UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL
CURSO DE PSICOLOGIA
A QUESTÃO DA INSEGURANÇA E OS NÚCLEOS HABITACIONAIS SEGREGADOS:
PERCEPÇÕES SOBRE O BECO DOS TRILHOS
E OS BAIRROS SOARES, RIO BRANCO E SÃO LUÍS
DEIVIT ROBERSON TRINDADE DA SILVA
Cachoeira do Sul, Dezembro de 2005.
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UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL
CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE E DO BEM-ESTAR
CURSO DE PSICOLOGIA
A QUESTÃO DA INSEGURANÇA E OS NÚCLEOS HABITACIONAIS SEGREGADOS:
PERCEPÇÕES SOBRE O BECO DOS TRILHOS
E OS BAIRROS SOARES, RIO BRANCO E SÃO LUÍS
DEIVIT ROBERSON TRINDADE DA SILVA
ORIENTADORA: PROF. Ms. GISELE TROMMER MARTINES
Monografia em Psicologia I e II
Cachoeira do Sul, Dezembro de 2005.
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Agradecimentos
A meus pais, Mário e Noela, porque acima de tudo me proporcionaram algo que
ninguém poderá tirar: a oportunidade de ter recebido uma boa formação.
À minha tia, Lena, pelo apoio incondicional e carinho em todas as horas.
À minha noiva, Gabriele, pelo amor, compreensão e sobretudo pela paciência com que
tem me “agüentado” nesses últimos meses.
A meus irmãos, Dailton e Andrei, e toda a minha família, pela compreensão nos
momentos em que deixamos de estar juntos: foi por uma boa causa.
À minha orientadora, Gisele Martines, pela prontidão e confiança em meu trabalho.
Aos oito sujeitos de pesquisa, pela disposição em participar do estudo.
Aos colegas do Banco do Brasil, que incentivam e colaboram com meus estudos,
facilitando horários e relevando as saídas repentinas.
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Resumo
Este estudo tem o objetivo de investigar os sentidos produzidos sobre o sentimento de
insegurança denunciado pela mídia de Cachoeira do Sul em relação à população da região
centro-leste do município, especificamente dos bairros Soares, Rio Branco e São Luís e do
Beco dos Trilhos. A partir de entrevistas com dois moradores de cada um dos bairros
mencionados foi constatado haver nos habitantes do município, assim como em muitos locais
exemplificados pela literatura, o crescimento de sentidos correspondentes ao incremento da
individualidade e isolamento das pessoas. O método de investigação utilizado é a pesquisa
qualitativa e as entrevistas semi-estruturadas guiam a coleta de dados. A análise foi realizada
através do método de práticas discursivas e produção de sentidos e a análise dos dados
baseada no mapa de associações de idéias. Sendo a violência uma das maiores preocupações
do ser humano, faz parte do instinto de autopreservação se preparar para enfrentar ameaça. A
alternativa encontrada tem sido o recolhimento das pessoas à residência. Ao mesmo tempo em
que essa atitude evita ao máximo à exposição a perigos, restringe a liberdade do cidadão
urbano. Ao longo deste estudo, esses resultados são enfocados sob a ótica psicanalítica do
desamparo, a questão da segurança sob uma abordagem filosófica existencialista e por fim a
partir do entendimento da psicologia social. A partir dessas perspectivas, este estudo se
configura como instrumento de reflexão sobre o tema, e contribui para a assunção de uma
ótica mais promissora sobre o assunto.
Palavras-chave: insegurança, individualidade, social, violência.
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Lista de Figuras
1. Figura 1 – Localização Geográfica da Residência dos Participantes................................... 41
Lista de Tabelas
1. Tabela 1 – Dados de Identificação dos Participantes........................................................... 42
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Sumário
Introdução................................................................................................................................ 08
1. Problemas........................................................................................................................... 10
2. Objetivos............................................................................................................................ 11
2.1. Geral................................................................................................................. 11
2.2. Específicos....................................................................................................... 11
3. Revisão Bibliográfica......................................................................................................... 12
3.1. Um olhar psicanalítico sobre a atualidade........................................................ 12
3.2. A sedução do efêmero e as implicações na identidade.................................... 17
3.3. Exposição e insegurança: o individualismo como norma................................ 20
3.4. Um violento contra-ataque............................................................................... 24
3.5. A sub-habitação como raiz da violência.......................................................... 28
3.6. Baixa renda e preconceito................................................................................ 32
3.7. A manifestação da insegurança em Cachoeira do Sul...................................... 35
3.8. O início da polêmica........................................................................................ 37
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4. Método............................................................................................................................... 39
4.1. Pressupostos teórico-metodológicos.................................................................39
4.2. Participantes da Pesquisa................................................................................. 40
4.3. Coleta e Registro de Dados.............................................................................. 43
4.4. Análise e Interpretação dos Dados................................................................... 45
4.5. Instrumentos de Pesquisa................................................................................. 48
5. Resultados e Discussão................................................................................................ 49
5.1. Insegurança: quando o lar se transforma em prisão......................................... 49
5.2. Criminalidade: o ser humano cada vez mais acuado........................................ 61
5.3. Pobreza x violência: um olhar sobre o Beco e seu entorno.............................. 71
5.4. Urbanização: solução ou extinção do convívio?.............................................. 76
Considerações Finais................................................................................................................ 81
Referências............................................................................................................................... 86
Apêndices................................................................................................................................. 90
Apêndice A................................................................................................................... 90
Apêndice B................................................................................................................... 91
Apêndice C................................................................................................................... 92
Apêndice D................................................................................................................... 94
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Introdução
A violência, em termos globais, é uma das maiores preocupações do ser humano.
Provavelmente só não é tão ansiogênica quanto às constantes catástrofes climáticas que o
planeta vem sofrendo nos últimos anos. São guerras, atentados terroristas, assaltos, roubos,
seqüestros, estupros, assassinatos, e de tempos em tempos surge uma nova modalidade de
barbárie que não era nem cogitada há algum tempo. Exemplo disso são os atentados de 11 de
Setembro, às torres gêmeas do World Trade Center, nos Estados Unidos; em Madri, na
Espanha ou em Beslan, na Rússia, noticiados em todos os jornais do mundo.
O sentimento de desproteção diante do mundo está longe de emergir como um fato
novo. Sigmund Freud já se perguntava em 1930 até quando o desenvolvimento cultural do
homem conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo instinto humano
de agressão e autodestruição, para ele, inato e subjugado pela cultura. O homem se torna cada
vez mais apreensivo e preparado para se defender. Faz parte do instinto de autopreservação se
preparar para enfrentar ameaças. As alternativas acabam se resumindo a duas: estar sempre
alerta e pronto para reagir ou recolher-se à residência e evitar ao máximo de exposição a
perigos. Daí surgem os condomínios fechados, a crescente procura por prédios e apartamentos
vigiados com guaritas, as cercas elétricas, os muros altíssimos com cacos de vidro, e assim
por diante. O cidadão restringe sua liberdade para evitar se expor.
Há muitos anos a urbanização dos grandes centros vem mostrando um problema sem
proporções, que ultrapassa a capacidade logística e de controle da administração pública.
Estes fatores condicionam as pessoas a estarem sempre preparadas para se defender e proteger
sua família. O problema é traduzido pela aparência de verdadeiras fortalezas que algumas
residências adquirem.
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Atualmente, em Cachoeira do Sul, um fato tem merecido destaque nas manchetes de
jornais locais, pois diz respeito ao primeiro levante contra o enclausuramento dos cidadãos em
suas próprias casas no município. Em função do aumento da criminalidade demonstrado pelas
estatísticas publicadas nos jornais locais, moradores de classe média alta dos bairros Rio
Branco, São Luís e Soares se uniram para exigir que o poder administrativo municipal lhes
ofereça segurança e tranqüilidade. O fator decisivo indicado para a resolução da questão é a
tomada de alguma atitude em relação a um espaço urbano denominado Beco dos Trilhos,
recentemente rebatizado pela Prefeitura de bairro Virgilino Jaime Zinn, como ponto de
partida do processo de urbanização. O espaço é circundado pelos três bairros de classe média
alta e apontado como o ponto de origem e escoadouro de grande parte dos problemas.
A contraposição entre os moradores dos diferentes locais, que constituem na região
centro-leste da cidade, traz à tona uma visível sensação de mal-estar. À medida que o bairro
pobre desponta como núcleo gerador da violência, emerge um movimento de insatisfação dos
moradores do Beco, que reclamam a manutenção de sua subjetividade e para que não hajam
rotulações indevidas.
É o sentimento de estar exposto e inseguro que remete a este estudo. Justifica-se um
trabalho com o objetivo de identificar os sentidos empreendidos nas práticas discursivas dos
moradores tanto do Beco quanto dos bairros nobres a respeito do assunto insegurança.
Pretende-se reconhecer nos moradores do local, situações que causam apreensão e levantar
entre as práticas discursivas a existência ou não de sentidos referentes à aproximação entre
pobreza e violência. O propósito é – através dos relatos de cidadãos comuns – organizar os
sentidos produzidos no local, a fim de perceber como os moradores encaram a situação na
prática.
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1. Problemas
A que remetem as práticas discursivas dos moradores dos bairros Soares, Rio Branco e
São Luís e do Beco dos Trilhos em Cachoeira do Sul em relação à insegurança?
O sentimento de insegurança denunciado pela mídia local em relação aos moradores
dos bairros Soares, Rio Branco e São Luís e do Beco dos Trilhos condiz com os sentidos
produzidos pelos moradores?
O sentimento de insegurança – caso confirmado – remete à proximidade dos bairros
Soares, Rio Branco e São Luís ao Beco dos Trilhos?
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2. Objetivos
2.1. Geral
Identificar os sentidos presentes nas práticas discursivas dos moradores dos bairros
Soares, Rio Branco, São Luís e do Beco dos Trilhos com relação às notícias de crescimento
da insegurança que assola esta região do município.
2.2. Específicos
Descobrir como os moradores percebem a situação da criminalidade e da segurança
em âmbito da própria residência, do bairro e do município que habitam.
Verificar se há relação entre o sentimento de insegurança dos moradores dos bairros
Soares, Rio Branco, São Luís e do Beco dos Trilhos denunciado pela mídia e a proximidade
com a população de baixa renda.
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3. Revisão Bibliográfica
3.1. Um olhar psicanalítico sobre a atualidade
Sigmund Freud (1930 / 1988) há 75 anos, já declarava que os homens adquiriram
sobre as forças da natureza tal controle que, com sua ajuda, não teriam dificuldades em se
exterminar uns aos outros, até o último homem. Esta questão, por si já constitui bom motivo
para discussão. Entretanto, o foco central do trabalho de Freud (1930 / 1988) sobre a
civilização não está nessa frase, mas no fato de que os homens: “sabem disso e é daí que
provém grande parte da atual inquietação, de sua infelicidade e de sua ansiedade”. Em termos
globais, trazendo essas afirmações à nossa época, bons exemplos disso são a recém finalizada
guerra entre Iraque e Estados Unidos e a Guerra Fria com a antiga União Soviética.
No primeiro caso a luta foi justificada pelo presidente americano George W. Bush por
motivos de preocupação com o bem-estar mundial e a fabricação de armas químicas por um
país governado pelo ditador Saddam Hussein. Além de “libertar” o povo iraquiano, o mundo
seria livrado de uma ameaça. Enrustida aí, clara apreensão com o petróleo, força motriz da
economia do planeta e sobre o qual o Oriente Médio possui maior domínio, devido às
privilegiadas jazidas que a natureza lhe ofereceu (JP, 08.04.2003, p. 6).
Durante a primeira guerra “interativa” da história, televisionada diariamente, muito se
comentava sobre as forças militares e bélicas iraquianas e se levantava suposições sobre sua
agressividade e capacidade dos soldados de morrerem defendendo o ditador, a exemplo dos
kamikazes japoneses na Segunda Guerra Mundial. Por esses motivos, especialistas alertaram
que a guerra podia durar muito tempo (JP, 21.04.2003, p. 6). Isso não aconteceu devido ao
esmagador poder de fogo americano. Com o fim do conflito, ainda não foram encontradas as
tão faladas armas químicas. É até provável que os Estados Unidos - para não serem
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desmoralizados por terem iniciado uma guerra sem motivo, baseada somente em hipóteses -
fossem capazes de “plantá-las” no Iraque para dar satisfação ao mundo (JP, 08.04.2003, p. 6).
Na verdade, de acordo com os noticiários e a imprensa escrita e audiovisual, o que se
encontrou no Iraque foi uma população pobre, esfomeada, sem as mínimas condições de
higiene, e com pouquíssimas oportunidades de recomeçar sua vida. Tudo o que resta são os
alimentos distribuídos pelos soldados americanos, após eles mesmos terem bombardeado
casas e cidades, devastando completamente o pouco que o povo ainda tinha: cultura e
identidade. O país está dividido em diversas facções que não chegam a acordo e os
“benfeitores” americanos insistem em participar do governo a ser instaurado. A Guarda Real,
como era denominada a temida tropa de elite de Saddam Hussein era composta de soldados
sem armamentos, sem tecnologia, com capacetes furados e roupas em farrapos. A dúvida
sobre o reerguimento do país ainda é a mesma de quando o poder estava nas mãos do ditador.
(JP, 21.04.2003, p. 6).
No caso da Guerra Fria, a imprensa noticiou anos e anos de duelo entre os Estados
Unidos e a União Soviética numa corrida armamentista que causava inquietação em todo o
mundo diante da ameaça nuclear atômica e a destruição completa da população do planeta.
Nesse caso também não havia uma razão real aparente para o contraponto, a não ser a
desconfiança e uma possível vulnerabilidade a um ataque pelos dois lados.
Neste ponto, nos encontramos novamente com idéias de Freud: a questão fatídica para
a espécie humana é saber até que ponto seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a
perturbação da vida comunal causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição,
inato e “domado” pela cultura. Se for verdade que o processo civilizatório se aproxima e se
complementa no desenvolvimento individual, é impossível desprezar o ponto até o qual a
civilização é construída sobre uma renúncia ao instinto e o quanto ela pressupõe exatamente a
não-satisfação de instintos poderosos (Freud, 1930 / 1988).
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Os argumentos de Freud (1930 / 1988) partem não da agressividade, mas de um
sentimento que os seres humanos têm de elo com o mundo, que proporciona uma sensação de
eternidade, utilizado pela religião de forma canalizada para dar um sentido à vida. Ao
contrário do que pensava na época, Freud chegou à conclusão de que esse sentimento teria
origem na relação do ego com o exterior, que previamente ele considerava como bem
demarcada. Até o momento, essa tese era apenas refutada nos casos em que o indivíduo está
apaixonado e se considera “unido” ao objeto de amor, revivendo uma situação semelhante ao
recém nascimento, quando o mundo externo não está diferenciado e a criança percebe as
coisas como uma extensão de seu próprio corpo.
É apenas quando a falta dos objetos de prazer - como a falta do seio da mãe - começa a
ser notada e só reaparece depois do choro, que o mundo externo vai sendo construído e surge
a tendência do ego a isolar-se do sofrimento ou desconforto, dando origem ao que Freud
chama de princípio do prazer. Com o início da diferenciação entre ego e objeto começa a
surgir o princípio da realidade, que finalmente nos separará do mundo externo. Apesar dessa
divisão, é preservada uma espécie de vínculo entre o indivíduo e o mundo e gerada uma
sensação de desamparo, que remete à relação paterna, assumida agora pelo destino (Freud,
1930 / 1988).
Para Freud (1930 / 1988) essa sensação de desproteção acontece porque “a vida, tal
como a encontramos, é árdua demais para nós, proporciona-nos muitos sofrimentos,
decepções e tarefas impossíveis”. Em função disso, o ser humano formula medidas paliativas
para suportar as imposições vitais, a exemplo da arte, da religião e dos tóxicos, que graças à
importância da fantasia em nosso aparelho psíquico conseguem diminuir a sensação de
pequenez diante da imensidão do mundo.
De acordo com Birman (2001), sob o desamparo, o sujeito se encontra diante da
pressão constante das forças pulsionais, que o atingem em diferentes direções e o inundam. O
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indivíduo é tomado pelo excesso e obrigado, por um lado, a realizar um trabalho de ligação
das forças irruptivas, constituindo um campo de objetos capazes de oferecer possibilidades de
satisfação e, por outro, se impor a exigência de nomeação das forças.
Birman (2001) afirma que na experiência do desamparo cabe ao sujeito a tarefa
imperiosa de dominar satisfatoriamente as intensidades que lhe acometem, ao mesmo tempo
em que direciona os excessos pulsionais para derivações simbólicas. Enfim, tudo isso se
recoloca de maneira permanente e renovada. A pulsão como força constante se apresenta de
forma repetida. O sujeito se encontra na posição inevitável de angústia do real, que pode ter
um efeito traumático caso ele não consiga transformá-la em angústia do desejo, já que o efeito
do impacto pulsional é sempre a angústia.
Giddens (1991) fala de uma segurança ontológica, que abriga aspectos da confiança e
processos de desenvolvimento que parecem se aplicar a todas as culturas e aparenta ter sido
abalada com o advento da modernidade. Esse sentimento se refere à crença que a maioria dos
seres humanos tem na continuidade de sua auto-identidade e a na constância dos ambientes de
ação social e material circundantes, uma sensação de fidedignidade de pessoas e coisas. Trata-
se de um fenômeno emocional, enraizado no inconsciente. “Na sociedade moderna, o eu é
frágil, quebradiço, fraturado, fragmentado – tal concepção é provavelmente a visão
predominante nas discussões em curso sobre o eu e a modernidade” (Giddens, 1991, p. 157).
Bauman (1998) assinala que todo tipo de ordem social produz fantasias dos perigos
que ameaçam a identidade e cada sociedade gera fantasias elaboradas conforme sua própria
medida ou o tipo de ordem social que se esforça em ser. Essas fantasias tendem a ser imagens
espelhadas da comunidade que as gera, enquanto a imagem da ameaça tende a ser um auto-
retrato da sociedade com um sinal negativo, o que equivale à projeção da ambivalência
interna da sociedade sobre seus próprios recursos, a maneira como vive e perpetua seu modo
de viver.
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A sociedade insegura da sobrevivência de sua ordem desenvolve a mentalidade de
fortaleza sitiada. Mas os inimigos que lhe sitiaram os muros são os seus próprios
“demônios interiores” – os medos reprimidos e circundantes que lhe permeiam a vida
diária e a “normalidade”, e que, no entanto, a fim de tornar suportável a realidade
diária, devem ser dominados, extraídos do cotidiano vivido e moldados em um corpo
estranho, um inimigo tangível com que se possa lutar, e lutar novamente, e lutar até
sob a esperança de vencer (Bauman, 1998, p. 52).
A reflexividade da modernidade se estende ao núcleo do eu, que se torna um projeto
reflexivo. Apesar de transições nas vidas dos indivíduos sempre terem demandado
reorganização psíquica, em épocas anteriores essas passagens ocorriam através de rituais. A
mudança de identidade era claramente indicada, porém, em nível de coletividade, as coisas
permaneciam mais ou menos as mesmas, geração após geração. Na era moderna, por
contraste, o eu alterado tem que ser explorado e construído como parte de um processo
reflexivo de conectar mudança pessoal e social (Bauman, 1998).
Birman (2001) concorda com essas afirmações. Para o autor, a modernização do social
impôs exigências para a subjetividade. Esta deve ser permanentemente remodelada em
conseqüência dos processos de transformação contínua da ordem social. O mundo tradicional
é desmapeado, perde seu traçado de linhas claras e precisas e adquire uma dimensão de
infinitude, onde rotas e os caminhos se multiplicam numa espécie de espiral ascendente. A
família, as novas valorizações da infância e da adolescência, a masculinidade, a feminilidade
e a sexualidade foram expostas a um árduo processo cultural de redescrição, na passagem do
sujeito da ordem tradicional para a moderna. Esses fatores colaboraram para o aumento da
incerteza do indivíduo, exposto a uma maior quantidade de opções e escolhas. A insegurança
e a angústia se multiplicam e se transformam, assumindo novas formas. O ser humano se
sente exposto, desamparado.
17
3.2. A sedução do efêmero e as implicações na identidade
De acordo com Bauman (1998) os demônios interiores da sociedade pós-moderna
nascem dos poderes de sedução do mercado consumidor. O que se tem registrado
ultimamente como criminalidade cada vez maior não é um produto de mau funcionamento ou
negligência, nem de fatores externos à sociedade, mas o próprio produto da sociedade de
consumidores. Quanto mais elevada a “procura do consumidor”, isto é, quanto mais eficaz a
sedução do mercado, mais a sociedade é segura e próspera. Simultaneamente há o hiato entre
os que desejam e os que podem satisfazer os seus desejos, ou entre os que foram seduzidos e
passam a agir do modo como essa condição os leva a agir e os que foram seduzidos mas se
mostram impossibilitados de agir do modo como se espera.
