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__________________________________________________________________ Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 1 REVISTA JURÍDICA MATER DEI ÓRGÃO DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA DO CURSO DE DIREITO DA FACULDADE MATER DEI ISSN 1676-1278 Vol. 1 – nº 1 – jul./dez.2001 – semestral PATO BRANCO - PARANÁ

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REVISTA JURÍDICA

MATER DEI

ÓRGÃO DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA DO CURSO DE DIREITO DA FACULDADE MATER DEI

ISSN 1676-1278

Vol. 1 – nº 1 – jul./dez.2001 – semestral

PATO BRANCO - PARANÁ

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REVISTA JURÍDICA MATER DEI - COMPOSIÇÃO DIRETOR GERAL DA FACULDADE MATER DEI : DR. GUIDO VICTOR GUERRA EDITOR : PROF. FLORI ANTONIO TASCA SUPERVISOR EDITORIAL : PROF. DIRCEU ANTONIO RUARO CONSELHO EDITORIAL : PROF. ANDREY HERGET PROF. CÉLIO ARMANDO JANCZESKI PROF. FERNANDO ELEUTÉRIO PROF. GENÍRIO JOÃO DE FÁVERO PROF. GÉRI NATALINO DUTRA PROF. JEDERSON SUZIN PROF. JUAREZ MATIAS SOARES PROF. MANOEL JÚLIO GARCEZ SEGANFREDO PROF. NILSON DE FARIAS PROF. NORIVAL JOÃO CENCI PROFª. ROSANGELA APARECIDA MARQUEZI PROF. RUDI RIGO BÜRKLE CONSELHO CONSULTIVO : PROF. DR. ABILI LÁZARO CASTRO DE LIMA (UFPR) PROF. MS. ALCÍDIO SOARES JÚNIOR (UEPG) PROF. MS. ALEXANDRE ALMEIDA ROCHA (CESCAGE) PROF. DR. ALVACIR ALFREDO NICZ (UFPR) PROF. DR. CLAYTON REIS (UEM) PROF. DR. EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE (UFPR) PROF. DR. ELIMAR SZANIAWSKI (UFPR) PROF. MS. EROULTHS CORTIANO JÚNIOR (UFPR) PROF. MS. JOÃO PAULO CAPELLA NASCIMENTO (UEPG) PROF. DR. JOSÉ ANTONIO PERES GEDIEL (UFPR) PROF. MS. JOSÉ ROBSON DA SILVA (UEPG) PROF. MS. JOSÉ SEBASTIÃO FAGUNDES CUNHA (CESCAGE) PROF. DR. LUIZ CARLOS DERBLI BITTENCOURT PROF. DR. LUIZ EDSON FACHIN (UFPR) PROF. DR. LUIZ GUILHERME BITTENCOURT MARINONI (UFPR) PROF. DR. LUIZ RODRIGUES WAMBIER (UEPG) PROF. DR. MANOEL EDUARDO ALVES DE CAMARGO E GOMES (UFPR) PROFª. DRª. SILVANA SOUZA NETTO MANDALOZZO (UEPG) PROFª. DRª. TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER (PUC-SP) REVISÃO DE LÍNGUA PORTUGUESA: PROFª. ROSANGELA APARECIDA MARQUEZI VERSÃO DOS RESUMOS PARA A LÍNGUA INGLESA: PROFª. THELMA BELMONTE CAPA: ROSANA M. CAMPESTRINI RAVANELLI DIAGRAMAÇÃO: PROF. GÉRI NATALINO DUTRA SECRETÁRIA EDITORIAL: MARISOL TOMASINI DUTRA

R454 Revista Jurídica Mater Dei / Faculdade Mater Dei Pato Branco-PR, 2001-10-24 Peridiocidade semestral ISSN 1676-1278

1. Direito – Periódicos. CDD: 20.05

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FACULDADE MATER DEI

ESTRUTURA ADMINISTRATIVA DIRETOR GERAL:_______________________________________________________ DR. GUIDO VICTOR GUERRA ______________________________________________________________________ VICE-DIRETORA GERAL: ________________________________________________ PROFª. IVONE MARIA PRETTO GUERRA ______________________________________________________________________ DIRETOR ADMINISTRATIVO: _____________________________________________ PROF. JUAREZ MATIAS SOARES ______________________________________________________________________ SECRETÁRIO ACADÊMICO: ______________________________________________ PROF. DIRCEU ANTONIO RUARO ______________________________________________________________________ SECRETÁRIO FINANCEIRO: ______________________________________________ PEDRINHO DE BORTOLI ______________________________________________________________________ BIBLIOTECÁRIA:________________________________________________________ BERENICE DE LIMA RODRIGUES ______________________________________________________________________ COORDENADOR DO CURSO DE DIREITO: __________________________________ PROF. FERNANDO ELEUTÉRIO ______________________________________________________________________ NÚCLEO DE PRÁTICAS JURÍDICAS: _______________________________________ DR. ANDREY HERGET DR. JEDERSON SUZIN ______________________________________________________________________

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................... 7

EDITORIAL ...................................................................................................................................................... 8

ARTIGOS ......................................................................................................................................................... 9

UMA PROPOSTA EM TORNO DO CONCEITO DE JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE –

LUIZ RODRIGUES WAMBIER ...................................................................................................................... 9

OBRIGAÇÃO PROPTER REM E A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE –

JOSÉ ROBSON DA SILVA ............................................................................................................................ 19

DIREITO CIVIL EM TRANSFORMAÇÃO:

BREVE LEITURA A PARTIR DA OBRA DE MAX WEBER - FLORI ANTONIO TASCA ............................. 62

A POSSE COMO FATO SOCIAL - ALEXANDRE ALMEIDA ROCHA ......................................................... 80

ALIMENTOS ENTRE CONVIVENTES: UMA ANÁLISE CRÍTICA - JÚLIO CÉSAR BACOVIS ................... 128

O DANO MORAL E A JUSTIÇA DO TRABALHO. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES –

ALCÍDIO SOARES JÚNIOR ........................................................................................................................... 152

DA RESPONSABILIDADE PELO FATO DO PRODUTO E DO SERVIÇO E A RESPONSABILIDADE

PELO VÍCIO DO PRODUTO E DO SERVIÇO NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR –

JOÃO FLÁVIO MADALOZO ........................................................................................................................... 161

ASPECTOS DA HERMENÊUTICA CONTRATUAL NO DIREITO DO CONSUMIDOR –

MARIA CLAYDE ALVES PACE ...................................................................................................................... 176

ANÁLISE DO CONCEITO DE CRIME - FERNANDO ELEUTÉRIO ............................................................. 183

TENTATIVA DE DELITO. TIPO PRÓPRIO. PENA - FRANCISCO CARLOS JORGE ................................ 195

UMA VISÃO CRIMINOLÓGICA DO ADOLESCENTE INFRATOR - RUDI RIGO BÜRKLE ........................ 212

A RESPONSABILIDADE PENAL DOS MENORES NA ESPANHA E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO

ADOLESCENTE - JOSÉ SEBASTIÃO FAGUNDES CUNHA ...................................................................... 222

PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO: IMPOSTO SOBRE A RENDA E CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O

LUCRO - LUIZ CARLOS DERBLI BITTENCOURT ...................................................................................... 236

REQUISITOS PARA A ADMISSIBILIDADE DO PROCESSO: BREVE ESTUDO - FERNANDO VOIGT ... 244

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APRESENTAÇÃO

A presente publicação, vinculada ao Curso de Direito da Faculdade Mater Dei, visa oferecer à comunidade jurídica do Sudoeste do Paraná espaço permanente para a divulgação dos estudos concernentes à Ciência do Direito, em suas mais diversas manifestações. Três objetivos norteiam a Revista Jurídica Mater Dei : 1º) a publicação de artigos pertinentes à pesquisa, extensão e epistemologia do direito; 2º) a difusão da produção científica do Curso de Direito da Faculdade Mater Dei; 3º) a propiciação do debate teórico e pragmático sobre novas tendências do Direito Contemporâneo. Com periodicidade semestral, a revista pretende ser um valioso instrumento para a interlocução entre o corpo docente e discente do Curso de Direito da Faculdade Mater Dei com todos aqueles que se dedicam ao estudo e à prática do Direito. Em sua composição, a Revista Jurídica Mater Dei envolve todos os Professores do Curso de Direito da Faculdade Mater Dei (Conselho Editorial), contando ainda com a colaboração de renomados Professores de Direito (todos Mestres ou Doutores) de outras Instituições de Ensino Superior, que integram seu Conselho Consultivo. Com a publicação de textos atinentes aos mais variados ramos do Direito, a Revista Jurídica Mater Dei resguarda e valoriza a pluralidade do pensamento, pretendendo, assim, contribuir para o crescente aperfeiçoamento da Ciência Jurídica. Assinale-se, porém, que as idéias expostas nos artigos são de exclusiva responsabilidade de seus autores, não expressando, necessariamente, a opinião da Instituição. Oxalá possa a Revista incentivar e fortalecer a produção científica do Corpo Docente da Faculdade Mater Dei e dos demais profissionais e estudiosos do Direito, todos comprometidos com a elaboração de um novo saber jurídico, que atenda as expectativas sociais do novo milênio.

DR. GUIDO VICTOR GUERRA DIRETOR GERAL DA FACULDADE MATER DEI

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EDITORIAL Para além de reproduzir um conhecimento dogmático e estagnado, a missão de um Curso Superior, notadamente de um Curso Jurídico, é construir um conhecimento atento às mudanças sociais da humanidade neste momento histórico, sendo o periódico científico, por seu alcance e dinamismo, um valioso instrumento para a construção e a transformação da Ciência do Direito. O Direito é dinâmico, transforma-se diuturnamente pelas novas exigências sociais, sendo missão da Revista Jurídica Mater Dei contribuir para a construção desse "novo conhecimento jurídico" coerente com as demandas da sociedade do terceiro milênio. O Curso de Direito da Faculdade Mater Dei não está voltado apenas à formação de Bacharéis em Direito, futuros profissionais de excelência, senão visa à formação de cidadãos conscientes da necessidade de um atuar constante em prol da concretização do "projeto social" enunciado pela Constituição Federal:

"[...] Instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias [...]" No dizer de Edgar Morin, "a missão do ensino é transmitir não o mero saber, mas

uma cultura que permita compreender nossa condição e nos ajude a viver, e que favoreça, ao mesmo tempo, um modo de pensar aberto e livre" ("A cabeça bem-feita - repensar a reforma - reformar o pensamento", 2000, p.11). Em um Curso Jurídico o ensino deve estar indissociavelmente ligado à pesquisa, pois mediante a pesquisa científica o conhecimento é renovado, transformado, oportunizando condições para a elaboração de uma visão crítica da realidade sócio-jurídica, tão essencial na formação ética e técnica dos futuros Bacharéis e profissionais do Direito. Com tal visão, a Faculdade Mater Dei abre espaço para que seu Corpo Docente (e colaboradores) concretize a necessária interlocução com a comunidade acadêmica e jurídica do Estado do Paraná, em especial com seu Corpo Discente, aliando a pesquisa ao ensino, certa de que está cumprindo seu dever.

PROF. DR. FLORI ANTONIO TASCA

EDITOR DA REVISTA JURÍDICA MATER DEI

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ARTIGOS

UMA PROPOSTA EM TORNO DO CONCEITO DE JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE

LUIZ RODRIGUES WAMBIER

Advogado no Paraná; Professor Associado do Curso de Graduação em Direito da

Universidade Estadual de Ponta Grossa e Professor Adjunto do Curso de Mestrado em

Direito da PUC/PR; Mestre em Direito pela Universidade Estadual de Londrina e Doutor

em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

RESUMO: O artigo trata da possibilidade de o relator de um recurso negar-lhe seguimento quando estiver em confronto com a jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça (artigo 557 do Código de Processo Civil), salientando a polêmica em torno da norma que possibilita o julgamento monocrático em casos que, tradicionalmente, deveriam ser submetidos a julgamentos colegiados. O autor debate o conceito de jurisprudência dominante e, ao final, apresenta proposta para uniformizar tal conceito levando em conta critérios estatísticos e temporais da jurisprudência de dado tribunal, especialmente do Superior Tribunal de Justiça. ABSTRACT: The article deals with the possibility of a reporter of an appeal deny pursuing to it when being in confrontation with the dominant jurisprudence of the respective court, the Supreme Federal Court or the Court of Appeals (article 557 of the Code of Civil Process), pointing out to the controversy around the rule that makes the monocratic judgment possible in cases that, traditionally, should be submitted to collegiate judgments. The author discusses the concept of dominant jurisprudence and, at the end, presents a proposal to standardize such concept taking into account statistical and temporal criteria concerning the jurisprudence of a particular court, especially of the Court of Appeals.

O juízo de admissibilidade de qualquer recurso precede ao exame de seu

mérito, tanto sob o ponto de vista lógico, quanto sob o cronológico. De acordo

com o que sustenta NELSON NERY JÚNIOR1, os requisitos que devem ser

atendidos para que o juízo de admissibilidade dos recursos seja positivo se

1 Princípios fundamentais – teoria geral dos recursos, 5ª ed., p. 222.

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situam no mesmo plano das condições da ação, “no procedimento já realizado

no primeiro grau de jurisdição”.2

Questão que surge em relação a isso diz respeito à redação do art. 557

do CPC. De acordo com esse dispositivo, o relator negará seguimento a recurso

manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com

súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo

Tribunal Federal ou de Tribunal Superior.

À primeira vista, não fosse a inclusão da possibilidade de desprovimento

do recurso – juízo de mérito, portanto – que se infere do uso do vocábulo

improcedente 3, não haveria dúvida de que os poderes do relator se referem ao

exercício do juízo de admissibilidade. De fato, pode o relator negar seguimento a

recurso que se mostre inviável, do ponto de vista de seus requisitos intrínsecos

ou extrínsecos. Estes últimos, de natureza formal, referem-se ao preparo (i.é, ao

pagamento) das custas relativas ao recurso, à tempestividade, pois os prazos

dos recursos são peremptórios (isto é, são prazos inalteráveis, quer pela vontade

das partes, quer por determinação judicial4) e à regularidade relativa ao ato de

recorrer, nos termos do que dispõem os arts. 514, 523 e 541 do Código de

Processo Civil. Os requisitos intrínsecos dizem respeito à recorribilidade da

mesma, e são: o cabimento do recurso interposto pela parte, a legitimidade e o

interesse do recorrente e a ausência de fatos que o impeçam de recorrer.5

O problema que surge – e que se revela seriíssimo – diz respeito a

possibilidade de o relator julgar monocraticamente o mérito do recurso,

rechaçando-o, porque manifestamente “improcedente”. Da mesma forma contém

2 NELSON NERY JÚNIOR, op.et loc.cit.

3 Cuja escolha não é também das mais felizes, já que se trata de expressão atinente ao juízo de mérito de ações. Aos recursos se dá, ou

não se dá, provimento.

4 LUIZ RODRIGUES WAMBIER, FLÁVIO RENATO CORREIA DE ALMEIDA e EDUARDO TALAMINI, Curso avançado de processo civil,

vol. 1, 2ª ed., 2ª tiragem, p. 183.

5 O art. 881 do CPC, tratando do atentado praticado no curso do processo, estabelece uma vedação ao exercício do direito de recorrer

(i.é, um impedimento). Segundo esse dispositivo, só pode o réu “falar nos autos” (em nosso sentir, realizar qualquer ato processual) se

houver purgado o atentado. No mesmo sentido, com outro impedimento (e, portanto, nesse caso, ausente estaria requisito intrínseco

para recorrer) a regra do art. 503, segundo a qual a parte que aceitar expressa ou tacitamente a sentença, ou a decisão, não poderá

recorrer. Há, nessa hipótese, preclusão lógica, impeditiva do ato de recorrer.

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regra inusitada o parágrafo primeiro do mesmo art. 557, ao conceder poderes ao

relator para juízo de mérito positivo, isto é, para prover o recurso, se a decisão

recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência

dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior.6

A questão, aqui qualificada de seriíssima, - porque de certo modo rompe

com a tradição dos julgamentos colegiados nos tribunais, ainda que se trate de

decisão recorrível – mereceu tal qualificação em razão da pouca probabilidade

de que se tenha conhecimento, com base em levantamentos estatísticos

confiáveis, daquela que seja a jurisprudência dominante num determinado

tribunal. Aliás, o problema é ainda maior, porque essa expressão –

jurisprudência dominante – é absolutamente fluida, indeterminada, sendo difícil

para a parte recorrente quantificar a jurisprudência a ponto de saber, com

desejável grau de probabilidade de acerto, se trata ou não de “dominante”.

Tem razão CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO7 quando sustenta existir

certa tendência de valorizarem-se os precedentes jurisprudenciais. Em seu

sentir, esse incremento caminha rente com o acréscimo de poderes em mãos do

relator. A nosso ver, todavia, essa constatação não elimina a necessidade de

que se encontrem parâmetros dentro dos quais se possa “conter” a expressão

jurisprudência dominante. É preciso que se saiba, com a ajuda da doutrina e,

sobretudo, que se uniformize nos vários tribunais, com clareza, quais

precedentes, e em que medida, podem servir de fundamento para decisões

singulares no juízo vocacionado para a colegialidade. Em resumo, é preciso

esclarecer o que pode estar contido na expressão jurisprudência dominante,

tanto no tempo, quanto no espaço. Decisões recentes? Havidas em que período

de tempo? Verificáveis após completa pesquisa em cada tribunal? Ou em cada

órgão fracionário?

6 Para ARAKEN DE ASSIS (Condições de admissibilidade dos recursos cíveis, Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis de

acordo com a Lei 9.756/98, Coord. Teresa Arruda Alvim Wambier e Nelson Nery Júnior., p.13) a regra do art. 557, caput, abreviou o

julgamento colegiado do recurso, permitindo ao relator “a fiscalização de quaisquer requisitos de admissibilidade”.

7 O Relator, a jurisprudência e os recursos, Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis de acordo com a Lei 9.756/98, Coord.

Teresa Arruda Alvim Wambier e Nelson Nery Júnior, p. 132.

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Com base na experiência (e em regra regimental) do Supremo Tribunal

Federal, PRISCILA KEI SATO8 faz tentativa de sistematização da matéria,

apontando critérios de que se serve o STF para considerar predominante a sua

jurisprudência e, com isso, traçar contornos mais definidos para o conceito vago

trazido pela Lei 9.756/98”9.

Segundo essa autora, existem dois critérios: o primeiro prevê a existência

“de mais de um acórdão que reflita aquele entendimento, ou unicidade de

decisão”.10 O segundo critério, em seu sentir, exige a decisão do Tribunal Pleno,

ainda que não tenha havido unanimidade de votos no julgamento da matéria.

Segue PRISCILA KEY SATO sugerindo que o STJ adote os mesmos

parâmetros, apenas com a observação de que, nesse tribunal, ao invés do

Órgão Pleno (que tem funções administrativas) tome-se a jurisprudência

dominante a partir das decisões de sua Corte Especial. Quanto aos Tribunais

Estaduais, sugere essa autora que adotem outros critérios, levando em conta a

quantidade de órgãos fracionários que tenham.

Em que pese o brilho da autora, a coragem de ter abordado tema tão

delicado e a excepcional contribuição trazida para o debate a respeito do tema,

parecem-nos insuficientes os parâmetros por ela traçados para delinear o

conceito de jurisprudência dominante. Imaginamos que melhor seria para a

sociedade (para as partes, portanto) que esse conceito fosse determinado no

tempo e no espaço, tendo como referencial, no caso do direito federal, apenas e

exclusivamente o Superior Tribunal de Justiça. Não é de competência dos

Tribunais Estaduais, do Tribunal Distrital ou dos Tribunais Regionais Federais,

definir, pela reiteração de seus julgamentos, o entendimento do Direito Federal.

Assim, não pode o relator de determinada matéria, no Tribunal de Justiça de

qualquer dos Estados (ou do Distrito Federal ou ainda dos TRFs), decidir

8 Jurisprudência (pre)dominante, Aspectos polêmicos e atuais dos recursos, Coord. Eduardo Pellegrini de Arruda Alvim, Nelson Nery

Júnior e Teresa Arruda Alvim Wambier, p. 583.

9 Op.cit.

10 PRISCILA KEY SATO, op.et loc.cit.

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monocraticamente (desnaturando, por assim dizer, a função colegiada dos

tribunais) e “dizer” o Direito Federal é aplicável à espécie.

Assim, as regras dos artigos 120, 544, 545 e 557 do Código de Processo

Civil, somente podem dizer respeito à competência do Superior Tribunal de

Justiça, pois seria inadmissível, do ponto de vista de sua competência para o

exercício “fracionado” da jurisdição, pretender que relator, em tribunal local,

negue seguimento “a recurso manifestamente inadmissível, improcedente,

prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do

respectivo tribunal,”11 a não ser quando se trate de lei Estadual ou Municipal. A

incumbência de dizer a última palavra sobre o Direito Federal é do STJ e, em

última análise, se o Tribunal Estadual o fizer, estará usurpando essa atribuição.

Assim, o relator, no Tribunal Estadual (Distrital ou Regional Federal) só pode

negar seguimento a recurso que estiver em confronto com Súmula ou

jurisprudência dominante do STJ, e, ainda mais, somente enquanto esse

confronto efetivamente existir, pois poderá haver mudança na posição adotada

pela Corte Especial do STJ, quando, então, deixará de ser dominante a

jurisprudência.

Está absolutamente equivocada a posição que vem sendo adotada por

setores minoritários da jurisprudência, no sentido de se negar seguimento a

recurso que confronte com a posição do tribunal local ou, pior ainda, de órgão

fracionário do tribunal local. Prevalecendo este entendimento, visível e

evidentemente equivocado, haverá quebra da ordem constitucional, justamente

em razão da usurpação de competência do Superior Tribunal de Justiça. Nem se

diga que o texto da lei confere poderes aos tribunais locais. Ao prever que possa

o relator negar seguimento a recurso que confronte com a jurisprudência

dominante do respectivo tribunal, a lei somente pode ter querido referir-se à

hipótese de existir jurisprudência local que não colida com aquilo que também no

STJ se tiver entendido como tal.

11 Art. 557, caput.

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Assim, estão absolutamente equivocados acórdãos de órgãos

fracionários que, usurpando função definida pelo texto da Constituição Federal,

decidem com base na “jurisprudência dominante” do próprio órgão. Nesse exato

sentido, confira-se a decisão proferida pela 3ª Câmara Cível do Tribunal de

Alçada do Paraná. Nesse acórdão, cuja ementa refere-se à jurisprudência

dominante do tribunal, colhe-se, no corpo do voto do Juiz Relator, que “o tribunal

se manifesta através de seus órgãos fracionários, de modo que se a Câmara já

se pronunciou, em casos anteriores, sem qualquer divergência entre os

integrantes do quorum julgador, nada impede que o relator se utilize da

faculdade de negar seguimento ao recurso...”. Tratava-se de hipótese em que o

relator havia monocraticamente negado seguimento ao recurso, tendo sido

interposto agravo dessa decisão. De todo modo, essa Colenda Câmara do TAPR

entendeu que poderia aplicar, tanto pelo relator, monocraticamente, quanto pelo

julgamento colegiado, o seu próprio entendimento a respeito da matéria, tendo-o,

portanto, como jurisprudência dominante.12 A dúvida que permanece é, e se se

tratar de entendimento discrepante daquele que à mesma matéria (Direito

Federal) dê o STJ? E se no STJ ainda não houver jurisprudência dominante a

respeito?

Os textos legais que permitem que julgamentos se realizem

monocraticamente pelo relator certamente levam em conta, em primeiro plano, o

valor celeridade na prestação da tutela jurisdicional, matéria a que já nos

dedicamos noutro espaço, por considerá-la extremamente importante e, ao

mesmo tempo, profundamente perigosa, na exata medida em que privilegiar a

12 Ag. 148.196-7/01, j. 30/11/99.

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celeridade pode redundar em desprestígio para a segurança jurídica. Trata-se de

evidente conflito de valores, a respeito de que a sociedade deve refletir.13

Remanesce, todavia, sem completa resposta a questão do que seria a

jurisprudência dominante, a que alude o texto legal sob comentário.

A primeira questão seria, portanto, entender-se como dominante, em

matéria de Direito Federal, apenas a jurisprudência do STJ.

Nesse exato sentido decidiu recentíssimamente o próprio Superior

Tribunal de Justiça, por sua Segunda Turma. Segundo consta da ementa do

Acórdão de que foi relator o Min. FRANCIULLI NETTO, “A expressão

jurisprudência dominante do respectivo tribunal” somente pode servir de base

para negar seguimento a recurso quando o entendimento adotado estiver de

acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo

Tribunal Federal, sob pena de negar às partes o direito constitucional de acesso

às vias ordinárias”.14

Quanto ao mais, pensamos que um critério aceitável para o

“preenchimento” desse conceito indeterminado seria sua delimitação no tempo.

É preciso um período referencial, para que se possa falar em jurisprudência

dominante. Assim, o entendimento da Corte Especial do STJ, a respeito da

interpretação do direito federal poderia considerar-se dominante se houvesse a

reiteração de decisões majoritárias daquela Corte, no mesmo sentido, na

proporção de 70% por 30%, durante o período de cinco anos (ou três anos, ou

dois anos, por exemplo, contados retroativamente. E poder-se-ia pensar na

flexibilização da questão, permitindo-se a subida de recurso ao STJ (e, portanto,

13 Liquidação de sentença, 2ª ed., p. 172. No texto indicado fizemos referência à problemática surgida com a adoção, pela jurisprudência, da objeção de

pré-executividade, para evitar que o executado deva submeter à penhora (e às suas conseqüências, por óbvio), bens em valor muito superior ao da

execução. Defendemos, naquele trabalho, que ao invés de remeter-se a matéria para os embargos do devedor, com fundamento no excesso de

execução, admita-se a objeção de pré-executividade, como expediente hábil a fazer com que a execução se dê exata e precisamente em razão do real

valor da dívida. A observação que lá fizemos, e que serve para demonstrar nossas reflexões a respeito do conflito celeridade versus segurança jurídica,

é a seguinte: “Tememos o risco que representa para um Estado-de-direito tão incipiente o sacrifício de garantias constitucionais a qualquer pretexto,

ainda que se trate de motivação nobre, como é a que deseja imprimir maior celeridade processual. Entre o processo rápido e que sacrifica garantias e o

moroso que as respeita integralmente, ficamos com o segundo, embora seja ideal e possível o encontro entre a celeridade e o respeito aos direitos

fundamentais de cada pessoa”.

14 RESp 193.189-CE, julgado em 20/06/2000, Informativo de Jurisprudência do STJ, n. 62, 19 a 23 de junho de 2000.

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a vedação ao ato do Tribunal Inferior, a teor do art. 557, com base na

jurisprudência dominante), na medida em que naquele Tribunal Superior

houvesse demonstração de tendência à alteração do entendimento, o que poder-

se-ia aferir pelo estreitamento das proporções entre um e outro entendimentos

(60% por 40%, por exemplo).

Se nos afastarmos de critérios numéricos, objetivamente aferíveis pelas

partes, pela tão só consulta à base estatística das decisões do Superior Tribunal

de Justiça, corremos o sério risco de que prevaleçam opiniões falsamente

dominantes, como seriam aquelas tomadas por Tribunal Estadual, com

fundamento num restrito número de acórdãos, tirados quando da presença num

ou noutro órgão fracionário, por exemplo, de um juiz convocado, mas que se

impõe pelo conhecimento e poder de convencimento de seus pares. Terminado

o período de sua convocação, pense-se na ocupação de seu lugar, no órgão

fracionário, por outro juiz, com outro entendimento a respeito do mesmo tema.

Qual seria, então, a jurisprudência dominante? E se houver nova substituição?

Haveria o Estado que indenizar a parte pelo julgamento açodado, equivocado,

tirado com base falsa, como se de jurisprudência dominante se tratasse? O fato

é que a sociedade não pode ser lançada à busca “mágica” do pensamento

dominante, sem que se lhe dêem parâmetros objetivos e temporais para tanto, e

que se lhe permita o acesso a dados organizados e quantificados pelos próprios

tribunais.

A adoção de critério de precedentes não se fará com seriedade, em

nosso sistema, se não houver uma base estatística confiável, que permita à

sociedade aferir objetivamente, longe dos humores deste ou daquele julgador,

qual efetivamente seja o pensamento dominante no STJ (e só nele, insistimos,

quando se tratar de interpretação do Direito Federal) a respeito daquela matéria,

num determinado período (período referencial).

Por outro lado, é necessário salientar que essa constatação da

jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça com base em dados

objetivos não é difícil de se fazer, mormente se levar em conta a excepcional (e

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 17

elogiável) condição em que se encontra o STJ do ponto de vista de sua

organização administrativa. A conquista da certificação ISO 9002 é um exemplo

eloqüente dessa condição15. O site do STJ na Internet é primorosíssimo. A busca

de informações é fácil e há dados disponíveis a respeito de tudo quanto se

queira obter. Poder-se-ia pensar numa “janela” naquele site a respeito da

jurisprudência dominante, que estivesse acompanhada dos acórdãos que a ela

dão sustentação e do referencial estatístico e temporal (x decisões nesse

sentido, à proporção de 70 por 30 [essa proporção é sugerida aqui], durante o

espaço de tempo y).

O mundo da informação – que cada vez é mais precisa – não mais

admite o “achismo”, expressão coloquial com que se pode definir a tendência

irrefreável do ser humano no sentido de tentar dar a palavra final a respeito de

qualquer assunto com fundamento em seus conhecimentos empíricos sobre o

tema.

Não se coaduna com a seriedade do serviço jurisdicional e sua

imprescindibilidade para o vigor democrático que a sociedade quer imprimir ao

Brasil, a circunstância de existirem decisões tomadas com base falsa, como se

de jurisprudência dominante se tratasse. Há que se construir uma base sólida,

confiável, para que a sociedade possa entender a legitimidade das decisões dos

tribunais (inclusive locais) nesse ou naquele sentido.

15 Segundo dá conta o noticiário do STJ, publicado por sua Assessoria de Imprensa, no site www.stj.gov.br/stj/noti.../detalhes, em 31/03/2000. Segundo

consta dessa nota, “O Superior Tribunal de Justiça é o primeiro tribunal superior do mundo a conquistar o cobiçado certificado ISO 9002, que só é

emitido quando são satisfeitos todos os requisitos estabelecidos segundo normas internacionais para modelos gerenciais, visando à melhora na

qualidade dos serviços” (...) “A certificação conquistada reconhece a qualidade e segurança dos trâmites dos processos da Secretaria Judiciária do STJ,

principalmente nas rotinas de autuação, classificação e distribuição das ações originárias, como habeas corpus, mandado de segurança, medida

cautelar, reclamação e suspensão de segurança. Esses serviços foram submetidos a uma rígida auditoria que verificou a excelência dos trabalhos de

acordo com normas internacionais, conhecidas como ISSO 9002/94”.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 18

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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polêmicos e atuais dos recursos cíveis de acordo com a Lei 9.756/98, Coord.

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DINAMARCO, Cândido Rangel. O relator, a jurisprudência e os recursos,

Aspectos polêmicos e atuais dos recursos, Coord. Eduardo Pellegrini de Arruda

Alvim, Nelson Nery Jr e Teresa Arruda Alvim Wambier, São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2000.

NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios fundamentais – teoria geral dos recursos, 5ª

ed., São Paulo: Revista dos Tribunais,1999.

SATO, Priscila Key. Jurisprudência (pre)dominante, Aspectos polêmicos e atuais

dos recursos, Coord. Eduardo Pellegrini de Arruda Alvim, Nelson Nery Jr e

Teresa Arruda Alvim Wambier, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

WAMBIER, Luiz Rodrigues. Liquidação de sentença, 2ª ed., São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2000.

WAMBIER, Luiz Rodrigues, CORREIA DE ALMEIDA, Flávio Renato, e

TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil, vol. I, 2ª ed., 2ª tiragem,

São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

v

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OBRIGAÇÃO PROPTER REM E A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

JOSÉ ROBSON DA SILVA

Professor de Direito Civil, Agrário e Ambiental na Universidade Estadual de Ponta

Grossa. Advogado do Instituto Ambiental do Paraná. Mestre em Direito pela

Universidade Federal do Paraná.

RESUMO: O artigo cuida da "obrigação propter rem" à luz da função social da propriedade prevista na Constituição Federal (artigo 5º, XXIII). Sustenta o autor que tal obrigação deve subordinar sua natureza privada ao interesse público da função social da propriedade imobiliária. O texto aponta a superação do conceito meramente econômico da função social da propriedade, que atualmente abrange também questões sociais e ambientais, como as relativas ao uso do solo e à qualidade de vida de quem cultiva a terra. Afirma o autor a conexão da função social da propriedade com o artigo 3º da Constituição Federal, que determina a erradicação da pobreza e a redução da desigualdade social. ABSTRACT: This article is concerned with the "propter rem obligation" in the light of the social function of the property foreseen in the Federal Constitution (article 5º, XXIII). The author maintains that such obligation must subordinate its private nature to the public interest of the social function of the real estate property. The text points out the outdated, merely economic concept of the social function of the property, that currently also encloses social and environmental issues, as the ones related to the use of the soil and to the quality of life of whom cultivates the land. The author refers to the connection of the social function of the property with the article III of the Federal Constitution, which determines poverty eradication and the reduction of social inequality.

INTRODUÇÃO

Função social e obrigação propter rem são conceitos que repercutem em

uma ampla gama de problemas jurídicos. Conceitos que concentram uma

grande carga de sentidos. O inventário doutrinário produz vários sentidos. Para

além de discussões acerca da Jurisprudência16 como uma ciência de símbolos

lingüísticos fechados, parece ser essencial uma certa precisão ou explicitação

dos termos empregados, conforme a doutrina ou corrente filosófica que se filie.

16 O Termo Jurisprudência é aqui articulado como sinônimo de ciência do Direito.

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A designação propter rem (ou própria da coisa) qualifica o conceito

jurídico, obrigação a exigir que se lance um breve e limitadíssimo olhar sobre o

mesmo e que, para muitos é um conceito que estabelece uma ponte entre os

direitos reais e pessoais.

A função social da propriedade encontra-se no cerne da discussão que

se trava sobre os limites e possibilidades dos direitos reais e também fornece

base para que se insira nos contratos uma função social como preconiza o

projeto de Código Civil em trâmite pelo Congresso Nacional.

A doutrina nacional em seus manuais reconhece que o conceito

obrigação é polissêmico e que o legislador utiliza-o em diversos sentidos.17 O

direito clássico busca, entretanto, a precisão conceitual e a explicitação do

sentido posto no Código Civil: “As relações obrigacionais, disciplinadas pelo livro

III, do Código Civil, têm sentido peculiar e próprio, mais restrito e mais técnico.

As obrigações aí reguladas são as que vinculam uma pessoa a outra, através

das declarações de vontade e da lei, tendo por objeto determinada prestação.”18 A arquitetura do Código Civil propicia uma definição estrita do conceito

vinculada à idéia de relação jurídica. Este conceito (relação jurídica) também

comporta vários sentidos e pode ser articulado com uma abertura ampla ou

estrita19. Dentro do termo relação jurídica uma série de outros conceitos é

justaposta: Direito Subjetivo, Dever, Sujeição20. A intercalação destes conceitos

transforma o Estudo do Direito Obrigacional em uma possibilidade racional

complexa.

17 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Direito das obrigações, 1ª parte. 4º vol. São Paulo : Saraiva, p. 3 – 4.

18 MONTEIRO, Washington de Barros. Ob. cit., p. 3.

19 “Os diversos sentidos do termo”. — Num sentido mais amplo, relação jurídica é toda a situação ou relação da vida real (social)

juridicamente relevante (produtiva de conseqüências jurídicas) isto é, disciplinada pelo Direito.

Numa acepção mais restrita — que será a visada daqui por diante — relação jurídica é toda relação da vida social disciplinada pelo

Direito, mas só enquanto esta disciplina reveste uma dada fisionomia típica...

Relação jurídica — stricto sensu — vem a ser unicamente a relação da vida social disciplinada pelo Direito, mediante a atribuição a uma

pessoa (em sentido jurídico) de um direito subjectivo e a correspondente imposição a outra pessoa de um dever ou de uma sujeição.

ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Teoria geral da relação jurídica: sujeitos e objecto. Vol. I. Coimbra : Almedina, 1992, p. 2.

20 ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Ob. cit., p. 3 – 4.

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Nessa quadra é razoável destacar que a concentração doutrinária em

conceitos fechados para além de uma otimização, pode provocar a perda de

excelentes oportunidades de reflexão e um esvaziamento da complexidade em

que se move o mundo.

A conexão estabelecida entre obrigação e relação jurídica é realizada

pela doutrina clássica, e esta não consegue escapar das conotações ideológicas

liberais que imantam instrumentais jurídicos como e.g., sujeito de direito, objeto

de direito. Produzindo o que Michel MIAILLE, designa como a falsa

transparência do direito.21

Tal qual o taxidermista, o legista procede uma dissecação da

complexidade e a partir daí promove a construção de monumentos conceituais

que se pretendem perenes. É a inescapável prisão da segurança jurídica e o

repúdio às transformações.

Privilegiar o estudo estrito do conceito de obrigação conforme uma

específica interpretação dos dispositivos do Código Civil é perder uma

oportunidade ímpar de estudar todas as possibilidades do conceito. Perde-se

assim o sentido das transformações porque passa o direito obrigacional como

magistralmente registrado por Orlando GOMES: “Orienta-se modernamente o

Direito das Obrigações no sentido de realizar melhor equilíbrio social, imbuídos

seus preceitos não somente da preocupação moral de impedir a exploração do

fraco pelo forte, senão, também, de sobrepor o interesse coletivo, em que se

inclui a harmonia social, aos interesses individuais de cunho meramente

egoísticos”.22 O mestre baiano, em 1967, vinculava o direito obrigacional à sua função

social. Com este marco teórico tentar-se-á olhar as obrigações propter rem.

21 MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao direito, 2ª ed. Lisboa : Editorial Estampa, 1994, p. 38.

22 GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações. São Paulo : RT, 1967, p. 2 – 3.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 22

A doutrina clássica ao se orientar por concepção estrita do direito

obrigacional concentra-se nas dicotomias: Poder, Obrigação/Sujeição.23 Esta

perspectiva parece que privilegia o conflito e não a cooperação entre os sujeitos.

O que o sujeito de direito pode exigir ou impor ou exigir de outro sujeito de

direito? Esta é a nervura em que se tenciona o direito obrigacional do Código

Civil. Estratificada e orientada por estas premissas metodológicas a doutrina

clássica não se concentra no homem e sim nos conceitos.

O referencial teórico que se pretende seguir perfilha uma outra idéia,

respalda-se na repersonalização do direito, em que o direito privado nos dias

atuais se tem algum sentido é porque privilegia o homem e seus direitos numa

panorâmica de convivência cooperativa e harmônica.24 Com isto não se

desconhece a leitura sociológica do conflito, o que se quer afirmar é que a

orientação metodológica não se pauta por um sincretismo mas, por uma análise

que não descure de nenhum destes fatores.

A obrigação propter rem espelha esta possibilidade. Neste quadro pode-

se dizer que tais obrigações se articulam tanto nas relações jurídicas quanto nas

situações jurídicas.25 Com esta afirmativa principia-se por um alargamento do

campo de incidência de tais obrigações para além do campo do direito de

vizinhança.

A vinculação das obrigações propter rem com os direitos reais exige uma

leitura de como se articulam no sistema jurídico nacional tais direitos. Nesse

rumo assume importância capital a definição da técnica do numerus clausus.

23 A colocação dos vocábulos Obrigação/Sujeição, guarda relação com as leituras técnicas de direito subjetivo. Que num sentido stricto

implica o poder de exigir de outrem o cumprimento de uma obrigação, em sentido amplo incorpora a noção de direito potestativo que

possibilita ao titular impor a outrem um sujeição. PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria geral do direito civil. 3.ª ed. Coimbra :

Coimbra, 1996, p. 172 – 175.

24 CARVALHO, Orlando. A teoria geral da relação jurídica : seu sentido e limites. Coimbra : Centelha, 1981.

25 O recurso à categoria situação jurídica é para evidenciar problemáticas que desbordam de uma certa concepção de relação jurídica

que se vincula à idéia de apenas poder existir relação entre pessoas. Sem qualquer intenção de caminhar por esta polêmica e na busca

de uma ampliação do conceito das obrigações propter rem para além das relações de vizinhança é que se costura o texto com o

instrumental da situação jurídica. Assunto muito bem tratado por TASSO, Torquato. Da situação jurídica. Revista do Curso de Direito

da Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia. v. 10, nº ½, p. 185 – 221.

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Esta técnica é para muitos de ordem pública, para outros, um mecanismo

montado para perpetuar exclusões e perenizar dominações.

No plano da função social da propriedade percebe-se que há muito

tempo se desvinculou do direito de vizinhança. Esta vinculação foi feita e reduzia

o conceito a um nicho que não representava a sua magnitude. No mesmo rumo

encontram-se as obrigações propter rem.

Esta se encontra asfixiada pelo direito de vizinhança. O propósito é fazer

uma leitura que integre a obrigação propter rem à função social da propriedade.

A OBRIGAÇÃO PROPTER REM – MODALIDADE DE OBRIGAÇÃO OU FÓRMULA PARA DESIGNAR DIREITOS REAIS: O PROBLEMA DO

NUMERUS CLAUSUS

Abalizada doutrina brasileira representada por F. C. de San Tiago Dantas

afirma que: “não dizemos que seja de se abandonar a denominação técnica de

‘obrigação propter rem, se com ela o que se quer é designar os ‘direitos reais

inominados’, os direitos e deveres de natureza real que emanam do domínio ou

dos iura in re aliena”.26

Com essa afirmativa coloca-se em causa algumas questões; a primeira, é

a de que o estudo da obrigação propter rem não pertence aos direitos

obrigacionais e sim aos direitos reais; a segunda, é a mitigação do princípio do

numerus clausus como técnica de arrumação dos direitos reais pois tal técnica é

incompatível com a idéia de direitos reais inominados.

O sistema jurídico não rompe com a idéia da clausura dos direitos reais

representada pelo numerus clausus. Não obstante isto, permite alguns

“vazamentos” que propicia algumas aberturas no sistema. Como ocorre uma

vinculação genética das obrigações propter rem com os direitos reais principia-

se segunda problemática analisando-se os efeitos que a mitigação do princípio

26 O conflito de vizinhança e a sua composição. Forense : Rio de Janeiro, 1972, p. 249.

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do numerus clausus provoca no tema principal que é a do estudo das obrigações

propter rem.

A doutrina dominante entende que o numerus clausus é uma das

características do Código Civil no que concerne ao estatuto da apropriação de

bens imobiliários. Um código opta por um sistema fechado amarrado por

doutrinas que afastam as criações sociais e que incorporou uma armadura que

excluiu algumas manifestações espontâneas do povo.

A técnica do numerus clausus representa uma destas doutrinas que

privilegia uma espécie de ditadura do legislador. Para justificar e dar conteúdo à

técnica promove-se uma ligação entre ela e o princípio da reserva legal. Isso

quer dizer que apenas o legislador pode criar novas figuras com a textura de

direito real.27

Dois pontos, entretanto, destacam-se e não podem ser confundidos: o

primeiro, vincado pelo moderno conceito da tipicidade, para o qual não basta a

criação de lei para que cientificamente ocorra uma figura de direito real. É

necessário que o instituto criado tenha um conteúdo com as características

desse direito. O segundo ponto revela que a figura do legislador não se restringe

ao Parlamento, novos tipos de direito real poderão ser criados por outros centros

de poder v.g., o Executivo.

É preciso considerar que o numerus clausus, além de ser um conjunto de

direitos determinados pelo legislador, está vinculado precipuamente a princípios

27 A doutrina brasileira diverge em relação ao problema de o ordenamento jurídico nacional ter ou não incorporado a doutrina do

numerus clausus. Sem a pretensão de indicar uma extensa lista de escritores apresenta-se apenas dois expoentes do direito civil:

Washington de Barros MONTEIRO afirma que: “Outros direitos reais poderão ser ainda criados pelo legislador, ou pelas partes desde

que não contrariem princípios de ordem pública”. (Curso de direito civil. São Paulo : Saraiva, 1982, p.12. v. 3: Direito das Coisas). A

possibilidade de terceiros criarem direitos reais parece superar a doutrina do numerus clausus e sugere que o professor adote o numerus

apertus em matéria de direitos reais. De outro lado, Orlando GOMES, assevera: “O proprietário da coisa pode constituir apenas os

direitos reais especificados na lei. Não tem a liberdade de criá-los, devendo conformar-se com os tipos regulados legalmente e com

conteúdo que a lei lhes atribui. Outras espécies que não as definidas na lei são inadmissíveis”. Direitos reais. 10. ed. Rio de Janeiro :

Forense, 1991, p. 10.

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de ordem econômica28 e a ordem pública. Entende-se que o atrelamento à

ordem pública não é a melhor forma de entender a técnica.

Nesse rumo, José de Oliveira ASCENSÃO afirma que, em sede de direito

real, a principal linha de defesa contra o numerus apertus e a favor do numerus

clausus é a contrariedade daquele e a conformidade deste à ordem pública. Mas

o que é ordem pública? “Da manipulação de princípios de extrema generalidade

não se pode tirar nenhuma conclusão”.29

O suporte do numerus clausus é de ordem econômica, e esta não se

confunde com ordem pública. Esta técnica serve, como afirma Oliveira

ASCENSÃO, para perpetuar situações econômicas consolidadas.

Desmistificando a sua vinculação com a ordem pública, tem-se uma determinada

opção econômica a lhe sustentar. Esta opção é a do direito centrado no regime

das titularidades espelhadas por um sistema notarial que no caso brasileiro é

flagrantemente falho. Cabe ressaltar e reafirmar que a sua predominância

parece implicar uma opção sistêmica que tolhe as construções espontâneas, o

que pode desaguar em flagrantes injustiças.

Considera-se que o princípio da tipicidade pode ser utilizado para, sem a

violação do sistema, minimizar a sua rigidez e incorporar construções sociais ao

ordenamento jurídico. A doutrina e jurisprudência dominantes entendem que no

Estatuto Privado atual prevalece o princípio do numerus clausus, e que este

determina que direitos reais apenas poderão entrar na ordem jurídica através da

lei.

Nada impede, entretanto, que o intérprete com o recurso da tipicidade,

busque mediante a subsunção, novas figuras de direito real que se encontram

postas na lei, de modo não muito claro. Esta afirmação aponta uma primeira

conclusão: O sistema positivo pode agasalhar direitos reais inominados.

28 Segundo Pietro Trimarchi: “O número fechado dos direitos reais se justifica primeiro porque a pluralidade de direitos reais sobre uma

mesma coisa reduz a possibilidade de modificar a sua destinação; segundo porque auxilia na circulação dos bens”. Istituzioni di diritto

privato. Milano : Giuffrè, 1991, p. 122-123.

29 ASCENSÃO, José de Oliveira. A tipicidade dos direitos reais. Lisboa : Petrony,1968, p. 87.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 26

O princípio do numerus clausus pode, desse modo, ser vazado através

da tipicidade.30 Essa prática deve ser orientada para a proteção do homem e não

para “revelação” de direitos reais que mais se prestam a construir uma camisa

de força que exclui e isola.

Ônus reais, servidões, a tutela do meio ambiente, de bens históricos,

turísticos, paisagísticos, direitos de minorias, como é o caso dos índios, apontam

uma interessante vereda metodológica pela qual pode transitar o intérprete, sem

que com isso se violente o sistema.

Com a tipicidade orientada para a proteção do homem, e não apenas

como um método de encarceramento das relações, é possível buscar direitos

reais que estão “escondidos” no direito positivo. Essa orientação é interessante

porque, para a doutrina clássica, os direitos reais oferecem aos seus titulares

uma garantia diferenciada e mais potente do que a que se tem nos direitos

pessoais.

A tipicidade direciona-se para o conteúdo dos direitos reais, para os

elementos que lhes conferem identidade. Nessa perspectiva, a recepção da

doutrina que percebe o direito real como um tipo aberto é fundamental: “As notas

características indicadas na descrição do tipo não precisam, pelo menos

algumas delas, de estar todas presentes; podem nomeadamente ocorrer em

medida diversa”.31 Com a presença dessas notas fundamentais em determi-

nadas figuras previstas em lei, mostra-se coerente a vinculação destas ao

sistema que disciplina os direitos reais. Nesse plano é necessário ter cuidado

para que não se transformem figuras de direito pessoal em direito real.

Retomando os motivos que engendram o numerus clausus, é necessário

precisar o aspecto da ordem pública. Ao perfilhar a idéia de que a orientação

econômica é o substrato da técnica, não se descarta a ordem pública, como um

suporte a dar alguma substância ao conceito. Essa substância pode ser

30 Id. ibid., p. 102.

31 LARENZ, op. cit., p. 260.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 27

encontrada no princípio da reserva legal32 que, conectado à matéria do direito

real, coloca a questão da ordem pública, ao assimilar a idéia de que essa

espécie de direito submete terceiros com o efeito erga omnes.33

Uma tão poderosa conseqüência afetaria a organização das relações

civis se deixasse a criação de direitos à plena autonomia da vontade dos

cidadãos. Interessante destacar que o numerus clausus e a autonomia da

vontade, “têm a mesma matriz liberal que pretendem no regime jurídico

revolucionário, franquear o tráfego jurídico, fomentando a celeridade de negócios

criados pelas partes e com força de lei entre elas, expressão da filosofia

individualista [...]”.34 Por outro lado, o seu contrário, que é o numerus apertus,

segundo José de Oliveira ASCENSÃO, também tem uma estrita vinculação com

o princípio da autonomia da vontade.35

Evidenciada a técnica do numerus clausus, é preciso considerar que a

sua utilização poderá se direcionar para produzir injustiças. A realização da

leitura do numerus clausus sem considerar a tipicidade de algumas figuras de

32 O princípio da reserva da lei é um tema que ultrapassa o objeto desta dissertação. Considera-se que uma passagem mesmo rápida

pelo assunto, pode oferecer a medida das possibilidades que se abrem quando se articula o princípio do numerus clausus com o da

reserva da lei. O numerus clausus, conforme doutrina aqui perfilhada, é uma técnica que se fundamenta principalmente em motivos

econômicos e, em certa medida, às questões de ordem pública. A perspectiva que se apresenta é a determinação de quem seja o

Legislador. O princípio da reserva legal não se confunde com o princípio da reserva do Parlamento: “Segundo a doutrina tradicional do

duplo conceito de lei, lei em sentido formal é todo o ato parlamentar revestido de forma de lei, independentemente do seu conteúdo. Lei

em sentido material é a regra de direito[...]. Significa isto que para a lei em sentido material a forma de lei não é necessária nem

suficiente: as leis formais podem representar leis em sentido material, mas os regulamentos também o poderão ser”. VAZ, Manuel

Afonso. Lei e reserva da lei: a causa da lei na Constituição portuguesa de 1976. Porto : [s.e.], 1992, p. 17-18. Destaca-se da doutrina

tradicional que apenas o Legislador, nesse plano, referido como o Poder Legislativo poderia modificar o numerus clausus. Ocorre que o

princípio da reserva da Lei é diferente do princípio da reserva do Parlamento: “O verdadeiro alcance da reserva da lei, como expressão

do princípio da legalidade, ultrapassa a distribuição orgânico-funcional do poder legislativo e questiona as relações da lei perante outros

atos estaduais não legislativos. Trata-se não de organizar uma função estatal, mas de delimitar as funções estatais. Reserva da lei é aqui

diferente de Reserva do Parlamento, do mesmo modo que conceito de lei material é diferente do de lei formal”. VAZ, op. cit., p. 34. Não

sendo pois idênticos o princípio da reserva de lei e reserva do Parlamento, cumpre questionar se o elenco de direitos reais consignados

em nosso ordenamento poderia ser alterado por normativas que não oriundas do Parlamento. Parece que o ordenamento jurídico

brasileiro admite a idéia de que o elenco de situações jurídicas, taxativamente, definidas em lei, possa ser alterado por dispositivos

normativos oriundos de outros centros de poder, sem ter portanto o status de lei em sentido formal. Nesse passo, normas do Executivo

poderão alterar o elenco de direitos reais acrescentando novas modalidades.

33 TEPEDINO, Gustavo. A nova propriedade, o seu conteúdo mínimo, entre o código civil, a legislação ordinária e a Constituição.

Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 306, p. 83-84, 1989.

34 TEPEDINO, Gustavo, op. cit., p. 83-84.

35 ASCENSÃO, A tipicidade ..., p. 87.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 28

direito real, propicia o isolamento do sujeito de direito e contribui para a

manutenção de injustiças sociais.

Isto ocorreu durante um bom tempo na jurisprudência brasileira, que não

considerava o contrato não registrado de promessa de compra e venda de lotes

urbanos como produtor de direito real.36

Pode-se aferir que a armadura conceitual montada no Código Civil

brasileiro, com aspirações sistêmicas de um positivismo científico neutro,

contribuiu para afastar o direito da vida, encarcerando-a em conceitos abstratos.

Nesse momento da vida nacional a Constituição Federal,37 no que concerne ao

Estatuto da apropriação de bens imóveis urbanos e rurais, desempenha um

papel fundamental, isto porque, os institutos que nela foram encartados

encontram-se perpassados por uma doutrina que tem o homem como o centro

do sistema.

Uma vinculação estrita ao princípio do numerus clausus dos direitos reais

se opõe ao raciocínio do Professor SAN TIAGO DANTAS de que a obrigação

propter rem é uma técnica que propicia a identificação de “direitos reais

inominados”. Pois em sua radicalidade o numerus clausus não admite a

possibilidade de direitos reais inominados.

A ampliação do horizonte teórico da clausura dos direitos reais parece

possível quando se utiliza o instrumental fornecido pela tipicidade dos direitos

reais. Presente as notas fundamentais deste direito em outros institutos que não

aqueles indicados expressamente no direito positivo, ter-se-ia direitos reais

inominados.

A correção lógica do pensamento do professor San Tiago Dantas é

dependente de uma perspectiva que privilegia o Código Civil como o único

36 Nesse sentido, consultar a excelente monografia de Marcelo DOMANSKI. Posse: da segurança jurídica à questão social. (Na

perspectiva dos limites e possibilidades de tutela do promitente comprador através dos embargos de terceiros). Rio de Janeiro : Renovar,

1998.

37 A posição que adotada para o vocábulo Constituição perfilha a idéia transcrita por José Joaquim Gomes Canotilho: “Constituição é

uma ordenação sistemática e racional da comunidade política plasmada num documento escrito, mediante o qual se garantem os direitos

fundamentais e se organiza, de acordo com o princípio da divisão de poderes, o poder político”. O direito constitucional entre o moderno

e o pós-moderno. Revista Brasileira de Direito Comparado, Rio de Janeiro, n. 9, p. 78, 1990.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 29

estatuto privado a disciplinar as relações de vizinhança. Esta leitura talvez

explique a conexão estrita das obrigações propter rem neste autor aos direitos

de vizinhança. A idéia que orienta este trabalho não se conforma com um olhar

estrito do direito obrigacional contido no Código. O direito obrigacional não

emana apenas de relações jurídicas intersubjetivas. Situações jurídicas implicam

também em obrigações. O sujeito de direito ao assumir determinada posição

incorpora para além das vantagens um plexo de responsabilidades. Neste rumo

a proliferação dos microssistemas gerou uma expansão teórica do direito

obrigacional e das obrigações propter rem especificamente.

Assim o conceito obrigação assume uma textura muito maior do que a

vinculação de uma pessoa a outra em que um sujeito pode exigir de outro uma

prestação. Neste quadro as obrigações propter rem parece que efetivamente

configuram uma ponte de ligação entre os direitos reais e pessoais.

Como um conceito de ligação assimila e contém peculiaridades tanto de

um quanto de outro ramo. A pessoa na situação jurídica de proprietário ou titular

de outro direito real assume por sua vez uma série de obrigações.

As obrigações que decorrem da posição irradiada pelo direito real

implicam tanto em ligações de âmbito restrito ou ampliado. Apanhe-se o caso do

proprietário urbano ou rural. Nestas circunstâncias deve responder por todas as

emissões38 que tornem a vida cotidiana dos vizinhos insuportável.

As obrigações que decorrem da situação proprietária não se restringem

também apenas aos direitos de vizinhança. Ultrapassam esses quadrantes e

alcança aspectos relativos à função social da propriedade. Antes de adentrar

nesta questão uma avaliação deve ser feita. Trata-se da vinculação das

obrigações propter rem aos direitos de vizinhança.

38 O conceito de emissão foi magnificamente trabalhado por F. C. de San Tiago Dantas.

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OS DIREITOS DE VIZINHANÇA E AS OBRIGAÇÕES PROPTER REM As obrigações propter rem recebem diversas designações e são

apresentadas como sinônimo de questão diversa ou ainda para indicar outras

técnicas. Afirma-se que são obrigações ambulatórias; obrigações reais,

obrigação ob rem; obligationes in rem scriptae. Encontra-se ainda algumas

conexões com ônus ou dever jurídico.

A utilização de termos sem a devida explicitação de seu conteúdo

provoca uma mistura que obscurece o sentido. Apanhe-se a título de análise a

vinculação entre obrigações propter rem e ônus. Efetivamente são termos que se

relacionam com problemáticas distintas.

A conceituação de ônus de Carnelluti ao Professor Manuel Andrade

DOMINGUES, passando ainda por DIAS MARQUES, refere-se a uma situação

em que o adimplemento ou inadimplemento provoca conseqüências jurídicas

apenas na esfera do sujeito.

Por conta desta análise tornar-se-ía lícito ao sujeito uma conduta que

desatendesse o ônus, visto que, integrante, da autonomia da vontade, o prejuízo

eventualmente provocado pelo sujeito será suportado.

No mesmo rumo vincula-se à obrigação propter rem a noção de dever. É

preciso ressaltar que obrigações desta espécie não geram rigorosamente um

dever jurídico e sim verdadeiramente uma obrigação. “O dever, sendo a

necessidade de adotar uma conduta para a satisfação dum interesse de outrem,

é um meio jurídico de solução de conflitos intersubjetivos de interesses.

Diversamente, o que há de característico no ônus é o sacrifício dum interesse

próprio. O ônus é o sacrifício dum interesse próprio.”39

A distância que separa os vocábulos Obrigação, Dever e Ônus é

registrada pela doutrina. O uso de um conceito fora de um rigor pode

eventualmente comprometer a transmissão da mensagem.

39 DIAS MARQUES. Apud. GARCEZ NETO, Martinho. Ônus real. In. Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro. Vol. XXXV. Coord. J.

M. CARVALHO SANT0S, Rio de Janeiro : Borsoi, s/d, p. 181.

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As obrigações propter rem surgem a partir do momento em que o sujeito

encontra-se em dada situação jurídica, titular de um dominus, e que por

evidência trava relações de vizinhança.

SAN TIAGO DANTAS, tantas vezes referido neste opúsculo, afirma que

nem todas as relações de vizinhança emanam do domínio. O autor sem quebrar

a homogeneidade do direito de vizinhança inserida no Código Civil e tomando

cuidado em não apontar nas disposições normativas servidões legais afirma que:

“é inegável que, entre os direitos de vizinhança, alguns são

consubstanciais ao domínio, plasmam-se com ele, e correspondem a

restrições que não diminuem ao vizinho aquela extensão de poderes que,

como proprietário, lhe assiste sobre o seu prédio; enquanto outros são

melhoramentos ou acréscimos, e tem, quer para o beneficiário das

vantagens, quer para o portador dos encargos, todas as aparências da

servidão.

