas vezes determina o vínculo temporário de
trabalho - e a intensividade do trabalho realizado para o alcance da produtividade requerida,
ao mesmo tempo em que se estreitavam as formas independentes de reprodução da pequena
propriedade ou de formas em que o trabalhador mantivesse o controle/domínio sobre todas as
etapas do processo produtivo.
A ebulição das lutas sociais nesse ínterim indicava, sobretudo, a resistência e o enfrentamento
político.
A Igreja Católica e os partidos de esquerda estiveram imersos nessa conjuntura. A
preocupação da Igreja com a “questão social”, neste momento, está referenciada na encíclica
RerumNovarum, lançada pelo papa Leão XIII, em 1981. Através desse documento, a Igreja
Católica expressava seu posicionamento sobre a luta entre as classes sociais e sua
preocupação com a harmonia e conciliação entre as mesmas. A Igreja procurava dar
enfrentamento aos conflitos no campo, e ao “perigo comunista” representado pelas ligas
camponesas. A ação católica, “embora questionasse o nível de exploração, deveria ser
moderada (ABREU E LIMA, 2005, p.43)”. Nessa perspectiva, setores conservadores da
Igreja se estruturam no sindicalismo rural em uma série de organismos.
37
Em 1961, surgiram o Serviço de orientação Rural de Pernambuco, a Equipe de Sindicalização da Secretaria Rural da Paraíba e a Equipe de Sindicalização da Secretaria da Arquidiocese de Teresina (MEDEIROS, 1985, p. 77).
Também em 1961, ligado à Igreja, surgiu o Movimento de Educação de Base – MEB.
Utilizando-se da metodologia preconizada por Paulo Freire, por meio do rádio, o MEB
alfabetizava os trabalhadores rurais além de conscientizá-los quanto aos seus direitos. Esta foi
a base de sustentação de uma corrente de católicos leigos que atuava na área rural, que
organizada juntamente com outros setores, como o movimento estudantil, era denominada
Ação Popular.
Entrando em conflito com a hierarquia da Igreja, setores da Ação Católica criaram uma organização propriamente política, a Ação Popular, que já nasceu em âmbito quase que nacional. A prioridade que essa organização definiu para sua ação dizia respeito à organização de operários e camponeses, baseada nas “exigências
concretas das massas”. É com essa perspectiva que ela se voltou para o trabalho de sindicalização rural, tendo como horizonte a construção de uma nova sociedade, de perfil socialista. Dentro dessa visão entrou na disputa da representação dos trabalhadores rurais, não só com setores considerados conservadores da Igreja (os vinculados à hierarquia católica), mas também com o PCB (MEDEIROS, 1985, p. 78).
Encontramos ainda partidos de esquerda com atuação voltada para o campo, como o
Partido Comunista Brasileiro – PCB e o Partido Comunista do Brasil – PC do B. De acordo
com Santana (2001), a conjuntura que compreendeu o período de 1945 a 1964, apesar das
variações em diferentes períodos internos, foi considerada uma das mais importantes da
história do movimento operário e sindical no Brasil, marcada por uma expressiva riqueza de
experiências, com destaque para a estreita relação estabelecida entre o Partido Comunista do
Brasil, o PCB e o movimento organizado dos trabalhadores. Para o autor “é entre os anos de
1945 e 1964 que essa relação encontra seu nível elevado de desenvolvimento” (SANTANA,
2001, p. 39).
No campo, observou-se o envolvimento do PCB com a criação das ligas camponesas
no Nordeste, bem como o seu envolvimento em outras lutas no âmbito nacional como a dos
posseiros ameaçados de despejo na região de Formoso e Trombas em Goiás, já mencionada
anteriormente. Mas é no período de 1954 a 1964 que se viu os comunistas trabalhando mais
intensamente no movimento sindical brasileiro. Na verdade essa aproximação parece ter
refletido uma leitura do PCB acerca da luta institucional, pela qual a partir de um amplo arco
de alianças poderia avançar na realização das reformas de base, necessárias ao país e
consideradas primeira etapa no processo de constituição da revolução brasileira. De toda
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forma, nesse período, assistiu-se a uma crescente integração do PCB ao cenário político-
institucional, pelo que consolidou seu controle sobre significativa parcela das direções
sindicais no campo e na cidade, sob o argumento de que pela pressão sindical, orientada pelas
definições mais gerais do partido, conseguiria submeter a maioria conservadora do Congresso
Nacional e aprovar as reformas estruturais na sociedade, incluindo a reforma agrária. Sendo
assim,
O partido vai participar intensamente, via seus militantes e das organizações que capitaneava, de todos os movimentos que sacudiram o cenário político na entrada dos anos sessenta, principalmente na campanha pelas reformas de base. A turbulência se deu de tal forma, que a ameaça do que se chamou “república sindicalista” foi utilizada
como uma das justificativas pela precipitação do golpe militar de 31 de março de 1964 (SANTANA, 2001, p. 89).
Foi nesse contexto que, em 1963, foi fundada Confederação Nacional dos
Trabalhadores da Agricultura – CONTAG. Apesar da divergência entre as forças políticas, foi
formada uma chapa única para a primeira gestão da diretoria da Confederação com
hegemonia de um campo mais avançado da luta social no período.
Já havia 26 federações com direito a voto, (...) apesar da diversidade presente conseguiu-se chegar a um acordo para uma chapa única, onde o PCB tinha dois cargos chaves: o presidente (Lindolfo Silva) e o tesoureiro (Nestor Veras) e a AP, o secretario (Sebastião Lourenço de Lima). (...) Reconhecida em janeiro de 1964, a CONTAG assumiu dois compromissos básicos: a luta pelo reforço e ampliação dos sindicatos, bem como da unidade do movimento (MEDEIROS, 1985, p.79).
O período foi marcado por um contingente expressivo de lutas. Segundo Abreue Lima
(2005), os trabalhadores faziam pressões diretas a usineiros e administradores, passeatas e
comícios, mas a maior e mais expressiva forma de luta eram as greves.
A grande greve que deixou marcado o movimento dos trabalhadores rurais de Pernambuco realizou-se em novembro de 1963, e terminou com o Acordo do Campo, celebrado entre as partes e mediado pelo governador Miguel Arraes. Este acordo proporcionou ganhos políticos aos trabalhadores. Em seu primeiro item, ficou estabelecido um reajuste de 80 % para todos os assalariados agrícolas, a partir de 1° de dezembro; dentro de 60 dias, todos deveriam ter a sua situação regularizada com a assinatura das carteiras de trabalho; as empresas fariam o desconto das contribuições sindicais, o que em muito contribuiria para o desenvolvimento do sindicalismo rural (ABREU E LIMA, 2005, p.61).
Pelo momento político correspondente, de ebulição das forças políticas progressistas e
revolucionárias no campo, os sindicatos rurais oficiais criados para enquadrar as lutas sociais
no âmbito de controle do Estado, converteram-se em instrumentos capazes de provocar um
questionamento do poder político dos grandes proprietários. Contudo, o golpe militar de 64
39
instaura uma conjuntura altamente desfavorável à organização dos trabalhadores. Os militares
promoveram diversas intervenções nos sindicatos de base e nas federações por meio da
repressão das forças sociais, buscando apoio no sindicalismo cristão conservador para
implementação de seu projeto político.
É sabido que nessa época entrou na pauta dos governos o chamado milagre brasileiro.
Segundo Medeiros (1980), processou-se um rápido crescimento econômico, fundado na
concentração de capitais e de renda. Ampliou-se a produção de bens de capital, modernizou-se
o parque industrial, estimulou-se a modernização agrícola e a ocupação das fronteiras pelos
grandes empreendimentos incentivados. Os impactos na área rural se fizeram sentir de
maneira brutal, com o intenso êxodo rural e aumento do trabalho temporário. O discurso da
necessidade da modernização da economia abriu as portas do país para o investimento
estrangeiro, delineando o quadro denominado de modernização conservadora, beneficiando
apenas os grandes empresários e as elites nacionais.
No âmbito da CONTAG, após o golpe militar a intervenção foi imediata. Para
presidência da entidade, em 1964, foi nomeado José Rotta, que dirigia a federação de São
Paulo, seguindo a direção cristã aliada a ditadura. Interessava manter o sindicalismo urbano e
rural vivos, para aparentar certa manutenção da legalidade, porém eram potencializados os
mecanismos de controle sobre as organizações. Sobre o sindicalismo de esquerda, a repressão
foi intensa,
Sedes de ligas e de sindicatos foram fechadas e vasculhadas; as lideranças perseguidas; muitos foram presos, muitos outros assassinados; outros ainda conseguiram escapar ao cerco e se exilar ou no exterior, como foi o caso do presidente da CONTAG Lindolfo Silva, ou no próprio país, abrindo mão ate mesmo de sua identidade, como ocorreu com Elizabeth Teixeira, líder das ligas camponesas da Paraíba (MEDEIROS, 1985, p.86).
Para Coletti (1998), o golpe militar de 64 pôde revelar a verdadeira natureza da
estrutura sindical oficial, correspondente a um poderoso instrumento de controle nas mãos do
Estado. Foi por esta razão que o regime ditatorial militar tratou de preservar os sindicatos não
obstante a vontade dos proprietários rurais, que guiados por seus interesses imediatos queriam
vê-los destruídos.
Segundo Boito Júnior (1991) o modelo ditatorial de gestão nos sindicatos é um efeito
da estrutura sindical oficial, uma espécie de consequência direta da mesma.
É preciso frisar que o modelo ditatorial de controle dos sindicatos é uma consequência da estrutura sindical. Não uma consequência mecânica, já que a sua existência depende também da correlação política de forças, mas uma consequência, porque tal modelo só é possível graças a existência da estrutura sindical que lhe serve de base.
40
O Estado impõe um estatuto padrão, controla o processo eleitoral, depõe uma diretoria sindical eleita ou controla as finanças do sindicato na medida em que a representação sindical e os próprios recursos financeiros são uma outorga sua. Ao depor uma diretoria, ação bastante comum até 1984, o Estado está simplesmente retirando uma representação que, anteriormente, ele próprio concedera (BOITO JÚNIOR, 1991, p.53).
Reconhecendo que a estrutura sindical oficial é reforçada e aprofundada pelo modelo
ditatorial de gestão, no presente estudo gostaríamos de ponderar que concebemos esta e o
próprio aparelho de Estado como uma consequência direta da luta de classes, como um
elemento direto da mesma. Neste sentido, em alguns momentos, para Boito Júnior (1991) o
sindicalismo de Estado parece encerrar em si mesmo uma forma de controle, o que não o
deixa de ser, mas gostaríamos de frisar que esta forma de controle emana de uma determinada
necessidade de classe e que corresponde aos interesses postos no âmbito desta luta entre os
setores em conflito na sociedade capitalista.
Sendo assim, no quadro abusivo de intervenções e de desestruturação do sindicalismo
rural, de toda estrutura organizativa que vinha sendo construída anteriormente ao golpe,
dentro da própria vertente cristã conservadora começaram a surgir oposições empenhadas na
defesa dos direitos dos trabalhadores. Em 1967, foram convocadas novas eleições para a
diretoria da CONTAG e surgiu uma chapa de oposição, contudo, também ancorada na
vertente cristã do sindicalismo.
Liderada por José Francisco da Silva, proveniente da Zona da Mata Pernambucana, a nova chapa incorporou o tesoureiro da gestão anterior, (...). Vencedor por apenas um voto, esse grupo vai tentar reorganizar o sindicalismo no país, com base na defesa dos “direitos”,
reforma agrária e previdência social (MEDEIROS, 1985, p. 92).
É importante sublinhar que esta nova gestão da entidade não veio a significar ruptura,
mas sim a continuidade e aprofundamento do legalismo sindical. Segundo Coletti (1998 apud
Novaes, 1998) era preciso muito cuidado e muita cautela para permanecer à frente das
entidades sindicais nos anos de estabilidade do regime militar (1968-78), e esta situação teria
gerado um determinado tipo de dirigente sindical, cuja estratégia de sobrevivência baseava-se
na ação prudente, que significava, antes de tudo, jamais desafiar o Estado.
Foi nesse contexto, após um processo de profunda desestruturação do sindicalismo
classista, que a ditadura militar tratou de instituir o Programa de Assistência ao Trabalhador
Rural - PRORURAL, mais conhecido como o FUNRURAL. O mesmo transformou os
organismos sindicais em prestadores de serviços previdenciários aos trabalhadores rurais -
aposentadoria por velhice e invalidez, auxílio - doença, assistência médica e odontológica,
pensão por morte, auxílio – funeral, etc. - processo no qual pela prática do assistencialismo
41
em detrimento da mobilização da classe os sindicatos foram reduzidos a agenciadores estatais
no campo.
Coletti (1998) relata a prática sindical do “envio de correspondências”, através da qual
a ação sindical limitava-se a relatar, respeitosamente, as queixas dos trabalhadores rurais às
entidades do governo, esperando do Estado a resolução dos eventuais conflitos e pendências.
Para o autor esse processo deu forma às tendências que prevaleceram no âmbito do
sindicalismo rural oficial após abril de 64 e durante toda década de 1970: legalismo,
prudência, imobilismo, clientelismo e assistencialismo.Independentemente de seus objetivos e
vontades, eram transformados [os sindicatos] em correia de transmissão de determinados
interesses do governo (COLETTI, 1998, p.86).
O 3° Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, realizado em 1979, trouxe uma
conjuntura particular para o surgimento de diferentes concepções de ação sindical no
interiordo movimento. Os efeitos da política agrária dos governos Geisel e Figueiredo
estavam sendo plenamente sentidos no campo: acentuavam-se a violência, a pobreza, e os
conflitos por terra. Estava claro que o governo Figueiredo não tinha intenção em alterar a
estrutura fundiária do país, além do que, os recursos à justiça para garantia dos direitos dos
trabalhadores rurais esbarravam em estruturas comprometidas com os donos de terras.
Foram encaminhadas novas formas de luta: o estímulo à mobilização, a ênfase nas
ações de resistência e a valorização de enfrentamentos diretos como pressões coletivas dos
trabalhadores. Contudo, as deliberações não conseguiram ser cumpridas, devido à própria
conjuntura de assistencialismo na maioria dos sindicatos de base e à paralisia de grande parte
das direções sindicais.
O movimento vivia os efeitos da intervenção militar, na qual os sindicatos se
convertem em agência estatal, simbolizando mesmo um “braço” do Estado no campo. Nesse
contexto, sob a ideologia do legalismo sindical, as políticas do Estado e as políticas do
sindicato desempenham a mesma função, a de amortecer a luta de classes e promover a
administração institucional dos conflitos, com vistas ao seu arrefecimento, dando forma uma
ação sindical moderada.
Desta feita, em finais da década de 1970 e início dos de 1980, surgiram no campo
movimentos que explicitaram com maior vigor as contradições contidas no processo de
valorização do capital, colocando novos elementos no tocante à representação, polemizando o
modelo sindical contaguiano e acirrando a disputa política na base dos trabalhadores rurais, e
foi nesses movimentos que residiu a gênese do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem
Terra – MST.
42
Para Fernandes (1999), o MST nasceu em um processo de enfrentamento e resistência
contra a política de desenvolvimento agrícola instaurada durante a ditadura militar. Esse
enfrentamento é entendido no seu aspecto mais geral de luta contra a expropriação e contra a
exploração característicos do desenvolvimento do capitalismo no campo, onde a pauta política
da luta pela terra garantiu a unidade de diversos movimentos que então eclodiam
regionalmente. A partir de um encontro nacional realizado na região de Cascavel em 1984,
pôde-se avançar na organização de um movimento de camponeses sem terra em nível
nacional com a articulação dos diversos movimentos que estavam acontecendo em nível
localizado. Nesse sentido,
As lutas que marcaram o princípio da história do MST foram as ocupações das glebas Macali e Brilhante, no município de Ronda Alta – RS, em 1979; a ocupação da fazenda Burro Branco, no município de Campo Erê-SC, em 1980, ainda nesse ano, no Paraná, o conflito entre mais de dez mil famílias e o Estado que, com a construção da Barragem de Itaipu, tiveram suas terras inundadas e o Estado propôs apenas a indenização em dinheiro; em São Paulo a luta dos posseiros da fazenda Primavera nos municípios de Andradina, Castilho e Nova Independência; no Mato Grosso do Sul, nos municípios de Naviraí e Glória de Dourados, milhares de trabalhadores rurais arrendatários desenvolviam uma intensa luta pela resistência na terra. Outras lutas também aconteciam nos estados da Bahia, Rio de Janeiro e Goiás (FERNANDES, 1999, p. 66).