Nesse contexto, Bauman (1998) enfatiza que a sedução do mercado, transmitida em
todas as direções, é ao mesmo tempo “igualadora” e “divisora”. Isto significa que – apesar de
a mensagem ser transmitida a todos – existem mais daqueles que podem ouvi-la do que
daqueles que podem reagir do modo como a mensagem sedutora pretendia. Os que não
podem agir segundo os desejos induzidos são diariamente confrontados com o deslumbrante
espetáculo dos que podem fazê-lo. O consumo abundante é a marca do sucesso e a estrada
que conduz ao aplauso. Possuir e consumir determinados objetos e adotar certos estilos de
vida são condições necessárias para a felicidade. Em contrapartida, não se pode declarar
guerra ou combater à tendência do mercado de elevar os sonhos e desejos dos consumidores a
um estado de frenesi. Por mais prejudicial que essa tendência se revele à ordem, há uma
espécie de regulamentação normativa que orienta à elevação do desejo do consumidor (p. 56).
Nesse sentido, o autor supracitado define que a própria liberdade está se
transformando nos direitos e não mais em sua satisfação, só podendo durar enquanto
permanecer irrealizada. “O ímpeto de consumo, exatamente como o impulso de liberdade,
torna a própria satisfação impossível. Necessitamos sempre de mais liberdade que temos,
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mesmo que a liberdade de que achamos que necessitamos seja liberdade para limitar e
confinar a liberdade atual” (Bauman, 1998, p. 175).
Essas afirmações podem ser comparadas às questões levantadas por Freud (1930) em
relação ao desejo referente ao impulso instintivo original do id, que nunca conseguirá assumir
satisfação plena e acaba gerando conflitos com o ego.
Larsch (in Bauman, 1998) ressalta que o mundo construído de objetos duráveis foi
substituído pelo de produtos projetados para obsolescência, onde as identidades podem ser
adotadas e descartadas como uma troca de roupa. O grande problema é que mantendo as
opções abertas todo trabalho de construção da identidade torna-se inútil, pois não há
comprometimento com a própria história.
Se o consumo é a medida de uma vida bem-sucedida, da felicidade e mesmo da
decência humana, então foi retirada a tampa dos desejos humanos: nenhuma
quantidade de aquisições e sensações emocionantes tem qualquer probabilidade de
trazer satisfação de maneira como o “manter-se ao nível dos padrões” outrora
prometeu: não há padrões a cujo nível se manter – a linha de chegada avança junto
com o corredor, e as metas permanecem continuamente distantes, enquanto se tenta
alcançá-las. Muito adiante, recordes continuam a ser quebrados. Deslumbradas e
desconcertadas, as pessoas ficam sabendo que, nas companhias recém-privatizadas, e
assim “liberadas”, de que se lembram como instituições públicas que eram austeras e
constantemente famintas de dinheiro, os atuais diretores recebem salários calculados
em milhões, enquanto os que perderam os cargos de diretores são indenizados, mais
uma vez em milhões de libras, por seu trabalho desleixado e malfeito. De todos os
lugares, por intermédio de todos os meios de comunicação, a mensagem surge forte e
clara: não existem modelos, exceto os de apoderar-se de mais, e não existem normas,
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exceto o imperativo de “saber aproveitar bem as cartas de que se dispõe” (Larsch, in
Bauman, 1998, p. 56).
Giddens (2002) enfatiza que a confiança entre as pessoas é ambivalente e a
possibilidade de rompimento está sempre presente nas relações de intimidade do mundo
moderno. Laços pessoais podem ser rompidos e laços de intimidade podem voltar à serem
contatos impessoais, como no caso amoroso rompido, quando o íntimo torna-se de súbito
novamente um estranho.
Bauman (1998) acrescenta que os efeitos psicológicos desta nova concepção
conduzem a uma incerteza assustadora. Nenhum emprego é garantido, nenhuma posição é
segura, nenhuma perícia é de utilidade duradoura. A experiência e a prática se convertem em
responsabilidade logo que se tornam haveres e carreiras sedutoras se revelam suicidas. Os
direitos humanos não trazem mais a aquisição do direito a um emprego, por mais que bem
desempenhado, e meio de vida, posição social e reconhecimento da utilidade podem
desvanecer-se da noite para o dia e sem se perceber.
Giddens (2002) salienta que essa condição de incerteza prejudica o desenvolvimento
da segurança ontológica, que necessita de ambientes relativamente seguros da vida diária para
sua manutenção e é sustentada pela rotina. Atualmente, os hábitos que fornecem segurança
em sua maioria vêm carecendo de significado moral e tanto podem ser experimentadas como
práticas “vazias” quanto parecer esmagadoras. No momento em que rotinas são radicalmente
rompidas, ou alguém decide alcançar maior controle reflexivo sobre sua auto-identidade, o
sujeito pode sentir-se particularmente abandonado em momentos decisivos, porque em tais
momentos os dilemas morais e existenciais se apresentam de maneira urgente. “É como se o
indivíduo enfrentasse o retorno do recalcado, mas provavelmente lhe faltam os recursos
psíquicos e sociais para lidar com as questões assim apresentadas” (p. 155).
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3.3. Exposição e insegurança: o individualismo como norma
O conceito de cultura do narcisismo de Christopher Larsch (Birman, 2001; Giddens,
2002) caracteriza um consistente modelo da sociedade atual. Nessa teoria, o mundo está
centrado no eu da individualidade, sendo essa sempre auto-referente. Assim, o sujeito busca a
estetização de si, e essa busca é transformada na finalidade crucial de sua existência.
Larsch (in Giddens, 2002), relaciona o fenômeno do narcisismo à natureza
apocalíptica da vida social moderna. As pessoas não se preocupam mais com riscos globais
porque essa discussão acabou sendo banalizada e a possibilidade de controle de um cenário
mais amplo caiu por terra. Desta forma, a maioria das pessoas concentra suas atividades em
“estratégias de sobrevivência” privatizadas, preocupações puramente pessoais para o auto-
aperfeiçoamento psíquico e corporal. Larsch (in Giddens, 2002), relaciona essa situação a
uma evaporação da história, uma perda da continuidade no sentido de fazer parte de uma
sucessão de gerações que se perde no passado e se projeta no futuro. Contra esse pano de
fundo as pessoas anseiam por segurança psíquica e por uma sensação – sempre fugidia – de
bem-estar, que como foi relatado anteriormente, nunca poderá ser alcançada.
Birman (2001) salienta que o mundo e o desejo das pessoas tentam harmonizar
demandas das pulsões e efetividade de satisfação, mas o conflito continua a desestabilizar o
sujeito. O indivíduo busca a harmonia ideal e o equilíbrio possível, para afastar, custe o que
custar, o desamparo produzido pelo conflito e dominar o mal-estar social promovido por este
desamparo.
Para Birman (2001) esse contexto vai ao encontro da teoria da Sociedade do
Espetáculo de Debord (1997), onde a exigência do espetáculo é o catalisador dos laços sociais
e se caracteriza como reguladora fundamental do espaço social. As culturas do narcisismo e
do espetáculo construíram um modelo de subjetividade em que se silenciam as possibilidades
de reinvenção do indivíduo e do mundo. O desejo sucumbe frente à exaltação dos emblemas
21
narcísicos do eu, na demanda de autocentramento e de espetáculo. O sujeito é descentrado do
campo da consciência e lançado aos pólos do inconsciente e das pulsões. O problema é que,
como a demanda do desejo parte do ambiente, o sujeito autocentrado acaba efetivamente fora-
de-si, pois é exterioridade por excelência. Ele acaba perdendo as relações com tempo e
história e o que importa é a pontualidade do momento, do estrito tempo no presente, que se
avoluma na sua existência. A memória tende ao silêncio e o futuro se estreita, pois a ênfase é
atribuída apenas ao presente.
Bauman (1998) chama atenção para o fato de que, como tudo o mais, a imagem de si
mesmo se parte numa coleção de instantâneos, e cada pessoa deve evocar, transportar e
exprimir seu próprio significado, mais freqüentemente do que abstrair os instantâneos do
outro. Ao invés de construir sua identidade, gradual e pacientemente, o ser humano se insere
em uma série de “novos começos”, que se experimentam com formas instantaneamente
agrupadas, mas facilmente demolidas, pintadas umas sobre as outras (p. 36).
Essa é a identidade que se ajusta ao mundo em que a arte de esquecer é um bem não
menos, se não mais, importante do que a arte de memorizar, em que esquecer, mais do
que aprender, é a condição de contínua adaptação, em que sempre novas coisas e
pessoas entram e saem sem muita ou qualquer finalidade do campo de visão da
inalterada câmara de atenção, e em que a própria memória é como uma fita de vídeo,
sempre pronta a ser apagada a fim de receber novas imagens, e alardeando uma
garantia para toda a vida exclusivamente graças a essa admirável perícia de uma
incessante auto-obliteração. (Bauman, 1998, p. 36)
Lipovetsky (1998) distingue três fases essenciais na história da moral ocidental, as
quais, aportariam na “era do após-dever”, que corresponde a alterações da identidade. A
primeira fase corresponde ao momento teológico da moral, onde somente através da Bíblia os
homens podem conhecer a verdadeira moral. A segunda fase inicia no final do século XVII e
22
o objetivo é encontrar as bases da moral independente de dogmas religiosos, a partir de
princípios estritamente racionais e universais, inclusive para os ateus. No entanto, mesmo
desvinculando-se da religião, este processo de secularização manteve dela uma das figuras
essenciais: o dever absoluto, a ética do sacrifício. Em troca do “dever da religião”, nasceu a
“religião do dever”, que pregava abnegação e devoção às instituições, como a família, nação
ou história, ainda de maneira austera e disciplinadora (p. 30).
A terceira fase, chamada por Lipovetsky (1998) de pós-moralista, iniciou somente no
século XIX, e finalmente abandonou o caráter rígido de submissão ao dever. Em
contrapartida, passou-se a estimular mais os desejos, o ego, a felicidade, o bem-estar
individualista, optando-se pela felicidade e pelos direitos subjetivos em detrimento do dever.
“A cultura da ética de sacrifícios, que vigorou amplamente até meados do nosso século, foi
liquidada. As nossas sociedades de consumo-comunicação de massa deixaram de exaltar
sistematicamente os mandamentos difíceis; funcionam agora fora da forma dever, fora da
obrigação moral intransigente e disciplinadora” (Lipovetsky, 1998, p. 31).
O grande problema levantado pelo autor supracitado é que as sociedades do após-
dever passaram a contribuir para a dissolução das formas de autocontrole dos indivíduos,
priorizando resultados em curto prazo e inclinando-se para a transgressão dos princípios
éticos. A pós-moralidade constrói um individualismo sem regras, avariado, desestruturado,
sem futuro, à medida que se afundam as instâncias de controle social, como a Igreja, o
sindicato, o partido, a família, a escola.
Apesar destas afirmações, Lipovetsky (1998) acredita que o sentido da indignação
moral não foi erradicado porque ao lado do individualismo irresponsável, “cada um por si”, se
recomporia um individualismo responsável, ligado a valores éticos. Isto quer dizer que ao
invés de ser admitida uma atitude extremamente liberal, como ocorre no discurso, na prática
23
essa situação não perdura. “O mundo da autonomia pós-moralista não leva à desordem sem
freio dos costumes: a cultura do após-dever funciona como um ‘caos organizador’” (p. 32).
Mesmo não significando que a moral foi soterrada, o autor acima acredita que ela não
se mantém nos mesmos termos anteriores. Agora, desfazendo as formas tradicionais de
obrigação, ela implica em uma exigência de iniciativa e responsabilidade que se subjetiva no
próprio indivíduo. Contudo, a idéia de uma moral difícil, regular ou opressora não condiz com
a realidade. Atualmente a moral em voga reconhece os “deveres negativos”, como não matar,
não roubar, não causar sofrimento; mas não os “deveres positivos”, como causas exteriores ao
indivíduo e que partem da sociedade, a exemplo da corrupção e outras condutas não-éticas
menos agressivas. É o que Lipovetsky (1998) chama de “moral à la carte”, composta de
normas indolores, como se o indivíduo escolhesse o que prefere para considerar moral.
Segundo Birman (2001), o que caracteriza a onipotência é o direito que o sujeito
acredita ter a tudo o que é bom. Tudo de mal está sempre no outro ou fora de si, ou seja, tudo
o que é prazeroso está dentro do indivíduo e o que é desprazeroso está em sua exterioridade.
Essa posição ao que Freud (1930 / 1988) chama de ego ideal, regulado pela economia
narcísica primária da libido. Ao mesmo tempo em que acredita poder impor suas leis, o
sujeito não se submete a nada que lhe seja exterior, inclusive crê que possa subjugar os outros.
Para Freud (1930) a civilização tem que utilizar reforços supremos a fim de
estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sobre
controle por formações psíquicas reativas, conferidas em um fenômeno denominado
“narcisismo das pequenas diferenças”. Se analisarmos subgrupos que convivem próximos,
poderemos notar que pela união entre seus componentes, são criadas investidas contra outros
subgrupos. Na contrariedade ao outro grupo, o indivíduo canaliza sua contrariedade aos
companheiros e “unido no amor se volta contra os outros”. Não é fácil abandonar a inclinação
24
para a agressão. Ela não se apresenta sempre fisicamente, mas pode vir como calúnias, por
exemplo, ou pelo desprezo de um grupo para com outro.
Freud (1930 / 1988) argumenta que a tendência para a agressão constitui, uma
disposição instintiva original e auto-subsistente, e se caracteriza como o maior impedimento à
civilização evoluir ainda mais. Já em sua origem ela é retratada pela luta entre o Eros (instinto
de vida) e Tanatos (instinto de morte). Como forma de inibir a agressividade natural o ser
humano a introjeta, internaliza e envia de volta para o lugar de onde veio: o próprio ego. A
agressividade é assumida por parte do eu, que se coloca contra todo o resto como superego.
Então, através da consciência, põe novamente em ação contra o ego a mesma agressividade
rude que o ego teria pretendido satisfazer sobre outros indivíduos, a ele estranhos.
3.4. Um violento contra-ataque
A ameaça de hostilidade que carregamos conosco faz com que seja despertada
desconfiança diante de outras pessoas, de que elas poderão ser agressivas, e por isso ficamos
na defensiva. É uma busca contínua por segurança que a vida em conjunto - apesar de suas
regras e limites - não proporciona. O homem abdica de seu caráter selvagem, mas o instinto
de autopreservação nunca poderá ser abandonado.
De acordo com Freud (1930 / 1988) a privação das satisfações não se faz
impunemente e essa perda precisa ser suficientemente compensada para não acarretar sérios
distúrbios. Diante de abdicações para se enquadrar à civilização o ser humano precisa dar um
sentido à vida, necessita de uma recompensa, um prêmio depois de tanta renúncia, e acaba
vivendo na esperança de uma indenização.
Birman (2001) aponta que no Brasil, no nível das classes médias e das elites, a
perversão do sujeito se transforma em estetização da existência, onde não há mais lugar para
coisas básicas, como o amor, a amizade, o afeto gratuito e até mesmo o desejo.
25
A única coisa que interessa às individualidades é circunscrever rigidamente o território
medíocre de sua existência à custa do gozo predatório sobre o corpo do outro, a quem
tratam como anônimos e sem rosto. As individualidades não se afeiçoam mais aos
corpos que lhe possibilitam prazer e gozo, meras mediações que são para o incremento
das suas imagens narcísicas (Birman, 2001, p. 284).
No nível das classes populares, segundo o autor supracitado, devido à impossibilidade
das individualidades terem respeitados direitos básicos de cidadãos e serem reconhecidos
como tal, assiste-se à crescente utilização da agressividade como forma básica de tornar
possível a sobrevivência diante da violência instituída pelos dispositivos de poder e formas de
ação das elites.
A violência é a única forma de esses grupos sociais poderem afrontar a arrogância, a
impunidade e o saqueamento corsário do Estado realizado pelas elites políticas,
industriais e financeiras do país, que estão muito mal acostumadas a serem protegidas
pelo Estado à custa da predação daqueles grupos (Birman, 2001, p. 284).
Oliven (1982) encara a violência urbana como uma forma individualista de subversão
da ordem social, que acaba sendo expressa por comportamentos desviantes Os “bandos de
adolescentes pobres” que se envolvem na maioria dos assaltos e roubos à mão armada,
chamados de “marginais”, são um subproduto do processo selvagem de acumulação de capital
do país, que recorrem a modos não-ortodoxos para obter sua riqueza que existe lado a lado
com a espantosa pobreza em qualquer cidade brasileira. “Recorrer ao crime é naturalmente
uma reação praticada por uma minoria. A maioria da população urbana brasileira tem de agir
nos limites das normas e chegar a um convívio com as regras vigentes” (p. 122).
Chauí (1996) afirma que é possível uma análise da violência popular, onde transpareça
sua ambigüidade fundamental: longe de ser uma luta para ser considerado pessoa trata-se da
luta para ser considerado sujeito, isto é, alguém dotado de direitos. A autora recorre a uma
26
definição do espaço popular em três mundos simultâneos, elaborado por Da Matta (1982). O
mundo da rua é o espaço formal, legal, da individualidade anônima, do mercado e da
sociabilidade capitalista. O mundo da casa corresponde ao mundo pessoal, onde se possui
identidade reconhecida, regido por valores de lealdade e amizade, respeito e fidelidade aos
parentes, compadres, amigos e vizinhos, tecidos por relações de favor e onde se transmitem
experiências e informações. O outro mundo é a região do sagrado, dos milagres e aparições,
no qual se promete justiça final.
Da Matta (1982) também defende que a violência popular corresponde a um esforço
para repor a pessoa ao lugar do indivíduo, opor alguém a ninguém, ou reconquistar a
personalidade concreta contra a cidadania abstrata, ou seja, a rua precisa ser reconfigurada
com os atributos da casa, e a casa deixar de ter os riscos da rua. Isto significa a equiparação de
valores tanto no microcosmo que a casa representa, quanto no âmbito macro da rua.
Chauí (1996) discorda de Da Matta (1982), quando se trata dos problemas brasileiros.
Para a autora, no Brasil não há cidadania plena e universal, ainda que abstrata, pelo menos no
que se refere às camadas populares. Na verdade o que ocorre é uma contraviolência popular.
Se realiza uma revolta antiliberal da “casa” contra a “rua”, que representa o privilégio do
privado sobre o público. Segundo Chauí (1996) é como se a marca da violência dos
dominantes impusesse a “sua casa” à “nossa rua” (p. 136).
Ela se efetua como revolta contra a “rua deles”, em nome de uma rua ideal que poderia
ser a nossa rua. Cremos que é porque o direito aos direitos é recusado pela rua deles,
isto é, pela sociedade global, que a “periferia” organiza o pedaço no qual prevalecem
apenas as relações do “mundo da casa”, mas estas se combinam para criar uma outra
rua (Chauí, 1996, p. 136,137).
Oliveira (1993), através das entrevistas realizadas com moradores de favelas do Rio de
Janeiro, também detectou o que parece ser um senso de pertinência a um grupo ou classe
27
social, cuja “condição fundamental de sobrevivência se vincula a uma espécie de sentimento
gregário defensivo e agressivo ao mesmo tempo: é um ‘nós’ contra ‘eles’, os que não moram
na favela, os do ‘asfalto’” (p. 33).
Kowarick (1980) é da mesma opinião que Chauí (1996) em relação à cidadania das
classes populares brasileiras. Não é somente a cidadania, entendida como um rol mínimo e
imprescindível de direitos, que está ausente. Ele destaca que a condição de morador urbano,
se não representa acesso a determinados bens, abre, em princípio, o caminho para reivindicar
sua obtenção, mas com as populações de baixa renda isso não é possível.
A condição de favelado representa uma vulnerabilidade que o atinge não apenas
enquanto morador: atinge-o também no cerne dos direitos civis, pois mais fácil e
freqüentemente pode ser confundido com ‘malandros’ ou ‘maloqueiros’ que
constituem objeto especial da ação policial. E muitos são confundidos, o que faz que,
mesmo aqueles que não tenham passado pela experiência, interiorizem a iminência do
perigo. Foco de batidas policiais, a favela é também estigmatizada pelos habitantes
“bem comportados” como antro de desordem que destoa da paisagem dos bairros
melhor providos, precisando ser removida para que a tranqüilidade volte a reinar no
quotidiano das famílias que se sentem contaminadas pelo perigo da proximidade dos
barracos (Kowarick, 1980, p. 92).