Três direitos de vizinhança, sobretudo, parecem-nos estar neste último

caso: o direito de passagem forçada, o de aqueduto, e o de madeirar na parede-

meia consagrados respectivamente nos artigos 559, 567 e 579 do Código

Civil.”40

Por outro lado, PONTES DE MIRANDA cortante afirma : “ Os deveres

oriundos dos arts. 554, 555, 557, 558, 559, 563, 564, 565, 567, 569-571, 572-

588 (deveres correspondentes a direitos de vizinhança, que são direitos

limitativos) não são deveres propter rem”.41

Sem qualquer pretensão de imiscuir na batalha de conceitos e

classificações o que se quer evidenciar com os direitos de vizinhança e a sua

conexão com as obrigações propter rem é o fato inescapável de que ser titular

de um direito (qualquer um) real implica em obrigações. Um complexo de

obrigações encartadas no Código Civil e em outras normativas.

40 SAN TIAGO DANTAS. Ob. cit., p. 251 – 252.

41 PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. Tomo XVIII. 3ª ed. Rio de Janeiro : 1971, p. 24.

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O que parece ser inovador na expansão teórica da técnica da obrigação

propter rem é a possibilidade de ligá-la à função social da propriedade.

A função social da propriedade é hoje uma normativa constitucional que

impõe ao sujeito de direito inúmeros e ainda inexplorados espaços de análise. A

começar pela ideológica e comprometida idéia de que trata de uma norma

programática destituída de sanção.

A função social da propriedade alcança todos os direitos reais (não

apenas a propriedade) e projeta-se sobre coisas móveis ou imóveis, bens de

uso, consumo ou de produção, ingressa no patrimônio cultural, ambiental,

nacional, genético, bem de uso comum do povo.

A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE COMO INFORMADORA DO CONTEÚDO DAS OBRIGAÇÕES PROPTER REM

De início é preciso destacar que função social da propriedade e os limites

decorrentes do direito de vizinhança são radicalmente distintos. Este último

implica em limitações de ordem pública e privada como com uma acentuada

vinculação ao direito de propriedade e posse numa perspectiva de limitações ao

direito de propriedade.

A função social da propriedade não se configura como uma mera

limitação ao direito de propriedade. É muito mais, pois implica em comandos

positivos que conformam-se em obrigações de fazer, em tutela de pessoas não

proprietárias. Quebra-se assim o núcleo clássico das obrigações propter rem que

se destinava a regular tão somente relações entre vizinhos. A função social da

propriedade contendo obrigações propter rem empurra estes limites.

O direito de vizinhança da forma como se articula no Código Civil foi

montado para, além da tentativa de se alcançar uma relativa harmonia entre

vizinhos, dotar o sujeito atingido por emissões de um instrumental jurídico capaz

de lhe propiciar uma reação. Foi estampado com uma carga de proibições,

limitações e sanções.

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Destaque-se que o conceito de vizinhança ultrapassou a muito a idéia de

contigüidade. Ampliado, incorporou sujeitos que embora não estejam nesta

proximidade venham a ser atingidos por emissões nocivas materiais ou não.

Com texto centrado na idéia de que o conceito de obrigação propter rem

é uma técnica ponte integradora de ramos classicamente referenciados como

distintos como é o caso dos direitos reais e pessoais, passa-se a examinar em

que medida a função social da propriedade pode ser um conceito informador

desta modalidade de obrigação.

O professor Luiz Roldão de Freitas GOMES afirma que :

“No tocante à propriedade urbana, surge expressiva inovação: faculta-se

ao Poder Público Municipal, mediante lei específica para área incluída em

seu plano, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano

não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado

aproveitamento. Sob pena de parcelamento ou edificação compulsória,

tributação progressiva ou desapropriação (art. 182, I a III).

Cria-se, pois, para o proprietário, um dever, uma obrigação em relação ao

imóvel, com o caráter de obrigação propter rem, o que desloca a

concepção do direito de propriedade de exclusivo feixe de poderes, sobre

a coisa, concedidos a seu titular para compreendê-lo também, como

explicitam juristas modernos (UGO NATOLI, “La proprietà”, Milano. 1965,

p. 12; RODOTÀ, ‘Proprietà, Novíssimo Digesto Italiano’, G ALPA, “Nuovo

Diritto Privatto, UTET, 1985, PS. 316 e segs) sob a ótica de uma

disciplina que incide sobre o conteúdo da situação jurídica do proprietário

que se apresenta também passiva, na medida em que se lhe impõem

ônus e comandos obrigatórios visando ao interesse social da

comunidade, sem compensação em seu patrimônio”.42

Com esta doutrina bem longe se encontra da estreita vinculação das

obrigações propter rem a questões relativas a direito de vizinhança ou apenas

42 FREITAS, Luiz Roldão de Freitas. O estatuto da propriedade perante o novo ordenamento constitucional brasileiro. In. Revista

Forense. Vol. 309. Rio de Janeiro : Forense, 1990, p. 25 – 32.

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como uma técnica de identificação de direitos reais inominados. Salienta-se

assim que para além de poderes o proprietário encontra-se também em uma

posição passiva própria daquela forma de obrigação, não apenas em relação

aos vizinhos, mas perante toda a sociedade.

O conceito função social da propriedade é histórico.43 Essa sentença está

a revelar que o conceito detém uma maleabilidade44 que se metamorfoseia no

desenrolar da história, variando conforme o tempo e o espaço em que é

aplicado. Por tratar-se de um conceito propenso a mudanças, parece receber um

fluxo de penetrações que, em dada circunstância, pode alterar-lhe a composição;

tanto pode servir a um Estado totalitário como também ser um aríete na

demolição de leituras neutralizantes. A sua aplicação in concreto envolve

conexões com valores agasalhados pela ordem constitucional, dentre eles, a

dignidade da pessoa humana.

Ser titular de um direito real passa a ter importância num âmbito que

extrapola o plano individual e alcança os não proprietários.45 O outro passa a ter

importância à medida que o sistema trata não do homem individualizado, mas do

homem em comunicação.

Essa filosofia encarta-se na idéia de que o Direito está para além do

aspecto estático, é pois relacional e dinâmico, haja vista que o direito de

propriedade privada, na ordem constitucional brasileira, gravado como um direito

fundamental,46 deve atender à sua função social. Olhar o sentido, a extensão e o

conteúdo da funcionalidade da propriedade privada é tarefa que se impõe.

43 TEPEDINO, Gustavo. A nova propriedade, o seu conteúdo mínimo, entre o Código Civil, a Legislação Ordinária e a Constituição.

Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 306, p. 73, 1989.

44 Idem, ibidem, p. 74.

45 Idem, loc. cit.

46 Jorge Miranda comenta que “a locução ‘direitos fundamentais’ tem sido nas últimas décadas a preferida pela doutrina e pelos textos

constitucionais para designar os direitos das pessoas frente ao Estado que são objeto da Constituição [...] os direitos fundamentais

presentes na generalidade das constituições do século XX — e até, em grau bastante menor, nas do século XIX — não se reduzem a

direitos impostos pelo direito natural. Há muitos outros: direitos do cidadão ativo, do trabalhador, do administrador, etc.. Há direitos

conferidos a instituições, grupos ou pessoas coletivas. E muitos são direitos pura e simplesmente criados pelo legislador positivo, de

harmonia com as suas legítimas opções e com os condicionalismos do respectivo país”. Manual de direito constitucional. 2. ed.

Coimbra : Coimbra, 1993, p. 48-51. t. 4: Direitos fundamentais.

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A função social da propriedade é um conceito que absorve outros. A

Constituição Federal determina no artigo 186 uma plêiade de requisitos para a

sua concretização.47 O aproveitamento racional e adequado da propriedade; a

utilização equilibrada dos recursos naturais; a preservação do meio ambiente;

observância das disposições que regulam as relações de trabalho e a

exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores são

parâmetros objetivos que regulam a extensão e o conteúdo do conceito. Nesse

sentido, para que se alcance a sua efetividade é necessário valer-se das

inúmeras leis que regulam os diferentes aspectos.

Embora a função social tenha uma certa dose de empirismo,48 conclui-se,

por outro lado, que esta possui um conjunto de dados jurídicos descritos na

Constituição e precisados nas leis infraconstitucionais. O manejo dos elementos

do conceito deve ser integrativo, ou seja, não é possível descurar de nenhum

sob pena de inconstitucionalidade.

Cabe lançar nesse estádio de desenvolvimento do tema uma breve

digressão sobre a função social e também uma questão: a propriedade

imobiliária privada é uma função social?

A resposta com fundamento em nosso ordenamento jurídico tende a ser

negativa, pois é dominante o entendimento de que, mesmo que não cumpra a

função social, o titular da propriedade, ao ser esta desapropriada, deverá

receber indenização. Pelo visto, isso implica o respeito à situação jurídica e se

inscreve na proibição do confisco.

47 O artigo 186 da Constituição Federal estabelece um conjunto de institutos jurídicos que preenchem o conteúdo da função social da

propriedade privada imobiliária rural. Para que o preceito seja cumprido, é necessário que todo o conjunto seja observado pois não basta

atender uma imposição e deixar outras.

48 MAGALHÃES, Maria Luísa Faro. Função social da propriedade e meio ambiente: princípios reciclados. In: BENJAMIN, Antônio

Herman V. [Coord.]. Dano ambiental: prevenção, reparação e repressão. São Paulo : RT, 1993. p.150.

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A propriedade privada, independentemente do cumprimento da função

social, é um direito subjetivo por si só tutelado, pelo menos no que concerne à

indenização, quando da desapropriação.49 É de se argüir se é possível outro

modelo de interpretação. Nesse passo, parte da doutrina afirma que a

propriedade é uma função social e que os poderes dos proprietários são

condicionados por deveres.50 A função passa, então, a integrar o elemento

estrutural da propriedade. Em conseqüência, pode-se concluir que se não for

cumprida a função social, não haverá também a propriedade.

É difícil, com essa posição, justificar a obrigatoriedade de o Estado

indenizar o titular que não cumpre com a função social quando da

desapropriação. Se sem o cumprimento da função social não há propriedade,

logo, não há razão para indenizar onde não há propriedade.51 Esse modelo de

interpretação, entretanto, depende da mudança da organização social — de um

Estado liberal capitalista,52 para um Estado socialista. Auscultar a conformação

do Estado nessa doutrina é importante, pois em caso contrário teríamos uma

interpretação despregada da realidade social, ao ignorar os pressupostos

jurídicos que vigoram. Com essa observação, parece que o sistema jurídico

49 Quanto à tutela da propriedade que não cumpre a função social, é preciso frisar que se está a referir aos processos de

desapropriação por interesse social, para fins de Reforma Agrária. E mesmo nesse caso o valor da indenização deverá atender o

princípio da igualdade com expressiva redução de valor, em comparação com o preço de mercado. Vale lembrar que o ordenamento

jurídico constitucional brasileiro determinou o caso limite de perda da propriedade, quando esta é utilizada como instrumento de

realização de crimes como é o caso de culturas ilegais de plantas psicotrópicas (art. 243 CF/88). O fundamento dessa conseqüência

encarta-se na função social da propriedade, por outro lado, é de se destacar que tão contrário e, pode-se dizer, tão vil quanto, é a

utilização de mão-de-obra escrava, fato que reduz o homem à condição de objeto, e por conseqüência lógica, deveria receber do

sistema o mesmo tratamento dado ao plantio ilegal, ou seja, dever-se-ía nesses casos, adotar o confisco.

50 CARBONNIER, Jean. Flexible droit : Pour une sociologie du droit sans rigueur. 7. ed. Paris : LGDJ, 1992, p. 262.

51 Celso Antônio Bandeira de Mello conclui que, se a propriedade privada fosse uma função social, o bem seria protegido tão só na

medida em que a realiza. As propriedades deveriam então ser suscetíveis de serem perdidas, sem qualquer indenização para

proprietários que não cumprem a função social. Novos aspectos da função social da propriedade no direito público. Revista de Direito

Público, São Paulo, n. 4, p. 41, 1987.

52 O Estado liberal “se inspira no princípio de dar livre curso aos projetos individuais em todos os ramos de atividade, do econômico ao

religioso, cada qual desenvolvido com maior ou menor eficiência com um maior ou menor recrutamento de forças, encontrando uma

audiência maior ou menor, e o conjunto dos motores particulares assegurará o movimento social, no qual o Estado apenas desempenha

o papel de ajustador”. Jouvenel, Bertrand de. As origens do Estado moderno: uma história das idéias políticas no século XIX. Rio de

Janeiro : Zahar, 1978, p. 18.

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brasileiro, pelo menos no estágio em que se encontra, não oferece substância

para que se perfilhe o entendimento de que a propriedade é uma função social.

O direito subjetivo sobre a propriedade privada não foi suprimido com a

nova Constituição, que se inscreve com letras claras entre os sistemas da livre

iniciativa e da autonomia privada. Cabe ressaltar que não se quer dizer com isso

que a autonomia privada se restrinja ao aspecto econômico53, pois, segundo a

professora Ana PRATA: “Nem a problemática da autonomia privada é exclusiva

do setor privado da atividade econômica, nem basta que exista esse setor para

se afirmar que, adentro dele, os sujeitos são livres de se autodeterminarem

juridicamente”.54 Mas, conforme a autora, a autonomia privada só tem sentido

numa economia em que a satisfação das necessidades é obtida no mercado.55

O fato de não termos condições objetivas para a doutrina que entende a

propriedade privada como uma função social, não quer dizer que ela seja

teoricamente incorreta. Verifica-se apenas que ainda não foi conquistada tal

realidade. É o que conclui o professor Luiz Edson FACHIN que, tendo por

parâmetro a Constituição de 1967, afirma: “entender, hoje, que não há

propriedade rural sem função social é construção teórica correta, mas cuja base

jurídica ainda deve ser conquistada”.56 As condições que imperavam na

Constituição de 1967 em matéria de função social pouco se alteraram, até

porque, ao tempo dessa Constituição encontrava-se em vigor, como ainda hoje

têm vigência, o Estatuto da Terra,57 que apresenta uma função social para a

53 Ao fazer menção à autonomia privada, não se restringe esse conceito ao sistema de produção e reprodução de riquezas. Parece que

a autonomia privada é um conceito que ultrapassa em muito a uma circunscrição ao sistema econômico, vai além e integra e.g., a esfera

da intimidade privada, em que as pessoas têm a possibilidade de organizar a sua vida sem que o Estado possa fazer penetrações

jurídicas. Nesse passo, o Estado que, agigantando-se em demasia, adentrar nessas esferas descaracterizando-as, incorrerá em uma

invasão indevida. Há fronteiras para o direito estatal, ele não pode organizar todas as esferas da vida privada. Os valores constitucionais

postos em nossa Constituição garantem a intimidade como direito fundamental, as invasões estatais deverão ser feitas com muito

cuidado para que não se promovam inconstitucionalidades.

54 Prata, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada. Lisboa : Almedina, 1982, p. 197.

55 Idem, loc. cit.

56 Fachin, Luiz Edson. Terras devolutas e a questão agrária brasileira : anotações preliminares para um ensaio. Revista dos Tribunais,

São Paulo, v. 629, p. 56, 1988.

57 BRASIL. Lei federal n. 4.504, de 1964, art. 2º. Disciplina a função social da propriedade rural com o mesmo teor da Constituição

Federal de 1988.

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propriedade imobiliária rural, com a mesma textura que a atual Constituição

contém. Houve uma transposição do texto do Estatuto para a Constituição de

1988.

A diferença entre a Constituição Federal de 1967 e a Constituição de

1988, em matéria de função social da propriedade, para além de considerações

que envolvem o fato de a primeira ter sido outorgada e a segunda produzida

dentro de princípios democráticos, encontra-se ligada ao status que o instituto

recebe nessa última. A Constituição de 1988 elevou a função social da

propriedade à categoria de direito fundamental. Fábio Konder COMPARATO

conclui que, destes dispositivos, duas conseqüências lógicas podem ser

extraídas: o não cumprimento da função social da propriedade privada impõe ao

Estado o dever de lançar sanções; a desapropriação, quando do desatendimento

da função social, tem caráter punitivo.58

Destaque-se, ainda, que a inserção da função social da propriedade

privada, no título dos direitos e garantias fundamentais, produziu uma limitação

material explícita ao poder de reforma da Constituição, não sendo permitido ao

legislador revogá-la por intermédio de emenda ou qualquer outro artifício, a não

ser com a ruptura da ordem constitucional.59 Essa consagração revela bem a

medida da mudança que se opera, pois a propriedade privada adjetivada pelo

social encontra-se num plano jurídico que rompe com as clássicas fronteiras do

Código Civil e passa a ser um dos pilares da ordem jurídica nacional.

58 Fábio Konder COMPARATO, ao comentar os artigos 182 e 186 da Constituição conclui que: “Duas conseqüências lógicas, segundo

me parece, devem ser extraídas desses dispositivos constitucionais. Em primeiro lugar, o reconhecimento de que essas sanções pelo

descumprimento da função social da propriedade não são mera possibilidade, mas autêntico dever imposto ao Estado, sob pena de

inconstitucionalidade por omissão administrativa. Em segundo lugar, o reconhecimento, também óbvio, de que a expropriação pelo

descumprimento da função social, por força de seu caráter punitivo, não está sujeita às restrições determinadas no art. XXIV da

Constituição: a indenização não precisa ter a mesma amplitude e as mesmas garantias de que é devida quando não há disfunção no uso

da propriedade”. Estado, empresa e função social. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 732, p. 43, 1996.

59 “As limitações do § 4º do art. 60 da Constituição, são limitações materiais explícitas, assim configuradas na sede da norma

constitucional”. HORTA, Raul Machado. Estudos de direito constitucional. Belo Horizonte : Del Rey, 1995, p. 124. No mesmo sentido,

Manuel Gonçalves FERREIRA FILHO. Do processo legislativo. São Paulo : Saraiva, 1995, p. 284-286.

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Uma outra questão que pode ser posta, após fixada a idéia de que a

função social corresponde ao uso,60 mais precisamente ao modo como se usa o

bem e não como ele se estrutura, é saber se no sistema jurídico brasileiro

podem ser distinguidos como direitos autônomos, o direito de propriedade e o

direito de usá-la.61

A SUPRESSÃO E A RESTRIÇÃO DA FACULDADE DE NÃO-USO DO TITULAR DO DIREITO DE PROPRIEDADE PRIVADA IMOBILIÁRIA

O direito subjetivo de propriedade encartado em nossa Constituição

encontra-se condicionado pela função social. Inúmeras limitações de ordem

pública afetaram o uso do imóvel, multiplicadas que foram por inúmeras leis e

atos administrativos. Nesse plano, coloca-se em causa o conteúdo mínimo da

propriedade, ou seja, o núcleo que, se atingido pelo Estado, implica o dever de

indenizar. Uma questão se impõe: é possível a separação entre o direito de

propriedade e o direito de uso, pelo qual teríamos, então, e.g., a possibilidade de

edificar apenas se o Estado fornecesse uma concessão?62 Parece não restar

dúvidas na doutrina acerca da necessidade de intervenção estatal, no momento

em que o titular resolve construir. Essa intervenção, entretanto, não se confunde

com a concessão em sentido stricto.

Se não há a necessidade de concessão do Estado para que se possa

construir, também não se pode concluir ipso facto que esse direito (de construir),

esteja visceralmente ligado ao direito de uso do bem. Em determinadas

situações, o titular do dominus encontrar-se-á impedido de construir, sem que

60 A utilização do substantivo usado não tem ligação com o direito previsto no artigo 674, IV, do Código Civil, tem o sentido de aplicação

do bem para determinado fim. De outro lado, o direito real de uso é direito sobre coisa alheia de âmbito mais restrito que o usufruto.

WALD, Arnoldo. Direito das coisas. São Paulo : RT, 1988, p. 185.

61 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Novos aspectos da função social da propriedade no direito público. Revista de direito público,

São Paulo, n.84, p.41, 1987, conseqüência lógica, deveria receber do sistema o mesmo tratamento dado ao plantio ilegal, ou seja, dever-

se-ia nesses casos, adotar o confisco.

62 Celso Antônio Bandeira de MELLO, afirma que não é possível considerar que o direito de construir é uma concessão do Poder

Público, por consistir em algo diverso do direito de propriedade, pois existe um conteúdo mínimo no direito de propriedade. Ibid., p. 43.

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com isso o Estado tenha de indenizar.63 Essa proposição não se vincula à

preceitos gerais, harmoniza-se com uma apreciação tópica do suporte fático,

e.g., a Serra do Mar no Estado do Paraná que foi tombada,64 o que restringe o

uso e impede a destruição, sem que com isso o Estado tenha que recompor a

redução do conteúdo econômico que a limitação impôs.65 Portanto, questões

ambientais, de segurança e de salubridade públicas, podem ser barreiras

objetivas ao direito de uso do proprietário.

Os dispositivos legais que disciplinam o meio ambiente em situações

problemáticas, impedem o titular de usar e, por conseqüência, construir em sua

propriedade. Nessas condições teríamos, aparentemente, um choque entre dois

direitos fundamentais: o direito de construir,66 decorrente do direito subjetivo de

propriedade, e o direito a um ambiente equilibrado, também considerado pela

Constituição de 1988, como direito fundamental.

Assim, para solucionar tal questão levantada, deve-se buscar uma

coordenação entre o Código Civil, a Carta de 1988 e as diversas leis que

disciplinam a matéria. O dispositivo civil prevê que o direito subjetivo de

propriedade contém a faculdade do uso; a Constituição condiciona o uso a

metas que se inscrevem na fórmula política do Estado Democrático de Direito.

Dessa articulação, o uso de bens imobiliários em dada situação desvincula-se do

direito subjetivo de propriedade e se autonomiza. Ganha relevância, então, a

63 Doutrina contrária à idéia exposta, afirma que “no atual estágio, é urgente que nossa jusadministrativa corrija a sua falha, até para

refletir importante tendência jurisprudencial, que vem reconhecendo a ocorrência de desapropriação indireta em casos como o

tombamento de prédios ou da cobertura vegetal de terrenos — e isso mesmo quando o imóvel não tenha de ser transferido ao Estado”.

SUNDFELD, Carlos Ari. Revisão da desapropriação no Brasil. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, p. 40, 1993.

64 Em 25 de julho de 1986, o Conselho Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico do Paraná através de edital, procedeu o tombamento

da Serra do Mar envolvendo 386 mil ha. Publicado no Diário Oficial do Estado, n. 2.290, de 05 de junho de 1996.

65 Existe uma viva polêmica doutrinária sobre ser o tombamento um instrumento apto à realizar a função social da propriedade, alguns

afirmam que apenas a desapropriação pode alcançar tal intento, entretanto: “É perfeitamente adequada a invocação da função social da

propriedade na defesa do tombamento, sendo o instituto legítimo tendo a embasá-lo norma constitucional que o prevê

expressamente[...]. Não intentamos, pois, atrelar o instituto jurídico do tombamento à indenização só pode ser avaliada in concreto”.

PIRES, Maria Coeli Simões. Da proteção ao patrimônio cultural. Belo Horizonte : Del Rey, 1994, p. 260-261.

66 Ricardo César Pereira LIRA. aduz que, à luz do artigo 572 do Código Civil, o direito de construir é um direito subjetivo condicionado pelas “limitações

de ordem privada, ou de ordem administrativa, que, apenas, digamos, roçam a sua substância, ou, mais precisamente condicionam o seu exercício”. A

propriedade urbanística. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 300, p. 53, 1987. Segundo o mesmo autor essa concepção se reproduz no projeto de

reforma do Código Civil e fatos novos desencadeados pela cidade exigem uma nova concepção de direito de propriedade. Op. cit., p. 54.

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orientação de que o uso dos recursos ambientais demanda uma autorização e

não uma licença.67 Entretanto, o confronto entre o direito subjetivo de

propriedade e seu uso, parece ser aparente, pois à medida em que se incorpora

a idéia de que o Direito público e o privado encontram-se em linha de

coordenação e limites, o direito de propriedade apenas pode ser utilizado nas

fronteiras estabelecidas pela função social da propriedade, na qual encontra-se a

tutela a um meio ecologicamente equilibrado.

Percebe-se, assim, que a função social da propriedade é o instituto

jurídico central para a determinação do conteúdo da propriedade. Esse conteúdo

expressa-se em muitas variáveis: dentre elas, a econômica assume grande

importância. Nesse contexto, a afetação do conteúdo econômico deve ser

medido no caso concreto. A determinação a priori e minuciosa desse conteúdo

não implica uma redução do conceito ao aspecto econômico, em renúncia a um

manejo equilibrado dos diversos aspectos que se articulam no conteúdo da

propriedade que, para além dos direitos subjetivos de uso, gozo, disposição e

seqüela, deve-se harmonizar com os deveres impostos pela função social da

propriedade, que são econômicos, sociais e ambientais.

A função econômica da propriedade imobiliária é indiscutível: entretanto,

outros componentes encontram-se presentes e não é possível descartá-los de

nossa ordem jurídica, haja vista a expressa disposição constitucional sobre a

matéria. Aspectos sociais e ambientais, em determinados momentos, podem,

inclusive, ter uma maior relevância do que o aspecto econômico. A articulação e

a verificação de eventual supremacia de uns sobre outros, repete-se, podem ser

melhor realizada no balanço in concreto que se faz desses institutos. É coerente

concluir que, se a Constituição determina que, para além do aspecto econômico,

a função social da propriedade contém questões ambientais, de uso do solo, de

67 A distinção doutrinária sobre autorização ou licença está conectada ao tema no sentido em que se vincula a segunda (licença) à existência de um

direito subjetivo, o que demandaria no dever do Estado de licenciar determinada atividade. No primeiro instituto (autorização), temos um ato

administrativo precário sem a existência do direito subjetivo. Paulo de Bessa ANTUNES afirma que: “a licença ambiental, in casu não pode ser entendida

como se fosse uma simples licença de Direito Administrativo. Assim é porque as licenças de Direito Administrativo, uma vez concedidas passam à

condição de Direito adquirido para aquele que a recebeu”. Direito ambiental. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 1996, p. 88.

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garantia de qualidade de vida de quem trabalha a terra e das relações de

trabalho, não é lícito ao intérprete ignorá-las. Por último, acolhe-se como razoável a idéia de que normas de Direito

Público em determinadas situações destaquem a faculdade de uso de parte da

propriedade, sem que o Estado tenha que indenizar. Um exemplo candente da

possibilidade são as limitações ambientais postas no Código Florestal.

A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE PARA ALÉM DO ASPECTO ECONÔMICO

Deve-se destacar que a função social da propriedade não se limita ao

plano econômico. Esse aspecto tem, de certo modo, preocupado ou

monopolizado as atenções, principalmente em decorrência de um modelo de

Reforma Agrária.68 O elemento produtividade é o fator que implica a

possibilidade de o Estado intervir desapropriando o bem do sujeito de direito. O

instituto, entretanto, é uma cláusula elástica que recebe uma infinidade de

situações, deve-se proceder a sua vinculação com a dignidade do homem e com

a solidariedade.69 O acento econômico turva o instituto. A meta da função social

da propriedade não é apenas garantir níveis satisfatórios de produção, é muito

mais: pode servir para impedir a supressão da vida. O sujeito de direito encontra-

se proibido de utilizar o bem para agredir terceiros. Questões atinentes à

dignidade da pessoa humana, aos direitos da natureza, ganham um novo

68 Pela primeira vez na história, o Estado brasileiro desapropriou um imóvel rural em razão do trabalho escravo. A desapropriação da

Fazenda Flor da Mata no Estado do Pará aconteceu em 28 de novembro de 1997. Essa é a notícia de Abnor GONDIN. Trabalho Escravo

causa desapropriação. Folha de S. Paulo, 29 de novembro de 1997, p. 14. 1. Caderno.

69 COMPORTI, Marco. Ideologia e norma nel diritto di proprietà. Rivista di Diritto Civile, Padova, a. 30, n. 3, p. 330, 1984.

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espectro.70 Como medidas positivas, o proprietário passa a ter deveres que lhe

impõem um fazer.

A desapropriação para fins de Reforma Agrária ou para fins de

constituição de unidade de conservação, quando o sujeito de direito esteja

descumprindo o princípio da função social na sua vertente ambiental, amplia a

aplicação do instituto. Nesse caso, vem à baila também a questão da

indenização do dominus desapropriado. O balanço de direitos constitucionais

pode ofertar uma solução adequada.

Tomem-se, por exemplo, alguns casos hipotéticos. Um latifúndio ainda

que produtivo mas que esteja pondo em prática agressões ambientais. O imóvel,

para além de ser um instrumento de produção, é na verdade um mecanismo de

destruição. Nesse âmbito algumas ligações poderão ser feitas: a primeira seria

considerar o bem suscetível de desapropriação. A interpretação não pode ser

outra: a função social é um complexo que exige do sujeito de direito proprietário

o dever de cumprir com todas as exigências consignadas no mandamento

constitucional e, nesse ordenamento, é possível a desapropriação do bem frente

a uma agressão ambiental. É de se ponderar que a poluição ambiental, para

justificar a desapropriação, deve ser de monta que efetivamente venha a colocar

em risco a saúde pública ou a deterioração do ecossistema. Um corte de árvores

sem autorização administrativa, realizado em vegetação secundária e sem uma

importância ambiental relevante, parece não ser motivo suficiente para a

desapropriação. Cabe aqui explicitar que essa modalidade de desapropriação

imanta-se de uma coloração punitiva, decorrente de um ato anti-social do titular

do domínio.

70 Para o professor Luiz Roldão de Freitas Gomes, na propriedade urbana, regulada no artigo 182, I a III, “ Cria-se, pois, para o proprietário um dever,

uma obrigação em relação imóvel, com o caráter de obrigação propter rem, o que desloca a concepção do direito de propriedade de exclusivo feixe de

poderes sobre a coisa, concedidos a seu titular, [...] sob a ótica de uma disciplina que incide sobre o conteúdo da situação jurídica do proprietário, que se

apresenta também passiva, na medida em que se lhe impõem ônus e comandos obrigatórios visando ao interesse social da comunidade, sem

compensação em seu patrimônio”. O estatuto da propriedade perante o novo ordenamento constitucional brasileira. Revista Forense, Rio de Janeiro, v.

309, p. 30, jan./mar. 1990.

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Apanhe-se o mesmo exemplo do parágrafo anterior substituindo a

questão ambiental pela questão das relações de trabalho: muitos proprietários

praticam condutas lesivas aos interesses dos trabalhadores. Promover a

desapropriação para fins de Reforma Agrária nesses casos, é um dever do

Estado. No Brasil, pessoas são submetidas a uma vexatória exploração,

obrigadas a trabalhar porque estão devendo para os patrões. Essa distorção,

que muitas vezes conta com a inoperância do Estado, é um atentado à

dignidade humana. A imprensa nacional é pródiga em denunciar e.g., a

exploração de crianças por proprietários de usinas de carvão vegetal. Nesse

caso, o fundo agrário é o instrumento através do qual o sujeito de direito pratica

atos atentatórios à dignidade humana. A função social da propriedade é um

instrumento teórico-jurídico que pode ser utilizado para combater essa prática

teratológica. Nesses casos, é necessário que se pratique a desapropriação para

fins de Reforma Agrária e que o titular do domínio desapropriado não receba o

“prêmio” de uma indenização conforme o mercado. Essa última possibilidade é

vital para uma concretização da função social como um instrumento punitivo de

condutas antijurídicas e anti-sociais.

Aflora nesses exemplos que a função social da propriedade pode ser

utilizada para além do aspecto econômico a gerar, assim, a transformação do

direito de propriedade. Nessa direção, é possível questionar se o comando

constitucional que regula a função social da propriedade conformou o seu

conteúdo como um número fechado ou aberto.

A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE COMO NUMERUS APERTUS

Retomando tema anteriormente abordado, a técnica do numerus clausus

instala-se no Código Civil para delimitar o número de direitos reais que a ordem

jurídica aceita. Assim, fica vedado por essa técnica que particulares criem figuras

de direito real. Apenas o legislador pode criar figuras que tenham essa natureza.

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Parte da doutrina entende que a função social é numerus clausus, essa é

o entendimento do jurista Tupinambá Miguel Castro do NASCIMENTO: “Os

requisitos arrolados no artigo 186 tem a natureza de exaustivos. Há um

verdadeiro numerus clausus constitucional. Nenhuma lei infraconstitucional pode

criar outros requisitos”.71 Nesse rumo doutrinário, a Constituição assimilaria a

técnica do Código Civil e restringiria a criatividade do legislador

infraconstitucional. Não obstante a respeitável posição do autor mencionado, sua

doutrina merece reparos.

A função social da propriedade parece se inscrever entre aqueles

conceitos que a doutrina conceitua como indeterminados. E são indeterminados

pela razão de que o seu preenchimento se dá com o material que a vida, em sua

dinâmica, oferece. O componente social, por sua própria natureza, implica

movimento; característica esta incompatível com uma ordem estática. O

numerus clausus impõe-se aos jurisdicionados em face da opção sistêmica de

produzir um limite em matéria de direitos reais, em que se coaduna uma

percepção de ordem pública, por um lado, e uma opção econômica, por outro. E,

mesmo assim, a jurisprudência tem recebido algumas alterações que se

processam no âmbito da realidade; é o caso da promessa de compra e venda de

imóveis, objeto de loteamento, sem que o contrato tenha sido registrado à

margem do título em Cartório de Registros Imobiliários. Se nos direitos reais

admitem-se extrapolações (com muita dificuldade é certo), o que não dizer de

novos requisitos para a função social da propriedade privada imobiliária rural?

A doutrina do numerus clausus não se amolda aos valores e princípios

privilegiados pela Constituição. O elenco de requisitos para o cumprimento da

função social da propriedade posto na Constituição é apenas exemplificativo e

não taxativo. Serve de parâmetro para os processos de decidibilidade de

conflitos e de produção normativa.

71 Nascimento, Tupinambá Miguel Castro do. Comentários à Constituição Federal : ordem econômica e financeira. Porto Alegre :

Livraria do advogado, 1997, p. 182.

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Nesse ângulo, a função social da propriedade privada permite ao juiz

uma apreciação crítica de conflitos e uma exegética direcionada por soluções

que se fundamentam mais para o problema do que para um silogismo hermético.

Essa postura harmoniza-se com o fato de a Constituição ter considerado a

função social da propriedade como um direito fundamental.

FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE IMOBILIÁRIA COMO DIREITO FUNDAMENTAL

De início destaca-se que a função social como direito fundamental não se

harmoniza com a conceituação de direito subjetivo privado de alguém poder

exigir de outrem uma prestação ou omissão. É um princípio informador, ou seja,

que condiciona o direito subjetivo.

A função social da propriedade imobiliária tornou-se um direito

fundamental e, como tal, um princípio que não pode ser eliminado sem a quebra

da ordem jurídica. Nesse sentido, é preciso entrelaçar o conceito com todos os

valores positivados pelo Estado brasileiro. O princípio deve ser conjugado com o

artigo 1º da Constituição,72 que estabelece os fundamentos do Estado. A

cidadania e a dignidade da pessoa humana passam a interferir no conteúdo do

conceito e propiciam a sua expansão teórica e prática.

O exercício da cidadania é a movimentação do homem no espaço

privado e público. Na sociedade capitalista exige-se um mínimo de patrimônio

para que isso possa ocorrer. Ao vincular a função social da propriedade

imobiliária à cidadania, o Estado está a reconhecer que a manifestação política

das pessoas depende de patrimônio. Num Estado capitalista em que falta esse

mínimo patrimonial, o homem passa a mercantilizar alguns direitos inerentes à

cidadania. Não se tem a ilusão de que apenas a inexistência de patrimônio

macula esses direitos, questões subjetivas ingressam nessa seara e turvam a

72 TEPEDINO, Gustavo. A nova propriedade, o seu conteúdo mínimo, entre o Código Civil a Legislação Ordinária e a Constituição.

Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 306, p. 75, 1989.

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análise. Educação, tendências individuais, ou seja, um complexo de fatores pode

intervir para a deflagração dessa corrupção. Entretanto, parece que um dos

fatores fundamentais, no Brasil, e que está a engendrar tal anomalia, guarda

estreita vinculação com o fato de a pessoa não ter um patrimônio suficiente que

lhe permita um mínimo de autonomia política. A amarração que ainda se faz do

conceito (função social da propriedade imobiliária) à dignidade da pessoa

humana encarta-se num plexo de ligações nervais. A propriedade privada

imobiliária e, em relevo, a pequena propriedade são institutos fundamentais para

que as pessoas possam ter uma vida digna. A pequena propriedade imobiliária,

como fonte produtora da vida; bem de produção capaz de permitir que a pessoa

possa ter uma vida privada e uma vida pública.

O conteúdo da função social da propriedade imobiliária encontra-se,

também conectado com o artigo 3º, da Constituição Federal, que determina a

erradicação da pobreza e da marginalidade, bem como das desigualdades

sociais e regionais.73

A redução das desigualdades parece ser o escopo do Estado

Democrático de Direito. A fórmula política encontra-se, pois, vinculada à

efetividade dos Direitos Fundamentais. É necessário ultrapassar a idéia de que

na Constituição deu-se apenas o reconhecimento da igualdade formal. É preciso

esclarecer que não se busca a utópica meta de, apenas através da lei, realizar a

igualdade patrimonial, pois para que isso ocorra é necessário muito mais e

passa e.g., por um sistema econômico menos concentrador e um Estado atuante

e com efetivas políticas públicas de previdência, saúde, segurança, etc... Na

verdade, o que pode ser feito é um deslocamento do rumo de interpretações

clássicas da apropriação privada, garantindo ao homem recursos suficientes

para que a sua vida seja digna, para tanto, buscando um máximo de efetividade

dos direitos.

73 Idem, loc. cit.

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Sendo pois um direito fundamental, o conceito função social da

propriedade passa a ser um excelente instrumento do legislador (tanto aquele

que produz normativa no processo legislativo formal e material, quanto o que

através da interpretação e aplicação in concreto, corporifica e constrói o direito),

para a transformação de uma realidade de tristes cores. O conteúdo da função

social74 da propriedade imobiliária passa a ser, no Estado brasileiro, preenchido

e predeterminado pela dignidade da pessoa humana e pela erradicação da

pobreza.75 O conceito de direito de propriedade é único, incide porém sobre bens

diversos, que possuem fins e usos diferentes. A presente dissertação

circunscreve-se a imóveis rurais e urbanos. Nessa perspectiva, se as regras

variam de acordo com a qualidade do imóvel, é razoável argüir para esses bens

diferentes funções sociais. Para atender essa via, analisar-se-á a função social

da propriedade urbana e rural.

A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE IMOBILIÁRIA RURAL

O elemento função exige que se olhe a propriedade privada não apenas

no seu aspecto estático, mas também na sua vertente dinâmica. A Constituição

Federal de 1988 determinou um plexo de requisitos para que se cumpra a

função social. A propriedade deve permitir o sustento de seus titulares e de

quem nela trabalha, o uso tem de ser racional e adequado é preciso ainda

respeitar o equilíbrio ambiental e as leis trabalhistas.

O cumprimento desses requisitos deve ser realizado simultaneamente,

não sendo permitido que se cumpram uns e outros não. A conseqüência do não

cumprimento de todas as exigências implica a possibilidade de o Estado

desapropriar o bem por interesse social para fins de Reforma Agrária, impor uma

74 A função social da propriedade: “encerra consigo, inequivocamente, um conteúdo. Conteúdo este que o próprio texto constitucional

não quis definir de maneira estática, é uma idéia evolutiva; ela muda conforme muda a estruturação da própria sociedade”. BASTOS,

Celso Seixas Ribeiro. A função social da propriedade. Revista da Procuradoria do Estado de São Paulo, n. 25/26, p. 75, 1986.

75 TEPEDINO, Gustavo, ibidem, p. 76.

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tributação progressiva, transformar o bem em unidade de conservação,

determinar a co-gestão das empresas rurais, e outros tantos deveres que a

dinâmica social exigir.

A função social da propriedade ultrapassa, portanto, as limitações

negativas. O proprietário passa a ter deveres jurídicos para com a comunidade76

deve lançar mão de condutas positivas para atender aos requisitos da função

social. Assim, o legislador encontra-se autorizado com fundamento no dispositivo

constitucional da função social a promover limitações com o alcance de

obrigação de fazer. O termo obrigação não é utilizado em seu sentido técnico

estrito, qual seja a de uma relação de crédito, embora guarde, é certo, uma

proximidade com ele, isto não quer dizer também que esteja destituído de

qualquer imperatividade. A expressão mais adequada talvez seja dever jurídico.

Um exemplo prático dessa possibilidade refere-se ao uso adequado da

propriedade.

Com fundamento no requisito do uso adequado da propriedade

imobiliária rural, é possível que o Estado possa fazer zoneamentos rurais e

assim precisar a vocação agrária de determinada região. Essa limitação ao uso

da propriedade pode, inclusive, se direcionar para uma planificação técnica da

agricultura e pecuária de algumas regiões e.g., impedir que nelas se cultivem

algumas espécies de plantas ou se crie certo tipo de animal, na razão direta de

que o uso racional e adequado apontado no zoneamento indica outros usos

específicos.

O proprietário poderá, assim, se ver na impossibilidade jurídica de

usufruir como bem pretender da unidade de produção agrária. Essa

possibilidade do zoneamento constitui uma revolução, tendo-se em mente os

parâmetros da propriedade clássica, pelos quais o titular podia usar, gozar e

principalmente dispor da coisa segundo o seu interesse.

76 RUSSOMANO, Rosah. Função social da propriedade. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 75, p. 265, 1985.

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O zoneamento insere-se numa perfeita adequação com os valores

consignados na Constituição e poderá auxiliar na correção do histórico problema

do Brasil, que é a monocultura. Mediante o zoneamento poder-se-á estabelecer

regiões onde deverão ser plantadas culturas de primeira necessidade, que

atenda as exigências alimentares básicas do povo brasileiro. Nessa linha ter-se-

iam um desdobramento e uma ampliação do conteúdo da função social da

propriedade posto na Constituição. Essa possibilidade está a demonstrar que a

função social não é um numerus clausus.

No âmbito do uso racional da propriedade um outro aspecto parece

emergir com relevância: o poder de dispor dos produtos oriundos do bem. Não

parece razoável que o proprietário de bens de extrema utilidade, como é o caso

dos produtos agrícolas, possa destruir esses bens, quando e.g., o preço não

alcançar o que ele esperava. Assim, a destruição de bens móveis de consumo

da população não se insere entre os poderes do proprietário, pois ao praticar a

destruição estará afrontando diretamente o uso racional e adequado da

propriedade. Nesse sentido, o Estado pode intervir e impedir que o proprietário

destrua tais bens. Essa medida parece correta principalmente num país

deficitário de calorias onde crianças continuam a morrer por subnutrição,

principalmente no Nordeste Brasileiro.77

Orlando GOMES afirma que apenas os bens de produção constituem o

pressuposto de fato da função social.78 A identificação dos bens de produção na

sociedade capitalista atual é tormentosa, pois, muitos bens, podem, em uma

primeira serem considerados bens de produção e na seguinte bens de consumo.

A definição a priori do que seja bem de produção, portanto, parece não

poder ser realizada em todos os casos. Manufaturas, produtos agrícolas,

destinados à comercialização, enquanto nessa situação enquadram-se na

77 F. Edson Teófilo Filho, afirma que: “O marketing que se faz da ‘supersafra’, repetindo governos anteriores, encobre o fato objetivo de

que 55 milhões de brasileiros passam fome e essa situação não tem perspectiva de mudança, haja visto, a redução do salário real nos

últimos dois anos”. A organização da produção nos assentamentos : subordinação ou autogestão. In: ROMEIRO, Adhemar et. al. [Org.].

Reforma Agrária : produção, emprego e renda: o relatório da FAO em debate. Petrópolis : Vozes, 1994, p. 102.

78 GOMES, Orlando. A função social da propriedade. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p. 426, 1989.

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categoria de bens de produção, pois a “função” imediata é a de gerar lucro:

tornam-se bens de consumo quando prontos para tal. Mas enquanto

permanecem nas gôndolas dos supermercados ou nas propriedades rurais,

esses produtos são bens de produção de riquezas, essa é, por assim dizer, a

sua natureza tópica. Considerando tal definição é possível, então, justificar a

impossibilidade de tais bens serem destruídos pelo fato de serem bens de

consumo e sobre estes não incidir a função social da propriedade. Bens de

consumo conforme Orlando GOMES não tem uma função social, prestam-se a

atender necessidades individuais. Esta característica, entretanto, não pode

obscurecer e turvar o entendimento, pois, é de se exigir, em certos casos, para

essa espécie de bens o atendimento aos princípios constitucionais da função

social da propriedade. Ressaltamos que professor rejeita e.g., a idéia de que o

titular possa ao seu talante destruir e.g., bens de primeira necessidade:

“Permitido não deve ser que destrua, por exemplo, gêneros de primeira

necessidade destinado ao consumo público, se com esse ato se coloca contra o

interesse coletivo”.79

No rumo das idéias até aqui lançadas, parece que não é possível a

redução da função social a bens de produção. “O princípio da função social tem

relevância em todas as modalidades de direitos reais [...]. O problema coloca-se

com maior acuidade no que toca aos bens de consumo. Mas a disciplina da

requisição demonstra só por si que também os direitos sobre bens de consumo

são limitados pela função social”.80 Ainda no campo dos exemplos e com fundamento no uso racional e

adequado do bem, encontra-se o dever de recompor as reservas florestais de

preservação permanente e as reservas legais da propriedade.81 O proprietário

79 Idem. Introdução ao direito civil. 7. ed. Rio de Janeiro : Forense, 1983, p. 68.

80 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil : Reais. 5. ed. Coimbra : Coimbra, 1993, p. 206-207.

81 As reservas florestais de preservação permanente não se confundem com as reservas legais, porque aquelas são reservas que têm

como função propiciar a defesa ambiental de determinados sítios, morros, mangues, rios. A reserva legal insere-se na perspectiva de

dotar o bem de uma reserva florestal que servirá para atender as necessidades de produtos florestais das propriedades. Percebe-se

assim que as reservas florestais de preservação permanente são insuscetíveis de exploração econômica. O que não ocorre com as

reservas legais, suscetíveis de exploração desde que secundadas de plano de manejo sustentado que garanta a sua permanência.

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poderá, assim, se ver obrigado a recompor as florestas em determinadas regiões

para atender ao uso racional da propriedade.82

Para concluir, percebe-se um entrelaçamento entre o plano estrutural e estático,

consignado no direito subjetivo, e a função social a que o uso do bem deve

obedecer. A coordenação e limites recíprocos possibilitam uma transformação

do modelo clássico da propriedade privada dos bens imobiliários rurais.

FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA

A função social da propriedade, como o momento dinâmico, deve ser

posta para atender aos interesses da sociedade, sendo portanto um dever que o

titular da propriedade privada assume por estar na condição de sujeito do

dominus. Assim, alinhava-se a idéia de que a propriedade deverá atender

finalidades para além do interesse individual. Desse modo, em determinadas

circunstâncias, os interesses podem se contrapor. Nada obstante, a função

social da propriedade pode perfeitamente harmonizar-se com o interesse privado

do sujeito de direito proprietário. A função social da propriedade urbana inscreve-

se, assim, na leitura que vem sendo feita sobre o direito público e o privado que

estabelecem regras de coordenação e limites, sem a supressão de nenhum de

seus aspectos. A Constituição Federal de 1988 inova e insere todo um capítulo sobre a

política urbana. E aí destaca-se a função social da propriedade urbana. Antes de

tentar estabelecer os seus contornos gerais, faz-se importante uma breve

digressão acerca dos usos e abusos que cercam o prédio urbano.

O prédio urbano pode receber múltiplos usos, porém, nele, tanto quanto

no rural, o potencial para especulação e reserva de valor é acentuado. A

especulação imobiliária lança para a periferia e na marginalidade da cidade

82 A lei nº 8.171, de 17 de janeiro de 1991, que dispõe sobre a política agrícola estabelece no artigo 99, a obrigação de recompor a

reserva florestal. Esse dispositivo é interessante porque determina ao proprietário de um imóvel degradado, a obrigação de recompor

essa espécie de florestas. Uma espécie de obrigação propter rem. O sujeito passivo da obrigação é determinado pela sua situação

jurídica enquanto titular do direito de propriedade.

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milhões de brasileiros. Esse é um fato social que se apresenta nas cidades

brasileiras. A par dessa distorção, no mundo urbano são criados centros de

civilidade, onde o estado parece funcionar com um certo grau de eficiência. Essa

situação, além de lançar muitos no mundo periférico do sistema estatal, provoca

um subproduto. Os integrantes dos centros de civilidade, embora possam

desfrutar da vida pública e de adequadas instalações privadas para desenvolver

a sua personalidade, encontram-se como que sitiados. Os efeitos da

concentração de riquezas derramam-se por dentro da cidade e nela inoculam os

corrosivos e explosivos produtos da exclusão, por exemplo, a violência. Tem-se,

então, um paradoxo: as ruas se tornam, nos grandes centros, ambientes que

provocam o medo. Em contraponto, criam-se locais onde o mundo não penetra.

Espaços onde os que têm, podem em segurança, exercer suas atividades, sejam

elas de lazer ou de profissão.

Esses espaços privados, imunes à penetração dos excluídos, trazem

também a violência, o que se parece muito com parte do direito positivo,

orientado cada vez mais para atender a interesses localizados. Muitas leis são

lançadas no mercado consumidor de normas jurídicas para satisfazer os

consumidores de segurança e, tais quais os shopping centers e casas de lazer,

muitas de acesso a um público restrito.

O mundo urbano transformado em diversos microcosmos orienta-se em

uma infinidade de direções, mas com uma decisiva predileção para o sujeito de

direito proprietário. Nesse âmbito ocorre a revolta dos fatos contra o direito e o

Brasil depara-se com parte da população em levante. Pessoas se insurgem

contra o direito estatal e em especial contra o Estatuto da dominialidade privada

sobre bens urbanos e rurais.

A insurgência contra o Estatuto da Dominialidade Privada sobre bens

imobiliários deve ser analisada com um certo cuidado. Parece que a insurreição

das populações, manifestada através de invasões de bens privados e públicos,

não é uma demonstração de que o povo queira abolir a propriedade privada.

Tem mais o sentido de lutar por um direito fundamental que é o direito a um

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lugar onde possa habitar e ter uma vida privada minimamente condizente com a

condição humana. Assim, as invasões se dão contra o uso especulativo da

propriedade urbana. O professor Joaquim de Arruda FALCÃO, em trabalho

realizado na cidade do Recife, detecta que:

Um segundo aspecto da estratégia do invasor é que este é contra um

determinado direito de propriedade e a favor de outro; seu ideário não

corresponde à versão ingênua, que a imprensa às vezes fornece, de

alguém disposto a lutar pela abolição da propriedade privada, do regime

etc.. Isso são conotações muito ideológicas e limitadas, que fazem a

cabeça do Judiciário, mas que não constituem a realidade. A realidade é

outra, é um direito de moradia que se sobrepõem a um direito de

propriedade especulativa.83

O Estatuto da dominialidade privada encartado no Código Civil, em suas

linhas gerais, privilegia um sujeito que se escora em estatutos que estimulam o

lado estático da propriedade. O titular da propriedade privada imobiliária poucas

preocupações tem em manter a sua propriedade em desuso, pois não lhe pesa

nenhuma sanção.

Deslocando o rumo dessa situação, a Constituição Brasileira de 1988

impõem novas coordenadas jurídicas. A função social da propriedade urbana

ganha parâmetros que ampliam em muito a sua textura jurídica. Num plano

diferente da função social da propriedade imobiliária rural que,

desnecessariamente, elevou a produtividade como o centro desse conceito: a

função social da propriedade urbana estabeleceu contornos mais homogêneos

entre produtividade e o direito fundamental de habitação.

A função social da propriedade imobiliária urbana poderá ser delineada

em detalhes nos planos diretores dos Municípios.84 Linhas básicas, entretanto,

são traçadas na Constituição Federal. Em relevo, destacam-se o parcelamento e

83 FALCÃO, Joaquim de Arruda. Invasões urbanas, conflitos de direito de propriedade. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 300, p. 44,

1987.

84 “A fixação do conteúdo do direito de propriedade urbana, isto é, pode produzir-se ‘ope legis’ ou pelos planos, e normas edilícias”.

COLLADO, Pedro Escribano. Apud SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo : Malheiros, 1995, p. 68.

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a edificação compulsória. Tanto um como a outra oferecem a medida que

norteou o legislador constitucional. São instrumentos que têm por meta atacar a

especulação e a concentração de espaços urbanos e assim privilegiar o homem

no seu direito fundamental de habitação.

O parcelamento e a edificação compulsória por certo não são os únicos

instrumentos que fazem parte de uma política de desenvolvimento urbano. Eles

funcionam como parâmetros que não poderão ser ignorados nos planos

diretores dos municípios. Nesse rumo, o projeto de lei do Senado Federal nº

5.788 de 1990 (Estatuto da Cidade), prevê criar inúmeros instrumentos de

política de desenvolvimento urbano. Resumidamente no artigo 16 dispõem dos

seguintes instrumentos: Fiscais — impostos progressivos e regressivos, taxas e

tarifas diferenciadas, incentivos e benefícios fiscais — ; Financeiros e Econô-

micos — fundos especiais, tarifas diversificadas de serviços públicos, co-

responsabilização dos agentes econômicos — ; Jurídicos — edificações compul-

sórias, obrigação de parcelamento e remembramento, desapropriação, servidão

administrativa, limitação administrativa, tombamento, direito real de concessão

de uso, direito de preempção, direito de superfície, usucapião especial — ;

Administrativos — reservas de áreas para utilização pública, regularização

fundiária; licença para construir apoiada em código de obras e edificações,

autorização para parcelamento, desmembramento ou remembramento do solo

para fins urbanos, em observância ao Plano Diretor — ; Políticos —

planejamento urbano, que deverá conter o Plano Diretor, participação popular.

Um amplo espectro jurídico se vê no Estatuto da Cidade, aumentando em

muito as perspectivas jurídicas do conceito função social da propriedade privada

imobiliária urbana.

Gravado no princípio da função social, a usucapião moradia, prevista na

Constituição, também pode se transformar em efetivo instrumento de

modificação da propriedade privada clássica. Destaque-se a usucapião coletiva

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 56

em áreas urbanas com mais de 250 metros, ocupadas por populações de baixa

renda, previsto no artigo 34 do projeto do Estatuto da Cidade.85

A usucapião coletivo pode redesenhar o mapa das titularidades dos

grandes centros, pois conforme o professor Joaquim de Arruda FALCÃO, “a

maioria da população brasileira tem um direito de propriedade que não tem nada

a ver com o que o Código diz, que é o direito de propriedade”.86 E se a

titularidade da imensa maioria da população “não tem nada a ver com o que o

Código diz” é porque este encontra-se superado frente aos fatos. A dinâmica

social impôs um novo arranjo em matéria de ocupação do espaço urbano. As

pessoas edificaram suas habitações e não têm como se inserir no direito

clássico. Essa situação as coloca em posição de extrema fragilidade frente a

sujeitos especuladores. O direito do Código não atende a essas pessoas porque

não as reconhece como sujeitos de direito.

CONCLUSÃO

O Direito é plural, conceitual, instrumental, social, liberal, democrático,

injusto, justo, e outros tantos adjetivos que se queira dar. Nada obstante a

tentativa de qualificá-lo, permanecem algumas questões em aberto. Porque para

além de explicações filosóficas, sociológicas, com toda a tecnicidade contida nas

normas jurídicas não se soluciona problemas cruciais como a habitação, direito a

uma vida digna, etc (?)

A excessiva e cega prisão a conceitos jurídicos herméticos pode ser uma

das explicações. Outras tantas pode-se colar no texto, juízes ausentes dos

problemas sociais, que se afastaram das academias, que se afastaram do povo.

85 Nelson Saule Júnior traça algumas críticas aos projetos de Lei n. 2191/89 e n. 5.788/90 que visam regulamentar os artigos 182 e 183 da

Constituição. Afirma que “O usucapião urbano não foi regulamentado da maneira devida para a sua aplicação, como por exemplo a falta de previsão do

procedimento processual a ser adotado para a promoção da ação judicial, a falta de previsão do usucapião coletivo, de permitir a restrição das áreas

sujeitas ao usucapião pelo plano diretor”. Novas perspectivas do direito urbanístico brasileiro : Ordenamento constitucional da política urbana :

Aplicação e eficácia do plano diretor. Porto Alegre : S. Fabris, 1997, p. 180.

86 Falcão, op. cit., p. 40.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 57

Advogados preocupados exclusivamente com o seu entorno e com os seus

honorários. Enfim um rosário de lamentações pode aqui ser trançado. O que

moveu a pena a materializar estas linhas foi uma certa sensação de Dejà vu em

relação a textos constitucionais ou não, que são restringidos em uma leitura

conceitual limitante.

A propalada constitucionalização do direito privado pode ser apenas um

café requentado. E isto tornar-se-á inevitável se o apego a conceitos fechados

continuarem a orientar a Jurisprudência.

A função social da propriedade recebe críticas das mais diversas : para a

direita trata-se de uma socialização do direito de propriedade, para a esquerda

apenas um amortecimento das contradições sociais. Correu-se aqui um risco.

Pois a vinculação de um conceito polêmico e controverso como é a da obrigação

propter rem, a um outro ainda mais polêmico como é o caso da função social da

propriedade não é comum.

A função social da propriedade para alguns é um conceito destituído de

conteúdo, mesmo que isto fosse correto, o que efetivamente não é, a técnica das

obrigações propter rem oferece esta carga de conteúdo que talvez dê um novo

torque ao conceito. Não se procurou nesta monografia o desfilar de novidades a

título de tese. Buscou-se um olhar quiçá inovador de conceitos jurídicos

ancestrais. Tudo dentro de uma repersonalização do Direito e por conseqüência

do direito obrigacional e real.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 62

DIREITO CIVIL EM TRANSFORMAÇÃO: BREVE LEITURA A PARTIR DA OBRA DE MAX WEBER

FLORI ANTONIO TASCA

Professor Titular na Faculdade Mater Dei e Professor Adjunto na Universidade Estadual

de Ponta Grossa. Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná.

Advogado no Paraná.

RESUMO: O artigo aborda o Direito Civil contemporâneo a partir da obra de Max Weber, analisando os "tipos ideais de direito" imaginados pelo eminente sociólogo. O autor trata das transformações sofridas pelo Direito Civil nas últimas décadas, que se manifestam por fenômenos como a "descodificação", "constitucionalização" e a "repersonalização" do direito. Observa o autor que apesar da evolução do pensamento jurídico, a realidade social retrata uma situação de injustiça e exclusão, que se afasta dos princípios jurídicos de proteção das pessoas enunciados pelo "Novo Direito Civil". ABSTRACT: This article approaches the contemporary Civil Law from the work of Max Weber, analyzing the "ideal types of right" imagined by the eminent sociologist. The author deals with the changings undergone by the Civil Law in the last decades, which are revealed through phenomena such as the "decodification", "constitutionalization" and the "repersonalization" of the right. The author observes that despite the legal thought evolution, the social reality portrays a situation of injustice and exclusion, which moves away from the legal principles of protection of the people enunciated by the "new Civil Law".