O autor relata que o caráter novo contigo nessas lutas residia na valorização de
experiências construídas no interior das próprias lutas populares, que desafiavam as formas
institucionais através de rupturas com tradições e práticas conhecidas, por onde passaram a
lançar mão de estratégias político-culturais construídas no âmbito da sua própria experiência
de lutas. Sendo assim, a criação de uma nova forma de organização social aparece como uma
necessidade política diante dos limites que as estruturas convencionais das instituições
envolvidas na luta pela terra – o sindicato, a Igreja e os partidos - apresentavam. Para
Fernandes (1999), essas instituições contribuíam dentro dos limites de suas estruturas. Para
ele, a reforma agrária consta no programa dessas instituições como um objetivo a atingir, mas
não são elas os sujeitos realizadores desse processo. “Essas instituições aparecem no cenário
da luta como apoio, por meio das alianças, mas de fato os verdadeiros realizadores são os
trabalhadores, são eles que fazem a luta” (FERNANDES, 1999, p. 68). Dessa forma, os novos
movimentos sociais irrompem na conjuntura política de redemocratização, e
mostravam que havia recantos da realidade não recobertos pelos discursos instituídos e não iluminados nos cenários estabelecidos da vida pública. Constituíram um espaço público além do sistema da representação política. Através de suas formas de organização e de luta, eles alargaram as fronteiras da política. Neles apontava-se a autonomia dos sujeitos coletivos que buscavam o controle das suas
43
condições de vida contra as instituições de poder estabelecidas (SADER apud FERNANDES, 1999, p. 68)
Os trabalhadores do campo, no momento em que construíam seu próprio espaço,
passavam por um processo de socialização da política, pelo que puderam elaborar formas de
luta que somavam para o enfrentamento político nos diversos níveis de relações sociais. Foi
dessa forma que ampliaram o sentido da luta pela terra, esta ultrapassa a acepção meramente
econômica e converte-se num projeto político e cultural de transformação da realidade, de
contestação da ordem social da propriedade, pelo que os trabalhadores passam a causar
transformações concretas nas relações de dominação estabelecidas. Já no referido Encontro
Nacional realizado em 1984, o MST elabora os objetivos gerais do movimento, onde se tem:
Que a terra só esteja nas mãos de quem trabalha nela; Lutar por uma sociedade sem exploradores e sem explorados; Ser um movimento de massa autônomo dentro do movimento sindical para construir a reforma agraria; Organizar os trabalhadores rurais na base; Estimular a participação dos trabalhadores rurais no sindicato e no partido político; Dedicar-se à formação de lideranças e construir uma direção política dos trabalhadores; Articular-se com os trabalhadores da cidade e da América Latina (MOVIMENTO...apud FERNANDES, 1999, p. 79).
Em 1985, sob o impacto das “diretas já” e a ascensão do movimento de massas na
sociedade brasileira, quando da abertura do regime militar, é realizado o 4° Congresso
Nacional dos Trabalhadores Rurais, e algumas divergências já apontadas no 3° Congresso8
surgiram com força maior, referindo-se à atuação pautada na legalidade como espaço de
disputa e, por outro lado, a negação dessa legalidade, vista como mecanismo de contenção da
verdadeira reforma agrária, como havia sido o caso do Estatuto da Terra. É importante
salientar que a conjuntura do novo sindicalismo no campo esteve relacionada ao surgimento e
fortalecimento das oposições sindicais – que formavam as correntes articuladas em torno do
MST e da CUT/RURAL. A CUT é fundada em 1983, logo instaura o Departamento Nacional
de Trabalhadores Rurais - DNTR, que passa a disputar com a CONTAG a direção de
sindicatos de base e federações no campo.
Isso porque até então entre as duas centrais existiam divergências quanto a concepção
da ação sindical. A CUT acusava o excessivo legalismo e “prudência” da ação contaguiana,
dos quais são exemplos históricos a postura frente ao Estatuto da Terra e o apoio ao Plano
8O 3° Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais aconteceu no ano de 1979 em Brasília, DF, já o 4° Congresso Nacional de Trabalhadores Rurais aconteceu de 25 a 30 de maio de 1985, também no Distrito Federal.
44
Nacional de Reforma Agrária - PNRF durante a nova república. Este apoio viabilizou a
participação de ministros do Estado no congresso nacional da CONTAG daquele período e a
nomeação de quadros do movimento para a composição de cargos no governo. Sobre o
Estatuto da Terra, aprovado no congresso nacional em 1964, este se destacou por prover
desapropriações territoriais com os títulos da dívida pública, contemplando o tema da
Reforma Agrária. Porém, a medida engendrou contradições particulares na relação do governo
com o movimento sindical, haja vistas sua utilização como instrumento desmobilizador das
lutas, apenas quando na iminência dos conflitos e tensões sociais, despida de qualquer caráter
classista, como aponta Martins (1986).
Durante a realização do 4° CNTR, a oposição à direção da CONTAG, então formada
pelos setores organizados em torno da CUT/RURAL e do MST, apontava para a necessidade
de estabelecer parâmetros de atuação para além dos mecanismos legais instituídos pelo
governo. No entanto, o legalismo sindical havia se enraizado de tal maneira no sindicalismo
oficial rural que mais de vinte após a promulgação do Estatuto da Terra, a direção da
Confederação assinalava que abrir mão deste ainda implicava deixar espaço para um vazio
legal que levaria a uma perda política para os trabalhadores. Permaneceu a concepção da ação
sindical amparada nas bases legais do governo e o apoio ao Estatuto da Terra.
Vê-se por isso que, após a abertura do regime militar, como aponta Medeiros (1989)
A parcela majoritária do sindicalismo rural hegemonizado pela CONTAG levou até o limite sua concepção de que a participação em órgãos no interior do aparelho do Estado poderia ampliar brechas de atuação, aliada à tese de que qualquer atitude mais direta de confronto poderia colocar em risco os interesses dos trabalhadores rurais, (...) ao mesmo tempo em que isso se dava, ocorriam acampamentos e ocupações de terra, completamente fora de seu controle. (MEDEIROS, 1989, p.205).
Pôde-se concluir a partir do exposto, que historicamente o sindicalismo rural
organizado em torno da CONTAG guarda peculiaridades históricas que conformam uma
tendência legalista e institucional de atuação. Desde a época de reorganização após a ditadura
militar, com a realização dos primeiros congressos de trabalhadores rurais pós-intervenção,
que permaneceram as teses amparadas nas bases legais do governo, como se qualquer atitude
mais direta de confronto colocasse em risco os interesses dos trabalhadores rurais.
De fato, ao que parece, a tendência política que prevaleceu no âmbito do sindicalismo
rural oficial foi aquela da conciliação de classes, que tem suas origens na articulação com a
ala conservadora da Igreja. Apoiada pela ditadura militar, essa vertente conformou em bases
sólidas determinada postura sindical diante dos governos, que retomando Coletti (1998),
remeteu a uma práxis sindical marcada pelo legalismo, prudência diante do Estado e pela
45
prática do assistencialismo. Configurou-se assim uma atuação mais ligada a conciliação de
interesses entre as classes do que ao enfrentamento direto. Dessa intervenção da Igreja
financiada pela ditadura parece ter resultado um sindicalismo amparado em excessivo
legalismo e ausente de direções dispostas a apropriarem-se de outras estratégias de luta
política fora do espaço “permitido” pelo Estado.
Essa determinada forma de se relacionar com o Estado, apostando na administração
institucional das reivindicações dos trabalhadores, retomando Boito Jr., decorre de uma
compreensão mitificada do aparelho do Estado, tido como uma entidade supostamente acima
das classes sociais, com o fim último de atender as necessidades de todos os setores da
sociedade e solucionar os conflitos.
Essa práxis sindical decorre do que Montaño e Duriguetto (2010, p.121) denominam
de sindicalismo corporativista, o qual
Tem origem nas primeiras décadas do século XX, durante a vigência do fascismo na Itália. Foi instituído por Mussoline através da carta Del Lavoro, que organizou os sindicatos nos moldes de corporações subordinadas e dependentes do Estado. Esse atrelamento dos sindicatos ao Estado visava transformar os primeiros em órgãos voltados para a conciliação entre trabalho e capital.
A resultante é um processo através do qual as políticas do sindicato tendem a
representar os interesses do Estado e não dos trabalhadores.
3.2Sindicalismo rural nos anos 90: filiação da CONTAG à CUT e adesão à ideologia sustentável. O inicio da década de 1990 guarda características particulares profundamente sentidas
no interior das organizações sindicais.
As transformações no mundo do trabalho que se disseminaram no Brasil – expressas
na introdução de novas tecnologias de produção e no desemprego estrutural, na
desregulamentação do trabalho, nas terceirizações e no trabalho temporário – significaram
uma crescente fragmentação e complexificação das formas de ser e de viver da classe
trabalhadora, com impacto direto na ação sindical (ANTUNES, 1995).
Sobre esse processo, Mota (1995) afirma que as novas formas de gestão da produção
materializadas no movimento de reestruturação produtiva – que no Brasil fez-se sentir
tardiamente pela sua condição de país capitalista periférico9 - requerem novas formas de
9Segundo Ferrari (2005) no Brasil a reestruturação produtiva foi imposta de fora para dentro do país tardiamente, somente na década de 1990.
46
controle do capital sobre o trabalho. Esse movimento levou a socialização de novos valores,
de uma nova concepção de mundo ancorada na necessidade de outros padrões de
comportamento, os quais tornam compatíveis com as mudanças na esfera da produção as
novas configurações na esfera das relações sociais.
A reestruturação produtiva seria uma
iniciativa inerente ao estabelecimento de um novo equilíbrio instável que tem, como exigência básica, a reorganização do papel das forças produtivas na recomposição do ciclo de reprodução do capital, tanto na esfera da produção como na das relações sociais (MOTA, 1995, p.65).
Nesse sentido, frente às experiências de organização das classes trabalhadoras
vivenciadas no país quando da redemocratização, não interessa mais à burguesia restringir o
seu domínio ao controle da produção, mas exercer o seu poder enquanto classe hegemônica
que socializa a sua concepção de mundo e de reprodução da vida social como os únicos
vetores de civilidade e organização da vida em sociedade. Os trabalhadores são chamados a
colaborarem ativamente para as mudanças requeridas pelo processo de reestruturação
produtiva, contribuindo para que se desenvolva uma crise do sindicalismo de classe e sua
conversão num sindicalismo de colaboração e parceria com os governos e o patronato.
Nos dizeres de Antunes (1995) “as diversas formas de resistência de classe encontram
barreiras na ausência de direções dotadas de uma consciência para além do capital”. Tão
logo, na correlação de forças entre classes característica do período pós-constituinte no Brasil,
período que marca a inserção do neoliberalismo no país, assiste-se ao esfacelamento de uma
concepção de mundo dos trabalhadores e de suas organizações, bem como ao aprofundamento
da crise estrutural do sistema capitalista, como duas faces de uma mesma moeda. No âmbito
do sindicalismo rural, no decorrer dos anos noventa, alguns acontecimentos particulares ao
mesmo tempo em que marcam sua história desvelam um cenário interessante para a análise
crítica, requerendo um olhar atento.
No VI Congresso da CONTAG, em 1995, ocorre a filiação desta confederação à CUT.
Favareto e Bittencourt (1999), vão referir-se a alguns detalhes deste congresso. Segundo
estes, o caráter da transição foi marcado por um pacto de unidade entre a CUT/RURAL e os
setores tradicionais da CONTAG.
Neste momento foi extinto o Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais da CUT
- DNTR/CUT, pelo fato das tendências majoritárias daquela central terem assumido o
posicionamento de integrar a CONTAG a sua própria estrutura, ao invés da disputa por
sindicatos na base, prática recorrente nos anos oitenta e que foi a marca do novo sindicalismo
47
no campo, onde MST e DNTR/CUT passam a formar oposições sindicais. Quanto às
dubiedades da estrutura sindical corporativista assimilada pelos setores tradicionais do
sindicalismo rural no decorrer de sua história, nos anos noventa os setores majoritários da
CUT resolvem assumir a importância da mesma.
Esse movimento pode ser explicado, sobretudo, pela guinada política dada pela CUT
na virada nesse período. Sobre esse processo tem-se, de acordo com Alves (2000), que a era
neoliberal imprimiu uma mudança qualitativa na direção do “novo sindicalismo”, tendo
passado de uma orientação de confronto para uma orientação dita “propositiva”. Assistiu-se
ao desenvolvimento de um “sindicalismo de resultados”, mais disposto ao diálogo do que ao
confronto com o capital, pela adesão de uma determinada práxis sindical ligada à
“concertação social”. Nesse sentido, a filiação da CONTAG à CUT deu-se mesmo numa
conjuntura de burocratização e incorporação desta entidade à ordem capitalista, bastante
diversa do contexto de lutas que marcou a atuação no campo do extinto DNTR/CUT.
Estudos apontam que aliado à assimilação da estrutura oficial legal historicamente
privilegiada pela CONTAG, os setores majoritários da CUT amadureceram o posicionamento
de afirmação da agricultura familiar como a via mais acertada no que se refere às iniciativas
de desenvolvimento rural, apresentando o que seria um novo conteúdo para ação do
movimento, num esforço de renovação das bandeiras encampadas anteriormente. Sobre esse
processo, é sabido que:
Um conjunto de proposições historicamente formulado no campo da CUT sobre alternativas de desenvolvimento rural, com implicações para a definição das bandeiras de luta, reivindicações de políticas públicas, e etc. – vem sendo absorvida pela CONTAG sem hesitação, o que lhe tem garantido, inclusive, a renovação de seu discurso (...) (FAVARETO; BITTENCOURT, 1999, p.367).
Foi nesse período histórico que novos conteúdos e práticas trazidos pela CUT são
absorvidos pela CONTAG: o debate acerca de um modelo de desenvolvimento rural
alternativo e sustentável.
Favareto e Bittencourt (1999) apontaram como fatores influentes nesse processo o
desgaste e esvaziamento das tradicionais bandeiras de luta do movimento sindical rural
referentes à reforma agrária e aos direitos trabalhistas, devido o excessivo legalismo com o
qual foram tocadas. Segundo os autores estas foram sendo tomadas por outros protagonistas,
como no caso da reforma agrária pelo MST, ou esvaziadas, como no caso dos direitos
trabalhistas, devido a reestruturação dos postos de trabalho no campo e a redução do número
de assalariados rurais. Somando-se a isso, o debate sobre alternativas de desenvolvimento
naquele período vinha atravessando as esferas acadêmicas e governamentais por conta da
48
crise do modelo de desenvolvimento agrícola. Documentos de agências, organismos
multilaterais10 e organizações do empresariado rural apontavam a necessidade de um
desenvolvimento sustentável sob as bases da agricultura familiar.
Nesse sentido, o que interessa-nos reter para os fins do presente estudo reside no fato
de que, na entrada dos anos 90, ao mesmo tempo em que a ação sindical corporativista foi
preservada e que uma crise de grande dimensão atingiu as organizações sindicais dos
trabalhadores, um novo direcionamento foi impresso para o conteúdo daação sindical no
campo, a partir da “junção” de dois grandes capitais políticos – CUT/RURAL e CONTAG. O
intuito seria o de apresentar um saldo político de renovação das bandeiras do movimento, que
então se desgastava pelo excessivo legalismo e burocratismo da sua trajetória, ao mesmo
tempo, a conjuntura em que se deu esta filiação da CONTAG à CUT foi marcada por um
processo de burocratização e integração desta última à ordem capitalista.
Neste novo direcionamento político, os autores supramencionados afirmam que
a reforma agrária passa a ser vista como um meio, um instrumento para a expansão da agricultura familiar, e essa como a base para uma nova forma de organizar o espaço social e econômico do meio rural brasileiro. São várias as implicações dessa mudança, e, entre as mais importantes, uma que merece destaque é um deslocamento da percepção sobre as demandas sindicais e a transformação social. O discurso sindical passa a privilegiar a promoção de um desenvolvimento rural em novas bases, a partir do fortalecimento de um de seus agentes, a agricultura de base familiar. Trata-se, então, de buscar alternativas dentro do quadro vigente, transformando-o. (FAVARETO; BITTENCOURT, 1999, p. 376).
Da mesma forma, a partir de pesquisa do Projeto CUT-CONTAG do ano de 1998,
realizada em parceria entre essas forças sindicais do urbano e rural com o objetivo de reunir
elementos para elaboração de um diagnóstico da situação atual do sindicalismo rural
brasileiro, e que adotou comoprocedimentos metodológicos entrevistas com dirigentes e
documentos levantados nas Federações Estaduais, é perceptível que no decorrer dos anos de
1990 aprofundou-se a discussão e ganhou centralidade a defesa de um Projeto Alternativo de
Desenvolvimento Rural Sustentável - PADRS.
A pesquisa do projeto CUT-CONTAG (1998), em consonância com outros estudos
também apresenta que dentro das lutas encaminhadas pelo movimento sindical a categoria dos
agricultores familiares foi privilegiada nos últimos anos. Verificou-se a existência de um
grande número de discussões sobre temas ligados à política agrícola direcionada ao pequeno
10Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD e Banco Mundial.
49
produtor, ligadas ao crédito, associativismo e iniciativas de mercado que parece ser prioritária
para o movimento.
Destarte, o estudo das categorias centrais desse projeto de desenvolvimento alternativo
bem como de seu impacto para luta de classes constitui-se no objeto de estudo da presente
pesquisa e poderá ser visto no capítulo terceiro que se segue. A pesquisa foi realizada
basicamente a partir da análise dos anais dos congressos nacionais da CONTAG ocorridos a
partir de meados dos anos noventa, período que marcou sua filiação à CUT, bem como dos
que adentraram os anos 2000, e de pesquisa bibliográfica.
50
4AGRICULTURA FAMILIAR, SUTENTABILIDADE E A NOVA
RETÓRICA DAS ELITES RURAIS: CONTEXTO MAIS GERAL DE
CONSOLIDAÇÃO DA HEGEMONIA DO AGRONEGÓCIO.
4.1O âmbito da proposta sindical
No capítulo primeiro discorri sobre os complexos processos históricos e econômicos
que marcaram o desenvolvimento do capitalismo na agricultura, o “atraso” das relações
sociais estabelecidas no campo, que de toda forma subsidiou o desenvolvimento do padrão
urbano-industrial a partir dos anos de 1930, com o estabelecimento relações sociais
“modernas”, bem como sobre os elementos que contribuíram para o surgimento e atualização
de uma questão camponesa no Brasil. Esta emergiu associada à condição subordinada dos
trabalhadores rurais que se reproduziram dentro ou fora da grande propriedade, no decorrer do
avanço da efetivação dos interesses das classes dominantes no campo, sejam dos proprietários
de terras, sejam, em meados dos anos de 1960, da burguesia industrial, que em associação
com aquela, nesse período, iniciou um projeto de modernização e adoção de novas
tecnologias sem precedentes do campo.