Para Birman (2001) já não há sentido em se considerar a agressividade nas classes
populares como formas reveladoras da destrutividade inerente ao ser humano. Ele considera a
progressão da violência popular no Brasil como positiva, na medida em que demonstra uma
forma de contrapoder face aos dispositivos instituídos do poder e de sobrevivência dessas
individualidades no campo do capitalismo selvagem. O fato de as classes populares se
voltarem para a violência diante do quadro social existente no Brasil implica à ausência de
mecanismos institucionais e organização política legítima.
28
A violência popular é uma forma legítima de sobrevivência das individualidades face à
institucionalidade discutível dos dispositivos sociais da justiça e da polícia, que não
reconhecem os direitos de cidadania desses grupos sociais. Já vai muito longe o tempo
em que se encaravam essas formas de violência da perspectiva do crime. Como
violência legítima das individualidades, como exercício positivo do contrapoder das
classes populares, esta violência não pode ser absolutamente criminalizada (Birman,
2001, p. 285).
3.5. A sub-habitação como raiz da violência
A cada dia, a partir de noticiários televisivos, jornais e revistas, somos bombardeados
com uma grande quantidade de informações que retratam o aumento da criminalidade e da
intolerância. Isto acontece em todos os campos: assaltos a residências, lojas e bancos,
assassinatos por crimes passionais, brigas de trânsito, discussões entre vizinhos, atentados
terroristas, rebeliões em presídios e abrigos para menores, etc.
Segundo Oliven (1982), a preocupação com a marginalidade urbana na América
Latina começou a se desenvolver depois da Segunda Guerra Mundial quando núcleos de
populações, vivendo em condições precárias e geralmente ocupando solos ilegalmente,
começaram a aparecer na periferia da maior parte das grandes cidades. No Brasil esses
núcleos são chamados de favelas.
Torres (2004) destaca uma projeção feita pela Organização das Nações Unidas (ONU),
prevendo que em 2030, um quarto da população mundial estará vivendo em favelas. O Brasil
é o país latino-americano onde se concentra o maior número delas e, portanto, esse fato deve
chamar a atenção de todas as áreas da psicologia brasileira. Pochmann (2004) destaca que
apenas 26% dos brasileiros vivem em “ilhas territoriais” que podem ser associadas à inclusão
social, embora se encontrem rodeadas por um “mar revolto” da exclusão social (p. 24)
29
De acordo com Chauí (1996) em nosso país a população das grandes cidades se divide
entre do “centro” e da “periferia”. Isto acontece não apenas no sentido espacial-geográfico,
mas social, designando bairros afastados onde estão ausentes todos os serviços básicos (luz,
água, esgoto, calçamento, transporte, escola, posto médico). Entretanto, esta situação também
é encontrada no centro, isto é, nos bolsões de pobreza que caracterizam as favelas (p. 58).
Blay (1979), que realizou estudos nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, explica
que as favelas surgiram no Brasil como loteamentos precários da periferia que acabaram
sendo absorvidos pela cidade e se tornaram bairros.
De acordo com Alves (1990) o processo de favelização se intensificou a partir dos
anos 30, com a invasão de terrenos públicos ou privados, com a industrialização funcionando
como atrativo aos migrantes. O que era residência provisória se tornou definitiva. No Rio de
Janeiro, um dos estados onde as favelas já fazem parte do cenário, o recenseamento de 1920
foi o primeiro a registrar uma favela: 839 casas no Morro da Providência. Na década de 60,
um terço da população do Rio vivia em favelas e hoje se estima que 1,5 milhões de pessoas
moram em cerca de 520 aglomerações de casas e barracos.
Se tomarmos como base a população do Rio estimada para 1990 – 6.016.700 – a
proporção de favelados gira em torno de 25%, bem superior ao índice de 10 anos atrás,
14,2%. E talvez fosse maior ainda, sem as remoções de pelo menos 80 favelas entre os
anos 60 e 70 (Alves, 1990, p. 16).
Para Meyer (1979), esta atitude desesperada de instalação física da população de baixa
renda nas cidades gera núcleos de habitação segregados, que se estendem a todas as demais
atividades. A favela que proliferou no Brasil na década de 50 tem características marcantes de
fenômeno ilegal. A implantação ocorre junto às zonas mais urbanizadas. Nesses locais a
oferta de trabalho é maior e é possível eliminar o transporte para ir ao trabalho. A
ostensividade das favelas revela a incapacidade dos mecanismos urbanos de assimilar
30
adequadamente essas populações, constituindo uma permanente denúncia das práticas sociais
contraditórias que ameaçam a ordem urbana estabelecida.
Blay (1979) acrescenta que em seguida à ocupação intensiva do espaço, a população
se organiza para obter da municipalidade a extensão de serviços urbanos como luz, água,
segurança e transporte. Normalmente essas reivindicações não chegam a ser atendidas.
Pochmann (2004) revela que o não estabelecimento do Estado de bem-estar social no Brasil
definiu que os excluídos do mercado de trabalho permaneçam sem acesso às condições
básicas de vida, disponibilidade de moradia decente, saúde, transporte, previdência e
educação pública, entre outros.
Pochmann (2004) frisa que esse quadro foi ainda mais agravado pela adoção de
políticas de corte neoliberais a partir de 1990, quando passou a ser restringido o sistema de
proteção social. .Ao mesmo tempo, condições gerais de produção e reprodução da exclusão
social tornam-se ainda mais complexas. Em geral, o processo de desconstrução das políticas
sociais anteriormente estabelecidas ocorreu sem a simultânea construção de algo superior.
Meyer (1979) entende que a multiplicação desses núcleos de habitação no seio da
cidade traduz a patologia do crescimento urbano. A ameaça não paira apenas sobre a ordem
político-econômica estabelecida, mas traz consigo uma grande quantidade de problemas
sanitários que atingem toda população.
Kowarick (1980), que realizou um estudo junto às favelas do município de São Paulo,
pensa que a favelização revela solução de sobrevivência porque representa diminuição nos
gastos com moradia e transportes, além de economia no tempo de locomoção. Montar um
barraco, por exemplo, desde que haja terreno disponível, acaba por se tornar mais acessível
em termos de rapidez e custo do que construir ou comprar uma moradia.
Oliven (1982) concorda com Kowarick (1980) e acrescenta que é possível perceber a
favela não como um problema, mas uma “solução” à necessidade de abrigo e à sub-habitação.
31
Esses núcleos de habitação são apenas indicadores da situação complexa caracterizada por
desemprego e subemprego. Mesmo assim, geralmente a primeira reação ao “problema” da
marginalidade é encará-lo como restrito à precariedade da habitação, já que esta é o aspecto
mais visível da questão (p. 110).
Apesar de sua limitação explicativa e das críticas que lhe foram dirigidas, este tipo de
abordagem habitacional é ainda empregado com freqüência. É obviamente mais
cômodo falar sobre favelas do que sobre pobreza. Existe, assim, uma tendência de
tratar a favela não como a categoria habitacional que ela é, mas como se ela fosse uma
entidade social. Toda esta abordagem ecológica proporciona, é claro, um tema
constante para uma série de instituições e pessoas que têm interesse em deixar a
questão concentrada neste nível em vez de encaminhá-la para um nível social mais
amplo (Oliven, 1982, p. 41).
Kowarick (1980) salienta que o padrão de moradia reflete o processo de segregação e
discriminação presente numa sociedade plena de contrastes que perpassa todos os patamares
da pirâmide social em que os mais ricos procuram se diferenciar e se distanciar dos mais
pobres. No entanto, é a favela que recebe de todos os outros moradores da cidade um estigma
que condensa os males de uma pobreza que, por ser excessiva, é tida como viciosa e, no mais
das vezes, considerada perigosa: “A cidade olha a favela como uma realidade patológica, uma
doença, uma praga, um quisto, uma calamidade pública” (p. 93).
Para Oliven, (1982), o que acontece no Brasil é que os diferentes modos de enfrentar
necessidades são freqüentemente rotulados de “problemas urbanos”, como o “problema das
favelas”, o “problema do setor informal”, etc. Na realidade eles seriam “soluções”, mesmo
que precárias, a situações e problemas com os quais as classes baixas urbanas se defrontam.
Embora estas soluções muitas vezes destoem dos modos “racionais” de resolver problemas,
na verdade elas funcionam como integrantes da lógica do sistema econômico e social (p. 92).
32
3.6. Baixa renda e preconceito
A discussão da moradia remete à aquisição de uma visão agressiva das favelas que
corresponde ao preconceito. De acordo com Blay (1979), dentre os vários julgamentos sobre a
população que habita favelas resiste o que supõe ser esta composta por indivíduos que não
trabalham e vivem de expedientes ou roubos. Um estudo realizado pela autora em 1979
investigando as características profissionais e econômicas da população favelada de São
Paulo, apesar de desatualizado, serve para mostrar como essa percepção não condiz com a
realidade. Os resultados demonstram que, em oposição a este preconceito, essa população é
composta de uma percentagem de trabalhadores mais elevada do que a taxa encontrada na
própria cidade: a taxa de atividade encontrada nas favelas foi de 55,9% ao passo que no
município de São Paulo o resultado foi de 39,3%.
Pochmann (2004) comenta que nas últimas décadas a decepcionante expansão do
emprego assalariado foi acompanhada da queda na taxa de assalariamento formal, o que
resultou na diminuição relativa do emprego assalariado no total das ocupações. De outro lado,
a economia nacional produziu fundamentalmente ocupações precárias (assalariados sem
registro em carteira, autônomos e ocupados não remunerados) e desemprego em excesso. Para
os anos de 1980 e 2000, o desemprego aumentou mais de 13% ao ano, enquanto as ocupações
informais cresceram 2,4% como média nacional.
Alves (1990) aponta uma “visão míope” de que a favela não passa de uma violenta
aglomeração de pessoas, amontoadas em barracos, disputando a proteção de quadrilhas de
traficantes. Em geral, o que se chama indistintamente de favelas, quase sempre em tom
pejorativo, são bairros pobres, erguidos de forma clandestina, que se consolidam através da
luta solitária de seus moradores (p. 15).
Kowarick (1980) acrescenta que, inúmeros dados mostram que a favela é um
microcosmo onde se espelha o conjunto de situações sócio-econômicas e culturais que
33
caracteriza os habitantes pobres da cidade. “Lá, como em qualquer outro lugar, existe
desorganização social, e condutas não sancionadas, mas como em qualquer outro lugar onde
morem famílias de baixa renda, existe o trabalhador braçal que vende sua força de trabalho no
mercado a preços quase sempre irrisórios” (p. 159).
Para explicar essa contradição, Blay (1979) afirma que apesar de a população que
reside na favela ser trabalhadora, em 1979, quando a investigação foi realizada, 77,5% dos
chefes de família ganhavam até dois salários mínimos apenas.
Com este nível de renda torna-se inviável qualquer tipo de moradia urbana adequada.
E como as cidades médias e pequenas, objeto da atual política de planejamento
urbano, vão reproduzir as mesmas condições de trabalho e de remuneração,
certamente não se poderá evitar a reprodução das favelas resultantes daquelas
condições básicas. Pode-se prever então que o fenômeno das favelas se difunda e
amplie por todo o interior do Estado, mesmo nos locais onde elas ainda não existem
(Blay, 1979, p. 175).
Quase 30 anos depois, Pochmann (2004) confirma o discurso acima: a insuficiência
dos baixos salários obrigou até mesmo a elite do operariado industrial a combinar o seu modo
de vida com normas de consumo e produção informal, bem como a autoconstrução em
favelas. O emprego do operariado nos setores mais modernos da economia nacional terminou
vinculando-se direta e indiretamente às velhas formas de trabalho e produção precárias e
atrasadas.
Segundo Kowarick (1980) a precariedade das condições de vida, por si só, já impede a
classificação do favelado como cidadão urbano. A favela é percebida como um atestado
potencial de má conduta. Até nas relações de trabalho o favelado é estigmatizado, visto que
algumas empresas deixam de empregar um indivíduo pelo fato de morar numa favela.
Também é comum que nas residências das classes mais abastadas não se aceite ou até mesmo
34
se demita uma empregada doméstica quando a patroa descobre a origem domiciliar daquela
que convive nos quartos dos fundos das moradias burguesas.
O autor citado acima, concorda que na favela existam mendigos, prostitutas ou
delinqüentes, mas como em qualquer outro bairro pobre da cidade, impera o trabalhador
assalariado ou autônomo que leva adiante a engrenagem produtiva. Mesmo assim, o fato de
ser favelado tem desqualificado o indivíduo da condição de habitante urbano e retira-lhe as
condições de exercício de defesa que se processa em torno da questão de moradia.
Ocupante de terra alheia, o favelado passa a ser definido por sua situação de
ilegalidade e sobre ele desaba o império draconiano dos direitos fundamentais da
sociedade, centrados na propriedade privada, cuja contrapartida necessária é a
anulação de sua prerrogativa enquanto morador. Assim, nem nesse aspecto mínimo o
favelado tem aparecido enquanto cidadão urbano, surgindo aos olhos da sociedade
como usurpador que pode ser destituído sem possibilidade de defesa, pois contra ele
paira o reino da legalidade que assenta o direito de expulsá-lo (Kowarick, 1980, p. 91).
Entretanto, o autor citado acima pensa que o bairro pobre não deixa de ser problema,
pelo menos em dois sentidos: porque choca o bom cidadão e porque, na medida em que com a
expansão da cidade a área começa a se valorizar, diante da ausência de direito de propriedade,
o favelado precisa juntar suas coisas e se instalar em outro lugar até que a cidade o expulse
novamente. Na medida em que choca a sociedade, a favela alarma a consciência tranqüila,
que adivinha no amontoado de barracos um foco de delinqüência, promiscuidade e vadiagem.
Oliveira (1993) refere que os moradores se ressentem do preconceito. Esse sentimento
é reforçado pelos meios de comunicação, que consolidam, através de generalizações, a
imagem da favela como local perigoso, onde vivem bandidos. A autora acredita que a
imprensa reforça a imagem negativa, tanto para quem mora no local como para quem mora
fora. A veiculação de notícias sobre transgressões de moradores da favela pela imprensa,
35
influencia e compõe a imagem do morador sobre a comunidade, pois se associam a fatos
conhecidos.
Enfatiza-se a discriminação sentida pelo morador, divulgando a criminalidade
vinculada à favela, embora ela seja impune em outros meios sociais. Priorizam-se as
notícias sobre a violência no morro, não divulgando com a mesma ênfase o cotidiano
da favela e de suas organizações comunitárias. Os moradores percebem a importância
disso na formação da opinião pública sobre seu local de moradia (Oliveira, 1993,
p.48).
3.7. A manifestação da insegurança em Cachoeira do Sul
Em Cachoeira do Sul a situação não é diferente. Nos últimos meses a questão do
crescimento da violência tem recebido destaque especial nos meios de comunicação. Ao todo,
o município conta com três emissoras de rádio AM, três emissoras FM, um canal de televisão
com franquia da rede Shop Tour, e dois jornais de circulação diária, denominados Jornal do
Povo e O Correio. Este estudo detém-se a pesquisar especificamente edições do Jornal do
Povo publicadas no período de Janeiro de 2003 a Novembro de 2005.
Para Spink (2000), os grandes jornais diários são ótimas vitrines para as idas e vindas
dos sentidos. Eles tendem a guardar suas edições durante anos, o que permite aos
pesquisadores voltarem a eles de forma mais ordenada, buscando compreender nas entrelinhas
dos movimentos políticos, econômicos e sociais as sutis, e às vezes não tão sutis, alterações
nas práticas discursivas.
Simultaneamente ao crescimento das estatísticas de violência, o Jornal do Povo em
especial, passaram a veicular notícias sobre o início de uma união entre cidadãos residentes
nos bairros Soares, Rio Branco e São Luís. O objetivo dos moradores que representam a parte
nobre da cidade é tomar uma atitude frente à sensação insegurança que ronda os locais.
36
A indicação do foco da violência tem recaído sobre um espaço urbano denominado
Beco dos Trilhos, habitado por cerca de 300 famílias de baixa renda, totalizando cerca de
1.800 pessoas. Se levarmos em conta que conforme o Censo do IBGE de 2002 o município de
Cachoeira do Sul tem 88.384 habitantes, cerca de 2% da população reside no Beco.
O local é circundado pelos bairros nobres da cidade na zona centro-leste de Cachoeira
do Sul. De acordo com o Relatório do projeto Beco dos Trilhos (2003), realizado pela Ulbra –
Campus Cachoeira do Sul, a região corresponde a uma área que até o final da década de 60
era ocupada pela antiga Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA). Daí o nome Beco dos
Trilhos: o percurso da área, que mede em torno de cinco quilômetros de extensão, remete ao
percurso da malha ferroviária.
O Beco inicia no Alto do Amorim, zona leste da cidade, e se estende no sentido oeste
cortando a cidade ao meio até o Bairro Fátima, nas imediações da Vila Militar e das
instalações das Guarnição Federal. Com a desativação das estradas de ferro do Brasil, em
1980, por usucapião, a área passou a ser propriedade do município.
É preciso salientar que nem todo o espaço correspondente ao Beco dos Trilhos é
ocupado pela população carente. O núcleo populacional está localizado entre as ruas Isidoro
Neves da Fontoura e Presidente Vargas. O percurso inicia na rua atrás da Delegacia de
Polícia, há cerca de três quarteirões das ruas Sete de Setembro e Júlio de Castilhos, centro
urbano-comercial do município, e se estende por cerca de cinco quarteirões através de uma
única ruela, sem outras vias transversais. No local não há saneamento básico como água
tratada ou serviço de esgotos e as ruas não são pavimentadas. Toda a área é ocupada
irregularmente e por conseqüência não consta do mapa do município.
37
3.8. O início da polêmica
Segundo o Jornal do Povo, que noticia uma série de relatos de moradores dos bairros
nobres sobre o sentimento de insegurança, a urgência na tomada de alguma atitude para
conter a violência em Cachoeira do Sul vem surgindo desde 2003. Neste ano, um grupo de
moradores dos bairros Soares, Rio Branco e Santo Antônio entregou ao promotor de justiça
do município uma lista com o nome de pelo menos 160 moradores solicitando providências
contra o aumento da criminalidade, caracterizada por pequenos delitos, como arrombamentos
de residências e veículos. O abaixo-assinado foi entregue ao secretário de Segurança do Rio
Grande do Sul para que fosse realizada uma reunião com os moradores, mas a reunião acabou
não acontecendo. (JP, de 25 e 26.12.2004, p. 18).
Em dezembro de 2004, outro documento exigindo providências foi entregue à
Promotoria de Justiça. A notícia nos jornais acabou gerando grande discussão sobre o assunto
e várias manifestações da população, inclusive com opiniões enviadas ao Jornal do Povo
jornais. Cerca de um mês depois, no dia 24 de Janeiro de 2005, o tema foi novamente posto
em questão, quando o Jornal do Povo veicula uma proposta de união entre os moradores dos
bairros nobres contra a insegurança. As queixas foram levantadas em uma reunião que
contou com a presença do delegado regional de polícia, oficiais da Brigada Militar e de
vereadores da cidade.
No dia 10 de Março de 2005 é fundada a Associação dos Moradores dos Bairros Rio
Branco, Soares e São Luís, que, conforme o Jornal do Povo, tem como objetivo encontrar
uma “solução para a convivência entre os chamados ‘bairros sitiados’ e o Beco dos Trilhos”.
Aparentemente para aliviar a tensão causada pelos contrapontos, nos dias 19 e 20 de Março o
Jornal do Povo publicou uma série de bons exemplos de moradores do Beco, mostrando o
outro lado da situação e procurando desestigmatizar os moradores do local.
38
Ao ser pressionada pela mídia e pela nova associação de moradores, a Prefeitura
Municipal de Cachoeira do Sul retomou o que foi chamado de “processo de urbanização da
área”, iniciado pela administração anterior, inclusive com um levantamento demográfico do
local. O processo envolve a abertura de ruas e a remoção de pelo menos 20 famílias. A
Secretaria Municipal de Trabalho e Ação Social (Stas) foi acionada para realizar novo
trabalho de levantamento de dados e traçar o perfil das famílias a serem remanejadas. No mês
de Outubro o nome “Beco dos Trilhos” foi alterado para “Bairro Virgilino Jaime Zinn”, com
o sentido de humanizar da região.