INTRODUÇÃO: NOTAS DA SOCIOLOGIA JURÍDICA EM MAX WEBER

Uma das facetas da riqueza da obra de Max Weber é revelada pela

profunda análise das estruturas sociais, em seus múltiplos aspectos: culturais,

políticos, éticos, jurídicos ou econômicos, circunstâncias que ensejam a reflexão,

contribuindo para uma leitura crítica da sociedade atual.

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A sólida formação cultural de Weber 87 certamente foi decisiva para sua

visão sociológica da existência humana, sendo a sociologia encarada como

ciência compreensiva, no sentido de que "pretende compreender

interpretativamente a ação social e assim explicá-la causalmente em seu curso e

em seus efeitos". 88

Ao buscar a compreensão da realidade social nas raízes de suas

diversas manifestações, o pensamento weberiano reconhece a impossibilidade

de proceder-se uma "análise puramente 'objetiva' da vida cultural" ou dos

"fenômenos sociais". 89

Os imperativos éticos, culturais, religiosos, jurídicos ou econômicos são

fundamentais para uma compreensão holística da sociedade, notadamente hoje,

revelando-se atual e relevante o pensamento weberiano para o estudo das

ciências sociais.

87 "Weber nasceu em ambiente privilegiado intelectual e materialmente. Sua mãe, descendente de uma família de industriais têxteis, culta, piedosa,

humanista e defensora de uma religiosidade pétrea. O pai, deputado no Parlamento Federal, o Reichstag de Berlim, político liberal conservador, opunha-

se, com o seu pragmatismo, ao idealismo da esposa ... O ambiente erudito e intelectual do lar contribuiu para sua precocidade. Aos treze anos de idade

Weber já escrevia ensaios históricos penetrantes. Em 1882, ingressou na universidade de Heidelberg como estudante de direito, embora tenha cursado

inúmeras outras matérias, como economia, filosofia, história." ARGÜELLO, Katie Silene Cáceres. O ícaro da modernidade: direito e política em Max

Weber. São Paulo : Acadêmica, 1997, p. 18-29.

88 COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. Max Weber e a História. Tradução de Eduardo Biavati Pereira. São Paulo : Brasiliense, 1995, p. 99.

"A sociologia deve ser 'compreensiva' porque seu objeto é a ação humana, e porque esta possui uma característica à qual os

procedimentos das ciências da natureza não podem fazer justiça : a ação humana é dotada de sentido. Esta constatação, para Max

Weber, não é motivo para abandonar o projeto de explicação racional da ciência em geral. Contra aqueles que extraem argumento dessa

especificidade do objeto das ciências humanas para lhes subtrair o ideal de objetividade racional das ciências exatas, Weber replica que

o caráter significativo da ação autoriza uma inteligibilidade racional ainda maior. 'A ação individual, do fato de que ela pode ser

interpretada segundo seu sentido (seiner sinnvollen Deutbarkeit wegen), é principal e especificamente menos 'irracional' que o processo

natural individual". Idem, p. 100-101.

89 WEBER, Max. A objetividade do conhecimento nas ciências sociais. In: Max Weber - Sociologia. Organização Gabriel Cohn.

Consultoria Florestan Fernandes. São Paulo: Editora Ática, 1986. Traduzido de "Die 'Objektivität' Sozialpolitischer Erkenntniss".

Gesammelte Aufätze zur Wissenschaftlehre, 4ª edição. Organização e Revisão Johannes Winkelmann. (Tübingen, 1973).

"Não existe qualquer análise científica puramente 'objetiva' da vida cultural, ou - o que pode significar algo mais limitado, mas

seguramente não essencialmente diverso, para os nossos propósitos - dos 'fenômenos sociais', que seja independente de determinadas

perspectivas especiais e parciais, graças às quais estas manifestações possam ser, explícita ou implicitamente, consciente ou

inconscientemente, selecionadas, analisadas e organizadas na exposição, enquanto objeto de pesquisa. Deve-se isso ao caráter

particular do alvo do conhecimento de qualquer trabalho das ciências sociais que se proponha ir além de um estudo meramente formal

das normas - legais ou convencionais - da convivência social. A ciência social que nós pretendemos praticar é uma ciência da realidade.

Procuramos compreender a realidade da vida que nos rodeia e na qual nos encontramos situados naquilo que tem de específico; por um

lado, as conexões e a significação cultural das suas diversas manifestações na sua configuração atual e, por outro lado, as causas pelas

quais se desenvolveu historicamente assim e não de outro modo”. Idem, p. 87-88.

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Com ampla formação no campo do direito, Weber constrói as bases de

uma sociologia jurídica cuja função é "compreender o comportamento

significativo dos membros de um grupamento quanto às leis em vigor e

determinar o sentido da crença em sua validade ou na ordem que elas

estabelecerem", 90 como explica Julien Freund.

Para estudar o direito, Weber lança mão do conceito que é marcante em

sua obra, a idéia de "tipo ideal", que, no dizer de Catherine Colliot-Thélène, é a

"noção forjada por Weber para especificar o aspecto construtivo a toda

elaboração conceitual". 91

90 FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber, 3ª edição. Tradução de Luís Claudio de Castro e Costa. Rio de Janeiro : Forense

Universitária, 1980, p. 178. "Procura, pois, apreender até que ponto as regras de direito são observadas, e como o indivíduos orientam

de acordo com elas sua conduta. Para a dogmática jurídica uma norma é válida desde que seja estabelecida ou figure em um código;

para a sociologia trata-se de controlar sua importância no curso da atividade social dos indivíduos, pois não é sempre que uma lei

estabelecida é respeitada. Acontece, com efeito, muitas vezes, que a massa se orienta inconscientemente, por hábito, segundo as

prescrições legais, sem Ter nenhum conhecimento de sua vigência ou de seu texto, por vezes ignorando mesmo sua existência." Idem,

p. 178-179.

91 COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. Obra citada, p. 158.

Pode-se entender o significado da categoria do "tipo ideal", quando escreve Weber : "As 'idéias' que dominaram os homens de uma

época, isto é, as que neles atuaram de forma difusa, só poderão ser compreendidas, sempre que formem um quadro do pensamento

complicado, com rigor conceitual, sob a forma de um tipo ideal, pois empiricamente elas habitam as mentes de uma quantidade

indeterminada e mutável de indivíduos, nos quais estavam expostas aos mais diversos matizes, segundo a forma e o conteúdo, a clareza

e o sentido. Os elementos da vida espiritual dos diversos indivíduos em determinada época na Idade Média, por exemplo, que

poderíamos designar pelo termo de 'cristianismo' dos indivíduos em questão, constituiriam , caso fôssemos capazes de expô-los por

completo, um caos de relações intelectuais e de sentimentos de todos os tipos, infinitamente diferenciados e extremamente

contraditórios, se bem que a Igreja da Idade Média tenha sido capaz de impor, em elevado grau, a unidade da fé e dos costumes. Posta

a questão do que correspondia, no meio daquele caos, ao 'cristianismo medieval', com o qual temos de trabalhar continuamente como se

se tratasse de um conceito já estabelecido, ou o problema de saber em que consistia o elemento 'cristão' que encontramos nas

instituições da Idade Média, logo descobriremos que utilizamos constantemente um quadro mental puro por nós criado. Trata-se de uma

combinação de artigo da fé, de normas éticas e de direito canônico, de máximas para o comportamento na vida, e de inúmeras relações

particulares, que nós combinamos numa só 'idéia'; numa síntese que seríamos incapazes de estabelecer de modo não contraditório sem

recorrer a conceitos típico-ideais." WEBER, Max. A objetividade do conhecimento nas ciências sociais. In: Max Weber - Sociologia,

citado, p. 111-112.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 65

A VISÃO WEBERIANA DO DIREITO A PARTIR DOS TIPOS IDEAIS

Julien Freund esclarece que a distinção entre direito formal e direito

material na obra weberiana é importante na medida em que condiciona a

racionalização do direito. 92

A dicotomia direito racional/irracional 93 também é fundamental para a

compreensão dos tipos ideais de direito em Weber, que são assim

apresentados, na síntese de Julien Freund:

"Os comentaristas de WEBER distinguem em geral quatro tipos ideais do

direito: 1º, o direito irracional e material: quando o legislador e o juiz se

fundamentam em puros valores emocionais, fora de qualquer referência a uma

norma, para consultarem apenas a seus próprios sentimentos. Como os demais

tipos, este não é encontrado em seu estado puro, embora a justiça feita por um

déspota possa aproximar-se dessa qualidade. Da mesma forma a do Cádi, ou

juiz muçulmano que, do ato de sua autoridade, parece fazer justiça apenas em

função de seu arbítrio...; 2º, o direito irracional e formal: o legislador e o juiz se

deixam guiar por normas que escapam à razão, porque se pronunciam com base

em uma revelação ou em um oráculo (ordálios); 3º, o direito racional e material: a legislação ou o julgamento se referem a um livro sagrado (por

exemplo, o Corão), à vontade política de um conquistador ou a uma ideologia;

92 "WEBER entende por lei formal a disposição jurídica que se deixa deduzir logicamente apenas dos pressupostos de um sistema

determinado do direito. O direito formal é, pois, o conjunto do sistema do direito puro do qual todas as normas obedecem unicamente à

lógica jurídica, sem intervenção de considerações externas ao direito. O direito material, ao contrário, leva em conta os elementos

extrajurídicos e se refere no curso de seus julgamentos, aos valores políticos, éticos, econômicos ou religiosos. Daí, duas maneiras de

conceber a justiça: uma se atém exclusivamente às regras da ordem jurídica, é justo o que é estabelecido e conforme a letra ou a lógica

do sistema: a outra leva em conta a situação, as intenções dos indivíduos e as condições gerais de sua existência." FREUND, Julien.

Obra citada, p. 184.

93 Como escreve Katie Argüello: "O Direito pode ser 'racional' em diversos sentidos, conforme as diferentes direções que pode tomar o

processo de racionalização do pensamento jurídico. Weber enfatiza dois caminhos desta racionalização, que vão desde o sentido de

processo mental mais simples até ao mais complexo ... o recurso a normas gerais e abstratas, no processo de decisão, é característica

de uma ordem jurídica racional, que permite um grau elevado de previsão e cálculo. Contraria um sistema jurídico irracional, em que

seus operadores atuam de forma arbitrária, com base em valores afetivos, emocionais, e não em razão de uma norma geral e abstrata

que permite previsibilidade e calculabilidade. Logo, a irracionalidade ou racionalidade do sistema está referida ao grau de previsibilidade

do mesmo, embora seja fundamental não esquecer que Weber trabalha com tipos ideais, e, portanto, na realidade, mesmo em uma

ordem jurídica irracional, podem aparecer alguns aspectos de racionalidade e vice-versa." ARGÜELLO, Katie. Obra citada, p. 1.128-130.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 66

4º, o direto racional e formal: a lei e o julgamento são estabelecidos

unicamente com base em conceitos abstratos, criados pelo pensamento

jurídico". (grifou-se) 94

No dizer de Weber, "a interpretação 'racional' da lei, à base de conceitos

rigorosamente formais, opõe-se ao tipo de adjudicação ligado primordialmente

às tradições sagradas". 95

94 "Diferentemente do direito formal, que tende a sistematizar as normas jurídicas, o direito material permanece empírico, porque é, por

força das circunstâncias, casuístico. Entretanto, esses dois direitos se deixam racionalizar: um malgrado a racionalização crescente, um

e outro conservam elementos irracionais, por exemplo, o juramento. Além disso, o júri, como instituição penal, é o sinal mais patente da

irracionalidade, como o provam os ataques de que é alvo. Uns vêem nele um instrumento da luta das classes, outros uma ocasião para

que os jurados darem livro curso a seu ressentimento, a seus instintos ou a seus complexos, outros o consideram como um anacronismo

que desafia o progresso entendido como uma racionalização da esfera jurídica. Em suma, passa por uma espécie de oráculo irracional

nas mãos de profanos, inimigos de classe ou 'perversos'." FREUND, Julien. Obra citada, p. 184-185.

95 "O caso à parte, que não pode ser resolvido sem ambigüidades pela tradição, é solucionado pela 'revelação' concreta (oráculo,

profecia ou ordálio, isto é, pela justiça 'carismática') ou - e apenas esses casos nos interessam aqui - pelos juízos informais prestados em

termos de avaliações éticas concretas, em outras avaliações práticas. É a justiça do Cádi', como adequadamente a chamou R. Schmidt.

Ou os julgamentos formais são feitos não pela suposição de conceitos racionais, mas no recurso às 'analogias' e dependendo dos

'precedentes' concretos e de sua interpretação. É a 'justiça empírica'. A justiça do Cádi não conhece qualquer julgamento racional. Nem

a justiça empírica do tipo puro apresenta quaisquer razões que possam, em nosso sentido, ser chamadas de racionais. O caráter

avaliativo concreto da justiça do Cádi pode avançar até o rompimento profético com toda a tradição. A justiça empírica, por sua vez, pode

ser sublimada e racionalizada numa 'tecnologia'. Todas as formas não-burocráticas de domínio evidenciam uma coexistência peculiar :

de um lado, há uma esfera de tradicionalismo rigoroso, e, de outro, uma esfera de arbitrariedade livre e de graças senhoriais. Portanto,

as combinações e as formas de transição entre esses dois princípios são muito freqüentes; serão discutidas em outro contexto. WEBER,

Max. Ensaios de Sociologia, 3ª edição. Organização H. H. Gerth. Revisão técnica da tradução por Fernando Henrique Cardoso. Rio de

Janeiro: Zahar Editores, 1974, p. 152-252.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 67

O exemplo kafkiano da irracionalidade do direito96 contrasta com um

modelo racional e formal, como o construído pelo pensamento kelseniano,

mediante uma teoria jurídica "purificada de toda a ideologia política e de todos os

elementos de ciência natural, uma teoria jurídica consciente da sua

especificidade porque consciente da legalidade específica do seu objeto". 97

Assim, sob o enfoque racional-formal "todo direito consiste,

essencialmente, num sistema integrado de normas abstratas",98 com

96 Formado em direito pela Universidade de Praga, em 1906, o escritor tcheco Franz Kafka, ao escrever "O Processo", fornece uma idéia da

irracionalidade do direito, sendo o julgamento de Josef K. (personagem principal do livro), absolutamente alheio à racionalidade :

"Tu és Josef K. - disse o sacerdote, erguendo a mão do parapeito do púlpito e fazendo com ela um impreciso movimento.

Sim - confirmou K. ...

Estás acusado - declarou o sacerdote, com voz excessivamente baixa.

Sim - disse K. - assim mo notificaram.

Então és aquele que procuro - declarou o sacerdote - ; eu sou o capelão do cárcere.

Fiz com que viesses aqui -, disse o religioso - para falar comigo ...

Sabes que teu processo caminha mal ? - perguntou o sacerdote.

Também me parece assim - disse K. - Não me descuidei de nenhum esforço, mas até agora não consegui nenhum resultado satisfatório. É certo que

ainda não tenho redigido o primeiro escrito.

Como supões que terminará o teu processo ? perguntou o religioso.

Antes eu acreditava que terminaria bem - respondeu K. - mas agora duvido-o muito. A dizer a verdade, não sei como terminará. Sabes tu?

Não - replicou o sacerdote -; mas temo que termine mal. És considerado culpado. Provavelmente teu processo não saia da esfera dos tribunais

inferiores. Ao menos pelo momento considera-se provada a tua culpa.

Mas, não sou culpado - replicou K. - ; trata-se de um engano. Como poderia ser culpado um ser humano ? Todos somos aqui homens, tanto uns como

os outros.

É certo - disse o sacerdote -; mas precisamente assim é como costumam falar os culpados." KAFKA. Franz. O processo. Tradução de Torrieri

Guimarães. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 225-226.

97 "A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo - do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial. É teoria

geral do Direito, não interpretação de particulares normas jurídicas, nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da

interpretação. Como teoria, quer única e exclusivamente conheceu o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão; O que é e

como é o Direito ? Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e

não política do Direito. Quando designa a si própria como 'pura' teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um

conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se

possa, rigorosamente, determinar como Direito. Isto qer dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe

são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental." KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, 2ª edição. Tradução de João

Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes Editora, 1987, p. 01.

98 WEBER, Max. Os fundamentos da organização burocrática : uma construção do tipo ideal. In: Sociologia da Burocracia. Organização

Edmundo Campos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1966, p. 16. Traduzido de "The Essentials of Bureaucratic Organization: na Ideal-

Type Construction", em Robert K. Merton et. al. Reader in Bureaucracy (Glencoe, Illinois : Free Press, 1963).

"Ademais, a administração da lei consiste na aplicação dessas normas a casos particulares. O processo administrativo é a busca

racional dos interesses - especificados pelos preceitos legais e segundo princípios susceptíveis de formulação geral - aprovados pelas

ordenações da associação ou, pelo menos, não desaprovados por elas”. Idem, ibidem.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 68

características de previsibilidade dos resultados e com pretensa neutralidade

axiológica.99

Em tal contexto, válida a ponderação de Katie Argüello, no sentido de

que, "da análise da relação entre direito racional-formal e direito racional-

material, fica evidente um antagonismo profundo e insuperável, que permanece

ao longo da História, entre o formalismo lógico, cujas decisões se referem a

conceitos gerais e às necessidades humanas materiais que necessitam ser

cumpridas através do Direito".100

O paradoxo se evidencia ainda mais na sociedade hodierna, que viveu e

vive em transformação, caracterizada por um crescente processo de

desigualdade econômico-social, marcante na onda neoliberal deste momento

histórico.

Ao lado da imensa massa de excluídos, o ordenamento jurídico, em

teoria, assegura aos homens uma "igualdade formal" perante a lei, concedendo

a oportunidade de gozo de "direitos virtuais", aqueles que se encontram

cristalizados na legislação mas distantes da realidade social. [...]

DIREITO CIVIL E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

Uma das leituras possíveis da realidade social na atualidade pode ser

feita mediante o Direito Civil, que regulamenta as relações entre as pessoas,

sendo visto por alguns juristas como a própria essência do direito. 101

99 Na esclarecedora lição de Luiz Edson Fachin, "um sistema pretensamente neutro calcado em abstratas categorias jurídicas,

destinado a um ser impessoal, praticamente inatingível e com pretensões a perenidade, desenhou a formulação mais acabada do projeto

ideológico de sustentação do direito civil nos últimos dois séculos". FACHIN, Luiz Edson. Limites e possibilidades de uma nova teoria

geral do direito civil. In: Jurisprudência brasileira nº 172. Curitiba: Juruá Editora, 1994, p. 46.

100 ARGÜELLO, Katie Silene Cáceres. Obra citada, p. 133.

101 “O direito civil como essência do direito. Os direitos subjetivos constituem as células ou unidades do direito [...] Os direitos subjetivos civis formam a

essência ou a base dos direitos subjetivos em geral, pela proximidade ou mais íntima vinculação ao homem. E também porque este, como ser livre e

racional, constitui a unidade moral e finalística: a família, a escola, a igreja, o sindicato, a empresa, a cidade e o Estado são instrumentos de sua

realização pessoal [...] Donde a conclusão inafastável: o direito é semelhante a um foguete; a ogiva, com a tripulação humana, é o direito civil, enquanto

a estrutura de combustível, subdividida em fases ou etapas de propulsão, são os demais ramos do direito, os quais haverão de conduzir essa carga

nobre pela grande rota da vida em sociedade.” COSTA, Dilvanir José da. O direito civil como essência do direito. In: Revista de Informação Legislativa nº

106. Brasília: Editora do Senado Federal, abril/junho 1990, p. 225-226.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 69

Pode-se entender o direito, examinando-o dentro da realidade social em

que está inserido, sendo útil a análise da variação de significados que a

expressão "Direito Civil" tem sofrido no tempo e no espaço.

Costuma-se afirmar que o Direito Civil (cujo modelo ainda hoje

prevalece), teve origem com o advento do Estado Moderno, particularmente com

o Estado Liberal, caracterizado pela ascensão da burguesia ao poder.

Classe social que surge na Europa em fins da Idade Média com o

desenvolvimento econômico, a burguesia passa gradativamente a dominar a

vida política, social e econômica a partir do final do século XVIII, vindo a

consolidar-se seu poder no curso do século XIX.

Lutava a burguesia por liberdade e igualdade, "conquistadas" pela

Revolução Francesa e "consagradas" no Código Napoleão de 1804, pedra

fundamental do Direito Civil tradicional e paradigma das codificações do século

XIX.102

Foi nesse contexto histórico, segundo esclarece Maria Celina B. M.

Tepedino,103 que o Direito Civil passou a ser identificado com o próprio Código

Civil, criado com o objetivo de ser a "Constituição do Direito Privado", resultado

das exigências metodológicas do jusracionalismo aliado à ideologia liberal

burguesa, consagrando-se como o reino da liberdade individual.

A liberdade perante o Estado, a autonomia privada, a igualdade formal, o

exercício do direito “sagrado” de propriedade em sua forma absoluta, eram

102 Autores marxistas vislumbram no Código Napoleão como "a Bíblia da classe burguesa", como se depreende do texto de Petr

Ivanovich Stucka : "Como se sabe, a grande revolução francesa começou com a triunfante proclamação da Declaração dos direitos do

homem e do cidadão. Realmente esse direito da grande revolução francesa, este direito para toda a humanidade, foi somente um direito

do cidadão como classe, um código da burguesia (o Código Civil). Esse Código de Napoleão, o grande contra-revolucionário, constitui

efetivamente a formulação sintética da própria natureza da grande revolução francesa e, podemos acrescentar, de toda revolução

burguesa. Trata-se do texto predileto, ou, se se preferir, quase da Bíblia da classe burguesa, uma vez que contém a base da verdadeira

natureza da burguesia, do seu sagrado direito de propriedade." STUCKA. Petr Ivanovich. Direito e luta de classes. Teoria geral do direito.

Tradução de Silvio Donizete Chagas. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988, p. 13.

103 Afirma a autora que há controvérsias conceituais em torno do direito civil, sendo que “a noção se explica melhor através da história

das instituições do que mediante uma discriminação racional do conteúdo [...] Entende-se tradicionalmente por direito civil aquele que se

formulou no Código Napoleão, em virtude da sistematização operada por Jean Domat.” TEPEDINO, Maria Celina B. M. A caminho de um

direito civil constitucional. In: Revista de Direito Civil nº 65. São Paulo: RT, p. 21.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 70

princípios acolhidos pelo Código Civil Francês. Assim o Direito Civil, em

oposição ao Direito Público, bem traduzia a racionalidade do Estado Liberal.

O Direito Civil era aquele que tutelava os interesses privados. O Direito

Público, por sua vez, protegia os interesses públicos, vigorando o princípio da

limitação do poder estatal ao mínimo necessário.

Ao indivíduo era concedida tutela, ampla o suficiente para de modo

isolado desenvolver toda sua potencialidade. Ao Estado era lícito intervir apenas

em função dos interesses dos próprios indivíduos.

Seguindo o modelo europeu, mais propriamente o Código Civil Francês e

o Código Civil Alemão de 1896, surge o Código Civil Brasileiro (CCB), elaborado

na virada do século (entrando em vigor em 1917), que espelhou, no plano

jurídico, a conjuntura econômica, social e política da época.

Como os demais códigos do seu tempo, o CCB materializou, num

sistema de regras jurídicas, os valores da sociedade liberal do século XIX.

Trata-se de um código essencialmente patrimonial, imobiliário e rural,

“expressão dos interesses da burguesia mercantil, mais liberal, e da burguesia

agrária, mais conservadora, do final do século XIX”, no dizer de Francisco

Amaral. 104

Todavia, a pretensão da existência de um corpo homogêneo e abstrato,

que tecnicamente deveria regular com a máxima amplitude todas as relações da

vida privada e ideologicamente atender a um determinado grupo de valores e

ideologias dominantes em sua época, sucumbiu diante das transformações

econômicas, sociais, políticas e culturais ocorridas ao longo deste século.

Sendo o direito um produto sócio-cultural, modifica-se juntamente com as

transformações ocorridas na sociedade, não podendo mais ser visto nos moldes

104 “As transformações da sociedade civil brasileira no curso deste século, co-envolta no processo da revolução industrial e tecnológica,

com a intervenção crescente do Estado no âmbito da autonomia privada, têm causado, porém, notórias modificações de natureza formal

e material do sistema de direito civil brasileiro..” AMARAL, Francisco. Racionalidade e sistema no direito civil brasileiro. Separata da

Revista O Direito, 1994, p. 79-80.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 71

do pensamento liberal burguês e do direito individualista que se consubstanciou

nos códigos dos séculos XIX e início do século XX. 105

Com o advento da 1ª Guerra Mundial, as transformações econômicas e

políticas ocorridas alteraram sensivelmente a consciência jurídica. O Estado

deixa de lado sua conduta abstencionista e passa gradativamente a intervir na

economia e na vida social, abalando radicalmente a base filosófica do estado

liberal, fulcrada na rígida separação entre a sociedade civil e o Estado. 106

As ações passam a ser dirigidas para os interesses coletivos e sociais,

determinando uma transformação estrutural no Direito Civil em razão do

enfraquecimento ou do perecimento de seus princípios, valores e construções

conceituais.

No âmago das novas tendências do Direito Privado, estão os fenômenos

da descodificação, constitucionalização e repersonalização, a oferecer uma nova

visão das instituições básicas do Direito Civil.

A DESCODIFICAÇÃO

O CCB foi editado sob o "mito da completude", segundo o qual a

codificação seria capaz de dar conta de todas as relações intersubjetivas entre

os particulares.

Entretanto, as transformações sociais, econômicas, culturais (dentre

outras) ocorridas no curso do século XX, evidenciaram o equívoco dos

105 "Durante os séculos XVIII e XIX, o pensamento individualista adotou um padrão mais distintamente econômico. Com o pleno impacto

da Revolução Industrial e o crescimento da empresa capitalista, o individualismo passou a ser mais do que um princípio filosófico ou

psicológico; converteu-se num lema político e econômico na forma de laissez-faire. Durante grande parte desse período e, na verdade,

prolongando-se até o século atual, o pressuposto de que a lei deveria interferir o menos possível na liberdade individual de ação e, em

especial, de ação econômica, sublinha quase toda a especulação jurídica e sociológica." LLOYD, Dennis. A idéia de lei. Tradução de

Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes Editora, 1985, p. 172.

106 A ideologia do social, explanada em valores de justiça social ou distributiva, são as marcas de um novo estado emergente. A tutela

dos interesses individuais dá lugar aos interesses coletivos, da pessoa humana integrada na sociedade; as concepções burguesas são

substituídas pelas concepções proletárias, fruto principalmente da industrialização e do trabalho subordinado; a ilusória igualdade formal

é substituída pela idéia de igualdade de fato.

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pressupostos apresentados pela legislador, porquanto surgiram na sociedade

conflitos de interesses que não encontravam solução no direito codificado.

A nova realidade exigia a criação de outras normas para atender as

demandas nascidas em decorrências das mudanças havidas em sociedade. 107

A descentralização jurídica gerou novas leis, cujo principal objetivo era

preencher as lacunas deixadas pela codificação.

A partir de então, verifica-se uma tendência na criação de microssistemas

jurídicos, fora do âmbito do CCB, para regulamentar relações privadas, isto é,

entre particulares.

Tal fenômeno demonstra a impossibilidade de aglutinação de todas as

normas jurídicas tendentes a regular a vida das pessoas, em um único diploma

legal, o que de certo modo, derruba o "mito da completude" pensado pelo

legislador civil.

As transformações da sociedade no correr do século XX revelaram que

as pretensões de unidade e generalidade do CCB não lograram êxito. Da

mesma forma, o direito individualista de caráter igualitário e libertador do

passado, gradativamente não mais atendia aos interesses da grande maioria da

população.

As dificuldades do Código em se adaptar a uma nova realidade sócio-

econômica que se desenvolvia no Brasil, em substituição àquela existente na

época da codificação, ocasionaram uma crescente avalanche de leis

especiais.108

Tais leis, criadoras de microssistemas, possuem autonomia, valores e

princípios próprios, muitas vezes até incompatíveis com a ótica do CCB,

acolhendo-se, pois, outros valores emergentes das transformações por que

passou e passa a sociedade brasileira neste momento de sua história.

107 Foi o que ocorreu, por exemplo, com a edição da Lei sobre Parcelamento do Solo Urbano, a Lei do Inquilinato, dentre outras

surgidas das novas demandas sociais não previstas pelo codificador de 1916.

108 O processo de produção legislativa, no início compatível com a função pretendida para o CCB, ou seja, de estatuto fundamental do

direito privado, chegou a tamanha produtividade e especialidade, que veio a deslocar o CCB da posição central do sistema de direito

privado para uma localização periférica e subsidiária.

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A CONSTITUCIONALIZAÇÃO

Na medida que as Constituições vão mudando seu caráter liberal de

mero instrumento de limitação do poder político do estado para uma

"Constituição Dirigente", com políticas reguladoras e de controle constantes na

ordem econômica e social (o que se consagrou com a Constituição Federal de

1988) a norma constitucional passa a ocupar o lugar que pertencia ao CCB,

operando a reunificação do sistema de Direito Privado.

Assim, a Constituição da República, como norma suprema do

ordenamento jurídico a garantir a unidade do sistema, impõe que seus princípios

e valores se estendam a toda normativa infraconstitucional, resultando, em

conseqüência, inaceitável a rígida contraposição Direito Público-Direito Privado.

Ocorre, assim, uma releitura de todo o sistema normativo à luz do texto

constitucional, com a “aplicação direta e efetiva dos valores e princípios da

Constituição, não apenas na relação Estado-indivíduo mas também na relação

interindividual, situada no âmbito dos modelos próprios do direito privado”.109

Isso não significa, porém, uma invasão do Direito Público na esfera

privada, e sim admitir uma estrutural transformação conceitual do Direito Civil,

capaz de absorver a nova realidade social.

Importante salientar, entretanto, que a viabilidade desta proposta sugere

alguns pressupostos de ordem metodológica, além da superação da clássica

dicotomia entre Direito Público e Direito Privado.110

Primeiramente, deve-se destacar a consciência da unidade do sistema e

da hierarquização do ordenamento jurídico, onde a constituição detém o título de

109 TEPEDINO, Maria Celina B. M. Obra citada, p. 28.

110 Max Weber se ocupa da distinção entre direito público e direito privado, consoante escreve Julien Freund : "Nos moldes da maioria

dos estudos de direito na Alemanha, ele começa por examinar o valor da oposição clássica entre direito privado e direito público, para

constatar que se esta distinção é muitas vezes cômoda, não repousa em nenhum critério jurídico ou sociológico satisfatório." FREUND.

Julien. Obra citada, p. 181-182.

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norma fundamental, determinando os valores éticos e morais a serem seguidos

pelo legislador infra-constitucional na elaboração das leis.

A seguir, necessário afastar o equivocado entendimento de que as

Constituições são meros documentos políticos a impor limites ao legislador, com

suas normas programáticas.

Ao contrário, o que se deve ter em mente é que a Constituição contém

normas jurídicas dotadas de aplicabilidade direta às relações de Direito Privado,

que por sua vez devem refletir os princípios e valores que a Constituição elege,

sob pena de não serem tutelados pelo ordenamento.

Assim, os princípios e valores constitucionais são o fundamento de

validade de todo o ordenamento jurídico, orientando a atuação do juiz, do jurista

e do legislador, que tanto ao aplicar, interpretar ou elaborar a norma legal, em

particular a de caráter privado, devem necessariamente fazê-lo em consonância

com a “vontade” da Constituição.

Por tais razões, o Direito Civil, fundado numa concepção individualista,

apegado a valores patrimoniais e comprometido com um sujeito jurídico abstrato

e ideológico, totalmente alheio à realidade, é transformado pela ótica

constitucional.

A REPERSONALIZAÇÃO

Com o gradativo abandono de seu caráter patrimonialista, o Direito Civil

passa a valorizar cada vez mais o ser humano, como destinatário último do

direito, sendo denominada "repersonalização" essa retomada dos valores

humanos como centro dos interesses jurídicos.

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No dizer de Orlando de Carvalho, a repersonalização do Direito Civil

consiste em colocar a pessoa humana e os seus direitos no topo da

regulamentação jurídica. 111

Ao escrever sobre o assunto, observa Eroulths Cortiano Junior que, “o

fenômeno da repersonalização do direito vai se impondo como uma resposta à

ordem criada e que não mais se encaixa na moldura dos fatos, e tampouco nas

esperanças do homem. O direito não está apenas centrado funcionalmente em

torno do conceito de pessoa, mas também seu sentido e sua finalidade são a

proteção da pessoa”.112

Com efeito, a partir do momento que a Constituição elegeu como o

núcleo de seu sistema os valores existenciais da pessoa humana, não isolada

mas integrada em sociedade, o Direito Civil clássico dá lugar a um novo Direito

Civil, caracterizado como regulamento da vida social, em cujo ápice está, não

mais o patrimônio, mas os valores supremos do indivíduo na sua vida em

relação.113

Nesse contexto, ganha impulso a teoria dos direitos de personalidade, 114

a valorizar o ser humano e seus atributos fundamentais, em contraste com o

caráter individualista e patrimonialista do Direito Civil Clássico, inspirado na

Legislação Napoleônica.

111 A repersonalização do direito civil, ou a polarização da teoria em volta da pessoa, trata de “repor o indivíduo e os seus direitos no

topo da regulamentação jure civile, não apenas como o actor que aí privilegiadamente intervém mas, sobretudo, como o móbil que

privilegiadamente explica a característica técnica dessa regulamentação”. CARVALHO, Orlando de. A teoria geral da relação jurídica –

seu sentido e limites (nota prévia), 2 ed. Coimbra: Centelha, 1981, p. 10.

112 “O centro nuclear do direito civil é a pessoa humana. Todo e qualquer instituto jurídico só tem razão de ser a partir do momento em

que exista (e seja considerado) em função do homem. O próprio direito encontra sua razão de existir na noção de pessoa humana, que é

anterior à ordem jurídica. Esta, construindo a noção de personalidade, o faz com base num dado pré-normativo, que é, ao mesmo tempo

ontológico (a pessoa é) e axiológico (a pessoa vale).” CORTIANO JUNIOR, Eroulths. Ob. cit., p. 41-53.

113 Tal circunstância é plenamente observada quando a Constituição, por exemplo, impõe à propriedade privada, tida como direito

inerente ao homem e predicado de sua personalidade, o conceito de função social, resultando, em conseqüência, que o direito de

propriedade exercido de forma absoluta em sintonia com o que prescreve o Código Civil, somente merecerá a tutela se atender a sua

função social.

114 Observa Ricardo Luis Lorenzetti que, “o grupo de direitos fundamentais atua como um núcleo, ao redor do qual se pretende que gire

o Direito Privado; um novo sistema solar, no qual o Sol seja a pessoa”. LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado.

Tradução de Vera Maria Jacob de Fradera. São Paulo: RT, 1998, p. 145.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 76

CONCLUSÃO : EVOLUÇÃO DO DIREITO E REALIDADE SOCIAL

Apesar da sensível evolução a que foi submetido o Direito (especialmente

o Direito Civil) no decorrer deste século, o modo de produção capitalista gera

uma sociedade de contrastes.

É notória a crescente exclusão social, consistente em populações

marginalizadas, para as quais os direitos previstos na letra da lei não passam,

efetivamente, de "direitos virtuais", no dizer de Michel Miaille.115

A própria noção de "sujeito de direito", entendida como "o ponto ao redor

do qual circulam todas as categorias jurídicas",116 é colocada em xeque frente à

realidade capitalista, como bem observa Michel Miaille : "a noção de sujeito de

direito como equivalente de indivíduo está longe de ser evidente conforme o

sistema social no qual nos situamos. Não é 'natural' que todos os homens sejam

sujeitos de direito. Isto é o efeito de uma estrutura social bem determinada : a

sociedade capitalista. Mas, então, porque é que isso é necessário nesta

sociedade? Precisamente para permitir a realização das trocas mercantis

generalizadas".117

Em tal contexto, pode-se concluir que a visão de um direito racional-

formal, isento de valores e calcado em um complexo de normas jurídicas

hierarquizadas, serve muito bem aos interesses da elite capitalista dominante,

que se vale de tal aparato jurídico para agravar a desigualdade econômico-social

entre a pessoas.118

115 MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao direito, 2ª edição. Lisboa: Editorial Estampa, 1989, p. 114 e ss.

116 "O sujeito de Direito é o ponto ao redor do qual circulam todas as categorias jurídicas. E mais, é no sentido de garantir um

determinado tipo de 'liberdade' que o Direito tutela os interesses deste mesmo sujeito de Direito que, em essência, são interesses

egoísticos que se contrapõem àqueles dos demais membros da sociedade [...] Do ponto de vista econômico, o sujeito de Direito

encontra-se situado no mercado como um agente econômico, isto é, como comprador e vendedor de mercadorias." Comentário de Paulo

Bessa, na apresentação da obra de Pasukanis. In: PASUKANIS, E. B. A teoria geral do direito e o marxismo. Tradução de Paulo Bessa.

Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. XIII.

117 MIAILLE, Michel. Obra citada, p. 117.

118 Como adverte Weber, "as massas sem propriedades, especialmente, não são servidas por uma ' igualdade perante a lei ' formal, e

uma adjudicação e administração previsíveis, tal como o demandavam os interesses ' burgueses ' " WEBER, Ensaios de sociologia. Obra

citada, p. 256.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 77

Não basta, pois, que a Teoria do Direito evolua do individualismo e

patrimonialismo (legados da revolução burguesa) para uma visão social, voltada

aos interesses do homem, como propugna a nova doutrina do Direito Civil.

Tomando como parâmetro o Direito Civil, é insuficiente se afirmar a

evolução das instituições e o aparecimento de fenômenos como a

descodificação, constitucionalização ou repersonalização, se a realidade social

se afigura cruel para os que são menos favorecidos economicamente.

Como adverte Luiz Edson Fachin, "o direito civil deve ser concebido

como 'serviço da vida' a partir de sua raiz antropocêntrica".119

Infelizmente, a realidade social tem demonstrado que a política neoliberal

característica deste momento histórico, tem excluído do "mercado" capitalista

aqueles que são vítimas de um sistema injusto de distribuição de riquezas.

Particularmente no Brasil, a proposta que se intitulava "social democrata",

acabou por revelar uma nefasta faceta do neoliberalismo, com a abertura

indiscriminada das fronteiras para o grande capital especulativo internacional e

poderosos grupos industriais, em detrimento de uma massa populacional

miserável e sem perspectivas.

A entrega do patrimônio público aos interesses estrangeiros, a falta de

políticas sociais concretas e o comprometimento total com as bases capitalistas

nacionais e internacionais, são notas marcantes da realidade social brasileira na

atualidade.

Cabe ao direito resgatar de fato o valor do homem como centro de suas

preocupações, criando oportunidades para que a "igualdade formal" deixe o

papel e ganhe vida, diminuindo os índices de miséria e violência que dominam a

sociedade brasileira.

119 “A realidade contemporânea arquivou o projeto do conceitualismo. Mas, se mesmo assim, o século XIX continua em moda, a

rejeição a essa fundamentação do direito pode alcançar uma afirmação da qual a consciência crítica não pode fugir: não há sistema

neutro. O direito civil deve, com efeito, ser concebido como ‘serviço da vida’ a partir de sua raiz antropocêntrica, não para repor em cena

o indivualismo do século XVIII, nem para retomar a biografia do sujeito jurídico e da Revolução Francesa, mas sim para se afastar do

tecnicismo e do neutralismo. O labor dessa artesania de repersonalização e rectização leva em conta um sistema aberto e rente à vida,

ciente de que, como arrematou, do alto de sua autoridade, o professor ORLANDO DE CARVALHO: ‘a solidariedade não se capta com

esquemas jurídicos: constrói-se na vida social e econômica’.” FACHIN, Luiz Edson. Obra citada, p. 49-50.

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Para isso, as reflexões ensejadas pela obra de Max Weber contribuem

substancialmente para a transformação do pensamento social e jurídico,

necessária para a construção de um novo direito, de fato comprometido com o

povo e não a serviço das oligarquias.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMARAL, Francisco. Racionalidade e sistema no direito civil brasileiro. Separata

da Revista O Direito, 1994.

ARGÜELLO, Katie Silene Cáceres. O ícaro da modernidade: direito e política em

Max Weber. São Paulo : Acadêmica, 1997.

CARVALHO, Orlando de. A teoria geral da relação jurídica – seu sentido e

limites (nota prévia), 2 ed. Coimbra: Centelha, 1981.

COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine . Max Weber e a história. Tradução de Eduardo

Biavati Pereira. São Paulo : Brasiliense, 1995.

COSTA, Dilvanir José da. O direito civil como essência do direito. In: Revista de

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v

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 80

A POSSE COMO FATO SOCIAL ALEXANDRE ALMEIDA ROCHA

Professor na Faculdade de Direito dos Campos Gerais (CESCAGE). Mestre em Direito

pela Universidade Federal de Santa Catarina. Advogado no Paraná.

RESUMO: O artigo analisa a posse na perspectiva histórica, estudando as duas principais teorias surgidas na Alemanha (Século XIX) para explicar o fenômeno possessório (a Teoria Subjetiva de Savigny e a Teoria Objetiva de Ihering), apontando as influências das teorias no Código Civil brasileiro. O autor aborda o polêmico tema da natureza jurídica da posse (se é fato ou direito), trabalhando a idéia de posse à luz do princípio constitucional da função social da propriedade imobiliária. ABSTRACT: The article analyzes ownership in a historical perspective, studying the two main theories that arose in Germany (Century XIX) to explain the possessory phenomenon (the Subjective Theory of Savigny and the Objective Theory of Ihering), pointing out the influences of these theories in the Brazilian Civil Code. The author approaches the controversial subject of the legal nature of ownership (whether it is fact or right), working on the idea of ownership in the light of the constitutional principle of the social function of the real estate property.

INTRODUÇÃO

A posse no curso da história do direito revela-se como uma das questões

mais polêmicas a serem enfrentadas no discurso acadêmico quanto a sua

natureza jurídica.

Poucas matérias há, em direito, que tenham dado margem a tantas

controvérsias como a posse. Sua bibliografia é amplíssima e constante a

afirmação dos embaraços de seu estudo, como anota Moreira Alves.120

A partir da discussão de situar-se a posse, quer como fato, quer como

direito, quer como fato elevado a condição de direito, decorrerão os direitos

diretos e reflexos, inclusive quanto a propriedade.

120 JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, in Posse, vol. I, Evolução histórica, Editora Forense, p. 01.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 81

A relevância do tema tem enfoque quanto às alterações do direito de

propriedade - hoje limitado muito mais que ontem e condicionado pelo princípio

da função social, modificado em sua essência de ser indeterminado quanto a

pessoa que deve respeitá-lo.

Buscou-se, através do presente estudo, a discussão da posse como fato

social relevante em relação aos denominados 'sem-terra' e categorias ou

estamentos sociais hipo-suficientes em relação ao direito posto por aquele que

detém a parcela econômica dominante.

Nesse contexto desenvolveu-se o trabalho envolvendo o fato social como

elemento de aglutinação da norma, gerando a legitimidade do direito posto

quanto ao inconsciente coletivo que não domina, mas que detém o entendimento

do que efetivamente seria justo.

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO DE POSSE

BREVE HISTÓRICO

É imprescindível, para qualquer jurista que se proponha a analisar o

fenômeno possessório, a imersão na evolução histórica da posse, visto que na

história encontramos a causa existencial das normas, dando-se isto com maior

evidência neste instituto, pois sua noção é essencialmente histórica.

Lecionou FIGUEIRA Jr.:

A análise mais aprofundada de qualquer instituto jurídico requer de todo

estudioso, inafastavelmente, a busca de uma resposta preliminar a nível

histórico-dogmático, sem que isso signifique qualquer retrocesso

científico ou puro retorno e apego ao passado. Pelo contrário, sem um

questionamento prévio desta ordem, a doutrina estará fadada à

mediocridade e ao insucesso, porquanto a história do direito e das

civilizações caminham lado a lado, oferecendo-nos instrumentos dos

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 82

quais não podemos prescindir para a compreensão da realidade,

tratando-se de valioso método de hermenêutica.121

Desta forma, a análise histórica do instituto se fez necessária, uma vez

que o Código Civil Brasileiro recebeu influência de várias teorias possessórias

elaboradas no caminhar da civilização.

MOREIRA ALVES, na mesma linha, pronunciou-se acerca dos

componentes históricos da posse dizendo que:

Ela sofreu, também, influência, maior ou menor, do instituto

correspondente no direito germânico medieval - a Gewere - e do conceito

de posse plasmado, embora com base nos textos romanos, pelos

canonistas. Resultou, portanto, da combinação de elementos históricos

heterogêneos, que se mesclaram por motivos de ordem étnica (costumes

dos povos bárbaros que invadiram o Império Romano do Ocidente),

religiosa (a influência do direito canônico sobre o direito laico) e cultural (a

recepção do direito romano na Europa, no período compreendido entre

os séculos XIII e XV).122

Assim sendo, apreciou-se primeiramente a evolução do instituto no direito

romano, elucidando-se algumas características da posse nesse período. Após,

analisou-se as principais influências do direito canônico, notadamente no que diz

respeito a 'espiritualização' do conceito de posse e, por fim, delineou-se

algumas colocações relativamente ao instituto correspondente no direito

germânico - a Gewere.

121 FIGUEIRA Jr; Joel Dias. Posse e Ações Possessórias.: fundamentos da posse. Editora Juruá: Curitiba. pág. 35.

122 ALVES, J. C. Moreira. Posse: evolução histórica. 1. ed. Editora Forense. Rio de Janeiro. 1985. pág. 2.

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A POSSE NO DIREITO ROMANO

Antes de adentrarmos à seara do direito romano, urge transcrever as

palavras de FUSTEL DE COLANGES, extraídas de sua obra "A cidade antiga":

Sabe-se terem existido povos que nunca chegaram a instituir a

propriedade privada entre si, e outras só demorada e penosamente a

estabeleceram. Com efeito, não é problema simples, no início das

sociedades, saber-se se o indivíduo pode apropriar-se do solo e

estabelecer tão forte união entre sua própria pessoa e uma parte da terra,

a ponto de poder dizer: Esta terra é minha, esta terra é parte de mim

mesmo. Os tártaros admitiam o direito de propriedade, quando se tratava

de rebanhos e já não o concebiam ao tratar-se do solo. Entre os antigos

germanos, segundo alguns autores, a terra não era propriedade de

ninguém; cada ano, a tribo indicava a cada um dos seus membros um

lote para cultivo, lote que era trocado no ano seguinte. O germano era

proprietário da colheita, mas não o dono da terra. O mesmo acontece em

uma parte da raça semítica e entre alguns povos eslavos.

Ao contrário, as populações da Grécia e da Itália, desde a mais longínqua

antigüidade, sempre reconheceram e praticaram a propriedade privada.

Nenhuma lembrança histórica nos chegou, e de época alguma, que nos

revele a terra ter estado em comum.123

A propriedade, como visto, era desconhecida nos povos da antigüidade,

no entanto já estava presente entre eles o fenômeno possessório que em Roma

iria ganhar tratamento desde os períodos mais remotos.

Oportuno salientar que a posse recebeu abordagens diversas em cada

época do direito romano, observação de muita importância para quem pretenda

incursionar pelos caminhos que conduzem às origens do instituto.124

123 São Paulo: Hemus, 1975. pág. 49.

124 Para melhor análise da origem da posse , ver "A posse e sua proteção" de Astolpho Rezende.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 84

Lembrou SCIALOJA, citado por Astolpho Rezende:

É impossível dar-nos conta da propriedade romana, se antes não

conhecermos, pelo menos em suas linhas gerais, o desenvolvimento

histórico do domínio, desde os seus primórdios até ao tempo de

Justiniano. A história do Direito Romano desenvolve-se em 12 séculos,

durante os quais ocorreu a mais completa transformação econômica e

social do mundo moderno. Roma, de pequena communa, tornou-se

soberana da Europa então conhecida, da África setentrional e de parte da

Ásia, sofrendo a mais radical transformação. Quando se fala, pois, da

prosperidade romana é mister distinguir, se fala da de Rômulo ou da de

Justiniano, ou da propriedade de uma época intermédia. Se por direito

romano devêssemos entender o revelado pelas fontes justinianas, não

poderemos deixar de observar que, pela própria natureza da obra de

Justiniano, encontramos nessa legislação traços de um anterior

regulamento da propriedade, de natureza essencialmente diversa. Lendo

o Digesto, encontram-se textos que foram em parte alterados pelos

compiladores [...], mas que em substância, tendo por autores originários a

jurisconsultos que no maior numero vão do II ao III século, representam

um direito de propriedade em relação às condições sociais daquele

tempo, as quais, pelo menos sob certos aspectos, são as mais

correspondentes as hodiernas. Se se examina o Código

independentemente do Digesto, encontra-se uma longa série de

constituições imperiais, a maior parte das quais é de um tempo posterior

à época central do direito das Pandectas.

Fora da compilação Justinianea, Gaio, que pertence ao 2º século P. C. e

que na sua exposição tende a descrever um direito também precedente

ao do seu tempo, contém regras jurídicas, mesmo diversas das que

resultam das Pandectas.

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Se, portanto, lermos as fontes históricas, que dão informações

especialmente sobre relações econômicas, veremos uma diversidade tal,

que põe um abismo entre o direito do princípio do império e o da

decadência, a que pertencem as fontes Justinianeas.

Por isso, quando se trata de direito romano, é mister dar-se conta de que

direito se entende falar.125

Por esta razão examinou-se a evolução do conceito de posse nas três

grandes épocas da história de Roma: Época Pré-Clássica, Imperial-Clássica,

Clássica e Justinianea.

A POSSE NA ÉPOCA PRÉ-CLÁSSICA E REPUBLICANA

As dificuldades encontradas pelos romanistas modernos para o

desenvolvimento dos estudos da evolução da posse nesta época, dão-se,

principalmente, em função da escassez de fontes e das modificações suportadas

pelos textos clássicos antes da compilação do Corpus Iuris Civilis, o que, de

certa forma, não permitiu que se alcançasse conclusões seguras, embora

possam ser traçadas algumas características.

Acerca da questão lecionou SANTIAGO DANTAS:

Na época pré-clássica ainda não se fala em posse, em possessio. Tanto

a lei como o jurisconsulto, para designarem a posse, usam uma

expressão extremamente longa e composta: usus fructus possessio ou,

então, uti frui habere possidere. Observando-se a instituição possessória

nessa época, nota-se a existência de dois institutos inteiramente distintos,

designados, habitualmente, com a mesma expressão. O primeiro, que

deve ser o mais antigo, é o usus fructus possessio. [...]

125 REZENDE, Astolpho. A posse e a sua proteção. 1. ed. São Paulo: Saraiva & Cia, 1937.

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Mas ao mesmo tempo que este instituto, na época pré-clássica já se

encontra uma outra possessio; é o segundo instituto que se teve ensejo

de falar.126

Em resumo, pode-se dizer que o primeiro dos institutos está ligado aos

casos de concessões de terras para uso tanto pelo ager privatus quanto

pelo ager publicus. O segundo está ligado aos casos em que se

transmitia a propriedade sem observância das solenidades exigidas

para a validade do ato, não se tornando dono o adquirente.

MOREIRA ALVES, após explicar a evolução da posse neste período,

seguindo as linhas traçadas por BOZZA, afirmou:

Enquanto a possessio é a senhoria de fato, o usus é o gozo, de fato, de

um direito, e se caracteriza como poder irrevogável, ilimitado no tempo,

sem proteção jurídica, e conducente à aquisição de direito. A possessio

originariamente, tinha por objeto apenas o ager publicus, e era tutelada

pela controversia de loco; posteriormente, estendeu-se aos imóveis

privados, o que possivelmente decorreu da extensão, feita pelo pretor,

dos interditos por ele criados para proteger a possessio sobre o ager

publicus à senhoria de fato sobre imóveis privados que se encontravam

em condições semelhantes à daquele (senhoria de fato sobre coisa

alheia reconhecida pelo próprio possuidor; senhoria de que o possuidor é

investido por ato de um magistrado; senhoria sem limitação no tempo e

insuscetível de conduzir ao usucapião). Essa extensão, portanto, não

pode ter ocorrido anteriormente a 367 a.C., data da criação da pretura,

magistratura que veio a criar tais interditos; e como as características da

possessio sobre o ager publicus se encontram em três casos de posse

sobre imóveis privados (os que SAVIGNY designou como sendo de

posse derivada) - o do precarista, o do sequester e o do credor

pignoratício -, foram eles os primeiros a que se aplicou a possessio no

campo do direito privado, só se tornando anômalos mais tarde, no

126 SANTIAGO, Dantas. Programa de direito civil III. edição histórica. Rio de Janeiro. 1979. pág. 27-28.

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período imperial, por não darem margem ao usucapião, ao contrário do

que, em regra, acontecia, nessa época, com as outras hipóteses de

posse que também fundavam em título jurídico. É desses três casos que

se pode extrair a noção primitiva de posse no direito romano: é ela a

senhoria de fato, revogável e sem limite no tempo, sobre imóvel de que o

concedente tem senhoria de direito, e senhoria de fato exercitada com o

animus de ter a coisa para si, insuscetível, porém, de transformar-se em

senhoria de direito.127

Notou-se, sem embargo das divergências doutrinárias, que o período pré-

clássico é marcado pela senhoria de fato sempre acompanhada da senhoria de

direito, inexistindo a caracterização do animus neste período. Constatou-se a

existência de duas espécies de posse: a primeira, revogável, chamada por uns

de possessio, incapaz de conduzir ao usucapião, estando despida da proteção

interdital; a segunda, irrevogável, identificada por alguns como usus, suscetível

de proteção interdital e conducente ao domínio.

Na época republicana ocorreram mutações interessantes na doutrina

possessória; a primeira delas está ligada a generalização do conceito de posse,

decorrente da extensão da proteção possessória aos casos em que a posse era

revogável.

Vejamos, nesse sentido, o ensinamento de MOREIRA ALVES:

Nessa época, deixara de ser Roma um pequeno centro, para tornar-se

cidade florescente, com relações comerciais com os países

mediterrâneos. Os estrangeiros, ao adquirirem res mancipi -

especialmente escravos - por meio de compra e venda consensual, não

se tornavam proprietários ex iure Quiritium, motivo por que o pretor

peregrino lhes concedia, para sua proteção, interditos. A mesma

orientação foi adotada pelo pretor urbano em negócios jurídicos

semelhantes celebrados entre cidadãos romanos. Dois fatos corroboram

essas conjecturas: o vendedor romano se obriga, não a transferir a

127 ob. cit. Posse: evolução histórica. vol. I, pág. 17.

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propriedade da coisa, mas a assegurar ao comprador seu gozo pacífico;

e a criação do interdito utrubi para tutelar a posse do escravo, o que

implica a extensão da possessio às coisas móveis. Começam, então, a

desaparecer as características da posse primitiva. A partir do momento

em que o pretor urbano, na linha do pretor peregrino, concede interditos

aos que, por adquirirem as res mancipi mediante simples tradictio

(tradição), não se tornam proprietários dela, permanecendo o domínio

com o transmitente, a possessio passa a conduzir ao usucapião. Inicia-se

assim, a generalização do conceito de posse, aumentando as causae

possessionis. 128

É válida, nessa esteira, a opinião de SANTIAGO DANTAS:

O Direito Romano estava imbuído da idéia de eqüidade. Insurge-se

contra a tirania do dominus, em relação ao adquirente imperfeito, até

mesmo naquele caso de que resulta o usucapião. Só a uma consciência

jurídica mais rústica satisfaz a idéia de que dentro de um ano o possuidor

se terá transformado em dono. À uma consciência jurídica mais sensível

já repugna esta idéia de que, se, naquele espaço de tempo, o proprietário

tomar as coisas das mãos do ocupante, expiram as esperanças deste,

embora tenha pago um preço e se tenha comportado com a mais

rigorosa boa-fé. É uma época em que se está procurando proteger a

figura do adquirente imperfeito, que vive o seu ano de consolidação do

domínio. [...]

Está terminada a evolução da posse, pois, agora, convergiram os dois

institutos num único, caracterizado sempre pela proteção interdital, mas a

transformação em domínio, esta contínua a ser característica da posse

irrevogável.129

Pode-se, pois, reduzir a duas as principais mudanças ocorridas até o

final da República no campo possessório. São elas: 1) os interditos protegem

128 ob. cit. Posse: evolução histórica. vol. I, pág. 18.

129 apud. pág. 42.

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qualquer senhoria de fato, sendo que isto ocasionou a desconsideração das

causae possessionis como fator de distinção entre a posse e a detenção, que

doravante passaram a distinguir uma da outra pela presença do animus

possidendi; 2) a utilização dos interditos pelos proprietários como meio de defesa

do domínio.

A POSSE NA ÉPOCA CLÁSSICA

Nesse período da história de Roma aconteceram mudanças importantes

na disciplina possessória, verbi gratia, era possível a distinção entre a posse e a

detenção e aparece a tricotomia, possessio naturalis - possessio civilis -

possessio ad interdicta.

MOREIRA ALVES, com base na tese de RICCOBONO - dominante entre

os romanistas modernos - explicou com propriedade o significado dessas

expressões:

A detenção, caracterizada pelo elemento material da posse, é a

possessio naturalis, que por ser simples fato material, não entra em

nenhuma categoria jurídica, quer do ius honorarium, quer do ius civile,

não produzindo conseqüências jurídicas, sequer sendo tutelada pelos

interditos possessórios, mas, apenas indiretamente, por meio da

utilização, pelo detentor, da actio iniuriarum, uma vez que a turbação da

posse era uma iniuria praticada contra a pessoa do detentor. A possessio

civilis é a posse oriunda de causa reconhecida como idônea pelo ius

civile e até pelo ius gentium para a aquisição do domínio; a ela, além dos

elementos de fato que constituem a possessio ad interdicta (o corpus e o

animus possidendi, ou seja, o elemento objetivo e o elemento subjetivo),

acresce um elemento jurídico (a causa apta á aquisição do domínio), que

é a condição fundamental para a produção das conseqüências

substanciais da posse, como o usucapião, a aquisição de frutos, a

utilização da actio publiciana. [...]

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Finalmente, a possessio ad interdicta (também denominada possessio) é

relação de mero fato - posse integrada por um elemento objetivo (a

detenção) e por um elemento subjetivo (o animus possidendi, isto é, a

vontade de ter a coisa de modo livre e exclusivo) -, reconhecida e

defendida, pelos interditos possessórios, no âmbito do ius honorarium,

não produzindo efeitos na esfera do ius civile.130

SANTIAGO DANTAS, ensinou que "...compreende-se bem, portanto,

que, na época clássica, todas as vezes em que o jurisconsulto analisa a posse,

vê dois elementos: a detenção material e o animus; este animus, este desejo

de ter a coisa para si, de se comportar como senhor, é a característica da posse

padrão, é a característica da posse irrevogável.”131

Observou-se, por conseguinte, a presença do ius honorarium e do ius

civiles convivendo lado a lado nessa época, existindo clara diferença entre a

posse e a propriedade; notou-se, também, o início da espiritualização do

conceito de posse, visto que já se admite sua manutenção solo ânimo.

A POSSE NA ÉPOCA PÓS-CLÁSSICA

Neste período a posse começou a ser estendida aos direitos reais, não

estava mais restrita aos casos em que existia uma senhoria de fato sobre a

coisa. É aplicável a qualquer direito. Começou-se a admití-la como exercício de

direito, como exteriorização de um direito.