No segundo capítulo, após traçar um histórico do sindicalismo rural com recorte na
prevalência de uma tendência conciliatória entre as classes, fiz referência a sua configuração
nos anos noventa, onde foi mencionado que após a filiação da CONTAG à CUT, no VI
Congresso Nacional daquela entidade em 1995, num contexto de retrocesso do sindicalismo
classista e avanço do sindicalismo de colaboração entre as classes, foi amadurecida a
afirmação da agricultura familiar como o norte prioritário do sindicalismo rural, e esta
categoria parece ter assumido a forma da renovação das suas bandeiras e do seu discurso.
Nesse sentido, um conjunto de proposições historicamente formuladas no âmbito da CUT no
que se refere às alternativas de desenvolvimento foi absorvido pela CONTAG, com destaque
para o debate acerca de um modelo de desenvolvimento rural alternativo e sustentável.
Neste momento, com o intuito de entender o real direcionamento desta pauta política
foi que realizamos uma análise das produções do movimento sindical rural sobre o seu Projeto
Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável - PADRS, mais especificamente dos anais
de seus eventos nacionais, quais sejam, dos Congressos Nacionais de Trabalhadores e
Trabalhadoras Rurais – CNTTR‟s, sobretudo, por sintetizarem o acúmulo teórico e político do
movimento em torno da pauta do desenvolvimento sustentável centrado na agricultura
51
familiar. Foram analisados o 6° CNTTR (1995), de tema “Nem fome, Nem Miséria o Campo
é uma Solução”, o 7° CNTTR (1998), de tema “Rumo a um Projeto Alternativo de
Desenvolvimento Rural Sustentável”, o 8° CNTTR (2001), de tema “Avançar na Construção
de um Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável”, o 9° CNTTR (2005), cujo
tema não está expresso nos anais, e o 10° CNTTR (2009), de tema “Desenvolvimento
Sustentável com Distribuição de Renda e Cidadania para os Trabalhadores e Trabalhadores
Rurais” todos realizados na cidade de Brasília – DF, onde está sediada a CONTAG.
Nesse sentido, a fim de realizar uma síntese interpretativa dividi o material
selecionado para análise em quatro temas centrais, quais sejam: Concepção de
Desenvolvimento; Reforma Agrária Centrada na Agricultura Familiar; Novo Perfil de
Agricultor e Atuação Institucional na Efetivação do PADRSS.Esses temas informam o
conteúdo e as linhas gerais do PADRS associados às inferências realizadas sobre o seu
conteúdo a partir de pesquisa bibliográfica.
4.1.2 Concepção de desenvolvimento No 6° Congresso Nacional de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais – CNTTR (1995),
o movimento sindical passa a fazer referências a dois modelos de desenvolvimento agrícola, o
modelo dominante "neoliberal predatório", movido pelo agronegócio, e outro "alternativo", de
cunho "sustentável", que entãoencaixar-se-ia nos moldes da produção agrícola em unidades
familiares. Nesse sentido, o texto sindical apresenta que o modelo dominante de
desenvolvimento da agricultura tem revelado efeitos sociais e ambientais desastrosos para a
maioria das populações rurais e também urbanas.
No referido congresso tem-se que o modelo dominante de desenvolvimento rural
aprofunda a exclusão social eo desemprego ao mesmo tempo em que é concentrador de terra e
renda,tem sido o maior responsável pela violência no campo, expressa pelo assassinato de
trabalhadores e lideranças sindicais, revelando-se incapaz de apoiar a superação da pobreza.
Ainda são apontados como decorrentes desse modelo de desenvolvimento o intenso êxodo
rural e o padrão tecnológico hegemônico, marcado pelo uso intensivo de adubos químicos,
agrotóxicos, hormônios, corantes, alto consumo de energia, dependência de insumos
industriais, caro e exigente em quantidade de terras.
Tão logo, o padrão de desenvolvimento sustentável é posto como alternativa ao
modelo dominante de desenvolvimento rural. O movimento assinala que
52
a passagem para um padrão de desenvolvimento sustentável, assentado na agricultura familiar, na agroecologia e na preservação e equilíbrio dos ecossistemas é uma opção de desenvolvimento que coloca em jogo estruturas, interesses e formas de organização do conjunto da sociedade, correspondendo a um processo longo e complexo (CONGRESSO NACIONAL DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS, 1995).
É no 7° Congresso Nacional de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais - CNTTR
(1998) que o movimento aprofunda os conceitos e lança formalmente o Projeto Alternativo de
Desenvolvimento Rural Sustentável – PADRS, que a partir do 9° CNTTR teve o termo
“Solidário” anexado a sua nomeclatura, passando a denominar-se Projeto Alternativo de
Desenvolvimento Rural Sustentável Solidário – PADRSS.
A partir da segunda metade dos anos de 1990 e no decorrer dos anos 2000 essa
proposta assume a centralidade da pauta sindical, a maioria de suas reivindicações e a maior
parte de sua agenda de lutas vai inserir-se no horizonte da efetivação deste projeto, em uma
concepção de desenvolvimento específica, calcada na possibilidade de conciliar crescimento
econômico, justiça, participação social e preservação ambiental.
No 7° CNTTR (1998) tem-se que,
O desenvolvimento deve incluir crescimento econômico, justiça, participação social e preservação ambiental, (...) deve privilegiar o ser humano na sua integralidade, possibilitando a construção da cidadania. As questões econômicas, portanto, têm que estar articuladas as questões sociais, culturais, políticas, ambientais e às relações sociais de gênero e raça.(...) as lutas dos trabalhadores e trabalhadoras pela terra, política agrícola diferenciada, políticas sociais e direitos trabalhistas se inserem na construção de um projeto alternativo de desenvolvimento baseado na expansão e fortalecimento da agricultura em regime de economia familiar.
No 8° Congresso Nacional de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais - CNTTR (2000),
aprofundando a proposta de desenvolvimento rural sustentável, o movimento localiza o seu
projeto alternativo no interior dos debates acerca da falência dos modelos de desenvolvimento
do pós-segunda guerra mundial e da necessidade de novos paradigmas que assegurem
condições dignas de existência às futuras gerações. Da mesma forma, a necessidade de aliar a
capacidade produtiva dos empreendimentos agrícolas à justiça social e ao respeito ao meio
ambiente parece ser imperativo na efetivação do PADRS, com ênfase na centralidade da
preocupação com a “inclusão social”, como pode ser observado na citação que se segue.
Os desgastes provocados pelos sucessivos modelos excludentes de desenvolvimento faz com que a sociedade exija das nações novos paradigmas de desenvolvimento que busquem o comprometimento com as futuras gerações, assegurando qualidade de vida da população, com equidade social e conservação ambiental (...). As alternativas propõem a construção de um desenvolvimento sustentável, que alie o incremento da capacidade produtiva à
53
equidade social e o respeito ao meio ambiente e às culturas. O centro desta proposta de desenvolvimento é a inclusão social, assegurada pela democratização do poder, da terra e da renda,com a ampliação das oportunidades de geração de emprego e ocupações produtivas, soberania alimentar e preservação do meio ambiente(CONGRESSO NACIONAL DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS, 2001,grifos nossos).
No esforço de tecer considerações acerca das questões levantadas pelo sindicalismo
rural, no que se refere a uma concepção de desenvolvimento alternativo e sustentável, é que
buscamos precisar a origem e consolidação desse conceito. A partir de Silva (2010) vemos
que essa questão da sustentabilidade vem assumindo importância crescente nas discussões em
torno do desenvolvimento e de suas alternativas nesse início de século.
Em seus estudos, a autora aponta o fato de que as taxas de crescimento econômico dos
países desenvolvidos e subdesenvolvidos não tem se revertido em melhorias nas condições de
vida da população nem em padrões racionais de exploração dos recursos naturais, o que tem
rendido um saldo de agravamento da questão social e ambiental em diversos países. Ao
mesmo tempo a crise dos modelos de desenvolvimento do pós-guerra11 assentados nas
iniciativas do Pacto Keynesiano e do bloco Soviético oferecem o terreno propício para o
debate acerca de um novo paradigma que aponte para uma relação menos agressiva com as
potencialidades naturais e humanas do planeta.
É neste contexto que ocorre um conjunto de inflexões na agenda do desenvolvimento. Na realidade, a formulação Desenvolvimento Sustentável representa uma tentativa de oferecer respostas à problemática do meio ambiente a partir de uma crítica às teorias desenvolvimentistas, hegemônicas no pós -guerra, sem, no entanto, inscrevê-las no contexto da critica ao modo capitalista de produção; em outras palavras, trata-se de uma tentativa de articular expansão capitalista e utilização racional dos recursos naturais, crescimento econômico, respeito ao meio ambiente e redução da pobreza (SILVA, 2010, p.167).
A autora supramencionada vai afirmar que é no ano de 1987, em relatório da
Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – CMMAD, comissão criada na
Conferência das Nações Unidas de 1983, que vai ser notabilizado o termo Desenvolvimento
Sustentável. Neste relatório, o Desenvolvimento Sustentável aparece como alternativa à
questão da pobreza, e é definido como sendo “aquele que atende às necessidades do presente
sem comprometer as possibilidades de as gerações futuras atenderem a suas próprias
necessidades (WCED apud SILVA, 2010, p.175)”, com forte apelo ético.
11As teorias do desenvolvimento da época estabeleceram um consenso em torno da ideia de que o desenvolvimento das forças produtivas levaria necessariamente ao desenvolvimento de todas as outras esferas da vida humana.
54
Como via para concretização desse ideal de solidariedade entre as gerações, o conceito
de Desenvolvimento Sustentável tem apontado, majoritariamente, para uma visão
tridimensional de desenvolvimento, na qual a eficiência econômica dever ser combinada com
justiça social e respeito ao meio ambiente. Neste sentido, tem se convertido num novo ideário
de desenvolvimento, mediado por diferentes interesses econômicos e sociais, com diferentes
perspectivas que oferecem respostas às questões nacionais ou globais, com hegemonia das
teses defensoras da compatibilidade entre sustentabilidade e desenvolvimento capitalista
(SILVA, 2010).
Os principais sujeitos da construção desta ideologia são os organismos internacionais,
ocupando lugar de destaque na elaboração e disseminação de seu conteúdo, com destaque
para a Organização das Nações Unidas - ONU, Banco Internacional para o Desenvolvimento
– BID e Banco Mundial – BM. Estes são os grandes disseminadores do principio da
sustentabilidade a partir da década de 1990, que aparece como um ideário supraclassista,
capaz de aglutinar amplos segmentos dos movimentos sociais, ONGs e governos, na busca de
novos referencias politico-ideológicos em resposta a crise societária que emergia com a queda
do “socialismo real” e com o fim do Estado de Bem Estar nos países de capitalismo
desenvolvido.
Numa leitura crítica acerca da disseminação desse discurso da sustentabilidade, Silva
(2010, p.180) revela a trama semântica que envolve o conceito de “Desenvolvimento
Sustentável”, a qual esconde contradições que precisam ser desveladas como mostra,
Indubitavelmente, o discurso do Desenvolvimento Sustentável se assenta em forte apelo ético. No entanto, dada a ausência de uma organização social que promova a utilização coletiva dos recursos naturais, (...) verifica-se o aprofundamento do fosso entre o discurso ético e a realidade objetiva, tendo em vista que a dimensão ética integra o interesse universal, relativa ao gênero humano como totalidade, enquanto a dinâmica societária regida pelo capital implica uma lógica particularista, individualista por natureza.
A autora ainda irá refletir acerca dos termos “desenvolvimento” e “sustentabilidade”,
estando o primeiro, no atual momento histórico, relacionado à garantia das condições de
reprodução do sistema capitalista, da sua lógica de acumulação fundada no produtivismo, que
por sua vez responde pelo uso predatório das potencialidades naturais e humanas em escala
planetária. O segundo seria originário das ciências da vida, da biologia e da ecologia, e estaria
relacionado à capacidade de cooperação entre os seres e a auto sustentação dos ecossistemas.
Logo, os dois termos apresentam-se como fundamentalmente opostos e inconciliáveis.
Silva (2010) alerta para o fato de que o lógico reconhecimento da necessidade de uma relação
racional entre sociedade e natureza por si só não suprime o fosso que separa a sustentabilidade
55
ambiental e social da dinâmica societária em curso. Sendo assim, “a proposição
Desenvolvimento Sustentável mantém intocada a dinâmica capitalista como totalidade, o que
acaba por assegurar a prevalência da sustentabilidade econômica sobre as demais dimensões
que o conceito evoca, comprometendo a sua efetividade” (SILVA, 2010, p.186).
Isto posto, a despeito de todas as contradições presentes na ideologia do
Desenvolvimento Sustentável, no Brasil, no decorrer dos anos de 1990, a mesma passa a ser
incorporada nas agendas do capital e do trabalho, respectivamente. Do ponto de vista do
trabalho, o discurso do Desenvolvimento Sustentável é incorporado pelo movimento sindical
urbano e rural num contexto de profunda crise e retrocesso do sindicalismo classista, com o
avanço do neoliberalismo e ascensão de práticas colaboracionistas e institucionais que
secundarizaram a luta direta e o enfrentamento com o capital.
Nesse sentido, a ideologia supraclassistado Desenvolvimento Sustentável passa a
oferecer “um cimento capaz de articular ações, propostas e reivindicações em nível
projetual”(SILVA, 2010, p.186) de forma a não problematizar a estrutura de classes e ao
mesmo tempo corroborar para a construção de um “clima” político inovador. No âmbito do
sindicalismo, “a defesa de um novo modelo de desenvolvimento configura o horizonte
utópico dos trabalhadores, assim como ocorre no conjunto das agencias internacionais e no
discurso empresarial” (SILVA,2010, p. 185).
4.1.3Reforma agrária centrada na agricultura familiar como a via para consolidação do padrss.
No9° CNTTR (2005), o movimento localiza politicamente o seu projeto de
desenvolvimento em contraposição as iniciativas do agronegócio, representado pela bancada
ruralista de larga expressão no Congresso Nacional. Em caráter de denúncia afirma que
Mais do que os negócios da agricultura, este setor defende um modelo de desenvolvimento para o campo baseado na grande propriedade, na produção de monoculturas para o mercado externo, utilização de agrotóxicos e de organismos geneticamente modificados, além de tecnologias que dispensam o uso de mão-de-obra. Tudo isso em nome do lucro e da produtividade, sem considerar as implicações sociais e ambientais que este modelo acarreta para esta e para as futuras gerações(CONGRESSO NACIONAL DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS, 2005).
O movimento deslegitima todas as iniciativas nesse âmbito, apresentando
sistematicamente todos os problemas sociais e ambientais decorrentes do grande espaço
conferido ao agronegócio pelos sucessivos governos e pelo próprio Estado brasileiro. Como
contraposição a concepção do agronegócio, apresenta o seu PADRSS. Sobremaneira, para o
movimento sindical rural a construção do desenvolvimento sustentável no campo não
56
encontra alicerce no atual modelo de desenvolvimento da agricultura, devendo ancorar-se na
realização de uma ampla e massiva reforma agrária a ser implementada como medida
estratégica de expansão e fortalecimento da agricultura familiar, com ênfase em sua
capacidade produtiva e de geração de emprego, renda e novos mercados.
É necessário pontuar que para o movimento sindical rural a concretização do seu
Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável Solidário - PADRSS associa-se a
ampliação das oportunidades de emprego e renda no meio rural, justamente como forma de
conciliar crescimento econômico com justiça e participação social, dando vasão à concepção
tridimensional de desenvolvimento. É nesse sentido que a realização da reforma agrária como
instrumento de viabilização da agricultura familiar é apresentada como a estratégia de
consolidação de seu projeto, de concretização da sustentabilidade. A grande justificativa
trazida pelo movimento para a ênfase dada no fortalecimento da agricultura familiar é a sua
capacidade de gerar potencialmente emprego e renda no campo, onde pela via da sua
priorização também estariam dadas as possibilidades de erradicação da miséria neste setor.
A opção pela agricultura familiar se justifica pela sua capacidade de geração de emprego e renda (da família e de outros) a baixo custo de investimento. A sua capacidade de retenção da população fora dos grandes centros urbanos é fator fundamental na construção de alternativas de desenvolvimento. Sua capacidade de produzir alimentos a menor custo e, potencialmente, com menores danos ambientais, impulsiona o crescimento de todo entorno socioeconômico local. (...) A agricultura é, portanto, o principal agente propulsor do desenvolvimento comercial e, consequentemente, dos serviços nas pequenas e médias cidades do interior do Brasil. Basta criar incentivos à agricultura para que se obtenham respostas rápidas nos outros setores econômicos, pelo seu efeito multiplicador (CONGRESSO NACIONAL DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS,1998).
A partir de então a reforma agrária é vista como um meio para consolidar a agricultura
familiar. Esta última assume a centralidade da proposta de reforma agrária do movimento e a
sua ampliação e consolidação seria a própria finalidade de realização da reforma agrária, sua
razão de ser.
O MSTTR propõe a construção de um desenvolvimento rural sustentável em que o elemento fundamental é a realização de uma ampla e massiva reforma agrária, não apenas como mecanismo distributivo de terras, mas como medida eficaz para promover a ampliação, valorização e fortalecimento da agricultura familiar(CONGRESSO NACIONAL DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS, 2005).
No 6° CNTTR (1995), estimou-se que existiam no campo cerca de quatro milhões de
famílias miseráveis. Com a realização da reforma agrária centrada na agricultura familiar,
hipoteticamente foi apresentado um cálculo no qual o assentamento destas quatro milhões de
57
famílias em regime de economia familiar criaria doze milhões de postos de trabalho em
ocupações produtivas, tendo em vista o fato de cada unidade familiar empregar em média três
de seus membros. O movimento argumenta que para cada emprego direto, dois empregos
indiretos poderiam ser gerados, o que representaria o surgimento de vinte quatro milhões de
novos postos de trabalho.
No contexto da proposta sindical, a absorção de todo esse contingente no mercado
produtivo significa a transformação substancial da realidade socioeconômica do país. Nesse
sentido, são ressaltados os prismas da equidade, sustentabilidade e competitividade, além da
importância da adaptação econômica dos agricultores assentados nesse processo.