É interessante ressaltar que desde o início a questão vem sendo acompanhada de perto
pela mídia. O Jornal do Povo chega a publicar uma enquete promovida através de internet
onde 59 votantes voluntários responderam “Qual a melhor solução para o Beco dos Trilhos do
Rio Branco?”. Do total de votos, 33,90% pensa ser melhor remover as famílias para uma nova
área; 32,20% acreditar ser melhor urbanizar a área sem remover as famílias; 20,34% prefere
desenvolver projetos sociais com os moradores; 11,86% quer exigir presença mais constante
da Brigada Militar e 1,69% vota em deixar como está. (JP, 03.03.2005, p. 3). Resta agora
saber como a população reagirá às decisões práticas tomadas pela Prefeitura Municipal.
39
4. Método
4.1. Pressupostos teórico-metodológicos
O método de investigação utilizado neste trabalho é a pesquisa qualitativa. A
entrevista semi-estruturada guia a coleta de dados, que são analisados através do método de
práticas discursivas e produção de sentidos. A técnica de interpretação das entrevistas é
baseada no mapa de associações de idéias (Spink, 2000).
A abordagem qualitativa foi escolhida com o objetivo de aprofundar a compreensão do
grupo social, sem ficar retido à representatividade numérica. Conforme Goldenberg (2000),
muitos cientistas acusam a pesquisa qualitativa de não apresentar padrões de objetividade,
rigor e controle científico. Isto porque a abordagem não possui testes adequados e
fidedignidade, assim como não produz generalizações que visem à construção de um conjunto
das leis do comportamento humano. Para o autor, outra crítica diz respeito à falta de regras de
procedimento rigorosas para guiar as atividades da coleta de dados, o que pode dar margem
para que o viés do pesquisador venha a modelar os dados que coleta, que, portanto, não
podem ser usados como evidência científica.
Em defesa do método, Becker (2000) enfatiza que na discussão sobre a
representatividade dos dados coletados através de uma pesquisa qualitativa está embutida a
questão da possibilidade (ou não) de sua generalização, a partir do modelo das ciências
naturais que se impõe como paradigma. Para o autor as abordagens qualitativas não se
preocupam em fixar leis para produzir generalizações. Goldenberg (2000) explica que os
dados da pesquisa qualitativa objetivam a compreensão profunda de certos fenômenos sociais
apoiados no pressuposto da maior relevância do aspecto subjetivo da ação social.
Contrapõem-se, assim, à incapacidade da estatística de dar conta dos fenômenos que não
podem ser identificados através de questionários padronizados.
40
Triviños (1987) salienta que o pesquisador qualitativo considera a participação do
sujeito como um dos elementos de seu fazer científico. Ele se apóia em técnicas e métodos
que reúnem características sui generis, que ressaltam sua implicação e da pessoa que fornece
as informações. Conforme o autor, a pesquisa de caráter qualitativo não admite visões
isoladas, parceladas, estanques. No entanto, se desenvolve em interação dinâmica
retroalimentado-se, reformulando-se constantemente, de maneira que, por exemplo, a Coleta
de Dados num instante deixa de ser tal e se transforma na Análise de Dados. Esta, em seguida,
é veículo para nova busca de informações.
As idéias expressas por um sujeito numa entrevista, verbi gratia, imediatamente
analisadas e interpretadas, podem recomendar novos encontros com outras pessoas ou
a mesma, para explorar aprofundadamente o mesmo assunto ou outros tópicos que se
consideram importantes para o esclarecimento do problema inicial que originou o
estudo. Não obstante o que anteriormente foi expresso, a Coleta e a Análise de Dados
são tão vitais na pesquisa qualitativa, talvez mais que na investigação tradicional, pela
implicância nelas do investigador, que precisam de enfoques aprofundados, tendo
presente, porém, o que acabamos de ressaltar: seu processo unitário, integral”
(Triviños, 1987, p. 150)
4.2. Participantes da Pesquisa
O recrutamento dos participantes foi realizado durante o mês de novembro de 2005,
através de visitas a residências localizadas em áreas estratégicas de proximidade entre os
bairros. O critério de seleção do público alvo foi a residência em áreas que aproximem cada
um dos três bairros do Beco, ou seja, próximas às divisas. A pretensão é abordar moradores
que se sintam integrados à questão que envolve a discussão. Desta forma, o convite aos
moradores inicia-se a partir da casa mais próxima à divisa, em direção a mais distante. A
41
amostra foi selecionada a partir da concordância em participar do projeto, seguida dos
critérios relatados acima.
O tempo mínimo de residência no bairro de três anos é outro critério da triagem.
Entende-se necessário delimitar tempo mínimo de moradia em função de que o sujeito possa
ter vivido a polêmica desde o início, e possua condições de se manifestar sobre a temática. No
total, oito pessoas responderam à entrevista, realizada durante os primeiros dias de novembro
de 2005. Foram selecionados dois representantes do Beco dos Trilhos, dois moradores do
Bairro Soares, dois do Bairro Rio Branco e dois do Bairro São Luís.
Figura 1.
De acordo com Goldenberg (2000), em princípio, o pesquisador entrevista pessoas que
parecem saber mais sobre o tema estudado do que quaisquer outras. Acredita-se que essas
pessoas estão no topo de uma hierarquia de credibilidade, isto é, o que dizem é mais
verdadeiro do que aquilo que outras que não conhecem tão bem o assunto, diriam. Na
verdade, o pesquisador não deve se limitar a escutar apenas estas pessoas. Deve também
entrevistar quem nunca é ouvido, invertendo assim esta hierarquia de credibilidade.
No recrutamento os moradores foram submetidos ao convite (Apêndice A) e
informados sobre os objetivos da pesquisa. Os sujeitos que aceitaram participar da pesquisa
Gustavo
Fabiano
Ana
Rui
Bento
IaraTaís
Lúcia
42
preencheram a Ficha de Dados Demográficos (Apêndice B) e assinaram o termo de
Consentimento Livre e Informado (Apêndice C).
A amostra pode ser considerada variada na maioria das características dos sujeitos
(Tabela 1). A idade dos quatro homens e quatro mulheres que responderam à pesquisa varia
entre 23 anos e 63 anos. Em termos de escolaridade, a quase totalidade completou o Ensino
Médio e é casada. O tempo de moradia no bairro também é variável e vai desde três anos e
meio de residência até cerca de 40 anos de moradia no local. Todos os nomes foram
modificados a fim de garantir a confidencialidade do estudo (Tabela 1).
Tabela 1 – Dados de Identificação dos Participantes
Nome Idade Estado
civil
Filhos Escolaridade Profissão Bairro onde
reside
Tempo de
moradia
Iara 40 anos Casada 2 4ª série Ensino
Fundamental
doméstica Beco dos
Trilhos
26 anos
Taís 23 anos Solteira 0 Ensino Médio estudante Beco dos
Trilhos
23 anos
Lúcia 47 anos Casada 3 Pós-graduação
empresária São Luís 19 anos
Fabiano 47 anos Casado 2 Ensino Médio
fiscal São Luís 14 anos
Gustavo 63 anos Solteiro 0 Ensino Médio músico/
aposentado
Rio Branco 40 anos
Ana 51 anos Casada 3 Ensino
Superior
caixa de
banco
Soares 9 anos
Bento 54 anos Casado 2 Ensino
Superior
bancário Rio Branco 3,5 anos
Rui 62 anos Casado 3 Ensino Médio militar da
reserva
Soares 29 anos
43
4.3. Coleta e Registro de Dados
A coleta de dados foi realizada através de entrevistas semi-estruturadas gravadas e
posteriormente transcritas no processador de textos Word 2003. Nesse tipo de abordagem o
entrevistador participa ativamente e, mesmo com um roteiro pré-definido, tem liberdade de
elaborar perguntas adicionais a fim de clarear questões e favorecer o entendimento do
contexto. Para Triviños (1987), podemos entender por entrevista semi-estruturada, aquela que
parte de certos questionamentos básicos, apoiados em teorias e hipóteses, que interessam à
pesquisa, e que, em seguida, oferecem amplo campo de interrogativas, fruto de novas
hipóteses que vão surgindo à medida que se recebem as respostas do sujeito. Desta maneira, o
informante, seguindo espontaneamente a linha de seu pensamento e de suas experiências
dentro do foco principal colocado pelo investigador, começa a participar da elaboração do
conteúdo da pesquisa.
O autor citado acima privilegia a entrevista semi-estruturada porque esta, ao mesmo
tempo em que valoriza a presença do investigador, oferece todas as perspectivas possíveis
para que o informante alcance a liberdade e a espontaneidade necessárias, enriquecendo a
investigação.
Para Goldenberg (2000), um dos principais problemas das entrevistas e questionários é
detectar o grau de veracidade dos depoimentos. Trabalhando com estes instrumentos de
pesquisa é bom recordar que lidamos com o que o indivíduo quer revelar, o que deseja ocultar
e a imagem que pretende projetar de si mesmo e de outros. A personalidade e as atitudes do
pesquisador também interferem no tipo de resposta que ele consegue dos entrevistados.
Mesmo assim, Triviños (1987) refere que é a entrevista semi-estruturada que melhor
atende às necessidades da pesquisa qualitativa. Isto porque é preciso levar em conta que tanto
a escolha das pessoas a serem entrevistadas como a organização das temáticas a serem
exploradas, fazem parte do processo de trabalho.
44
A organização das perguntas é resultado das teorias que fundamentam o estudo e as
informações obtidas durante as entrevistas retroalimentam o projeto, dando-lhe novas
dimensões. O novo conhecimento não é considerado como um viés ou algo que sai das
médias, mas é visto como objeto de reflexão do pesquisador para uma possível
reorientação dos seus dados (Triviños, 1987, p. 145).
De acordo com Tavares (2002), as entrevistas semi-estruturadas recebem esse nome
porque o entrevistador tem clareza de seus objetivos, de que tipo de informação necessita para
atingi-los, de como essa informação deve ser obtida, quando ou em que seqüência e em que
condições será considerada. Além de estabelecer um procedimento que garanta a obtenção da
informação necessária de modo padronizado, ela aumenta a confiabilidade ou fidedignidade
da informação obtida e permite a criação de um registro permanente e de um banco de dados
úteis à pesquisa.
Triviños (1987) considera que a entrevista semi-estruturada mantém a presença
consciente e atuante do pesquisador e, ao mesmo tempo, permite a relevância na situação do
ator. Isto favorece não só a descrição dos fenômenos sociais, mas também sua explicação e a
compreensão de sua totalidade, tanto dentro de sua situação específica como de situações de
dimensões maiores. Os instrumentos de coleta de dados não são outra coisa que a teoria em
ação, que apóia a visão do pesquisador. Ele recomenda a gravação da entrevista, ainda que
seja cansativa sua transcrição.
A gravação permite contar com todo o material fornecido pelo informante, o que não
ocorre seguindo outro meio. Por outro lado, e isto tem dado para nós muitos bons
resultados, o mesmo informante pode ajudar a completar, aperfeiçoar e destacar, etc.,
as idéias por ele expostas, caso o fizermos escutar suas próprias palavras gravadas.
Suas observações ao conteúdo de sua entrevista e as já feitas pelo pesquisador podem
45
constituir o material inicial para a segunda entrevista e assim sucessivamente
(Triviños, 1987, p. 152).
Segundo Triviños (1987), se a entrevista gravada é acompanhada de anotações gerais
sobre atitudes ou comportamentos do entrevistado, pode contribuir melhor ainda aos
esclarecimentos que persegue o cientista. Às vezes, também são necessários desenhos, planos,
etc., elaborados pelo entrevistado e/ou pelo pesquisador. Uma fotografia fornecida pelo
informante ou feita na hora pode constituir-se de material valioso.
4.4 Análise e Interpretação de Dados
A técnica de análise e interpretação dos dados utilizada é o mapa de associação de
idéias, com base no método de práticas discursivas e produção de sentidos. A técnica é
fundamentada por Mary Jane Spink (2000). Para a autora, o sentido é uma construção social,
um empreendimento coletivo/interativo, por meio do qual as pessoas, na dinâmica das
relações sociais historicamente datadas e culturalmente localizadas, constróem os termos a
partir dos quais compreendem e lidam com as situações e fenômenos a sua volta.
Segundo Spink (2000) os mapas de associação de idéias têm o objetivo de sistematizar
o processo de análise das práticas discursivas em busca dos aspectos formais da construção
lingüística, dos repertórios utilizados nessa construção e da dialogia implícita na produção de
sentidos. Constituem instrumento de visualização que têm duplo objetivo: dar subsídios ao
processo de interpretação e facilitar a comunicação dos passos subjacentes ao processo
interpretativo.
Spink e Medrado (2000) diferenciam discurso de práticas discursivas. Discurso remete
às regularidades lingüísticas, ao uso institucionalizado da linguagem e de sistemas de sinais
de tipo lingüístico. Há tendência à permanência no tempo, embora o contexto histórico possa
mudar radicalmente o discurso. Este aproxima-se da noção de linguagens sociais, é peculiar a
46
um estrato específico da sociedade num determinado contexto ou momento histórico, que
molda a forma e o estilo das enunciações, buscando coerência entre contexto, tempo e
interlocutores.
Já as práticas discursivas remetem aos momentos de ressignificações, de rupturas, de
produção de sentidos, ou seja, correspondem aos momentos ativos do uso da
linguagem, nos quais convivem tanto a ordem como a diversidade. É a linguagem em
ação, isto é, as maneiras a partir das quais as pessoas produzem sentidos e se
posicionam em relações sociais cotidianas (Spink e Medrado, 2000, p. 41).
Spink e Lima (2000) explicam que a construção de mapas inicia-se pela definição de
categorias gerais, de natureza temática, que refletem sobretudo os objetivos da pesquisa,
constituindo formas de visualização das dimensões teóricas. A seguir, busca-se organizar os
conteúdos a partir dessas categorias, a exemplo das análises de conteúdo, mas procura-se
preservar a seqüência das falas, evitando descontextualizar os conteúdos, e identificar os
processos de interanimação dialógica a partir da esquematização visual da entrevista como um
todo (ou de trechos selecionados da entrevista). Para a consecução desses objetivos o diálogo
é mantido intacto, sem fragmentação, apenas sendo deslocado para as colunas previamente
definidas em função dos objetivos da pesquisa.
De acordo com Pinheiro (2000), ao relacionar práticas discursivas com produção de
sentidos, estamos assumindo que os sentidos não estão na linguagem como materialidade,
mas no discurso que faz da linguagem a ferramenta para construção da realidade.
Em outras palavras, o sentido é produzido interativamente e a interação presente não
inclui apenas alguém que fala e um outro que ouve, mas todos os “outros” que ainda
falam, que ainda ouvem ou que, imaginariamente, poderão falar ou ouvir. É sob esse
ângulo que o diálogo amplia-se, incluindo interlocutores presentes e ausentes.
(Pinheiro, 2000, p. 183)
47
A definição de Pinheiro (2000) corrobora a de Berger & Luckmann (1976, em Spink e
Frezza, 2000). Conforme os autores a realidade é socialmente construída, ou seja, a realidade
da vida cotidiana pode ser percebida pelas interações face a face em que o outro é apreendido
a partir de esquemas tipificadores. Segundo Gergen (1985, em Spink e Frezza, 2000), a
investigação sócio-construcionista preocupa-se sobretudo com a explicação dos processos por
meio dos quais as pessoas descrevem, explicam ou dão conta do mundo (incluindo a si
mesmos) em que vivem.
Neste estudo, o mapa de associação de idéias (Apêndice D) foi dividido em cinco
grandes categorias: Geral, Insegurança, Vivências, Pobreza x Violência e Beco dos Trilhos.
Na seção Geral foram inseridos todos os sentidos que o estudo não se propõe a observar, ou
seja, tudo o que é produzido que não será interpretado. A categoria Insegurança foi subdivida
em Insegurança na casa e no bairro e Insegurança em Cachoeira do Sul. A terceira seção
corresponde às Vivências dos entrevistados com subdivisão em Episódios, Mudanças no
Cotidiano e Relações com a Vizinhança. A relação entre Pobreza x violência e a questão do
Beco dos Trilhos completam o mapa.
Todos os relatos foram enquadrados no mapa de associação de idéias, conforme a
categoria em melhor se adeqüam. Ao final da classificação, o mapa produz um efeito
“escada” que permite a percepção do relacionamento entre as categorias, tanto vertical como
horizontalmente. As falas não são cortadas, mas reproduzidas na íntegra, para que nenhum
material seja perdido.
48
4.5 Instrumentos de Pesquisa
Conforme referido, a entrevista utilizada é semi-estruturada, portanto as perguntas não
foram formuladas previamente. Descreveremos então, os tópicos que foram examinados na
entrevista, bem como seus objetivos. É relevante ressaltar que tais questões não têm uma
seqüência definida. As perguntas foram elaboradas de acordo com o andamento da entrevista,
visando esclarecer os tópicos abaixo relacionados, elaborados a partir dos objetivos.
4.5.1. A questão da insegurança em casa e no bairro: o objetivo é investigar como e
porque a pessoa se sente em sua casa, entre quatro paredes, com a família. O bairro em que
reside também é alvo do tópico assim como a percepção sobre Cachoeira do Sul.
4.5.2. Mudanças no cotidiano devido à insegurança: levantamento de possíveis
alterações no dia-a-dia que tenham sido ocasionadas devido à onda de violência, tais como
alteração de rotas ou horários, evitar sair desacompanhado, não sair à noite, etc.
4.5.3. Experiência em situação de perigo ou privacidade invadida: investigação de
possíveis situações de perigo sofridas pelo morador, como tentativa de assalto, ameaças,
envolvimento em brigas e discussões, residência ou veículo arrombados, vítima de roubos ou
furtos, ou mesmo a observação de algum caso de vizinhos no bairro.
4.5.4. Relacionamento com a vizinhança: refere-se ao modelo de relacionamento
com os vizinhos: se é uma relação de confiança ou não, se há proximidade ou relacionamento
mais formal, se já precisou de auxílio e recebeu de algum vizinho. Levantadas situações de
vizinhos necessitando ajuda e questionada a atitude que a pessoa pensa que tomaria.
4.5.5. Relação entre pobreza e violência: reconhecimento de possíveis conceitos
sobre aproximação entre pobreza e violência. Investigação do que os moradores pensam sobre
o assunto e se fazem alguma ligação com a situação pela qual estão passando.
4.5.6. Solução para a situação do Beco dos Trilhos: investigação de quais as
soluções, na opinião do morador, são adequadas para melhorar a situação do local.
49
5. Resultados e Discussão
5.1. Insegurança: quando o lar se transforma em prisão
Os participantes do estudo relataram nas entrevistas o que sentem quando pensam a
própria casa e o bairro em que vivem com relação ao tema segurança. Os sentidos produzidos
neste momento foram de insegurança, falta de tranqüilidade, apreensão e vulnerabilidade.
Apesar de em alguns casos o sentido não vir declarado na fala, analisando a prática discursiva
como um todo é possível perceber a constância desses sentidos em quase todas as entrevistas.
Os representantes dos bairros do entorno ao Beco, foram unânimes em afirmar a
insegurança como constante no cotidiano. Lúcia, por exemplo, já teve a casa arrombada duas
vezes e destaca que quando o marido vai viajar, não consegue dormir direito à noite. Reclama
que não é possível deixar carros estacionados em frente à sua residência porque
inevitavelmente são roubados. O tráfico de drogas nas proximidades ao Beco é apontado por
ela como um dos fatores desencadeantes do sentimento. Fabiano, que trabalha viajando
durante toda a semana para fiscalizar plantio de lavouras na região, diz que a família “fica em
pânico” quando ele não está em casa e várias vezes já optou por deixar o hotel pago, voltar
para casa e retornar no dia seguinte.
F10C – A segurança nossa aqui... Ela... Foi... A insegurança, né... Foi gradativa... (...)
No primeiro dia em que eu botei o portão eletrônico com grade... A construção de alvenaria
eliminando a entrada né, no pátio da frente da casa, nos fundos já tinha, né... No primeiro
dia eles pularam a grade, roubaram a lâmpada interna e o tapete de limpar os pés aqui na
frente da casa. Uma... Assim uma maneira de dizer que não adiantou nada botar a grade.