SANTIAGO DANTAS, colocou as razões que justificaram esse

entendimento:

É fácil acompanhar as razões desta transformação. Pode-se dizer que ela

resultou do predomínio, na sistemática da posse, do tipo da posse do

proprietário. O tipo de possuidor, que na época pós-clássica orienta a

130 ob. cit. Posse: evolução histórica. vol. I, pág. 25.26.

131 ob. cit. pág. 43.

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legislação e a doutrina, é o tipo de possuidor que é, também, proprietário.

Nem é mais o tipo de possuidor que está usucapindo, nem o tipo do

possuidor que nunca poderia usucapir; agora, é o tipo do [?] proprietário

que, sendo também possuidor, lança mão dos remédios possessórios

como uma proteção mais completa, mais fácil, mais cômoda do que seria

a complicada proteção das reivindicações, com suas tremendas

dificuldades probatórias.132

MOREIRA ALVES, após comentar acerca dos estudos desenvolvidos por

LEVY - que obscureceram a distinção entre posse e propriedade -, elucidou as

principais modificações ocorridas nessa fase:

Com JUSTINIANO, volta-se à distinção precisa entre posse e

propriedade, mas, com relação à posse, se processam modificações

substanciais, em virtude de várias causas, como o desaparecimento da

dicotomia ius civile - ius honorarium, a importância dada, em geral, ao

animus no campo do direito (o que é defendido pela doutrina dominante,

embora atacado por RICCOBONO, para quem o animus é elemento de

relevo já no direito clássico) e a desaparição da diferença ente interditos

(interdicta) e ações (actiones). Altera-se - e isso em decorrência de não

se distinguirem nesse período o ius civile e o ius honorarium - a tricotomia

possessio civilis - possessio ad interdicta (ou simplesmente possessio) -

possessio naturalis, a qual se reduz à dicotomia possessio civilis -

possessio naturalis [...] É no direito justinianeu que nasce a figura da

possessio iuris, em contraposição à possessio rei. A inovação é

substancial, pois a quasi possessio deixa de ser quase senhoria sobre a

coisa e passa a ser senhoria sobre o direito (coisa corpórea). Há nela o

germe da idéia que veio a influir, largamente, na concepção moderna da

posse: a de que a posse é exercício de fato de qualquer direito

duradouro, sendo o gênero de que resultam as espécies possessio rei

132 ob. cit. pág. 44.

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(posse do direito de propriedade) e possessio iuris (posse de outro

direito, que não a propriedade).133

À evidência, a posse desapegou-se da coisa aproximando-se do direito

e nisto consistiu a principal característica do instituto neste período: sua

espiritualização.

Conclui-se, pois, que o pragmatismo das teorias impediu que se

conferisse a este instituto o devido refino. As contradições dos textos romanos

sobre a posse dificultaram os trabalhos dos exegetas, impossibilitando-se, dessa

forma, a elaboração de um conceito único que a explicasse com fidelidade. No

entanto, os doutrinadores manteram-se uníssonos no que se refere ao conceito

básico do instituto: situação de fato em que alguém, a despeito de ser ou não

titular de algum direito, onde se exerce ostensivo poder de utilização, defesa e

conservação sobre algo material.

A "GEWERE"

A doutrina nacional não tratou satisfatoriamente desse instituto, o que,

de certa forma, dificultou o trabalho de pesquisa; no entanto é possível tecer

algumas considerações acerca dele que, inegavelmente, influenciou o

legislador pátrio, notadamente no que diz respeito a organização vertical da

posse (posse direta e indireta).

Há autores que afirmaram não ter existido no período medieval o

desenvolvimento do instituto da posse, tendo permanecida apagada nesta

época.134

MOREIRA ALVES, disse que:

A Gewere - a que as fontes jurídicas francesas aludem com o termo

saisine; as italianas, com a expressão tenuta; e as inglesas, com a

133 ob. cit. Posse: evolução histórica. pág. 33-38.

134 BESSONE, Darcy. Da posse 1. ed. São Paulo: Saraiva, 1996.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 93

palavra seisin - é o instituto que, no direito germânico medieval,

corresponde à possessio, só foi introduzida no direito alemão com a

recepção, na Alemanha, do direito romano, o que, como já se salientou,

apenas ocorreu no século XVI.

Mas note-se, correspondência não significa igualdade: a Gewere,

apresenta pontos de contato com a possessio, dela se afasta em outros

aspectos. Basta atentar para o fato de que, enquanto o direito romano

distinguiu, nitidamente, as três posições em que decorre para uma

pessoa poder sobre a coisa (propriedade, posse e detenção), o direito

germânico medieval desconhecer, quanto às coisas móveis, a diferença

entre posse e detenção, e - embora a maioria dos germanistas entenda o

contrário - há autores que negam que o direito germânico medieval tenha

feito distinção entre propriedade e posse (essas figuras estariam

abrangidas pela Gewere).135

FIGUEIRA Jr., tratando do tema, elucidou que "...a Gewere não indicava

um conceito jurídico ideal, mas sim um fato material, a relação entre a coisa e a

pessoa que a detinha. Qualquer relação de uso e gozo entre sujeito e um bem,

mesmo que temporária, constituía a Gewere".136

Observou-se que a Gewere teve importância na evolução do conceito de

posse, pois influenciou diretamente na construção da doutrina de IHERING, a

qual foi consagrada pelo nosso Código Civil, como veremos adiante.

A POSSE NO DIREITO CANÔNICO

O direito canônico contribuiu muito para a concepção da teoria da posse

e da proteção possessória. Nesse período a Igreja concentrava um grande

135 ob. cit. Posse:evolução histórica. pág. 77-78. Para melhor compreensão consulttar o capítulo que trata deste instituto, onde o autor

salienta quais as principais teses que foram construídas para explicação deste instituto, trazendo a luz a classificação da GEWERE,

posteriormente, tratando dos elementos que a compõem, espécies, aquisição perda e efeitos.

136 ob. cit. pág. 42-43.

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poder em suas mãos, tanto político quanto econômico; esta circunstância forçou

a criação de mecanismos para proteção de certas situações não previstas no

direito romano. A posse no direito canônico não se afastou da concepção

romanista acerca da posse - poder de fato sobre a coisa - contudo ampliou-se o

campo de abrangência do instituto atingindo direitos públicos, privados e

pessoais.

MOREIRA ALVES, afirmou que:

A partir do século IV d.C., já se encontram, no direito canônico, as

providências iniciais que, daí até o século XIV, iriam permitir a construção

de suas duas contribuições fundamentais para a teoria possessória: uma

- a relativa ao conceito de posse, resultante da extensão que se deu à

possessio iuris; a outra - a concernente à defesa possessória, com a

criação da exceptio spolii e condictio ex canone redintegranda (a actio

spolii, como foi geralmente denominada a partir do século XVII), com o

alargamento do conceito de esbulho (spolium) e com a tutela da mera

detenção.137

Foi essa amplitude conferida ao possuidor de, através da actio spolii,

obter a restituição de bens ou direitos espoliados dirigindo-a contra o esbulhador

ou terceiros e que talvez tenha originado a idéia, não muito precisa - em que

pese acolhida por renomados doutrinadores e tribunais - de atribuir aos remédios

possessórios natureza real, inobstante a posse não apresentar esse caráter,

conforme demonstraremos mais adiante.138

137 ob. cit., Posse, vol. I, p. 110.

138 FIGUEIRA Jr., Joel Dias. Posse e ações possessórias. vol. I, p. 41.

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CONCEITO

APRECIAÇÃO DAS TEORIAS DE SAVIGNY E IHERING

As legislações do mundo ocidental, ao tratarem do conceito de posse,

optam por se filiarem a uma de duas fundamentais teorias atinentes à

caracterização desse instituto, quais sejam: a concepção chamada subjetiva e a

concepção chamada objetiva.

TEORIA DE SAVIGNY - CONCEPÇÃO SUBJETIVA

No "Tratado da Posse", publicado em 1803, SAVIGNY tentou reconstruir,

sistematicamente, a elaboração da posse no Direito Romano.

Notou Savigny que, no direito romano, decorriam dois efeitos da posse -

proteção jurídica pelos interditos e condução ao usucapião -, isto

independentemente de qualquer direito e concluiu ele que a posse "consistia

na faculdade real e imediata de dispor fisicamente da coisa com a intenção de

dono, e de defendê-la contra as agressões de terceiros".139

MOREIRA ALVES, explicou magistralmente a conclusão a que chegou

SAVIGNY:

Parte ele da observação de que, no direito romano, só dois efeitos legais

se atribuem à posse como tal e independente de qualquer idéia de

propriedade: o usucapião e os interditos possessórios. A posse é a

condição de existência desses dois efeitos. É ela fato e direito - por sua

própria essência é um fato; por suas conseqüências assemelha-se a um

direito. O ius possessionis, que é o direito que resulta da posse, consiste

apenas na faculdade de invocar interditos possessórios, quando a

violação da posse assume forma determinada. Sobre a vexata quaestio

do sentido das três expressões que se encontram nas fontes romanas

139 Tito Fulgêncio. Da posse e das ações possessórias. Rio de Janeiro: Forense: 1959. v. I. p. 08.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 96

(possessio, civilis possessio e naturalis possessio), sustenta Savigny que

a expressão civilis possessio indica a posse que reúne as condições

necessárias a conduzir à propriedade em virtude do usucapião

(possessio ad usucapionem); que a palavra possessio, desacompanhada

de qualificativo, designa a posse protegida pelos interditos (possessio ad

interdicta); e que a expressão naturalis possessio varia de significado

conforme seja empregada em oposição a civilis possessio (caso em que

abrange tanto a simples detenção, quanto a possessio ad interdicta), ou

em contraposição a possessio (hipótese em que designa, apenas, a

detenção). Daí se concluir que só há duas posses jurídicas: a civitas

possessio e a possessio; mas como a posse que leva à aquisição da

propriedade por usucapião (a civilis possessio) nada mais é do que a

possessio a que se reúnem outros elementos (que haja começado com

bona fides e com iusta causa, e que a coisa possuída seja susceptível

da usucapio), tem-se que, em verdade, hão há senão uma posse no

sentido jurídico da palavra - a possessio, que, por si só, dá direito aos

interditos possessórios, e, acrescida de outros elementos, produz o

usucapião.140

Para a caracterização da posse seriam imprescindíveis, pois, dois

ingredientes: o corpus (o fato físico) e o animus (a vontade). O corpus é o

elemento material, que se identifica com a apreensão material da coisa, ou no

poder físico da pessoa sobre a coisa, com exclusividade. O animus, por sua vez,

é o elemento volitivo consistente na intenção de ter a coisa como sua.

"Não basta o 'corpus', como não basta o 'animus' ".141

Quando não existir

o animus não haverá posse no sentido jurídico, da mesma forma que esta

também não estará configurada quando não existir o corpus, visto que, neste

caso nem relação de fato existirá entre a pessoa e a coisa. Nos casos em que

há ausência do animus domini caracterizar-se-á a detenção.

140 ob. cit., vol. I, pág. 211-212.

141 GOMES, Orlando. Direitos reais. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, pág. 19.

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SERPA LOPES, ao se perguntar qual o ponto fundamental da teoria de

SAVIGNY e qual a razão dela ser denominada teoria subjetiva, afirmou:

A razão é a seguinte: a posse é a síntese do CORPUS e do ANIMUS. O

corpus designa o elemento externo em oposição ao elemento animus que

é interno. O corpus consiste na possibilidade material de fazer da coisa o

que bem pareça e de afastar toda ação estranha; exige, para sua

integração , os seguintes elementos: 1º) disponibilidade da coisa; 2º)

possibilidade direta e imediata de submetê-lo a seu poder físico; 3º)

excluir toda intervenção estranha.142

No que diz respeito ao elemento psíquico, verificou-se que esta "vontade

de possuir" pode apresentar-se de duas maneiras, como lembrou DARCY

BESSONE:

[...] uma pessoa pode exercer o direito de propriedade próprio, ou exercer

o direito de propriedade alheio. Só no primeiro caso se configurará o

'animus possidendi', idôneo para converter a detenção (simples fato

físico) em posse. Tal 'animus possidendi' consiste, assim, no 'animus rem

sibi habendi', o que quer dizer que só se considera verdadeiro possuidor

o detentor da coisa que procede, em relação a ela, com o espírito de

proprietário. Não é necessário, todavia, esclarece Savigny, que o

possuidor tenha a convicção de que é realmente proprietário ('opinio suo

cogitatio domini'). Basta que proceda com o espírito de proprietário,

usando e gozando da coisa em proveito próprio, ainda que sem a

convicção de que é dono. Não será possuidor, portanto, quem se tornar

detentor da coisa em nome de outrem ('alieno nomine'), ainda que, nesse

caso, não se possa negar a existência de certa vontade - a vontade de

deter a coisa em nome e proveito de outra pessoa. Tal a vontade de deter

a coisa em nome e proveito de outra pessoa. Tal vontade constituiria o

'animus tenendi', mais seria insuficiente para configurar o 'animus domini'

142 SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de direito civil. 2. ed. São Paulo: Freitas Bastos , 1962. vol. VI, pág. 107-108.

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(vontade de dono) ou o 'animus rem sib habendi' (vontade de ter a coisa

como sua), que, como autêntico 'animus possidendi', eleva a detenção

(simples fato físico) à categoria de posse.143

RUGGIERO, também chamou a atenção para as diversas graduações do

elemento subjetivo da posse e assim se pronunciou:

Convêm antes de mais nada ter em atenção que o animus em geral tem

graduações diversas e que dos diferentes modos de o compreender

derivam todas as diversidades na formulação dogmática ou legislativa da

posse.

1) A espécie mais elementar é aquela que acompanha qualquer ato de

detenção e que se concretiza no próprio ato de deter (animus detinendi),

é a simples vontade de se manter em relação com a coisa, de a ter e

nada mais.

2) A espécie mais elevada é, pelo contrário, aquela em que o possuidor

não só tem o ânimo de ter a coisa como sua (animus domini), mas tem

também a opinião de que é o proprietário (opinio domini); baseia-se num

título suscetível de transferir o domínio, cujos vícios, que impedem a

transferência efetiva desse domínio, são ignorados do possuidor (p. de

boa fé).

Entre estes dois extremos estão figuras intermédias, nas quais o animus

assume um conteúdo diverso conforme o direito que se quer exercer e o

interesse da pessoa a quem a relação possessória pertence ou se

destina.

3) Há detentores que têm a coisa não como sua, isto é, não por qualquer

vantagem ou utilidade própria, mas exclusivamente no interesse alheio;

nem mesmo para uma relação determinada eles querem a coisa

submetida à sua faculdade de gozo ou de apropriação econômica; têm-

na em custódia e estando privados, portanto, de um animus possidendi.

É, entre outros, o caso do depositário, do mandatário, etc;

143 ob. cit. pág. 48.

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4) Há alguns, pelo contrário, que têm a coisa no interesse próprio, para a

destinar a uma necessidade própria, para sobre ela exercerem um ato de

gozo, quando não seja de apropriação econômica; quer dizer usam-na e

não a têm em simples custódia como os primeiros. Nessas pessoas, se

por animus possidendi se entende o animus domini, falta tal animus, pois

não têm nem podiam ter a intenção de tratar a coisa como proprietários

ou de exercer qualquer direito real, mas nem por isso deixa de haver um

animus, que tem um grau mais intenso que o das figuras precedentes,

visto que a vontade se destina a ter a coisa não no interesse alheio, mas

no próprio. Tal é o caso, por exemplo, do comodatário. [...]

5) Em face das duas categorias já vistas está, finalmente, a daqueles que

possuem a coisa como sua, de modo livre e independente, que têm

animus domini, que querem assenhorear-se dela, tê-la como sua (animus

rem sibi habendi). Nela entram, porém, duas ordens diversas de

possuidores; enquanto por um lado estão aqueles que querem ter a coisa

como sua, isto é, que têm o ânimo de a ter como proprietários, por outro

lado estão aqueles que a querem sujeita não em todas as suas relações,

mas apenas numa ou mais, que exercem assim apenas um direito real

menor de propriedade (ex.: usufructuário, possuidor de uma servidão

predial) e quanto a este o animus, com pouca correção, designa-se como

animus domini. No entanto, a locução pode justificar-se, quando por ela

se entenda que, com respeito ao ius in re aliena, o possuidor se comporta

como um titular efetivo, como proprietário daquele direito.144

É válido registrar, porque condiciona e limita o alcance da sua teoria, que

Savigny teve como objetivo estabelecer uma teoria jurídica da posse e por

conseguinte, em sua obra, ocupou-se apenas dos direitos que derivam da posse

(ius possessionis), não versando sobre o direito de possuir, ao qual juristas

contemporâneos denominaram ius possidendi. Esse direito de possuir, cabendo

144 RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1972. vol. II. pág. 500-501.

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ao proprietário, interessaria tão-somente à teoria da propriedade, e não a uma

teoria acerca da posse.145

TEORIA DE IHERING - CONCEPÇÃO OBJETIVA

A segunda teoria que teve importância fundamental foi a desenvolvida

por Rudolf Von Ihering, em 1867, quando criticou a construção formulada por

Savigny. A doutrina de Ihering influenciou diversas legislações, inclusive a

nossa.

Para IHERING, a posse não é a possibilidade imediata de ter a coisa a

disposição com a intenção de ser dono como queria SAVIGNY, mas é revelada

pela aparência, pela exterioridade da propriedade, pela visibilidade do

domínio.146

IHERING, citado por MOREIRA ALVES colocou que "na relação com a

propriedade se encontra a chave para a compreensão de toda a teoria material

da posse: tanto para a extensão abstrata do instituto da posse - ela segue

paralelamente à propriedade - como para os requisitos da posse concreta - eles

se reduzem á relação exterior sobre a coisa correspondente à propriedade. A

designação da posse como a exteriorização ou a visibilidade da propriedade

encerra toda a teoria da posse".147

Portanto, Ihering não negou a existência dos elementos da posse: corpus

e animus, apenas os entendeu diferentemente de Savigny. O corpus, para ele,

"é a relação exterior que há normalmente entre o proprietário e a coisa, ou a

aparência da propriedade".148

Desta forma, o corpus (elemento material) é a maneira de comportar-se

da pessoa com relação a coisa, é a relação externa que há entre a pessoa e a

145 BESSONE, Darcy. ob. cit. pág. 56.

146 BESSONE, Darcy. ob. cit. pág. 57.

147 ob. cit. Posse: evolução histórica vol. I, pág. 224.

148 SILVA PEREIRA, Caio Mário. Instituições de direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. vol. iv. pág. 23.

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coisa, à semelhança do que ocorre com o proprietário. De fato, é o aspecto de

proprietário que determina a existência da posse. Pois, quando se dá a

destinação econômica, a coisa está se agindo conforme o proprietário, e isto,

por si só, é o que caracteriza a posse.

Para IHERING, não é necessário buscar-se o elemento intencional para

encontrar a posse, pois é difícil distinguir entre a vontade de possuir em nome

próprio e a vontade de possuir em nome alheio. Entende que o animus não se

situa na intenção de ter a coisa como sua, mas consiste na vontade de proceder

como o faz normalmente o proprietário (affectio tenendi).

A distinção entre posse e detenção faz-se tão-somente pela presença de

um fator objetivo: a lei que retira de algumas situações a possibilidade de

utilização da proteção possessória. É impossível pelo animus domini de se

estabelecer esta distinção.

MOREIRA ALVES, comentando a propósito da teoria de IHERING,

explicou que para ele “tanto a posse quanto a detenção exigem o corpus e o

animus, não como elementos independentes, mas, sim, indissoluvelmente

ligados, nascendo ao mesmo tempo pela incorporação da vontade na relação

do sujeito com a coisa, e não podendo existir um sem o outro, pois o corpus

está para o animus como a palavra para o pensamento”.149

SERPA LOPES, após traçar os princípios fundamentais da teoria de

Ihering reduziu-a da seguinte forma:

Podemos, então, sintetizar o ponto de vista de IHERING:

a) o corpus é, por assim dizer, espiritualizado, pois deve representar um

comportamento por parte do possuidor só compatível com o exercício da

propriedade;

b) este comportamento do possuidor, apto a denunciar a propriedade,

pode efetivamente corresponder a esta ou pode não corresponder,

quando o ius possidendi está unido ao ius possessionis;

149 ob. cit. pág. 229.

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c) embora destinado a defesa do domínio, a posse pode, em dadas

circunstâncias, se volver contra o titular do ius possidendi;

d) a segurança da posse não se fundamenta só no elemento físico, isto é,

nas medidas de segurança tomadas para sua proteção, senão também

no elemento moral e jurídico, ou seja, no temor de lesar os direitos de

outrem, inspirado pelo sentido jurídico ou pela lei.

e) ao autor, em matéria de posse, é bastante provar o corpus, e ao réu

cabe provar que o autor tem apenas uma detenção;

f) a detenção é igual a posse, em seu aspecto material, de modo que

somente por exceção, isto é, quando a lei o determina, se pode privar o

detentor da proteção possessória.150

Assim, sucintamente, pode-se elucidar os principais pontos da teoria de

IHERING, caracterizada pela oposição à construção formulada por SAVIGNY,

geradora das controvérsias doutrinárias quanto ao conceito de posse. Pelo fato

destes juristas terem desenvolvido seus estudos com base no direito romano,

para formulação de suas teses, alguns autores afirmam que a causa das

divergências encontra-se no fato de terem fundamentado suas pesquisas em

fases distintas da história romana, preocupando-se em diferenciar a possessio

da detencio e a possessio ad interdicta da possessio ad usucapionem.151

FÁBIO ULHOA COELHO em um estudo comparativo entre as duas

concepções, apresentou solução simplista para se descobrir qual teoria

fundamenta determinado código:

As conseqüências práticas da adoção legislativa de uma ou outra teoria

caracterizadora da posse é deixar ao desabrigo certas relações entre

homem e coisa. Ou seja, o interesse em definir teoricamente a posse em

um ou outro sentido resume-se a circunscrever o conjunto de

'apreensões fáticas' que gozará da proteção pelos interditos. A adoção da

teoria subjetiva implica em tornar inacessível a proteção possessória

150 ob. cit. pág. 114.

151 SANTIAGO DANTAS, ob. cit. pág. 30.

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àqueles que, embora exercendo uma apreensão sobre certa coisa, não o

fazem com o intuito de proprietário, como é o caso do locatário, do

mandatário e outros. A adoção da teoria objetiva, ao contrário, implica em

se conceber a proteção possessória a todos que exerçam sobre uma

coisa um poder de apreensão, traduzindo pela utilização econômica que

dela façam, salvo se o legislador expressamente (e movido por critérios

de oportunidade legislativa) excluir certos casos desta proteção" [...]

"O critério de aferição da filiação de certo sistema jurídico a um ou outro

pensamento deve ser construído a partir dos postulados mesmo de cada

corrente e não em função das suas conseqüências práticas. Fazendo,

pois, um completo enxugamento das teorias de Savigny e de Ihering, com

o intuito de alcançar-lhes a essência íntima, obtém-se a seguinte idéia

que serve para o alcance do critério perseguido: 'em Savigny, a posse é

uma detenção especial e em Ihering a detenção é uma posse especial'.

Explico-me melhor: por posse [grifo no original] entenda-se a apreensão

que goza de proteção jurídica (interditos) e por detenção [grifo no

original] a que não goza. Na sede da teoria subjetiva, a posse é uma

detenção especial porque o possuidor é dotado de uma vontade

inexistente no detentor, que é a vontade de ser dono. Há na posse uma

especialidade (animus domini) [grifo no original] inexistente na

detenção. Especialidade essa que justifica a proteção pelos interditos. Na

sede da teoria objetiva, a detenção (apreensão não protegida) é uma

posse especial porque o ordenamento jurídico a trata de forma especial

quando lhe nega acesso aos interditos. Há para a detenção uma

especialidade (norma jurídica que a exclue da proteção por interditos)

que inexiste para a posse. Especialidade essa que justifica a negativa da

proteção pelos interditos.152

152 COELHO, Fábio Ulhoa. Dos elementos da posse no direito comparado. JUSTITIA, V. 126, pp. 77-100, jul/set, 1984.

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A POSSE NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO

Cumpre, primeiramente, ressaltar que o Código Civil não conceituou a

posse, apenas definiu a figura do possuidor; isto, na verdade foi a dificuldade

na qual os juristas, estudiosos do fenômeno possessório esbarraram em todas

as épocas, encontrar um conceito harmônico de posse.

Predomina entre os doutrinadores pátrios o entendimento de que o

Código Civil Brasileiro orientou-se pela teoria objetiva de Ihering,153

surgindo a

controvérsia quando procura-se saber se o Código a teria consagrado em sua

integralidade ou teria sofrido as influências de outras teorias, notadamente da

teoria subjetiva de Savigny. Procurando trazer algumas orientações acerca da

matéria consignamos abaixo alguns posicionamentos doutrinários.

Tal é a redação do artigo 485, do Código Civil Brasileiro:

"Considera-se possuidor todo aquele que tem, de fato, o exercício, pleno

ou não, de algum dos poderes inerentes ao domínio ou propriedade".

BARROS MONTEIRO, disse que "verifica-se, por esse dispositivo legal,

que a posse, em nossa sistemática jurídica, é o exercício de fato dos poderes

constitutivos do domínio, ou propriedade, ou de algum deles somente, como no

caso de direito real sobre a propriedade alheia".154

Já DARCY BESSONE, sustentou que não há dúvida de que o código

acolheu a teoria de IHERING, mas que ao dispor acerca do usucapião,

fundamentando-o no animus, tal como sustentado por SAVIGNY, não estaria o

legislador intencionando confrontar dois conceitos de posse - possessio ad

interdicta - possessio ad usucapionem - entendeu, contudo, que houve um

153 Parte da doutrina nacional entende que o Código Civil consgrou totalmente a teoria objetiva. Neste sendio, por exemplo, v.

BEVILÁQUA (Cód. Civil, vol. III, p. 5). Contrariamente, admitindo a influência da teoria subjetiva, v. ORLANDO GOMES (Dir. Reais, p.

24); CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA (ob. cit. p., 26).

154MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito das coisas. 4. ed. rvv. e amp. São Paulo: Saraiva, 1961. pág. 18-

19.

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lapso do legislador que ocasionou uma incoerência no sistema normativo do

Código.155

FIGUEIRA JR., filiou-se a corrente dos que admitem a aceitação da

doutrina de IHERING, sem contudo aceitar que a mesma tenha sido consagrada

em sua plenitude, vale transcrever seu posicionamento com relação ao tema:

A sistematização adotada demonstra, inicialmente, o acerto do legislador

em concebê-la como instituto pertencente ao mundo fáctico, não a

incluindo dentre os direitos reais. Seguiu-se a orientação que o BGB

(Bürgerliche Gesetzbuch) imprimiu à posse, acolhendo a teoria objetiva

de IHERING quase em toda sua inteireza.

Porém, não comungamos da idéia de que o Código Civil tenha

consagrado totalmente a teoria iheringuiana; diríamos que o legislador

perfilhou.

Constata-se que o modelo escolhido cedeu em algumas essencialmente

a concepção objetivista da posse situações ao elemento subjetivo,

conforme depreende-se dos arts. 493, III (aquisição da posse por

qualquer dos modos de aquisição em geral),494, IV (constituto

possessório), 520, II, (a perda da posse pela tradição, cuja entrega pode

ser simbólica, isto é, a tradictio ficta, onde o acordo de vontade entre as

partes e a consignação simbólica substituem, de certa forma, a relação

direta com o bem), 520, IV (pela posse de outrem, ainda que contra a

vontade do possuidor), e 520, V (pelo constituto possessório).156

No que tange à terminologia utilizada para confecção do artigo 485,

muitos se discutiu até chegar-se a sua redação final, mas, ainda assim, não

esteve a salvo de críticas.

Para SANTIAGO DANTAS, "há redundância nesta expressão - exercício

de fato -, por isso que se faz uma diferença entre o direito e seu exercício.

Exercício é o momento em que o direito se exterioriza, mas o Código quis

155 ob. cit. pág. 59-60.

156 ob. cit. Posse e ações possessórias. pág. 44-45.

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sublinhar, com esta expressão, que não se precisa indagar, para conferir a

qualidade de possuidor, do motivo em virtude do qual alguém exerce poderes

sobre a coisa. Se estes poderes são daqueles inerente ao domínio, não se tem

dúvida em reconhecer na pessoa que os exerce a qualidade de possuidor".157

Corroborou este entendimento MOREIRA ALVES dizendo que "a fórmula

e o exercício de fato de um direito procura traduzir a idéia de que é possuidor

quem, independentemente de ser titular de um direito, se comporta, em face de

uma coisa como se o fosse, e não que ela deva necessariamente consistir em

atividade que concretize o exercício de um direito, do qual seria a manifestação

e no qual acharia a sua justificativa".158

Podemos dizer, portanto, que "a posse, em nosso direito positivo, não

exige, portanto, a intenção de dono, e nem reclama o poder físico sobre a coisa.

É a relação de fato entre a pessoa e a coisa, tendo em vista a utilização

econômica desta. É a exteriorização da conduta de quem procede como

normalmente age o dono. É a visibilidade do domínio (Cód. Civil, art. 485)".159

Percebeu-se, pela análise da doutrina, que o Código Civil Pátrio recebeu

influência do direito romano, canônico e germânico, inobstante ter se pautado

pela teoria da aparência de Ihering.

MOREIRA ALVES, explicou a gênese dos artigos 483 a 523 que

disciplinam a posse e a detenção em nosso Código e afirmou que entre eles:

Convivem, na desarmonia natural dos inconciliáveis, princípios da posse

romana, da posse canônica e da 'Gewere' (...) É essa heteregoneidade

de princípios encontráveis nos diverso códigos civis modernos - que,

como já acentuamos, dificulta, sobremodo, a construção dogmática da

posse à luz de cada um deles. No Brasil a dificuldade cresce pela

freqüência de elementos constantes entre si, dada a diversidade de

origem, com os quais se teceu a disciplina da posse. Por isso, a

157 ob. cit. pág. 49.

158 ALVES. J. C. Moreira. Posse: estudo dogmático. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1990. vol. II. tomo I, pág. 19-20.

159 PEREIRA, C. M da Silva. ob. cit. pág. 26.

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necessidade de distingui-los, para que se possa construir a dogmática da

posse com base nos preceitos fundamentais que se ajustam,

caracterizando-se os inadaptáveis como exceções que se explicam com

sua gênese. Querer proceder de outra forma, na tentativa de conciliar

princípios contraditórios pelo simples ideal de unitarismo lógico, é

pretender solucionar problema análogo ao da quadratura do círculo.

Pode-se negar que o conceito de posse, no Código Civil Brasileiro, é o

exercício de fato de um direito, porque ele não abarca a hipótese do

herdeiro que, por ignorar que se lhe transmitiu automaticamente a posse

dos bens do 'de cuius', não se comporta com relação a estes como titular

de qualquer direito? A exceção não destrói a regra; apenas comprova

que, no terreno jurídico, a lógica se submete à realidade que a ela

resiste.160

A POSSE NA FENOMENOLOGIA JURÍDICA COMO FATO SOCIAL

Entramos, nesse tópico, na discussão a que nos propomos inicialmente.

Observou-se no estudo das duas principais teorias acerca da posse -

teoria objetiva e teoria subjetiva - que havia necessidade da ocorrência dos dois

elementos que compõem a posse - o animus (elemento volitivo) e o corpus

(elemento material) - para sua caracterização, sendo que estas duas teorias

diferenciavam-se uma da outra pela forma como entendiam estes elementos.

Pela análise da bibliografia nacional percebeu-se que, relativamente ao

tema da posse como fato social, a mesma é escassa, entretanto foi possível

encontrar o ponto fundamental das teorias que sustentaram este

posicionamento e concluir que, para os seus defensores, os elementos - animus

e corpus - são prescindíveis para a caracterização da posse, visto que para se

determinar se alguma situação é ou não posse é necessário apenas analisar se

160 ob. cit. Posse: estudo dogmático. vol II. , págs. 369-371.

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há poder de fato (poder fáctico) sobre a coisa, abstraindo-se dos elementos da

posse. Delineou-se abaixo alguns posicionamentos que tentaram justificar o

fundamento da teoria da posse como fato social.

BARASSI, citado por Figueira Jr., doutrinou que:

[...] para determinar quando um estado exterior que represente o

exercício de um direito seja considerado como posse merecedora de

tutela, isto é, por si mesma, precisa demonstrar estes estados exteriores,

no quais encontramos o contato de uma pessoa com um coisa (é o caso

mais simples e normal) de um ponto de vista mais amplo do que aquele

que não seja o puro interesse do indivíduo [...]

[...] toda relação de poder entre uma pessoa e uma coisa, à qual o

comum juízo de valor, que se pode chamar de 'coscienza sociale', atribui

o caráter de senhoria de fato, merecedora, pela sua social importância,

de ser tutelada por si mesma. [...]161

Infere-se da doutrina de BARRASSI, que a teoria do fato social distancia-

se dos elementos animus e corpus, pois vê na relação entre a coisa e a pessoa

uma relação de poder que assim aparece diante da sociedade (fato social).

PONTES DE MIRANDA doutrinou neste sentido salientando que:

A posse é estado de fato, em que acontece poder, e não

necessariamente ato de poder. A relação possessória é inter-humana e a

posse exerce-se por atos ditos possessórios; mas tem-se de distinguir,

ainda no mundo fático, o poder e o exercício do poder. A posse é

poder, pot-sedere, possibilidade concreta de exercitar algum poder

inerente ao domínio ou à propriedade. Não é o poder inerente ao domínio

ou à propriedade; nem, tampouco, o exercício desse poder.

Rigorosamente, a posse é estado de fato de quem se acha na

possibilidade de exercer poder como o que exerceria quem fosse

proprietário ou tivesse, sem ser proprietário, poder que sói ser incluso no

161 ob. cit., Posse e ações possessórias. vol. I, p. 92.

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direito de propriedade (usus, fructus, abusus). A relação inter-humana é

com exclusão de qualquer outra pessoa; portanto é relação entre

possuidor e o alter, a comunidade. Se bem que no mundo fático, é

situação erga omnes; ou, melhor, real. [...]

[...] nos nossos dias, eliminado o voluntarismo Kantiano, a posse é tida

como poder fático, o que elimina a necessariedade do corpus e do

animus, ao mesmo tempo que se mantém a noção de relação inter-

humana, social, sem se ter de pensar em 'vontade'.162

Conclui-se que para caracterizar a posse não é necessário que se

pratique qualquer ato, pois a mesma é poder.

JOEL DIAS FIGUEIRA JR., desenvolvendo a teoria do fato sócio-

econômico potestativo, concluiu que para se identificar uma situação

possessória não é necessário analisar os elementos que compõem a posse

como defendido por IHERING e SAVIGNY, assim doutrinou :

A caracterização da posse prescinde do exercício de atos (exteriorização

material que é própria, como dissemos, de um concepção naturalista do

corpus), bastando, em qualquer hipótese, a existência de poder sobre um

bem. Por isso, exemplificando, é admissível a posse de um imóvel sem

que o possuidor o cultive, explore ou visite. Como não existem

parâmetros ou diretrizes que determinem a atuação máxima ou mínima

do titular de um direito, pela mesma razão, sendo a posse

desmembramento fáctico de alguns dos poderes inerentes a propriedade

ou direitos reais, também não encontramos parâmetros legais que

determinem a atividade de quem exercita qualquer desses poderes.

A posse não é o exercício do poder, mas sim o poder sócio-econômico

propriamente dito que tem o titular da relação fática sobre um

determinado bem. A posse caracteriza-se tanto pelo exercício como pela

162 ob. cit., tomo X, p. 7 e 16.

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possibilidade de exercício. Ela é a disponibilidade e não a disposição; é a

relação potestativa e não necessariamente o efetivo exercício.163

E adiante, ressaltando que o segundo aspecto deste poder de fato

consiste na abstenção de terceiros em relação à posse respectiva,

esclareceu que estes dois aspectos do poder de fato provocam uma

reação na coletividade donde surge a posse como fato social.

ALFREDO FEDELE, citado por Figueira Jr., corroborou este ensinamento

de que "o poder de fato não consiste na possibilidade material de excluir

terceiros, mas no fato de que os terceiros se abstenham e que não exista

obstáculo físico, ao menos duradouro, à ingerência do possuidor sobre a coisa.

Da relação entre sujeito e a coisa passa-se então a uma relação entre sujeitos,

isto é, a posse como fato social".164

Bem salientou ASTOLPHO REZENDE:

O que se verifica é que a posse é protegida, e deve ser protegida por si

mesma, independentemente de qualquer outra consideração. O

possuidor deve ser protegido pelo simples fato de possuir, por isso só

que possue, qualquer que seja a origem da sua posse. A posse não é

protegida por ser proibida a violência; a violência é que é proibida porque

a posse é e deve ser protegida. É na posse mesma, uma posse em si

mesma, e não caráter ilícito ou delictuoso da turbação que se deve

buscar a razão de ser da proteção possessória.

O possuidor é protegido, não porque seja uma pessoa; toda pessoa deve

ser protegida contra os actos ilícitos ou delictuosos mas sim porque é

possuidor, e, como tal, tem mais direito do que aquele que não possue.

(sic)

163 FIGUEIRA Jr., Joel Dias. Liminares nas ações possessórias. 1. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 30 e 32.

164 idem, ibidem, p. 33

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NATUREZA JURÍDICA DA POSSE

A natureza jurídica da posse é tema que muito incômodo trouxe aos

doutrinadores, e não houve, relativamente a este assunto, jurista que não teceu

considerações. Diga-se, ainda, que essa matéria tem relevância tanto no direito

civil quanto no direito processual e, sobretudo, deve ser estudada pelo prisma

da dogmática jurídica, restringindo-se, portanto, sua análise ao sistema jurídico

ao qual se vincula.

Inúmeras concepções existem acerca da natureza jurídica da posse,

contudo, podemos reduzí-las a três grupos: os que entendem que ela é

puramente um fato; os que tem-na como um direito; e aqueles que a

consideram um fato e um direito ao mesmo tempo.

Importante destacar, antes de colocarmos alguns posicionamentos sobre

o tema, as palavras de MOREIRA ALVES:

Com efeito, para os que sustentam que a posse é um direito, sua

posição, no sistema do direito civil, vai depender da espécie desse direito:

se real, se pessoal, se real e pessoal ao mesmo tempo, se nem real nem

pessoal. Já para aqueles que entendem que ela ou é um puro fato, ou é

uma situação jurídica que não um direito subjetivo, o critério para essa

colocação terá de ser diverso, e poderá ser o da extensão horizontal que

se lhe atribui (o que vai depender de maior ou menor amplitude que a

ordem jurídica em causa dá à posse de direitos); ou a importância de

algum dos efeitos jurídicos que se lhe reconhecem; ou, ainda, de outro

aspecto que sirva para a valorização dela, e, conseqüentemente, para a

determinação de seu lugar dentro da sistemática do direito civil.165

165 ob. cit., vol. II, tomo. I, p. 126.

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A POSSE COMO FATO

Os que sustentam que a posse é puramente um fato, procuram justificar

seu posicionamento afirmando que a posse não se transforma em um direito

(não é um fato jurídico) tão somente pelos efeitos que a lei lhe atribui, visto que

pode estar a serviço de quem não é titular de qualquer direito sobre a coisa que

é seu objeto.

PONTES DE MIRANDA, entendeu que há necessidade da ocorrência de

um outro fato, para que a posse adentre ao mundo jurídico, ou seja, os efeitos

que dela decorrem dependem da realização de outro ato ou fato, visto que ela

por si só não é fato jurídico. Assim, expressa seu entendimento:

A posse não é efeito jurídico, nem soma de efeitos jurídicos; é o suporte

fático possessório (Besitztatbestand), que permanece pronto para a

entrada no mundo jurídico quando se dê o ato ou o fato que o suscite, e

só então há efeitos, portanto direitos, pretensões, ações e execuções.

Os direitos que exsurgem são direitos que resultam de algo mais que o

simples estado de fato. Quem transfere a posse não dispõe de direito - o

direito nasce ao adquirente do ato de disposição, com a transferência.

Antes, só se estava no mundo fáctico. [...] O que mais importa saber é

que o direito contemporâneo (à frente, e melhor que todos os outros

sistemas jurídicos, o sistema jurídico brasileiro) chegou à caracterização

da posse como fato puro, como acontecimento do mundo fático, que

somente penetra no mundo jurídico quando algum ato jurídico ou alguma

investida na esfera da ação de outrem suscita a tutela jurídica da posse.

Daí pode-se dizer que a posse entra no mundo jurídico, como fato jurídico

stricto sensu, quando objeto de algum ato jurídico ou quando ofendido o

status quo, indispensável a paz social. A posse, só por si, não se

juridiciza; a posse não é mais do que um dos elementos do fato jurídico

stricto sensu (posse + ato jurídico, ou posse + ofensa à ordem social).

Porque é valor, serve de objeto a atos jurídicos. Por que há o princípio

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Quieta non movere, permite-se que funcione a tutela possessória, que

então se cria no momento mesmo da ofensa.

Após essa fixação de quando a posse se judiciosa e a verificação de que

não é simultânea a ela - acontecimento do mundo fático - a juridicização,

à diferença do que ocorre a respeito dos outros fatos jurídicos stricto

sensu, como o nascimento e a morte, e um tanto parecida com a avulsão

que somente entra quando encontra o terreno de alguém, é que se há de

mencionar a abrangência do suporte fáctico das posses.166

FIGUEIRA Jr., em referência ao tema, disse que "a posse, sem dúvida, é

antes de mais nada um fato, que, por sua vez, gera efeitos jurídicos. Contudo,

não é por esse motivo que deve ser considerada como um mero estado ou

situação de fato que se transforma em direito em virtude da proteção que a lei

lhe confere, ou, ainda, concomitantemente, como pensam alguns, um fato e um

direito".167

EBERT CHAMOUN, citado por Figueira Jr., seguiu a mesma linha

afirmando que "é a posse um estado de fato, um poder de fato que alguém

exerce sobre uma coisa, e cujo conteúdo é exclusivamente econômico, porque

se relaciona com o aproveitamento econômico da coisa, considerada como

objeto de satisfação das necessidades humanas. Mas é um estado de fato

apenas no sentido de prescindir da existência de um título jurídico: há um direito

à proteção da posse sem que a posse esteja fundada em direito".168

RANDA, citado por Astolpho Rezende, acerca dessa questão manifestou-

se com muita propriedade dizendo que:

[...] a posse não é nenhum direito, mas um simples fato que, não

obstante, está próximo do direito. A proteção possessória não forma um

conteúdo de um direito de posse. A pretensão a esta é uma

166 PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. Direito das coisas:posse. 3. ed. Rio de Janeiro: Editor Bolsoi, 1971. TOMO

X, pp. 15, 17-18.

167 ob. cit., Posse e ações possessórias. vol. I, p. 125.

168 ob. cit, p. 125.

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conseqüência da posse, e não a posse mesma, nem é em si direito

algum. É verdade que todo direito requer um facto para seu nascimento,

porém continua ainda que o facto cesse; ao passo que a posse exige,

para sua continuação, a existência do facto da detenção. (sic)169

O entendimento, acima exposto, é o qual nos filiamos, posto que a posse

pelas peculiaridades que apresenta não enquadra-se como um direito e não

pode ter ao mesmo tempo dupla natureza jurídica como querem alguns.

A POSSE COMO DIREITO

Os defensores dessa corrente, sustentam que a posse é um direito

subjetivo, por conter todos os elementos necessários para a configuração deste.

Esta opinião tem sustentáculo no conceito que IHERING formulou sobre o

direito subjetivo, definindo-o como o interesse juridicamente protegido, vendo

na relação possessória uma relação jurídica.

IHERING, citado por MOREIRA ALVES, concluiu "que todos os direitos

sem exceção se apresentam como conseqüências jurídicas, isto é, como

conseqüências juridicamente protegidas em favor daqueles a que elas se

destinam".170

SERPA LOPES, corroborou este pensamento dizendo que:

Não temos dúvida em que a posse é um direito e não simplesmente uma

pura relação de fato. Demais, ex facto ius oritur. Se formos considerar a

posse como um não direito pela circunstância de se basear num fato, tal

marca teríamos de lançá-la em outros muitos institutos, porquanto, do

mesmo modo, se fundam em relações de fato. E entendemos assim

169 loc. cit., p. 280. José Carlos Moreira Alves, coloca que "...este fato - e este é segundo aspecto singular -, ao contrário dos fatos

que geram direitos subjetivos (que, uma vez nascidos, independem daqueles), é necessariamente duradouro (não importando que seja

maior ou menor a duração), pois a posse só existe enquanto ele perdura, o que implica dizer que a posse é um estado de fato (ob. cit.,

vol I., tomo II, p. 75)".

170 cf., vol. II, tomo II, pp. 88-89.

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como um direito por isso que se nos afigura incontestável a presença de

uma relação jurídica em todo e qualquer fato tutelado pela ordem jurídica

e aparelhado da actio.171

HERNANDEZ GIL, sustentou entendimento contrário de que a posse seja

um direito, contudo, não afirmou categoricamente que a mesma seja um fato

tão-somente, pois isto a eliminaria do mundo jurídico. Advertiu, ainda, que os

que procuraram defender a posse como sendo um direito, preocuparam-se

mais com sua tutela do que com seu conteúdo:

...En el fondo de todo e lo se advierte el juego de una espontánea

floración social rebelde a las categorias acuñadas por la construcción

juridica. El legislador ha tenido, sin duda, que afrontar el problema del uso

y disfrute de los bienes, sin más, y ha dictado normas de protección;

normas rudimentarias, poco evolucionadas. Los juristas, acostumbrados

a la tarea de la racionalización, no encuentran el encaje adecuado para

esta pieza extraña y sutil, esencial y zigzagueante. La contraposición

hecho-derecho señala los extremos de la antítesis; pero hay otras

posiciones intermedias: hecho jurídico, estado o situación de hecho,

relación, interés legítimo. Es la misma realidad social, que se venga del

que la elude y se sobrepone a las cerradas sistematizaciones. Estra

realidad, en los derechos propiamente dichos, queda como aprisionada y

dotada de completa normatividad. En la posesión, en cambio, siguem

fluyendo. Porque se trata de una estructura no transformada del todo en

institución jurídica; dicho de otro modo: la efectividad jurídica sigue

apoyándose en realidad social. 172

Talvez, por isso, tenha a posse ensejado o surgimento de tantas teorias

acerca da sua natureza jurídica. Não obstante, as peculiaridades que apresenta

171 ob. cit., p. 90.

172 HERNANDEZ GIL, António. La función social de la posesión: ensayo de teorización sociológico-jurídica. Madrid: Ediciones Castilha

S/A, p. 123.

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a posse, há autores que afirmam categoricamente que "não se póde deixar de

considerar a posse 'um facto jurídico'; ella o é incontestavelmente".173

A POSSE COMO FATO E DIREITO

SAVIGNY, citado por Astolpho Rezende, resumiu esse entendimento e

salientando que "...a posse é um facto, enquanto se baseia num estado de

coisas completamente estranhas ao direito, sobre a detenção. Mas a posse é

em si mesma um direito, porque direitos estão ligados a esse estado de coisas.

E assim, ela é, ao mesmo tempo, um direito e um fato”. (sic)174

Infere-se, desta assertiva de Savigny, que o mesmo entendeu que a

posse em sua origem caracterizou-se como um fato, no entanto pelos efeitos

que ela produz deve também ser tida como um direito.

Essa concepção foi questionada principalmente por existirem situações

em que se reconhece os efeitos jurídicos da posse, sem contudo exista o fato

que lhe dá base.

Pelos posicionamentos colacionados percebeu-se que em relação a esse

tema muita dificuldade existe, o que, de certa forma, levou o arquiteto do Código

Civil Pátrio, definir a posse como "um direito de natureza especial".175

A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

A Constituição de 05/10/88 trouxe em seu bojo inovações dentre as quais

afigura a afirmação inequívoca da função social da propriedade, de importância

inestimável na atualidade.

Buscou-se encontrar qual o posicionamento da doutrina acerca deste

novo texto legal, procurando responder se esta inovação trouxe ou não uma

173 cf., p. 281.

174 ob. cit., p. 278.

175 ob. cit. p. 43.

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mudança no conteúdo do direito de propriedade. A doutrina diverge sobre o

tema. Oportuno trazer a baila alguns ensinamentos, notadamente no que tange

a aplicabilidade das normas constitucionais que versam sobre a propriedade

em detrimento do Código Civil.

ROGER RAUPP RIOS, após traçar algumas linhas acerca das principais

doutrinas do direito subjetivo afirmou que:

Nossa lei fundamental, ao disciplinar o regime jurídico da propriedade,

acolhe a moderna concepção de direito subjetivo, segundo a qual

conjugam-se o poder e o dever. [...] Rompe o constituinte de 1988, de

maneira insofismável com a concepção individualista do direito subjetivo

de propriedade, traçando-o como verdadeiro direito-função, instituidor de

nova dinâmica nas relações sociais entre os titulares e a sociedade.176

Para ORLANDO GOMES "as limitações, os vínculos, os ônus e a própria

relativização do direito de propriedade constituem dados autônomos que

atestam suas transformações no direito contemporâneo, mas que não

consubstanciam um princípio geral que domine a nova função do direito com

reflexos na sua estrutura e no seu significado e que seja a razão pela qual se

assegura ao proprietário a titularidade do domínio".177

ROSALINDA P. C. RODRIGUES PEREIRA, assim colocou a questão:

A propriedade, assim, se justifica desde que cumpra sua função social,

ela não é uma função social, mas tem uma função social, no que

podemos definir função social da propriedade como os deveres positivos

que devem ser exercidos pelo proprietário no exercício do direito de

propriedade, ou seja, a observância de determinadas condições - o

interesse coletivo - no exercício do direito de propriedade.178

176 RIOS, Roger Raupp. Função social da propriedade. LEX vol. 55, 17-25, março; 1994. Neste sentido JOSÉ AFONSO DA SILVA,

Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, RT, 1990, p. 419.

177 GOMES, Orlando. A função social da propriedade. Boletim da faculdade de direito. Coimbra. v. II, número especial. pp. 423-427,

1989.

178 PEREIRA, Rosalinda P. C. Rodrigues. A teoria da função social da propriedade rural e seus reflexos na acepção clássica de

propriedade. Revista de Direito Civil. vol. 65, pp. 104-128, jul/set.; 1993.

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IVAN LIRA DE CARVALHO, corroborou este entendimento e afirmou

que:

E é pela lente da atualização que o juiz deve enxergar o instituto da

propriedade, acobertado na vigente Constituição Federal. Só que

acolitado pela indispensável função social que norteia o exercício dos

direitos fluentes da referida garantia constitucional. Essa expressão

(função social), escrita no art. 5º, inciso XXIII e repetida no art. 186,

ambos da Lex Mater, goza realmente da seriedade que se espera de um

requisito alçado à sede constitucional. Assim, o Estado só garante a

propriedade que esteja produzindo e sendo útil à sociedade.179

Com base no texto constitucional alguns entendem que a inserção da

função social da propriedade retirou a proteção possessória da propriedade

que não cumpre com sua função social, sendo este o alcance da expressão,

tendo o Código, via de conseqüência , de adequar-se à Constituição e não esta

ser lida a luz daquele. 180

MARIA CELINA B. M. TEPEDINO, após tecer considerações sustentando

seu entendimento de que não existe mais a clássica dicotomia direito público/

direito privado, conclui que:

Em matéria de propriedade, essencial torna-se a normativa constitucional

para a reconstituição do instituto, no âmbito das relações privadas. A

atribuição constitucional da função social parece incompatível com a

tradicional forma de tutela do proprietário, aquele a quem era permitido

usar e abusar do bem de sua propriedade. As profundas restrições que,

pouco a pouco, foram sendo impostas às faculdades inerentes ao

domínio, acarretaram a crise do conceito tradicional e perplexidade entre

os operadores do direito civil com relação à determinação do conteúdo

179 CARVALHO, Ivan Lira de. O judiciário, a propriedade e os sem-terra. Revista de Informação Legislativa. vol. 114, pp. 337-345;

abr/jun, 1992.

180 FACHIN, Luiz Edson. Terra, direito e justiça: do código patrimonial a cidadania contemporânea. Revista do IAP. Curitiba. vol. 24,

pp. 201-208, abr/out 1991. Do mesmo autor ver também: O regime jurídico da propriedade no Brasil contemporâneo social. Revista do

IAP Curitiba. vol. 21, abr/out., pp. 189-198.

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mínimo da propriedade, sem o qual se desnatura o próprio direito. [...] Em

razão da supremacia da Constituição, que passou a se constituir como o

centro de integração do sistema jurídico de direito privado, a lógica da

propriedade privada deve obsequiar a regulamentação lá estabelecida,

que determina um novo regime jurídico para a matéria. [...]

Reformulando, pois, a antiga concepção, pode-se afirmar que a função

social passa a ser vista como elemento interno da estrutura do direito

subjetivo, determinando sua destinação, e que as faculdades do

proprietário privado são reduzidas ao que a disciplina constitucional lhe

concede, na medida em que, 'o pressuposto para a tutela da situação

proprietária é o cumprimento de sua função social', que por sua vez, tem

conteúdo predeterminado, voltado para a dignidade da pessoa humana e

para a igualdade com terceiros não proprietários.181

AYRES BRITO, consignando opinião contrária, defendeu "que o perfil da

nova Carta, em matéria de propriedade, foi tomado de empréstimo à

Constituição Militar de 69: tutela-se o direito de propriedade, mas não o direito à propriedade. E quanto ao perfil da propriedade mesma, está na caracterização

de uma propriedade privada do tipo individualista, e não de uma propriedade

privada do tipo solidarista”.182

HERNANDEZ GIL, analisando a função social da posse e a função social

da propriedade esclareceu de que forma a primeira mostra-se afetada pela

segunda :

Como resulta afectada la posesión por la función social de la proprieda?

En cuanto las normas configuradoras de las limitaciones de la propriedad

dejan de ser meramente negativas y obligan a una gestión socialmente

útil de los bienes, la figura de la propriedad estática y formal cede el paso

a uma propriedad dinámica, ocupando el primer plano no el tener

181 TEPEDINO, Maria Celina B. M. A caminho de um direito civil constitucional. Revista de direito civil. São Paulo, vol. 65, pp. 22-32,

jul./set., 1993.

182 BRITO, Carlos Ayres. Direito de propriedade. Revista de direito público. n. 91, p. 44-51, jul./set., 1989.

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atributivo, sino el disfrute actuante, la posesíon en suma. Mientras en la

propriedad a imagem del individualismo la coletividad sólo es

contemplada encarnando deberes de abstención que hagan posible el

poder del proprietario, en la propriedad con función social la colectividad

tiene una intervencíon muy distinta: la de receptora de los deberes

conexos con el derecho de propriedad. Aunque una consideración

superficial del problema permite pensar que la posesíon afectada por la

función social de la propriedad es la que forma parte del contenido de

este derecho, en rigor no queda de tal modo circunscrito el efecto de la

función social. Porque la función social abarca la gestión económica, la

explotación; consiguientemente, se extiende a cuantas personas y

situaciones resultan comprendidas en esos conceptos, o sea no sólo al

proprietário, aunque éste siempre experimente, de um modo directo o

indirecto, los efectos de la función.

Además de la función social derivada de la propriedad, existe otra

especificamente predicable de la posesión. La función social de la

propriedad estriba fundamentalmente en lo que hay en ella de eliminable.

La de la posesión radica, ante todo, en lo que tiene de imprescindible.

Como hemos indicado antes, tambíem cumple la propriedad una función

social cuando se facilita el acesso a ella respecto de los bienes de uso

necessario. Toda fórmula tendente a evitar la concentración

monopolística de la propriedad introduce un fenômeno socializador. Sin

embargo, aun en tal hipótesis se aprecia la diferencia de que la

propriedad privada no es el instrumento jurídico indispensable para

conceder el goce, mientras que sí lo es la posesión. 183

183 ob. cit., pp. 173-174.

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A POSSE NA VISÃO DOS TRIBUNAIS

Da análise da Jurisprudência observou-se que os julgados confirmam o

entendimento doutrinário de que o Código perfilhou a teoria de Ihering, não

obstante haja certa confusão na terminologia empregada pelos tribunais, o que

enseja que sustente, como demonstrado, que para caracterização da posse não

se faz necessário analisarmos os elementos que a compõem, sendo suficiente

estar demonstrado o poder de fato, fundamento da teoria da posse como fato

social. Vejamos alguns julgados:

"As questões de domínio devem ser arredadas nas ações possessórias,

não havendo lugar no possessorium para as alegações de caráter

petitório. Conforme tem sido decidido, a posse é um estado de fato, é a visibilidade do domínio ou a exteriorização da propriedade. Não é

título de domínio que a transmite e, sim, o seu efetivo exercício. Sendo a

posse questão de fato, bem por isso a sua prova não se faz através de

título de domínio, mas sim pela demonstração de ocupação física". (1º

TACiv. - SP - unân. da 1ª Câm., de 13-09-93 - Ap. 531978/6 - Juiz Santi

Ribeiro - Rubens Soares x FEPASA - Ferrovia Paulista S/A).

"O cessionário de herdeiros a quem por escritura pública foi transferida a

totalidade dos bens inventariados, bem como os direitos e ações

correspondentes, tem legitimidade para propor ação possessória contra

quem ilegitimamente detém parte dos bens transmitidos. Para que se

verifique a posse jurídica não é preciso que o possuidor resida no imóvel.

Basta que tenha possibilidade de dispor da coisa, o que é possível

independentemente da sua ocupação material". (TACiv. - RJ - unân. da

8ª Câm.., reg. em 19-4-94 - Ap 439-94 - Juiz Javro Ferreira - José Inácio

Sobrinho x Serrinha Futebol Clube).

"Para que se verifique a posse jurídica não é preciso que o possuidor

resida no imóvel, nele permaneça, edifique ou faça plantações; basta que

tenha a possibilidade de dispor da coisa". (TACiv. - RJ - unân. da 4ª

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 122

Câm., reg. em 28-6-94 - Ap. 14115/93 - Juíza Mariana Pereira -

Condomínio do Edifício Castelo de Bragança x Maria Messias Paz de

Carvalho).

"Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno,

ou não, de algum dos poderes inerentes ao domínio, ou propriedade.

(CC, art. 485). Para a caracterização da posse não é necessário que o

possuidor tenha contato físico permanente com o imóvel, bastando que o

detenha com 'animus rem sibi habendi'”.

Além da prova documental demonstrativa da posse, esta é evidenciada

pela existência de benfeitorias no imóvel, onde o possuidor mantém

empregado e realiza visitas freqüentes. A ausência de cercas em

determinada parte do imóvel não configura abandono, nem

descaracteriza a posse, considerando-se, ademais, que esta é

reconhecida por todos, inclusive pelo próprio Estado. Apelação

desprovida". (TRF - Ap. Cível n. 89.01.037017 - Rondônia - Ac. unân. da

3a. Turma - j. em 05.02.90 - p. em 02.04.90 - DJU, II, pág. 5.728 - Rel.

Juiz Vicente Leal).

"Provados os requisitos legais deve ser dispensada a proteção

possessória a quem detém a posse, desmerecendo beneplacidadas

invasões coletivas e planejadas de grileiros. A solução do problema social

quanto à ocupação produtiva das terras e dos conflitos decorrentes esta

afeta, primordialmente, aos governantes. O Juiz, todavia, deve ter cautela

e sensibilidade na outorga da prestação jurisdicional, evitando agravá-las,

autorizando medidas precipitadas, e omitindo-se quanto à prática de

violências contra as pessoas. Em conflitos coletivizados a postura do juiz

não pode ser impassível, não devendo seguir a parêmia 'fiat justitia et

pereat mundus'". (TJ/MT - Rec. de Ap. Cível n. 14.209 - Comarca de

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 123

Nova Xavantina - Ac. unân. - 2ª Cãm. Civ. - Rel: Des. Atahide Monteiro

Silva - in: DJMT, 25.02.92, pág. 4.).184

Pela análise dos julgados conclui-se, também, que não se admite a

posse de direitos pessoais.