A Reforma Agrária deve ser instrumento de uma política agrária abrangente dentro de uma estratégia de desenvolvimento rural que priorize o modelo familiar de agricultura, permitindo o acesso à terra a todos os trabalhadores sem terra e àqueles que têm terra insuficiente para o seu sustento e o de sua família, sob o prisma da equidade, sustentabilidade e competitividade. (...) Os projetos de assentamentos são fundamentais para a consolidação do processo de reforma agrária, dentro de uma estratégia de promoção da agricultura familiar que assegure ao núcleo familiar renda e condições de vida e trabalho dignas, adaptando-se à dinâmica econômica, com preservação do meio ambiente, garantia de crédito, assistência técnica, comercialização, infraestrutura, tecnologia apropriada e sustentável, educação massiva, etc., na perspectiva da autogestão e da sustentabilidade(CONGRESSO NACIONAL DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS,1995, grifos nossos).
Nesse sentido, para concretização do ideal de sustentabilidade que aparece no discurso
sindical - este colocado em contraposição as iniciativas do agronegócio e como saída
apontada para superação dos problemas sociais no campo - o movimento aponta para uma
estratégia de desenvolvimento rural associada ao modelo familiar de agricultura que pode
propiciar geração de renda e condições de vida e trabalho dignas. Este modelo parece requerer
uma necessária adaptação à dinâmica econômica por parte dos trabalhadores rurais
assentados. Inferimos que essa necessária adaptação econômica está ligada a sua inclusão no
mercado produtivo de alimentos, que para gerar os efeitos sociais almejados parece requerer o
desenvolvimento de um contexto determinado que justamente relacione competitividade com
justiça social e preservação do meio ambiente.
Justificando a centralidade conferida à agricultura familiaro movimento acrescenta o
argumento relacionado à importância desta na produção de alimentos para o mercado interno.
Sobre essa questão está descrito no 6° CNTTR (1995) que
os estabelecimentos agropecuários com menos de cem hectares, cujas áreas somadas correspondem a 21 % do todo dos estabelecimentos
58
existentes, respondem por uma expressiva participação na produção agrícola do país: 87% da mandioca, 79% do feijão, 69% do milho, 66% do algodão, 46% da soja, 37% do arroz e 26% do rebanho bovino.
Já no 9° CNTTR (2005) está descrito que “a agricultura familiar responde por 38% do
valor bruto da produção agropecuária, ocupa 77% da mão-de-obra no campo e é responsável
por 51% da produção de alimentos que chegam à mesa da população brasileira”. Nesse
sentido é proposta uma política agrícola diferenciada voltada para este setor, que venha a
garantir, dente outras questões, preços mínimos, seguro agrícola, incentivo ao cooperativismo,
associativismo e outras formas organizadas de atuar na produção e na comercialização dos
produtos agrícolas, investimentos em pesquisas sobre novas técnicas de produção não
agressivas ao meio ambiente, etc.
No mesmo congresso, o movimento sindical faz referências a“novos paradigmas da
produção e acesso a mercados”, ligados à implantação de novas técnicas e estabelecimento
de outras relações no campo, mais solidárias e equilibradas ecologicamente, desde a produção
até a comercialização dos produtos, refere-se ao que seria um processo de “reconversão da
produção na agricultura familiar”. Tem-se que“a reconversão da produção na agricultura
familiar é uma realidade premente, principalmente frente aos novos paradigmas da produção e
acesso a mercados de forma sustentável e solidária – agroecologia, mercado justo, mercado
solidário” 9° CNTTR (2005).
No decorrer do texto o movimento sindical não deixa clara a definição exata dos
pressupostos ou fundamentos desse “mercado justo” e “solidário”, mas inferimos que o
contexto da proposta aponta para o que seria um mercado apto na absorção dos agricultores
familiares como os potenciais produtores agrícolas para satisfação das necessidades
alimentares internas, um mercado que seria a fonte geradora de renda para esse setor
específico de agricultores, que garantiria a “inclusão social” destes, sempre com o norte para a
concepção tridimensional de desenvolvimento, que concilia crescimento econômico com
justiça social e preservação do meio ambiente. No mesmo congresso o movimento afirma que
Esta agricultura familiar incorpora um valor social, econômico, cultural e ambiental, porque garante a segurança alimentar das famílias, abastece o mercado interno, tem viabilidade econômica para ser competitiva, amplia as oportunidades de geração de renda e de ocupações produtivas, se estabelece através de formas cooperativas e associativas de trabalho, deve estar associada à produção agroecológica e na convivência equilibrada com o meio ambiente (CONGRESSO NACIONAL DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS, 2005).
59
No âmbito desta concepção tridimensional de desenvolvimento, no que se refere à
preocupação com as questões ligadas ao meio ambiente, há que se ressaltar no contexto da
proposta sindical a ênfase nas iniciativas agroecológicas, que parecem atender aos requisitos
da proposta sustentável de desenvolvimento ao garantirem o equilíbrio dos ecossistemas,
destarte, afirmam que,
O manejo agroecológico favorece os processos naturais e as interações biológicas positivas, possibilitando que a biodiversidade nos agroecossistemas subsidie a fertilidade dos solos, a proteção dos cultivos contra enfermidade e pragas. (...) a agricultura familiar deve assumir a bandeira da produção agroecológica como estratégia para sua sustentabilidade (CONGRESSO NACIONAL DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS, 2005).
4.1.4 Novo perfil de agricultor.
Identificamos também que a predileção pela agricultura familiar aparece acompanhada
da necessidade de inovação e modernização tanto no âmbito da gestão da produção como no
âmbito da comercialização dos produtos agrícolas. Desta forma tem-se uma ênfase nas
práticas ligadas ao cooperativismo entre os agricultores, com recursos para crédito de custeio,
pesquisa e experimentação de novas formas de produção que sejam rentáveis e sustentáveis.
A assistência técnica e extensão rural aparecem estreitamente relacionadas com novas
tecnologias de produção visando de toda forma à inserção competitiva no mercado. Observa-
se ainda o apoio às atividades não agrícolas – agroindústrias, produção artesanal e turismo
rural - no incentivo a criação de novos mercados.
Todo esse processo parece requerer um novo perfil de agricultor e a ação sindical é
concebida no sentido de “potencializar a retomada da autoestima da população rural e o
incremento das suas capacidades produtivas” 6° CNTTR (1998). Observa-se o incentivo
àquele agricultor mais dinâmico e apto a inserção nos mercados, profissionalizado na
produção e comercialização de produtos agrícolas, formado tecnicamente para atender as
necessidades do mercado interno de alimentos. Nesse sentido, são demandadas políticas
educacionais específicas no sentido de incrementar a capacidade produtiva dos agricultores.
“(...) o próprio incremento da capacidade produtiva dos agricultores e
agricultoras familiares demandam políticas educacionais adequadas ao desenvolvimento sustentável do meio rural.É impossível pensar em mudanças enquanto se mantiverem os atuais níveis de analfabetismo no campo, impossibilitando o acesso dos trabalhadores e trabalhadoras às informações necessárias ao desenvolvimento de novas tecnologias. (...) Num mundo em constante mutação, onde a questão tecnológica assume papel preponderante na capacidade de integração ao sistema produtivo , é preciso uma mudança radical do ambiente educacional até agora oferecido aos trabalhadores e trabalhadores rurais e seus familiares no meio rural (CONGRESSO
60
NACIONAL DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS,2001, grifos nossos).
Neste aspecto, observa-se que a preocupação do movimento sindical com o elevado
índice de analfabetismo no campo relaciona-se com a preocupação da formação técnica dos
agricultores, no sentido da assimilação de novas tecnologias mais modernas de produção, o
que revela uma perspectiva determinada de formação, não diretamente relacionada ao pleno
desenvolvimento das potencialidades destes agricultores, mas relacionada a um determinado
perfil para inclusão nos mercados. O grande norte da formação requerida, técnica e
especializada, aparece mesmo relacionada à capacidade de integração ao sistema produtivo,
como exigência ao processo adaptativo.
No 8° CNTTR (2001), aprofundando a sua concepção de agricultura, o movimento
refere-se à localização destinada à agricultura familiar nos países desenvolvidos, bem como
ao seu caráter inovador no sentido da assimilação de novas técnicas de produção e também na
geração de novos nichos de mercados.
Todos os países desenvolvidos fizeram a opção por uma política estratégica de desenvolvimento rural centrada no fortalecimento da agricultura em regime de economia familiar. Desta forma estimularam a poupança, expandiram o mercado interno resultando em um processo de acumulação de capital dentro do próprio país (...). O desenvolvimento da agricultura familiar passa pelo estabelecimento de políticas diferenciadas, que têm na política de crédito a mola mestra da valorização do setor, alcançando também um novo padrão tecnológico na produção, no armazenamento, e na comercialização gerenciada pelos agricultores e agricultoras familiares. Passa, ainda, pela descoberta de novos nichos produtivos,como agricultura orgânica, manejo florestal e outros. (...) É fundamental que a agricultura familiar explore todas as potencialidades do meio rural, investindo no beneficiamento dos seus produtos (agroindustrialização), e em atividades complementares como artesanato, turismo rural e outras, aumentando a sua renda interna e a sua capacidade de investimentos (CONGRESSO NACIONAL DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS, 2001, grifos nossos).
É necessário pontuar que a agricultura familiar aparece diretamente associada a uma
visão predominantemente mercadológica, as inovações tecnológicas são necessariamente
absorvidas para a sobrevivência dos agricultores no mercado produtivo, como forma de
aumentar as suas possibilidades de sobrevivência e adaptação na lógica econômica vigente.
Ao mesmo tempo é importante demarcar que no contexto da afirmação de que a agricultura
familiar deve explorar todas as potencialidades do meio rural, o movimento refere-se às
potencialidades da construção de novos nichos de mercado no meio rural, ou seja, os
agricultores familiares devem estar atentos às possibilidades do estabelecimento da lógica da
61
mercantilização e da lucratividade nos espaços rurais, pelo que prevalece a ênfase em sua
capacidade empreendedora.
Essa busca incessante por um lugar na dinâmica econômica vigente parece ter sido a
forma que o movimento sindical encontrou de fazer o enfretamento à pobreza e à falta de
oportunidades características do setor rural brasileiro. Nesse mesmo movimento, tenta-se
demarcar o espaço do agricultor na economia de forma ativa e não subalternizada,na produção
de alimentos para o mercado interno, em contraposição ao agronegócio exportador,o que
parece ilustrar o caminho por onde se pode conciliar crescimento econômico com justiça
social.
Neste ponto é de fundamental importância fazer referência a maior política destinada
ao fornecimento de crédito e incentivos à agricultura familiar, o Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF, inaugurado em1996 pelo então governo
de FHC. O movimento sindical começava a organizar fóruns específicos para formulação de
propostas relacionadas ao desenvolvimento rural sustentável sob as bases da agricultura
familiar, e o PRONAF aparece como a resposta do Governo Federal às reivindicações do
movimento.
A partir do 7° CNTTR (1998) o movimento passa a lançar sucessivas avaliações do
PRONAF, sob o ponto de vista da sua cobertura nacional e da disponibilidade de recursos.
Inicialmente são apontadas fragilidades no sentido de sua cobertura, sendo que até o ano de
1997 apenas 10 % dos recursos das políticas públicas para agricultura era direcionado a
agricultura familiar, defendia-se então a extensão do PRONAF para os segmentos mais
marginalizados da agricultura familiar em iniciativas de desenvolvimento local.
No 8° CNTTR (2001), teve-se que naquele momento o PRONAF atendia apenas 30%
das demandas por crédito de custeio e menos de 10% do total das demandas por crédito de
investimento do público demandante da agricultura familiar, nesse sentido, “(...) O volume
insuficiente de recursos, o endividamento agrícola por conta dos encargos financeiros
elevados, a não liberação de crédito em tempo hábil e a exigência de garantia real são os
fatores que mais limitam o acesso a este programa” 8° CNTTR (2001).
Já no9° CNTTR (2005), o movimento argumenta que o PRONAF é de fato uma
conquista e está estruturado como um programa para o fortalecimento das condições de
inserção produtiva dos agricultores familiares. Mais uma vez é ressaltado o desempenho da
agricultura familiar nos países desenvolvidos, bem como a necessidade dos agricultores
familiares no Brasil atingirem o mesmo índice de inserção competitiva no mercado.
62
Ao compararmos as avaliações que o movimento apresenta da implementação do
PRONAF em congressos anteriores, neste 9° CNTTR (2005) o panorama é o de uma
avaliação positiva e de contínuos avanços nesta política, restando como desafio ao movimento
avançar em sua consolidação enquanto política pública, sendo urgente a transformação do
PRONAF em lei e o seu avanço na cobertura específica de crédito para mulheres e jovens, no
intuito dirimir desigualdades de gênero e geração.
A avaliação seria nesse momento qualitativamente distinta porque segundo dados do
próprio movimento sindical, ao longo de sua implementação iniciada em 1996, o PRONAF
teria superado limites relacionados à burocracia e aos altos encargos financeiros e ampliado a
cobertura para um segmento mais marginalizado da agricultura, passando a atender 40% de
seu público potencial. Além disso, o movimento também aponta um aumento considerável de
recursos destinados, sendo que em 2003/2004 foram aplicados, efetivamente, um volume de
R$4,5 bilhões.Todavia, na ótica do movimento,eventosrealizados anualmente de caráter
mobilizatório e reivindicativo como os Gritos da Terra Brasil - GTB e a Marcha das
Margaridas teriam implicado em importantes avanços para o fortalecimento e consolidação do
PRONAF nos últimos anos, por onde é reforçado o caráter de conquista atribuído a esta
ampliação.
Nesse sentido tem-se que
Nos seus dez anos de existência, o PRONAF tornou-se um programa estruturado com dimensões de política nacional para o fortalecimento e desenvolvimento da agricultura familiar, mediante a disponibilização de linhas de crédito de custeio e investimento com recursos em volume crescente, formação e capacitação, assistência técnica e extensão rural, pesquisa e geração de tecnologia, apoio à infraestrutura e serviços para o desenvolvimento local e territorial e a articulação das politicas publicas através de conselhos municipais, territoriais, estaduais e nacional de desenvolvimento rural sustentável, mesmo assim, é insuficiente por não se constituir uma política estabelecida em lei. (...) O PRONAF foi criado por força de decreto da presidência da republica e o orçamento anual depende da vontade política dos governantes, não havendo uma fonte segura de recurso. (...) É preciso também implementar e consolidar as linhas de crédito para mulheres e jovens. Isto porque as normas estabelecidas atendem somente a esposas e companheiras e ao jovens matriculados em escolas técnicas agrícolas entre 16 e 25 anos. (...) É preciso questionar e melhorar os critérios estabelecidos para o acesso às políticas agrárias e agrícolas, pois nem sempre o critério por sexo, idade, estado civil e nível de escolaridade são os mais justos. Muitas vezes se constituem até em motivo de exclusão e discriminação(CONGRESSO NACIONAL DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS RURAIS, 2005).
63
Vê-se por isso que a partir do congresso supramencionado o movimento sindical passa
a fazer críticas positivas ao PRONAF, no sentido de sua ampliação da forma mesma como
está estruturado agora para o público das mulheres e dos jovens rurais.
No decreto de número 1.946/96, que regulamenta a criação do referido programa, faz-
se necessário elencar algumas diretrizes que considero como principais por sintetizarem muito
do direcionamento do PRONAF, são elas:
a) melhorar a qualidade de vida no segmento da agricultura familiar, mediante promoção do
desenvolvimento rural de forma sustentada, aumento de sua capacidade produtiva e abertura
de novas oportunidades de emprego e renda;
b) proporcionar o aprimoramento das tecnologias empregadas, mediante estímulos à
pesquisa, desenvolvimento e difusão de técnicas adequadas à agricultura familiar, com vistas
ao aumento da produtividade do trabalho agrícola, conjugado com a proteção do meio
ambiente;
c) fomentar o aprimoramento profissional do agricultor familiar, proporcionando-lhe novos
padrões tecnológicos e gerenciais;
d) adequar e implantar a infraestrutura física e social necessária ao melhor desempenho
produtivo dos agricultores familiares, fortalecendo os serviços de apoio à implementação de
seus projetos, à obtenção de financiamento em volume suficiente e oportuno dentro do
calendário agrícola e o seu acesso e permanência no mercado, em condições competitivas.
Ao identificar as diretrizes operacionais do PRONAF, é oportuno visualizar o quanto
estas se assemelham ao projeto defendido pelo sindicalismo rural, ao elencarem a própria
promoção do desenvolvimento sustentado, o aumento da produtividade agrícola familiar por
meio de novos padrões tecnológicos e gerenciais, o fomento ao aprimoramento profissional
do agricultor e a garantia de financiamento para o acesso e permanência nos mercados. Para
Aquino et al. (2004), o real objetivo do então governo FHC estava relacionado ao mesmo das
demais políticas direcionadas ao campo nesse período, compensar parte dos efeitos nocivos da
política econômica no rural a partir de iniciativas que visassem a inclusão dos agricultores
familiares de baixa renda no mercado interno de produção de alimentos.
Nessa perspectiva, muitas críticas foram direcionadas à implementação do programa, a
mais recorrente no início de sua implementação, e da qual compartilhou o próprio movimento
64
sindical, residia em questionar determinada concentração regional no fornecimento de
créditos para os agricultores da região sul/sudeste, ou seja, os mais capitalizados. Ao mesmo
tempo, entre seus críticos, condenava-se a concepção produtivista que ocupava o centro do
programa. O autor supramencionado não deixa de referir-se à ênfase no uso de insumos
modernos para garantia de larga produção presente na sua estruturação, ação que serve de
parâmetro para o padrão vigente do agronegócio e não contribui para o equilíbrio ambiental
das experiências familiares.