Quer dizer foi um custo alto. Um custo dispendioso, uma, uma... Um recurso que a gente
quando tivesse ia fazer, pra obter mais segurança, né. Mas e aí, arrogantemente, pularam ali
e fizeram esse dano. (...) Então nós não temos segurança nenhuma, nenhuma, nenhuma. Tudo
50
isso graças ao convívio com o Beco dos Trilhos. (...) Eu, particularmente tenho um mapa do
bairro aqui e só tinha duas casas que não tinham sido assaltadas: era a minha e a do vizinho
aqui do lado. Agora a minha foi assaltada também. Quer dizer: não tem ninguém que não foi
assaltado aqui no bairro. Todos foram assaltados! (Fabiano, sic)
Para Morais (1981) as perspectivas do Brasil e até do mundo para as próximas décadas
é de que o medo seja o pão cotidiano dos cidadãos. O autor comenta que o “espaço amigo”
sonhado por Péricles na Grécia antiga para as cidades foi subvertido por uma urbanização
ferozmente capitalista que vem excedendo o que o homem pode suportar. Em função disso, as
casas não mais expõem suas fachadas românticas e se cercam de muros muito altos que
abrigam ainda cães de guarda. “As pessoas trafegam em seus automóveis com os vidros bem
fechados para evitar abordagens perigosas em cruzamentos e semáforos e, dependendo de por
onde andem a pé, sentem-se como se estivessem em plena prática da ‘roleta russa’” (p12).
Nan Elin (1996), citado por Bauman (1999), completa que a cidade, construída
originalmente em nome da insegurança, para proteger de invasores mal intencionados os que
moram intramuros, tornou-se associada mais com perigo do que com a segurança. O fator
medo aumentou, como indicam os carros fechados, as portas de casa e os sistemas de
segurança, a popularidade das comunidades fechadas e seguras e a crescente vigilância nos
espaços públicos, para não falar nas intermináveis reportagens sobre perigo.
Gustavo, morador do bairro Rio Branco, diz que se sente preso dentro de casa,
enquanto os bandidos estão soltos na rua. Apesar de ter gradeado todo o pátio em volta da
residência, continua se sentindo inseguro e cita a proximidade com o comércio de drogas.
Bauman (1999) acrescenta que na sua sólida materialidade de tijolo e cimento, a “casa”
alimenta o ressentimento e a rebelião. Se estiver fechada ao exterior, se sair é uma perspectiva
distante ou inexistente, a casa se torna uma prisão.
51
A imobilidade forçada, a condição de estar preso a um lugar, sem permissão de se
mudar para parte alguma, parece abominável, cruel e repulsiva; é a proibição de
movimento, mais do que a frustração de um efetivo desejo de mudar, que torna essa
situação especialmente ofensiva. Estar proibido de mover-se é um símbolo
poderosíssimo de impotência, de incapacidade e dor (Bauman, 1999, p. 130).
Ana concorda com o depoimento de Gustavo, mesmo considerando sua casa bem
fechada. O medo maior é em relação aos filhos, que saem à noite e chegam de madrugada, na
abertura e fechamento do portão.
A14 - Olha, é aquela... Aquele sentimento de medo mais ou menos generalizado que
todo mundo tem. Eu acho assim que a minha casa é bem fechada, bem segura. Mas... É
aquela coisa, né... Não existe porta fechada pra bandido. (...) No geral é aquilo que todo
mundo tem. Medo de um... Uma abordagem assim quando a gente tá chegando em casa, que
tem ocorrido muito isso aí, né. Então eu sempre procuro assim, olhar bem pros lados, pra ver
se não tem ninguém. Né... A gente tem uma visão boa aqui da rua. Não tem assim lugar que o
pessoal possa se esconder. Então eu sempre procuro ver direitinho assim se não tem
ninguém. E é mais ou menos por aí, assim ó. A gente tem que tá sempre atento, né. Na saída e
na chegada. Quando a gente sai também observa se não tem ninguém na esquina, observando
se a gente tá saindo né, mais ou menos por aí... (Ana, sic).
Morais (1981) alerta para as conseqüências psicológicas que a sensação de estar
desprotegido provoca nas pessoas, frisando que o medo faz definhar. O autor cita como
exemplo um episódio ocorrido em Atlanta, Estados Unidos, onde um homem estava matando
negros. No início eram crianças negras e depois já não eram discriminadas as idades. O clima
de terror teria levado a população negra da cidade a ficar literalmente doente, tanto que uma
mãe entrevistada chegou a referir: “Nossas crianças estão profundamente doentes. Dormem
de bruços ou encolhidas, gemendo. Têm náuseas e calafrios e não podem soltar-se das nossas
52
mãos, quando nós temos que trabalhar e usar as mãos”. Nas entrevistas o relato de Bento
ilustra a situação: “nossa parte psicológica, que quê nós temos: como é que poderia dizer o
conceito de segurança? É ficar entre as quatro paredes. Dali pra fora, a insegurança é total
ou deixar um buraco ou uma porta aberta... Fica apreensivo. Apreensivo...” (sic).
De acordo com Vasconcelos (2000) na construção da intimidade vem acontecendo
outra coisa que um simples uso do espaço interior: existe uma dialética que se instaura entre
interior (a moradia como espaço familiar) e exterior (o espaço urbano, a sociedade). Essa
perspectiva faz com que a complementaridade entre interior e exterior desapareça. Nessa ótica
a intimidade é um elemento de qualidade de vida habitacional, mas em primeiro lugar,
funciona como exigência de nível de vida.
Bauman (1999) acrescenta que os medos contemporâneos, os “medos urbanos”
típicos, ao contrário dos que outrora levaram à construção de cidades, concentram-se no
“inimigo interior”. Eles provocam menos preocupação com a integridade da cidade como um
todo – como propriedade coletiva e garante coletivo de segurança individual – do que com o
isolamento e a fortificação do próprio lar dentro da cidade.
Os muros construídos outrora em volta da cidade cruzam agora a própria cidade em
inúmeras direções. Bairros vigiados, espaços públicos com proteção cerrada e
admissão controlada, guardas bem armados no portão dos condomínios e portas
operadas eletronicamente – tudo isso para afastar concidadãos indesejados, não
exércitos estrangeiros, salteadores de estrada, saqueadores ou outros perigos
desconhecidos emboscados extramuros (Bauman, 1999, p. 55).
A entrevista de Bento esboça essa citação. Ele também receia a abertura do portão de
entrada e acabou se acostumando a manter a casa sempre fechada. Apesar de em princípio ter
mostrado aversão à cerca elétrica – pois achava que o sistema dava um ar de “campo de
concentração” – confessa que só se sente tranqüilo agora que a casa tem muro alto e alarme
53
eletrônico em todo o terreno. Reclama que nem em dia de festividades pode deixar carros do
lado de fora do muro.
B26 - A gente fica apreensivo, sair de carro, né... No teu caso ali, né. Bota o carro pra
dentro por que... Justamente pra evitar o problema de... O cara tá... Aqui não teria sossego
pra tá conversando. Tu mesmo: como é que está... Como é que está o meu carro será lá na
rua? Botamos pra dentro que a gente fica sossegado (Bento, sic).
Fabiano, morador do Rio Branco, também afirma não poder deixar carros estacionados
na frente da casa, principalmente em dia de comemorações ou aniversários. É necessário
pagar um guarda para que os convidados não sofram as conseqüências de vir à festa. “É vidro
quebrado, é toca-fitas, CDs roubados. Até calota de carro, roubavam calota, pneu. É um
horror, é um horror, um horror, um horror” (sic). Rui também se queixa da impossibilidade
de estacionar o carro na frente de casa sem ficar preocupado. O entrevistado, que mora nas
mediações de um centro de tradições gaúchas no bairro Soares, explica que atualmente os
roubos diminuíram, mas nos dias em que havia baile na entidade os carros eram “limpados”:
eram levados som, bateria e até a gasolina dos veículos.
R16 – Bom... Eu aqui em casa, por enquanto, nós estamos tranqüilos. Apenas nós
tivemos duas invasões no nosso jardim, agora... Dentro de casa internamente não houve
nada... Por enquanto... Mas a insegurança aqui... A gente não tá seguro... Porque se...
Principalmente, se deixar um carro aqui na frente. À noite aqui, ou de tardezinha, o pessoal
invade mesmo... Já tive diversos carros aqui na frente de casa que foram invadidos. O
problema maior é que o pessoal quer o som do carro. Porque o som do carro fica fácil pra
trocar por... Pro receptor e coisa aí... Então isso fica mais fácil, né. Um som... O cara chega
ali e vende ali... Tu paga um som R$ 1.000,00, o cara vende por R$ 200,00, R$ 100,00. Então
essa aí é... (Rui, sic).
De acordo com os entrevistados, um fator que incrementa o sentimento de insegurança
54
é a sensação de estar exposto, vulnerável. Para os moradores, ao mesmo tempo em que não se
sabe de onde o perigo pode vir, há impressão de que se está sendo vigiado, percebido. Esta
questão está presente de forma aberta no relato de pelo menos três pessoas e nos demais
aparece subentendida.
Fabiano demonstra sentimentos de ansiedade quando conta um episódio em que o
segundo andar de sua casa foi invadido num dia de chuva onde toda a família estava reunida
no andar térreo. O roubo só foi percebido quando um de seus filhos subiu ao dormitório e
notou manchas de sangue pela casa, causadas pelo corte na mão de um dos assaltantes: “aí
que fomos notar, que tinha sido invadida a privacidade da gente, às seis da tarde. Por uns
elementos que eu nem sei se é homem, se é mulher, se é branco, se é preto” (sic).
Para Bauman (2003) essas situações de sentir a privacidade invadida vão alimentando
a sensação de insegurança, pois “não há suor que faça reabrir o portão fechado que levaria à
inocência comunitária, à multiplicação fundadora do mesmo e à tranqüilidade” (sic). Lúcia
também refere esse sentimento:
L56 – (...) É realmente, eu acho que no fator psicológico é pior porque eles sabem
quem são os filhos da gente. E a gente... Que acontece? Tu te tranca cada vez mais. Tu
convive cada vez menos. Tu pode olhar, tu sair pelo bairro tu vai ver, tu não vê as pessoas
mais na frente. Tu não vê as janelas abertas. Isso aí influencia um horror. Né. As crianças
brincando na rua como era antigamente, tu não vê direi... Mais, entendeu? Então é um fator
psicológico que deixa... (Lúcia, sic)
Bauman (2003) explica que atualmente a promoção da segurança requer o sacrifício da
liberdade. Entretanto, o autor reconhece que segurança sem liberdade equivale à escravidão e
a liberdade sem segurança equivale a estar perdido e abandonado. Essa circunstância torna a
vida em comum um conflito sem fim, pois “a segurança sacrificada em nome da liberdade
tende a ser a segurança dos outros; e a liberdade sacrificada em nome da segurança tende a
55
ser a liberdade dos outros” (p. 24). Debord (1997) entende a insegurança como um fator
histórico. Para o autor, o esforço de todos os poderes estabelecidos, desde as experiências da
Revolução Francesa, para ampliar os meios de manter a ordem na rua acaba culminando
afinal com a supressão da rua. “Essa sociedade que suprime a distância geográfica recolhe
interiormente a distância, como separação espetacular” (p. 112).
Bauman (1999) reflete que no momento em que vivemos, o qual ele chama de pós-
modernidade, a comunidade de entendimento comum, se alcançada tende a permanecer frágil
e vulnerável, precisando de vigilância, reforço e defesa. As pessoas que sonham encontrar a
segurança de longo prazo que lhes faz falta em suas atividades cotidianas, provavelmente irão
se desapontar porque a paz de espírito, se alcançada deve ser do tipo “até segunda ordem” (p.
19). Isso faz com que a comunidade do mundo pós-moderno se pareça com uma fortaleza
sitiada, continuamente bombardeada por inimigos.
Para Morais (1981) essa situação ansiógena já caracteriza violência, pois o ser humano
é uma integração entre o físico e o psíquico e fica praticamente impossível ameaçar apenas
um destes componentes. Não se pode ameaçar meio homem, ou seja, a violência está em tudo
que é capaz de imprimir sofrimento ou destruição ao corpo do homem, bem como o que pode
degradar ou causar transtornos à sua integridade psíquica. “Resumindo-se: violentar o homem
é arrancá-lo da sua dignidade física e mental” (p. 24).
A28B - (...) Um dia eu fui na igreja, aqui na igreja evangélica, no colégio Rio Branco,
sabe, num domingo de manhã. E aí tinha um menininho, chegou e disse pra mim: tia, a
senhora quer que eu cuide o seu carro? 09h30min da manhã. Eu disse: não, não precisa a tia
vai ao culto e não vai demorar. Até porque eu não trouxe dinheiro, eu disse pra ele. Eu não
tinha levado. Eu não tinha levado carteira, nada, né. Aí ele disse assim: mas eu sei onde a
senhora mora tia, eu cuido aí outro dia eu vou na sua casa. A senhora é mãe do Carlos, né?
Eu disse: sou. Eu sei onde a senhora mora. Aí eu disse, não, então tá. Aí o que quê eu ia dizer
56
pra ele? Então tá, se tu quer cuidar uma hora tu passa lá que a tia te dá um troco. Acho que
não levou assim, ó... Acho que foi de tarde, não consigo lembrar se foi de tarde do mesmo dia
ou no dia seguinte ele já tava batendo aqui. Tia eu vim aqui buscar aquele troco que tu me
disse.(...) Então eles... Eles conhecem a nossa vida, sabe. Tu não te apercebe disso, mas eles
conhecem a vida da gente. E uma das coisas que eu tenho receio aqui assim, ó... É, pessoal
diz: a mas tua casa é bem fechada, não sei o quê, não sei o quê... Eu disse assim: o problema
todo é que eles sabem direitinho, assim ó... Porque eles tocam o interfone, se tu atende eles,
tão em casa. E eles passam toda hora pedindo. Olha lá o vizinho fechando. Eles passam toda
hora pedindo, né... Então assim ó, quando a gente sai, eles sabem se a gente tá em casa, ou
não tá em casa, ou... (Ana, sic).
Dentre os oito participantes, apenas os moradores do Beco dos Trilhos não referem a
insegurança como presente de forma aberta. Iara declara sentir-se tranqüila quando
perguntada a respeito, pois afirma não temer as pessoas da comunidade, nem se preocupar
com horário para chegar ou sair de casa. Entretanto, ao final da entrevista, a participante
reconhece que usualmente tem visto muitas pessoas desconhecidas no bairro que
provavelmente chegam para comprar drogas, das quais o Beco seria um ponto de vendas.
I44B - Não faz muito que eu fui num casamento eu... Cheguemos... O meu marido até
veio mais cedo pra casa, e a gente ficou. Chegamos às 3h30min da madrugada, e nós viemos
de carona, descemos na esquina, e até aqui eu não encontrei nenhum conhecido. Ninguém
conhecido que fosse... Morasse na... Aqui comunidade, né. Só gente de fora. Isso aí que a
gente fica com medo. O pessoal da comunidade eu não tenho medo. Aí só gente de fora. E é...
Se tu ficar aqui tu vai ver daqui há pouco, né. Agora... Graças a Deus diminuiu. Tá bem
tranqüilo, tá ótimo. Tu não vê. Diminuiu mesmo, né. A gurizada que vem freqüentar aqui.
Que vinha... Tu vê. Que tu vê: aquilo ali é gente bem ou não é. Tu já vê, pelo estilo tu vê que
não é daqui, né... (Iara, sic).
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E45 - Mas e o pessoal de fora, vem, tu diz é pra...
I46 - Pra comprar droga... Pra essas coisas, né. Agora graças a Deus diminuiu muito,
tá normal o bairro. Graças a Deus não vê tanto como a gente via antes. (Iara, sic).
Taís, a outra moradora do Beco entrevistada, afirma que se sente segura na própria
casa, mas admite claramente que há um foco de violência que gera sensação de insegurança.
Por outro lado, pensa que todas as pessoas ficam rotuladas por causa “de meia dúzia” (sic).
Em relação a Cachoeira do Sul insegurança parece ser ainda maior do que em casa ou
no bairro. Nesse ponto, inclusive os moradores do Beco dos Trilhos concordam com os
demais. Taís comenta que a insegurança da cidade é um dos motivos de ter escolhido cursar a
universidade à tarde, ao invés do período noturno. Iara confessa ficar mais temerosa quando
sabe sobre aumento na criminalidade em Cachoeira do Sul. Apesar de revelar-se tranqüila na
comunidade, reconhece que há perigos.
I40A - Sobre a marginalização? Sim, eu acho que... Como... Não só nessa comunidade
como todas... Todas as comunidades têm, só que a nossa ficou um pouco visada. (...) o meu
irmão mora... Mora no Bairro Promorar... E fala que é horrível lá também. Ele não sai todos
os dias. Na vila Marina também tem. Esses dias nós íamos alugar o salão lá. E bah, é difícil!
Eles invadem, as pessoas invadem, eles incomodam. Tem que... Contratar até guarda pra
segurança, porque pro aniversário da minha guria eu ia alugar lá. Que até guarda tem
porque não tem... Então, eu acho assim que todos os bairros têm, tá tendo né. (Iara, sic).
O relato de Ana remete novamente a uma espécie de “perda da inocência”. Para ela,
Cachoeira do Sul ainda não está tendo os problemas que existem num grande centro, mas “já
deixou, há bastante tempo, de ter aquela tranqüilidade de cidade do interior” (sic). Essa
peculiaridade de cidade do interior assinalada por Ana, é compreendida por Morais (1981)
como uma espécie de “interdependência”. Isso acontece porque muitos homens habitam um
espaço pequeno porque uns dependem das contribuições dos outros. Enquanto as cidades
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pequenas conseguem manter o lado afetivo da interdependência, os grandes centros
substituem afetividade por uma relação comercial, baseada em obrigações coercitivas.
Morais (1981) explica que se os habitantes das cidadezinhas agem desta ou daquela
forma “em consideração aos conhecidos” ou “zelando por um bom nome familiar”, os
habitantes da metrópole (respeitadas as exceções) são eternos fiscais cobradores dos seus
semelhantes. Por outro lado, para o autor, já foi o tempo em que podíamos dizer aos
familiares: “a rua está ficando perigosa”, pois o perigo, visível ou disfarçado, é onipresente.
Portarias de prédios de apartamentos assemelham-se a guaritas de caserna e os
moradores vivem em neurótico sobressalto. Nas casas, os muros e grades são altos e os
moradores têm que dedicar tempo ao cuidado dos seus cães bravos e das suas armas.
Neste ambiente de guerras, as crianças crescem e se deformam (Morais, 1981, p. 106).
Fabiano afirma que Cachoeira do Sul está em uma situação crítica e que é necessária uma
solução imediata para o problema. O morador também reclama que os roubos e furtos não
vêm sendo solucionados e se sente vítima de descaso por parte das autoridades.
F10L - Eu sou participante também de um clube de serviços, chamado Rotary. Um dia na
reunião do Rotary eu disse que a única maneira de coibir isso aí era o dia que pegasse e
assaltasse um delegado de polícia, um comandante da Brigada, um promotor e um juiz de
direito. Não demorou 15 dias essas quatro pessoas foram assaltadas. O juiz de direito foi
assaltado, o promotor de justiça foi assaltado, (...) o delegado de polícia, (...) foi assaltado,
aqui do lado da minha casa, e o (...) comandante da Brigada na época, também foi assaltado
na casa dele. Quer dizer, todas as pessoas sentiram na carne o problema. Todos os roubos
foram resolvidos. Por quê? Porque são pessoas da segurança. Da segurança. Mas nós somos
da insegurança, nenhum roubo foi resolvido. Nenhuma caneta minha que foi roubada até
hoje foi devolvida pela polícia.Agora das autoridades todos foram devolvidos. Aí se
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fortalecem, se unem, e invadem casas e fazem horrores, e conseguem de volta. Nós não. E é
assim todos nós. (Fabiano, sic).
Morais (1981) alerta para a emergência de um caráter gratuito no assalto, no
latrocínio, no homicídio, expondo cada morador a uma irracionalidade social chocante. Essa
falta de motivação é noticiada pelos meios de comunicação e alimenta cotidianamente um
pavor crescente que neurotiza a população e faz com que os cidadãos tomem duas
providências básicas: apontarem sempre a ineficiência da polícia, e comprarem armas para a
autodefesa. “Isto traz como conseqüência que a polícia, também por causa das críticas
constantes, se torne mais e mais violenta e os populares que lhe atiçam o ânimo venham a ser
vítima da própria violência policial” (p. 84).
Nesse contexto da insegurança a juventude foi espontaneamente apontada por quase a
metade do público alvo como um dos principais propulsores da violência no município. Lúcia
pensa que a insegurança e a violência estão generalizadas devido a causas sociais e culturais.