"A doutrina pátria não reconhece garantia possessória a mero direito

pessoal, como o é o direito ao uso e gozo de linha telefônica. Não se

pode invocar interditos possessórios quando se quer proteger direito

pessoal que não é componente do domínio ou da propriedade. A nossa

lei substantiva não conhece posse de direitos pessoais". (TACiv. - RJ -

unân. da 8ª Câm., reg. em 3-3-94 - Ap. 7641/93 - Juiz Walter D'Agostino

- Conceição Aparecida Rodrigues Nunes Cordeiro x Telecomunicações

do Rio de Janeiro S.A. - TELERJ.).185

"É pacífico o entendimento de que não cabe ação possessória tendo por

objeto direitos pessoais. Portanto, não é admissível a pretensão de ser

reintegrado em direitos estatutários de agremiação clubística. Apelo

provido". (TACiv. RJ. - da 6.a. Câm., reg. em 22-11-94 - Ap. 1497/94 -

Juiz Nilson Diao - Luiz Roberto Fuser x Floresta Country Club).

"Os direitos pessoais relativos aos interesses de sócios em sociedade por

quotas não são suscetíveis de proteção pelas ações possessórias".

(TACiv. - RJ - unãn. da 2ª Câm., reg. em 08-06-9 - Ap. 5732/92 - Juiz

Gustavo Leite - Adilson Nunes Luiz x Nilda Souza Mendes).

CONSIDERAÇÕES FINAIS 1. O conceito de posse evoluiu desde os primeiros tempos em que foi

concebido, tendo sido tratado diferentemente em cada época da história.

184 Ainda neste sentido: RT'S 268/315, 268/213, 268/320, 249/151, 230/135, 195/285, 188/250, 187/714, 177/310, 173/195 e 167/692;

Consultar a obra de Guido Arzua (Posse: o direito e o processo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 1967), onde este autor

comenta os artigos do Código Civil que tratam da posse trazendo um repertório de jurisprudência juntamente com cada artigo.

185 Admitindo a proteção possessória nestes casos: COAD, boletim 07, ano 1994, cód. 064563; Jurisprudência do STJ, n. 35295.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 124

2. A sistematização adotada no Código Civil sofreu influência

principalmente do direito romano, canônico e germânico.

3. O Código Civil recepcionou a Teoria de Ihering chamada teoria

objetiva, no entanto cedeu em algumas situações à Teoria de Savigny

(elemento subjetivo).

4. Acerca da natureza jurídica da posse observou-se que a doutrina não

é pacífica, encontrando-se autores que a entenderam como um direito (SERPA

LOPES, CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, PINTO FERREIRA, ASTOLPHO

REZENDE, MARIA HELENA DINIZ), outros que entenderam-na como fato

(PONTES DE MIRANDA, JOEL DIAS FIGUEIRA JÚNIOR, SANTIAGO

DANTAS), e outros, ainda, que a entendem como fato e direito (LIMONGI

FRANÇA, CONSELHEIRO LAFAYETE, SAVIGNY, EDUARDO ESPÍNOLA,

LUIZ EDSON FACHIN).

5. O Código Civil admite o desdobramento da posse em direta e

indireta , admitindo também a posse da coisa ao lado da posse de direito.

6. Que a discussão doutrinária acerca da posse centralizou-se

principalmente nos elementos que a compõem (corpus e animus) justificando-a

como exteriorização da propriedade.

7. Que a doutrina da posse, como fato social, abstraiu dos elementos

que a compõem (animus e corpus) sendo suficiente para caracterização da

posse a ocorrência do poder de fato (poder fáctico) sobre a coisa.

8. A jurisprudência consagra a teoria de Ihering, no entanto existem

alguns julgados que aceitam a caracterização da posse pela existência do poder

de fato sobre a coisa, sem analisar os elementos da posse, revelando a

tendência moderna de se entender a posse como fato social.

9. Com o advento da Constituição de 05/10/88 que trouxe - no

capítulo que trata da ordem econômica - o princípio da função social da

propriedade, ocorreu uma mudança no conceito de propriedade, não se

admitindo que vigore o conceito adotado pelo Código Civil Pátrio.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 125

10. O fim social da propriedade só pode ser atingido por intermédio da

posse, embora os tribunais ainda não apliquem a norma constitucional como

deveriam, fundamentando suas decisões nos conflitos possessórios na doutrina

tradicional.

11. Pela análise jurisprudencial concluiu-se que a sistematização

adotada não admitiu a posse de direitos pessoais.

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v

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 128

ALIMENTOS ENTRE CONVIVENTES : UMA ANÁLISE CRÍTICA

JÚLIO CÉSAR BACOVIS

Advogado no Paraná. Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo.

RESUMO: O artigo trata do direito de pensão alimentícia entre "conviventes", pessoas (homem e mulher) que vivem em regime de união estável, formando entidade familiar nos termos do § 3º do artigo 226 da Constituição Federal. Após análise histórica sobre a obrigação de prestar alimentos, o autor cuida especificamente da Lei 9.278/96, a qual prevê a hipótese de alimentos na união estável, enfrentando a sempre polêmica questão da fixação do valor devido, o chamado "quantum" da pensão alimentícia. ABSTRACT: The article deals with the right of alimony between "consorts", people (man and woman) that live in a consensual marriage, constituting a family entity in the terms of § 3 of article 226 of the Federal Constitution. After a historical analysis on the obligation to maintain a person, the author focuses specifically on Law 9.278/96, which foresees the alimony hypothesis in consensual marriages, always facing the polemical question over the settlement of the value of matter in controversy, the so-called "quantum" of the alimony.

CONCEITO

São expressivas as palavras de YUSSEF CAHALI ao afirmar que “o ser

humano, por natureza, é carente desde a sua concepção; como tal, segue o seu

fadário até o momento que lhe foi reservado como derradeiro; nessa dilação

temporal – mais, ou menos prolongada – a sua dependência dos alimentos é

uma constante, posta como condição de vida.” 186

186 CAHALI, Yussef S. Dos alimentos. São Paulo. RT. 1a ed. p. 1

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Após transcrever a definição de Pontes de Miranda inserta no seu

Tratado de Direito Privado, que define alimentos como sendo “o que serve à

subsistência animal” diz o ilustre jurista que bastaria acrescentar a esse conceito

a idéia de “obrigação” que é imposta a alguém, em função de uma causa jurídica

prevista em lei, de prestá-los a quem necessita.” Daí a sua definição à palavra

“alimentos” vem a significar tudo o que é necessário para satisfazer aos

reclamos da vida; são as prestações com as quais podem ser satisfeitas as

necessidades vitais de quem não pode provê-las por si; mais amplamente, é a

contribuição periódica assegurada a alguém, por um título de direito, para exigí-

la de outrem, como necessária à sua manutenção”.187

Para Clóvis Beviláqua “a palavra alimentos tem, em direito, uma acepção

técnica, de mais larga extensão do que na linguagem comum pois compreende o

que é necessário à vida: sustento, habitação, roupa e tratamento de

moléstias”.188

A palavra alimentos significa, em síntese, tudo o que é necessário à vida

e tem obrigação de prestá-los somente àquelas pessoas designadas em lei ou

em função de uma causa jurídica pois afora isso se estará diante da prestação

de alimentos voluntários.

SÍNTESE HISTÓRICA SOBRE A OBRIGAÇÃO DE PRESTAR ALIMENTOS

A obrigação de alimentos foi reconhecida pelo direito romano, desde que

se fundasse em qualquer das seguintes causas: (a) na convenção; (b) no

testamento; (c) na relação familiar; (d) na relação de patronato; (e) na tutela.

A obrigação alimentícia baseada nas relações familiares não esteve

presente nos primeiros momentos da legislação romana, haja vista que, por

força da estrutura do “paterfamília” em que o titular do “pátria potestas”

187 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado, tomo IX, § 1.000. Rio de Janeiro: Borsoi, 1976, p. 207.

188 apud CAHALI, Yussef S. p. 2

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concentrava toda a autoridade patrimonial sobre seus dependentes, a estes não

era dado o direito de pleitearem qualquer desejo de ordem patrimonial pois,

sendo totalmente privados de capacidade patrimonial, a recíproca da

exigibilidade de alimentos não existia.189

Não há uma determinação precisa do momento histórico a partir do qual

essa estrutura foi se permeabilizando no sentido do reconhecimento da

obrigação alimentar no contexto da família.

Terá sido a partir da época do principado, em concomitância com a

progressiva afirmação de um conceito de família em que o vínculo de sangue

adquire uma importância maior, quando então se assiste a uma transformação

do dever moral de socorro, embora largamente sentido, em obrigação jurídica

verdadeira e própria, a que corresponderia o direito alimentar, tutelável através

da “cognitio extraordinem”; a controvérsia então se desloca para a extensão das

pessoas vinculadas à obrigação alimentar.190

No direito justinianeu foi seguramente reconhecida uma obrigação

alimentar recíproca entre ascendentes e descendentes, paternos e maternos na

família legítima, entre ascendentes maternos, pai e descendentes na família

ilegítima, com exclusão daquela constituída ex nefaniis vel incestis vel damnatis

complexibus; talvez entre irmãos e irmãs; e muito provavelmente pertence a

esse período a extensão da obrigação alimentar à linha colateral.

Discute-se, também, a existência de uma obrigação alimentar recíproca

entre cônjuges.

Para Moreira Alves, “no direito clássico – segundo tudo indica (v. Carlo

Longo), impõe-se a negativa; quanto ao direito justinianeu, entende Bonfante

(mas a matéria é controvertida) que a mulher tem direito a alimentos, mas o

marido não.” 191

189 CAHALI, Yussef Said. Ob. cit. p. 28-29

190 Idem p. 29-30

191 CAHALI, Yussef S. ob. cit. p. 31

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O DIREITO BRASILEIRO PRÉ-CODIFICADO

Sob esse título, leciona Cahali que “nas Ordenações Filipinas, o texto

mais expressivo a respeito da obrigação alimentar (pelo menos o mais citado na

doutrina) encontra-se no Livro, título LXXXVIII, 15, na medida em que, embora

provendo sobre a proteção orfanológica, traz a indicação dos elementos que

comporiam a obrigação: “Se alguns órfãos forem filhos de tais pessoas, que não

devam ser dados por soldadas, o Juiz ordenará o que lhes necessário for para

seu mantimento, vestido e calçado, e tudo mais em cada ano. E mandará

escrever no inventário, para se levar em conta a seu Tutor ou Curador. E

mandará ensinar a ler e escrever aqueles, que forem para isso, até idade de 12

anos. E daí em diante lhes ordenará sua vida e ensino, segundo a qualidade de

suas pessoas e fazenda.”192

Nessa fase, o documento mais importante é o Assento de 9 de abril de

1772, que “proclamando ser dever de cada um alimentar e sustentar a si

mesmo", estabeleceu quais exceções àquele princípio.

Eram exceções os descendentes legítimos, os descendentes ilegítimos;

os ascendentes; os transversais.

Em relação aos descendentes legítimos não havia obrigação – direito e

ação dos filhos nos casos em que os pais ou quaisquer outros ascendentes, não

tivessem o indispensável para a própria sustentação; (no caso em que os filhos

tivessem ocupação própria e, pois, condições próprias para se manterem; no

caso de terem cometido ingratidão; no caso de afastamento dos pais sem justa

causa; nos casos de casamento sem consentimento dos pais.

As mesmas exceções eram impostas aos descendentes ilegítimos.

192 CHALI, Yussef S. p. 34

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Quanto aos transversais – não há parente algum nessa linha que deva

alimentos a outros transversais, pelo direito de sangue, porque como os

transversais não deram o ser uns aos outros, nem também o receberam de

algum de sua linha.

Os parentes colaterais, por mais próximos que sejam em grau, não são

obrigados a alimentarem os colaterais ilegítimos, prova-se pela Ord. do liv. 1 tit.

88 par. 11.193

O Alvará de 29/08/1776 deu força e autoridade de lei ao referido assento.

Teixeira de Freitas, na Consolidação das Leis Civis, articula em vários

dispositivos o dever de sustento dos filhos, os direitos recíprocos de alimentos

entre pais e filhos e entre parentes.194

POSIÇÃO DO TEMA NO CÓDIGO CIVIL

Os alimentos decorrentes do casamento estão previstos no art. 231, III,

do Código Civil sob a forma de “mútua assistência”; ou fazendo competir ao

marido, como chefe da sociedade conjugal, “prover a manutenção da família”

(art. 233, IV).

A Lei do Divórcio assegura o direito aos alimentos para o cônjuge não

culpado da separação.

DIREITO ALIMENTAR ENTRE CONCUBINOS. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA ATÉ O ADVENTO DA LEI 9.278/96

A possibilidade jurídica de se exigir de outrem os alimentos sempre foi

viável juridicamente desde que embasada num “título de direito.”195

193 Idem p. 40

194 Ibidem

195 CAHALI, Yussef S. ob. cit. p. 2

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Quanto as causas jurídicas de prestar alimentos, já referimos que são: a

lei, a vontade e o delito.

Quando a causa decorre da lei são denominados alimentos legítimos.

Alimentos voluntários são aqueles que decorrem da vontade, pode-se dar

através de contrato que fixe renda vitalícia ou através de disposição de última

vontade.

Por derradeiro, como causa jurídica de obrigação, encontra-se o delito,

ou seja, obrigação resultante de ato ilícito (art. 1537, inc. II e 1539, todos do

Código Civil) – homicídio e redução da capacidade laborativa, respectivamente.

Por essa razão é que anteriormente ao advento da Lei 8.971 de 29 de

dezembro de 1994 a concubina era carecedora de ação para postular alimentos

do seu ex-concubino.

Nesse sentido cabe citar o posicionamento de Washington de Barros

Monteiro196 que afirmava: “A concubina, porém, não tem direito a alimentos; só

pode pleiteá-los para a prole legítima.”

E, ainda, com apoio em Nicola e Francesco Stolfi: “A obrigação alimentar

é de natureza legal, a cargo das pessoas expressamente designadas, de tal

forma que se deve ter sua indicação por taxativa e não enunciativa.”197

A jurisprudência brasileira, em grande parte, decidia pela inexistência da

obrigação legal de serem dados alimentos em favor da companheira isso porque

“a nova Carta Constitucional evitou a equiparação do concubinato ao casamento

pelo proeminência que deu a este último instituto. Assim, a obrigação alimentar

entre concubinos escapa ao âmbito da norma do art. 226, par. 3º, da CF. O

dispositivo cria função de assistência para o Estado, não para o companheiro e

vice-versa”.198

Igual posicionamento consta no Acórdão unânime da 1ª Câm. Cível

publicado na RJTJSP, 1361/60 – Ap. 126.200-1 – Rel. Des. Roque Komatsu.

196 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito de família. São Paulo. Saraiva, II vol. 1983. 21ª ed. p. 293

197 idem p. 292.

198 cf. Acórdão proferido na Ap. 144.783-1/7 da 4ª Câm. Civ. Rel. Des. Vianna Cotrim. RT674/107

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Destacamos desse Acórdão o seguinte trecho:

“No Direito Brasileiro, a jurisprudência vem decidindo sistematicamente

pela inexistência da obrigação legal de alimentos em favor da

companheira. O fundamento da obrigação alimentar, existente entre os

cônjuges, não se estende aos participantes das uniões livres, more

uxorio. E se, mesmo após a separação, o ex-concubino continua

prestando durante certo período pensão mensal à antiga companheira,

nada o impede de cessar unilateralmente o pagamento, sem que aquela

possa exigí-lo pelas vias judiciais, uma vez que a liberalidade,

caracterizada como obrigação natural, não pode ser transmudada em

obrigação civil.”

Embora fosse assim alguns autores pugnaram pelo direito da prestação

alimentícia entre concubinos na união estável.

O ilustre juiz gaúcho SÉRGIO GISCHKOW PEREIRA em artigo publicado

na RT 657/julho/90 – concluiu com base em ensinamentos de Yussef S. Cahali

que “o dever de alimentos tem como fundamento uma obrigação de caridade e

solidariedade familiares. Está em sua base um dever ético de assistência e

socorro resultante do vínculo familiar. Se a Constituição passou a considerar o

concubinato como entidade familiar, como forma de família, não há porque este

dever de solidariedade não atue igualmente entre os concubinos [...] O direito a

alimentos diz com o direito fundamental e essencial de todos, que é o direito à

vida e à vida com dignidade. Estamos aí diante de princípio universal não

apenas moral, mas jurídico.”

Defendendo tese no sentido de ser possível a postulação de alimentos

entre concubinos escreveu BASÍLIO DE OLIVEIRA199, antes da vigência da

Lei.8971/94 que “a obrigação alimentar entre concubinos, a exemplo da

legislação de outros países, derivada da obrigação natural deve ser regida pelas

mesmas normas que regulam o direito alimentar entre os cônjuges casados.”

199 OLIVEIRA, Basilio de. O concubinato e a Constituição atual. Rio de Janeiro. 3ª ed. 1989. p. 79

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 135

Expõe, ainda, que “atualmente é pacífica a reciprocidade de dever

alimentar entre homem e mulher em nosso direito, no casamento, que se

estende também aos cônjuges concussionários, nos termos defendidos ... E tal

decorre do princípio igualitário estatuindo que:

“Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos

igualmente pelo homem e pela mulher.”(CF art. 226, par. 5º).

E tal preceito deve ser interpretado em confronto com a “regra de

isonomia inserta no art. 5º, inc. I, da Lei Maior, de que:

“Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos

desta Constituição.”

Compreendemos que a tese defendida, conquanto estruturada em fortes

argumentos não supera o fundamento da necessidade de um título de direito, ou

seja, através da proteção do Estado por intermédio do direito positivo que edita.

Com efeito, somente a lei podia fundamentar o direito aos alimentos entre

concubinos ou entre conviventes na união estável como entidade familiar.

A construção jurisprudencial se encarregou de pacificar o entendimento

que o patrimônio formado pelo esforço comum dos concubinos deve ser entre

eles partilhados uma vez provada a sociedade de fato. Entendimento esse

cristalizado na Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal.

Também predomina o entendimento dos tribunais quanto ao direito da

concubina por serviços prestados quando estranhos à relação concubinária .

(RT 410/155)

O Acórdão proferido no STJ – Resp. 183.718-SP 4ª Turma – relatado

pelo Min. Sávio de Figueiredo Teixeira – DJU de 18.12.1998 p. 367 retrata todas

as hipóteses em que a ex-companheira tem direito à indenização quer por

serviços prestados quer pela formação do patrimônio adquirido pelo esforço

comum.

Destaca-se o entendimento que consta no item III – Salvo casos

especiais, a exemplo da inexistência de patrimônio a partilhar, a concessão de

uma indenização por serviços domésticos prestados, prática de longa data

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consagrada pela jurisprudência, não se afeiçoa à nova realidade constitucional,

que reconhece “a união estável entre o homem e a mulher como entidade

familiar” (art. 226, par. 3º da Constituição).

Extremados os conceitos que constam dos acórdãos temos que a partilha

dos bens adquiridos pelo esforço comum entre concubinos tinha e ainda tem

como fundamento o princípio do enriquecimento ilícito ou sem causa. Nas

hipóteses especiais, como ausência de aquisição patrimonial, sedimentou-se o

entendimento da indenização pelos serviços prestados ao companheiro de vida

em comum durante certo período.

Esses posicionamentos tangenciavam a tese da existência de obrigação

decorrente do dever legal de prestar alimentos até o advento da Lei 9.278/96.

ALIMENTOS ENTRE CONVIVENTES – ASPECTOS DA LEI 9.278/96

Até a vigência da Constituição Federal de 1988 o direito da concubina se

limitava, então, à meação dos bens da sociedade de fato.

O entendimento jurisprudencial se consolidou ser devida a indenização

por serviços prestados.

Simples concubinato não conferia à mulher o direito de pleitear alimentos

do amásio sendo verdadeira a recíproca.

Conforme elucidou o Des. Dínio Garcia, RJTJSP 120/450200 “o

concubinato não tem a virtude de criar, entre as pessoas por ele ligadas,

nenhum dos deveres específicos da relação familiar. Não há, entre os estados

de família, um estado de concubinato” :

Daí a orientação jurisprudencial consolidada em vários Tribunais do País,

no sentido de que as pretensões resultantes da relação concubinária ou

sociedade de fato devem ser dirimidas pelo juízo comum (Vara Cível) e

200 CAHALI, Yussef Said. BH. Livraria Del Rey editora. 3ª ed. organizada por Sálvio de Figueiredo Teixeira p. 320.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 137

não pelos juizes das Varas de Família; assim, Tribunal de Justiça de São

Paulo, Distrito Federal, de Santa Catarina e do Paraná.

Ressalva-se o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que, após

decisões em sentidos diversos, consolidou a Súmula 14 em Câmaras

Cíveis Reunidas”.201

Com a vigência da Lei 8.971/94 a companheira passou a ter direito aos

alimentos tornando-se uma obrigação civil (debitum mais obligatio).

Conforme Luiz Edson Fachin “a obrigação alimentar tem como

pressuposto a existência de um determinado vínculo. Nos alimentos de natureza

parental sugere a fixação a expressão jurídica do parentesco [...] outras espécies

de obrigação alimentar pressupõe o vínculo decorrente da vontade, do

testamento, do contrato, da lei ou da existência da união estável. Nesta última, a

lei também vincula, nesta união, os companheiros para o efeito de prestação de

alimentos”. 202

De fato, a obrigação alimentar entre conviventes, disciplinada a partir da

Lei 8.971/94 insere-se entre as causas jurídicas dos alimentos legítimos.

Expõe Cláudia Grieco T. Pessoa que “na relação concubinária, os

alimentos revestem-se das mesmas características gerais da obrigação

alimentar de direito privado, a saber: a condicionabilidade e variabilidade, a

reciprocidade, a intransmissibilidade, a irrenunciabilidade e a incompensabili-

dade, a incedibilidade, a impenhorabilidade, a irretroatividade, a irrepetibilidade,

a reciprocidade, a alterabilidade da prestação, a peridiocidade e a divisibilidade.

A obrigação alimentar caracteriza-se ainda pela natureza personalíssima, por

conferir ação de terceiro que tenha ministrado os alimentos, pelo caráter não

transacional, pela aplicação imediata da lei no tempo, por se tratar a pensão

alimentícia de dívida de valor, pela ausência da solidariedade e pela pluralidade

de credores ou concurso de obrigações alimentares”. 203

201 Idem

202 FACHIN, Luiz Edson. ob. cit. p. 282/283

203 PESSOA, Cláudia Grieco T. ob. cit. p. 74/75

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Como se percebe, o direito aos alimentos entre os conviventes ou na

união estável inovou o sistema visto que antes somente os parentes ex vi legis

eram obrigados. Em face do dever de assistência os cônjuges podiam

reciprocamente exigir alimentos.

O ponto de partida para a interpretação da lei que instituiu alimentos

entre conviventes diz respeito à identificação das pessoas autorizadas à

postulação, sendo elas: mulher solteira, separada judicialmente, divorciada ou

viúva que tenham convivido há mais de cinco anos ou dele tenham prole. Igual

direito está assegurado ao homem.

As pessoas legitimadas à postulação dos alimentos são, portanto,

aquelas livres para contrair matrimônio. Mas não é só o requisito do

desimpedimento para contrair núpcias que as legitima à postulação dos

alimentos. Com efeito, o art. 1º da lei que instituiu os alimentos entre conviventes

inicia com a expressão “A companheira comprovada [...]” dando a entender que

será carecedor de ação aquela (e) que não tiver prova pré-constituída da união.

Luís Alberto Awrvalle, em trabalho sobre a regulamentação infra

constitucional dos alimentos na união estável, refere-se à Lei 8.971/94, com

ressalvas: “Tal lei, ao contrário, malgrado seu curto espaço de vigência, já

demonstrou indelével vocação para polêmica.”

Deveras, não basta existência da união extramatrimonial por si só para

justificar o pedido de alimentos. É mister a comprovação da união que haverá

de ser de tal modo consistente que o juiz não titubeie na concessão quer com

caráter de definitividade ou até mesmo provisoriamente. A exigida comprovação

deverá compreender o lapso temporal superior a cinco anos, exceto se houver

prole, hipótese em que a estabilidade da união poderá ser comprovada por

tempo menor que cinco anos.

Os pontos que, por certo, gerarão polêmica orbitarão sobre a

interpretação da expressão companheira comprovada, ou seja, se somente

aquelas pessoas com provas pré-constituídas é que poderão postular alimentos

para si ou se poderão provar a união através de testemunhas nos autos da ação

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de alimentos oportunidade que estariam buscando a obtenção da declaração da

união estável e, por conseguinte, condição sine qua non para o deferimento dos

alimentos.

Na opinião de Luiz Edson Fachin tal comprovação pode ser requerida”204,

sendo esse também o nosso entendimento.

Ocorre que o art. 2º da Lei 5.478 de 25 de julho de 1968 dispõe:

“O credor, pessoalmente, ou por intermédio de advogado, dirigir-se-á ao

juiz competente, qualificando-se, e exporá suas necessidades, provando,

apenas, o parentesco ou a obrigação de alimentar do devedor, indicando

seu nome e sobrenome, residência ou local de trabalho, profissão e

naturalidade, quanto ganha aproximadamente ou os recursos de que

dispõe.”

Em nota a esse artigo no Código de Processo Civil e Legislação

Processual em vigor anota Theotônio Negrão que: “Do modo como está redigida

a lei, a prova deve ser feita initio litis o que justifica a conclusão de que o rito da

Lei 5.478/68 não é adequado para as ações em que a prova da obrigação

alimentar não foi feita liminarmente.”

O ajuizamento da ação de alimentos acompanhado da prova pré-

constituída da união estável implicaria na fixação dos alimentos provisórios, se

requeridos, e deles o postulante expressamente declare a necessidade.

A ausência da prova pré-constituída, no entanto, não poderá ensejar o

indeferimento liminar da inicial isso porque a designação da audiência de

conciliação é fase processual que não poderá ser suprimida em razão da

relevância de que se reveste esse ato. Primeiro porque é o momento oportuno

para a tentativa da conciliação em presença do juiz. Segundo porque é nessa

audiência, se frustrada a conciliação, que o réu deverá apresentar sua defesa

instaurando-se a fase probatória com possibilidades de se obter até mesmo a

confissão provocada acerca da união.

204 ob. cit. p. 79

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Negados os fatos sobre a caracterização da união estável e não provada,

normalmente através de testemunhas, é claro que ao juiz não restaria outra

solução a não ser julgar improcedente o pedido dos alimentos postulados.

Resulta com clareza, portanto, a necessidade da produção da prova

testemunhal.

Sucede que a postulação de alimentos na união estável difere da que

ocorre no casamento e na filiação. Nestes a prova da filiação como do

casamento são indispensáveis porquanto são pré-constituídas razão pela qual a

lei de alimentos os exige, sob pena de indeferimento, que acompanhe a inicial.

São, enfim, os títulos que provam o dever contra quem se pedem os alimentos

provisórios e definitivos e é com base neles que o juiz fixa os provisionais.

Situação diferente vivem, obviamente, as pessoas na união estável pois

nem sempre possuem prova alguma pré-constituída. Aliás, são raras as uniões

cujas provas documentais convencem o juiz da estabilidade. Tenha-se em conta

que o art. 1o da Lei 8.971/94 exige prova do lapso temporal superior a cinco ou

da existência de prole hipótese em que o prazo poderá ser menor do que um

quinqüênio conforme observa RODRIGO DA CUNHA PEREIRA205 opinião com

a qual concordamos plenamente.

Em razão dessas breves incursões acerca do tema concernentes à

ciência processual civil é que defendemos a desnecessidade da apresentação

da prova pré-constituída sobre as uniões estáveis.

A expressão companheira comprovada significa, portanto, companheira

de uma união estável possível de ser convertida em casamento.

O PROBLEMA DO QUANTUM DEBEATUR

Referimos que o direito a alimentos entre concubinos não existia em

nosso direito. Eram devidos em face da existência de vínculo de parentesco (jus

205 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. ob. cit. p. 113

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sangüinis) e em face do dever de assistência mútua decorrente do vínculo

matrimonial. Outra hipótese é a que decorre do ato ilícito como também da

obrigação contratual.

Havia e ainda subsiste a possibilidade da concubina pleitear a meação

dos bens adquiridos pelo esforço comum cujo fundamento está na Súmula 380

do Supremo Tribunal Federal.

A partilha do patrimônio decorre da aquisição do esforço não importando

a qualidade do concubinato. Os alimentos têm outra natureza jurídica e são

limitados às pessoas designadas na lei.

Somente com a vigência da Lei 8.971 de 29 de dezembro de 1994 é que

os conviventes puderam reclamá-los judicialmente.

Questão que atormenta é a que diz respeito a fixação da quantia

necessária para a satisfação das necessidades do alimentando que pode

compreender dinheiro em espécie. “A palavra tem conotação muito mais ampla

do que na linguagem vulgar, em que significa o necessário para o sustento. Aqui

se trata não só do sustento, como também do vestuário, habitação, assistência

médica em caso de doença, enfim de todo o necessário para atender às

necessidades da vida e, em se tratando de criança, abrange o que for preciso

para sua instrução”.206

A natureza jurídica do instituto dos alimentos, portanto, tem caráter

assistencial.207

Assim como nos alimentos decorrentes do parentesco ou da sociedade

conjugal a fixação da quantia em favor de quem os postula tem igual interesse

entre os conviventes.

Bem observa Eduardo de Oliveira Leite que “o encargo previsto na lei não

equivale a uma participação nas riquezas e nos rendimentos do obrigado,

especialmente se a modificação da condição econômica surgiu após a

separação, sem que o alimentando tivesse contribuído para a nova realidade. A

206 RODRIGUES, Silvio. Ob. cit. p. 384

207 Idem. p. 385

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sustentação desse argumento só pode induzir ao parasitismo, à ergofobia do

credor, quando os alimentos - já afirmara Clóvis Beviláqua – foram instituídos

para auxiliar quem dele necessita”. 208

O ponto de partida para a fixação dos alimentos para os conviventes,

obviamente, não poderá transbordar essa orientação. Assim, deve-se ter em

mira que os alimentos devem ser concedidos para acudir necessidades.

“Se a necessidade é a regra, o princípio e o fim dos alimentos, é

igualmente errôneo, como se inferiu em matéria jurisprudencial, que o

montante pode ser fixado até 33% dos ganhos efetivos do devedor

porque este “quantum”, sob hipótese alguma está a definir os recursos da

pessoa obrigada, mas, contrariamente ao que dispõe o texto legal, está

apenas considerando – e de forma unilateral – uma provável necessidade

do reclamante”. 209

Na fixação dos alimentos para os conviventes os juizes levarão em conta

tudo quanto já foi dito acerca dos alimentos para os cônjuges. Não que se esteja

propondo qualquer equiparação com o instituto do casamento mas, sim, que

sirvam tais elementos de subsídios para as decisões.

Não há, com efeito, parâmetros fixos e tampouco decisões que sirvam às

múltiplas situações que desaguarão sobretudo na justiça de primeiro grau.

Nesse mister os advogados têm a obrigação especial de peticionar de

acordo com a realidade mais próxima possível ao fim de afastar expectativas

sabidamente nascidas sob o signo da improcedência conforme observa Eduardo

de Oliveira Leite 210 quando refere “que quase sempre os pedidos de alimentos

são exagerados e não correspondem às reais necessidades do alimentando, o

que leva os juizes a deferir valores situados em patamares bastante inferiores

àqueles originariamente requeridos. Os advogados temendo a fixação de um

“quantum” aquém da expectativa dos clientes, lançam valores totalmente irreais

208 RT 771. Jan/2000 p. 39

209 Idem p. 39

210 Ibidem. p. 40

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para, finalmente, atingir uma “aproximação” à realidade invocada no art. 400. Um

verdadeiro círculo vicioso (e injusto) se estabelece: os pedidos são irreais

(porque ausentes de um parâmetro real) e os deferimentos igualmente irreais

(porque estabelecidos com base em premissas falsas).

Deveras, os alimentos não têm caráter ressarcitório ou indenizatório

tampouco.

Os casos práticos conduzidos pelos advogados bem revelam que após a

ruptura de uma dada união estável aflora o desejo de revanche daí manusear-se

ação de alimentos para a satisfação pessoal. Deve-se, então, conter o ímpeto

para se adequar os fatos à realidade.

“Sob qualquer ângulo que examinemos a doutrina, a noção de

necessidade está sempre presente. Ou, como bem apreciou Yussef Said

Cahali, “embora sendo o crédito alimentar ligado à pessoa do

beneficiário, as regras que o governam são, como direitos inerentes à

personalidade, normas de ordem pública...”(Dos alimentos, p. 20-21). Os

alimentos têm um sentido assistencial e não indenizatório (...) o dever de

pensionar o outro (só se impõe) se esta necessitar da pensão”(Silvio

Rodrigues, O divórcio e a lei que o regulamenta, p. 153); ou, ainda, a

finalidade dos alimentos é assegurar o direito à vida.” (Arnoldo Wald,

Curso de direito civil brasileiro – Direito de família, 11, ed., 1998. P.

45)”.211

Assim, pedir muito a quem tem pouco se nos afigura providência

inconseqüente pois apenas gera expectativa sem resultado prático algum.

Na realidade, continua Eduardo de Oliveira Leite 212, é dentro do binômio

necessidade x rendimentos que se resolve toda a questão do montante dos

alimentos, hoje, face ao princípio constitucional da igualdade de direitos e

obrigações entre marido e mulher (“Art. 226, par. 5º : Os direitos e deveres

referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela

211 Ob. cit. 41

212 Idem. ibidem

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mulher”), referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem

e pela mulher”), tendente à colaboração mútua dos cônjuges para a mantença

da prole do casal, não podendo o dever de alimentar conduzir ao sacrifício de

apenas uma das partes [...] E quando se fala em necessidade estamos nos

referindo ao orçamento de uma família que, naturalmente, não é somente uma

balança entre recursos e despesas, mas, e sobretudo, é o reflexo de uma

maneira de viver, própria a cada sistema familiar, vinculada a sua história, a sua

flexibilidade e a sua rigidez.”

Na sempre respeitada opinião de Clóvis Beviláqua “o preceito encerra um

dos principais fundamentos da teoria dos alimento: “Os dois cânones

fundamentais da teoria dos alimentos são os que o Código exprime neste artigo

e no seguinte”.213 Refere-se o autor ao artigo 399 do Código Civil : “São devidos

os alimentos, quando o parente, que os pretende, não tem bens, nem pode

prover, pelo seu trabalho, a própria mantença, e o de quem se reclamam, pode

fornecê-los, sem desfalque do necessário ao seu sustento”.

Em trecho transcrito por Cláudia Grieco T. Pessoa é clara a lição de

João Baptista Vilela no sentido de que “é de cabedal pertinência salientar que a

prova da condição de companheiro – ou seja, a prova da existência da união

estável – constitui mero requisito de admissibilidade da ação, devendo a ele ser

agregado, no exame de fundo – como, aliás, necessariamente ocorre em

qualquer demanda alimentícia – a prova da necessidade do alimentando e da

possibilidade material do alimentante, conforme a regra inserta no Código Civil

para os alimentos decorrentes do parentesco (art.400), mas que serve de

paradigma para as demais hipóteses do pleito alimentar”.214

Por certo a regra inserta no art. 400 do Código Civil será paradigma que

norteará as decisões judiciais.

Referindo à proporção, escreve Yussef S. Cahali “que tal como os

pressupostos da necessidade e da possibilidade a da proporção é maleável e

213 BEVILÁQUA, Clóvis. Apud PESSOA, Cláudia, Grieco Tabosa. Ob. cit. p. 105

214 PESSOA, Cláudia G. T. ob. cit. p. 106

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circunstancial, esquivando-se o código, acertadamente, em restabelecer-lhe os

respectivos percentuais, pois a final se resolve em juízo de fato ou valorativo, o

julgado que fixa a pensão [...] Assim, na determinação do quantum , há de se ter

em conta as condições sociais da pessoa que tem direito aos alimentos, a sua

idade, saúde e outras circunstâncias particulares de tempo e de lugar, que

influem na própria medida; tratando-se de descendente, as aptitudes,

preparação e escolha de uma profissão; com relação à mulher repercute

também a posição social do marido, o padrão de vida da sociedade conjugal que

se desconstituiu [...] Em realidade, ele (o cônjuge) tem direito, não apenas à sua

mantença, ao que foi estritamente indispensável ao seu sustento – ao chamado

'mínimo vital'- mas à prestação que garanta o seu status social e jurídico de

cônjuge. Tem direito, numa palavra, a manter o mesmo padrão de vida que o

outro cônjuge”.215

Conclui o ilustre jurista que “mais acertado, porém, entender-se que “o

critério jurisprudencial fixando o débito por alimentos em 1/3 dos rendimentos do

alimentante não é de obediência dogmática, podendo variar de acordo com as

circunstâncias;” pois “não há regra para o arbitramento da pensão alimentícia,

tudo dependendo dos fatos objetivos que se apresentam ao exame do julgador”.

Conforme Eduardo de Oliveira Leite “é gritantemente iníqua a atribuição

de tal valor – calcado no raciocínio do 1/3 dos proventos do devedor – porque

fica desmentida pela realidade”.216

As observações feitas pelo ilustre jurista paranaense embora referentes

ao cônjuge servem para a fixação dos alimentos entre conviventes.

Refere que “a vida social ou lazer”, como é comum ser invocado o item

nas pensões alimentícias deve ser considerado igualmente com base no padrão

de vida da comunidade familiar das disponibilidades financeiras do devedor e do

casuísmo próprio a cada situação.

215 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. cit. p. 480.

216 LEITE, Eduardo de Oliveira. O quantum da pensão alimentícia. cit. p. 47.

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Assim, certamente, na determinação do que seja uma necessidade

mínima, ou melhor, do que faz parte das necessidades vitais de um ser humano,

deve-se levar em consideração, caso a caso, se o credor é uma pessoa ativa ou

inativa, se exerce ou não atividade profissional, se tem ou não centro de

interesse limitado (a uma cidade, ou determinada região) ou se, ao contrário, a

sua rede de relações sociais é extensa e envolve diversos seguimentos sociais e

profissionais”.217

Ressalta que a legislação alemã representa um modelo a ser estudado e

avaliado.

O direito à mantença dos alimentos, após o divórcio, se encontra

regulamentado nos §§ 1569 e 1586 do BGB (CC alemão) , ou seja, um conjunto

de 17 artigos regulamenta as diversas hipóteses de incidência e inocorrência da

obrigação alimentícia, mas sempre reafirmando os pressupostos fundamentais

da pensão alimentícia, a saber, o da efetiva necessidade do credor e a

impossibilidade de prover a sua subsistência através da capacidade de trabalho.

A idade, a formação, a saúde e as aptidões do credor são critérios de

apreciação que devem ser considerados na análise de cada caso levado ao

judiciário.

Assim, na Alemanha, como nos informa Holzhauer (“Le divorce et ses

conséquences”. Mariage et Famille em question – alemagne, p. 132-137), a

existência de uma pensão supõe que um dos cônjuges não tenha condições de

exercer uma atividade profissional quer por motivos decorrentes da educação de

uma criança ( § 1.570, quer por motivo de idade (§ 1571) quer por razões de

doença (§ 1572).

Paralelamente a estes casos, a legislação alemã prevê no § 1.573, I, a

hipótese da impossibilidade de exercer uma atividade pelo fato de o ex-cônjuge

(credor) não encontrar trabalho, o que lhe garantiria o direito de pretender uma

pensão alimentícia.

217 Idem. p. 47

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O § 1.574 do BGB enumera como critérios de apreciação: a formação, as

aptidões, a idade e o estado de saúde. Da mesma forma, representa um papel

considerável “as condições de vida do casal” examinadas em função da duração

da união.

Mesmo a reinserção do cônjuge no mercado de trabalho é levada em

consideração pela lei alemã. Assim, uma formação, uma reciclagem ou mesmo

uma alteração de trabalho são levadas em consideração e devidamente

avaliadas no montante da pensão alimentícia “na medida em que elas são

indispensáveis ao exercício, por este cônjuge de uma atividade profissional

apropriada.” (cf. § 1.578, al. 2).

O objetivo da lei alemã é claro: a responsabilidade destas despesas deve

ser inserida no montante da pensão alimentícia de maneira a garantir uma

atividade profissional que assegure, posteriormente, a manutenção do cônjuge

separado, colocando fim aos débitos infinitos de alimentos, tão comuns no

Direito brasileiro e, sob todos os aspectos criticáveis, já que só tendem a

fomentar a ociosidade e um injustificável parasitismo.

O exemplo alemão vem imantado de significação porque não se

preocupa só com o atender das necessidades presentes, mas visualiza, em

manifesta tendência de acendrada justiça, a autonomia de ambos os cônjuges.

Credor e devedor, embora inicialmente, vinculado à obrigação alimentar,

tendem, a curto, ou médio prazo, a soluções definitivas, geradoras da

independência e autonomia fundamentais à dignidade humana. Igualmente

válidas, porque, liberando o devedor da obrigação de pagar e o credor da

obrigação de pedir, garante-lhes o retorno à normalidade da existência sem

permanecerem atrelados a créditos e débitos. 218

218 LEITE, Eduardo de Oliveira. . cit. p.48-49

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De sorte que, guardadas as proporções econômico-sociais de cada país,

as lições transcritas servem como lineamentos, entre nós, para a fixação da

pensão entre conviventes sem necessidade alguma de se mexer na legislação

existente.

Deve ser levado em consideração, todavia, que o convivente deverá ter

direito não apenas aos alimentos necessários para a sua subsistência (mínimo

vital) mas à prestação que proporcione status social sem, contudo, lhe incentivar

a ociosidade.

Se na Alemanha a dação de alimentos pressupõe que um dos cônjuges

não tenha condições de exercer atividade profissional quer por motivos

decorrentes da educação infantil (§ 1.570) quer por motivo de idade (§ 1.571),

quer por motivos de doença (§ 1.572) com muito mais razão esses critérios

podem ser fixados em relação ao conviventes. Nos anima defender a tese de

que os alimentos entre conviventes devem ser concedidos temporariamente.

É certo que o art. 1O da Lei 8.971/94 expressa que os alimentos devem

ser concedidos enquanto o alimentário não constituir nova união mas, conforme

leciona Yussef S. Cahali: “A decisão ou estipulação de alimentos traz ínsita a

cláusula rebus sic stantibus. O respectivo quantum tem como pressuposto a

permanência das condições de possibilidade e necessidade que o

determinam".219

Também se proclama que a sentença de alimentos não se sujeita ao

trânsito em julgado material; o efeito preclusivo máximo opera apenas

formalmente, de modo a deixar sempre aberta a eventualidade de modificação

do preceito.

PAULO MAIA CARNEIRO 220 referindo ao artigo 401 do Código Civil

brasileiro expressa que esse dispositivo está a demonstrar que o legislador,

“sensível à realidade das mutações econômicas, para preservar a natureza da

prestação alimentar, chegou àquela solução lógica de revisão. Jamais poderia

219 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. Cit. p. 567

220 CARNEIRO, Paulo Maia. Apud CAHALI, Yussef S. Dos alimentos p. 568

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ele ter olvidado que, sendo a obrigação alimentar, fundamentalmente, a de

prestação de alimentos e não de, apenas, da quantia certa, sua alterabilidade

repousa em questão de fato; essa circunstância também não importaria em

afrontar os pressupostos que determinariam a fixação.

É que as necessidades, quantitativamente, continuariam sendo as

mesmas. Mas quantitativamente, a pensão alimentar viria a tornar-se

incompatível com a mudança superveniente na fortuna de quem os recebe.

Trata-se pois de reajustamento à realidade, acomodando à cláusula rebus sic

stantibus, e não de modificação ao sentido da obrigação.

EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE, ao tratar do quantum da pensão

alimentícia lembra que “o montante da pensão alimentícia quase sempre não

corresponde à realidade das necessidades invocadas em juízo, ou a

inadimplência alimentar acompanha o período pós-decisão, ou as revisões

maliciosas são invocadas como mero revanchismo de situações pessoais não

resolvidas”.221

Aponta que duas são as causas determinantes do quadro apontado: 1) “A

de caráter legal deve muito à indefinição do tão invocado art. 400 (“Os alimentos

devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos

da pessoa obrigada”). “que como é sabido nada define nem indica qualquer

parâmetro de fixação do “quantum” alimentícia, critica o autor. 2) A outra é de

ordem cultural, pois “estabelece-se no Brasil, a lamentável prática de ter de se

exigir sempre “a mais” do que realmente necessita o credor, porque o Judiciário

sempre fixa “a menos”.

A prática é altamente perniciosa porque, além de falsear com a verdade,

cria a estranha sensação de que o pedido não corresponde à realidade.

A indefinição do art. 400 do CC, afirma Yussef Said Cahali, é proposital e

“tal como os pressupostos da necessidade e da possibilidade, a regra da

proporção é maleável e circunstancial, esquivando-se o código, acertadamente,

221 LEITE, Eduardo de Oliveira. ob. cit. p. 39

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em restabelecer-lhe os respectivos percentuais, pois a final se resolve em “juízo

de fato ou valorativo, o julgado que fixa a pensão”.222

Quanto aos fatores que devem ser considerados para a estimativa da

pensão, embora o CC (tal como no direito italiano) não tenha definido

expressamente em que consiste precisamente a obrigação legal de alimentos, é

certo que, pela natureza da mesma, esta tem por objeto “la prestazioni di tutto

quanto à necessario ai bisogni della vita, si in instato di salute che malattia. Vi si

comprendono quindi pricipalmente il vitto, il vestito, l’abitazione, i medicinali e le

spese di cura in caso d’intermità”.223

A Lei 8.971/94 expressamente refere à prova da necessidade estando

implícita a possibilidade de quem deve prestar alimentos.

JOÃO BATISTA VILLELA, citado por Cláudia Grieco T. Pessoa, sustenta

que os elementos concernentes à necessidade do alimentando e possibilidade

do alimentante são condições de fundo da prestação de alimentos, e acrescenta

que a inexistência dessa prova retiraria ao juiz o poder-dever de decretar de

prontos os alimentos provisórios. Diz ele: “É de cabedal pertinência salientar

que a prova da existência da união estável – constitui mero requisito de

admissibilidade da ação, devendo a ele ser agregado, no exame de fundo –

como, aliás, necessariamente ocorre em qualquer demanda alimentícia – a

prova da necessidade do alimentando e da possibilidade material do

alimentante, conforme a regra inserta no Código Civil para os alimentos

decorrentes do parentesco (art. 400), mas que serve de paradigma para as

demais hipóteses do pleito alimentar”.224

É de se concluir, portanto, que os alimentos entre conviventes além de

obedecer a fórmula do art. 400 do Código Civil Brasileiro – necessidade x

possibilidade – necessitam da prova inequívoca da existência da união estável.

222 CAHALI, Yussef S. Dos alimentos. p. 480

223 Idem. p. 484

224 ob. cit. p. 106

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Rio de Janeiro: Borsoi, 1976.

CAHALI, Yussef S. Dos alimentos. São Paulo : RT, 1998.

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. Direito de Família,

21ª ed. São Paulo : Saraiva, 1983.

OLIVEIRA, Basilio de. O concubinato e a Constituição atual, 3ª ed. Rio de

Janeiro [...].

FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos de Direito de Família. Rio de Janeiro :

Renovar, 2000.

RODRIGUES, Silvio. Direito de Família. São Paulo : Saraiva, 1985.

v

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O DANO MORAL E A JUSTIÇA DO TRABALHO – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

ALCÍDIO SOARES JÚNIOR

Advogado no Paraná. Professor Assistente na Universidade Estadual de Ponta Grossa.

Mestre e Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Paraná.

RESUMO: O texto cuida do dano moral no Direito do Trabalho como um tema de recente construção legal, doutrinária e jurisprudencial, que recebeu impulso inicial com a vigência da Constituição Federal (artigo 5º, V e X). O autor aborda pontos polêmicos como o conceito de dano moral e suas hipóteses no Direito do Trabalho, os critérios que devem nortear a fixação da reparação, sustentando a competência da Justiça Trabalhista para processar e julgar dissídios envolvendo ofensas a direitos de personalidade do empregado, causadoras de danos morais. ABSTRACT: The text is concerned with the pain and suffering in the Labor Law as a theme of recent legal, doctrinal and jurisprudencial construction, which received initial impulse with the validity of the Federal Constitution (article 5, V and X). The author approaches controversial questions as the concept of pain and suffering and its hypotheses in the Labor Law, the criteria that should guide the redress settlement, supporting the jurisdiction power of Labor Courts to sue and judge labor disputes involving offenses to the rights of the employee’s personality, which cause pain and suffering.

UMA VISÃO ATUAL

O tema dos direitos da personalidade constitui na modernidade um dos

mais relevantes e interessantes, na medida em que prima essencialmente pelo

que o homem tem de mais sagrado, como a dignidade, a honra, a integridade

psíquica, a imagem, o nome, a privacidade, entre outros.

Os valores ora mencionados são considerados, a rigor, como

inestimáveis, uma vez que levam em consideração aspectos intrínsecos de cada

pessoa e, portanto, um determinado grau de subjetivismo que é inerente a cada

ser humano, de modo que cada um vê e sente de forma toda peculiar.

O dano moral resultante de ato ilícito que venha ferir a honra, as crenças

políticas e religiosas, o bom nome, a liberdade e que origine sofrimento psíquico,

deverá ser reparado.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 153

A importância do dano moral tem crescido significativamente e tende a

aumentar ainda mais, na medida em que se desenvolva maior consciência sobre

a questão em si.

O homem, na proporção em que evolui e passa a ter uma compreensão

maior e melhor sobre cada um dos valores ora tratados, também dando aos

mesmos maior significado e importância.

Pode-se constatar também uma crescente preocupação por parte dos

juristas, doutrinadores e estudiosos do assunto ao se considerar a grande

atenção voltada para todas essas questões.

Nesse contexto destaque-se a relevância dos direitos da personalidade,

bem como, dos demais direitos e que quando feridos ou lesados, com mais forte

razão devem ser igualmente reparados.

Observe-se, no entanto, que durante muito tempo a indenização por

danos morais, mesmo no Direito Comum foi alvo de intensa e considerável

polêmica, insistindo até alguns juristas ao extremo de negar a tese da

reparabilidade do dano moral.

Por certo, as razões são várias. Entendem alguns doutrinadores que

é imoral a compensação da dor com o pagamento em dinheiro, além do que

um aumento patrimonial constituiria um enriquecimento sem causa.

Com relação ao direito do trabalho, nem se aludia a tal questão, uma vez

que não se considerava como sendo a indenização por dano moral matéria

trabalhista.

Na atualidade, a partir da evolução de determinadas interpretações

mais conservadoras, a questão resta pacificada, por assim dizer, não só

no plano jurisprudencial, mas especialmente no plano doutrinário.

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O AMBIENTE DO DIREITO DO TRABALHO

Com o advento da Constituição Federal de 1988, boa parte das

dúvidas foram dirimidas, o que se constata a partir de alguns de seus

dispositivos.

Artigo 5º :

Inciso V: “ é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo,

além da indenização por dano material, moral ou à imagem”.

Inciso X: “ são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a

imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano

material ou moral decorrente de sua violação”.

Também o artigo 114, da Constituição Federal no seu texto

menciona que é da competência da Justiça do Trabalho conciliar e julgar

os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores,

[...] e , na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de

trabalho.

Tem-se então que a partir de uma adequada e racional interpretação dos

dispositivos constitucionais, pode-se concluir necessariamente como sendo da

Justiça do Trabalho a competência para julgar as questões envolvendo o dano

moral oriundo da relação de emprego. 225

Não se olvide sobre fato indiscutível de que o dano moral sempre ocorreu

não só em ambiente de Direito Civil mas também em ambiente de Direito do

Trabalho.

Por ambiente de direito do trabalho deve-se entender também o dano

moral que decorre de um contrato de trabalho.

Para Orlando Teixeira da COSTA se o pedido decorrer ou tiver como

origem um contrato de trabalho a competência para julgar o caso será da Justiça

do Trabalho.226

225 FLORINDO, Valdir. A Justiça do Trabalho e o dano moral decorrente da relação de emprego, p. 319.

226 COSTA, Orlando Teixeira da. Da ação trabalhista sobre dano moral, p. 487.

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No entanto, no que diz respeito ao Direito do Trabalho foi a partir da

Constituição Federal de 1988, como já mencionado, é que o tema ganhou uma

maior relevância.

As relações de trabalho envolvendo empregado e empregador têm se

tornado cada vez mais complexas e esta complexização tem favorecido um

crescimento considerável de ocorrências ensejadoras do dano moral.

Observe-se que o dano moral no âmbito trabalhista tanto pode ocorrer

em relação ao empregador como ao empregado, podendo também ocorrer

antes, durante ou quando da terminação do contrato ou ainda até mesmo depois

de sua extinção.

CONCEITUAÇÃO DE DANO MORAL

Citem-se alguns conceitos sobre dano moral visando melhor

circunscrever não só o seu objeto mas também seus possíveis limites.

É encontradiço na doutrina especializada como sendo dano moral a lesão

a atributos valorativos ou virtudes como a reputação, a honra da pessoa como

ser social e integrado à sociedade.

Dano moral é o que sofre alguém em seus sentimentos, em sua honra,

na sua consideração social ou laboral, em decorrência de ato danoso, ou ainda,

aquele que incide sobre bens de ordem não material.

Geralmente considera-se dano moral a tristeza, a mágoa, o sofrimento e

a dor física e emocional, que se desdobram em conseqüências danosas.

De modo que, a lesão danosa à moral é o que se sofre como

repercussão de uma ofensa injusta, originada por um ato ilícito.

Por outro lado, quando houver prejuízo que repercuta no patrimônio

material do lesado, acarretado pelo mesmo ato ilícito, têm-se dano material e

não moral.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 156

DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO

Como já mencionado anteriormente, o tema do dano moral em ambiente

das relações de trabalho, vinha obtendo pouca atenção por parte da doutrina

brasileira, situação também semelhante vinha ocorrendo com a jurisprudência

que evoluía timidamente.

Não obstante, pode-se constatar que a Consolidação das Leis do

Trabalho (CLT) já trazia dispositivos 227 prevendo, de certa forma, a possibilidade

de reparação do dano moral, mas que, por razões não explicadas

adequadamente, não foram utilizados na sua plenitude.

A caracterização da prevalência depende do contexto em que foi

praticado o ato ou do fato gerador da obrigação desta decorrente.

O dano moral em ambiente de direito do trabalho concerne basicamente

a sua origem, ou seja, as delimitações são estabelecidas tendo em vista um

contrato de trabalho.

A questão do dano moral em ambiente do direito do trabalho, em linhas

gerais, deve ser concebido nos mesmos moldes em que é concebido no direito

comum, ou seja, contemplando o princípio básico e inarredável de que todo

dano, também o moral, deve ser reparado.

Ademais, o artigo 8º da CLT, no seu parágrafo único, prevê que o direito

comum será fonte subsidiária do direito do trabalho, naquilo em que não for

incompatível com os princípios contidos na Consolidação.

HIPÓTESES DE DANO MORAL NO DIREITO DO TRABALHO

Possivelmente são múltiplas e amplas as abordagens contempladoras do

dano moral em ambiente das relações de trabalho, no entanto, a doutrina vem

apresentando relação contendo situações fáticas ensejadoras de indenização.

227 Artigo 482, alíneas “j” e “k” e artigo 483, alínea “e”.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 157

Evidentemente tal relação é meramente exemplificativa, podendo por

certo, o dano moral ocorrer nas mais variadas situações.

Por exemplo, enseja a reparação por dano moral, o fato do empregado

proferir acusações infundadas contra o empregador, provocando menoscabo e

depreciação ao seu bom nome.

No caso de empregador que acessa informações inverídicas e

desabonadoras de seu ex-empregado a um possível novo empregador, também

poderá caracterizar indenização por danos morais.

Citem-se ainda outras hipóteses que podem ocorrer em ambiente do

direito do trabalho :

a) A acusação infundada na esfera criminal de ato de improbidade tanto

por parte do empregador como do empregado;

b) Comunicar o empregador, em órgão da imprensa, possível abandono

de emprego, não obstante ter o empregador ciência do endereço do

empregado;

c) Importunação sexual para fins libidinosos mediante perseguições ou

face à propostas de promoção.

Constata-se então que as possibilidades são inúmeras e será mesmo

através da caracterização da situação fatual que se determinará o cabimento ou

não da indenização.

Nem poderia ser de outra forma. O fato é que a indenização sempre

pressupõe um dano efetivo.

Tanto que, para Cláudio Armando Couce de MENEZES, um simples

melindre de um espírito mais delicado não importará necessariamente em uma

indenização por dano moral.228

228 MENEZES, Cláudio Armando Couce de. A responsabilidade civil no direito material e processual do trabalho, p. 15.

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AS DIFICULDADES PARA FIXAÇÃO DO VALOR DA INDENIZAÇÃO

A Constituição Federal, no seu artigo 5º, inciso X, assegura o direito a

indenização pelo dano material ou moral.

No entanto, a questão da indenização guarda enorme complexidade de

deslinde, veja-se a dificuldade de indenizar em dinheiro algo que é

economicamente inapreciável ou ainda considerado por alguns juristas como

imoral se vinculado a valores patrimoniais?

A fixação da indenização por dano moral é difícil e complexa.

Independente disto, a Constituição determina que haja uma indenização,

a exemplo de como acontece no direito comparado, quando do oferecimento ao

lesado de uma compensação econômica ou um pretium doloris.

São pelos menos dois os sistemas apresentados pela doutrina: o sistema

tarifário e o sistema aberto.229

Pelo sistema tarifário há uma pré determinação do valor da indenização.

O juízo apenas o aplica em cada caso concreto, limitando-se ao valor

estabelecido para cada situação. É o sistema utilizado nos Estados Unidos da

América do Norte.

De acordo com o sistema aberto atribui-se ao juiz a competência para

fixar o quantum, subjetivamente, que deverá corresponder à satisfação da lesão.

Este é o sistema adotado no Brasil.

Para fixar o valor deve o julgador restringir-se a alguns parâmetros

procedimentais, levando em consideração a extensão espiritual do dano, a

imagem do lesado e a do que causou a lesão, entre outros aspectos.

Também deve considerar a intenção do autor do ato danoso, como meio

de ponderar o mais objetivamente possível direitos ligados a intimidade, a vida

privada, a honra e a imagem das pessoas.

229 COSTA, Orlando Teixeira da. Da ação trabalhista sobre dano moral, p. 488.

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Ressalte-se que a situação econômica de quem deve indenizar é um

aspecto muito importante e que deve ser levado em consideração,

principalmente diante da hipótese de ser o empregador quem deve indenizar.

Por outro lado é oportuno lembrar que nem todo empregado é

hipossuficiente, sendo que alguns executivos possuem um nível de renda e de

patrimônio bastante altos.

Entretanto, no que concerne aos critérios para fixar o valor da

indenização, efetivamente não há respostas precisas e inabaláveis.

CONCLUSÃO

A reparação do dano moral em ambiente do Direito do Trabalho além de

ser um tema emergente, por assim dizer, também o é de grande relevância.