Outra questão de grande relevo levantada no âmbito de seus críticos foi o fato da
implementação do PRONAF ter convivido pacificamente com a estrutura agrária vigente
concentradora de terra e riquezas, assemelhando-se mesmo a uma tentativa de promover a
convivência entre as iniciativas do agronegócio e da produção dos camponeses em unidades
familiares, no lugar da realização de uma reforma agrária radical, que alterasse
substancialmente a estrutura econômica e política no campo.
Por esse ângulo de análise pode-se afirmar que o PRONAF convergiu com os
interesses das elites agrárias, pelo duplo movimento realizado no interior desse programa, em
que se perdeu o questionamento da grande propriedade e em que toda a complexidade da
questão agrária no campo tende a ser “resolvida” com a integração dos agricultores aos
mercados.
O programa foi estendido durante os anos de vigência do governo Lula com
significativo aumento da sua cobertura aos agricultores menos capitalizados, e pode ser
considerado o centro da política agrícola vigente também no governo Dilma Rousseuf. Os
sindicatos foram incluídos ativamente nesse processo como agentes promotores do PRONAF,
através da seleção de beneficiados e da participação nos conselhos municipais para a sua
implementação, as críticas elaboradas por este segmento relacionam-se apenas a sua
disponibilidade de recursos e a abrangência da cobertura, condições de pagamentos e etc., na
dimensão exclusivamente técnica e operativa, de forma que a crítica em âmbito político e
ideológico ao teor produtivistado programa e ao fato de sua implementação ter convivido com
a estrutura agrária não é compactuada, sinalizando a assimilação mesmo desta via produtivista
e competitiva de mercadopara constituição da autonomia dos chamados agricultores
familiares.
Ainda no 8° CNTTR (2001), o movimento afirma que o debate acerca do novo modelo
de agricultura pretendido para o desenvolvimento rural teve ampla participação do setor
acadêmico e que a conceituação “agricultura familiar” utilizada em detrimento do termo
“pequeno produtor” vem expressar essa dimensão ligada ao debate da academia. Nesse
65
sentido, o movimento afirma que a expressão Agricultura Familiar definiu com clareza o
campo de ação para suas políticas e seu público alvo.
A partir de então é necessário pontuar queem meados dos anos noventa o termo
“agricultura familiar” passou a ser portador de uma conotação diferenciada em âmbito
acadêmico e também político. Um exemplo do debate na academia é o livro intitulado
“Paradigmas do Capitalismo Agrário em Questão” de Ricardo Abramovay, que se constitui
como referencia teórica fundamental para aqueles que adotaram essa nova conotação.
Segundo este autor, o novo paradigma para se compreender o desenvolvimento do capitalismo
na agricultura consiste na identificação do agricultor familiar moderno, que já corresponde a
uma profissão, diferente do campesinato assentado em bases mais tradicionais de produção,
menos capitalizadas e fora do circuito do mercado. Para o autor, esta nova categoria encontra-
se totalmente integrada ao mercado, sem apresentar qualquer conflito ou contradição em
relação ao desenvolvimento capitalista, portadores de uma natureza empresarial, de
dinamismo técnico e capacidade de inovação (ABRAMOVAY, 1992). Nesse sentido, a
configuração da agricultura capitalista contemporânea residiria na convivência entre as
formas da agricultura familiar e patronal.
O autor também faz referência ao papel desempenhado pela agricultura familiar nos
países centrais, pelo que todos esses países teriam feito a opção por uma política estratégica
de desenvolvimento rural centrada no fortalecimento da agricultura familiar, onde o resultado
teria sido a expansão do mercado interno e um processo de acumulação de capital dentro do
próprio país. Nesse contexto a agricultura familiar teria sido uma criação do Estado, onde
após a efetiva realização de um processo de reforma agrária sua função passa a ser a de
assegurar “o abastecimento alimentar abundante, a preços estáveis, contribuindo assim para o
processo de formação dos novos padrões de consumo característicos da expansão capitalista
posterior a segunda guerra” (ABRAMOVAY, p. 257).
No entanto, trata-se de um cenário extremamente diverso do desenvolvimento do
capitalismo na agricultura no Brasil. Não se deve desconsiderar o peso do contexto histórico,
político e econômico de uma reforma agrária nunca realizada, bem como da grande
propriedade de terras como o nódulo central da acumulação capitalista, sob o risco de cair em
análises reducionistas e proposições descabidas que equiparem dois contextos tão díspares.
Destarte, faz-se necessário retomar elementos aludidos no capítulo primeiro do presente
trabalho, quando se buscou discorrer acerca das relações sociais presentes na agricultura
brasileira e alocalização social e econômica dos trabalhadores rurais no interior dessas
relações.
66
Considerando o desenvolvimento do capitalismo na agricultura, pôde-se visualisar
como a partir do estabelecimento de dinâmicas quantitativa e qualitativamente distintas de
acumulação estabeleceu-se determinado padrão de relações sociais associado à formação de
um campesinato subordinado aos interesses de reprodução da grande propriedade, e
posteriormente, com uma progressiva modernização técnica dos cultivos, também de grandes
capitais industriais. Ainda na fase de transição de uma economia agrária exportadorapara uma
economia de caráter urbano industrial,a partir da revolução de 1930, a relação estabelecida
entre capital e trabalho foi marcada pelos altos índices de exploração do trabalhador rural,
onde o direito à satisfação das necessidades básicas consubstanciado no contrato de trabalho
pela via do assalariamento foi negado, e foram estabelecidos como valor de troca da força de
trabalho viva níveis irrisórios de remuneração até mesmo para subsistência, onde o menor
salário nas cidades era sempre maior do que o padrão de subsistência das áreas rurais. Este
padrão de desenvolvimento das relações sociais vigente no campo até então, de toda forma
estiveram conectados e deram sustentação ao desenvolvimento das cidades.
Posteriormente, com o movimento de industrialização da agricultura, na passagem dos
anos de 1960 para os anos de 1970, é iniciado o desenvolvimento de um novo padrão nas
relações sociais neste âmbito. A partir dos anos de 1960 assistiu-se a um salto gigantesco da
expansão do processo de acumulação capitalista no campo, inúmeras e constantes mudanças
associam-se a esse movimento, que teve como constante a busca pela maximização do lucro e
a apropriação dos recursos naturais e das terras que eram de interesse dos capitalistas em todo
o mundo. Carvalho (2009) atenta para a formulação do núcleo teórico e prático desse
movimento, segundo ele, a teoria do Agribusiness nasceu na década de 1950, como
elaboração teórica do Programa de Agricultura e Negócios da Escola de Negócios de
Havard, EUA. A primeira formulação teria emergido em um famoso tratado denominado “A
conceptof Agribusiness”, no qual a palavra „Agribusiness‟ teria sido criada para denominar a
estreita relação da agricultura com os demais setores da economia. Desta feita,
O corpo teórico e prático formulado pela Escola de Negócios de Havard começa, a partir principalmente da década de 70, uma vez criadas em plano mundial as condições de expansão do capital na agricultura, expresso pelo projeto cognominado de „revolução verde‟, (...) a expandir-se em plano mundial num jogo conjugado de forças imperialistas como o „Grupo de Roma‟, o „Agribusiness council‟, as
Fundações ligadas aos grandes conglomerados industriais com pesados interesses na agricultura como a Fundação Ford, Rockfeller, Heinz, a FAO, a extinta ICP (Industry Corporation Program), as empresas multinacionais e os programas de desenvolvimento agrícola dos países „em desenvolvimento‟, dependentes das forças
imperialistas tanto do ponto de vista financeiro, quanto técnico e
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científico, dependentes, em última instância, dessas forças imperialistas conjugadas(DINARTE apud CARVALHO, 2009, p. 3).
Um importante fator a ser destacado é o papel desempenhado pelo Estado nesse
movimento de avanço de novos capitais inaugurado pela industrialização da agricultura
brasileira. É certo que o governo militar foi o grande promotor de programas, leis, incentivos
e até mesmo de larga propaganda relacionada à modernização da agricultura. O invólucro
necessário à legitimidade da série de medidas adotadas residia no discurso
desenvolvimentista, da necessária adesão a novos padrões tecnológicos para o crescimento do
país. Todavia, as iniciativas elencadas pelo Estado, por seu nítido beneficiamento dos
latifundiários, das cooperativas burguesas e dos empresários da agroindústria, de onde o
crédito rural subsidiado foi o maior exemplo, já traziam em seu corpo os interesses da
expansão da acumulação capitalista em escala mundial, consolidando a subordinação da
reprodução da agricultura aos interesses do capitalismo industrial e bancário, já nos moldes
oligopolistas.
Um exemplo dessa abundância de favores e facilidades aos latifundiários, às cooperativas burguesas e aos empresários da agroindústria foi o credito rural subsidiado. “(...) O crédito rural
caracterizou-se, neste período (1966 a 1982), pelo aumento de 500% nos volumes de crédito com taxas de juros negativas em relação a inflação. O objetivo dessa política foi implantar a modernização agrícola conservadora no Brasil, financiando tratores, colhedeiras, adubos, venenos e sementes híbridas. Porém, não foram os agricultores familiares que acessaram o crédito nesse período. Em 1980, por exemplo, 69% do crédito foi destinado a Agroindústria e Comércio, 23,2% para as Grandes Cooperativas e 7,8 % para os agricultores. Estes agricultores eram os latifundiários e as grandes propriedades capitalistas(ASFRAGO apud CARVALHO, 2009, p.3).
Sobre a lógica intrínseca aos processos de industrialização da agricultura, é
interessante levantar as reflexões de Silva (1998). Para o autor, de toda forma não se deve
confundir modernização da agricultura – entendida como o progresso técnico de determinados
cultivos – com a industrialização da agricultura. Preocupado em discernir as largas
transformações operadas na agricultura quando da passagem dos complexos rurais para os
complexos agroindustriais, o autor afirma que a marca da industrialização da agricultura
residiu em sua incorporação à grande indústria, como um setor desta, a partir da compra de
insumos industriais e da venda de suas matérias-primas. A marca do processo foi a
subordinação da natureza ao capital, que paulatinamente libertou o processo de produção de
suas condições naturais pela internalização dos bens de capital e dos insumos do setor
industrial.
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O longo processo de transformação da base técnica – chamado de modernização – culmina, pois, na própria industrialização da agricultura. Esse processo representa na verdade a subordinação da natureza ao capital que, gradativamente, liberta o processo de produção das condições naturais dadas, passando a fabricá-las sempre que se fizerem necessárias. Assim, se faltar chuva, irriga-se; se não houver solos suficientemente férteis, aduba-se; se ocorrerem pragas e doenças, respondem-se com defensivos químicos e biológicos; e se houver ameaças de inundações, estarão previstas formas de drenagem (SILVA, 1998, p.3)
Sobre a conformação de um novo cenário agrícola, como consequência da
industrialização da agricultura levada a cabo pelo Estado no governo militar ditatorial, o autor
desenvolve os elementos dos chamados Complexos Agroindustriais – CAI’s. Trata-se de uma
“integração técnica intersetorial” desencadeada a partir da década de 70 após o momento em
que o país passa a produzir internamente máquinas e insumos industriais para agricultura.
Nesse sentido, conforma-se uma troca interdependente entre as indústrias que produzem para
a agricultura (maquinaria e insumos), a agricultura propriamente dita e as agroindustriais
processadoras que compram as matérias-primas da agricultura, em âmbito nacional, com
alteração qualitativa dos vínculos existentes, em que prevalecem como em nenhum momento
anterior, “relações de dominação (técnica, econômica e financeira) do segmento industrial
sobre a parte agrícola do complexo” (SILVA, 1998, p. 34).
Ilustrando acerca de como realmente se processam as trocas intersetoriais
características dos CAI‟s, tem-se que
Um complexo agroindustrial completo e integrado, por exemplo, aparece no caso da avicultora (milho-rações / produção avícola / carne industrializada) ou no caso do açúcar e do álcool (equipamentos para usinas e destilarias / cana / usinas de açúcar e álcool), isto é, pode-se identificar uma cadeia de atividades fortemente relacionadas e com dinamismo próprio, formado por um “tripé” (Insumos e maquinaria
para a agricultura / atividade agrícola / agroindústria) (SILVA, 1998, p. 35).
Há que destacar que essa integração intersetorial só foi possível pela internalização da
indústria produtora de máquinas e insumos antes importados, em grande parte representada
pelas indústrias mecânica e química de grandes corporações internacionais, em uma larga
abertura de mercado financiada pelo Estado, com ênfase na participação do capital financeiro.
Foi criado um Sistema Nacional de Crédito Rural – SNCR12, que teve a função de viabilizar a
12 A criação do SNCR, juntamente com a Reforma do Sistema Financeiro, estabeleceu as bases para assegurar que parte dos recursos captados pelos bancos fosse canalizada para o setor agrícola. Duas resoluções do Banco Central estabeleciam que 10% dos depósitos à vista dos bancos comerciais deveriam ser emprestados à agricultura. Os bancos que não conseguirem efetuar essa aplicação deveriam repassar esses recursos, a uma remuneração menor, ao Banco Central na conta do Fundo Geral para Agricultura e Indústria - FUNAGRI. Além da modernização em si mesma, a integração da agricultura ao circuito financeiro é mais abrangente do que a
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agricultura enquanto um mercado substancial para a absorção dos produtos necessários a sua
própria industrialização, além das políticas de agroindustrialização específicas instituídas a
partir dos chamados fundos de financiamento destinados às agroindústrias processadoras de
matérias-primas, onde o Estado nitidamente é quem melhor representa os interesses agrários,
industriais e financeiros.
Esse movimento produtivo desprendido de qualquer lógica afeta às necessidades
humanas e voltado para lucratividade mercadológica levou a uma profunda tendência ao
cultivo monocultor mecanizado, dando forma a um desastroso impacto social no que se refere
à substituição de mão-de-obra e a concentração de terras. Alguns dados trazidos por Carvalho
(2005) e extraídos dos Censos Agropecuários realizados entre os anos de 1985 e 1995
revelam que o aumento paulatino do número de tratores e equipamentos médios e pesados na
agricultura foi acompanhado pela extinção de cerca de 5,5 milhões de ocupações em
atividades agrícolas (!), de 23,4 milhões em 1985 o número de pessoas ocupadas nessas
atividades caiu para 17,9 milhões em 1995. Foi nesse período que os sistemas de parceria,
colonato e de moradores praticamente deixou de existir e enormes contingentes populacionais
dirigiram-se para as cidades. Dados do IBGE trazidos por Carvalho (2005) revelam que em
1991 a população urbana havia crescido de 27,6 milhões para 111,0 milhões (!), abrigando
75,6% da população com a acentuação crônica da pobreza e falta de oportunidades.
Associado ao impacto sobre o emprego agrícola observou-se que a concentração da
terra, que sempre se expressou da forma mais alarmante, conseguiu agudizar-se ainda mais
em tempos de modernização da agricultura, pois os estabelecimentos com mais de 1.000 ha
em 1995 ocupavam 45,1% da terra, mais do que os 44,1% que ocupavam em 1985, de acordo
com dados trazidos por Carvalho (2005).
Para os setores dominantes que defendiam a industrialização acirrada da agricultura, a
estrutura de terras concentrada como marco da constituição de nossa história não significava
um problema ou questão a ser sanada, a questão central residia em mudar os padrões de uso
do espaço agrícola para incrementar a sua produtividade, de onde se iniciou um novo padrão
de produção baseado na intensificação do uso da terra e na artificialização dos ecossistemas,
pela modernização da base tecnológica. Dessa forma, a garantia de rendimentos somente seria
propiciada em adesão ao modelo da Revolução Verde. Neste modelo,
simples integração técnica intersetorial. Isso implicou a mais completa subordinação da agricultura ao poder regulador da política monetária manejada pelo Estado e colocou o mercado financeiro como o parâmetro básico das tomadas de decisões dos agricultores e empresas operando na agricultura (KAGEYAMA, 1990, p.160).
70
através da utilização intensiva da motomecanização, dos fertilizantes inorgânicos, dos agrotóxicos, dos equipamentos pesados de irrigação, das variedades, raças e híbridos de alto rendimento, das rações industriais e hormônios sintéticos intenta-se elevar ao máximo a capacidade potencial dos cultivos e criações, proporcionando-lhes as condições ecológicas “ideais”. A lógica subjacente é a do controle das condições naturais, através da simplificação e da máxima artificialização do meio ambiente, (...) de maneira que este possa efetivar todo o seu potencial de rendimento. Nesta concepção, a pesquisa e a extensão rural foram orientadas para incorporarem e difundirem tecnologias e processos na forma de “pacotes”, tidos como
de aplicação universal, destinados a maximizar o rendimento dos cultivos em situações ecológicas profundamente distintas (ALMEIDA apud CARVALHO, 2005, p. 232).
A partir da adoção das novas tecnologias da indústria química e mecânica, que se
destacaram no Brasil pela presença dos capitais americanos e japoneses, pôde-se adaptar a
natureza aos índices almejados de lucratividade nas atividades agrícolas subordinadas a
grande indústria. A racionalidade lucrativa, como mola fundamental dessas transformações,
direcionou um desenvolvimento altamente seletivo do ponto de vista dos produtores
beneficiados e das regiões e cultivos desenvolvidos. As regiões largamente beneficiadas pelas
políticas de crédito e beneficiamento concentraram-se em sua grande maioria no Centro-Sul e
posteriormente no Centro-Oeste, e as atividades relacionadas aos cultivos de soja, cana-de-
açúcar, café e laranja privilegiados em detrimento de outros de menos interesse para o
comércio internacional e os Complexos Agroindustriais – CAI‟s (CARVALHO, 2005).