A empresária é da opinião que quem faz “essas coisas” são os jovens, por causa da exclusão
social, e não um marginal, um bandido como haviam “antigamente”. Bento corrobora as
afirmativas e adverte a formação de gangues de jovens. Rui acrescenta que a juventude não
sabe onde termina a liberdade e não reconhece direitos e deveres. Esta condição de “estar
perdido” facilita que os jovens sejam manipulados por adultos que orientam seus roubos e
furtos porque a lei não tem alcance sobre os menores. Ana se diz chocada com a situação da
violência, especialmente em relação aos crimes por causa de drogas:
A18 - (...) Cada vez mais a gente vê agressão na rua, arrombamento, briga por nada, né.
Principalmente adolescente que não tem noção das coisas. Porque às vezes uma pessoa que
vem te fazer um assalto e é uma pessoa experiente, ele não vem pra te machucar, ele vem pra
te roubar. Agora uma pessoa despreparada como é um jovem, às vezes drogado. Aí a coisa é
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complicada, né. De novo vou dizer que o meu receio maior sempre em questão de segurança
é em relação aos meus filhos. (Ana, sic).
Psicanaliticamente retomando o que Birman (2001) expõe sobre a estrutura do ego
ideal, regulada pela economia narcísica da libido, o autor alega que os usuários de drogas e os
toxicômanos não são absolutamente criminosos. Porém, a criminalização destes indivíduos
impede a aproximação deles de forma produtiva, eles estão inseridos em um circuito diabólico
regulado por acusações e culpabilizações. Para o autor, não existe qualquer possibilidade de
solução para os impasses existenciais destas pessoas e a criminalização faz com que elas
estejam fadadas a uma mortificação perpétua que não mais lhe oferece qualquer caminho para
a solução de seus impasses.
Para Birman (2001) o sujeito se autoriza a tirar coisas dos outros quando bem entende
pela violência, agindo de forma predatória, depredando o corpo do outro como se fosse um
mero objeto para usufruto de seu gozo. Por isso mesmo, o outro não é reconhecido como
sujeito propriamente dito: é destituído de sua interioridade, singularidade e diferença. O outro
é delineado como um pedaço de carne à disposição do sujeito, para que este possa manipulá-
lo e instrumentalizá-lo para as delícias macabras de seu gozo, se aquele é fonte de bens e
objetos que atiçam a cobiça voluptuosa do sujeito. Nesse contexto, Birman (2001) explica que
o pólo alteritário do psiquismo se dirige para uma região de sombras, esmaecendo-se de suas
linhas e cores, como que numa espécie de eclipse. Conseqüentemente, a perversão se instala
como maneira de usufruto dos bens e dos valores que circulam no espaço social.
Apesar de todos os entrevistados reconhecerem Cachoeira do Sul como perigosa, em
algumas entrevistas é possível perceber que a insegurança ainda é focada sobre alguns locais.
Ana, por exemplo, acha que os lugares mais ameaçadores são saídas de boates, barzinhos, e
procura não deixar os filhos saírem sozinhos à noite, preferindo que se divirtam em grupos.
Bento acha que as praças e lugares mais escuros, sem muito movimento, são mais
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ameaçadores. Todavia, acredita que durante o dia não há tantos problemas como à noite, que
merece cuidado redobrado.
Conforme Morais (1981), o receio quanto a lugares mais propícios à insegurança decorre
de que nas cidades pequenas ainda há certa lógica para que algumas modalidades de
violência, ainda que não sejam propriamente “razoáveis”, aconteçam. O autor entende que
nestes lugares, mata-se por certas razões que o grupo humano dali pode compreender com
certa facilidade, pois ladrões e assassinos parecem proceder de forma mais coerente com uma
relação de causa-e-efeito. A atribuição de motivos não é tão abstrata porque ocorrem, por
exemplo, crimes passionais, brigas, assaltos, mas nada de caráter tão gratuito. Essa atuação
permite – sobretudo pelas dimensões reduzidas do grupo humano – certa margem de
previsibilidade quanto aos momentos perigosos, os bares e recantos mais mal freqüentados e
os procedimentos capazes de defenderem os cidadãos de riscos piores.
5.2. Criminalidade: o ser humano cada vez mais acuado
Dentre as questões também foi levantado se os participantes já passaram por
experiências de perigo ou tiveram a privacidade invadida. Foram investigadas possíveis
situações como tentativa de assalto, ameaças, envolvimento em brigas e discussões, residência
ou veículo arrombado, vítima de roubos ou furtos, tanto no que diz respeito aos moradores
quanto em relação à vizinhança. Todos os sujeitos da pesquisa já passaram por alguma
situação, na maioria dos casos, considerada por eles mesmos, não tão grave. No entanto, há
dois entrevistados que contam ter passado por sérias ocorrências. Os episódios relatados pelos
participantes são utilizados de forma ilustrativa de modo que sejam relevantes para o
entendimento do trabalho.
As moradoras do Beco dos Trilhos acreditam que no local não acontecem mais do que
pequenos furtos, que não chegam a ser motivo de preocupação. Iara diz que nunca lhe foi
62
roubado nada, deixa as roupas penduradas no varal na rua e a porta aberta quando vai à casa
da sogra, próxima à sua. Taís concorda com a vizinha e reconhece que como “todo mundo é
pobre”, não há muito que roubar, então “é coisa pequena que some, um bichinho de dentro
do pátio, uma roupa ou coisa assim” (sic).
Com relação aos participantes residentes nos bairros do entorno ao Beco, as situações
se multiplicam e os comentários adquirem tom grave e preocupante para alguns entrevistados.
Lúcia relata ter tido a casa invadida por duas vezes, com a família dentro. Em um dos casos o
assaltante foi preso e ela teve que ficar cara a cara com o acusado na delegacia para que ele
continuasse na cadeia. Mesmo assim, devido ao fato de estar recém completando 18 anos, o
assaltante foi solto e seu pai ainda tocou a campainha da casa de Lúcia dois dias depois,
provavelmente para “xingá-la”, mas ela não atendeu, com medo.
Bauman (2003) identifica que no caso dessa indignação contra a ineficácia da lei
ocorre uma espécie de frustração do indivíduo em relação à sociedade. Apesar de a sociedade
sempre ter sido uma entidade “imaginária”, há pouco tempo sua imagem era a de uma
comunidade de “cuidados e compartilhamento”, que irradiava confiança coletiva contra o
infortúnio individual. Era imaginada como um pai poderoso, rigoroso e às vezes implacável,
mas sempre um pai, a quem sempre se podia recorrer em busca de ajuda (p. 101).
De acordo com o autor esse “amor frustrado” acaba em indiferença e algumas vezes
em suspeição e ressentimento. Se a “sociedade” não satisfaz o desejo de lar seguro, não é
tanto por ser “abstrata”, mas pela recente traição ainda fresca na memória popular, de que não
cumpriu suas promessas. “Às pessoas que sofrem sob a pressão de uma existência insegura e
perspectivas incertas, ela promete mais não menos insegurança” (Bauman, 2003, p. 101).
Gustavo, que mora a cerca de uma quadra do Beco dos Trilhos, e Fabiano, que tem os
fundos do terreno fazendo divisa com o bairro, descreveram várias situações de privacidade
invadida. Gustavo conta que ter enfrentado um homem que bateu à porta de sua casa às cinco
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horas da manhã e pedido “dinheiro pra comprar droga na maior cara de pau”. Outro dia,
antes de colocar as grades, ao meio-dia ouviu a campainha e atendeu a porta. Um homem
aguardava e lhe disse: “Tu deve ter muito dinheiro!”. Depois foi embora sem dizer nada.
A residência de Gustavo já foi assaltada duas vezes. Em uma delas ele estava tocando
em uma festa da terceira idade. Quando chegou em casa percebeu já na garagem, com os
faróis do carro, a máquina de lavar fora do lugar. O músico perguntou à vizinhança se alguém
havia notado movimento suspeito, mas ninguém viu nada a não ser um vizinho que passou
pelo local. Ao perceber o carregamento de objetos, o vizinho perguntou aos ladrões se
Gustavo estava se mudando e eles confirmaram. Sem desconfiar das luzes apagadas, a pessoa
não acionou a polícia.
Fabiano conta que um de seus filhos foi vítima da violência quando veio da casa de
um amigo, nas proximidades. O menino foi atacado na esquina de casa por traficantes que
teriam perguntado: o que tu tá me olhando? Mesmo respondendo que não estava olhando, o
garoto apanhou com pedaços de madeira enquanto seus amigos conseguiram fugir. Outro
episódio aconteceu no primeiro dia em que a família se mudou para a casa. Toda família saiu
por um período de 15 minutos e foram deixadas prensas de xis burguer fritando carne nos
fundos do terreno. Quando voltaram “não tinha sobrado nada” (sic). O fiscal conta ainda de
outra ocasião, num dia de chuva, quando teve a casa invadida pela janela do segundo andar da
frente. Ao escalar o telhado, um dos ladrões provavelmente deve ter escorregado e cortado a
mão na telha vitrificada.
F10B - Mesmo aquela mão sangrando ele entrou pra dentro da minha casa e
derramou sangue em todas as peças da casa e nas paredes. E nós aqui embaixo seis da tarde,
tomando chimarrão e vendo a novela. E... Não vimos um barulho, parece que tinha plumas
nos pés. Roubaram todos os objetos que tinha no segundo piso da casa. Dois computadores,
três televisões, rádio-relógio, rádio portátil, que mais? Objetos assim... Dois aparelhos
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celulares. Objetos que eles enxergaram assim, eles foram roubando. E é uma coisa nítida,
que tinha sido mais de um, porque foi muito rápido. E os meus filhos tavam com os amigos
jogando ping pong na garagem. E um deles subiu e gritou assim: pai corre aqui que o... Que
o mano tá sangrando o nariz! E é comum esse mais velho sangrar o nariz. Aí eu disse assim:
mas peraí um pouquinho, ele taí? Não. Corri na garagem ele tava ali jogando ping pong.
Não, mas ele tá aqui, não tem nada com ele. Aí subi lá tava a casa toda cheia de sangue.
(Fabiano, sic).
Bauman (2003) menciona que com a manutenção da falta de solução para esse tipo de
problemas, entre as localidades imaginárias a que as pessoas acreditavam pertencer e aonde
acreditavam poder procurar abrigo, aparece um vazio no lugar anteriormente ocupado pela
“sociedade”. Essa entidade teria sido outrora representada pelo Estado armado com meios de
coerção e também com meios poderosos para corrigir pelo menos as injustiças sociais mais
ultrajantes.
Esse Estado está sumindo de nossa vista. Esperar que o Estado, se chamado ou
pressionado adequadamente, fará algo palpável para mitigar a insegurança da
existência não é muito mais realista do que esperar o fim da seca por meio de uma
dança da chuva. Parece cada vez mais claro que o conforto de uma existência segura
precisa ser procurado por outros meios. A segurança, como todos os outros aspectos
da vida humana num mundo inexoravelmente individualizado e privatizado, é uma
tarefa que toca a cada indivíduo (Bauman, 2003, p. 102).
Os demais entrevistados, apesar de não terem sido vítimas conhecem histórias de
vizinhos próximos à sua casa. Ana conta que os vizinhos também já tiveram a casa arrombada
pelo segundo piso. Rui comenta o caso de uma vizinha que nos últimos dias teria sido
“visitada” duas vezes. Os ladrões levaram bastante coisa e sequer se intimidaram pelos dois
cães ferozes que guardam o pátio. Há pouco tempo, outra casa foi invadida e os objetos
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furtados foram passados por cima da grade da frente da casa.
Bento relata o furto ocorrido na casa de uma amiga recém transferida de Porto Alegre
para Cachoeira do Sul, que teria cogitado a mudança porque a capital está muito violenta. Ela
descarregou as compras em casa e saiu, para retornar logo após. Ao chegar, todas as sacolas
haviam sido levadas. A janela veneziana da casa foi arrombada e a porta aberta por dentro.
Diante desse quadro, o estudo também investigou possíveis alterações no dia-a-dia que
tenham sido ocasionadas em função da insegurança. Era intenção perceber se têm acontecido
alteração de rotas ou horários, evitar sair desacompanhado, não sair à noite, etc. A maioria
dos participantes afirma que não chegou a mudar a rotina. Por outro lado, a partir das
entrevistas são observadas atitudes que remetem à existência de alerta redobrado na maior
parte das situações onde a pessoa fica exposta, por exemplo, no caso da preocupação com a
proteção e segurança da residência. É visível a presença de sentidos que se referem a estar
fechado, aprisionado na própria casa como condição de evitar o perigo.
Taís, moradora do Beco, preferiu estudar à tarde ao invés do período noturno, em
função de ter tranqüilidade para ir à universidade. Afirma que antes podia sair para caminhar
às 22h, 23h, e agora não pode mais. Já Lúcia, confessa que não sai mais de casa sem deixar
caseiro, além de sempre dar uma volta na quadra antes de guardar o carro. Fica com “medo de
abrir e fechar a porta da garagem” (sic).
Rui também descreve esse tipo de comportamento. “À noite, quando a gente chega
tarde de noite... A gente nunca entra direto. Dentro de casa. Conforme tá o movimento, a
gente passa, vai até a esquina e volta. Quando tem muito movimento da rua. E às vezes troca
de horário... Pra evitar um pouco né... Ter uma surpresa na hora de abrir o portão...” (sic).
Dentre as mudanças apontadas como mais significativas encontram-se Fabiano,
Gustavo e Bento. Os três enfatizam ter transformado as casas em verdadeiras fortalezas.
Fabiano ressalta que gradualmente foi obrigado a aumentar a segurança da sua residência com
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muros, grades, portão eletrônico e arame farpado. “Botamos arame farpado, três fios de
arame farpado em cima da grade aí, por conselhos de amigos, que diz que o arame farpado é
muito respeitado por ladrões. Porque rasga as mãos, impede, rasga a roupa, impede a
ultrapassagem pra intimidade nossa” (sic). A vizinhança se uniu para pagar um guarda que
vigia a rua 24 horas por dia a fim de ter mais tranqüilidade.
Aqui cabe citar Morais (1981): a violência, para ser entendida praticamente, não deve
ser entendida como certo ou errado, mas apenas uma coisa ou situação que nos torna
necessariamente ameaçados em nossa integridade pessoal ou que nos expropria de nós
mesmos. Bauman (1999) comenta que a insegurança ambiente se concentra no medo pela
segurança pessoal; que aguça ainda mais a figura ambígua e imprevisível do outro: estranho
na rua, gatuno perto de casa... Alarmes contra assalto, bairros vigiados e patrulhados,
condomínios fechados, tudo isso serve ao mesmo propósito: manter o outro afastado.
Com o aumento da apreensão, Birman (2001) explica que a oposição não se enuncia
entre indivíduo e a sociedade, mas pelo contraponto entre os processos narcísicos e
alteritários. Em qualquer sujeito existe um conflito constante entre o amor de si e o amor do
outro, ou seja, se colocar como seu próprio ideal ou se deixar regular por ideais que
transcendem seu autocentramento. Esta tensão entre o ego ideal e o ideal do ego funda o
sujeito, delineando de maneira estrutural o horizonte de seus movimentos. Se escolher o amor
de si, o outro passa a ser encarado como uma ameaça mortal para a existência autocentrada do
sujeito. Ele é permanentemente reconhecido como inimigo e rival porque atinge o sujeito em
suas certezas e o faz vacilar em relação a seu eixo e sistema de referência.
O autor defende que, pela possibilidade do amor do outro, o outro é encarado como
uma abertura para o possível, pois coloca o indivíduo diante de sua diferença radical em face
de qualquer outro. Isso faz com que haja reconhecimento da alteridade e da
intersubjetividade. Na atualidade o social não nos oferece mais, ou oferece muito pouco, a
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possibilidade de experiências alteritárias legítimas que possam delinear a possibilidade de se
abrir efetivamente o horizonte do sujeito para a experiência da diferença. Em conseqüência a
seu enclausuramento, o indivíduo vai ficando cada vez mais arredio e fechado para a
alteridade.
Fabiano revela que a partir do assalto ocorrido pela janela do segundo andar com a
família em casa, seu filho mais novo ficou com muito medo e não queria mais dormir na casa.
Sentindo-se desprotegido, Fabiano providenciou já no outro dia o gradeamento de todo o
terreno. “Tá assim, a casa toda gradeada agora por dentro também. Não adianta gradear os
muros e a frente. Tem que gradear a casa por dentro, botar mais chave de segurança, e tudo.
Alarme também não adianta porque eles cortam alarmes, fazem horrores” (sic).
Gustavo também gradeou todas as aberturas da casa. Na área de serviços, localizada
nos fundos da residência, as grades cobrem todo o espaço, inclusive o teto em uma parte que
ultrapassa o telhado, dando um aspecto de “gaiola” ao local. Após o gradeamento, Gustavo
optou por não instalar campainha, pois relata que não conseguia ficar tranqüilo tal era o
movimento de pedintes à sua porta. Em qualquer hora do dia ou da noite a campainha era
acionada. “Eu não posso ter campainha aqui. Não dá. O cara fica ali e não quer saber se tu
tá cansado ou não. Pô, tchê, eu trabalho à noite, eu chego tarde” (sic).
Outra reclamação é de não haver condições de deixar as janelas abertas. O sentido que
emerge aqui é de sentir-se preso dentro da própria casa. Bento conta que apesar de ser contra
a utilização da cerca elétrica, não encontrou alternativa para sentir-se sossegado. Ele enfatiza
a cerca elétrica dá a impressão de estar em um campo de concentração.
Lúcia reclama a falta de convivência que acaba surgindo do enclausuramento dos
vizinhos nas casas. “Tu te tranca cada vez mais. Tu convive cada vez menos. Tu pode olhar,
tu sair pelo bairro tu vai ver, tu não vê as pessoas mais na frente. Tu não vê as janelas
abertas. Isso aí influencia um horror, né? As crianças brincando na rua como era
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antigamente, tu não vê...” (sic). Ana confessa ter mudado certos hábitos e considera
insuportável ter que viver com a casa fechada.
A16 - Assim ó, eu não gosto de... De casa fechada. Gosto de janela aberta, de sol
entrando. A gente tinha o hábito de deixar a porta da garagem aberta. Pra ver o movimento
da rua, enfim. Isso a gente não consegue fazer mais, né. Não pode nunca te descuidar a porta
da garagem aberta, embora tenha a grade na frente. Então a gente tem agora por hábito
fechar a porta da garagem. Por hábito não abrir: eu tenho uma janela no segundo piso, que
tem um floreiro, que dá pra um telhado... Aquela janela sempre ficava aberta, agora
normalmente ela tá fechada. A porta da sacada é chaveada, não se deixa mais... Então é esse
tipo de cuidado que a gente tem que tá sempre atento, né... (Ana, sic).
Bauman (2003), retomando as conseqüências do enclausuramento, alerta que a
insegurança é inimiga da comunidade cercada de muros e protegida por cercas. O sentimento
de segurança faz com que o temível oceano que serve de obstáculo entre “nós” e “eles” mais
pareça uma piscina convidativa. “O apavorante precipício entre a comunidade e seus vizinhos
mais parece uma trilha para vaguear/passear/andar aberta a aventuras agradáveis” (p. 127).
Nessa questão – correspondente ao relacionamento com a vizinhança – foram
pesquisados aspectos referentes a relações de confiança, intimidade ou relacionamento
formal. Iara e Taís, que moram no Beco dos Trilhos, destacam que há convívio de intimidade
e segurança na receptividade em relação aos vizinhos. Iara considera a comunidade solidária e
menciona campanhas realizadas para arrecadar dinheiro. Em uma delas a mãe de um rapaz
que havia falecido não tinha dinheiro para pagar o funeral. Noutra ocasião foi promovido um
almoço beneficente cujo objetivo era coletar dinheiro para pagar a cirurgia de uma criança.
Oliveira (1993) observa que as relações de convivência em bairros de baixa renda são
marcadas pela solidariedade entre vizinhos e o padrão de sociabilidade assemelha-se ao de
cidades do interior, onde todos se conhecem e sabem um pouco da vida uns dos outros. “A
69
relação solidária entre os moradores comporta a ajuda mútua nos casos de desabamentos,
doenças, enterros, etc. É comum uma moradora ajudar a outra que tenha filhos pequenos e
trabalhe fora, para que ela não precise faltar ao trabalho”, (p. 33).
Para a autora, estas relações se fundamentam na condição de vida e moradia,
refletindo a condição social e de classe em que estão inseridos. A organização social do
espaço implica numa grande proximidade entre as casas. Este padrão de convivência responde
às necessidades desse grupo social, e muitos encaminhamentos, ou mesmo soluções, de
problemas individuais ou coletivos, encontram aí sua possibilidade mais concreta de
realização. “É uma população que conta consigo mesma, acima de tudo”, (p. 33).