A indenização por dano moral trabalhista é amplamente assegurada por

preceito constitucional, cabendo à Justiça do Trabalho a função de exercer

jurisdição, nos termos do artigo 114 da Constituição Federal de 1988.

Nas ações indenizatórias de perdas e danos, tendo em vista que a

controvérsia – objeto do ressarcimento pelo dano sofrido, é oriunda da relação

jurídica de direito material de natureza trabalhista a competência é da Justiça do

Trabalho.

Dessa forma podem ficar as partes no Direito do Trabalho, ou seja, o

trabalhador e o empregador, principalmente aquele, com mais este instrumento

que poderá ser utilizado, tendo em vista uma eventual reparação de dano moral.

Por ser um tema relativamente novo, as múltiplas e variadas situações

fáticas que podem ocorrer diariamente em ambiente de trabalho, por tudo isso

considera-se como sendo um tema em aberto, ou seja, as suas possibilidades

ainda não estão consolidadas.

Caberá precipuamente aos operadores do Direito do Trabalho, uma visão

mais firme, mais audaciosa e acima de tudo mais crítica na abordagem destas e

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 160

de outras questões relativas à indenização por dano moral na Justiça do

Trabalho.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COSTA, Orlando Teixeira da. Da ação trabalhista sobre dano moral. In:

Revista Genesis, Curitiba, p 485-488, 1996.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 7ª ed. São Paulo:

Saraiva. 1990.

FLORINDO, Valdir. A Justiça do Trabalho e o dano moral decorrente da relação de emprego. In: Revista Genesis, Curitiba, p. 319-323, 1995.

GIUSTINA Beatriz Della. A reparação do dano moral decorrente da relação de emprego. Revista LTr, São Paulo, p. 1334-1336, 1995.

MENEZES, Cláudio Armando Couce de. A responsabilidade civil no direito material e processual do trabalho. In: Revista de Direito do Trabalho, São

Paulo, p. 10-19, 1996.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Direito do Trabalho na Constituição de 1988. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991.

RUSSOMANO, Mozart Victor. Curso de Direito do Trabalho.

Curit iba: Juruá Editora: 1995.

SUSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA Segadas.

Instituições de Direito do Trabalho. São Paulo, 11ª ed. São

Paulo: Ltr, 1991.

v

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DA RESPONSABILIDADE PELO FATO DO PRODUTO E DO SERVIÇO E A RESPONSABILIDADE PELO VÍCIO DO

PRODUTO E DO SERVIÇO NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

JOÃO FLÁVIO MADALOZO

Advogado no Paraná. Especialista em Direito Contemporâneo pela Universidade

Estadual de Ponta Grossa. Mestrando em "Direitos Difusos e Coletivos" pela

Universidade Metropolitana de Santos-SP.

RESUMO: O artigo cuida da responsabilidade civil no Direito do Consumidor, iniciando por uma leitura histórica da defesa do consumidor no Brasil, passando pela promulgação da Constituição Federal e culminando com a edição do Código de Defesa do Consumidor. O autor analisa tanto a responsabilidade pelo fato do produto ou serviço quanto a responsabilidade pelo vício do produto ou serviço, detalhando diversos aspectos de relevância para a compreensão da matéria. ABSTRACT: The article focuses on the civil liability in the Consumer Law, starting by a historical reading of the defense of the consumer in Brazil, passing by the Federal Constitution enactment and culminating with the publication of the Code of the Consumer Defense. The author analyzes both the responsibility for the fact of the product or service and the responsibility for the vice of the product or service, detailing different aspects of relevance for the understanding of the subject. BREVE HISTÓRICO DA DEFESA DO CONSUMIDOR NO BRASIL

A história da defesa do consumidor no Brasil está intimamente

relacionada com os aspectos econômicos, sociais e políticos do país.

Muito antes da criação de um instrumento legal que disciplinasse as

regras de consumo, houveram alguns movimentos populares relacionados ao

alto custo de vida, mas as décadas de 70 e 80 foram marcantes na evolução

histórica da defesa do consumidor.

Consumidores privados de eficazes instrumentos legais, desconhecendo

legislações pertinentes a assuntos diversos que os lesavam não dispunham de

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muitas alternativas para sua autodefesa. Assim, na década de 70 apareceram as

primeiras entidades relacionadas especificamente a defesa do consumidor.

Apenas em 13 de maio de 1975, foi criada a primeira entidade civil

consumerista, a Associação de Proteção ao Consumidor, fundada em Porto

Alegre/RS e vinculada à maçonaria, visando atender a necessidade de apoio e

orientação à população.

Também em 1975 criou-se a ANDEC - Associação Nacional de Defesa

do Consumidor, a qual mantinha sede no Rio de Janeiro e Brasília.

A imprensa contribuiu fielmente para a divulgação de matérias sobre a

defesa do consumidor. Diversos jornais da época procuravam manter colunas de

canal aberto de comunicação para que a população apresentasse suas queixas.

Em 1976, criou-se o Sistema Estadual de Defesa do Consumidor do

Estado de São Paulo, cujos objetivos eram de coordenar e integrar as atividades

públicas de proteção e defesa do consumidor; zelar pelo cumprimento das leis;

apresentar sugestões ou propostas de entidades representativas da

comunidade, informar e conscientizar os consumidores; realizar pesquisas de

preços; etc. Essa estrutura logo foi batizada de PROCON, tornando-se um órgão

de referência em todo o País.

Em novembro de 1979, criou-se a ADOC - Associação de Defesa do

Consumidor, em Curitiba/PR.

O movimento de formação de entidades de defesa do consumidor foi se

consolidando. Em 1979, existiam entidades em Florianópolis, Rio de Janeiro,

Brasília, Belo Horizonte, Recife, Salvador, Londrina, Curitiba, Cuiabá e 14

entidades em São Paulo.

Devido a esse crescimento, possibilitou-se a realização do Primeiro

Encontro Nacional de Entidades de Defesa do Consumidor, o qual teve como

sede nossa Capital.

Apesar do crescimento das entidades de defesa do consumidor por todo

o país, o grande número de leis e normas não eram objetivas para lutar contra

os artifícios de marketing e técnicas agressivas de vendas, onde fabricantes e

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 163

fornecedores impunham suas regras. As normas existentes não eram

respeitadas, não eram fiscalizadas pelos órgãos competentes e eram de difícil

acesso aos consumidores por exigirem testes laboratoriais.

Na década de 80, começou a visualizar-se o caminho do

amadurecimento nas relações de consumo.

Em 24 de julho de 1985, foi criado o CNDC - Conselho Nacional de

Defesa do Consumidor, por iniciativa do Ministro Extraordinário para a

Desburocratização, Paulo Lustosa.

O Conselho tinha por finalidade assessorar o Presidente José Sarney na

formulação e condução da política nacional de defesa do consumidor, sendo

composto por Ministros de Estado, dirigentes de entidades públicas de defesa do

consumidor, dirigentes de entidades do setor privado de defesa do consumidor,

membros do Ministério Público, entre outros.

Após a extinção do Ministério da Desburocratização, em 1986, o órgão

passou a fazer parte do Ministério da Justiça.

Logo criou-se um confronto com outros Ministérios, tendo como principal

o Ministério da Agricultura, com relação a uma portaria que autorizava a

liberação de hormônios para engorda de gado. Após grandes discussões, o

Ministro da Agricultura revogou a portaria, obtendo assim, o CNDC uma grande

vitória.

Com a promulgação da Constituição Federal, em 05 de outubro de 1988,

os consumidores brasileiros tiveram seus direitos contemplados. Viu-se assim,

consolidado o movimento da defesa do consumidor no País.

O texto constitucional, em seus artigos 5º, inciso XXXII, artigo 170, inciso

V e artigo 48 das Disposições Transitórias, estabeleceu que o Estado

promoveria a defesa do consumidor e seria elaborado um código de defesa do

consumidor.

Começou então, a grande batalha para aprovação do anteprojeto do

Código de Defesa do Consumidor, onde muitos de seus dispositivos foram

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 164

debatidos e combatidos pelo empresariado nacional, chegando a abalar a

situação de tranqüilidade existentes entre os fornecedores.

Realizou-se então, o 1º Congresso Internacional de Direito do

Consumidor, em maio de 1989, na cidade de São Paulo. O referido Congresso

teve como tema principal a análise do projeto do nosso Código, contando com a

presença de estudiosos de diversos países como: Estados Unidos, Holanda,

Bélgica, Portugal, Espanha, entre outros.

O Código foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 26 de junho, pelo

Senado Federal em 09 de agosto e, assinado pelo Presidente Collor em 11 de

setembro de 1990, sob a Lei nº 8.078, publicado em 12 de setembro de 1990,

passando a vigorar em 11 de março de 1991. O Código reconheceu e detalhou

os direitos básicos do consumidor, criou normas específicas para a

responsabilidade civil dos fornecedores pelo fato do produto e do serviço,

inverteu o ônus da prova, dispôs sobre a publicidade, estabeleceu mecanismos

para controle e condições gerais dos contratos e dispôs sobre a condição

repressiva administrativa e penal.

A Constituição Federal e o Código de Defesa do Consumidor passaram a

representar uma poderosa força para a sociedade civil, dando-lhe oportunidade

do desempenho de um papel mais ativo nas relações de consumo, com uma

atuação mais firme do consumidor e de suas associações, sejam elas de ordem

pública ou privada.

Como vimos, o Código de Defesa do Consumidor surgiu diante da

premência da proteção do pólo mais fraco na relação de consumo, qual seja, o

consumidor. Até bem pouco, elemento estranho ao cenário jurídico, integrando

tão somente a seara delimitada da economia, emerge agora com força total,

motivando o mundo jurídico onde, em várias nações, bandeiras se levantam em

busca de sua tutela.

Esse diploma legal aparece em nosso ordenamento jurídico, sob a

influência dos países europeus e por parâmetros americanos, firmando-se entre

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 165

nós como verdadeiro microssistema , criando caminhos na procura de solução

dos problemas vivenciados pela nossa sociedade contemporânea.

Nesse microssistema surgido sob tais influências, temos regulada duas

espécies de responsabilidade civil: a responsabilidade pelo fato do produto ou do

serviço e a responsabilidade pelo vício do produto ou do serviço

RESPONSABILIDADE PELO FATO DO PRODUTO E DO SERVIÇO Fato do produto ou fato do serviço significa dano causado pelo produto

ou pelo serviço.

O Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 12, cuida da

responsabilidade civil pelo fato do produto e, em seu artigo 14, pelo fato do

serviço.

FATO DO PRODUTO

Com relação a responsabilidade pelo fato do produto, os responsáveis

pelo dever de indenizar os danos causados ao consumidor, por produtos

portadores de defeitos são o fabricante, o construtor, o produtor e o importador.

Existe distinção entre o fabricante, construtor, produtor e importador:

- Fabricante

É aquele que, direta ou indiretamente, encontra-se no processo de

lançamento e desenvolvimento de produtos no mercado, seja o fabricante de

peças, o montador ou aquele que fabrica seu próprio produto;

- Construtor

É aquele que lança no mercado produtos imobiliários;

- Produtor

É aquele que coloca no mercado produtos não industrializados, como

produtos animais e vegetais;

- Importador

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 166

É aquele que traz para o nosso país produtos fabricados ou produzidos

em outro país.

O Código encarrega-se de conceituar o produto defeituoso, onde nos diz

que “o produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele

legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias

relevantes...”. Os defeitos dos produtos a que se refere o artigo 12 também

encontram-se subdivididos em defeito de criação, defeito de produção e defeito

de informação.

- Defeito de Criação

É oriundo do projeto ou da fórmula;

- Defeito de Produção

Oriundo da fabricação, construção, montagem, manipulação e

acondicionamento;

- Defeito de Informação

Oriundo da publicidade, apresentação, informação insuficiente ou

inadequada. Aqui não se trata de um defeito da coisa em si, mas da errônea

informação sobre o uso adequado do produto.

O parágrafo primeiro do artigo 12 diz respeito ao grau de segurança que

deve apresentar todo o produto e, considera principalmente a sua apresentação,

o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam e a época em que foi

colocado em circulação.

I - Apresentação

O produtor deve levar a conhecimento do consumidor os elementos

característicos junto ao produto, seja com relação à suas qualidades, seja com

relação aos riscos que apresente;

II - Uso Razoável e Segurança Legitimamente Esperada

Aqui se considera relevante não apenas o uso correto e específico do

produto, mas também, o uso previsível e os riscos possíveis desde que integrem

de forma razoável e expectativa do consumidor. Como exemplo os legisladores

citam o caso da caneta e do lápis, aos quais deve ser considerada a

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 167

possibilidade do consumidor levá-los à boca, ainda que este não seja seu uso

correto. Assim sendo, estes objetos não podem ser revestidos ou elaborados

com pintura ou material tóxico;

III - Época da Circulação

Trata-se do risco de desenvolvimento. É aquele que não pode ser

cientificamente conhecido ao momento de lançamento do produto no mercado,

vindo a ser descoberto somente após um certo período de uso do produto. Isto

devido ao conhecimento científico disponível a época de sua introdução no

mercado.

Na Responsabilidade pelo Fato do Produto, o Código estabelece que um

produto novo e de melhor qualidade não transforma outros produtos já

anteriormente colocados no mercado em defeituosos: “O produto não é

considerado defeituoso pelo fato de outro de melhor qualidade ter sido colocado

no mercado”. (art.12, § 2º).

No parágrafo 3º, do artigo 12, o Código prevê a exclusão da

responsabilidade pelo fato do produto, quando o fabricante, o construtor, o

produtor ou o importador provar que: “I - não colocou o produto no mercado; II -

que, embora colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; III - a culpa

exclusiva do consumidor ou de terceiro”.

Aqui a legislação não afasta a hipótese do ônus da prova, cabendo este

ao responsável legal pelo produto colocado no mercado.

RESPONSABILIDADE DO COMERCIANTE O Código de Defesa do Consumidor coloca o comerciante como

responsável quando: “1)houver dificuldades na identificação do fabricante,

produtor, construtor ou importador; 2)o produto for fornecido sem identificação;

3)quando o comerciante não conservar adequadamente os produtos perecíveis.”

(art.13).

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 168

Trata o artigo como responsável o comerciante, independente de sua

culpa, pelos danos causados por defeitos em produto, que este venha a

revender sem sua identificação clara ou mesmo no caso de não haver como

identificar o seu responsável legal.

Também dispõe sobre a falta de cuidados, pelo comerciante, ao

acondicionar produtos perecíveis (alimentos, etc.), deixando ao mesmo a

responsabilidade independentemente de culpa.

Já o artigo 13, parágrafo único, diz respeito à possibilidade do

comerciante não ser exclusivamente responsável pelo dano causado ao

consumidor, dispondo que para aquele que indenizar a vítima pelo prejuízo

causado, cabe o direito de regresso contra os demais responsáveis.

Portanto, aquele que paga pode exigir dos demais responsáveis o valor

que pagou além do que realmente devia.

FATO DO SERVIÇO Disposto no artigo 14 do CDC, o fato do serviço refere-se ao dano

ocasionado ao consumidor em função de defeito na prestação de serviço. O

sistema adotado é o mesmo quanto ao fato do produto, com algumas

particularidades.

Responsabilizam-se, independentemente de culpa, todos os

fornecedores de serviços, pelos danos ocasionados aos consumidores em

função de defeito na prestação de serviço ou por informações incompletas no

que diz respeito a segurança na sua execução.

Aqui, o serviço defeituoso, é aquele que não fornece a segurança que o

consumidor pode esperar. Leva o artigo, considerações relevantes:

I - modo de seu fornecimento;

Envolve-se aqui toda a publicidade realizada sobre o serviço promovido,

bem como suas informações técnicas;

II - resultado e riscos que razoavelmente se espera do serviço;

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 169

O resultado esperado é aquele que é indicado na mensagem publicitária

promovida pelo fornecedor do serviço;

III - época do fornecimento.

É o caso de que, se na época em que foi promovido o serviço, os

padrões de segurança utilizados para o mesmo, dispunham de técnica mais

apurada e o serviço foi prestado em padrões de técnica inferior. Responde

assim, seu fornecedor.

Já no caso do parágrafo segundo do presente artigo, o serviço não é

considerado defeituoso, se na época de sua elaboração, o fornecedor dispôs da

melhor técnica a ser utilizada.

O parágrafo terceiro, do artigo 14, exime o fornecedor de serviços da

responsabilidade, devendo ser observado os critérios elencados, ou seja: “I -

que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II - a culpa exclusiva do

consumidor ou de terceiro.”

A princípio, cabe ao fornecedor provar as hipóteses. Somente haverá

culpa de outrem quando não houver qualquer forma de defeito no serviço

prestado.

O Código prevê também a responsabilidade dos profissionais liberais,

encontrando-se disposto no parágrafo 4º, do artigo 14.

Tal responsabilidade somente será apurada mediante a verificação da

culpa destes profissionais, não se excluindo a inversão do ônus da prova.

O artigo 17 do CDC, dispõe sobre a extensão dos consumidores, por

considerar que seu conceito poderia vir a ser insuficiente para abranger todas as

relações de consumo. Esta extensão beneficia o consumidor tanto para o fato do

produto quanto para o fato do serviço. Beneficia então, as pessoas, sejam físicas

ou jurídicas que mesmo sem serem participantes da relação de consumo

venham a ser atingidas em sua saúde ou segurança devido a defeito do produto.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 170

DA RESPONSABILIDADE POR VÍCIO DO PRODUTO E DO SERVIÇO

Os produtos de consumo são classificados pelo artigo 18 do Código em

produtos duráveis e produtos não duráveis.

- Produtos duráveis: são aqueles que duram no tempo, apesar de seu

uso regular;

Exemplo: eletrodomésticos, automóveis, imóveis, roupas, etc.

- Produtos não duráveis: são aqueles que vão sendo eliminados devido ao

seu uso regular;

Exemplo: alimentos, medicamentos, produtos descartáveis.

Determina o artigo a responsabilidade solidária no fornecimento de

produtos, duráveis ou não, pelos vícios de qualidade e quantidade que os tornem

impróprios ou inadequados para o consumo ou que lhes diminuam o valor e,

também pela disparidade que vierem a apresentar através das indicações

constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária.

- Vícios de qualidade: são aqueles que fazem com que o produto não

funcione adequadamente ou funcione mal. Exemplo: a televisão sem som;

- Vícios de quantidade: são aqueles que não estejam de acordo com as

medidas ou pesagem. Exemplo: pacote de arroz de 5 kg, mas que só tem 4kg.

Os vícios também podem ser aparentes ou ocultos:

- Vícios aparentes: são aqueles de fácil constatação, ou seja, que pelo

uso do produto faz com que o consumidor logo o perceba. Exemplo: a geladeira

que não gela.

- Vícios ocultos: são aqueles que não podem ser vistos ou detectados

facilmente e que somente aparecem muito tempo após o uso do produto. É o

vício que o consumidor não tem acesso. Exemplo: um microcomputador que

após certo tempo normal de uso, vai apresentar o vício quando o consumidor

instala nele um kit multimídia.

O Código dispõe sobre prazo para que os vícios sejam sanados pelo

fornecedor. Este prazo é de 30 (trinta) dias, não podendo ser ultrapassado.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 171

Porém se o fornecedor ultrapassar este tempo, pode o consumidor, à sua livre

escolha exigir qualquer das alternativas previstas pela lei (art. 18, § 1º, I, II, III):

I - exigir a substituição do produto por outro da mesma espécie, em

perfeita condições de uso;

II - restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem

prejuízo de eventuais perdas e danos;

III - abatimento proporcional do preço.

Consumidor e fornecedor podem estipular o aumento ou redução do

prazo de trinta dias. Este prazo estipulado pelas partes não pode ser inferior a

sete e nem superior a cento e oitenta dias e, no caso de contratos de adesão, o

prazo deverá constar em separado com anuência expressa dada pelo

consumidor.

Caso o vício apresentado pelo produto venha comprometer sua qualidade

ou característica, diminua-lhe o valor ou em se tratando de produto essencial, o

consumidor pode utilizar-se de suas opções (substituição, restituição e

abatimento) de imediato.

Assim, se o consumidor optar pela substituição do produto e, esta não

sendo possível, poderá haver a substituição por outro de espécie, marca ou

modelo diverso daquele adquirido anteriormente, mediante a complementação

ou restituição da diferença.

O parágrafo 6º, do artigo 18, menciona os produtos impróprios para o

consumo.

Em primeiro, encontram-se os produtos cujos prazos de validade estejam

vencidos. Assim, mesmo que o produto aparentemente apresente características

de boa qualidade, apesar de estar vencido por um dia apenas, este deve ser

considerado viciado.

O inciso II, trata dos produtos que foram modificados em sua qualidade

ou quantidade seja por estarem deteriorados, alterados, adulterados, avariados,

falsificados, corrompidos, fraudados, sejam produtos nocivos à vida ou à saúde,

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perigosos, ou ainda que estejam em desacordo com suas normas

regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação.

Já o inciso III, dispõe sobre qualquer produto que se revele inadequado ao

fim a que se destina.

O artigo 19 do Código, prevê a solidariedade dos fornecedores frente aos

produtos que apresentarem vícios de quantidade dando ao consumidor as

opções de abatimento proporcional do preço, a complementação do peso ou

medida, a substituição do produto e a restituição imediata da quantia paga,

devendo esta ser atualizada monetariamente, sem prejuízo de eventuais perdas

e danos.

Da mesma forma, o artigo 20 dispõe sobre a responsabilidade do

fornecedor de serviços, pelos vícios de qualidade que estes venham a

apresentar, tornando o serviço impróprio ao consumo ou diminuindo seu valor.

Traz também, opções para a escolha do consumidor: I - reexecução dos serviços

sem custo adicional, somente quando cabível; a restituição imediata da quantia

paga, atualizada monetariamente, sem prejuízo de eventuais perdas e danos;

abatimento proporcional do preço.

Caso a opção seja pela reexecução dos serviços, o fornecedor poderá

confiar a mesma a terceiros, por sua conta e risco.

Também na reparação de qualquer produto, está o fornecedor de

serviços obrigado a utilizar componentes de reposição originais adequados e

novos ou que mantenham as especificações técnicas do fabricante. Contudo, se

o consumidor autorizar para que a reparação do serviço seja realizada com peça

usada ou retificada, o fornecedor não arcará com a responsabilidade, pois agiu

conforme determinação do próprio consumidor.

O Código prevê a obrigação dos órgãos públicos em fornecer serviços

adequados, eficientes, seguros e, em se tratando dos essenciais, estes deverão

ser contínuos, seja por si ou por suas empresas, concessionárias,

permissionárias, ou qualquer outra forma de empreendimento. Criou-se assim,

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para o consumidor, o direito à continuidade do serviço prestado pela

Administração Pública.

Ao consumidor também é facultado exigir em juízo que as pessoas

jurídicas cumpram e reparem os danos causados pelo descumprimento das suas

obrigações.

Pelo Código de Defesa do Consumidor, os fornecedores respondem pelos

vícios de qualidade por inadequação de seus produtos ou serviços, não cabendo

a alegação do desconhecimento dos mesmos.

A garantia legal de adequação pelo produto ou serviço não necessita ser

dada expressamente pelo fornecedor, assim, todos os produtos ou serviços

recebem uma garantia legal que independe da manifestação de vontade do

fornecedor.

Torna-se também nula qualquer cláusula contratual que disponha sobre a

não obrigação de indenizar por parte do fornecedor e, no caso de haver mais de

um responsável por dano causado ao consumidor, estes responderão

solidariamente com a obrigação de reparar o dano ao consumidor prejudicado.

Essa responsabilidade solidária também alcança a todos aqueles que, de

alguma forma, contribuíram para o dano causado por componente ou peça

incorporada ao produto ou serviço.

ANÁLISE COMPARATIVA

Nos dizeres do professor Rizzato Nunes “o vício é uma característica

inerente, intrínseca do produto ou serviço em si. O defeito é um vício acrescido

de um problema extra, alguma coisa extrínseca, que causa dano maior que

simplesmente o mau funcionamento, o não funcionamento, a quantidade errada,

a perda do valor pago”. Assim, quando a anomalia resulta apenas em deficiência

no funcionamento do produto ou serviço, mas não coloca em risco a saúde ou

segurança do consumidor não se fala em defeito, mas em vício. Portanto, fato do

produto ou serviço está ligado a defeito, que, por sua vez, está ligado a dano.

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Na responsabilidade pelo fato do produto e do serviço o defeito

ultrapassa, em muito, o limite valorativo do produto ou serviço, causando danos

à saúde ou segurança do consumidor. Já na responsabilidade pelo vício do

produto e do serviço o vício não ultrapassa tal limite versando , sobre a

quantidade ou qualidade do mesmo.

Na responsabilidade pelo fato do produto ou serviço, o Código adotou a

responsabilidade objetiva mitigada, cabendo ao consumidor mostrar a

verossimilhança do dano, o prejuízo e o nexo de causalidade entre eles. Ao

fornecedor cabe desconstituir o risco e o nexo causal. Já na responsabilidade

pelo vício do produto ou serviço, o CDC adotou a responsabilidade subjetiva com

presunção de culpa, porém, o consumidor poderá ser beneficiado com a

inversão do ônus da prova (art. 6º, VIII), caso em que o fornecedor terá o mesmo

ônus previsto na responsabilidade objetiva, ou seja, desconstituir o nexo causal

entre o risco e o prejuízo.

Na responsabilidade pelo fato, o comerciante responde subsidiariamente,

pois os obrigados principais são o fabricante, o produtor, o construtor e o

importador. Assim, só será responsabilizado quando aqueles não puderem ser

identificados, quando o produto fornecido não for devidamente identificado, ou

ainda, quando não conservar os produtos perecíveis adequadamente (art. 13,

CDC). Na responsabilidade pelo vício , por sua vez, o comerciante responde

solidariamente, juntamente com todos os envolvidos na cadeia produtiva e

distributiva (art. 18, CDC),

Como semelhanças temos que a reparação do dano é integral tanto para

a hipótese de acidente de consumo (responsabilidade pelo fato), quanto para os

vícios de adequação. Assim, poderá o consumidor reparar todos os danos,

sejam pessoais (morais) ou materiais (patrimoniais).

Além disso, apesar do capítulo referente ao vício do produto ou serviço

não especificar nenhuma excludente de responsabilidade, pode-se dizer que

aquelas previstas para o fato do produto ou serviço, tais como a inexistência do

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defeito e a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro, também são aplicáveis

ao primeiro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARVALHO, Mirian Regina .Direito do Consumidor Face à Nova

Legislação,1ªed., São Paulo, Editora de Direito, 1997.

DELUCCA, Newton. Direito do Consumidor, v. 10, São Paulo, Editora Revista

dos Tribunais, 1995.

ZANON, José Antonio. Direitos do Consumidor e a Responsabilidade dos

Fornecedores,1ª ed., São Paulo, Editora Copola, 1996.

Direito do Consumidor, v. 13, Instituto Brasileiro de Política e Direito do

Consumidor, janeiro/março – 1995.

Direito do Consumidor, v.14, Instituto Brasileiro de Política e Direito do

Consumidor, abril/junho – 1995.

Comentários ao Código de Proteção do Consumidor, São Paulo, Ed. Saraiva.

MENEZES, João Carlos. Código do Consumidor, 1ª ed., Editora Bookseller,

1996

v

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 176

ASPECTOS DA HERMENÊUTICA CONTRATUAL NO DIREITO DO CONSUMIDOR

MARIA CLAYDE ALVES PACE

Advogada no Paraná. Especialista em Direito Contemporâneo pela Pontifícia

Universidade Católica do Paraná.

RESUMO: O artigo aborda a interpretação contratual na sistemática do Direito do Consumidor, analisando especialmente o artigo 46 do Código de Defesa do Consumidor. A autora salienta os princípios básicos de proteção jurídica do consumidor, destacando a necessidade de ter o consumidor conhecimento prévio do conteúdo dos contratos que venha a celebrar. Ao apontar as dificuldades sobre o tema, salienta a autora que o objetivo maior do Direito do Consumidor é a proteção da parte mais fraca na relação de consumo, o consumidor, considerado pela lei como hipossuficiente frente ao fornecedor de bens ou serviços. ABSTRACT: The article approaches the contractual interpretation in the systematic of the Right of the Consumer, analyzing especially article 46 of the Code of Defense of Consumers. The author points out the basic principles of the consumer legal protection, highlighting the consumer necessity to have previous knowledge of the content of the contracts that he comes to celebrate. By exposing the difficulties in the subject, the author emphasizes that the greatest objective of the Right of the Consumer is the protection of the weakest part in the relation of consumption, the consumer, considered by the law as hipossuficient in relation to the goods or service supplier. INTRODUÇÃO O Código de Defesa do Consumidor (CDC) inaugurou uma nova fase no

direito contratual brasileiro, prevendo normas que beneficiam aqueles que, em

tese, são hipossuficientes (consumidores) em relação às empresas que

oferecem seus produtos e serviços no mercado de consumo (fornecedores).

O presente estudo tem por finalidade discorrer sobre o artigo 46 do CDC,

enfatizando seu conteúdo e hermenêutica, e assinalando a importância da

norma para a proteção contratual dos consumidores.

Ao ser abordado o tema, constata-se que o legislador brasileiro seguiu a

orientação de outros países, que desde o início do século, preocuparam-se com

as relações de consumo e traçaram linhas gerais fora da codificação

estratificada, legislando sobre a matéria com o pensamento voltado para a

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proteção dos direitos coletivos em desvantagem dos direitos privados, até então

"intocáveis".

No Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988 os direitos do

consumidor foram previstos (artigo 5º, inciso XXXII) no próprio texto maior e

disciplinados, de maneira coerente e minuciosa pela Lei 8.078/90, conhecido

como CDC.

BREVE LEITURA DO ARTIGO 46 DO CDC

Inserido no capítulo que trata da "proteção contratual", o artigo 46 do

CDC prevê que "os contratos que regulam as relações de consumo não

obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar

conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem

redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance".

A regra, então, é a de que, nas relações de consumo a oferta obriga

sempre o fornecedor, mas não o consumidor.

Ressalta-se ainda que, considerando a norma que prevê a inversão do

ônus da prova (artigo 6º, VIII, CDC), caso o consumidor invocá-la em sede

jurisdicional, caberá ao fornecedor provar, de maneira inconteste, que foi dada

ao consumidor (previamente) a oportunidade e o tempo necessário para tomar

conhecimento de todas as cláusulas do contrato.

Não basta, porém, disponibilizar tempo suficiente para a leitura do

conteúdo de todo o contrato, fazendo-se mister que as cláusulas sejam redigidas

de maneira clara, em linguagem simples, no vernáculo [...] Enfim, impõe-se que

o contrato seja inteligível para qualquer pessoa de intelecto mediano.

Fácil é perceber tratar-se de prova difícil para o fornecedor, motivo pelo

qual convém que esse coloque seus produtos ou serviços no mercado de

consumo de maneira bastante clara, podendo lançar mão, por exemplo, de

mecanismos de propaganda, como anúncios em jornais, revistas, televisão.

Impõe-se também que tais anúncios sejam de tal modo esclarecedores que

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 178

abordem a quantidade, qualidade, tempo de garantia e todas as demais

informações necessárias à correta identificação dos produtos, proporcionando

um perfeito entendimento por parte da população em geral.

Aliás, o objetivo primordial da propaganda é convencer o consumidor que

o produto ou serviço oferecido é vantajoso, motivo pelo qual se pretende que o

consumidor dirija-se ao estabelecimento e, uma vez lá estando, de posse de

anúncio (por exemplo), possa exigir o exato cumprimento do que foi ofertado.

Destarte, o fornecedor obriga-se a cumprir exatamente aquilo que foi

anunciado, consoante esclarece Nelson Nery Júnior :

"É comum que grandes lojas de departamentos, por publicidade em

jornais, por exemplo, ofereçam produtos em quantidade insuficiente para

atender a demanda, fazendo anúncios desproporcionais em relação a

seu estoque de dez televisores de determinada marca, anunciadas em

página dupla inteira de jornal de grande circulação, edição de domingo.

Evidentemente, o objetivo dessa publicidade foi o de chamar a atenção

do consumidor para a existência de ofertas excepcionais naquela loja,

para que ele se convença de que é um bom negócio ir à loja para realizar

a compra. Esta a verdadeira finalidade do anúncio : fazer com que o

consumidor vá à loja." 230

O artigo 46 do CDC enfrenta a sistemática do Código Civil brasileiro

(artigos 1.079 a 1.091), pois a legislação tradicional consagra a força

incondicional dos contratos, somente admitindo argüição de nulidade (absoluta

ou relativa) em face de vício na manifestação volitiva.

Partindo-se do princípio basilar de que todos os contratos são celebrados

em face do princípio da boa-fé, salienta-se que, em face do direito do

consumidor, caberá ao fornecedor provar que o consumidor não teve prévia

conhecimento do contrato ou não leu o instrumento contratual.

230 NERY JÚNIOR, Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro

: Forense, 1995, p. 294.

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Porém, como pode-se produzir tal prova? Como demonstrar que o

consumidor não leu ou não entendeu quaisquer das cláusulas do contrato?

Somente em face da inteligibilidade das cláusulas por pessoa mediana da

sociedade é que poderá o fornecedor eximir-se da resolução do contrato, ou ao

menos de uma ou mais cláusulas. Salienta-se ainda a imposição de o contrato

não atentar contra a ordem pública ou a liberdade de contratar, não podendo

conter, ainda, cláusulas abusivas que, por natureza, são nulas de pleno direito.

Assim, toda cautela deverá ter o fornecedor, pois o artigo 46 protege

sobremaneira o consumidor, dando-lhe a oportunidade de tomar conhecimento

amplo do contrato e oferecendo-lhe condições para que entenda claramente o

conteúdo contratual previamente à efetivação do negócio jurídico.

A regra, entretanto, poderá gerar questionamentos, como este :

O consumidor que se sentir prejudicado, contando sempre com a boa-fé

dos contratantes, alegará sempre que não entendeu todas as cláusulas do

contrato, pois somente a partir do momento em que estiver insatisfeito com a

contratação é que se socorrerá da tutela jurisdicional e pedirá a aplicação dos

preceitos do CDC, como resolver tal celeuma?

Ainda, uma mínima parcela da sociedade alfabetizada, mesmo que o

contrato esteja em linguagem simples, sempre alegará que não a entendeu?

Num país onde até a formação de Ensino Médio não é suficiente para os

esclarecimentos mínimos de regras básicas comerciais, jurídicas,

administrativas, dentre outras tantas, dir-se-á que somente a população com

formação universitária ficará excluída da proteção, pois em tese, teria

discernimento para entender as regras?

Em verdade, quiçá a melhor hermenêutica do artigo 46 indique que sua

aplicação deva ser deixada ao "prudente arbítrio do juiz" que decidir o caso em

concreto envolvendo sua invocação. O magistrado deverá aquilatar se o

consumidor tem ou não intelectualidade suficiente para o entendimento e

conhecimento pleno das cláusulas contratuais, e ainda se lhe foi dada a

oportunidade e o tempo necessário para conhecer todo o conteúdo do contrato.

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Mas, e o consumidor com nível universitário, jamais poderia invocar a

proteção em comento, dado que, em tese, teria todas as aptidões para

compreender o sentido e o alcance da norma?

Em verdade, sabe-se que uma grande parcela da coletividade com

formação universitária não tem conhecimento dessas regras basilares de

proteção ao consumidor, especialmente em face da complexidade das regras de

consumo, notadamente quando a aquisição de produtos ou serviços se dá a

crédito, envolvendo instituições financeiras com contratos, muitas vezes, quase

ininteligíveis.

Assim, deixar-se ao "prudente arbítrio do juiz" a aplicação do artigo 46 do

CDC pode gerar uma certa "insegurança jurídica", vez que se subordina a juízo

subjetivo do magistrado, especialmente diante das características pessoais do

consumidor. Cria-se, então, uma "zona cinzenta" acerca da correta interpretação

do que seja "dar oportunidade de tomar conhecimento prévio" das normas; ou

ser o contrato "redigido de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e

alcance".

A lição de Carlos Eduardo Manfredini Hapner é esclarecedora :

"Ao que nos parece, essa questão da segurança jurídica deve ser

enfocada sob outro prisma. O artigo 5º da CF/88, particularmente seu

caput, ao aludir à 'inviolabilidade do direito ... à segurança, deve ser

interpretado em consonância com outros princípios constitucionais, que

lhe delimitam o conteúdo e o significado, e lhe conferem a correta

dimensão. Na realidade, este conceito, tal como referido na lei e

empregado pela doutrina, é vago, e, como tal deve ser preenchido não

apenas à luz da situação concreta, mas ao lume de outros princípios

prestigiados pelo ordenamento jurídico, dentre de dada época. Quer

dizer, com isto, que o conceito de segurança jurídica, ou seu sentido e

seu alcance são alteráveis de época para época. Assim como o princípio

do due process of law, por exemplo, insculpido na Constituição norte-

americana há mais de duzentos anos, nem sempre teve a mesma

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amplitude que hoje se lhe dá. Para nós, dentro da Constituição de 1988,

que alçou inclusive a defesa do consumidor a princípio geral da atividade

econômica (artigo 170, V), fazendo-o constar também do artigo 5º, XXXII,

não se pode deixar de compreender a verdadeira abrangência do

conceito de segurança jurídica, ignorando ou desconsiderando estes

outros dados. Com efeito, como se pode cogitar de que o consumidor

que, efetivamente, não tomou conhecimento dos termos do contrato que

firmou, possa se obrigar em razão desse mesmo contrato, sob pena de,

em não o fazendo, ter-se como afrontado o princípio da segurança

jurídica? Demais disso, há que se ter presente que as situações

contempladas por este artigo, lamentavelmente, são bem mais

corriqueiras do que se possa supor à primeira vista. Como pretender que

o direito recubra com o manto da segurança jurídica situações que se

originaram de um desequilíbrio justamente em detrimento do consumidor,

a quem a Constituição protege, pelo menos em dois artigos ? " 231

Vê-se, então, que o fornecedor deverá dar conhecimento efetivo, o que

significa dar o maior número possível de informações sobre aquele contrato,

especialmente nos contratos de adesão, pois do contrário o vínculo não

produzirá os efeitos pretendidos pelo fornecedor, não obstante existir a cláusula

e ser prevista no instrumento contratual.

SÍNTESE CONCLUSIVA

A lição do eminente Nelson Nery Júnior é bastante pertinente ao tema ora

debatido, quando afirma que "a avaliação da efetiva compreensão da cláusula

pelo consumidor depende do caso concreto" .232

Assim, em apertada síntese, pode-se dizer que deve o magistrado,

sempre que for invocada a norma em comento, avaliar o grau de escolaridade, o

231 HAPNER, Carlos Eduardo Manfredini. Comentários ao Código do Consumidor. Rio de Janeiro : Forense, 1992, p.155.

232 NERY JÚNIOR, Nelson. Obra citada, p. 326.

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nível intelectivo e de compreensão do consumidor em face do conteúdo do

contrato.

Confia-se que os esforços doutrinários e a posição jurisprudencial firmem

a correta hermenêutica sobre o tema, e apreendam de maneira ampla e correta

o pensamento do legislador que visou beneficiar o consumidor na interpretação

da validade do contrato.

Impõe-se, de qualquer maneira, a aplicação da norma em consonância

com o espírito para o qual foi criada: a proteção do mais fraco na relação de

consumo, a tutela dos direitos do consumidor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HAPNER, Carlos Eduardo Manfredini. Comentários ao Código do

Consumidor. Rio de Janeiro : Forense, 1992.

NERY JÚNIOR, Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro : Forense, 1995.

v

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 183

ANÁLISE DO CONCEITO DE CRIME FERNANDO ELEUTÉRIO

Professor do Curso de Direito da Faculdade Mater Dei. Coordenador do Curso de Direito

da Faculdade Mater Dei. Professor de Direito Penal da Universidade Estadual de Ponta

Grossa (UEPG). Chefe do Departamento de Direito da UEPG (1993/1994/1995/1996).

Chefe Adjunto do Departamento de Direito Processual da UEPG (2000/2001).

Coordenador do Núcleo de Prática Jurídica e Assistência Judiciária Gratuita da UEPG

(2000/2002). Professor de Direito Penal da Escola da Magistratura do Paraná

(Coordenadoria Ponta Grossa (PR) - 1992). Mestre em Direito das Relações Sociais pela

Universidade Federal do Paraná. Advogado.

RESUMO: O artigo analisa o conceito de crime, ressaltando tratar-se de um dos mais controvertidos temas da doutrina penal. Após abordar as diversas definições de crime (formal, material e analítica), o autor passa a elencar os elementos do crime, em especial: a ação ou omissão, a tipicidade, a antijuridicidade, a culpabilidade e a imputabilidade. Conclui o autor estar o conceito de crime em constante evolução. ABSTRACT: The article analyzes the crime concept, being this one of the most controvert subjects of the criminal doctrine. After approaching the diverse definitions of crime (formal, material and analytical), the author starts to list the elements of crime, in special: the action or default, the vagueness doctrine, the anti-legality, the culpability and the imputability. He concludes the concept of crime to be in constant evolution.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A cada dia que passa, a humanidade descobre novas necessidades e

alcança novos objetivos. Estas transformações ocorrem em todas as áreas do

conhecimento humano, e entre elas, na ciência jurídica.

O Direito é dinâmico. Acompanha a evolução da sociedade, adaptando-

se aos seus clamores.

Dentro dos ramos do Direito, encontramos no Direito Penal o exemplo fiel

e legítimo de adaptação social. De forma brilhante o Prof. Magalhães Noronha233

233 NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal, Vol.1. Editora Saraiva, 1985. p. 20.

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presenteou o Direito Penal brasileiro com uma frase memorável que merece ser

relembrada: “A história do direito penal é a história da humanidade. Ele surge

com o homem e o acompanha através dos tempos, isso porque o crime, qual

sombra sinistra, nunca dele se afastou.”

Realmente, ele atravessa os séculos tal qual um camaleão, alterando

suas cores (seus comportamentos), não para se aproveitar de seus

semelhantes, como ocorre no “stelius nato”, mas para estudar seus anseios,

suas revoltas, seus atos violentos, a criminalidade. Bem como, encontrar formas

de prevenir e combater a criminalidade através da aplicação justa de um

penalidade.

Mas, o que vem a ser o “crime”?

Além de um fenômeno social, o crime é na realidade, um episódio na vida

de um indivíduo. Não podendo portanto, ser dele destacado e isolado, nem

mesmo ser estudado em laboratório ou reproduzido. Não se apresenta no

mundo do dia-a-dia como apenas um conceito, único, imutável, estático no

tempo e no espaço, ou seja, “cada crime tem a sua história, a sua

individualidade; não há dois que possam ser reputados perfeitamente iguais.”234

Evidentemente, cada conduta criminosa faz nascer para as vítimas resultados

que jamais serão esquecidos, pois delimitou-se no espaço a marca de uma

agressão, seja ela de que tipo for (moral, patrimonial, física, etc.).

O próprio conceito de “crime” evoluiu no passar dos séculos. Como muito

bem lembra o Prof. Heleno Fragoso235: “a elaboração do conceito de crime

compete à doutrina”. O próprio Código Penal vigente, com suas alterações

oriundas da Lei nº 7.209/84 que reformulou toda a Parte Geral do Código de

1940, não define o que é “crime”, embora algumas de nossas legislações penais

antigas o faziam. O Código Criminal do Império de 1830 determinava em seu

artigo 2º, parágrafo 1º: “Julgar-se-á crime ou delito toda ação ou omissão

contrária às leis penais.” E, o Código Penal Republicano de 1890 assim se

234 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. Editora Saraiva, 1991. p.79.

235 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal - A nova Parte Geral. Editora Forense, 1985. p. 146/147.

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manifestava em seu artigo 7º: “Crime é a violação imputável e culposa da lei

penal.”

O “crime” passou a ser definido diferentemente pelas dezenas de escolas

penais. E, dentro destas definições, haviam ainda subdivisões, levando-se em

conta o foco de observação do jurista. Surgem então os conceitos formal,

material e analítico do crime como expressões mais significativas, dentre outras

de menor expressão. O conceito formal corresponde a definição nominal, ou

seja, relação de um termo a aquilo que o designa. O conceito material

corresponde a definição real, que procura estabelecer o conteúdo do fato

punível. O conceito analítico indica as características ou elementos constitutivos

do crime, portanto, de grande importância técnica.

ANÁLISE DO CONCEITO DE CRIME

Um homem, em determinado dia, encontrou um rapaz baleado e sem

vida, com ferimento em região letal, esticado no meio da rua. Um leigo

certamente afirmaria tratar-se de um homicídio. Para os juristas, entretanto, essa

conclusão seria, naquele momento, impossível. É lógico que existiria uma idéia,

um indício da existência de um homicídio, mas pode-se ponderar que a morte

violenta dada àquele homem, poderia, por exemplo, estar justificada, e,

evidentemente, não haveria crime (legítima defesa ou outra excludente de

ilicitude). Para que exista crime, há necessidade de se percorrer um caminho,

passando por todas as características que o delito deve apresentar, para, só

depois, chegarmos a uma conclusão: realmente trata-se de um homicídio.

A conceituação jurídica do crime é ponto culminante e, ao mesmo tempo,

um dos mais controversos e desconcertantes da moderna doutrina penal, este já

era o pensamento do mestre Nelson Hungria236, afirmando ainda que “o crime é,

antes de tudo, um fato, entendendo-se por tal não só a expressão da vontade

236 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Volume I, Tomo II, 5ª ed., Forense. p. 10

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mediante ação (voluntário movimento corpóreo) ou omissão (voluntária

abstenção de movimento corpóreo), como também o resultado (effectus

sceleris), isto é, a conseqüente lesão ou periclitação de um bem ou interesse

jurídico penalmente tutelado.”

Inicialmente, na doutrina penal brasileira, adotou-se um conceito formal

do delito, no qual o crime seria toda a conduta humana que infringisse a lei

penal. Neste conceito, verificava-se o fato do indivíduo transgredir a lei penal

apenas, sem que qualquer outro fator fosse analisado.

Posteriormente adotou-se uma definição material de crime, cuja

paternidade foi atribuída a Ihering. Passou-se a definí-lo como sendo o fato

oriundo de uma conduta humana que lesa ou põe em perigo um bem jurídico

protegido pela lei.

Por derradeiro, chegamos ao conceito dogmático ou jurídico de crime,

apelidado por muitos de “analítico”. Sua origem remonta ao ano de 1906,

oriunda da doutrina alemã de Beling, através de sua obra “Die Lehre vom

Verbrechen” (“A Teoria do Crime”), que culminou em 1930 com sua segunda

obra “Die Lehre vom Tatbestand” (“A Teoria do Tipo”).

O crime, portanto, passou a ser definido como toda a ação ou omissão,

típica, antijurídica e culpável.

Este conceito decompõe a figura do crime em elementos constitutivos

que seriam individualmente analisados. Entretanto, resta afirmar, que o crime é

um ato uno e indivisível, como bem adverte o Prof. Luiz Alberto Machado237:

“Não significa que os elementos encontrados na sua definição analítica ocorram

seqüencialmente, de forma cronologicamente ordenada; em verdade acontecem

todos no mesmo momento histórico, no mesmo instante, tal como o instante da

junção de duas partículas de hidrogênio com uma de oxigênio produz a molécula

da água.” Assim sendo, o fato dos elementos constitutivos do crime serem

analisados individualmente, não descaracterizam o ato criminoso que criou,

237 MACHADO, Luiz Alberto. Direito Criminal (Parte Geral). Revista dos Tribunais, 1987. p. 79.

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alterou ou produziu efeitos no mundo jurídico (fato-crime), mas, unicamente,

facilitam a tarefa de averigüar a conduta humana criminosa para uma justa

aplicação da reprimenda.

Vejamos então, os seus elementos:

a) Ação ou omissão: Significa que o crime sempre é praticado através de

uma conduta positiva (ação), comissiva ou, através de uma conduta negativa

(omissão). É o não fazer, a inércia. Tanto é criminoso o fato do marginal

esfaquear uma pessoa até matá-la (ação), como o fato de uma mãe, por

preguiça ou comodidade, não retirar de cima da mesa de sua casa (omissão) o

veneno para matar baratas, que foi posteriormente ingerido pelo seu filho de três

anos, provocando-lhe a morte, enquanto aquela, assistia sua novela preferida.

Dentro destas condutas positivas (ação) e negativas (omissão)

pertencentes a estrutura do crime, não vamos olvidar os crimes comissivos por

omissão, ou seja, aqueles que são praticados através de uma conduta negativa

(omissão), mas que produz um resultado positivo (um fato visado e desejado

pelo agente). É o clássico exemplo da mãe, que desejando matar seu próprio

filho, de tenra idade, deixa de amamentá-lo, com a finalidade de matá-lo de

fome.

b)Típica: Significa que a ação ou omissão praticada pelo sujeito, deve ser

tipificada, isto é, descrita em lei como delito. A conduta praticada deve se ajustar

a descrição do crime criado pelo legislador e previsto em lei, pois pode a conduta

não ser crime, e, não sendo crime, denomina-se: conduta atípica (não punida,

tendo em vista que não existe um dispositivo penal que a incrimine).

Mas, cumpre lembrar, que uma conduta atípica como crime pode ser

tipificada como contravenção penal. Não se pode confundir, de modo algum,

crime com contravenção penal. Este, como definia o mestre Hungria, é um

“crime anão”, é menos grave que o delito(ou crime) e possui legislação própria

(Decreto-lei nº 3.688/41), com tipificação e características próprias.

c)Antijurídica: Significa que a conduta positiva ou negativa, além de

típica, deve ser antijurídica, contrária ao direito. É a oposição ou contrariedade

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entre o fato e o direito. Será antijurídica a conduta que não encontrar uma causa

que venha a justificá-la. Nas palavras do Prof. Damásio de Jesus238 : “A conduta

descrita em norma penal incriminadora será ilícita ou antijurídica quando não for

expressamente declarada lícita. Assim, o conceito de ilicitude de um fato típico é

encontrado por exclusão: é antijurídico quando não declarado lícito por causas

de exclusão da antijuridicidade (CP, art. 23, ou normas permissivas encontradas

em sua parte especial ou em leis especiais)”.

Desta forma, uma pessoa pode ser morta e se constatar, a título de

exemplificação, que:

1º) Ela foi morta injustificadamente. Portanto, foi vítima de um homicídio

(art. 121 CP).

2º) Ela foi morta justificadamente, porque estava de posse de uma pistola

carregada e prestes a matar seu desafeto, quando foi morto por este, que agiu

em legítima defesa (art. 23, II do CP)239, uma excludente de ilicitude

(antijuridicidade).

3º) Ela foi morta justificadamente, porque mesmo não estando armado,

ele havia ameaçado de morte seu desafeto, que, por erro plenamente justificado

pelas circunstâncias, supôs que na realidade estivesse armado, vindo a matá-lo.

Tendo, desta forma, agido em legítima defesa putativa (uma excludente de

culpabilidade, art.20, parágrafo 1º).240

Em vista de tais esclarecimentos, devo discordar do Prof. William

Wanderley Jorge, ao afirmar em sua obra “Curso de Direito Penal”241, que o

crime é um fato jurídico voluntário que se divide em ato lícito e ato ilícito

(praticado de acordo com o direito o ato é lícito; contrariamente ao direito será

ilícito).

238 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. 1º volume - Parte Geral. Saraiva, 1991. p. 137. 239 CÓDIGO PENAL. Art. 23: “Não há crime quando o agente pratica o fato: .......II) em legítima defesa”.

240 CÓDIGO PENAL. Art. 20, parágrafo 1º: “É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe

situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima.”

241 JORGE, William Wanderley. Curso de Direito Penal (Parte Geral). Forense, 1986, p. 189 “O crime ou delito (palavras sinônimas

no Brasil) é um fato jurídico, isto é, um acontecimento relevante para o direito, que provoca o nascimento, a modificação ou a extinção

de uma relação jurídica. Mas, é um fato voluntário que se divide em: ato lícito e

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Ora, o crime não pode ser um ato lícito!

Quando a agressão física contra uma pessoa é praticada, poderemos ter

a morte ou a ofensa à integridade física deste indivíduo, ocorrendo então um

crime de homicídio (art.121 CP) ou um crime de lesão corporal (art.129 CP).

Mas, se a agressão foi praticada, estando o agente acobertado por uma das

excludentes de ilicitude previstas pelo artigo 23 do Código Penal (estado de

necessidade; legítima defesa; estrito cumprimento do dever legal ou exercício

regular de direito) deixa de existir crime. O referido dispositivo legal é bem claro:

“Não há crime quando o agente pratica o fato: I) em estado de necessidade;

......”; assim sendo, houve uma agressão que resultou em morte ou lesão

corporal em uma pessoa, porém, não houve crime.

Além do mais, o crime não pode ser considerado como um “fato jurídico”,

o crime nada mais é do que um ato (criminoso) que provoca um fato jurídico que

vem a alterar, criar ou extinguir direitos. O fato, ou situação existente após a

prática do crime, é a conseqüência do ato criminoso. Ex.: O ato de agredir

violentamente alguém, resulta no fato dela possuir hematomas, que caracterizam

o crime de lesão corporal. Assim, o crime é a ação, que resultou naquele

hematoma produzido (um fato).

d) Culpável: a culpabilidade é o elemento subjetivo do autor do crime. É

aquilo que se passa na mente daquela pessoa que praticou um delito.

Ele poderia ter desejado um resultado criminoso qualquer (agiu com dolo

direto); ele poderia ter assumido o risco de produzir um resultado criminoso (agiu

com dolo indireto eventual); ou, ele não desejava aquele resultado criminoso,

mas deu causa a ele por imprudência, negligência ou imperícia (agiu com culpa).

A culpabilidade portanto, é a culpa em sentido amplo, que abrange o dolo

(artigo 18, inciso I; CP)242; e a culpa em sentido estrito (artigo 18, inciso II;

CP).243

ato ilícito. Praticado de acordo com o direito o ato é lícito; contrariamente ao direito será ilícito.”

242 CÓDIGO PENAL. Art. 18: “Diz-se o crime: I) doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzí-lo.”

243 CÓDIGO PENAL. Art. 18: “Diz-se o crime: II) culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou

imperícia.”

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Por outro lado, ela resulta ainda da união de três elementos:

imputabilidade, consciência efetiva da antijuridicidade e exigibilidade de conduta

conforme ao Direito, ou seja, deve o autor do delito ser imputável; ter

conhecimento ou possibilidade de conhecimento da antijuridicidade de sua

conduta; e ter condições de, no momento da prática daquele ato criminoso, ter

agido de modo diverso do qual agiu.

Em vista disso, é oportuno lembrar de que existem excludentes de

culpabilidade previstas pelo Código Penal que determinam que o agente não

deve ser punido, mesmo sendo a sua conduta, típica e antijurídica.

Nesse caso, o legislador empregou expressões como: “é isento de pena”

(artigos 26, caput; e 28, parágrafo 1º do CP); ou de forma indireta: “Só é punível

o autor da coação ou da ordem”, dando a entender que o autor do fato não é

punível (art. 22 do CP). Entre estas excludentes de culpabilidade, encontramos

como destaque, a menoridade (art. 27 CP).244

Esses seriam então, os elementos integrantes do conceito jurídico,

dogmático ou analítico de crime, defendidos pela doutrina prevalente.

Existem, entretanto, autores que não aceitam esta definição. Enquanto

alguns pretendem retirar um dos seus elementos, outros desejam acrescentar

novos elementos. Sobre este assunto, o Prof. Luiz Alberto Machado245 esclarece

que “o conceito analítico do crime vem sofrendo profundo reexame do mundo

jurídico-criminal. A mais ou menos pacífica e tradicional composição tripartida

(tipicidade, antijuridicidade, culpabilidade) tem trazido inquietações, seja pela

estrutura interna desses elementos, com a transposição de fatores de um para

outro, seja pela atual tentativa de retorno a uma concepção bipartida.”

244 CÓDIGO PENAL. Art. 27: “Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas

na legislação especial.”

245 MACHADO, Luiz Alberto. Direito Criminal (Parte Geral). Revista dos Tribunais, 1987. p. 79.

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O maior expoente da teoria finalista da ação em nosso meio, Prof.

Damásio de Jesus, sustenta que a culpabilidade não é elemento ou requisito do

crime. Ela somente funciona como pressuposto da pena, e que o juízo de

reprovabilidade não incidiria sobre o fato, mas sim sobre o sujeito. Não se

tratando de fato culpável, mas de sujeito culpável. Culpabilidade seria um juízo

de reprovação que recairia sobre o sujeito que praticou o delito e, desta forma, a

culpabilidade seria uma condição de imposição de pena.

Alguns autores, influenciados pela doutrina italiana de Battaglini,

defendem a inclusão da “punibilidade ” no conceito do crime.

Não comungo com tal idéia. A pena a ser aplicada ao autor do crime,

uma vez condenado, é uma conseqüência do crime, e não parte integrante do

crime.

Nas palavras do Prof. Magalhães Noronha,246 “a pena não integra o

delito, por ser este seu pressuposto.Tê-la como constitutiva do crime é

considerar como elemento da causa o efeito”.[...] “A pena vem a ser, então, um

efeito do delito. É sua conseqüência ou resultado”. E, realmente, este é o

entendimento da doutrina dominante.

3) CONCLUSÃO

Face a todas as considerações acima, podemos concluir, que o conceito

de crime ainda está em evolução (e sempre estará).

Acredito que o atual conceito adotado pela doutrina prevalente não

perdurará por muito tempo. Logo, o crime como “ação ou omissão, típica,

antijurídica e culpável”, passará por algumas modificações e “reformas”, aliás,

como tudo em nossas vidas.

246 NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal, Vol.1. Editora Saraiva, 1985. p. 102/103.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 195

TENTATIVA DE DELITO – TIPO PRÓPRIO – PENA FRANCISCO CARLOS JORGE

Magistrado no Paraná. Professor Universitário em Ponta Grossa-PR. Doutorando em

"Derecho Público", pela Universidade de Extremadura, Espanha (convênio com o Centro

Universitário do Norte Paulista – UNORP, São José do Rio Preto, São Paulo).

RESUMO: O artigo analisa o tema "tentativa do delito", assinalando sua importância para o Direito Penal. O autor aborda a definição legal do tipo no Direito Brasileiro e no Direito Espanhol, sustentando que o "delito tentado" constitui-se em tipo autônomo, ensejando redução da pena em relação ao "delito consumado". Salienta o autor, aspectos especiais no tratamento da matéria, como a "inidoneidade de meios" para a consumação do crime (artigo 17 do Código Penal Brasileiro e artigo 16.1 do Código Penal Espanhol), e a "tentativa frustrada", finalizando por convocar os tribunais brasileiros à reflexão sobre a polêmica existente em torno da temática. ABSTRACT: This article analyzes the "attempt of criminal offense" subject, determining its importance for the Criminal law. The author approaches the legal definition of the kind in the Brazilian and Spanish Laws, supporting that the "attempted wrong" consists in a stand alone type, trying reduction of the punishment in relation to the "consummated wrong". The author stresses special aspects in the handling of the issue, as the "inappropriateness of means" for the consummation of the crime (article 17 of the Brazilian Criminal Code and article 16,1 of the Spanish Criminal Code), and the " frustrated attempt ", coming to an end calling the Brazilian courts for reflection on the existing controversy around the theme.