No entanto, para os objetivos do presente estudo é necessário aludir ao movimento de
aproximação das empresas do ramo da agroindústria e de insumosmodernos, representantes
alegóricos do modelo da Revolução Verde, com os pequenos agricultores. O modelo que se
convencionou chamar de cadeias produtivas é a atualização de determinado processo que já
ocorria no momento inicial da industrialização da agricultura, a que fiz referencia no capítulo
primeiro como o modelo da “incorporação vertical”, que já sinalizava uma articulação do
capital industrial com a agricultura através da integração da produção dos camponeses no
interior dos complexos agroindustriais por meio de contratos de integração.
Nessa perspectiva, Carvalho (2009) esclarece o emaranhado de relações sociais de
produção presente no modelo denominado de cadeia produtiva.
Inicialmente, a idéia de cadeia pressupõe uma inter-relação entre os segmentos
econômicos participantes, de forma que as políticas e medidas governamentais precisam
beneficiar todos os agentes da cadeia. Logo, o crédito rural se transformou numa ponte
econômico-financeira, onde de um lado encontram-se as indústrias produtoras de insumos
(fertilizantes, agrotóxicos, hormônios, maquinaria e etc), e de outro as indústrias compradoras
71
e industrializadoras de matérias – primas (agroindústrias). No meio do processo,
estabelecendo uma relação de compra de insumos e de venda de matérias – primas estão os
produtores rurais orientados por um modelo tecnológico extremamente caro e imposto de
cima para baixo, por empresas públicas e privadas de assistência técnica, com o suporte da
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - EMBRAPA13 e dos departamentos técnicos de
grandes empresas transnacionais de insumos. Por trás, mas conduzindo todo o processo,
encontram-se os bancos, ou o capital financeiro, de forma mais genérica.
Todavia, diante do grande capital de empresas da agroindústria os pequenos
produtores não apresentam poder de barganha ou de equalização de interesses quando da
efetivação dos contratos de integração. Sobre esse processo Silva (1982, p.138) defende que o
grande capital permite que o agricultor “se aproprie apenas do necessário a sua reprodução
como pequeno produtor”, pelo baixo preço que imprime às matérias-primas. Também a
assimilação do “pacote tecnológico” requerido para garantia da produtividade dos produtos
específicos (legumes, frangos, ovos, frutas de mesa, fumo, vinho, suínos e outros) é
extremamente oneroso, pelo que os agricultores são chamados a aderir a políticas de crédito, o
que resultou em endividamentos e perda de propriedades para uma parcela que não conseguiu
acompanhar a adesão a novas tecnologias. Nesse momento, como relata Silva (1998, p.37),
“poderá ser conveniente à agroindústria selecionar produtores mais eficientes, ou seja, aqueles
com melhores condições de responder tecnologicamente às necessidades da agroindústria (os
exemplos da laranja e do tomate em São Paulo são típicos)”. Vê-se por isso o estreito caminho
aberto aos pequenos produtores num mercado dominado por gigantes da agroindústria
processadora de matérias-primas e de insumos modernos.
Nos anos noventa do século XX, sobretudo, o modelo das cadeias produtivas atinge o
auge de sua disseminação a partir da proposta do Novo Mundo Rural Brasileiro. Esta proposta
veiculada pelo governo federal e aceitas por parcelas dos movimentos sociais e da
intelectualidade ligada ao campo, assume a centralidade da política agrícola do então governo
FHC, e pelo que afirma que,
ao sugerir a integração necessária da agricultura familiar com o agronegócio burguês asseverou no campo da política que o modelo dominante do agronegócio para o rural brasileiro seria a melhor opção também para as classes subalternas no campo. O PRONAF, entre outros programas, é consequência direta dessa concepção do mundo rural brasileiro sobhegemonia das grandes empresas capitalistas multinacionais do agronegócio (CARVALHO, 2005, p. 200).
13 A EMBRAPA está vinculada ao Minis tério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, é um órgão de pesquisa e assistência técnica direcionada a empreendimentos agrícolas.
72
De toda forma, assistiu-se a assimilação de pacotes tecnológicos para produção em
larga escala no interior de pequenas unidades produtivas de base familiar, de forma a
incorporá-los ao padrão empresarial, obviamente aqueles que se mostrassem capazes de
assumir essa lógica e que tivessem condições de ser competitivos. Esse foi o norte da política
agrícola de direcionamento neoliberal iniciada nos anos noventa, orientada ao fortalecimento
de um modelo corporativo de agricultura, em beneficiamento aos grandes capitais industriais,
agroindustriais e também o financeiro.
Em estudo mais recente onde sistematiza as particularidades da inserção do pequeno
produtor no mercado produtivo14, em sua articulação comas agroindústrias,estas enquanto
compradoras de matérias-primas e aqueles enquanto seus produtores direitos, o autor refere-se
à produção avícola integrada em Santa Catarina, onde de um lado encontram-se pequenos
proprietários que se organizam no trabalho familiar, e do outro, uma das maiores
agroindústrias nacionais do ramo de carnes e derivados sediada na região de Concórdia em
SC, que entrou para o circuito internacional de produção de alimentos exportando para vários
países, portadora de um vasto complexo industrial que inclui a própria fábrica de insumos
agrícolas e a própria frota de aviões.
Nesse sentido, o autor descreve que os contratos de integração agregam desde o
fornecimento de insumos e assistência técnica intensiva, pelo que os agricultores dispendem
90% do custo de sua produção, até o preço dos produtos fornecidos. Ao produtor cabe
assimilar as técnicas requeridas no manejo da criação de aves, desde a produção do milho aos
outros componentes concentrados na ração. Sobre esse processo, a condição fundamental
exigida pela empresa é de que o produtor seja “minifundiário e que a mão-de-obra seja
familiar porque a SADIA não trabalha com proprietários absenteístas (...). A família é que
deve trabalhar no aviário, porque a SADIA não quer peão, porque o peão não tem capricho na
produção” (SORJ et al. apud SILVA, 2003, p. 150).
Pelas largas exigências do padrão de qualidade e produtividade requeridas pela
agroindústria, essa passa a selecionar os “melhores” criadores de animais do ponto de vista do
espaço que possuem, da obediência às técnicas de produção e de se situarem mais próximas
dos abatedouros mantidos pela indústria.
Os impactos da industrialização da agricultura, redefinindo a articulação dos
camponeses com os setores capitalistas, parecem ter imprimido novos contornos a antigas
14Ver SILVA, José Graziano da.Tecnologia e agricultura familiar. Porto Alegre: UFRGS, 1999.
73
relações de subordinação. Se no Nordeste assistiu-se à expulsão de grande contingente de
trabalhadores do campo para as cidades, bem como a sua violenta proletarização, no Sul
assiste-se a um processo de capitalização desse setor pela imposição do grande capital, o que
inaugura uma lógica altamente seletiva, pois não é a maioria dos pequenos produtores que
consegue reunir os elementos necessários a adaptação à lógica dos mercados, e mesmo os que
conseguem permanecem dependentes das políticas de crédito agrícola e das condições
impostas pelos gigantes nos mercados de capitais agroindustriais, de insumos. Como
afirmaSilva (2003, p.144),
Na posição em que a pequena produção agrícola se insere hoje no modo capitalista de produção, a tecnificação (modernização) representou mais uma imposição do que uma oportunidade conquistada. E o seu sentido maior foi um só: uma maior subordinação do pequeno produtor ao sistema.
Dessa forma, existem limites concretos que sedimentam as possibilidades de
sobrevivência e adaptação dos pequenos produtores à lógica econômica vigente. O estreito
espaço destinado a estes nos mercados de produção de alimentos, em última instância forjado
pelos grandes capitais do agronegócio, ao facilitar um movimento no qual os agricultores
perdem completamente o controle do que, como e quanto produzem, assemelhando-se ao
trabalhador em domicílio das cidades15, estáconcretamente descolado do ideal de mercado
justo / solidário a que faz alusão o movimento sindical rural, aquele ideal de mercado que
condensaria as alternativas de enfrentamento aos problemas sociais no campo.
Sobre esse processo, o capital põe em movimento por meio de “fios invisíveis” uma
massa de trabalhadores a domicílio, também a seu comando, havendo o agravante de que
esses trabalhadores são expostos a condições ainda mais precárias do que aqueles que se
encontram no interior da fábrica, ficam expostos a condições mais insalubres de trabalho, com
a presença de substâncias tóxicas sem nenhuma proteção, com a falta de máquinas
apropriadas, falta de espaço, luz, ventilação, e com maior irregularidade do emprego,
acarretando em uma maior concorrência entre os trabalhadores. Tavares (2010) afirma a
respeito de o trabalho domiciliar que apesar de este ser confundido com externalização, com
liberdade, na verdade significa a saída de partes da produção do interior da fábrica,
transformando a casa do trabalhador em local de trabalho, tendo este que trabalhar
indefinidamente, sem direito de restrição deste ato, sem gozar de nenhum direito social, nem
trabalhista.
74
Sobre os camponeses, Carvalho (2005) relata um processo de constante decomposição
desse segmento pela lógica modernizante. Segundo o autor, de toda forma, dentre os
pequenos produtores que tentam modernizar-se, boa parte termina por adquirir dívidas e ter
que abandonar suas terras para saldá-las, abrindo caminho para que os grandes produtores a
adquiram por preços muito abaixo do que realmente valem. Obviamente, o alto custo da
modernização expresso na adoção da indústria agroquímica precisa ser coberto por uma larga
produção de expressão no mercado, não adaptável a realidade da maioria dos pequenos
agricultores, onde reside o caráter intrinsecamente competitivo e seletivo da modernização,
como maior impacto social do direcionamento neoliberal da política agrícola.
Diante da predominância de uma lógica seletiva e competitiva necessária a
permanência nos mercados, uma lógica fundamentalmente individual e particularista agora
reafirmada pelo movimento sindical rural no momento em que opta pela adaptação dos
agricultores aos mercados, gostaria de apontar reflexão trazida pelo autor supramencionado
quando se refere a uma “articulação orgânica (consentida e funcional)” à lógica das cadeias
produtivas do agronegócio, com destaque para o papel desempenhado pelas políticas de
crédito, das quais o PRONAF é o maior exemplo.
Sendo assim,
Sob a tese de que “só o crédito salva” os produtores familiares em
situação de baixa renda familiar relativa deixaram de considerar outras hipóteses teórico-práticas passiveis de serem implantadas, como a da autonomia camponesa e a do enfrentamento político e econômico do modelo tecnológico que se impunha ao se acessar o crédito rural subsidiado sob controle governamental. (...) Ao se integrarem ao capital, desde o momento em que adotaram o modelo tecnológico dominante, foram perdendo gradativamente a capacidade de decidirem como grupo familiar sobre o que, como, onde, quanto, quando produzirem (...). E nesse processo de concessões graduais ao capital foram se alienando política e ideologicamente até alcançarem a alienação das suas terras seja pela realização de contratos de arrendamento para as agroindústrias, seja pela venda para terceiros (CARVALHO, 2009, p.5).
De toda forma, em seu PADRSS, o movimento sindical identifica na agricultura
familiar integrada ao mercado a via para efetivação do seu ideal de sustentabilidade, aquele
aliado a uma concepção tridimensional de desenvolvimento, que concilia crescimento
econômico com justiça social e preservação do meio ambiente. Retomando análises de Silva
(2010), que ressalta o foço estabelecido entre o apelo ético do desenvolvimento sustentável e
a realidade objetiva, tem-se que pela ausência de uma organização social que promova o
rompimento com a lógica societária em curso, a sustentabilidade econômica passa a
prevalecer sobre as demais dimensões que o conceito evoca, comprometendo a sua
75
efetividade. Nesse sentido, pode-se estabelecer uma relação com a dimensão econômica
presente na concepção de desenvolvimento tridimensional do PADRSS.
A agricultura familiar é apresentada como aquela que tem viabilidade econômica para
ser competitiva no abastecimento do mercado interno, por onde é dada a ênfase em um novo
perfil de agricultor, dotado de uma formação técnica e especializada que o possibilite a
absorção de novas tecnologias de produção, tornando-o apto à integrar-se ao sistema
produtivo.Contudo, vê-se pela realidade da localização da pequena produção diante de um
mercado dominado por gigantes da agroindústria processadora de alimentos, de insumos
modernos e de grandes proprietários de terras, que a visão predominantemente mercadológica
da agricultura familiar desconsidera as mediações que sedimentam o caráter seletivo e
excludente deste espaço, bem como a relação de assalariamento disfarçada presente na
configuração do mercado de produção de alimentos no Brasil, por onde estão minadas as
possibilidades de emancipação comum para os agricultores. Nesse sentido, a ênfase nesse
direcionamento econômico ao invés de apresentar uma saída que realmente oponha-se aos
interesses do agronegócio, contribui para o seu fortalecimento, de forma que as dimensões
ligadas à preservação do meio ambiente e a justiça social não encontram concretude.
4.1.5 Atuação institucional na efetivação do padrss
Afirmou-se na seção anterior, no momento em que se dissertou particularmente acerca
do PRONAF, que o movimento sindical rural desempenhou o papel de seuagente promotor,
atuando tanto na eleição dos beneficiados, como em seus conselhos de desenvolvimento.
Sobremaneira, o PRONAF trouxe no bojo de sua estruturação a criação dos Conselhos
Municipais de Desenvolvimento Rural - CMDR, dos Conselhos Estaduais do PRONAF bem
como do Conselho Nacional do PRONAF. É nesse sentido que o programa incorporou a
participação dos municípios, estados, dos próprios agricultores e suas e entidades parceiras -
dentre estas últimas com destaque para os sindicatos rurais - nas decisões institucionais
relacionadas à aplicação de recursos, definição de critérios para o financiamento dos
empreendimentos familiares e etc.
A função básica desses conselhos reside na aprovação dos Planos Municipais de
Desenvolvimento Rural – PMDR‟s, em âmbito municipal, estadual e nacional, que por sua
vez devem conter, após um processo elaborativo que envolva os agentes participantes, a
76
viabilidade técnica e financeira dos empreendimentos a serem beneficiados e o seu grau de
representatividade das necessidades e prioridades dos agricultores familiares.
Neste novo contexto, associada à necessidade da formação de um novo perfil de
agricultor, apto a adaptar-se a dinâmica econômica dos mercados e a dar conta das exigências
do modelo de desenvolvimento sustentável, aparece a preocupação com a formação dos
quadros do movimento sindical na perspectiva de acompanhar, propor e monitorar as
alternativas de desenvolvimento sustentável institucionalmente, mediante a participação nos
Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural. Nesse direcionamento, o movimento
sindical rural precisa ser capaz de intervir na elaboração de planos e direcionamento de
recursos e estratégias localmente.
O MSTR, para atuar de forma eficaz e eficiente na construção do PADRS precisa também qualificar e renovar o seu discurso e sua prática. Para isso é necessário formular e implementar de forma sistemática um programa massivo de formação de quadros. As ações de capacitação para o desenvolvimento local, contemplando a formulação e o acompanhamento de planos municipais e regionais de desenvolvimento, devem ser a base para esse programa. (...) É necessário desenvolver maior capacidade de organizar os recursos locais, isto permitirá o aumento da autonomia local na tomada de decisões e o aumento da capacidade de reter e reinvestir capitais. Este desenvolvimento localizado trará um maior grau de inclusão social. (...) O primeiro esforço deve ser exatamente de elaborar os projetos de desenvolvimento locais, através de processos democráticos, com a participação nos Conselhos Municipais de Desenvolvimento(CONGRESSO NACIONAL DE TRABALHADORESTRABALHADORAS RURAIS, 1998).
Essa capacitação para trafegar na institucionalidade é uma constante na definição de
estratégias para o desenvolvimento sustentável, de forma que para garantia de sua efetividade
tem-se a concentração de atividades na via institucional e também eleitoral, onde o
movimento sindical é chamado a investir na eleição de candidatos que se comprometam com
a defesa de um Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável Solidário.
É fundamental perceber que, sem mudanças objetivas no plano político, o PADRSS será apenas um projeto, um desejo. Para sua concretização é necessário articular a luta sindical com a luta política. Precisamos eleger vereadores, prefeitos, deputados estaduais e federais, senadores, governadores e presidente da república, sintonizados com o nosso projeto político (CONGRESSO NACIONAL DE TRABALHADORESTRABALHADORAS RURAIS, 2001).
O movimento aponta a necessidade de articulação da luta sindical com a luta político –
partidária, no sentido de eleger representantes que se filiem à sua proposta de
desenvolvimento. Esse fato demarcará no plano politico nacional a associação intrínseca do
77
movimento sindical rural com um setor específico da política brasileira, e a eleição de quadros
do movimento para cargos no Executivo e Legislativo municipal e estadual.
“Nas eleições municipais de 2004, pela primeira vez, o MSTTR participou de forma
organizada nacionalmente, lançando mais de 2.000 candidatos e candidatas do próprio
MSTTR, elegendo mais de 200 vereadores e vereadoras e 40 prefeitos” 9° CNTTR (2005).
4.2Sobre a hegemonia do agronegócio.
Na presente seção pretendo aprofundar o entendimento acerca da consolidação de uma
direção política e ideológica do agronegócio na sociedade brasileira. Para tanto, faz-se
necessário demarcar o conceito de hegemonia.
O conceito de hegemonia em Gramsci ressalta a capacidade da classe dominante de obter seu poder sobre a sociedade pelo controle que mantém sobre os meios de produção econômicos e s obre os instrumentos de repressão, mas, principalmente, por sua capacidade de produzir e organizar consenso e a direção política, intelectual e moral dessa sociedade. A hegemonia é, ao mesmo tempo, direção ideológico-política da sociedade civil e a combinação de força e consenso para obter o controle social (ACANDA, 2008, p.178).
Logo, domínio econômico e direção cultural/moral estão intimamente relacionados.
Trata-se de processos materiais que se convertem em processos espirituais e vice versa. Dessa
forma, ao falar de hegemonia no pensamento de Antônio Gramsci falamos da produção de
uma subjetividade social, que sintetiza a organização pela burguesia de todos os processos da
vida social. Para isto, a mesma precisa “cercar” a subjetividade do homem, num movimento
de conversão unilateral no que se refere a seus horizontes de vida e existência.