Todavia, Oliveira (1993) questiona até que ponto a base de solidariedade funciona não
só como mecanismo de sobrevivência, mas como “amortecedor” dos conflitos sociais reais. A
autora imagina que a situação de carência material se tornaria muito mais explosiva, social e
politicamente, se não houvessem tais relações amenizando o cotidiano de miséria (p. 33).
Dos bairros de classe média alta, Rui e Fabiano referem acolhimento da vizinhança,
inclusive com aspectos de camaradagem e familiaridade. Rui, por exemplo, descreve que
ainda tem o costume de emprestar ferramentas. “Eu sou o quebra-galho, né... Empresto
ferramenta pra um... Ajudo outro... Vou ali, boto o chuveiro, a gente faz... Vai quebrando
galho, aí... A gente se ajuda aqui. A turma aqui é boa...” (sic). Fabiano avalia os vizinhos do
bairro como muito unidos.
Giddens (1991) define quatro contextos localizados de confiança que tendem a
predominar de acordo com a ordem social específica: parentesco, comunidade local, religião e
tradição. O sistema de parentesco proporciona um modo relativamente estável de organização
de “feixes” de relações sociais através do tempo e do espaço e fornece um nexo de conexões
sociais fidedignas que formam um meio organizador de relações de confiança. O mesmo pode
ser dito da comunidade local. Entretanto, deve-se evitar a visão romanceada da comunidade
70
que vem à tona nas análises sociais quando as culturas tradicionais são comparadas às
modernas. O que é preciso enfatizar é a importância das relações localizadas organizadas em
termos de lugar, em que o local ainda não foi transformado pelas relações tempo-espaço
distanciadas. Na grande maioria dos cenários pré-modernos, inclusive na maioria das cidades,
o meio local é o lugar de feixes de relações sociais entrelaçadas, cuja pequena extensão
espacial garante sua solidez no tempo. A localidade nos contextos contribui para a segurança
ontológica de maneira que são substancialmente desenvolvidas em circunstâncias de
modernidade.
Para os demais entrevistados a percepção de união entre a vizinhança não é percebida.
Conforme os relatos, não há muita intimidade e às vezes, devido às preocupações com a
segurança, as pessoas ficam dias sem encontrar a vizinhança. Bauman (1999) elucida que em
vez da união, o evitamento e a separação acabam por se tornar as estratégias principais de
sobrevivência. “Não há mais a questão de amar ou odiar seu vizinho. Manter os vizinhos ao
alcance da mão resolve o dilema e torna a opção desnecessária; isso afasta situações em que a
opção entre o amor e o ódio se faz necessária” (p. 56).
Bento ilustra que sobre a vizinhança só se sabe que “fulano” mora ali, “cicrano” mora
lá, mas relacionamento quase não existe, especialmente no que tange à vizinhança íntima, de
amizade. “Às vezes passa... Ih! Dias, meses, sem... Sem ver. Né... Porque cada um sai, vai pro
seu trabalho, volta, fica dentro da sua casa e... Se sai de casa, vai no mercado, vai... Na
festividade, no... Sei eu... Na sociedade, no clube, então de repente ali que vai se relacionar,
ou vai encontrar lá no mercado" (sic).
Ana diz que se relaciona bem com toda a vizinhança, mas não é “de visitar”. A
entrevistada conta que havia uma vizinha que gostava de agradar, lhe enviava doces e
chamava no muro para entregar uvas recém colhidas. A vizinha faleceu e atualmente não há
uma relação muito próxima com os demais. Para Ana, que tem um prédio à frente de sua casa,
71
a alta rotatividade de inquilinos do local é que não deixa margem à criação de vínculos.
A24 - Acho que é estudante, é gente que vem transferido de outro lugar, é bancário,
enfim. Param pouco, né. Eu pouco paro em casa. Essa minha vizinha aqui da direita, se ela
pode ela não olha pra cá pra cumprimentar. Desde que a gente mudou pra cá que ela é meio
engraçada. Quando eu encontro ela nos lugares fora da... Daqui da rua, ela bate papo
comigo numa boa. Mas aqui se eu tô na frente, limpando o jardim ou qualquer coisa se ela
pode ela olha pra tudo que é lado. Ela é meio esquisita. Mas afora isso, assim, ó... Me dou
bem, encontro nas festinhas da igreja, aqui que às vezes tem almoço, a gente vai ali, me dou
bem com todo mundo. Só que assim, ó: como a gente passa muito tempo fora, fora de casa, eu
chego mais à noite, fico mais recolhida aqui pra dentro. Então... (Ana, sic).
Através da observação dos relatos, podemos perceber sentidos que remetem ao
surgimento do individualismo se sobrepondo à individualidade. Bauman (2003) denuncia que
a proximidade já não garante a intensidade da interação; e o que é mais grave, não se pode
confiar na duração de qualquer interação que surja na base da proximidade, e inscrever as
expectativas de uma vida individual na perspectiva de sua longevidade já não é um passo
óbvio ou sensato. A modernidade, resultado desse desengajamento das pessoas, está em
estágio líquido, passando a um processo cada vez maior de individualização nas relações.
5.3. Pobreza x violência: um olhar sobre o Beco e seu entorno
Os participantes foram indagados nas entrevistas se percebem alguma relação entre a
situação de baixa renda e a violência ou marginalidade. Na maioria das respostas os sentidos
produzidos foram de que há relação entre pobreza e violência. Lúcia, moradora do bairro São
Luís, é a única que tem certeza de não haver ligação entre a pobreza e a violência. Ela acredita
que ainda há muito emprego ou subempregos na cidade e que a violência só seria alternativa
para quem quer um jeito fácil de ganhar dinheiro. A empresária pondera que a violência é
72
uma questão cultural, e não apenas das classes baixas.
Taís, moradora do Beco dos Trilhos pensa que a baixa renda gera dificuldades, e isso
leva à violência. Contudo, reclama que também acontecem generalizações, e “fica todo
mundo rotulado por meia dúzia”. Oliveira (1993) enfatiza que a imprensa reforça a imagem
negativa dos bairros de baixa renda, tanto para quem nela mora quanto para quem vive fora.
Há um processo de discriminação sentido pelo morador, divulgando a criminalidade
vinculada à favela, embora ela seja impune em outros meios sociais. São priorizadas notícias
sobre a violência, não divulgando com a mesma ênfase o cotidiano do bairro de baixa renda e
suas organizações comunitárias.
Bento considera que os pobres são mais propensos à violência porque às vezes as
pessoas acham que a única solução é roubar. Pelo fato de se dispor ao roubo a pessoa já
estaria preparada para tudo. Ana concorda em parte. Para ela a “carência de certas coisas”
pode levar à violência, mas é preciso que a pessoa tenha uma índole. Na opinião de Ana, uma
pessoa de bem, apesar de pobre, não necessariamente é violenta. “Ela pode até às vezes
reagir a uma agressão, de repente, mas eu acho que se ela não tem um instinto mau ela não
vai agredir ninguém. Acho que ela vai buscar sua subsistência” (sic).
Alves (1990) contesta a visão que se tem dos bairros de baixa renda como um
aglomerado violento de pessoas. O autor alega que, em geral, o que se chama indistintamente
de “favelas” quase sempre em tom pejorativo, são bairros pobres, erguidos de forma
clandestina, que se consolidam através da luta solidária de seus moradores.
Bauman (1999) destaca que há expressões extremas da polarização entre a ruptura de
comunicação entre as “elites extraterritoriais” cada vez mais globais e o restante da população
cada vez mais “localizada”. Isso gera tendência de criminalizar casos que não se adeqüam à
norma idealizada e o papel desempenhado pela criminalização para compensar os
desconfortos da “vida em movimento” tornando ainda mais odiosa e repulsiva a imagem da
73
realidade da vida alternativa, da imobilidade. Nesse processo, as preocupações com
“segurança”, reduzidas à preocupação única com a segurança do corpo e dos bens pessoais,
são “sobrecarregadas” de ansiedades geradas por outras dimensões cruciais da existência atual
– a insegurança e a incerteza (p. 10).
Para Fabiano pobreza e violência são dois assuntos que têm muito a ver e todos os
moradores do Beco são “pessoas armadas” (sic). Em uma parte de seu depoimento ele chega
a referir que só há marginais morando no Beco, “pessoas que não valem nada” (sic). O
morador lembra da ocasião em que seu filho apanhou de traficantes e ele invadiu o Beco atrás
dos agressores.
F26 - Não apareceu ninguém, ninguém sabia quem era. Ninguém conhecia ninguém.
Eles se protegem lá dentro. Os bens protegem os maus. Inclusive os de bem, acham que se
eles delatarem os outros, eles vão ser punidos pela... Pelos outros, outros que moram lá
dentro. Então fica esse clima aqui em roda da cidade, em roda do nosso bairro. A única
solução disso aí é tirar esse pessoal daí. Tirar e no mesmo momento entrar com máquina,
derrubando casebres e esses... Esses palafitas que eles constróem em cima do leito da viação
férrea. E... E botar eles numa vila bem afastada. Tirar da circulação das nossas casas. Eles
que circulem noutros lugares.
Oliveira (1993) destaca que não se pode afirmar que não hajam conflitos entre
moradores e “bandidos”. Entretanto, alguns relatos, indicam casos onde parece ter ocorrido
atuação associada. Há teóricos que dissociam violência oficial à criminalidade: a primeira
corresponderia a formas de dominação, enquanto a violência do pobre assume significado
político de classe.
A ocorrência de tráfico de drogas nas imediações do Beco dos Trilhos é outro assunto
recorrente nas entrevistas. Todos os participantes em algum momento referiram preocupação
com essa questão. Inclusive as moradoras do Beco concordam com a existência do problema
74
e, como já foi abordado anteriormente, reclamam que o quadro é sustentado pela juventude de
classe média alta. Para Rui, grande parte dos roubos nas redondezas acontece porque os
jovens querem trocar a “mercadoria”, como aparelhos de som automotivo, por drogas. A
venda dos objetos pequenos é rápida e facilitada. Para Lúcia, a droga é a questão mais
urgente, porque “é por isso que tá toda a marginalia ali” (sic).
L38 - O pior é que a gente vê filhos de amigos, comprando drogas no Beco. Então isso
é que é triste, porque, na verdade, quem sustenta todo esse... Esse circuito é... São os nossos
filhos que vão ali comprar... Porque se os nossos filhos não fossem comprar, quem ia
manter? (Lúcia, sic).
Gustavo denuncia a existência de uma boca de fumo próxima à sua casa e Fabiano
conta que os filhos já apanharam porque ficaram olhando para os traficantes que estavam na
esquina. Iara e Taís reclamam que o fluxo de pessoas desconhecidas no interior do Beco é
muito alto, na maioria das vezes para procurar entorpecentes. Ana corroboram a questão de
que o comércio de drogas é que deixa a situação tão crítica.
A28A - Eu acho assim, ó: o Beco, ele tem a fama porque realmente, ele é um beco. É
um lugar assim, de droga, porque dá pra se esconder, porque tem aquelas sangas, aquelas
coisas ali por baixo. Tipo... Tem a... Uma escola próxima ao Beco... Ela dá no fim de uma
rua, que a rua dá direto no Beco. E... Quando as minhas crianças iam lá, (...) eu ia toda à
tardinha, (...). Então a gente via assim, ó: pessoas, jovens, descerem o... Passarem na frente,
e descerem uma ruazinha, um corredorzinho, assim, no meio de um matinho, uma coisa assim
que virou um trilho de tanto caminharem ali, desciam lá pra comprar droga. Aquilo lá era
um buraco. Era um lugar em que tu em sã consciência não entra. (Ana, sic).
A convivência dos moradores com os bandidos que residem no local geralmente é
encarada pelos primeiros com certa naturalidade, pois muitas vezes os bandidos são nascidos
e criados na comunidade, reforçando o laço de convivência. Há um sentimento quase
75
maternal, também expresso na referência a eles como “os meninos”, que são conhecidos
desde criança e que se viu nascer (Oliveira, 1993).
O relato de Iara ilustra essas afirmações. A participante de certa forma justifica a
violência dizendo que apesar de haverem infratores no Beco dos Trilhos, de baixa renda,
proporcionalmente há pessoas de fora do bairro que fazem amizade com os traficantes porque
são envolvidos com drogas. Ela aponta que os consumidores de drogas são jovens de classe
média alta e inclusive, há rumores de facilitação da entrada em invasões de casas e
arrombamentos.
Chauí (1996) alerta para a postura assumida diante do problema, reiterando que
vivemos numa sociedade onde a luta de classes é identificada apenas com os momentos de
confronto direto entre as classes, situação na qual é considerada “questão de polícia”. Para a
autora, é preciso que se considere a existência cotidiana da luta de classes, através das
técnicas de disciplina, vigilância, repressão, realizadas por meio das próprias instituições
dominantes, isto é, essa luta tem que ser encarada como “questão de política” (p. 56). Gustavo
é exemplo disso.
G24 - Eu vejo aqui em casa: ah, o senhor não me dá nada, o senhor tem tudo. O
senhor não me dá nada, então eu vou quebrar a sua casa, sabe. Então fica com aquela... É
assim que eles dizem pra gente. Eu vou quebrar a sua casa, não sei o quê (...) Mas eu acho
que tem influência, sim... Porque a... Como é que se diz a... A inveja, né tchê. Ah, e outra
coisa, eu não sei a... Posso dizer aqui também?Ah... As mães, os pais... Pô, tchê. Qualquer
hora eu vou te mostrar a mulher, lá. Me botou uma criança de dois anos. Mandou a criança
vir... Entrar aqui pra ver se não tinha nada pra roubar lá nos fundos... Pô, dois anos, um
nenê, rapaz, que nem entendeu o que ela disse. Bah, tchê, aquilo foi pra me matar. Aí... Eu
fiquei com vontade de entregar essa mulher, tchê. Sério mesmo. Fiquei com vontade de
entregar... Mas aí ela arrumou um emprego aí, de varrer rua, aí. Eu acho que ela vai se
76
acomodar. Mas pensa bem, tchê... O que quê tu vai ensinar pra uma criança dessas? Ela tá
ensinando marginalidade pra criança. E isso tudo acontece aqui, neste bairro. (Gustavo, sic).
Gustavo, que mora a menos de uma quadra do Beco, concorda com Fabiano de que há
acobertamento dos moradores de bem em relação a infrações cometidas por pessoas
conhecidas. Ele confessa que até as matérias sobre o Beco dos Trilhos saírem no jornal, não
havia se dado conta da proximidade com a população menos favorecida. Ao perceber a
questão da vizinhança, logo teria estabelecido ligação com os furtos que aconteceram em sua
casa. O músico também acredita que há inveja dos mais pobres em relação às pessoas que têm
melhores condições.
5.4. Urbanização: solução ou extinção do convívio?
Os participantes responderam questões em função da polêmica gerada pelos jornais
locais em torno do Beco dos Trilhos como possível ponto de origem da insegurança. Um dos
tópicos da entrevista corresponde a levantamento de soluções para a situação e sobre o
trabalho de urbanização que a Prefeitura vem anunciando. A maioria dos entrevistados
concorda com a abertura das ruas para dar vazão à movimentação no bairro.
As duas únicas entrevistadas posicionadas contra a urbanização através da abertura de
ruas são as moradoras do Beco, Iara e Taís. As participantes reconhecem a necessidade de
mudanças, mas não consideram justa a transferência de pessoas que residem há muitos anos
no mesmo local anunciada pela administração municipal. Para as participantes, apesar de
humildes os moradores possuem direitos e construíram as casas com o suor do trabalho.
Iara salienta que há vizinhos “em estado crítico”, que precisariam ser removidas, mas
isso não é comum a todos. “(...) tu vê quem trabalha, quem consegue com esforço do trabalho
construir uma casa, e ser desmanchada, e outras que são mais, que, mas tem pessoas que tem
mais privilégios que não vai sair rua. E casas de material, que sabe é difícil, né” (sic).
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Taís, que está em situação de ter a casa removida para continuação de uma das ruas
que cortará o bairro, revela-se desesperançosa. A estudante refere apreensão porque não sabe
se terá condições de continuar freqüentando a universidade se for transferida para um bairro
muito distante do centro.
T44- Não é a solução tu abrir uma rua em cima de uma casa que não tem nada a ver,
né. Se tu olhar o projeto da rua, as casas que vão sair são casas de vizinhança que mora aqui
a 30, 40 anos, e que não tem envolvimento nenhum com polícia, em de filho com polícia.
Então quer dizer que a casa dos delinqüentes, dos, né... Vão continuar no mesmo lugar. Eu
acho que não vai mudar (Taís, sic).
Já os sujeitos que moram fora do Beco crêem que a abertura das ruas proposta para
urbanizar será de grande valia, inclusive para os moradores do local. Ana menciona que a
própria natureza de “beco”, um local sem saída, dá margem para que os próprios moradores
tenham medo de viver ali. A única forma de diminuir os problemas seria abrir e ligar as ruas,
fazendo com que haja circulação de pessoas e veículos.
A28A - Não quer dizer que vai acabar com aquilo ali, mas eu acho que vai... (...) tirar
aquele sentido de... De... Como é que... De ser fechado. De tudo se esconder, entrar ali (...)
no momento em que ligarem as ruas, que tu conseguir ligar o bairro Soares ao bairro Rio
Branco, diretamente, fazendo as ruas atravessarem o Beco, cortar aquela... Aquele sentido de
coisa fechada (Ana, sic).
A discussão sobre se a remoção das famílias para abertura de ruas em bairros pobres
irá contribuir ou não para a diminuição da violência retoma um assunto polêmico há muito
tempo. Desde 1893 o assunto está em pauta no Brasil, apesar de ter assumido outras facetas
com o passar dos anos. Chalhoub (1996) contrasta a questão das favelas e bairros de baixa
renda com a eliminação dos cortiços que compunham a cidade do Rio de Janeiro no século
XIX. Contando a história do “Cabeça de Porco”, o maior cortiço da capital carioca, na época
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também capital da república, o autor atesta a contemporaneidade da discussão, revelando que
os cortiços, assim como as favelas de hoje em dia, eram tidos como “valhacoutos de
desordeiros”.
Chalhoub (1996) revela que a destruição do Cabeça de Porco corresponde à origem de
um dos mitos que formam a concepção da gestão das diferenças sociais no país: a construção
da noção de que “classes pobres” e “classes perigosas” denotam a mesma realidade. Essa
conceituação surgiu na primeira metade do século XIX, influenciada por conceituações
inglesas e francesas da época, nem sempre interpretadas da forma devida no Brasil.
Assim é que a noção de que a pobreza de um indivíduo era fato suficiente para torná-
lo um malfeitor em potencial teve enormes conseqüências para a história subseqüente
de nosso país. Este é, por exemplo, um dos fundamentos teóricos da estratégia de
atuação da polícia nas grandes cidades brasileiras desde pelo menos as primeiras
décadas do século XX. A polícia age a partir do pressuposto da suspeição
generalizada, da premissa de que todo cidadão é suspeito de alguma coisa até prova
em contrário e, é lógico, alguns cidadãos são mais suspeitos do que outros (Chalhoub,
1996, p. 23).
Chalhoub (1996) destaca que uma vez cometida a má interpretação dos preceitos
ingleses e franceses na origem do raciocínio o resto se segue como que naturalmente: os
pobres carregam vícios, os vícios produzem os malfeitores, os malfeitores são perigosos à
sociedade; juntando os extremos da cadeia, temos a noção de que os pobres são, por
definição, perigosos.
Bauman (1999) resume que todos esses fatores considerados em conjunto convergem
para o efeito comum de identificação do crime com os “desclassificados” ou, o que vem dar
praticamente no mesmo, a criminalização da pobreza. Os tipos mais comuns de criminosos na
visão do público vêm quase sem exceção da “base” da sociedade. “Os guetos urbanos e as
79
zonas proibidas são considerados áreas produtoras de crime e criminosos. E, ao contrário, as
fontes de criminalidade (daquela criminalidade que realmente conta, vista como ameaça à
segurança pessoal) parecem inequivocamente locais e localizadas” (p. 134).
Regressando à problemática do Beco dos Trilhos, Rui é da mesma opinião que Ana, de
que se as ruas forem abertas a criminalidade irá diminuir porque como “beco” o local esconde
muitos “malandros” e “ladrõezinhos”. Por outro lado, assim como Gustavo, ele acredita que
também tem “gente boa ali, muita família boa que mora ali”. Essa ponta de esperança sobre os
moradores dos bairros de baixa renda encontra eco não só nas entrevistas, mas também na
literatura. Oliveira (1993) frisa que na maioria das famílias de bairros pobres, pai, mãe e
filhos mais velhos (pelo menos) trabalham. O jovem ingressa no mercado de trabalho
procurando conciliá-lo com o estudo.