BREVE INTRODUÇÃO

Universalmente preocupam-se os juristas em questionar em que

circunstâncias os atos preparatórios para a prática de um delito, embora não

constituindo o delito propriamente dito, devem ou não ser punidos, em face da

repercussão de fatos dessa natureza no meio social. A tentativa de delito é

valorada em todo sistema jurídico, variando apenas o entendimento quanto aos

elementos que a caracteriza. Debate-se a doutrina jurídica universal a trazer os

fundamentos da tentativa, até mesmo para fornecer subsídios ao legislador e ao

aplicador do direito, quanto a pena que deverá ser imposta uma vez verificada a

conduta tentada do agente.

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Saber se a tentativa constitui tipo autônomo, ou se é parte de outra figura

delitiva, do tipo frustrado, ou incompleto, é motivo de preocupação doutrinária,

emprestando-se maior importância à teoria geral do tipo, para a configuração

jurídica da tentativa, posto que da conclusão, neste aspecto, quanto a se

constituir em tipo autônomo, ou parte de outro tipo, incompleto, por que o

resultado não ocorreu por circunstâncias alheias à vontade do agente, importa

para a axiologia jurídica, quando da imposição da pena ao agente.

Na doutrina o tema suscita palpitantes discussões, não havendo consenso

na jurisprudência, em que pese a predominância de certos entendimentos,

decorrentes da interpretação que se faz do texto legal. Seguem-se, ainda,

acaloradas discussões quanto a imposição da pena, que muitas vezes na

tentativa é imposta pela singela redução da pena concreta que seria imposta ao

crime consumado, quando, em verdade, deveria partir-se da limitação em

abstrato. Outras vezes aplica-se a sanção própria do crime consumado, mesmo

quando não se verifica a presença de todos os seus elementos objetivos.

Sobre esses pontos pretende-se tecer breves considerações, demonstrando

a posição doutrinária e a adotada pelos tribunais brasileiros, segundo as

prescrições legais.

DEFINIÇÃO LEGAL DO TIPO

O Decreto-lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940 (Código Penal), com

a reforma da Lei 7.209, de 11 de julho de 1984, estabelece na parte geral o

elemento especial (objetivo) que caracteriza a tentativa:

Artigo 14. Diz-se o crime:

I - consumado, … ;

II - tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por

circunstâncias alheias à vontade do agente.

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Parágrafo único. Salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com

a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois

terços. (Redação dada ao artigo pela Lei nº 7.209, de 11/07/1984)

Art. 17. Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio

ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o

crime. (Redação dada ao artigo pela Lei nº 7.209, de 11/07/1984) - (sem

destaques no original).

O legislador espanhol de 1995, afastando a discussão até então

existente, quanto a “interrupción involuntária o uma ejecución inconpleta sin êxito

involuntario”, estabeleceu os elementos que configuram a tentativa de forma

objetiva, preocupando-se que “en la fase externa del delito, los actos de

ejecución se inician com vocación de êxito, que, de alcanzarse, da lugar a la

ejecución, em tanto la no produción del resultado puede produzirse, de una

parte, por uma interrupción involuntária o a uma ejecución completa sin êxito

involuntário “ 247 na fase externa do delito.

Art. 16.

1.“Hay tentativa cuando el sujeto da principio a la ejecución del delito

directamente por hechos exteriores, practicando todos o parte de los

actos que objetivamente deberían producir el resultado, y sin embargo

éste no se produce por causas independientes de la voluntad del autor”.

2. Quedará exento de responsabilidad penal por el delito intentado quien

evite voluntariamente la consumación del delito, bien desistiendo de la

ejecución ya inicial, bien impidiendo la producción del resultado, sin

perjuicio de la responsabilidad en que pudiera haber incurrido por los

actos ejecutados, si éstos fueren ya constitutivos de otro delito o falta.

247 MÉNGUEZ, José Moyna, et all. Código Penal Comentários y jurisprudencia. Editorial Colex, 1999, pág. 50.

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Com essas disposições simplificadas, porém claras e exatas do que se

caracteriza como tentativa, deixa o legislador brasileiro, assim como o espanhol,

a cargo dos tribunais e da doutrina jurídica que “la llenen de contenido y

resuelvan los problemas emergentes de la practica, sin que el legislador se

inmiscuya (como no lo hace con otras categorías también genuinas de la teoría

del delito, p. ej. el error), conforme la teoría del delito que se revele como la que

propicia soluciones más justas y armónicas con sus propias premisas, dentro

siempre, de los amplios limites que si establece la ley”.248

Como bem afirma o preclaro Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro 249 do

Superior Tribunal de Justiça, hoje, por força do princípio da reserva legal, ganha

relevo a exaustiva definição do comportamento delituoso, buscando-se preservar

a garantia de a pessoa conhecer, antes, e com precisão, a proibição, através de

lei (sentido formal), como a “concrettezza” de que falam os italianos. Dessa

forma vedam-se, então, os chamados "tipos abertos", ou seja, sem a descrição

mencionada.

Em conseqüência, a configuração jurídica da tentativa deve ser clara e

objetivamente prescrita pelo legislador. Notadamente, neste particular, se

constitui tipo autônomo, ou é parte de outro tipo, incompleto, por que o resultado

não ocorreu por circunstâncias alheias à vontade do agente, indaga o articulista

citado no parágrafo anterior, oferecendo ele mesmo a resposta:

A doutrina mostra-se dividida. Pouco importa serem "causalistas", ou

"finalistas".

A indagação leva a esta pergunta: a tentativa é crime autônomo, crime

perfeito, ou, ao contrário, crime imperfeito, no sentido de não haver se

completado o tipo que o agente desejara realizar?

248 CONTRERAS, Joaquín Cuello. El estado de la discusión doctrinal em torno al fundamento de la tentativa.

249 Pena - Tentativa - Teoria geral do tipo - Configuração jurídica. (Publicada na RJ nº 239 - SET/97, pág. 26 (In Júris Síntese

Millennium).

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A Parte Especial do CP descreve somente crimes consumados. Mera

questão de técnica legislativa. Evita, ao lado de cada tipo compatível com o

instituto, acrescentar também a modalidade tentada. O texto a definiu na parte

geral. Como o Código constitui unidade jurídica, as normas da parte geral

aplicam-se à parte especial. Daí, serem denominadas normas de extensão.

Alcançaram, pois, todos os tipos delituosos.

O tipo encerra os elementos da conduta, integrantes da tipicidade, da

ilicitude, da culpabilidade, não obstante algumas divergências. O dissídio maior

se dá quanto à punibilidade, no sentido de definí-la como integrante do tipo. E

mais. Se a culpabilidade é pressuposto da pena. Entendo, como, entre nós, há

anos, sustentava BASILEU GARCIA, que a pena integra o tipo, dado não haver

crime sem sanção. Com efeito, a pena é conseqüência lógica (não se confunde

com a conseqüência material) da conduta que contrasta o preceito.

Há tipos que se aproximam; semelhantes, mas não idênticos.

Ilustrativamente, o homicídio e a lesão corporal. Só se realiza o primeiro

passando-se pelo segundo (princípio da absorção). O tipo da tentativa projeta-se

com a conjugação de dois tipos. Assim, art. 121 c/c art. 14 do CP.

Na tentativa de homicídio, têm-se:

a) tipo objetivo – matar alguém

b) tipo subjetivo – dolo

c) elemento especial – não ocorrer a morte por circunstâncias alheias à

vontade do agente.

Há, pois, fusão de duas normas. Evidente a autonomia jurídica. A tentativa

não se confunde com a consumação. Tecnicamente, figuras distintas, não se

identificam (sentido lógico).

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Têm-se, pois, "crime tentado" e não "tentativa de crime". É, portanto, tipo

perfeito. Em se colocando em confronto o tipo de crime consumado e o tipo da

tentativa, observa-se identidade quanto à ilicitude; distinguem-se quanto à

tipicidade (o resultado não é o mesmo), quanto à culpabilidade (censura-se mais

intensamente quem produz evento mais grave) e quanto à punibilidade (a

sanção do crime consumado é mais severa).

BETTIOL ("Diritto Penale", Cedam, Padova, 1976, 9ª ed., p. 533) observa

que a tentativa se considera crime imperfeito só e enquanto relacionado com a

consumação. Todavia, quando à estrutura, apresenta todos os elementos

indispensáveis à configuração de um delito. A distinção, acentua, é quanto à

objetividade jurídica: constitui perigo de lesão e não lesão efetiva ao bem

jurídico.

Assim, a tentativa é um tipo; a consumação, outro tipo. Impõe-se pensar

normativamente e não com o fato bruto!

Dessa conclusão decorrem conseqüências. Registro uma. A pena deve ser

menor. A sanção é pensada também quanto ao impacto da conduta no bem

jurídico.

O magistrado, de modo geral, quando vai aplicar a pena relativa à tentativa,

raciocina como se estivesse diante do crime consumado, limitando-se,

simplesmente, à final, a fazer a redução de um a dois terços. Como se o tipo de

tentativa não tivesse a sua cominação. Dir-se-ia: a pena cominada à tentativa de

homicídio é de reclusão de 06 a 20 anos, com a mencionada redução de um a

dois terços. Quem assim pensa confere à tentativa a natureza de causa especial

de diminuição de pena. Não corresponde à realidade normativa. Em se levando

em conta a referida pena, reduzindo-se o máximo (no grau mínimo), ter-se-ão 02

anos; a mesma operação, considerada agora a redução mínima (no grau

máximo), será de 13,4 anos.

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Verifica-se, pois, que a tentativa de delito, em verdade como tipo próprio

(inciso II, do art. 14), tem também penas próprias, que não se confundem com as

do delito propriamente dito (inciso I, do art,. 14), e por isso mesmo não se deve

simplesmente aplicar a pena do crime consumado com a redução preconizada

no parágrafo único do art. 14. Deve-se, sim, ser aplicada a pena própria para a

tentativa, que em abstrato é prevista pela redução determinada nesse dispositivo

em relação a estipulação para o crime consumado para, então, serem

encontrados os seus limites mínimos e máximos, e somente a partir daí, partir-se

para a individualização da pena para o caso concreto, como previsto no art. 59,

do Código Penal.

Inobstante isso, veja-se, na ementa a seguir, o posicionamento da 7ª

Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul 250, que bem

reflete a maneira como a questão vem sendo tratada por nossas Cortes de

Justiça.

A redução própria da tentativa só incide após obtido o apenamento do

correspondente crime consumado, constituindo-se na última operação a ser

efetuada, só superada pelos índices próprios dos concursos de crimes. Há

inversão na ordem das operações, se o cálculo da tentativa preceder o da

elevação de majorante reconhecida no roubo. Índice de majoração no roubo.

Aplicado o acréscimo de metade, foi adotado o maior índice previsto,

inviabilizando-se seja mais elevado o aumento. Índice de diminuição pela

tentativa. Tratando-se de roubo consumado, pela inversão da posse sobre a

coisa, mas inexistindo inconformidade ministerial nesse ponto, só resta aplicar-

se a menor redução possível, ou seja, um terço, porque percorrido integralmente

o iter criminis. Suspensão condicional da pena. Tornando-se definitivo o

apenamento reclusivo em quatro anos, inviável e a concessão do benefício do

250 TJRS – ACr 698304557 – RS – 7ª C.Crim. – Rel. Des. Luis Carlos Avila de Carvalho Leite – J. 03.12.1998) in CD-Rom Júris Síntese

Millennium, ementa nº 27037501.

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sursis. Apelo ministerial parcialmente provido, para elevar-se a pena reclusiva e

para cassar-se o benefício do sursis.

Com a devida vênia, constata-se que realmente nossos tribunais não têm

dado ao tema, o tratamento previsto pelo legislador, como bem anotou o Ministro

Cernicchiaro.

INIDONEIDADE DOS MEIOS

O legislador de 1984 adotou em relação ao art. 17, do CPB (Código Penal

Brasileiro), — a exemplo do legislador espanhol, no inciso 2, do art. 16 —, como

bem afirmou o Desembargador Rosa de Farias, do Tribunal de Justiça do Distrito

Federal (sem o destaque entre os travessões), o entendimento de que o que é

efetivamente relevante para a análise finalista do crime (ainda que tentado) é

que o meio utilizado seja ou não eficaz para o seu cometimento. Se o meio for

relativamente eficaz há crime, enquanto que, sendo absolutamente ineficaz, não

há crime a ser punido. Vê-se, assim que o legislador brasileiro, tanto quanto o

espanhol, não se importou com a intenção do agente, no sentido de saber-se se

teve ou não o desejo, ou a vontade de praticar o crime, ou ao menos de tentar a

prática do crime. Importa, sim, a objetividade dos atos praticados, ou seja, a

conduta objetivamente exteriorizada pelo agente.

Não se caracteriza, porém, a tentativa, ao menos não será punida, porque

assim quis o legislador, quando os meios empregados pelo agente mostram-se

ineficazes ou impróprios para a consumação do crime, segundo a norma contida

no art. 17, do Código Penal brasileiro, ou mesmo segundo o art. 16.1, do

espanhol, que exige a prática de “… los actos que objetivamente deberían

producir el resultado”. Se os atos praticados não são idôneos a produzir o

resultado danoso almejado (como verbi gratia o homicídio, ou a efetiva subtração

da res furtiva), não se pode então afirmar que estes atos — objetivamente —

“deberían producir el resultado”. Nessa hipótese, não há crime, nem tentado e

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muito menos consumado, dada a ineficácia absoluta do meio ou por absoluta

impropriedade do objeto.

Nesse sentido é que posiciona-se a jurisprudência brasileira, a exemplo

da decisão lançada pela 1ª Turma Criminal, do E. Tribunal de Justiça do Distrito

Federal, no Recurso em Sentido Estrito — RSE nº 19990610004235, conduzida

pelo voto do Relator, retro citado, como se vê da ementa do v. acórdão 251:

– O legislador de 1984 adotou em relação ao art. 17, do CPB a teoria que

consagra a tese de não levar-se em consideração da intenção do agente,

se teve ou não o desejo e a intenção de cometer o crime de homicídio, e

sim o entendimento de que o que é efetivamente relevante para a análise

finalista do crime é que o meio utilizado seja ou não ineficaz para o seu

cometimento, pois se o mesmo for relativamente eficaz há crime, ao

passo que se o meio é absolutamente ineficaz não há crime a ser punido.

No estudo do tema encontramos na doutrina inúmeras teorias a

estabelecer conceitos e punibilidade para o denominado caso de tentativa

impossível, da mais radical de Feuerbach, denominada de objetiva, que

afirma que punir-se uma tentativa objetivamente inalcançável eqüivaleria

à punição da nuda cogitatio; passando-se à mais branda de Von Buri,

reconhecida pela doutrina como subjetiva, que pune toda e qualquer

espécie de tentativa, para chegar-se à de meio termo de Mittermeyer que

formula de modo absolutamente racional a distinção de casos de

impossibilidade absoluta ou relativa quer em relação aos meios utilizados

quer quanto ao próprio objeto do crime, e que se acha adotada pelo art.

17, do CPB. A boa doutrina vem consagrando o entendimento de

Mittermeyer de que a inidoneidade é considerada absoluta quando os

meios utilizados pelo agente são claramente impotentes para a produção

do resultado pretendido, constituindo-se assim em um obstáculo natural e

251 Juris Síntese Millennium, ementa n. 32064927; Jurisprudência da CF, art. 5º, XXXVIII, c, d; Jurisprudência do Código Penal, art. 17

e 147.

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eficaz à atuação da vontade, na preciosa lição de Manzini, ou quando

ação desenvolvida visa atingir um resultado que jamais será alcançado

por absoluta impropriedade do objeto, e somente nestes casos não se

pune a tentativa, pois em nenhuma hipótese o resultado pretendido será

alcançado, de modo que tal inidoneidade do meio ou do objeto tornará

impossível a configuração da tentativa do crime, daí o resultado da ação

se considerar absolutamente impossível de ser considerado tentado,

resultando por conseguinte a aplicação da regra disposta no art. 17, do

CPB. Ao contrário de tal configuração doutrinária formulada, a

denominada impossibilidade relativa quanto aos meios somente se

configurará quando os meios utilizados pelo agente, embora em tese

sejam considerados idôneos e aptos para a configuração do resultado

pretendido, não se prestam para que o mesmo seja alcançado, face ao

emprego incorreto do meio utilizado ou por conta de circunstância

intrínseca alheia ou fortuita, resultando o que Manzini denomina de

insuficiência de meios, o que possibilitará a ocorrência da tentativa. Não

pode a corte de justiça subtrair e substituir o julgamento popular,

definindo desde logo que o fato versa sobre caso de tentativa impossível

ou que representa caso de emprego de meio relativamente inidôneo para

que fosse alcançado o resultado desejado, isso decorrente tão somente

do mau funcionamento da arma utilizada pelo agente, devendo assim a

questão necessariamente ser levada à consideração do conselho de

sentença, já que dos autos constam elementos suficientes à pronúncia do

acusado. A acusação afirma por sua vez que não existindo o crime

tentado, nos moldes do disposto no art. 17, do CPB, deve a ação

desenvolvida ser considerada como configurativa do crime de ameaça,

previsto no art. 147, do CPB, todavia, tal desclassificação é impossível de

ser alcançada nesta via, eis que qualquer modificação operada por esta

corte de justiça em relação ao tema acarretará em invasão da

competência do Tribunal do Júri, ex vi do disposto no art. 5°, XXXVIII, c,

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d, da Constituição Federal. Recursos conhecidos e improvidos. (TJDF –

RSE 19990610004235 – 1ª T.Crim. – Rel. Des. P. A. Rosa de Farias –

DJU 05.04.2000 – p. 38).

Dessa posição, adotada pela Corte de Justiça do Distrito Federal,

embora, por ausência de competência, porque não poderia subtrair da

apreciação do Tribunal do Júri, não tenha decidido a questão de fundo, resta

evidenciado que somente em caso de absoluta inidoneidade dos meios,

empregados pelo agente, ou de absoluta impropriedade do objeto, é que se

pode entender não ser punível a tentativa, nos moldes da norma contida no art.

17, do Código Penal brasileiro. Norma essa também existente no art. 16.1, do

Código espanhol de 1995, que exige a prática de todos, ou de parte, dos atos

que objetivamente deveriam produzir o resultado danoso.

TENTATIVA FRUSTRADA — PENA DO CRIME CONSUMADO

O Supremo Tribunal Federal tem firme orientação firmada anteriormente

a promulgação da Constituição Federal de 1988, retratada na Súmula de sua

jurisprudência, no sentido de que, quando o agente tinha a intenção de praticar

determinado delito e realiza todos os atos objetivos necessários para o fim

colimado, ainda que não logre êxito na obtenção do resultado final previsto,

pratica o crime na modalidade consumada e não meramente tentada, a exemplo

do que ocorre no roubo qualificado pela morte da vítima, ou latrocínio, quando o

homicídio se consuma, ainda que não realize o agente a subtração de bens da

vítima, consoante o enunciado da Súmula nº 610/STF :

“Há crime de latrocínio, quando o homicídio se consuma, ainda que não

realize o agente, a subtração de bens da vítima”.

No ano de 1995, o Juízo de Direito da Vara Única da Comarca de

Prudentópolis, Estado do Paraná (Brasil), recebeu denúncia do Ministério

Público contra quatro pessoas que, deliberadamente em conjunto, interceptaram

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um automóvel proveniente do Paraguai, que trafegava pela BR-277 — rodovia

que corta o município —, disparando tiros com arma de fogo contra o veículo,

atingindo uma pessoa que ocupava o banco traseiro do automotor, produzindo-

lhe lesões, quando então o condutor do veículo acelerou tentando fugir dos

delinqüentes que, nessas circunstâncias evadiram-se do local com o veículo que

utilizavam, sem lograr êxito no intento de assaltar as vítimas. Com esse

comportamento, segundo a denúncia, os acusados teriam praticado figura típica

do crime de roubo impróprio (art. 157, § 1º, do Código Penal), na forma tentada

(art. 14, II, do mesmo Código).

Durante a instrução do feito restou comprovada a conduta imputada aos

acusados, em especial o fato de não terem logrado êxito no intento de subtrair

coisa alheia móvel para si, ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência

a pessoa (caput), ou pelo emprego de violência contra pessoa ou grave ameaça,

a fim de assegurar a impunidade do crime ou a detenção da coisa para si ou

para terceiro (§ 1º), porque o condutor do automotor interceptado imprimiu-lhe

maior velocidade após os tiros que feriram a babá dos filhos que se encontrava

no banco traseiro, conseguindo fazer com que os meliantes desistissem do

intento inicial.

Em tais circunstâncias, sustenta a mais abalizada doutrina, haver dois

entendimentos diferentes. Pelo primeiro, que é o predominante, se entende ser

inadmissível a tentativa, porque ou o agente usa violência ou grave ameaça

após a subtração (e o crime estará consumado), ou não a usa e, então, o crime

não será roubo impróprio, mas furto consumado ou tentado. Já pelo segundo

entendimento, pode haver tentativa de roubo impróprio, quando, depois de

conseguir subtrair a coisa, o agente é preso ao tentar usar violência ou grave

ameaça para assegurar a posse do objeto ou sua impunidade. Para ambas as

correntes, se a subtração é apenas tentada e há violência ou ameaça na fuga,

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como na espécie citada, o crime será de furto (art. 155) em concurso com crime

(art. 70) contra a pessoa (art. 129) e não tentativa de roubo. 252

Não há divergência na doutrina e na jurisprudência, quanto a se tratar da

figura delituosa, na modalidade consumada, na espécie de roubo, se o agente

teve, ainda que por breve tempo, a posse da coisa subtraída. Importa é que o

dominus já não pode exercer seu direito sobre a res, porque ela, ou parte dela,

desaparece definitivamente na fuga do agente, não sendo o crime meramente

tentado.253 Essa leitura é pacífica até mesmo pelo Supremo Tribunal Federal,

que já afirmou.254

Ao julgar o HC 69753, que versava hipótese análoga à presente, em que

também não houvera sequer perseguição, esta primeira turma, sendo relator o

eminente Ministro Sepúlveda Pertence, assim decidiu: “Roubo. Consumação. A

Jurisprudência do STF, desde o RE 102.390, 17.09.1987, Moreira Alves,

dispensa, para a consumação do roubo, o critério de saída da coisa da chamada

'esfera de vigilância da vítima' e se contenta com a verificação de que, cessada a

clandestinidade ou a violência, o agente tenha tido a posse da 'res furtiva', ainda

que retomada, em seguida, pela perseguição imediata; com mais razão, está

consumado o crime se, como assentado no caso, não houve perseguição,

resultando a prisão dos agentes, pouco depois da subtração da coisa, a

circunstância acidental de o veículo, em que se retiravam do local do fato, ter

apresentado defeito técnico”.

No entanto, no caso citado (da comarca de Prudentópolis), em que pese

o posicionamento doutrinário referido (Delmanto), o juiz do feito, entendeu,

porém, ser necessário adequar-se a classificação do tipo imputado ao fato

252 DELMANTO, Celso. Código penal comentado. 3ª ed. Atualizada e ampliada por Roberto Delmanto. Rio de Janeiro: Renovar, 1991,

pág. 157.

253 KRAMER, Vânia Maria da Silva, in Sentença nos autos de ação penal nº 209/2000, da 1ª Vara Criminal, de Ponta Grossa, Paraná.

254 STF, HC 74.376/RJ – 1ª T. – Rel. Min. Moreira Alves – DJU 07.03.1997) in: CD-Rom Síntese Millennium, ementa nº 5010733

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descrito na inicial e comprovado durante a instrução, porque, embora tenha a

denúncia imputado a prática de tentativa de roubo impróprio, tratava-se na

espécie de crime consumado, dada a consumação da violência imposta ao

menos a uma das vítimas (a que foi atingida pelo projétil disparado), em que

pese nada houvesse sido subtraído das vítimas, aplicando-se aí o mesmo

raciocínio contido na Súmula 610/STF. 255

É certo que a Súmula invocada não trata de roubo impróprio, mas de

latrocínio (art. 157, § 3º). No entendimento sumulado, considera-se que o agente

praticou atos próprios do latrocínio, posto que a morte da vítima só foi produzida

com o intuito de subtrair coisa móvel alheia, e foi decorrente do excesso de

violência empregada, encontrando-se nitidamente demonstrado (e comprovado)

o nexo causal entre as condutas integrativas do tipo almejado pelo agente (roubo

impróprio), tal como no entendimento da Súmula referida.

Se esse entendimento é aceito para um delito considerado mais grave,

como o latrocínio, onde a ausência de subtração da res furtiva não impede a

caracterização do tipo, dada a consumação da violência extrema empregada,

que leva a morte da vítima, também deve ser aceito para caracterização de

roubo impróprio de forma consumada e não meramente tentada, quando o

agente pratica atos próprios dessa figura penal, produzindo graves lesões na

vítima, em que pese não tenha logrado êxito na subtração de bens. Aliás, nesse

mesmo sentido vem decidindo o Superior Tribunal de Justiça, desde o Recurso

Extraordinário nº 102.490, como asseverado no Recurso Especial nº 93593/PR 256 (onde também se menciona o Resp 58.205-9/SP) in verbis:

1. Segundo precedentes da suprema corte e deste tribunal, para a

consumação do crime de roubo é irrelevante a posse tranqüila da coisa,

255 Sentença nos autos de ação penal nº 17/95, prolatada em 03 de novembro de 1995, na Comarca de Prudentópolis, Estado do

Paraná.

256 STJ – REsp 93593 – PR – 6ª T. – Rel. Min. Anselmo Santiago – DJU 04.05.1998 – p. 214) in CD-Rom, Júris Síntese Millennium,

ementa nº 16038045.

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ou seu lapso de tempo, ou ter ela saído da esfera de vigilância da vítima,

bastando, tão-somente, a cessação da violência ou grave ameaça,

circunstância indicada pela fuga do assaltante.

2. Recurso conhecido e provido.

É verdade que no aresto citado, a vítima chegou a ser despojada da posse

de um par de tênis quando deixava um estabelecimento comercial, mas obtendo

emprestado um revólver e um veículo saiu imediatamente ao encalço do ladrão

obtendo a imediata restituição da coisa, além de conseguir prender o agente. No

entanto, a tendência de entendimento é no sentido de que não importaria a

efetiva apreensão ou detenção da coisa pelo meliante para restar configurado o

crime. Para a caracterização, modalidade consumada, bastava a cessação da

violência ou da grave ameaça empregada contra a vítima.

No caso antes narrado, tal como nas circunstâncias da Súmula 610/STF, ou

mesmo segundo o entendimento do STJ, houve absoluta eficácia do meio e

propriedade do objeto utilizado para o fim de lesar o bem jurídico protegido,

havendo lesão física da vítima com flagrante intuito pelo agente, de subtrair seu

patrimônio. Mutatis mutandis, são duas circunstâncias idênticas onde não se

justifica que em uma se considere o delito como consumado e em outra apenas

como tentado, também não se tratando, por fim, da antijuridicidade contida no

art. 17, do Código Penal. A lesão da vítima só foi produzida pelo meliante, no

exclusivo intuito de apoderar-se de pertences que todos os ocpantes do veículo

traziam consigo. A lesão decorrente do excesso de violência empregada,

encontrando-se nitidamente presente nexo causal entre as condutas integrativas

do tipo almejado pelo agente (roubo impróprio), como já dito. Conseqüentemente

não poderia ser outra a conclusão do intérprete.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 210

CONCLUSÃO

Enfim, não há como negar, a tentativa constitui tipo autônomo de crime,

claramente previsto pelo legislador na parte geral do Código Penal, com as

respectivas penas que lhe são próprias, previstas, como mero referencial,

juntamente com as diversas modalidades de crime estabelecidos na parte

especial. A pena da tentativa não pode ser considerada, in abstrato como a do

crime consumado, aplicada in concreto, para somente então proceder-se a

redução, mínima ou máxima, prevista pelo legislador no parágrafo único do art.

14. A pena da tentativa deve ser considerada in abstrato, pela redução também

in abstrato, das penas para os respectivos crimes consumados, para somente a

partir daí ser aplicada individualizadamente, in concreto, como o exige o art. 59,

do Código Penal, segundo demonstrado, em que pese julgadores de relevo

venham adotando critério diverso, que, ao que se observa é fruto de mera

acomodação porque despedidos de maior fundamentação que justifique tal

exegese.

Desse breve estudo, também se constata que o entendimento contido na

Súmula 610/STJ, não só pode, como deve ser adotado (e felizmente já vem

sendo), para outras modalidades do crime de roubo, além do latrocínio, punindo-

se com maior severidade e sem maiores devaneios, em casos de graves lesões

que experimentadas por vítimas de assaltantes que não logram êxito em levar a

termo seu intento, seja por reação das próprias vítimas, seja pelas circunstâncias

do local onde os atos delituosos são praticados, mormente em se considerando

que o legislador pátrio pune com maior severidade os crimes contra o patrimônio

do que os crimes contra a pessoa, como se constata da pena fixada para a

hipótese do § 1º, do art. 157, e do § 2º, do art. 129, sendo que nesta exige-se,

ainda, a presença de graves seqüelas.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 211

Vale aqui observar que ao intérprete não é dado, a propósito de interpretar

a lei, fazer distinções que o legislador não fez ao acolher certas normas de

comportamento. Urge, portanto, que situações como essas sejam melhor refletidas

pelos tribunais do país, e até mesmo universalmente, contribuindo-se, assim, para

uma melhor resposta do Judiciário aos graves problemas sócio/criminais

enfrentados no dia a dia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CERNICCHIARO, Luiz Luiz Vicente. Pena - Tentativa - Teoria geral do tipo -

Configuração jurídica. Revista Jurídica vol. nº 239-SET/97, (In Júris Síntese

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 212

UMA VISÃO CRIMINOLÓGICA DO ADOLESCENTE INFRATOR257

RUDI RIGO BÜRKLE

Promotor de Justiça da Família, Infância e Juventude de Pato Branco - PR. Professor de

Criminologia na Faculdade Mater Dei. Mestrando pela FUNDINOPI.

RESUMO: O artigo retrata as reflexões do autor acerca dos dez anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, lamentando o desconhecimento e não aplicação da lei que foi criada justamente para garantir direitos fundamentais às crianças e adolescentes. O autor discute as idéias de modificação do Estatuto, refutando especialmente a tese de redução da idade de imputabilidade penal (dezoito anos). O texto alerta para os fatores criminógenos que influenciam na prática de atos infracionais, ligados às condições sociais e econômicas que moldam a vida (educação) das crianças e adolescentes. Aborda questões específicas como o uso e tráfico de drogas, salientando a necessidade de o Estado e a sociedade intervirem positivamente para o exato cumprimento do Estatuto. ABSTRACT: This article portrays the author’s reflections upon the ten years of ruling concerning the Statute of Children and Adolescents, lamenting on the unfamiliarity and non-application of the law that was created exactly to guarantee basic rights to the children and adolescents. The author discusses about the ideas for altering the Statute, refuting especially the thesis of age reduction regarding criminal imputability (eighteen years old). The text alerts for the criminal factors that influence the practice of infractions linked to the social and economic conditions that shape the children and adolescents’ life (education). It approaches specific issues as the use and traffic of drugs, pointing out the necessity for the State and society to intervene positively for the accurate fulfillment of the Statute.

257 O título original do presente trabalho é “Guerreiro Menino” e fora desenvolvido com base em palestra proferida no "Seminário 10

anos do ECA, direitos... e os deveres?", realizado nos dias 06 e 07 de novembro de 2000, na cidade de Pato Branco — PR.

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O ESTATUTO DA CRIANÇA E ADOLESCENTE E UMA NECESSÁRIA DISCUSSÃO

No momento em que se está completando 10 (dez) anos de Estatuto da

Criança e Adolescente — ECA, se constatam algumas situações ainda

inusitadas, quais sejam: o desconhecimento e a não aplicação da lei que foi

criada com o intuito de garantir um mínimo de dignidade às crianças e

adolescentes e para o que se teve de estabelecer como prioridade absoluta e

integral o atendimento de suas necessidades de educação, saúde, lazer, família,

cultura (artigo 227, caput, da Constituição Federal e artigo 40, parágrafo único,

do Estatuto da Criança e Adolescente — ECA); não se conseguiu implantar as

políticas básicas de atendimento às crianças, adolescentes e suas famílias; não

se reconheceu a necessidade de uma intervenção positiva na realidade social

para mudança do presente contexto, cada vez mais decadente e individualista;

e, principalmente, os que são responsáveis por garantir os direitos básicos das

crianças e adolescentes, na grande maioria, não sabem o que fazer, o quanto

fazer, o porque fazer, para quem fazer, e os demais, não responsáveis, não

sabem porque, mas criticam e afirmam que a lei (ECA) apenas estabeleceu

direitos às crianças e aos adolescentes, afirmando ser ela a responsável pelo

aumento da evasão escolar, pelo uso de drogas, pela prostituição, pela

criminalidade.

E é com a preocupação de que tal situação se dissemine em nosso meio

social, passando a ser tomada como verdade e, decorrente disso, com

perspectiva de alteração de uma lei que sequer teve “oportunidade de

demonstrar para o que veio e já visualizando a possibilidade da referida

alteração, principalmente no que se refere à responsabilidade penal, com

redução da idade de inimputabilidade penal, hoje estabelecida em 18 anos

(artigo 27 do Código Penal), que se faz necessário traçar algumas linhas de

esclarecimento e alerta sobre o tema e incentivar a conjugação de esforços para

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 214

manutenção da norma e sua exata aplicação e implementação”.

Destaca-se que essa necessidade foi constatada justamente quando

realizou-se a coleta de assinaturas, em manifestação contrária à redução da

idade de inimputabilidade penal, e se deparou com um quadro que, depois de

melhor analisado, demonstrou-se típico: os alunos do Curso de Direito, que já

haviam tido oportunidade de ter uma orientação sobre Criminologia 258 e haviam

desenvolvido um trabalho de campo, no qual realizaram entrevistas com

adolescentes autores de atos infracionais, seus pais e responsáveis, visitaram

seus lares e os estabelecimentos responsáveis pelo acompanhamento das

medidas sócio-educativas, assinaram, num percentual de 90% (noventa), o

referido documento, achando absurda a pretensão de redução da

inimputabilidade penal. Os alunos do primeiro período do curso, no entanto, que

apenas conhecem a realidade pela informação da mídia, a realidade de seus

lares, de suas famílias e de seus arredores, ou mesmo, reconhecem a lei e a

pena como solução para tudo, rechaçaram a participação no movimento,

afirmando que lugar de bandido é realmente na cadeia, ficando a adesão em não

mais do que 5% (cinco).

O que se tentará trazer no presente texto, portanto, é nada mais do que

aquela realidade com a qual se depararam os alunos ao realizarem o trabalho

com adolescentes autores de atos infracionais e que lhes possibilitou

compreender que nem tudo que reluz é realmente ouro e que a ação que parece

ser livre e consciente, uma opção do adolescente, pode, verdadeiramente, não

estar compreendida nesse contexto e deve ser tomada sob uma ótica social e

legal diferenciada.

Para tanto se fará a análise de alguns fatores que influenciam a

formação do cidadão, de sua “personalidade”, fatores esses basicamente

258 Criminologia é a ciência que estuda o delito, o delinqüência, a vítima e o controle social, verificando a natureza da personalidade e

os fatores criminógenos (endógenos e exógenos) do homem criminoso; as geratrizes da criminalidade; o grau de nocividade social, a

insegurança e a intranqüilidade que ela é capaz de causar à sociedade e a seus membros; os meios capazes de prevenir a incidência e

reincidência no crime através de uma política de erradicação do marginalismo, da profilaxia criminal e da recuperação do delinqüente

para a sociedade.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 215

exógenos, externos, deixando-se de lado os fatores endógenos, biológicos ou

psicológicos, eis que de menor relevância e possibilidade de eliminação, senão

através das ciências humanas; pode-se, assim, citar como fatores exógenos: 1

— fatores sócio-familiares: a direta influência da família sobre os seus membros,

com assimilação de suas características e ensinamentos; 2 — fatores

ambientais: influência das pessoas e das condições sob as quais se vive; 3 —

fatores sócio-ético-pedagógicos: influência de todo o processo de aculturamento

social do cidadão, desde a informação da escola até a informação da mídia que

por si é colhida e assimilada; 4 — fatores econômicos: influência direta da

situação econômica sob a qual está sujeita o indivíduo e, decorrente dessa, a

maior ou menor dificuldade de acesso às condições adequadas de vida, saúde,

educação, lazer, etc.

A AÇÃO INDIVIDUAL E O DETERMINISMO SOCIAL DO CRIME

Deixa-se de fazer uma análise meramente conceitual dos fatores

criminógenos e da influência dos mesmos na conduta humana e se fará uma

construção exemplificativa desses fatores para se demonstrar a importância e,

mesmo, um elevado grau de determinismo na conduta do cidadão e mais

especificamente do adolescente, buscando facilidade de compreensão e

assimilação do tema.

Assim já se pode informar que o contexto, normalmente encontrado na

família dos adolescentes autores de atos infracionais, é de absoluta miséria e

disfunção (renda per capita inferior a R$ 20,00; residência de pequenas

proporções, de chão batido, peça única, sem divisórias, água, luz ou esgoto;

condições de higiene precárias; parca alimentação; ineficiente atendimento

médico-hospitalar; família numerosa; filhos com idades próximas, de diversos

pais, diversas mães, com pais, mães ou ambos em local ignorado, sendo criados

por avôs, irmãos, tios, amigos; membros alcoólicos, viciados em droga,

entregues à prostituição, delinqüentes), e é a partir daí que temos de passar a

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 216

analisar seu desenvolvimento, pois é inserido nesse contexto que o cidadão

adquire em torno de 80% (oitenta) de toda sua bagagem constituidora da

“personalidade”.

Começam, portanto, com o nascimento as dificuldades desse cidadão,

pois fruto de um relacionamento desarmonioso e, normalmente, não desejado, o

que, num primeiro momento, já faz com que seja colocado em segundo plano,

como um atrapalho de vida, razão pela qual não recebe a adequada

alimentação, a tão difundida amamentação materna, os mínimos cuidados

higiênicos ou médicos, e, apesar de indefeso, é constantemente agredido oral e

fisicamente pelos demais membros da família, principalmente quando chora e os

deixa impacientes.

Mas ele vence, consegue crescer nesse contexto, inicia seus primeiros

passos, e é nesse momento, novamente, que necessita da ajuda de sua família,

estabelecendo seus limites, dando o primeiro “tapinha” em sua mão para lhe

mostrar que nem tudo pode ser seu, que há coisas que não pode ter, não pode

tocar, não pode danificar, que pertencem a outras pessoas, o que não acontece,

ou se realiza de forma desastrosa, através de intensas surras.

Não aprendeu os seus limites, e aqui cabe uma afirmação, “somos

delinqüentes natos”, uma vez que nascemos sem qualquer dos limites sociais. O

que conhecemos como certo ou errado, legal ou ilegal, justo ou injusto, moral ou

imoral, foram valores adquiridos em nosso desenvolvimento, foram informações

obtidas de nossos pais, familiares, amigos, escola, meios de comunicação,

enfim, da sociedade em que vivemos, e tanto é verdade que os limites do

cidadão variam conforme a sociedade em que viveu e de sociedade para

sociedade.

E esse cidadão que não aprendeu seus limites, passa a conviver com

filhos de outras famílias disfuncionais, os quais também não receberam a devida

orientação, por aquela série de fatores que já foram alinhavados e pelo fato dos

pais não terem tempo para os mesmos, pois saem de casa durante a

madrugada, retornam tarde e cansados, sem qualquer disposição de conversar

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com seus filhos, ficam eles, então, pelas ruas, “aprendendo com a vida” e

sujeitos a adoção, "adoção por traficantes", o que normalmente ocorre.

Têm-se uma saída. Chega a idade escolar e é a grande oportunidade

que esse cidadão tem de apreender “coisas boas”, “coisas certas”, de alguém

influenciá-lo positivamente, acontece, no entanto, que ele vai à escola faminto,

sujo, não tem material, em casa ninguém lhe faz qualquer cobrança para

estudar, assim, seus colegas não querem contato consigo, suas notas não

satisfazem a necessidade do ensino, as brincadeiras e as ruas lhe parecem mais

atraentes, os professores não têm mais paciência consigo, apenas xingam e

zombam, incentivando que não fique na escola – afinal atrapalha os demais

colegas e a escola é local para quem tem interesse de aprender, como se esse

interesse não devesse ser despertado.

Outra saída não lhe resta, a rua é seu lugar e é ali que deve conquistar

seu espaço, dividí-lo com seu grupo e tentar recuperar sua auto-estima,

principalmente tentando se destacar no grupo escolhido.

A CRIMINALIDADE: UMA VIA DE MÃO-ÚNICA

O uso de drogas passa a ser constante, afinal assim fica eufórico, sua

vida toma cores, seus sonhos parecem possíveis, encontra o amparo e a paz

que desejava. Mas há um porém, isso tudo tem um custo, já que a droga tem

que ser comprada ele consegue, então, comercializá-la ou passa a praticar

outros delitos (atos infracionais).

Inicia-se aí o seu ciclo, o seu ciclo da delinqüência, que passa a ser

definitivo quando marcado pela intervenção das instituições, quando apreendido

pela primeira vez, pois é assinalado com o estigma de criminoso, passa a ser

perseguido pelas autoridades policiais e o preconceito social não lhe permite

qualquer acesso as outras pessoas, que quando o vêem, observam-no com

receio, desconfiança e medo, afinal de contas é um “bandido”, não importando

se o seu maior crime foi subtrair uma peça de roupa ou alguns trocados. O valor

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 218

pouco importa, o que importa mesmo é a sua situação de miséria, pois se assim

não fosse, qual é o tratamento que mereceriam os autores de crimes do

colarinho branco, principalmente agentes públicos e empresários sonegadores

que lesam com maior gravidade a coletividade (“aliás, em nosso país sonegação

parece não existir”)?

E qual a chance que tem ele de sair dessa situação? De mudar de vida?

Talvez pelo adequado atendimento que o poder público tem dado às famílias

dessas crianças, pelas adequadas medidas que se têm aplicado e feito cumprir

nas Varas da Infância e Juventude, ou talvez porque a sociedade mereça, afinal

deu a esse cidadão tudo aquilo que a lei lhe garantia: família, lar, saúde,

educação, lazer.

Ora, não sabe esse cidadão que, para interromper o seu ciclo de

delinqüência, basta que tenha vontade? Afinal de contas ingressou nele porque

quis, tinha, como considera a lei penal, livre arbítrio, ninguém o obrigou a fazer

essa opção de vida, ao invés de estudar, de trabalhar; assim, interrompa sua

jornada antes que atinja a maioridade penal e a sociedade consiga colocá-lo

atrás das grades para não incomodar mais e para não manchar os belos

cenários sociais com sua presença.

Afinal, ele também só faz o que faz porque a lei não o pune, não prevê

qualquer sanção aos adolescentes autores de atos infracionais, só os protege, é

a completa irresponsabilidade por seus atos, conforme alguns divulgam de boca

cheia, sedentos pela vingança estatal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desconhecem os "críticos” que todas as espécies de penas previstas

aos imputáveis pelo direito penal são previstas como medidas sócio-educativas

pelo Estatuto da Criança e Adolescente, com uma só diferença, devem ser

tratadas e aplicadas como medidas sócio-educativas que são. Não devem ser

aplicadadas para pura vingança estatal, retribuição, mas para socialização e

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educação desse cidadão que está em processo de formação, de

desenvolvimento, e por isso precisa que as coisas lhes sejam ditas, mostradas,

que lhe seja dada a oportunidade de aprender aquilo que “a vida” não pôde

ensinar.

Aliás, tem que se confirmar textualmente que é falaciosa a afirmação de

que se estabeleceu a absoluta impunidade dos adolescentes, razão pela qual

estaria havendo aumento do número de delitos praticados por eles, primeiro

porque, como visto, a origem desse aumento não está aqui, ficou para trás,

muitos anos antes, logo após o nascimento desse adolescente, e não será essa

lei punitiva que mudará isso; segundo, porque o aumento vem ocorrendo em

todas as faixas etárias da população, principalmente, com as mulheres que

também vivem um momento social diferenciado, decorrente da conquista de

respeito social e igualdade com os homens; e, terceiro, porque o aumento é

absolutamente presente em todas as sociedades, inclusive naquelas que

aplicam penas capitais, o que demonstra que não é o direito penal, através do

crime e da pena que mudará a realidade social.

Para finalizar, quer-se lembrar a letra de uma música de Gonzaguinha, a qual,

aliás, inspirou o título original do presente trabalho, “Um homem também chora,

Guerreiro Menino”, e que bem identifica a realidade desses adolescentes autores

de atos infracionais, verdadeiros guerreiros meninos: Um homem também chora menina morena, também deseja colo, palavras

amenas.

Precisa de carinho, precisa de ternura, precisa de um abraço da própria candura.

Guerreiros são pessoas, são fortes, são frágeis, guerreiros são meninos por

dentro do peito.

Precisam de um descanso, precisam de um remanso, precisam de um sonho

que os torne perfeitos.

É triste ver meu homem guerreiro, menino, com a barra de seu tempo, por sobre

os ombros, eu vejo que ele sangra, eu vejo que ele berra a dor que traz no peito.

pois anda e ama.

Um homem se humilha se castram seus sonhos, seu sonho é sua vida e vida é

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trabalho, sem o seu trabalho um homem não tem honra, sem sua honra se

morre, se mata [...]

Experimentemos deixar chorar esses guerreiros meninos, homens fortes,

mas também tão frágeis, demo-lhes colo, carinho, mas também o seu remanso,

seu lar; tentemos prestigiá-los com palavras amenas, que incentivem seus

sonhos; com um abraço vamos conduzí-los pelo tempo, mostrando que a ferida

que sangra é marca do amor que ainda trazem no peito e que, por ainda tê-lo,

podem conquistar seus sonhos e que seus sonhos somente dependem de seu

trabalho, com o qual resgatarão sua honra, honra que dará novo sentido as suas

vidas e não os fará matar nem morrer.

Experimentemos deixar e fazer aplicar a lei que assegurou aos nossos

guerreiros meninos com plenitude e primazia as suas garantias fundamentais;

experimentemos conhecer os nossos guerreiros meninos e suas realidades; ao

invés de criticar e acusar, experimentemos olhar o nosso passado e o nosso

presente, o que fomos, o que somos, mas, principalmente, o que fazemos, o que

queremos para os nossos filhos. Será que essas garantias, que tanto se criticam,

não poderão dar ao nosso guerreiro menino a vida digna que as nossas

condições pessoais não permitam fazê-lo? Será que amanhã meu filho não será

esse guerreiro menino e aí será tarde para tentarmos fazer voltar atrás a lei?

Pois talvez mais 10 anos sejam necessários para que alguém ouça os nossos

brados de socorro, brados que só agora, 10 anos depois, você está ouvindo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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MOLINA, Antônio Garcia Pablos de. Criminologia: introdução a seus

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 222

A RESPONSABILIDADE PENAL DOS MENORES NA ESPANHA E O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO

ADOLESCENTE

José Sebastião Fagundes Cunha

Juiz de Direito no Paraná, Professor Universitário (Coordenador Pedagógico da

Faculdade de Direito dos Campos Gerais – CESCAGE), Mestre em Direito pela

PUC-SP e Doutorando pela UFPR.

RESUMO: O artigo trata do tema "imputabilidade penal" no direito espanhol, analisando a "Lei Orgânica de Responsabilidade Penal do Menor", que dispõe sobre as hipóteses de atos infracionais causados por menores e o modos de reação do Estado e da própria sociedade, de forma sancionadora e educativa, visando tutelar os interesses do menor, sem olvidar dos interesses da vítima. O autor menciona a possibilidade de o menor causador do ato infracional reparar o dano causado e conciliar-se com a vítima, buscando o acordo. Descreve ainda as diversas medidas previstas em lei em casos de atos infracionais, como: a admoestação, a prestação de serviços à comunidade, o internamento (regimes aberto, semi-aberto e fechado), a liberdade vigiada, as tarefas sócio-educativas e o tratamento ambulatorial, dentre outras. ABSTRACT: The article deals with the "criminal imputability" subject in the Spanish law, analyzing the "Organic Law of Criminal Responsibility of the Minor", that holds the hypotheses on infractions caused by minors and the forms of the State and society itself reactions, of sanctioning and educative forms, aiming at tutoring the minor’s interests, without neglecting the victim’s interests. The author mentions the possibility of the minor causing the infraction to repair the damage and to conciliate with the victim, searching for an agreement. He still describes the diverse procedures due to the law in cases of infractions, as: the admonition, the rendering of services to the community, the internment (open, half-open and closed systems), the parole, the social-educative tasks and the ambulatorialtreatment, amongst others.

No 1º Congresso Internacional de Justiça – Uma Justiça para o III Milênio,

realizado nos dias 8 a 10 de dezembro de 1997, em Fortaleza, pela Associação

Cearense de Magistrados, tivemos o privilégio de propor a discussão da

alteração de alguns pontos do Estatuto da Criança e do Adolescente, em

especial os relacionados ao jovem com idade de 18 a 21 anos, assim como a

aplicação de medidas concernentes a terapias relacionadas com questões

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 223

patológicas envolvendo o quadro psíquico e a mantença da idade limite de 18

(dezoito) anos para a responsabilidade criminal entre outras.

De fato, caberia aqui desenvolver idênticos fundamentos aos lá

sustentados, ou ainda, trazer extensas citações de estudos de caráter

multidisciplinar que fundamentam o nosso entendimento; contudo, nossas

reflexões em voz alta foram naquela oportunidade ouvidas por Magistrados de

diversos países que ali se encontravam presentes, dentre os quais da Espanha

e, por uma feliz coincidência, exatamente as questões e sugestões por nós

dadas a conhecer, estão conforme a lei recentemente aprovada na Espanha.

Assim, este trabalho é feito com base na recente legislação espanhola,

com o fito de utilizá-la como referência e fundamento. Redigimos com cuidado

de utilizar as expressões e conceitos do Direito daquele país, razão pela qual, o

generoso leitor, se mais afoito, poderá entender equivocada a forma ou o

conteúdo; não se trata disto, mas da utilização dos conceitos como são além do

mar.

No momento em que aqui ocorrem os debates a respeito de eventuais

alterações, cingindo-se a discussão eminentemente a respeito da idade a partir

da qual possa recair a responsabilidade penal, tanto no Congresso Nacional,

como na sociedade civil, entendemos importante abordar outras questões de tal

quilate, que podem desbordar em soluções até então não enfrentadas, ainda que

à guisa de discussão.

A promulgação da recente Lei Orgânica reguladora da responsabilidade

penal dos menores, na Espanha, era uma necessidade imposta pelo

estabelecido na Lei Orgânica 4/1992, de 5 de junho, sobre reforma da Lei

reguladora da competência e do procedimento dos Juizados de Menores, na

moção aprovada pelo Congresso dos Deputados em 10 de maio de 94 e no

artigo 19 da vigente Lei Orgânica 10/1995, de 23 de novembro, do Código Penal.

A Lei Orgânica 4/1992, promulgada como conseqüência da sentença do

Tribunal Constitucional 36/1991, de 14 de fevereiro, que declarou

inconstitucional o artigo 15 da Lei de Tribunais Tutelares de Menores, texto

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 224

refundido de 11 de junho de 48, estabelece um marco flexível para que os

juizados de Menores possam determinar as medidas aplicáveis a estes enquanto

infratores penais, sobre a base de valorar especialmente o interesse do menor,

entendendo por menores, para tais efeitos, as pessoas compreendidas entre os

doze e os dezesseis anos. Simultaneamente, encomenda ao Ministério Fiscal a

iniciativa processual e lhe concede amplas faculdades para acordar o término do

processo com a intenção de evitar, dentro do possível, os efeitos aflitivos que o

mesmo poderia chegar a produzir. Assim mesmo, configura a equipe técnica

como instrumento imprescindível para alcançar o objetivo que perseguem as

medidas e termina estabelecendo um procedimento de natureza sancionadora-

educativa, ao que outorga todas as garantias derivadas de ordenamento

constitucional, em sintonia com o estabelecido na aludida sentença do tribunal

Constitucional e o disposto no artigo 40 da Convenção dos Direitos da Criança,

de 20 de novembro de 1989.

Dado que a expressada Lei Orgânica reconhecia a si mesma –

expressamente – o caráter de uma reforma urgente, a qual adianta parte de uma

renovada legislação sobre reforma de menores, que será objeto de medidas

legislativas posteriores, é evidente a oportunidade da presente Lei Orgânica, que

constituiu essa necessária reforma legislativa, partindo dos princípios básicos

que já guiaram a redação daquela (especialmente, o princípio do superior

interesse do menor), das garantias do ordenamento constitucional e das normas

de Direito Internacional, com particular atenção à citada Convenção dos Direitos

da Criança. Espera-se responder deste modo às expectativas criadas na

sociedade espanhola, por razões, em parte conjunturais e em parte

permanentes, sobre este tema concreto.

Os princípios expostos na moção aprovada unanimemente pelo

Congresso dos Deputados no dia 10 de maio de 1994, sobre medidas para

melhorar o marco jurídico vigente de proteção do menor, referem-se essencialmente ao estabelecimento da maioridade penal aos dezoito anos

e a promulgação de uma lei penal de menor e juvenil que contemple a

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 225

exigência de responsabilidade para os jovens infratores que não tenham

alcançado a maioridade penal, fundamentada em princípios orientados para a

reeducação dos menores de idade infratores, com base nas circunstâncias

pessoais, familiares e sociais, conforme assinala a própria exposição de motivos

da lei em comento.

Na Espanha, o artigo 19 do vigente Código Penal, aprovado pela Lei

Orgânica 10/1995, de 23 de novembro, fixa efetivamente a maioridade penal nos

dezoito anos e exige a regulamentação expressa da responsabilidade penal dos

menores de dita idade em uma Lei independente. Também para responder a

esta exigência se aprovou a Lei Orgânica de Responsabilidade Penal do Menor,

se bem que o disposto neste ponto no Código Penal deva ser complementado

em um duplo sentido. Em primeiro lugar assenta-se firmemente o princípio de

que a responsabilidade penal dos menores apresenta, frente à dos adultos, um

caráter primordial de intervenção educativa que transcende a todos os aspectos

de sua regulamentação jurídica e que determina consideráveis diferenças entre

o sentido e o procedimento das sanções em um e outro setor, sem prejuízo das

garantias comuns a todo justiciável. Em segundo termo, a idade limite de dezoito

anos estabelecida pelo Código Penal para referir-se à responsabilidade penal

dos menores precisa de outro limite mínimo a partir do qual comece a

possibilidade de exigir essa responsabilidade e que se concretizou, na Espanha,

nos catorze anos, com base na convicção de que as infrações cometidas pelas

crianças menores desta idade em geral irrelevantes e que, nos escassos casos

supostos em que aquelas possam produzir alarme social, são suficientes para

dar-lhes uma resposta igualmente adequada aos âmbitos familiar e assistencial

civil, sem necessidade de intervenção do aparato judicial sancionador do Estado.

Prossegue a Exposição de Motivos da Lei afirmando que, assim mesmo,

foram criados critérios orientadores da redação da Lei Orgânica, como não

poderia ser de outra maneira, os conteúdos na doutrina do Tribunal

Constitucional, singularmente nos fundamentos jurídicos das sentenças 36/1991,

de 14 de fevereiro e 60/1995, de 17 de março, sobre as garantias e o respeito

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 226

aos direitos fundamentais que necessariamente tenham de imperar no

procedimento seguido perante os Juizados de Menores, sem prejuízo das

modulações que, a respeito do procedimento ordinário, permitem ter em conta a

natureza e finalidade daquele tipo de processo, encaminhado na adoção de

algumas medidas que, como já se tem dito, fundamentalmente não podem ser

repressivas, senão preventiva-especiais, orientadas para a efetiva reinserção e o

superior interesse do menor, valorados com critérios que tenha de buscar-se

primordialmente no âmbito das ciências não jurídicas.

Como conseqüência dos princípios, critérios e orientações a que se

acaba de fazer referência, pode se dizer que a redação da Lei Orgânica foi

conscientemente guiada pelos seguintes princípios gerais: natureza formalmente

penal, porém materialmente sancionadora-educativa do procedimento e das

medidas aplicáveis aos infratores menores de idade; reconhecimento expresso

de todas as garantias que se derivam do respeito aos direitos constitucionais e

das especiais exigências do interesse do menor; diferenciação de diversos

trâmites a efeitos processuais e sancionadores na categoria de infratores

menores de idade; flexibilidade na adoção e execução das medidas

aconselhadas pelas circunstâncias do caso concreto; competência das entidades

autônomas relacionadas com a reforma; e proteção de menores para a

execução das medidas impostas na sentença e controle judicial desta execução.

A Lei Orgânica de Responsabilidade Penal do Menor tem, certamente, a

natureza de disposição sancionadora, pois desenvolve a exigência de uma

verdadeira responsabilidade jurídica dos menores infratores, enquanto referida

especificamente no cometimento de fatos tipificados como delitos ou faltas pelo

Código Penal e as demais leis especiais. Ao pretender ser a reação jurídica

dirigida ao menor infrator uma intervenção de natureza educativa, enquanto

desde logo de especial intensidade, rechaçando expressamente outras

finalidades essenciais do Direito Penal de adultos, como a proporcionalidade

entre o fato e sanção ou a intimidação dos destinatários da norma, se pretende

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 227

impedir tudo aquilo que poderia ter um efeito contraproducente para o menor,

como o exercício da ação pela vítima ou por outros particulares.

Justifica que é o Direito Penal de Menores que tem de primar, como

elemento determinante do procedimento e das medidas que se adotem, o

superior interesse do menor. Interesse que há de ser valorado com critérios

técnicos e não formalistas por equipes de profissionais especializados no âmbito

das ciências não jurídicas, sem prejuízo desde logo de adequar a aplicação das

medidas a princípios garantistas gerais tão indiscutíveis como o princípio

acusatório, o princípio de defesa ou o princípio de presunção de inocência.

Contudo, a lei tampouco pode esquecer o interesse próprio do

prejudicado ou vítima de fato cometido pelo menor, estabelecendo um

procedimento singular, rápido e pouco formalista para o ressarcimento, em seu

caso, de danos e prejuízos, dotando de amplas faculdades ao Juiz de Menores

para a incorporação aos autos de documentos e testemunhos relevantes à

causa principal. Neste âmbito de atenção aos interesses e necessidades das

vítimas, a Lei introduziu o princípio em certo modo revolucionário – na Espanha

– da responsabilidade solidária com o menor responsável pelos fatos de seus

pais, tutores, acogedores ou guardadores, se bem permitindo a moderação

judicial da mesma e recordando expressamente a aplicabilidade em seu caso da

Lei 30/1992, de 26 de novembro, de Regime Jurídico das Administrações

Públicas e do Procedimento Administrativo Comum, assim como da Lei 35/1995,

de 11 de dezembro, de ajudas e assistência às vítimas de delitos violentos e

contra a liberdade sexual.

A Lei regula, para procedimentos por delito graves cometidos por maiores

de dezesseis anos, um regime de intervenção do prejudicado em ordem a

salvaguardar o interesse da vítima no esclarecimento dos fatos e seu

ajuizamento por ordem jurisdicional competente, sem contaminar o procedimento

propriamente educativo e sancionador do menor. Esta Lei arbitra um amplo

direito de participação às vítimas, oferecendo-lhes a oportunidade de intervir nas

atuações processuais propondo e praticando prova, formulando conclusões e

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interpondo recursos. Ademais, esta participação se estabelece de um modo

limitado já que a respeito dos menores não cabe reconhecer aos particulares o

direito de constituir-se propriamente em parte acusadora com plenitude de

direitos e cargas processuais.