Para ilustrar e particularizar a afirmação anterior pretendo discorrer acerca de um
processo similar que ocorre quando a partir da década de 1990, após um completo ciclo de
industrialização da agricultura16, então marcado pelo avanço dos interesses econômicos das
classes dominantes a partir de uma verdadeira revolução tecnológica no campo, assiste-se a
disseminação de uma inevitável integração dos camponeses e médios proprietários ao modelo
de desenvolvimento rural produtivista de mercado, integração de toda forma mediada pela
constatação da necessidade de sanar determinado dualismo tecnológico existente entre dois
modelos de agricultura então constatadas no Brasil, uma empresarial de mercado,
economicamente competente, e uma outra, a de subsistência, considerada marginal.
16
Ver cap. 3°, pag. 37.
78
4.2.1 A nova retórica das elites rurais
Na conjuntura da década de 1990 estudos apontam para o desenvolvimento de um
novo discurso no âmbito do empresariado rural, pelo qual tentaram demonstrar sua utilidade
ao desenvolvimento nacional e sua preocupação com os problemas sociais no campo. Essa
significativa mudança qualitativa, na forma de reestruturação desse setor e do seu discurso
político, é de fundamental importância no entendimento acerca da questão agrária mais geral
na atualidade.
De fato, em momento histórico imediatamente anterior, de uma contradição entre as
classes dominantes do campo em contraponto a uma organização mais autônoma dos
trabalhadores rurais pela intensificação dos conflitos por terra, foi se delineando claramente
conforme estudos desenvolvidos por Bruno (1997), uma “nova retórica das elites agrárias”,
com a função de legitimar politicamente os interesses dos grandes proprietários de terras, dos
empresários das agroindústrias e das grandes cooperativas do ramo de produção de alimentos.
Para a autora, o principal objetivo dessa rearticulação consistiu em “assegurar a permanência
do patronato rural nas estruturas de poder. Eles têm claro que a garantia da condição de
proprietário e a sua reprodução como empresários passa por dentro da máquina estatal: passa
pela criação de oportunidades políticas e econômicas” (BRUNO, 1997, p.18).
Nesse sentido, a autora faz referencia a algumas organizações que fizeram valer seus
interesses no momento da Constituinte em 1988, como a Frente Agrícola para Agropecuária
Brasileira – FAAB, a União Democrática Ruralista – UDR e a Organização das Cooperativas
do Brasil – OCB. Com relação à FAAB, a autora ressalta como esta se converteu num
permanente instrumento de consulta para todas as decisões relativas à agricultura, e que
grande parte das regulamentações relacionadas ao desenvolvimento dos empreendimentos
agrícolas passaram a ser formuladas por seus assessores. Já a UDR teria absorvido a seu modo
as inúmeras demandas do patronato rural, em especial a da preocupação com o acirramento
dos conflitos por terra, por onde se tem convertido no “braço armado dos grandes
proprietários de terra e empresários rurais, e a referência da violência não institucional e da
possibilidade de mobilização do patronato rural” (BRUNO, 1997, p. 21). Sobre a OCB, a
autora revela que sua composição é majoritariamente de grandes cooperativas e
multicooperativas do Sul e Sudeste, que apresentam um padrão de produção avançado e
somam 69,7 % de seus filiados. Contudo, pequenos produtores que aderem ao modelo do
cooperativismo empresarial também compõem minoritariamente sua base. A partir do quadro
79
analítico traçado pela autora supracitada, no que se refere às classes dominantes, a
modernização da agricultura parece ter inaugurado a ampliação de seu arco de alianças, pois
pelo movimento de maior integração de capitais (industrial, financeiro, agroindustrial, etc.) e
de maior internacionalização da economia, a articulação entre esses tende a ocorrer em
grandes blocos e entre forças sociais de escala nacional e internacional. É no sentido de
garantir sua direção econômica e política frente aos movimentos de contestação a ordem do
capital - que então se faziam presentes no campo com maior força diante da abertura política -
que esse segmento passa a lançar mão de ações institucionais (por sua organização no
Congresso Nacional) e de iniciativas no âmbito cultural e ideológico, pela legitimação da
grande propriedade capitalista, do empresariado moderno do campoao mesmo tempo em que
também não abriram mão do recurso a violência explícita quando acharam necessário. Nesse
sentido, a partir da análise do discurso impetrado pelas elites agrárias, a autora chega a tecer a
linha de argumentação utilizada por essas para legitimar a irracionalidade do nível de
concentração de terras ainda existente no país.
as classes dominantes no campo buscaram se auto - representar e se autodefinir como “produtores e empresários rurais”. Por trás destas
palavras há toda uma ofensiva política e ideológica diferente de momentos anteriores, porque expressa novas formas de dominação e de exploração burguesa. Há também a busca de uma representação politica mais abrangente e de uma significação que recondicione e reoriente a prática e as formas de representação do conjunto. “Nós, os
produtores e empresários rurais” seria assim o reorganizador dos
símbolos e do agir dos dominantes: antigas palavras que buscam impetrar novas significações e referencias às noções de competência e do ser moderno (BRUNO, 1997, p. 6).
Nesse sentido, passam a ser forjados ao lado da imagem do grande proprietário de
terras e do capitalista industrial, os signos da competência e da modernidade, esses passam a
ser os baluartes do progresso nacional por seu próprio talento individual, onde todas as
questões mais complexas de nossa formação social reduzem-se ao debate da competência e
aptidão específicas para determinado ramo de atividades, ao mesmo tempo em que se negam
todas as implicações sociais e ambientais do desenvolvimento tecnológico. Logo, “ser
proprietário por si só é ser competente, não importando que usos ou abusos possam daí advir.
Calcada sobre as idéias de capacidade, talento e superioridade individuais, ela, a competência,
termina por instituir a desigualdade e os “incompetentes” sociais” (BRUNO, 1997, p. 6). Ao
lado do discurso da competência observa-se que a adesão aos imperativos das inovações
tecnológicas e da modernização dos empreendimentos agrícolas é revestida de grande
positividade e também converte-se em fator de legitimação ideológica pelos novos
dinamismos e horizontes produtivos que engendrou. Nesse sentido,
80
Ser moderno significa produzir e reproduzir-se numa sociedade onde a agricultura se encontra cada vez mais subordinada às regras do capital e, neste caso, consiste no desafio de seguir os padrões produtivos da agroindústria, penetrando neste universo de custos e lucros estabelecidos em códigos amplamente valorizados e de produtividade, que tudo justifica, inclusive a improdutividade, a especulação e o monopólio da terra (BRUNO, 1997, p. 6)
Sendo assim, as elites agrárias no momento da Constituinte quando da
redemocratização, buscam legitimar a estrutura agrária nacional e o uso particular/capitalista
que fazem da terra. Trata-se da busca de um caminho político que lhes permita um maior
poder de barganha na realização de seus interesses, onde toda e qualquer contraposição a
estruturação desses converte-se em uma expressão do atraso, na tentativa de extinguir da cena
política o pensamento divergente, de aniquilar a crítica, e, logo, a identificação da exploração
e dominação de classe. Nesse sentido, Bruno (1997, p.7) argumenta que,
Todos os grandes proprietários e empresários rurais foram unânimes ao acusar de arcaicas as posições favoráveis à reforma agrária e ao limite máximo para as propriedades, sob a argumentação de que estariam lidando com “conceitos historicamente ultrapassados e
tecnologicamente atrasados”. E argumentavam ainda que a questão agrária já havia sido resolvida pelo capital.
Há que ressaltar que foi o discurso da competência e da modernização associados à
propriedade privada da terra que garantiram a aprovação dos conceitos mais retrógrados do
ponto de vista da realização de uma verdadeira reforma agrária no país, como o de “latifúndio
improdutivo”, entendido como o direito do proprietário de torná-lo produtivo quando assim o
puder ou assim o desejar, e que também permitiu aos grandes proprietários e empresários
rurais manter o direito à propriedade amparado no artigo dos direitos individuais.
Sobre esse fato, a autora comenta que
Esta equiparação da propriedade aos direitos individuais, como parte indivisível do conceito de liberdade, é um componente ideológico muito eficaz de defesa contra qualquer investida ao padrão de propriedade vigente no Brasil, porque subordina a noção de função social aos interesses de alguns (BRUNO, 1997, p. 6).
Adentrando para a década de 1990, Bruno (1997) traz a expressão de uma forma de
organização das elites rurais, qualitativamente distinta, que avalio mais complexa do ponto de
vista de sua estruturação por elencar um salto “inteligente” no discurso, onde ao invés de se
diferenciarem apenas pela competência individual, estas elites mostraram-se preocupadas com
os problemas sociais no campo. Nesse sentido, foi a Associação Brasileira de Agribusiness –
a ABAG, criada em maio de 1993, que tratou de sedimentar um projeto das elites rurais para
toda a sociedade, que a priori romperia com o discurso político marcado exclusivamente pela
81
defesa de interesses econômicos particulares, muito característico desse setor do empresariado
rural até então.
Na visão da ABAG, o agribusiness, dada a sua importância econômica, encontra-se plenamente legitimado para aperfeiçoar suas potencialidades em benefício da sociedade e contribuir na solução dos grandes desafios estruturais do país, como, por exemplo: o desenvolvimento sustentado; uma maior integração a economia internacional; melhoria da distribuição de renda e eliminação dos bolsões de miséria; e a preservação do meio ambiente (BRUNO, 1997, p. 30).
De fato, a ABAG lança uma agenda de propostas do agronegócio para o conjunto da
sociedade, ao mesmo tempo em que se dissemina enquanto representante de todos os
agentes que direta ou indiretamente encontram-se envolvidos com a atividade agrícola e
agroindustrial, “as indústrias a montante, os produtores rurais, as indústrias a jusante,
armazenadores, transportadores, distribuidores, agentes que coordenam ou afetam o fluxo de
produtos, entidades financeiras, comerciais e de serviços” (BRUNO, 1997, p.30).
Em análise que faz do conteúdo da proposta da ABAG para o conjunto da sociedade, a
autora nos revela sua plataforma básica, que consiste basicamente na reconstituição da
renda do agricultor, redução da migração campo/cidade a partir dainteriorização do
desenvolvimento, pelo incentivo a produção agropecuária e agroindustrial de forma que
dêem sustentação as cidades no interior, evitando a concentração excessiva nos centros
urbano. Apoio ao pequeno produtor, este que seja ofertado de forma prioritária e
diferenciada, destacando que “mais importante que assentar os sem-terra é impedir que o
pequeno produtor sofra o paradoxo da liquidação” (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
AGRIBUSINESS, 1993apud BRUNO, 1997, p. 32), nesse sentido, são apontadas medidas
no âmbito da capacitação técnica e infra-estrutura para produção. A essas questões some-se
o interesse pelo desenvolvimento sustentado, pela preservação do meio ambiente e pela
estruturação de um sistema de crédito voltado para fusão de pequenas propriedades e para
ampliação de sua escala operacional e produtiva (BRUNO, 1997).
A autora faz considerações valiosas acerca dessa preocupação social dos empresários
do agronegócio associados à ABAG17. Neste caso, ao posicionar-se em apoio ao pequeno
17
No mesmo estudo a que no momento faz-se referência, BRUNO (1997) l ista a composição da diretoria da entidade quando da sua fundação em 1993, que cito agora em nota de rodapé por facil itar a visualização desses agentes econômicos no campo político. Diz a a utora que “ se tomarmos como referência a composição
da diretoria da ABAG e seu conselho administrativo, vemos que todos os setores e cadeias estão representados. Por exemplo, no setor cooperativista, há representantes da Batavo, Carol, Holambra, Cooxupe, Copersucar, Cotia, Mococa, Cocamar e Fecotrico. Em segundo lugar, temos o setor l igado ao comércio, trading, exportação e importações, como CPM Comercio Exterior Ltda, Agroceres S.A., Eximcoop, cotia trading
Comércio, Exportação e Importação, Comercial Quintela e Casas Sendas. As industrias de fertil izantes, insumos,
82
produtor, no sentido da adoção de medidas que levem a geração de renda e ao aumento de
sua capacidade produtiva a partir de sistemas de crédito agrícola, a questão da propriedade
da terra é considerada de menos importância na conformação dos problemas sociais no
campo, não se apresentando como elemento explicativo desses impasses, e assim a reforma
agrária não seria uma etapa necessária nessa equalização de um quadro social mais justo,
como propõe.
Nesse sentido, Bruno (1997) localiza a proposta da ABAG junto a um diagnóstico
reformista da realidade social do campo, dentre os quais um dos exemplos mais conhecidos
seria o trabalho de Silva. Neste trabalho, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, ao redigir
seu prefácio faz algumas afirmações que de antemão expressam ao leitor a perspectiva que
irá delinear toda sua estruturação, por onde afirma que
... nem há tanta terra agricultável e disponível como se imagina, nem o latifúndio improdutivo continua a ser a base da produção e mesmo da estrutura da propriedade agrícola brasileira, nem existem tantos sem-terras ávidos pela posse da terra como se imagina (SILVA apud BRUNO, 1997, p. 33).
Essa leitura reformista dos problemas agrários na tentativa de invisibilizar as
contradições que perpassam a estrutura agrária brasileira nega a existência de uma questão
agrária no campo, apesar da década de 1990 ter sido palco de explosivos conflitos neste
âmbito.
Sobre a agenda da ABAG para a sociedade, tem-se que
O recorte da ABAG não se dá pelo critério da propriedade. Para eles isso é irrelevante. O importante, o divisor de águas, se situa entre a agricultura não comercial e a agricultura comercial. Ou seja, entre a agricultura de baixa renda, os retardatários da modernização – que mantém uma incipiente articulação com o agribusiness, se baseia exclusivamente na terra e no trabalho, e carece de conhecimento de mercado, produtos e processos -, e a agricultura comercial, que se encontra diretamente vinculada ao agribusiness. Neste recorte, a questão da propriedade fundiária inevitavelmente se esvai (BRUNO, 1997, p. 33).
Nesse sentido, as preocupações voltam-se para que seja sanado esse “dualismo
tecnológico”, expresso de um lado pela presença da agricultura de mercado, e de outro pela
presença de uma agricultura tradicional de baixa renda que não consegue atingir os índices
de modernização necessários a sua inclusão no mercado. A autora revela que essa
disparidade entre as unidades produtivas de forma alguma é enxergada como um produto do máquinas e implementos agrícolas se fazem presentes em Fertibras, Copas, Monsanto do Brasil, Marchezan ‘Tatu” S.A., ICI do Brasil e Iochpe-Maxion. Respondendo pelas empresas agroindustriais temos Sadia, Nestlé, Cambuhy, Suprarroz e Sanbra. (...) Na atividade de pesquisa, representação acadêmica consultoria e comunicação aparecem USP – Pensa, UFRRJ, Emprapa, Agencia Estado e Agribusiness Comunicação, Assessoria
e Consultoria” (BRUNO, 1997, P. 37).
83
modelo de desenvolvimento da agricultura, altamente seletivo e excludente, mas é entendida
como um “desajustamento econômico e social”, onde resta aos retardatários do processo
acessar políticas de caráter social, “que atenda os nichos atrasados” (ASSOCIAÇÃO...1993
apudBRUNO, 1997, p.34).
Vê-se por isso que diante da necessidade de romper com a estrutura agrária,
necessidade colocada na cena política dos anos noventa pelas organizações independentes
dos trabalhadores rurais com destaque para atuação radicalizada do MST, a resposta
apresentada pelas elites rurais não se restringiu ao âmbito da repressão violenta apenas, mas
combinou força e consenso, este último no âmbito de suas associações políticas, por onde
tentaram demonstrar sua utilidade ao desenvolvimento nacional e sua preocupação com os
problemas sociais. No entanto, as alternativas apontadas em âmbito político resultaram na
dispersão ou secundarização desse elemento fundante das injustiças sociais no campo: o
monopólio capitalista da terra. Observa-se ainda o aprofundamento da lógica da competição
e seletividade entre os agricultores mais capitalizados, integrados ao sistema de mercado, e
os tradicionais, tachados de “retardatários”, rotulados enquanto “nichos atrasados”, pelo que
resulta um profundo movimento de despolitização da questão agrária, numa abordagem
linear que elimina o movimento contraditório da realidade, onde os que ainda não
“chegaram lá” precisam acessar políticas pró-modernização de suas atividades agrícolas e de
alguma forma se inserirem no mercado produtivo.
Destarte,
Face ao imperativo de relacionar a reforma agrária com a política agrícola, a segurança alimentar, a ecologia, o desenvolvimento sustentado, a cidadania, a luta contra a fome e miséria, a violência, os direitos, a democracia, etc. perdemos o rumo e esquecemos que reforma agrária no Brasil é, sobretudo, e essencialmente, uma questão política (BRUNO, 1997, p.34).
No que tange a essa postura temática, onde se discute tudo menos o rompimento com a
estrutura agrária, para os capitalistas do campo, a pauta da Reforma Agrária converte-se
numa questão técnica e operacional da política agrícola, por onde entram o acesso ao
crédito, a uma tecnologia mais avançada, à infra-estrutura adequada para as necessidades de
produção do agricultor, às políticas de comercialização de seus produtos, ao próprio
incentivo a competitividade, etc. Assim é esvaziada de seu conteúdo político. A questão da
propriedade é secundarizada, de outro lado, todas as medidas para inserir os pequenos
agricultores no mercado passam a ser levadas a cabo.