Diversos moradores trabalham em mais de uma atividade ou emprego, e ainda fazem
‘biscates’ para completar o orçamento. É muito importante para o morador, assim
como para os trabalhadores em geral, a busca da estabilidade no emprego e do salário
justo. Estes fatores são considerados a base da estabilidade familiar e da possibilidade
de sonhar com o futuro, inclusive ter mais filhos. Em diversos casos, os investimentos
na melhoria da condição de moradia ficam secundarizados, prevalecendo a
preocupação com a garantia da subsistência familiar (Oliveira, 1993, p. 26).
Bento acha imprescindível humanização do bairro, com abertura de ruas, canalizações
e as mínimas condições de vivência (ruas calçadas, iluminação, tratamento de esgoto). “Dar
um beco com saída, não um beco sem saída. Que eles tão... É o beco, é a marginalização ali.
Então eles se sentem eu acho que ali, mais marginalizados em função disso aí” (sic).
Gustavo considera que a abertura das ruas seja a única solução para diminuir a
insegurança, e espera que o processo incentive várias pessoas do Beco a se mudarem. “A
gente não quer isso. A gente quer que eles vivam a vida deles. Como eu sempre digo pra essa
80
senhora do lado. Ela é paupérrima, não tem onde cair morta. (...) A verdade é a seguinte:
vocês querem... Eu não posso ir lá te incomodar, né? Te criar caso... Vocês também não
podem vir aqui me incomodarem. Eu acho que tem que haver respeito também” (sic).
Já Fabiano confia no poder do mercado imobiliário, que com a urbanização “poderá
tomar conta de tudo, tirando essa catrefa daí, esse bando de bagaceiro que mora aí no Beco.
Vai tirando abaixo de dinheiro e vai construindo casas normais” (sic). O fiscal afirma ter
encontrado uma solução para o problema, que para ele, embora drástica, deve resolver.
F28 -Há uma solução que eu achei, embora drástica. Eu sugeri pra diversos vizinhos
aqui, inclusive na associação, fazer uns muros ali. Tipo do muro de Berlim. De quatro, cinco
metros de altura, botar um arame farpado e cacos de vidro em cima, pra eliminar eles. Pra
eles circularem dentro do Beco. Não circularem no meio da minha casa. Eu não tenho que
ver com o problema social da, da, da cidade. Eu já tenho os meus problemas pra resolver. Eu
não tenho nada a ver com problema social. Eu não tenho que tá alimentando pobre aqui na
minha casa, nem dando remédio pra ninguém. Isso não é função minha, é a função do
governo (Fabiano, sic).
De acordo com Bauman (1999), as “comunidades cercadas”, pesadamente guardadas e
eletronicamente controladas que os “bem-sucedidos” compram no momento em que têm
dinheiro ou crédito suficiente para manter distância de “confusa intimidade” da vida comum
da cidade são “comunidades” só no nome (p. 52). “Desocupados” e pessoas “à espreita” são
os objetos do temor e ódio e é a distância em relação a esses tipos, prometida pela guarda
fortemente armada em constante ronda e pela densa rede de câmeras espiãs que torna as
“comunidades cercadas” tão atraentes e procuradas. O que os moradores estão dispostos a
comprar, na verdade, é o direito de manter-se à distância e viver livre dos intrusos, que seriam
todas as outras pessoas, culpadas de ter suas próprias agendas e viver suas vidas do modo
como querem.
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Considerações finais
A prioridade deste estudo ateve-se à pesquisa dos sentidos produzidos pelos
moradores dos bairros Soares, Rio Branco e São Luís e do Beco dos Trilhos sobre questões
referentes à insegurança da zona centro-leste de Cachoeira do Sul denunciada pelos jornais
locais. Nesse sentido, foram examinadas condições que têm induzido à manutenção de um
sentimento dessa natureza nos moradores, ao mesmo tempo em que pontuada a existência de
possível relação entre pobreza e violência.
Na literatura encontramos variadas abordagens e maneiras de perceber o assunto. Há
autores como Birman (2001), que compreendem a insegurança a partir da teoria psicanalítica
freudiana do desamparo. Na medida em que a modernidade empurra o indivíduo a deparar-se
com um mundo cada vez mais abrangente, o sujeito sente-se como que “engolido” pelo modo
de vida globalizado. Nossa época acomete o ser humano de incessantes incertezas ou
conceituações fugazes: o que agora possui consistência, amanhã é obsoleto. Questões como
subjetividade e alteridade acabam por ser afetadas.
A filosofia tem perspectivas da segurança sob uma forma ontológica, isto é, como
inerente à natureza do homem. A preocupação, de estudiosos como Bauman (2003, 2001,
1999, 1998), Giddens (2002, 1991) e Lipovetsky (1998), é com a identidade do sujeito que
sofre constantes ataques em uma era movida pelo consumismo. O ímpeto pelo consumo torna
a satisfação do desejo impossível e dita aspirações e objetivos de milhares de vidas. O próprio
conceito de liberdade se confunde quando o desejo é construído muito mais a partir da
sociedade do que originado no homem.
É a partir daqui que podemos falar de segurança sob a ótica da psicologia social. A
grande maioria da população não tem condições de arcar com os custos inerentes à satisfação
82
dos desejos de consumo. Embora essas vontades possam ser canalizadas para outras ambições
que satisfaçam parcialmente o desejo original, isto não pode ser considerado uma regra geral.
Em muitas pessoas essa capacidade de simbolização não consegue se estruturar.
Em conseqüência desse quadro, acontece o que Freud (1930) citando Plauto previa: o
homem vira lobo do homem. As pessoas assumem uma postura cada vez mais individualista
incentivadas pelo caráter narcísico pregado pela sociedade. Impregnadas por estatísticas de
violência e criminalidade veiculadas diariamente nos meios de comunicação, vão edificando
em torno de si barreiras de proteção. Essa situação obstaculiza a convivência em sociedade e
incita dificuldades referentes à luta de classes. O distanciamento entre as pessoas impulsiona a
criação de inúmeros subgrupos cada vez mais isolados da comunidade como um todo. São
núcleos constituídos por afinidade e restritos às diferenças.
Bauman (2001) critica se nesses subgrupos, o mundo comunitário está completo
porque todo o resto é irrelevante, mais exatamente hostil. É como se o exterior fosse um ermo
repleto de emboscadas e conspirações, fervilhante de inimigos que brandam o caos como sua
arma principal. É para esse ermo que as pessoas que se juntam através de identidades
partilhadas esperam banir os medos que as levam a procurar o abrigo comunitário. No mundo
que rapidamente se globaliza uma coisa que não está acontecendo é o desaparecimento das
fronteiras. Ao contrário, elas parecem ser erguidas em cada nova esquina de cada bairro
decadente de nosso mundo.
A segregação pode ser percebida em todas as entrevistas realizadas neste estudo, de
modo que se pode levantar duas questões contraditórias: diferença e ao mesmo tempo
semelhança. Diferença porque, enquanto os moradores de classe média alta referem o
fantasma da insegurança como uma constante diária, as entrevistados do Beco não mostram
isso como problema. Apesar de admitirem a convivência com o tráfico de drogas e focos de
violência, a mobilização não ocorre da mesma forma que nos outros bairros. Em
83
contrapartida, a semelhança está no fato de que, assim como os moradores dos bairros do
entorno não temem os “iguais”, os residentes no Beco só receiam os “desconhecidos da
comunidade”. Esses aspectos constituem o que vários autores abordam como uma divisão
entre os “de dentro” e os “de fora”, ou “nós” e “eles”.
Oliveira (1993) refere que parece configurar-se nessas relações e nas atitudes que as
caracterizam, um senso de sentimento gregário defensivo e agressivo ao mesmo tempo: “nós”
contra “eles”. Caldeira (1984) aponta que a população cria várias classificações para
diferenciar classes sociais e segmentos de classe. Além da divisão entre “eles, os ricos”, e
“nós, os pobres”, existem subdivisões: os “ricos mesmo” (verdadeiramente ricos,
milionários), os “bem de vida” (classes médias urbanas), os “pobres” (trabalhadores que
possuem emprego mais estável e casa própria, ainda que em eterna construção), os “mais
pobres” (favelados) e os “pobres de tudo” (que vivem sob pontes e viadutos, mendigos).
Dessa forma é possível perceber que até a milenar ordem de classes sociais está sendo
reconfigurada em estratos cada vez mais restritos.
Todo esse contexto acrescenta cada vez mais incerteza à vida do indivíduo. Isso pode
ser demonstrado pela preocupação com a segurança. As mudanças relatadas, como
gradeamento, instalação de alarmes e cercas elétricas, vigilância do portão da casa, denunciam
o quadro.
Embora tenham ocorrido situações reais de criminalidade somente em três das oito
entrevistas realizadas neste estudo, episódios acontecidos com a vizinhança já servem para
deixar o sujeito apreensivo com relação à exterioridade de sua residência. Em alguns casos
nem a própria casa é considerada segura apesar do fortalecimento das defesas. Essa situação
de acuamento pode ser verificada nas relações entre os vizinhos, relatada por alguns
participantes como distante e às vezes quase sem contato: mesmo convivendo a poucos
metros, às vezes há muitos anos, as pessoas sequer se encontram.
84
Além do sentimento de insegurança, este estudo se propôs a discutir a existência ou
não entre pobreza e violência. A maioria das pessoas que responderam as entrevistas entende
essa vinculação como uma constante. Apesar de todos os participantes terem consciência das
dificuldades sociais, a baixa renda foi atrelada à criminalidade como propulsora de
comportamentos desesperadores, ou seja, como saída diante de problemas.
Outra ligação direta com a criminalidade é o uso de drogas, especialmente pela
população mais jovem. Nas práticas discursivas de vários entrevistados pode ser observada
esta preocupação, inclusive reconhecendo que o problema afeta não só a população pobre,
mas tem um enfoque significativo em todas as classes sociais. Lúcia, uma das entrevistadas,
chega a afirmar que o tráfico de drogas, apesar de estar localizado no Beco dos Trilhos, é
mantido por usuários que pertencem à classe média alta.
A questão de urbanização do Beco dos Trilhos gera controvérsia, e ao que tudo indica
está distante de ter uma solução entendida por todos como adeqüada. Todos os participantes
reconhecem a urgência de alguma atitude, mas nenhum chega a ser categórico em suas
afirmações. Os moradores do Beco recebem a abertura das ruas anunciada pela Prefeitura
como agressiva, porque implica na mudança de suas próprias casas. Já os moradores do
entorno, vêem a estratégia com bons olhos, e apesar de não acreditarem que o problema será
resolvido, pensam que será amenizado.
Entende-se, com este estudo, que apesar dos avanços tecnológicos e científicos
alcançados com a modernidade o ser humano está longe ter acompanhado esse
desenvolvimento em âmbito social. A civilização parece não ter trazido consigo crescimento
significativo no que diz respeito à convivência com as diferenças. O outro, quando não possui
uma identidade a ser compartilhada, assusta e mobiliza defesas.
Acredita-se que este estudo possa contribuir para um melhor entendimento das
circunstâncias que estimulam essas atitudes que causam apreensão e colaboram para a
85
instalação de um modo de vida individualista e isolador. Considera-se fundamental a
construção de práticas que promovam mudanças de perspectiva, pois do modo como está
posto, as práticas discursivas indicam a manutenção de preconceito e desconfiança.
A partir do momento em que o indivíduo passa a aceitar a diferença e, se for o caso, se
dispõe a ser agente ativo de mudança frente às dificuldades, a situação pode receber um
prognóstico mais positivo. Espera-se que a presente pesquisa possa servir de reflexão sobre
essas questões e contribuir para a elaboração de uma nova ótica mais promissora sobre o
assunto.
86
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90
Apêndice A
Convite utilizado durante o recrutamento:
- Bom dia! Eu estou realizando um estudo aqui no bairro sobre a sensação insegurança
das pessoas. Será realizado um levantamento entre os bairros Soares, São Luís e Rio Branco e
o Beco dos Trilhos para descobrir se existe ou não relação entre a insegurança e a
proximidade ao bairro menos favorecido. Para tanto, serão levantados diversos tópicos
relativos ao assunto que poderão ser respondidos por você.
Após o período de levantamento, os dados serão organizados e analisados. Esses dados
serão mantidos em um sigilo rigoroso e você pode ficar tranqüilo que seu desempenho não
será exposto nem divulgado. Gostaria de participar? Eu gostaria muito que você concordasse
e ficaria agradecido.
(Em caso de aceite, o morador passa à próxima fase: responde à Ficha de Dados
Demográficos e preenche o termo de Consentimento Livre e Esclarecido).
91
Apêndice B
FICHA DE DADOS DEMOGRÁFICOS
Nome: _____________________________________________________________________
Data de nascimento: _________________ Idade: ____________________________
Estado civil: ________________________________________________________________
Filhos: _______________ Quantos: ___________________________________________
Profissão: __________________________________________________________________
Escolaridade: _______________________________________________________________
Bairro onde reside: __________________________________________________________
Tempo em que reside no bairro: _______________________________________________
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Apêndice C
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
1. IDENTIFICAÇÃO DO PROJETO DE PESQUISA Título do Projeto: A questão da insegurança e os núcleos habitacionais segregados: um olhar sobre Cachoeira do Sul. Área do Conhecimento: 7.07 Psicologia Número de participantes: 8 Curso: Psicologia Unidade: Campus Cachoeira do Sul Projeto Multicêntrico Sim x Não x Nacional Internacional Cooperação Estrangeira Sim x Não Patrocinador da pesquisa: Ulbra – Campus Cachoeira do Sul Instituição onde será realizado: Ulbra Cachoeira do Sul e Beco dos Trilhos Nome dos pesquisadores e colaboradores: Gisele Trommer Martines e Deivit Roberson Trindade da Silva Você está sendo convidado (a) para participar do projeto de pesquisa acima identificado. O documento abaixo contém todas as informações necessárias sobre a pesquisa que estamos fazendo. Sua colaboração neste estudo será de muita importância para nós, mas se desistir, a qualquer momento, isso não causará nenhum prejuízo para você. 2. IDENTIFICAÇÃO DO SUJEITO DA PESQUISA Nome: Data de Nasc.: Sexo:
Nacionalidade: Estado Civil: Profissão:
RG: CPF/MF: Telefone: E-mail:
Endereço:
3. IDENTIFICAÇÃO DO PESQUISADOR RESPONSÁVEL Nome: Gisele Trommer Martines, Ms. Telefone: (51) 3722-4632
Profissão: Psicóloga Registro no Conselho Nº: 07/03363 E-mail:
[email protected] Endereço: Rua Ignácio de Carvalho, 363 – Bairro Soares – CEP: 96.501–551.
Eu, sujeito da pesquisa, abaixo assinado (a), após receber informações e esclarecimento sobre o projeto de pesquisa acima identificado, concordo de livre e espontânea vontade em participar como voluntário (a) e estou ciente que: 1. Atualmente em Cachoeira do Sul o aumento da criminalidade tem ganhado destaque nas manchetes de jornais locais, especialmente nos bairros próximos ao Beco dos Trilhos, apontado como a origem do problema. Este trabalho se justifica em identificar o pensamento dos moradores do Beco e dos bairros arredores sobre esta situação. A partir da ótica dos próprios envolvidos o objetivo é estabelecer a existência ou não de relação entre a condição de pobreza e a violência. 2. O objetivo de minha participação como sujeito na pesquisa é o fornecimento de dados para a identificação de sentimentos e do pensamento dos moradores dos locais estudados, levando em conta os assuntos insegurança e violência e sua relação com a pobreza. 3. A coleta de dados será realizada através de entrevistas semi-estruturadas, realizadas na residência dos participantes e gravadas em um gravador portátil, acompanhadas de anotações realizadas pelo entrevistador. Posteriormente o conteúdo dessas entrevistas será transcrito e digitado no processador de textos Microsoft Word 2003. 4. Os dados coletados serão utilizados para identificar os sentimentos dos moradores dos bairros em relação à insegurança e violência no local e a relação entre pobreza e violência. A técnica de análise e interpretação dos dados
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utilizada será o mapa de associação de idéias, com base no método de práticas discursivas e produção de sentidos. A gravação e a transcrição das entrevistas serão armazenadas por um período mínimo de cinco anos. O material deve ser utilizado para esta pesquisa e, se for o caso, pesquisas complementares sobre o mesmo tema. 5. Não há desconfortos ou riscos previstos para o participante, exceto a possibilidade de timidez na resposta de algumas perguntas que podem ser consideradas pessoais durante a aplicação das entrevistas. 6. Tenho claro que ao participar da pesquisa não receberei nenhum benefício direto. Os benefícios indiretos dizem respeito à colaboração para o avanço da ciência, na medida em que estarei contribuindo para a melhor compreensão do tema abordado, representando o pensamento e os sentimentos dos moradores do local sobre a insegurança e a violência e sua relação com a pobreza. 7. A minha participação é isenta de despesas e não receberei ressarcimento porque não terei despesas na realização das entrevistas ou com locomoção. 8. Não haverá nenhum tipo de acompanhamento ou assistência, tendo em vista que não estão previstos riscos ou desconfortos aos participantes. 9. Tenho a liberdade de recusar, desistir ou de interromper a colaboração nesta pesquisa no momento em que desejar, sem necessidade de qualquer explicação. Em caso de desistência, os dados por mim fornecidos não serão utilizados para análise ou interpretação, sendo descartados ou armazenados à parte do restante coletado. A minha desistência não causará nenhum prejuízo à minha saúde ou bem estar físico. 10. Os resultados obtidos durante este estudo serão mantidos em sigilo, mas concordo que sejam divulgados em publicações científicas, desde que meus dados pessoais não sejam mencionados. 11. Tenho a garantia de tomar conhecimento e obter informações, a qualquer tempo, dos procedimentos e métodos utilizados neste estudo, bem como dos resultados, parciais e finais, desta pesquisa. Para tanto, poderei consultar o pesquisador responsável (acima identificado) ou o Comitê de Ética em Pesquisa da ULBRA Canoas (RS), com endereço na Rua Farroupilha, 8001 – Prédio 14 – Sala 224, bairro São Luís, telefone (51) 477-9217, e-mail
[email protected]. Declaro que obtive todas as informações necessárias e esclarecimento quanto às dúvidas por mim apresentadas e, por estar de acordo, assino o presente documento em duas vias de igual conteúdo e forma, ficando uma em minha posse.
Cachoeira do Sul (RS), ____ de Novembro de 2005. _____________________________________________ _________________________________ Gisele Trommer Martines - Pesquisador Responsável Sujeito da pesquisa e/ou responsável Testemunhas: _______________________________________ ___________________________________________ Nome: Nome: RG: RG: CPF/MF: CPF/MF: Telefone: Telefone:
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Apêndice D
A QUESTÁO DA INSEGURANÇA E OS NÚCLEOS HABITACIONAIS SEGREGADOS: PERCEPÇÓES SOBRE O BECO DOS TRILHOS E OS BAIRROS RIO BRANCO, SOARES E SÃO LUÍS
INSEGURANÇA VIVÊNCIAS GERAL Em casa e no bairro
Em Cachoeira do Sul
Episódios Mudanças no cotidiano Vizinhança POBREZA X VIOLÊNCIA
BECO DOS TRILHOS
E29 - Nunca aconteceu. E tu sabe de algum vizinho que tenha acontecido, entrado em casa... T30 - Ah, vizinho sempre tem, né, sempre tem... Gente assim, que... Ah, quando... Geralmente, é coisa assim, todo mundo é pobre, né, então é coisa pequena. É coisa pequena que some, um bichinho de dentro do pátio, uma roupa ou coisa assim, mas tem. E31 - E isso é constante ou não? T32 - Não! Assim, não tanto, mas é...
E33 - Como é teu relacionamento com a vizinhança? T34 - Bom, um bom. Bom relacionamento com os vizinhos. E35 - Tu acha assim, que se tu precisar de ajuda, tu recorre aos vizinhos, não recorre, eles recorrem a ti? Como é que funciona isso? T36 - Não, se eu precisar de ajuda eu vou recorrer aos vizinhos e com certeza eu vou ser ajudada. E37 - É? T38 - É.
E39 - E tu acha que tem alguma relação a respeito dessas reportagens que saíram, sobre a questão do vínculo, perto dos outros bairros? Tem alguma relação a questão da baixa renda com a violência, esse tipo de coisa?