Não existe aqui nem a ação particular dos prejudicados pelo fato criminal,

nem a ação popular dos cidadãos, porque nestes casos o interesse prioritário

para a sociedade e para o Estado coincide com o interesse do menor.

Conforme as orientações declaradas pelo Tribunal Constitucional,

anteriormente aludidas, instaura-se um sistema de garantias adequado na

pretensão processual, assegurando que a imposição da sanção se efetuará

buscando vencer a presunção de inocência, porém sem obstaculizar os critérios

educativos e de valoração do interesse do menor que preside neste processo,

fazendo ao mesmo tempo um uso flexível do princípio de intervenção mínima, no

sentido de dotar de relevância as possibilidades de não abertura do

procedimento ou renúncia ao mesmo, ao ressarcimento antecipado ou

conciliação entre o infrator e a vítima, e aos pressupostos de suspensão

condicional da medida imposta ou de substituição da mesma durante sua

execução.

A competência corresponde a um Juiz ordinário, que, com categoria de Magistrado e preferentemente especialista, garante a tutela judicial efetiva dos direitos em conflito. A posição do Ministério Fiscal é relevante, em sua dupla condição de

instituição que constitucionalmente tem recomendada a função de promover a

ação da Justiça e a defesa da legalidade, assim como dos direitos dos menores,

velando pelo interesse destes. O advogado do menor tem participação em todas

e cada uma das fases do processo, conhecendo em todo momento o conteúdo

do expediente, podendo propor provas e intervindo em todos os atos que se

referem à valoração do interesse do menor e à execução da medida, da qual

pode requerer a modificação. A adoção de medidas cautelares segue o modelo

de requerimento da parte, em audiência contraditória, na qual deve valorar-se

especialmente, uma vez mais, o superior interesse do menor.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 229

Na defesa da unidade de doutrina, o sistema de recursos ordinário se

confia às Audiências Provinciais, que haverão de criar-se, as quais, com a

inclusão de Magistrados especialistas, asseguram e reforçam a efetividade da

tutela judicial em relação com as finalidades a que se propõe a Lei. No mesmo

sentido, procede destacar a instauração do recurso de cassação para unificação

de doutrina, reservado aos casos de maior gravidade, no paralelismo com o

processo penal de adultos, reforçando a garantia de unidade de doutrina em um

âmbito de direito sancionador de menores através da jurisprudência do Tribunal

Supremo.

Consoante os princípios assinalados, se estabelece, inequivocamente, o

limite de catorze anos de idade para exigir este tipo de responsabilidade

sancionadora aos menores de idade penal e se diferenciam, no âmbito de

aplicação da Lei e da graduação das conseqüências pelos fatos cometidos, dos

trâmites, de catorze a dezesseis e de dezesseis a dezoito anos, por apresentar

um e outro grupo diferentes características que requerem, desde um ponto de

vista científico e jurídico, um tratamento diferenciado, constituindo uma

agravação específica no trâmite dos maiores de dezesseis anos o cometimento

de delitos que se caracterizam pela violência, intimidação ou perigo para as

pessoas.

A aplicação da Lei aos maiores de dezoito anos e menores de vinte e um,

prevista no artigo 69 do código Penal vigente, poderá ser acordada pelo Juiz

atendendo às circunstâncias pessoais e ao grau de maturidade do autor, à

natureza e à gravidade dos fatos. Aqui está o que de melhor se pode interpretar

em termos de inovação e revolução no sistema penal, a possibilidade de

aplicação da legislação menorista ao jovem entre dezoito e vinte e um anos de

idade, atendidos tais critérios. Estas pessoas recebem, aos efeitos desta Lei, a

denominação genérica de jovens.

Regulam-se, expressamente, como situações que requerem uma

resposta específica, os pressupostos de que o menor apresente sintomas de

alienação mental ou a concorrência de outras circunstâncias modificativas de

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 230

sua responsabilidade, devendo promover o Ministério Fiscal, tanto a adoção das

medidas mais adequadas ao interesse do menor que se encontra em tais

situações, como a constituição dos organismos tutelares previstos pelas leis.

Aqui outra grande revolução. Retomamos tais temas, no afã de despertar a

discussão para essas questões, uma vez que se aqui ainda não se encontrou o

eco necessário, é possível que seja um caminho certo, eis que na Espanha é o

que se descortina.

Na Lei espanhola também se estabelece que as ações e omissões

imprudentes não podem ser sancionadas com medidas de internamento em

regime fechado.

Com acerto às orientações expostas, a Lei estabelece um amplo catálogo

de medidas aplicáveis, desde a referida perspectiva sancionadora-educativa, na

qual deve-se primar novamente o interesse do menor na flexível adoção judicial

da medida mais idônea, dadas as características do caso concreto e da evolução

pessoal do sancionado durante a execução da medida. A concreta finalidade que

as ciências da conduta exigem que se persiga com cada uma das medidas

relacionadas se detalha com caráter orientador no apartado III da exposição de

motivos.

A execução das medidas judicialmente impostas corresponde às

entidades públicas de proteção e reforma de menores das Comunidades

Autônomas, sob o inescusável controle do Juiz de Menores. Mantém-se o critério

de que o interesse do menor tem que ser atendido por especialistas nas áreas

de educação e da formação, pertencentes a esferas de maior proximidade que o

Estado. O Juiz de menores, a instância das partes e ouvidas as equipes técnicas

do próprio Juizado e da entidade pública da correspondente Comunidade

Autônoma dispõem de amplas faculdades para suspender ou substituir por

outras as medidas impostas, naturalmente sem nenhuma das garantias

processuais que constituem outros dos objetivos primordiais da nova regulação,

ou permitir a participação dos pais do menor na aplicação e conseqüências

daquelas.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 231

Um interesse particular reveste no contexto da Lei os temas da reparação

do dano causado e a conciliação do delinqüente com a vítima como situações

que, em áreas do princípio de intervenção mínima e com o concurso mediador

da equipe técnica, podem dar lugar a iniciar o sobrestamento do expediente, ou

à finalização do cumprimento da medida imposta, em um claro predomínio, uma

vez mais, dos critérios educativos e ressocializadores sobre os de uma defesa

social essencialmente baseada na prevenção geral e que poderia resultar

contraproducente para o futuro.

A reparação do dano causado e a conciliação com a vítima apresentam

um comum denominador de que o ofensor e o prejudicado pela infração

cheguem a um acordo, cujo cumprimento por parte do menor termina com o

conflito jurídico iniciado por sua causa. A conciliação tem por objeto que a vítima

receba uma satisfação psicológica a cargo do menor infrator, o qual há de

arrepender-se do dano causado e estar disposto a desculpar-se. A medida se

aplicará quando o menor efetivamente se arrependa e se desculpe, e a pessoa

ofendida o aceite e outorgue o seu perdão. Na reparação o acordo não se

alcança unicamente mediante a via da satisfação psicológica, senão que requer

algo mais: o menor executa o compromisso contraído com a vítima ou

prejudicado de reparar o dano causado, mediante trabalhos em benefício da

comunidade, mediante ações, adaptadas às necessidades do sujeito, cujo

beneficiário seja a própria vítima ou prejudicado.

Na medida de admoestação, o Juiz, em um ato único que tem lugar na

sede judicial, manifesta ao menor de modo concreto e claro as razões que fazem

socialmente intoleráveis os fatos cometidos, lhe expõe as conseqüências que

para ele e para a vítima tenham havido ou podiam haver tido tais fatos e lhe

formula recomendações para o futuro.

A medida de prestações em benefício da comunidade, que, bem como

artigo 25.2 da Constituição espanhola, não poderá impor-se sem consentimento

do menor, consiste em realizar uma atividade, durante um número de sessões

previamente fixado, bem seja em benefício da coletividade em seu conjunto, ou

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de pessoas que se encontrem em uma situação de precariedade por qualquer

motivo. Preferentemente, buscar-se-á relacionar a natureza da atividade em que

consista esta com a dos bens jurídicos afetados pelos fatos cometidos pelo

menor.

O característico desta medida é que o menor há de compreender,

durante sua realização, que a coletividade ou determinadas pessoas tenham

sofrido de modo injustificado conseqüências negativas derivadas de sua

conduta. Pretende-se que o sujeito compreenda que atuou de modo incorreto,

que merece a reprovação formal da sociedade e que a prestação dos trabalhos

que se lhe exigem é um ato de reparação justo.

As medidas de internamento respondem a uma maior periculosidade,

manifestada na natureza peculiarmente grave dos fatos cometidos,

caracterizados nos casos mais destacados pela violência, a intimidação ou o

perigo para as pessoas. O objetivo prioritário da medida é dispor de um

ambiente que proveja das condições educativas adequadas para que o menor

possa reorientar aquelas disposições ou deficiências que tenham caracterizado

seu comportamento antissocial, quando para ele seja necessário, ao menos de

maneira temporal, assegurar a instância do infrator em um regime fisicamente

restritivo de sua liberdade. A maior ou menor intensidade de tal restrição de lugar

aos diversos tipos de internamento, aos que se vá a aludir a continuação. O

internamento, em todo caso, há de proporcionar um clima de seguridade pessoal

para todos os implicados, profissionais e menores infratores, o que faz

imprescindível que as condições de instância sejam as corretas para o normal

desenvolvimento psicológico dos menores.

O internamento em regime fechado pretende a aquisição por parte do

menor dos suficientes recursos de competência social para permitir um

comportamento responsável na comunidade, mediante uma gestão de controle

em um ambiente restritivo e progressivamente autônomo.

O internamento em regime semi-aberto implica a existência de umprojeto

educativo no qual, desde o princípio, os objetivos substanciais se realizam em

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contato com pessoas e instituições da comunidade, tendo o menor sua

residência no centro, sujeito ao programa e regime interno do mesmo.

O internamento em regime aberto implica que o menor levará a cabo

todas as atividades do projeto educativo nos serviços normalizados do entorno,

residindo no centro como domicílio habitual.

O internamento terapêutico se prevê para aqueles casos nos quais os

menores, por razão de sua adição ao álcool ou a outras drogas, assim como por

disfunções significativas em seu psiquismo, precisam de um contexto

estruturado no qual poderá realizar uma programação terapêutica, não se dando,

de uma parte, as condições idôneas ao menor ou em seu entorno para o

tratamento ambulatorial, nem de outra parte, as condições de risco que exigiriam

a aplicação aquele de um internamento em regime fechado.

Na assistência a um centro de dia, o menor é derivado a um centro

plenamente integrado na comunidade, onde se realizam atividades educativas

de apoio a sua competência social.

Esta medida serve ao propósito de proporcionar ao menor um ambiente

estruturado durante boa parte do dia, no qual se levam a cabo atividades sócio-

educativas que podem compensar as carências do ambiente familiar daquele. O

característico do centro de dia é que nesse lugar é onde toma corpo o essencial

do projeto sócio-educativo do menor, se bem este pode assistir também a outros

lugares para fazer uso de outros recursos de lazer ou culturais. O submetido a

esta medida pode, portanto, continuar residindo em seu lugar, ou no de sua

família, ou no estabelecimento de acolhida.

Na medida de liberdade vigiada, o menor infrator está submetido durante

o tempo estabelecido na sentença, a uma vigilância e supervisão a cargo de

pessoal especializado, com o fim de que adquira as habilidades, capacidades e

atitudes necessárias para um correto desenvolvimento pessoal e social. Durante

o tempo que dure a liberdade vigiada, o menor também deverá cumprir as

obrigações e proibições que, de acordo com esta Lei, o Juiz pode impor-lhe.

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A realização de tarefas sócio-educativas consiste em que o menor leve a

cabo atividades específicas de conteúdo educativo que facilitem sua reinserção

social. Pode ser uma medida de caráter autônomo ou formar parte de outra mais

complexa. Empregada de modo autônomo pretende satisfazer necessidades

concretas do menor percebidas como limitadoras de seu desenvolvimento

integral. Pode submeter a assistência e participação do menor a um programa já

existente na comunidade, ou bem a um criado pelos profissionais encarregados

de executar a medida. Como exemplos de tarefas sócio-educativas, podem-se

mencionar as seguintes: assistir a uma oficina ocupacional, a uma aula de

educação compensatória ou a um recurso de preparação para o emprego;

participar em atividades estruturadas de animação sociocultural, assistir a

oficinas de aprendizagem para a competência social etc..

O tratamento ambulatorial é uma medida destinada aos menores que

dispõem das condições adequadas em sua vida para beneficiar-se de um

programa terapêutico que lhes ajude a superar processos aditivos ou

disfuncionais significativos de seu psiquismo. Está previsto, para os menores

que apresentam uma dependência ao álcool ou às drogas e que em seu melhor

interesse possam ser tratados da mesma forma na comunidade, que em sua

realização podem combinar-se diferentes tipos de assistência médica e

psicológica. Resulta muito apropriado para casos de desequilíbrio psicológico ou

perturbações do psiquismo que podem ser atendidos sem necessidade de

internamento. A diferença mais clara com a tarefa sócio-educativa é que esta

pretende lograr uma capacitação, um logro de aprendizagem, empregando uma

metodologia, não tanto clínica, senão de orientação psicoeducativa. O

tratamento ambulatorial também pode entender-se como uma tarefa sócio-

educativa muito específica para um problema bem definido.

A permanência de fim de semana é a expressão que define a medida

pela qual um menor se vê obrigado a permanecer em seu lugar desde a tarde ou

noite de sábado até a noite de domingo, a exceção do tempo em que realize as

tarefas sócio-educativas assinaladas pelo Juiz. Na prática, combina elementos

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do arresto de fim de semana e da medida de tarefas sócio-educativas ou

prestações em benefício da comunidade. É adequada para menores que

cometem atos de vandalismo ou agressões leves no fim de semana.

A convivência com uma pessoa, família ou grupo educativo é uma

medida que intenta proporcionar ao menor um ambiente de socialização positivo,

mediante sua convivência, durante um período determinado pelo Juiz, com uma

pessoa, com uma família distinta à sua ou com um grupo educativo que se

ofereça a cumprir a função da família no que respeita ao desenvolvimento de

pautas sócio-afetivas pró- sociais no menor.

A privação da permissão de conduzir ciclomotores ou veículos a motor ou

do direito a obtê-las ou de licenças administrativas para caça ou para o uso de

qualquer tipo de armas é uma medida acessória que se poderá impor naqueles

casos nos quais o fato cometido tenha relação com a atividade que realiza o

menor e que esta necessite autorização administrativa.

Por último, procede por manifesto que os princípios científicos e os

critérios educativos a que hão de responder cada uma das medidas, aqui

sucintamente expostos, se haverão de regular mais extensamente na legislação

complementar, em desenvolvimento da Lei de Responsabilidade Penal dos

Menores.

Cabe ressaltar, entre tantas outras reflexões que devem surgir a partir do

que adotado pela Lei, a primeira delas: a mantença da idade limite em dezoito

anos, com idade mínima em catorze anos de idade, enquanto existam medidas

aplicáveis àqueles entre dezoito e vinte e um anos de idade, o que necessita

urgente revisão no sistema pátrio vigente.

A segunda, de idêntico quilate e inovadora, qual seja, as medidas

aplicáveis ao menor e ao juvenil que padeça de distúrbios psicológicos.

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PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO: IMPOSTO SOBRE A RENDA E CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO

LUIZ CARLOS DERBLI BITTENCOURT

Advogado Tributarista. Conferencista. Doutor em Direito pela Universidade de São

Paulo.

RESUMO: O artigo trata das alternativas para a determinação do montante das obrigações relativas ao Imposto sobre a Renda e à Contribuição Social sobre o Lucro, esclarecendo as diferenças de tratamento para o contribuinte "pessoa jurídica" (forma societária) ou "pessoa física" (atividade econômica individual). O autor analisa as diversas modalidades de aferição da "base de cálculo" dos tributos em questão, em especial o "lucro real", "lucro presumido" e "lucro arbitrado", esclarecendo ainda sobre a periodicidade para a apuração da base de cálculo, bem assim sobre os regimes de imputação das receitas. Esclarece a importância do planejamento tributário, especialmente quanto às deduções permitidas por lei, assinalando que a forma societária mais vantajosa, sob o ângulo do planejamento tributário, é a sociedade anônima. ABSTRACT: This article deals with the alternatives for the determination of the sum concerning the obligations referring to the Income tax and Social Contribution on the Profit, establishing the attendance differences between the “corporate body” (societarian system) and "natural person " (individual economic activity) taxpayers. The author analyzes the diverse gauging modalities of the "basis of calculation" regarding the taxes in question, specially the "real profit", "assumed profit" and "arbitrated profit", and still clarifies on the verification regularity for the basis of calculation, as well as on the income imputation systems. He elucidates the importance of tributary planning, especially concerning the deductions permitted by law, and also appoints that the more advantageous societary form, under the tributary planning view, is the joint stock company.

1 - Inúmeras alternativas existem para se determinar o montante das

obrigações relativas ao Imposto sobre a Renda e à Contribuição Social sobre o

Lucro.

Essas variantes, colocadas para decisão do contribuinte, têm por origem

dois aspectos básicos, a saber:

a) a FORMA JURÍDICA escolhida para o exercício das atividades

econômicas,

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 237

b) os REGIMES DE TRIBUTAÇÃO decorrentes da opção formal

realizada.

2 - A FORMA JURÍDICA escolhida para o exercício das atividades

econômicas decorre de um elemento fático inicial, qual seja: a atividade será

explorada INDIVIDUALMENTE ou SOCIETARIAMENTE?

O desenvolvimento de atividades econômicas sob a forma societária

implica, obrigatoriamente, na submissão ao regime de tributação das pessoas

jurídicas.

Já a atividade econômica individual enseja tributação segundo o regime

de pessoa jurídica, em alguns casos, ou segundo o regime de pessoa física, em

outros casos.

Nesse aspecto, a opção não é do contribuinte! Ao contrário, a lei tributária

estipula o regime aplicável para cada tipo de empreendimento.

Assim, exemplificativamente, ao exercício individual de profissões

liberais, de serviços não-comerciais e de intermediação civil ou comercial impõe-

se o regime de tributação das pessoas físicas.

A exploração de atividades rurais será submetida ao regime de pessoa

física quando realizada individualmente e, também, nas formas associativas do

condomínio e da parceria.

De outro lado, mesmo que desenvolvido por pessoas naturais, incidirá

tributação como pessoa jurídica nas hipóteses seguintes:

a) atividades exercidas por firmas individuais, que são consideradas

comerciantes;

b) exploração por pessoa natural, de atividade econômica civil ou

comercial, que não esteja inserida no regime de pessoa física e,

c) incorporação de prédios em condomínio, loteamento de terrenos

urbanos e desmembramento de terrenos rurais em mais de dez lotes, quinhões

ou frações ideais.

3 - Cabe, neste momento, se colocar a seguinte indagação: Qual a

melhor opção? O regime de pessoa física ou o de pessoa jurídica?

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 238

O regime de pessoa física gera incidência de Imposto sobre a Renda,

exclusivamente, pois não incide, nessa hipótese, a Contribuição Social sobre o

Lucro. Ademais, os rendimentos são tributados quando efetivamente recebidos

(regime de caixa).

Há, porém, dois fatores significativos a considerar no regime de

tributação das pessoas físicas:

a) A heterogeneidade de incidências, ora na fonte (como antecipação -

rendimentos de atividade liberais; ou definitiva - décimo-terceiro salário,

aplicações financeiras de renda fixa), ora em separado (ganhos de capital, renda

variável), ora, ainda, segundo tabela progressiva anual.

b) A possível onerosidade da tabela progressiva, comparativamente à

base de cálculo e às alíquotas do regime de pessoa jurídica, em caso de

inexistirem deduções significativas (dependentes, educação, despesas médicas,

contribuições e incentivos).

Tais fatores, combinados entre si, deverão ser necessariamente

analisados e considerados, para quantificar a base tributável do Imposto sobre a

Renda.

Ante esse quadro, não é possível, aprioristicamente, eleger um ou outro

regime de tributação. A análise combinada das diferentes espécies de

rendimentos auferidos e das deduções possíveis, à luz de sua grandeza

numérica, serão elementos decisivos para o planejador tributário. Acertar a

opção menos onerosa será possível caso realizada análise profunda do universo

econômico em que opera o agente empreendedor.

4 - O regime de tributação das pessoas jurídicas alcança:

a) as pessoas jurídicas de direito privado domiciliadas no país;

b) os estabelecimentos, no país, de pessoas jurídicas com sede no

exterior;

c) as sociedades em conta de participação e,

d) as empresas individuais, definidas em lei.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 239

O regime de pessoa jurídica gera incidência de Imposto sobre a Renda e

de Contribuição Social sobre o Lucro, cumulativamente.

A base de cálculo desses tributos será escolhida pelo contribuinte, dentre

as opções seguintes:

a) Lucro Real, obtido com apoio em registros contábeis formal e

substancialmente corretos.

b) Lucro Presumido, obtido mediante percentuais fixados em lei e

aplicados sobre a receita bruta do contribuinte, somado às demais receitas e

ganhos auferidos.

c) Lucro Arbitrado, obtido mediante os mesmos critérios de fixação de

lucro presumido, com acréscimo de 20% (vinte por cento) nos percentuais

aplicados sobre a receita bruta, exclusivamente no caso do Imposto sobre a

Renda.

Duas importantes questões hão de ser consideradas no planejamento

tributário destinado a buscar a melhor alternativa de base de cálculo, quais

sejam:

a) A margem de lucro contábil do contribuinte, isto é, o percentual de

rentabilidade existente no preço cobrado nas vendas de suas mercadorias e

serviços, em relação aos custos, despesas e encargos apropriados na

escrituração e,

b) A existência de receitas financeiras, outros rendimentos operacionais e

resultados não-operacionais.

A análise integrada desses componentes do resultado contábil-

empresarial permitirá escolha acertada da menor base de cálculo dos tributos

em análise.

Importa, neste momento, destacar os seguintes pontos:

a) nem todas as pessoas jurídicas podem optar pelo Lucro Presumido;

b) todas as pessoas jurídicas podem optar pelo Lucro Real,

c) todas as pessoas jurídicas podem optar pelo Lucro Arbitrado.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 240

Obviamente, não caberá adotar base de cálculo arbitrada se permitida a

adoção da base de cálculo presumida: aquela é mais onerosa do que esta em

20%, no caso do Imposto sobre a Renda. Nesse caso, a opção é entre base real

e base presumida.

Sendo assim, as alternativas logicamente possíveis para o contribuinte

serão:

a) Lucro Real ou Presumido (se permitida adoção deste);

b) Lucro Real ou Arbitrado (se não permitida a adoção do Lucro

Presumido).

5 - Medidas a margem de lucro contábil e a composição dos resultados

escriturais, devem ser considerados três outros aspectos:

a) a possibilidade de mudança da base de cálculo durante o ano-

calendário;

b) a periodicidade da apuração da base de cálculo;

c) o regime de imputação dos rendimentos na base de cálculo.

6 - O único sistema imutável de apuração da base de cálculo do Imposto

sobre a Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro é a forma do lucro

presumido.

A opção pelo lucro presumido deve ser feita por ocasião do pagamento

da primeira ou única quota dos tributos em questão, que ocorre no mês de abril.

Essa alternativa de base de cálculo é definitiva, não cabendo mudança dentro do

mesmo ano-calendário, para o lucro real.

Já o lucro arbitrado e o lucro real podem coexistir dentro de um mesmo

ano-calendário, não havendo impossibilidade legal de variabilidade entre esses

dois critérios de fixação de base de cálculo.

7 - Quanto à periodicidade, a apuração da base de cálculo será:

a) Trimestral: obrigatoriamente, nos casos de opção por lucro presumido

e por lucro arbitrado, com pagamentos devidos no trimestre civil seguinte;

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 241

b) Anual: facultativamente, nos casos de opção por lucro real, com

pagamentos devidos ao longo do ano-calendário e ajuste no início do ano

seguinte;

c) Outros períodos de tempo: nos casos excepcionais de extinção,

incorporação, fusão e cisão; e nos casos de variação entre regime de lucro

arbitrado e lucro real, durante o mesmo ano-calendário.

8 - Em terceiro lugar, o regime de imputação das receitas na base de

cálculo do Imposto sobre a Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro poderá

ser realizado mediante as alternativas seguintes:

a) Regime de competência total obrigatório: na opção pelo lucro real,

exceto atividades imobiliárias e ganhos de capital a longo prazo.

b) Regime de competência total facultativo: na opção pelo lucro

presumido.

c) Regime de competência parcial obrigatório: na opção pelo lucro

arbitrado, no que concerne a todas as receitas, exceto rendimentos de

operações de renda fixa e variável e receitas de atividades imobiliárias.

d) Regime de caixa total facultativo: na opção pelo lucro presumido.

e) Regime de caixa parcial facultativo: na opção pelo lucro arbitrado, em

rendimentos de operações de renda fixa e variável e receitas de atividades

imobiliárias; na opção pelo lucro real, nas atividades imobiliárias e nos ganhos

de capital a longo prazo.

9 - Impõe-se considerar, no planejamento tributário, as deduções

permitidas no regime de pessoas jurídicas.

No lucro presumido e no lucro arbitrado, desprezam-se despesas, custos

e perdas, visto serem relevantes apenas as receitas, rendimentos e ganhos,

excetuada, apenas, a possibilidade de dedução de perdas nas aplicações de

renda fixa e variável, se houver ganhos superiores da mesma espécie.

Já no lucro real, são dedutíveis os custos, as despesas, os encargos e

prejuízos inerentes e necessários às operações do contribuinte.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 242

Merecem destaque, neste tópico, a dedução dos encargos de

depreciação acelerada (conforme turnos de trabalho) e a dedução de juros sobre

o capital próprio.

A depreciação de bens utilizados na atividade econômica gera dedução

do resultado tributável sem desembolso financeiro, cabendo ao planejador

tributário definir:

a) a taxa de depreciação, à vista do prazo de vida útil do bem, consoante

fixado pela Secretaria da Receita Federal ou, em caso de dúvida, mediante

laudo de entidade oficial de pesquisa científica ou tecnológica e,

b) os coeficientes de depreciação acelerada (1, 2 ou 3), conforme os

turnos de oito horas de trabalho.

Também a dedução de juros sobre capital próprio merece reflexão

demorada, porquanto:

a) é tributável na fonte, à alíquota de 15%, sendo o tributo recolhido na

semana seguinte a do crédito ou pagamento e,

b) é dedutível, para fins de Contribuição Social sobre o Lucro e de

Imposto sobre a Renda, cujas alíquotas cumulativas podem alcançar 34%.

Em decorrência das regras de compensação de um terço da Contribuição

para o Financiamento da Seguridade Social - COFINS, pagas após fevereiro de

1999 até dezembro de 1999, com valor devido a título de Contribuição Social

sobre o Lucro, dois itens devem ser ponderados:

a) A parcela de COFINS deduzida do valor devido a título de Contribuição

Social sobre o Lucro é indedutível para fins de cálculo do Imposto sobre a Renda

com base no lucro real, à alíquota de até 25%.

b) A dedução de juros sobre o capital próprio (tributáveis a 15%) ensejará

redução do valor da Contribuição Social sobre o Lucro, à alíquota de 12%, e do

Imposto sobre a Renda (até 25%) e poderá manter a dedutibilidade de parte ou

da totalidade do terço compensável referente à COFINS posterior a fevereiro de

1999, evitando-se despesa indedutível, sujeita a Imposto sobre a Renda de até

25%.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 243

10 - Por fim, cabe apontar que, em processos de reorganização empre-

sarial, a forma societária mais vantajosa, sob o ângulo do planejamento

tributário, é a sociedade anônima.

Isto porque existe isenção específica para o ágio pago na emissão de

ações integralizadas em companhias, não se estendendo essa isenção para as

demais formas societárias (limitadas, em nome coletivo, etc.).

A forma jurídica da atividade desenvolvida societariamente, desse modo,

poderá ser relevante no planejamento tributário.

v

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REQUISITOS PARA A ADMISSIBILIDADE DO PROCESSO: BREVE ESTUDO

FERNANDO VOIGT

Advogado no Paraná. Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo.

RESUMO: O artigo cuida dos requisitos para a admissibilidade do processo, nomeadamente os pressupostos processuais e condições da ação. Assinala o autor a importância dos pressupostos de existência (demanda, jurisdição, citação e capacidade postulatória) e pressupostos de validade do processo (petição inicial apta, competência e imparcialidade do juízo e imparcialidade do juiz e capacidade de agir), dissertando ainda sobre os pressupostos processuais negativos (litispendência, coisa julgada e perempção). Discorre o autor sobre as condições da ação (interesse de agir, legitimidade para a causa e possibilidade jurídica do pedido), concluindo que o direito de ação tem natureza formal, dado que seus requisitos estão definidos em lei, delineados pela doutrina processual. ABSTRACT: This article is concerned with the requirements for the admissibility of the process, nominatedly the procedural presuppositions and the conditions of the action. The author stresses on the importance of the existence presuppositions (demand, jurisdiction, service of process and petitioner capacity) and validity presuppositions of the process (competent declaration, competent and impartial court and impartial judge and capacity for acting), and still discusses on the negative procedural presuppositions (pendency, res judicata and dismissal). The author analyzes the conditions of an action (interest to sue, standing to sue and theory of law), and concludes that the right of action has a formal nature, provided that its requirements are defined in law, delineated by the procedural doctrine.

INTRODUÇÃO

O Código de Processo Civil Brasileiro enumera alguns requisitos

essenciais para a admissibilidade do processo, os quais devem ser seguidos à

risca, sob pena de nulidade.

Este estudo pretende dar uma visão mais clara desses institutos

processuais, com o objetivo de tornar mais fácil a compreensão e seu uso,

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apesar de já ter sido exaustivamente explicado pelos grandes juristas de nosso

país.

PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

De acordo com Humberto Theodoro Júnior, “a prestação jurisdicional

para ser posta à disposição da parte, além das condições da ação, subordina-se

ao estabelecimento válido da relação processual, que só será efetivo quando se

observarem certos requisitos formais e materiais, que recebem,

doutrinariamente, a denominação de pressupostos processuais”.259

Logo, os pressupostos processuais nada mais são do que certos

requisitos fundamentais a serem seguidos no desenvolvimento do processo.

Sua função primordial é a de tornar todo o processo válido, sem vícios,

pois se não forem seguidos o tornam inexistente.

Neste sentido é a lição de Humberto Theodoro Júnior, que diz:

“Inobservados, porém, os pressupostos, ou as condições da ação, a missão da

atividade jurisdicional estará frustrada, pois ocorrerá a extinção prematura do

processo, sem julgamento ou composição do litígio (art. 267)”.260

Os pressupostos processuais, segundo a lição de Arruda Alvim

classificam-se em pressupostos de existência e pressupostos de validade.

PRESSUPOSTOS DE EXISTÊNCIA

São os pressupostos necessários para que a relação jurídica

efetivamente exista. São eles: demanda, jurisdição, citação e capacidade

postulatória.

259 In Curso de direito processual civil, 18ª ed., V. I, Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 58.

260 Op. cit., p. 58.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 246

Demanda:

A atividade contenciosa exige, para ser exercida pelo Estado, a

provocação do interessado, que deverá sempre ser na forma escrita,

movimentando o aparelho judiciário, onde, através da petição inicial, o autor

deduzirá a sua afirmação de direito para que este possa ser apreciado pelo Juiz

da causa. Isto nós denominamos de demanda.

Porém, com a introdução da Lei 9.099/95, que dispõe sobre os Juizados

Especiais Cíveis e Criminais, foi permitido uma flexibilização quando do

momento da formulação da pretensão do autor, podendo ser feita oralmente à

Secretaria do Juizado, que deve reduzir a escrito, na forma que mais convier.

Salientamos que pode-se instaurar um processo através de uma

demanda inválida, através de uma petição inicial inepta, que não seguiu todos os

requisitos constantes do art. 282 do C.P.C.261

Demanda é, no sentido processual, a pretensão, o pedido deduzido pelo

autor através da petição inicial, podendo ser de forma escrita, ou oralmente (no

caso dos Juizados Especiais), quando será reduzida a escrita pela Secretaria.

Jurisdição:

O conceito de jurisdição nos é dado por Liebman, afirmando que “as

pessoas que exercem a jurisdição chamam-se juízes e formam, no seu conjunto,

a Magistratura; sua atividade desenvolve-se em direção dupla, através da

cognição (giudizio) e da execução forçada”.262

Arruda Alvim completa esta definição dizendo que “a parte deve formular

o seu pedido a alguém investido de jurisdição, vale dizer, a um órgão

jurisdicional (juízo de direito ou tribunal), pois, mesmo se incompetente (inclusive

absolutamente incompetente), processo haverá”.263

261 Deve-se dizer aqui que os requisitos do art. 282 do C.P.C. só aplicam-se quando da formulação do pedido por advogado, sendo

dispensados quando feitos oralmente no Juizado Especial, pois neste caso aplicar-se-á o disposto no art. 14 da Lei 9.099/95.

262 In Manual de direito processual civil, 2ª ed., V. I, Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 3.

263 In Manual de direito processual civil, 5ª ed., V. 1, São Paulo: RT, 1996, p. 438.

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Neste sentido chegamos a conclusão de que jurisdição é a própria

manifestação do poder judiciário em um processo, seja ele competente ou não

para conhecer da matéria que lhe foi apresentada para análise.

Citação:

Neste tópico ocorrem as maiores discussões acerca dos pressupostos

processuais de existência, em virtude de parte da doutrina nacional aceitar a

existência do processo sem a citação, já a partir do despacho inicial do Juiz, e

outra (maioria) que entende que só existe processo com a citação válida, através

de suas diversas formas.

Há de se dizer que a segunda assertiva do parágrafo anterior nos parece

mais correta, pois a citação é necessária para se formar a relação processual

triangular (sujeito ativo, sujeito passivo e Estado) e tornar o processo válido,

como diz o art. 214 do C.P.C.264

Nesse sentido é a afimação de Liebman, citado por Nelson Nery Júnior,

que diz que “muito embora com o despacho da petição inicial já exista relação

angular entre autor e juiz, para que seja instaurada de forma completa, a relação

jurídica processual é necessária a realização da citação. Portanto, a citação é

pressuposto de existência da relação processual, assim considerada em sua

totalidade (autor, réu, juiz). Sem a citação não existe processo. Em suma,

pressuposto de existência da relação processual: citação”.265

A citação, de acordo com o art. 221 do Código de Processo Civil, divide-

se em três modalidades: pelo correio, por oficial de justiça e por edital.

A citação pelo correio, nos dias de hoje, é usada na maioria dos casos,

devendo ser feita sempre por carta registrada. Tal afirmação, porém, é nova,

pois na ocasião da reforma do Código, passou-se a adotar a citação pelo correio

como sendo a regra, e não mais a exceção.

264 Art. 214 – Para a validade do processo, é indispensável a citação inicial do réu.

265 In Código de processo civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor, 3ª ed., São Paulo: RT, 1997, p. 499,

nota 2.

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 248

No envelope deverá constar, sempre, a petição inicial e o despacho do

Juiz, como manda o art. 223 do C.P.C.266, sob pena de nulidade da citação.

Existem, porém, alguns casos em que não é permitida a citação pela via

postal. Estes casos estão enumerados taxativamente no art. 222 do Código de

Processo Civil, que são: nas ações de estado, quando for ré pessoa incapaz,

quando for ré pessoa de direito público, nos processos de execução, quando o

réu não residir em local não atendido pela entrega domiciliar de correspondência

e quando o autor a requerer de outra forma.

Quando ocorrer qualquer um dos casos acima, a citação se fará por

oficial de justiça, bem como nos casos em que a citação pelo correio não tenha

sido bem sucedida.

Na citação por oficial, o mandato deverá sempre conter o nome das

partes, com seus respectivos endereços267, bem como conter a sua finalidade,

com todas as especificações da petição inicial, além da advertência do art.

285.268

Ainda deverá conter a cominação (se houver), o dia, hora e lugar do

comparecimento, a cópia do despacho do Juiz, o prazo para a sua defesa e ser

o mandato assinado pelo escrivão, com a declaração que o subscreve por ordem

do Juiz.

Caso a falta de algum destes itens cause dificuldade ou impossibilidade

de defesa para o réu, haverá nulidade da citação, podendo ser o processo

declarado inexistente.

O réu será considerado citado após a juntada do mandado de citação,

com a nota de ciente do réu, ou por certidão do oficial de que o réu recusou-se a

apor sua nota de ciente no mandato.

266 Art. 223 – Deferida a citação pelo correio, o escrivão ou chefe da secretaria remeterá ao citando cópias da petição inicial e do

despacho do juiz, expressamente consignada em seu inteiro teor a advertência a que se refere o art. 285, segunda parte, comunicando,

ainda, o prazo para a resposta e o juízo e cartório, com o respectivo endereço.

267 Cabe lembrar que a qualificação, tanto do autor, quanto do réu, deve ser feita da forma mais completa possível.

268 Esta advertência consiste em não sendo respondida a ação serão presumidos verdadeiros os fatos alegados pelo autor na petição

inicial.

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O último modo de citação existente em nosso direito é a citação por

edital, sendo o modo menos usado, em virtude de ser permitido apenas quando

os anteriores falhem.

Diz o art. 231 do C.P.C., que a citação por edital só poderá ser usada

quando o réu for desconhecido ou incerto, quando o lugar em que ele se

encontrar for ignorado, inacessível ou incerto, e em outro casos previstos em leis

especiais. Ainda o art. 231, no seu § 2º, abre a possibilidade da citação por edital

via veículo de rádio, em sendo o lugar inacessível e havendo emissora de

radiodifusão na comarca.

Portanto, cai por terra a afirmação de que o processo já existe a partir da

sua distribuição, pois como se demonstrou, a citação é exigida pela lei

processual, podendo ser o processo considerado nulo na sua falta.

Capacidade Postulatória:

A capacidade postulatória não deve ser confundida com a capacidade

das partes em se intentar uma ação. Isto será discutido mais tarde, nos

pressupostos processuais de validade do processo.

Aqui, verificar-se-á se o autor estará devidamente representado por um

advogado logo na petição inicial, e no caso do réu também será verificado,

porém na época da contestação.

O nosso ordenamento jurídico não mais prevê a possibilidade de uma

pessoa ir a juízo sem a presença de um advogado, a não ser nas causas

pertinentes ao Juizado Especial Cível269, que não ultrapassem o valor

equivalente a 20 salários mínimos, de acordo com o art. 9º da Lei 9.099/95.

Porém, muita discussão ainda vem à tona com este artigo de Lei, pois

sendo o advogado considerado essencial para a administração da justiça, leva-

se a crer que tal dispositivo de lei seja inconstitucional.

Mas estes casos devem ser vistos pela ótica das partes, em que muitas

vezes não possuem condições financeiras para bancar uma representação

269 Não se pretende aqui elaborar um estudo sobre a parte penal dos Juizados Especiais, em virtude de ser este estudo específico do

Direito Processual Civil.

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profissional, o que nos levaria à assistência judiciária gratuita, fornecida pelo

estado. Assistência esta que simplesmente não funciona na maioria das

localidades do nosso país, o que me leva a crer seja correta a posição do

legislador em abrir uma exceção com relação a este tópico.

Portanto, capacidade postulatória, segundo Arruda Alvim, nada mais é do

que “a exigência de a parte postular em juízo através de advogado, salvo as

exceções legais”.270

PRESSUPOSTOS DE VALIDADE

São os requisitos necessários para que a relação jurídica torne-se válida,

ou como diz a Lei, de “desenvolvimento válido e regular do processo”. São eles:

Petição Inicial Apta:

A petição inicial, como peça inaugural do processo, sendo a mais

importante para o autor, pois nela se fixa os limites da lide, causando preclusão

a tudo que deixou de ser alegado.

Também deve constar dela um silogismo, contendo uma premissa

menor, que são os fatos; uma premissa maior que é o direito e a conclusão, que

é o pedido com suas especificações.

Por ser tão importante, o legislador resolveu incluir no C.P.C. os

requisitos essenciais para a sua formulação, que são:

a) o juiz ou tribunal, a que é dirigida: aqui deve o autor valer-se das

regras de competência para indicar a qual juízo ou tribunal que

deverá julgar a ação. Mas, caso seja remetida para juiz incompetente

absoluto, este deverá mandar os autos ao juiz competente; no caso

de incompetência relativa, não poderá o juiz manifestar-se, devendo

aguardar a manifestação do réu;

270 In Ob. cit., p. 439.

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b) o nome, prenome, estado civil, profissão, domicílio e residência do

autor e do réu: a qualificação tornou-se necessária para que se possa

obrigar pessoas certas, porém, quando não for possível fornecer a

qualificação completa, é suficiente a individualização de cada uma

das partes;

c) o fato e os fundamentos jurídicos do pedido: o autor deverá indicar a

causa de pedir próxima (fundamentos de fato) e a causa de pedir

remota (fundamentos de direito), explicando o porquê do pedido

formulado;

d) o pedido, com suas especificações: é o bem da vida pretendido pelo

autor. O pedido divide-se em imediato (sentença) e mediato (bem da

vida);

e) o valor da causa: mesmo não tendo valor econômico imediato, é

necessário colocar o valor da causa, nos termos do art. 259 do

C.P.C., para que se possa fixar as custas processuais e honorários

advocatícios;

f) as provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos

alegados: o autor deverá elencar todos os meios que usará para a

produção de provas. Neste tópico há divergência doutrinária sobre a

validade do mero protesto por provas.271 Considero que o pedido

genérico de provas seja válido, não acarretando nulidade alguma,

pois além de ser uma praxe constante em nossos juízos e tribunais,

devemos tomar como verdadeiro a afirmação que a espécie faz parte

do gênero, ou seja, a prova testemunhal é uma espécie do gênero

prova. Portanto o pedido genérico deve ser considerado como se o

autor fosse produzir todo e qualquer tipo de prova possível dentro do

processo.

271 Entende-se por mero protesto por provas uma oração do tipo protestando provar o alegado por todos os meios em direito admitidos.

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g) o requerimento para a citação do réu: necessária para que o réu tome

conhecimento de que contra si é movida uma ação (ver tópico sobre

citação acima).

Vale frisar que a falta de qualquer um dos requisitos acima enumerados

acarretará na inépcia da petição inicial, sendo extinto o processo sem julgamento

do mérito.

Competência do Juízo e Imparcialidade do Juiz:

Celso Agrícola Barbi, citando Chiovenda diz que “a competência interna é

fixada segundo três critérios: o objetivo, o funcional e o territorial. O objetivo é

extraído em razão da natureza da causa – competência em razão da matéria, ou

de seu valor, ou da qualidade das pessoas; o funcional é extraído da natureza

especial e das exigências especiais das funções que o juiz é chamado a exercer

num processo; e o territorial relaciona-se com a circunstância territorial

designada à atividade de cada órgão jurisdicional”.272

A competência em razão da matéria ou pelo valor é regida pelas normas

de organização judiciária de cada estado da Federação, com as ressalvas

contidas no C.P.C., que dirão se a competência do juiz se dará pela natureza da

ação ajuizada, ou por seu valor. Tomando a competência por valor como

exemplo, temos que, regra geral, todas as ações em que o valor da causa for

inferior a 40 salários mínimos são de competência dos Juizados Especiais

Cíveis. Já, quanto à natureza da ação, temos os processos de alimentos,

falimentar, fiscal e de interesse da Fazenda Pública, que possuem juízos

específicos para serem processados e julgados.

No caso da competência funcional esta se verifica em dois casos: quando

a causa pertence a juiz de uma determinada comarca (como exemplo temos que

a falência deve ser processada na sede do estabelecimento principal); e quando

diversas funções necessárias em um mesmo processo, ou coordenadas à

272 In Comentários ao código de processo civil, V. I, 10ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 301-2.

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atuação da mesma vontade de lei, são atribuídas a juízos diferentes (por

exemplo, a atuação do tribunal em grau de recurso).

Finalmente, na competência territorial as causas são atribuídas pela

coincidência de algum elemento coincidir com a circunscrição territorial em que o

juiz tem a competência. Pode ser o domicílio do réu (regra geral), do autor, a

localização do bem, o local onde a obrigação deve ser cumprida, ou onde

ocorreu o ato ilícito que fundamenta a ação, por exemplo.

Com relação a imparcialidade do juiz, diz Arruda Alvim que “enquanto o

autor e o réu de uma demanda são partes interessadas, o juiz deve ser

imparcial, isto é, não pode pender nem para um lado, nem para o outro”.273

Caso a parte tenha alguma suspeita da parcialidade do juiz, deve usar a

sua faculdade de usar dos institutos das exceções de suspeição ou

impedimento, protegendo, assim, o seu direito a um julgamento justo e imparcial.

Os casos de impedimento de um juiz são enumerados no art. 134 do

C.P.C., sendo eles os que seguem:

a) quando for parte: não se pode admitir que uma pessoa reclamando

um direito seja ela mesma que irá decidir se irá conceder ou não o

pedido;

b) em que interveio como mandatário da parte, oficiou como perito,

funcionou como órgão do Ministério Público, ou prestou depoimento

como testemunha: aqui impede-se o juiz de que tenha alguma

vantagem pessoal no final do processo, quando do proferimento da

sentença, visto que, por exemplo, pode arbitrar um valor absurdo

para pagamento de honorários do perito, em que ele mesmo atuou.

Vale lembrar que mandatário, neste caso, significa procurador

apenas, e não advogado;

c) que conheceu de primeiro grau de jurisdição, tendo-lhe proferido

sentença ou decisão: neste caso o reexame do processo ficaria

273 In Manual de direito processual civil, V. I, 5ª ed., São Paulo: RT, 1996, p. 444.

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comprometido, pois é muito difícil uma pessoa ter seu juízo de

convencimento mudado pelas mesmas partes. Aqui incluem-se os

recursos e a ação rescisória;

d) quando nele estiver postulando, como advogado da parte, o seu

cônjuge ou qualquer parente seu, consangüíneo ou afim, em linha

reta; ou na linha colateral até o segundo grau: neste item evitou-se a

possibilidade do juiz beneficiar seus parentes quando da sua tomada

de decisão, mantendo a sua parcialidade;

e) quando cônjuge, parente, consangüíneo ou afim, de alguma das

partes, em linha reta ou, na linha colateral até o terceiro grau: o juiz

não pode julgar seus parentes, em virtude de que deve-se manter

sempre parcial, o que não ocorrerá no caso de uma sentença

prolatada por ele quando uma das partes tiver o grau de parentesco

defeso por lei;

f) quando for órgão de direção ou de administração de pessoa jurídica,

parte da causa: neste caso será ele beneficiado diretamente quando

da prolação da sentença.

Já quanto à suspeição, os casos em que ela pode ser argüida estão

enumerados no art. 135 do C.P.C. São eles:

a) amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer uma das partes: a

amizade que deve ser considerada aqui, é aquela de cunho íntimo,

onde a troca de favores entre o juiz e a parte seja freqüente, assim

como a convivência. No caso da inimizade capital, esta deve ser

extrema, resultante de rixas familiares, políticas ou, ainda, resultante

de prejuízos econômicos;

b) alguma das partes for credora ou devedora do juiz, de seu cônjuge ou

de parentes destes, em linha reta ou na colateral até o terceiro grau:

neste caso o favorecimento à parte que seja, além de seu parente,

sua devedora ficará flagrante, em vista de o magistrado se valer de

uma sentença favorável para receber o seu crédito. Já se o juiz for

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Revista Jurídica Mater Dei V.1 N.1 255

devedor da parte, este pode efetuar uma transação envolvendo uma

sentença mais favorável à parte, em troca da quitação de seu débito;

c) herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de uma das partes:

como herdeiro, o juiz poderá beneficiar seus parentes, pois nossa

legislação prevê que uma pessoa é herdeira até o quarto grau de

parentesco, ou ainda, no caso de sucessão testamentária, a

presunção de amizade que existe entre estas pessoas, pois o vulto

da herança a ser recebida pode depender de seu julgamento. Quanto

a doação, fica claro que o juiz torna-se suspeito de julgar uma lide

quando, por liberalidade da parte, receber presentes e favores,

caracterizando, inclusive, uma amizade íntima entre o magistrado e a

parte. Sendo o juiz empregador da parte, leva a crer que a relação

entre estes dois entes é de muito contato, acarretando uma certa

afeição entre eles;

d) receber dádivas, antes ou depois de iniciado o processo; aconselhar

alguma das partes acerca do objeto da causa, ou subministrar meios

para atender as despesas do litígio: ao receber favores de uma das

partes, estará o magistrado pendendo para um dos lados da lide, pois

poderá estar trocando o favor pela sentença favorável a esta parte.

Do mesmo modo ocorre se o juiz aconselhar a parte sobre a causa,

visto que estará guiando a parte para uma sentença a seu favor.

Subministrando meios ao litígio, estará o juiz interessado no desfecho

da causa, tanto por causa de relações afetivas (ou de parentesco)

quanto por vantagens que poderá auferir com o resultado da

demanda;

e) interessado no julgamento da causa em favor de uma das partes:

caracterizará o interesse do magistrado quando, por exemplo, o

proprietário prometer alugar um imóvel (a ser reavido por uma ação

de despejo) para o próprio juiz.

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Capacidade:

A parte deve ter a legitimação formal para agir, para que se produzam os

efeitos do processo.

Porém, não se deve confundir a legitimação formal com a capacidade de

agir, pois embora sejam conceitos parecidos, diferem por ser a capacidade de

agir imanente à parte, enquanto que a legitimação pertence à pessoa que está

no exercício e gozo de seus direitos.

Caso não sejam seguidos os pressupostos acima enumerados, o

processo será inexistente desde o ajuizamento da petição inicial, visto tratar-se

de uma relação jurídica que nunca se formou, devido a falta de requisitos

essenciais para sua existência ou validade, pois “os pressupostos põem a ação

em contato com o direito processual” 274, como ensina Humberto Theodoro

Júnior.

Não podemos esquecer da grande discussão doutrinária acerca da

formação do processo. Alguns autores dizem que o processo é formado já na

distribuição. Outros defendem a posição de que o processo só se forma depois

da citação do réu.

A meu ver, não procede a afirmação dos autores que dizem que o

processo forma-se logo quando da sua distribuição. O processo, como

explanado acima, necessita de certos requisitos para existir, portanto é

inexistente antes da citação do réu, por ser a citação um pressuposto processual

de existência do processo, sem a qual não ocorre a relação trilateral apregoada

por Arruda Alvim, que diz: “Não podemos dizer que já há processo íntegro, como

relação trilateral, e, no sentido prático e real, se não houver citação da parte

contrária”.275 A extinção do processo antes da citação só poderá ser feita sem o

julgamento de mérito da causa, o que por si só já torna o processo frustrado, e

pelo motivo de ser a petição inicial indeferida pelo Juiz (outro pressuposto

processual), como diz o art. 267 do C.P.C.

274 In Curso de direito processual civil, Vol. I, 18ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 58.

275 In Manual de direito processual civil, Vol. I, 5ª ed., São Paulo: RT, 1996, p. 438.

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Um grande problema, acerca da citação do réu, está contido no art. 10 do

nosso Código de Processo Civil; problema este, de ordem processual, o qual dá

margem para grandes discussões doutrinárias sobre seu conteúdo. Muitos

autores sustentam que trata-se de litisconsórcio necessário, enquanto outros

dizem tratar-se de integração de capacidade.

Porém, se analisarmos o referido artigo, veremos que trata-se de

integração de capacidade, porque apenas o cônjuge que é parte atuará no

processo, sendo necessário apenas o consentimento (por escrito através de

instrumento público ou particular, ou meramente pela outorga de procuração,

entre outros) do outro cônjuge.

Desta forma é a lição de Arruda Alvim, que diz “que não foi criada

qualquer regra que generalize o litisconsórcio (litisconsórcio necessário,

portanto) entre os cônjuges. Pelo contrário, o sentido do dispositivo é inverso:

versa sobre dispensabilidade da participação do cônjuge do autor ou do réu em

todas as ações possessórias, excetuados os casos de composse ou de atos

praticados por ambos”.276

No caso do pólo ativo, se um cônjuge agiu sem o consentimento do

outro, o processo será nulo por ser o cônjuge litigante parte ilegítima, faltando,

deste modo, um pressuposto processual, assim como no pólo ativo, pois haverá

falta de um outro pressuposto processual, que é a citação. Porém, pelo teor do

art. 11 do C.P.C., o Juiz pode requerer que qualquer das partes supram o

consentimento, ficando, assim, descartada a possibilidade da decretação da

nulidade do processo.

Mas há uma exceção ao caso. Se tratar-se de composse, não mais seria

integração de capacidade, e sim, litisconsórcio necessário, tanto ativo quanto

passivo, pois ambos os cônjuges seriam titulares diferentes de um mesmo

direito. É isto que nos diz o art. 488 do Código Civil: “se duas ou mais pessoas

possuirem coisa indivisa, ou estiverem no gozo do mesmo direito, poderá cada

276 In Manual de direito processual civil, Vol. 2, 5ª ed., São Paulo: RT, 1996, p. 52.

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uma exercer sobre o objeto atos possessórios, contanto que não excluam os dos

outros compossuidores”.

Existem, também, pressupostos processuais negativos, os quais nos

dizem se há a possibilidade, ou não, do processo existir. Estes pressupostos

impedem que o processo tenha o seu desenvolvimento normal devido às

circunstâncias que veremos a seguir.

Os pressupostos processuais negativos, são:

Litispendência:

Ocorre quando um segundo processo é idêntico a um primeiro já

ajuizado, sendo este primeiro processo um pressuposto processual negativo

para o segundo, visto tratar-se de matéria que já está sendo analisada pelo

Poder Judiciário.

A igualdade de ações se dá quando se tem as mesmas partes, mesma

causa de pedir (próxima e remota) e o mesmo pedido (mediato e imediato).

Ocorrendo esta circunstância deve ser o segundo processo arquivado,

sem julgamento do mérito, assim que for constatada a litispendência, tendo-se

como meio de verificação, de qual processo prosseguirá, a data da primeira

citação do réu.

Coisa Julgada:

A coisa julgada é um instituto muito parecido com a litispendência, com a

diferença que a reprodução da ação se dá com uma sentença já transitada em

julgado, ou seja, uma sentença de mérito da qual não caiba mais recurso algum.

Sua finalidade é a de diminuir o número de processo para os Juízes, para

que não se julgue diversas vezes a mesma ação em varas ou tribunais

diferentes, tornando assim mais eficaz a prestação jurisdicional.

Além disso, a coisa julgada forma-se para ambas as partes, podendo ser

alegada por qualquer uma delas como matéria de defesa.

Perempção:

Perempção ocorre na “hipótese de o autor abandonar a causa por mais

de 30 dias, entendendo-se por abandono seu comportamento omissivo, quando

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lhe competia promover algum ato ou diligência no processo ou com relevância

para o curso do procedimento (art. 267, III). Se por três vezes o autor der causa

à extinção do processo por este motivo, diz-se ter ocorrido perempção”.277

Ocorrendo a perempção o autor não poderá intentar nova ação, visto ter

extinguido seu direito. Poderá, todavia, alegar este direito em sua defesa.

Caso venha o autor ingressar com uma quarta ação, esta deverá ser

extinta sem o julgamento do mérito da questão, por não existir mais a

possibilidade de se discutir este direito em juízo.

CONDIÇÕES DA AÇÃO

Primeiramente, devemos conhecer algo sobre a categoria processual da

admissibilidade, que falam das matérias necessárias à existência do processo.

Suas espécies, são a matéria de processo e a matéria de ação. A primeira, será

o objeto a ser discutido no curso do processo, onde será verificado se este é

possível, enquanto a segunda trata das condições necessárias para que se

consiga o resultado procurado por ambas as partes, quando se extinguirá a

ação.

A categoria processual da admissibilidade tem como função verificar se o

processo formou-se validamente. Seu intuito é a de verificar se estão presentes

todas as matérias a serem julgadas, como nos ensina Ernane Fidélis dos Santos

“existem, assim, três ordens de matéria que o Juiz, necessariamente, enfrenta,

quando julga no processo: matéria de processo, matéria de ação e matéria de

mérito. As duas primeiras, conjuntamente, podemos chamar de condições de

admissibilidade do julgamento da lide”.

Arruda Alvim classifica os requisitos de admissibilidade como uma

categoria mais ampla, que engloba tanto os pressupostos processuais quanto as

condições da ação.

277 CALMON DE PASSOS, José Joaquim, Comentários ao código de processo civil, 8ª ed., V. III, Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 263.

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Já as condições da ação, no meu modo de pensar, são requisitos

doutrinários e/ou legais necessários para que se chegue a uma sentença de

mérito. Diferencia-se das condições de admissibilidade pelo fato de tratar, como

dito acima da matéria de mérito do processo, enquanto as condições de

admissibilidade tratam da matéria de ação e da matéria de processo, como

explicado anteriormente.

Segundo o C.P.C., no seu art. 295, as condições da ação são o interesse

de agir, a legitimação para a causa e a possibilidade jurídica do pedido, sendo

que estas condições correspondem a um numerus clausus, pois não

encontramos em outros artigos condições diversas para que a ação vingue.

Uma das grandes dúvidas do direito processual, é a definição do

interesse de agir. Dúvida esta que tentaremos esclarecer, em breves palavras,

nas próximas linhas.

Segundo Arruda Alvim, “Interesse processual ou de agir é diverso do

interesse substancial ou material, pois é aquele que leva alguém a procurar uma

solução judicial, sob pena de, não o fazendo, ver-se na contingência de não

poder ver satisfeita sua pretensão (o direito que é afirmado)”.278

Assim sendo, o interesse de agir nada mais é do que a pretensão de

alguém de ver satisfeito um direito que diz ter contra outra pessoa.

Já em relação a legitimação para a causa, é a condição necessária para

se verificar se a pessoa é realmente o titular do direito a ser discutido. É,

portanto, a legitimacio ad causam, pregada por nosso direito material, “do direito

de ação ao autor, possível titular ativo de uma dada relação ou situação jurídica,

bem como a sujeição do réu aos efeitos jurídico-processuais e materiais da

sentença” 279, como nos ensina Arruda Alvim.

Uma grande dúvida que existe entre estes operadores é a possibilidade,

como alguns autores afirmam, da discussão sobre um objeto impossível.

278 In Manual de direito processual civil, 5ª ed., V. 2, São Paulo: RT, 1996.

279 In Manual de direito processual civil, 5ª ed., V. 2, São Paulo: RT, 1996.

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Porém, acho esta assertiva totalmente desprovida de qualquer

fundamento, pois não se pode pedir a tutela jurisdicional do Estado para uma

coisa que não existe tanto no ordenamento jurídico quanto no mundo fático.

Neste caso, tornaria a petição inicial inepta desde o seu feitio, pois não

se tem como avançar a discussão no processo com um objeto sem previsão

legal de existência. Arruda Alvim entende por possibilidade jurídica do pedido

que “ninguém pode intentar uma ação, sem que peça providência que esteja, em

tese, prevista, ou que a ela óbice não haja, no ordenamento jurídico material”.280

Outra grande dúvida entre os operadores do direito consiste em saber se

o cabimento da ação é de natureza formal ou material.

A meu ver, o cabimento da ação resulta do direito processual, pois todos

os requisitos que são elencados como pressupostos e condições, estão na lei

processual, e não na lei material. O que se irá discutir não será o direito material,

mas o cabimento ou não da ação que resulta do direito processual.

Portanto, como todos os requisitos aqui definidos encontram-se nas leis e

na doutrina processual, não existe margem para dúvida de que o cabimento da

ação é de natureza formal.

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