No entanto, uma leitura crítica acerca desse direcionamento permite situá-lo no âmbito
conservador de reprodução dos interesses capitalistas, por onde se evita discutir o caráter
84
excludente do modelo de agricultura capitalista integrada ao mercado, do qual muitos
agricultores são eliminados por não conseguirem acompanhar às exigências de uma busca
incessante por modernização, haja vista o estatuto das relações estabelecidas entre pequenos
produtores familiares e agentes industriais no modelo das cadeias produtivas pela via mais
frequente da absorção dos pequenos agricultores no circuito capitalista da agricultura,
monopolizado por grandes capitais industriais, agroindustriais e também o financeiro. Nesse
sentido, a perda da autonomia sobre o processo de produção é a maior marca da inclusão dos
pequenos agricultores no mercado, a realização de contratos de integração com grandes
empresas capitalistas, já mencionados em linhas anteriores, raríssimas vezes deixa margem
para que façam valer os interesses dos agricultores integrados, o movimento mais geral é
determinado mesmo pela seletividade e exclusão de parcelas que tentam assimilar o pacote
tecnológico imposto, de forma controlada e dependente.
Todavia, ao associarmos o estudo crítico acerca do movimento realizado no âmbito
das organizações políticas representativas das elites rurais às proposições do movimento
sindical rural para o enfrentamento dos problemas sociais no campo condensados em seu
PADRSS, pode-se observar um grande consenso estabelecido em torno da necessária
integração dos pequenos agricultores ao circuito mercadológico. De toda forma a
disseminação desse ideário pela ABAG nos anos noventa coincide com o amadurecimento e
consolidação do PADRSS no interior do sindicalismo rural, indicando que as elites rurais têm
conseguido estabelecer consensos acerca da sua forma de dirigir o conjunto da sociedade.
Também identificamos que a seu modo o movimento sindical rural compartilha do
movimento de dispersão temática do tema da reforma agrária, associado à perda de seu caráter
político, pelo que pesa a redução que faz desta pauta aos investimentos na agricultura
familiar, relacionando-a a questões mais técnicas e operacionais da política agrícola, sendo
secundarizada a questão da propriedade.
Há que ressaltar que o direcionamento proposto pela ABAG também foi absorvido
como o centro da política agrícola neoliberal implementada pelo Estado, do qual o PRONAF
foi o maior exemplo. No bojo de uma proposta preocupada em sanar determinado dualismo
tecnológico entre uma agricultura integrada ao mercado e de subsistência,ocupa o centro do
programa determinada concepção produtivista com ênfase no uso de insumos modernos para
garantia da larga produção.
Entre empresários, governos e o movimento sindical organizado em torno da
CONTAG condensou-se determinada concepção de mundo para o rural que tem no horizonte
85
da civilidade burguesa – empresarial e competitiva - a saída comum para todos os sujeitos,
onde o referencial maior é a agricultura modernizada, apta a ser competitiva.
86
5CONSIDERAÇÕES FINAIS
A fim de solidificar determinada apreensão acerca da adesão à pauta da agricultura
familiar associada ao desenvolvimento sustentável no âmbito do sindicalismo de
trabalhadores rurais, é de fundamental importância retomar inicialmente a afirmação trazida
por Silva (2010), pela qual diante da crise dos modelos de desenvolvimento do pós-segunda
guerra, a pauta do desenvolvimento sustentável é assumida pelas agendas do capital e do
trabalho enquanto uma saída para os problemas sociais, como um “um cimento capaz de
articular ações, propostas e reivindicações em nível projetual”(SILVA, 2010,p.186). Destarte,
do ponto de vista do trabalho, o discurso do Desenvolvimento Sustentável é incorporado pelo
movimento sindical urbano e rural num contexto de profunda crise e retrocesso do
sindicalismo classista, com o avanço do neoliberalismo e ascensão de práticas
colaboracionistas e institucionais que secundarizaram a luta direta e o enfrentamento com o
capital, e, portanto, com a possibilidade da ruptura com essa sociabilidade hegemônica.
Sendo assim, na entrada dos anos noventa do século passado, no momento em que a
crise econômica, de grande dimensão, atingiu as organizações sindicais dos trabalhadores, um
novo direcionamento foi impresso para o conteúdo da ação sindical no campo, a partir da
“junção” de dois grandes capitais políticos – CUT/RURAL e CONTAG, junção estabelecida
pela filiação desta última entidade à CUT. O intuito seria o de apresentar um saldo político de
renovação das bandeiras do movimento sindical rural, que então se desgastava pelo excessivo
legalismo e burocratismo da sua trajetória. Ao mesmo tempo, a conjuntura em que se deu esta
filiação da CONTAG à CUT foi marcada por um processo de burocratização e integração
desta última à ordem capitalista. Nesse sentido, aprofundou-se a discussão e ganhou
centralidade a defesa de um Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável -
PADRS.
O estudo das categorias centrais desse projeto, que de toda forma constituiu-se na
metodologia da presente pesquisa, aponta para o fato de que o movimento sindical rural
identifica na agricultura familiar integrada ao mercado a via para efetivação do seu ideal de
sustentabilidade, aliada a uma concepção tridimensional de desenvolvimento, que concilia
crescimento econômico com justiça social e preservação do meio ambiente. É necessário
pontuar que a agricultura familiar aparece diretamente associada a uma visão
predominantemente mercadológica, onde as inovações tecnológicas devem ser
necessariamente absorvidas para a sobrevivência dos agricultores no mercado produtivo,
como forma de aumentar as suas possibilidades de sobrevivência e adaptação na lógica
87
econômica vigente. Essa busca por um lugar na dinâmica econômica capitalista parece ter
sido a forma que o movimento sindical encontrou de fazer o enfretamento à pobreza e à falta
de oportunidades características do setor rural brasileiro para os seus membros empobrecidos
historicamente. Nessa mesma direção, tenta-se demarcar o espaço do agricultor na economia
de forma ativa e não subalternizada, na produção de alimentos para o mercado interno, em
contraposição ao agronegócio exportador, o que parece ilustrar o caminho por onde se pode
conciliar crescimento econômico com justiça social.
O movimento sindical rural também toma como referência para a agricultura familiar
o papel desempenhado por esta categoria de trabalhadores rurais nos países centrais. Esses
países teriam feito a opção por uma política estratégica de desenvolvimento rural centrada no
seu fortalecimento, onde o resultado teria sido a expansão do mercado interno e um processo
de acumulação de capital dentro do próprio país. O sindicalismo também parece ter buscado
em referenciais teóricos da academia o embasamento necessário para este modelo de
agricultura familiar mercantilizada que defende.
Destarte, no sentido de aproximarmo-nos ainda mais das particularidades do modelo
de agricultura familiar defendido pelo movimento sindical, foi que buscamos a referência de
Abramovay (1992), fundamental para aqueles que adotam esse direcionamento de mercado
para pequena produção. Segundo este autor, o novo paradigma para se compreender o
desenvolvimento do capitalismo na agricultura consiste na identificação do agricultor familiar
moderno, que já corresponde a uma profissão, diferente do campesinato assentado em bases
mais tradicionais de produção, menos capitalizadas e fora do circuito do mercado. Para o
autor, esta nova categoria encontra-se totalmente integrada ao mercado, sem apresentar
qualquer conflito ou contradição em relação ao desenvolvimento capitalista, sendo portadores
de uma natureza empresarial, de dinamismo técnico e capacidade de inovação
(ABRAMOVAY, 1992). Nesse sentido, a configuração da agricultura capitalista
contemporânea residiria na convivência entre as formas da agricultura familiar e patronal. O
autor também faz referência ao papel desempenhado pela agricultura familiar nos países
centrais, enfatizando o seu caráter produtivo, garantindo de forma abundante o abastecimento
do mercado interno.
No entanto, o cenário político e econômico que se desenvolve nos países centrais é
extremamente diverso do desenvolvimento do capitalismo agrário no Brasil. Pelos
pressupostos teóricos utilizados na pesquisa, podemos afirmar que em sua opção por uma
agricultura familiar integrada ao mercado o movimento sindical desconsidera o caráter
seletivo e excludente deste espaço, que percebemos ao considerar o conhecimento histórico e
88
crítico acerca das relações sociais presentes na agricultura e a localização social e econômica
dos trabalhadores rurais na sociedade brasileira. Nesse contexto, o referencial de agricultura
produtivista de mercado do movimento sindical é o daquela agricultura dos países centrais,
desenvolvida em um contexto descolado da realidade de reprodução da pequena produção
familiar no Brasil.
A partir de Wanderley (2009), pode-se entender a localização da “exploração familiar
fora da grande propriedade”, que se fez historicamente subordinada, estando sua condição
mesmo relacionada como à de um “trabalhador para o capital”, em que nos diferentes
momentos históricos até nossos dias teve sua possibilidade de existência real limitada ao
estreito espaço forjado pelos proprietários de terra e pelo grande capital, como um “agente
necessário da acumulação”, em nada se assemelhando a sua caracterização no seio de
sociedades rurais desenvolvidas a partir da realização de uma Reforma Agrária.
Diante do peso de uma reforma agrária nunca realizada a subalternidade sempre foi a
marca da inserção dos pequenos agricultores no mercado. A partir do momento da
industrialização da agricultura, com a solidificação do modelo denominado de cadeia
produtiva, que se estabeleceu enquanto hegemônico no mercado de produção de alimentos,
assistiu-se ao movimento no qual diante de gigantes da agroindústria processadora de
alimentos e da indústria de insumos modernos, os pequenos agricultores tiveram que, por
imposição, aderir um modelo tecnológico extremamente caro e verticalizado, onde a perda da
autonomia no processo produtivo aproxima esses agricultores de relações de assalariamento
disfarçadas. Ao mesmo tempo, é necessário retomar o que revelou Carvalho (2005), ao relatar
um processo de constante decomposição desse segmento pela lógica modernizante. Segundo o
autor, de toda forma, dentre os pequenos produtores que tentam modernizar-se, boa parte
termina por adquirir dívidas e ter que abandonar suas terras para saldá-las, abrindo caminho
para que os grandes produtores a adquiram por preços muito abaixo do que realmente valem.
É considerando o caráter intrínseco ao desenvolvimento do mercado de produção de
alimentos no Brasil após o ciclo completo de industrialização da agricultura que afirmamos
que a ênfase nesse direcionamento mercadológico da agricultura familiar ao invés de
apresentar uma saída que realmente oponha-se aos interesses do agronegócio, contribui para
seu fortalecimento, por desconsiderar o conflito estabelecido entre capital e trabalho na
agricultura, onde o ideal de justiça social e preservação do meio ambiente que se fazem
presentes no PADRSS encontram um vácuo concreto de efetivação. Ainda que tenha um
caráter que negue algum elemento intrínseco ao desenvolvimento do capitalismo na
agricultura, essa integração dependente e empobrecedora que toma o centro do PADRSS é
89
sistêmica à lógica de acumulação existente para o campo, que concentra riqueza cada vez
mais.
Faz-se necessário considerar a ação realizada no âmbito da rearticulação política das
elites agrárias, que aponta para o desenvolvimento de um novo discurso no âmbito da
organização política e institucional do empresariado rural, pelo qual tentam demonstrar sua
utilidade ao desenvolvimento nacional e sua preocupação com os problemas sociais no
campo. Esse discurso passa pela adesão às iniciativas de apoio ao pequeno produtor, no
sentido da adoção de medidas que levem a geração de renda e ao aumento de sua capacidade
produtiva a partir de sistemas de crédito agrícola que assegurem seu acesso e permanência nos
mercados.
Retomando ABAG (1993 apud BRUNO, 1997, p.34) as preocupações voltam-se para
que seja sanado um “dualismo tecnológico”, que se expressa de um lado pela presença da
agricultura de mercado, e de outro pela presença de uma agricultura tradicional de baixa renda
que não consegue atingir os índices de modernização necessários a sua inclusão no mercado.
A autora revela que essa disparidade é entendida como um “desajustamento econômico e
social”, onde resta aos retardatários do processo acessar políticas de caráter social, “que
atenda os nichos atrasados”. Essa mesma situação leva a redução do caráter político da
reforma agrária, reduzida aos investimentos em iniciativas que abarquem pequenas unidades
de produção, resultando em sua dispersão temática, na qual se discute tudo - crédito,
tecnologia mais avançada, a infra-estrutura adequada, as políticas de comercialização,
incentivo a competitividade - menos o rompimento com a estrutura agrária.
Destarte, pode-se observar um grande consenso estabelecido em torno da necessária
integração dos pequenos agricultores ao circuito mercadológico como a saída para os
problemas sociais no campo, presente na proposta direcionada ao conjunto da sociedade
Brasileira pela Associação Brasileira de Agronegócio – ABAG, no direcionamento da política
agrária veiculada pelo estado brasileiro e no âmbito da proposta sindical, como indicativo do
fato de que o empresariado rural tem conseguido construir consensos em torno de sua forma
de dirigir o conjunto da sociedade, que aponta para um ideal de agricultor competitivo e
modernizado.
Acredito que a reafirmação da lógica da produtividade e competitividade configura um
movimento sindical cada vez mais subsumido à lógica do capital. O teor empreendedor
atribuído à figura do agricultor familiar parece despir o sujeito político do campo da sua
condição concreta e ideológica de pertencente a uma classe para implicá-lo em outra, pelo
menos aparentemente. Destarte, assim como o moderno produtor do agronegócio, o agricultor
90
familiar moderno poderá inserir-se competitivamente na lógica produtiva da economia
capitalista, com a diferença de atender ao mercado interno. Aqui o caráter de empreendedor
atribuído ao trabalhador, sob a lógica deste último tentar ser ou ser um empresário, revela a
identidade de classe quase ou totalmente perdida.
Nesse sentido, em minha apreensão, a ênfase na integração dos agricultores familiares
ao mercado, parece converter o que era um modo de vida camponês, uma forma de ser e estar
no campo - resultante do processo de exclusão social e econômica que dá forma as expressões
da questão agrária no Brasil, e que determinou todo um cenário de lutas sociais e de
contestação à consolidação e expansão da grande propriedade - em uma profissão, na qual lhe
resta à integração ao mercado, num processo de profunda despolitização da questão agrária,
pois
retira os conflitos de classe de cena e transfere todos os problemas para o mercado e para as políticas de incentivo à produção, já que os mesmos estariam sendo resolvidos à medida que se apresentam soluções e medidas concretas para o aumento da produção etc. (...) Se para alguns não há a possibilidade de existência do camponês com a intensificação das relações capitalistas, tampouco é entendido como ator efetivo da resistência e das transformações sociais (THOMAZ JÚNIOR, 2008, p. 292).
No âmbito político, no que se refere aos impactos sobre a luta de classes, é que
podemos retomar o conceito de hegemonia e refletir acerca da unilateralização da
subjetividade dos trabalhadores rurais. Pelo que afirma Carvalho (2009, p. 5) nas suas
reflexões a respeito,
vivenciado aqui e acolá diferentes formas de aliança econômica com o capital do agronegócio, como a adoção do modelo tecnológico dominante e/ ou a integração por contrato de produção, os produtores rurais foram perdendo a sua autonomia potencial como camponeses e a possibilidade de desenvolverem a consciência de classe social. Aliaram-se, por conveniência, ao capital, e como subproduto dessa aliança aderiram à ideologia dominante: afirmaram o individualismo e a competição não como outrora se sugeriu ideologicamente serem essas as práticas históricas camponesas, mas porque se percebem como pequeno burgueses que haviam assumido os valores da racionalidade capitalista.
A partir do estudo realizado no presentepode-se obter a massa crítica necessária para
afirmar que ao mesmo tempo em que apresenta limites para fazer enfrentamento aos
interesses capitalistas no campo, a pauta da agricultura familiar associada ao desenvolvimento
sustentável assumida ativamente pelo movimento sindical de trabalhadores rurais nos anos
noventa do século XX,significou a afirmação de valores burgueses e um avanço na
consolidação da hegemonia do agronegócio.
91
Se em determinada fase da trajetória do sindicalismo rural a conciliação de classes se
materializava a partir de uma postura largamente institucional e legalista, ausente de direções
dispostas a apropriarem-se de outras estratégias de luta política fora do espaço “permitido”
pelo Estado, atualmente a pauta do desenvolvimento sustentável sob as bases da agricultura
familiar integrada ao mercado instaura uma nova forma de colaboracionismo, por apontar o
produtivismo de mercado como a saída comum para os problemas sociais no campo. Dessa
forma os camponeses também são submetidos à alienação de classe, pois são chamados a
adaptarem-se a dinâmica dos mercados como única possibilidade viável de emancipação, num
continuo movimento de passivização ideológica.
Em diferentes momentos históricos, o padrão de relações sociais estabelecido pelo
desenvolvimento do capitalismo na agricultura tem alienado setores inteiros dos meios
necessários ao estabelecimento de uma vida digna e de uma realidade verdadeiramente justa,
de toda forma a superexploração do trabalho e a subalternidade aparecem enquanto os
maiores efeitos sociais do processo de adaptação ao circuito hegemônico do capital. Esse é o
quadro mais geral funcional ao desenvolvimento do capitalismo no campo, não se trata de
identificar lacunas sanáveis ou tentar contornar a sua lógica destrutiva, mas de entender que
essa é a forma mesmo que assume sua reprodução, produzindo riqueza abundante e no mesmo
movimento reproduzindo todo o quadro de pobreza e exclusão que marcam a história do
campo brasileiro.
De toda forma, pensar a modificação da realidade social neste âmbito pressupõe
pensar estratégias potenciais no tensionamento a esta lógica. Por todos os elementos
apontados o PADRSS mostra-se infecundo nessa direção, por onde deve passar
necessariamente a resistência à política agrícola neoliberal e à imposição do modelo
produtivista de mercado como única possibilidade de desenvolvimento rural, a diferenciação
de um projeto dos trabalhadores do projeto das classes dominantes, a recusa desse modelo
excludente de agricultura, a busca por alternativas de produção que garantam ao agricultor o
controle sobre o processo produtivo e a valorização de suas práticas tradicionais, que
condensem o seu saber e a sua realização enquanto sujeito autônomo. Nessa perspectiva o
mercado pode ser um meio, por onde perpassem estratégias imediatas de sobrevivência, mas
não um fim sem si mesmo, que condense a única via de emancipação para os trabalhadores
rurais.
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REFERÊNCIAS
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