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O breve século X X 1914-1991

A era dos extremos o breve seculo xx - eric hobsbawn

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  • 1. O breve sculo X X 1914-1991

2. ERIC HOBSBAWMERA DOS EXTREMOS O breve sculo XX 1914-1991 Traduo: MARCOS SANTARRITA Reviso tcnica: MARIA CLIA PAOLI2 edio 26 reimpressoSBD-FFLCH-USPm -------^HC o m p a n h ia D a s L e t r a s 3. C, $ H a dLs"fl5113&2--o33 Copyright 1994 by Eric Hobsbawm Esta traduo publicada por acordo com Pantheon Books, uma diviso da Random House, Inc. Ttulo original: Age o f extremes The short twentieth century: 1914-1991 Capa: Hlio de Almeida Preparao: Stella Weiss, M aria Laura Santos Bacellar, M arcos Luiz Fernandes, Sylvia M aria Pereira dos Santos ndice remissivo: Caren Inoue Aline Sanchez Leme Reviso: Carmen S. da Costa Touch! EditorialD ados Internacionais de C atalogao na P ublicaao (c ip ) (C m ara B rasileira do Livro, sp , B rasil)H obsbaw m , Eric J., 1917E ra dos ExtTemos : o breve sculo x x : 1914-1991 / Eric H obsbaw m ; traduo M arcos S antarrita ; reviso tcnicaDEDALUS - Acervo - FFLCH-HIM aria C lia Paoli. So P aulo : C om panhia das Letras, 1995. T tulo original: A ge o f extrem es : the short tw entieth century : 1914/1991. B ibliografia. is b n 85-7164-468-3I. C ivilizao m oderna - S culo 20 - H istria I. Ttulo. CDD-909.82 n d ices para catlogo sistem tico: 1. C ivilizao m undial : S culo 20 : H istria909.822. S culo 20 : C ivilizao m undial : H istria909.822003 Todos os direitos desta edio reservados E D IT O R A SC H W A R C Z LTDA .Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532-002 So Paulo s p Telefone: (11) 3167-0801 Fax: (11) 3167-0814 www.companhiadasletras.com.br 4. NDICEPrefcio e agradecimentos ............................................................................. O sculo: vista a r e a .........................................................................................7 11Parte um A ERA DA CATSTROFE 1. A era da guerra t o t a l .................................................................................. 29 2. A revoluo m u n d ia l......... ........................................................................ 61 3. Rumo ao abismo ec o n m ic o .................................................................... 90 4. A queda do lib e ra lism o .............................................................................113 5. Contra o inimigo comum ........................................................................ 144 6. As artes 1 91 4 -4 5.........................................................................................178 7. O fim dos im p rio s....................................................................................198Parte dois A ERA DE OURO 8. 9. 10. 11. 12. 13.Guerra F r i a ..................................................................................................223 Os anos d o u ra d o s ...................................................................................... 253 Revoluo s o c ia l.........................................................................................282 Revoluo cultural ....................................................................................314 O Terceiro Mundo ....................................................................................337 Socialismo real ...................................................................................... 363Parte trs O DESMORONAMENTO 14. As Dcadas de Crise393 5. 1 5 . Terceiro Mundo e r e v o lu o .........................................................................42116. 17. 18. 19.Fim do socialismo .................................................................................... 447 * Morre a vanguarda: as artes aps 1950 ................................................. 483 Feiticeiros e aprendizes: as cincias n a tu ra is ........................................504 Rumo ao milnio ...................................................................................... 537 Bibliografia ................................................................................................563 Outras le itu r a s ........................................................................................... 579 Ilu s tr a e s .................................................................................................. 583 ndice remissivo .......................................... .................... ......................... 585 6. PREFCIO E AGRADECIMENTOSNo possvel escrever a histria do sculo xx como a de qualquer outra poca, quando mais no fosse porque ningum pode escrever sobre seu pr prio tempo de vida como pode (e deve) fazer em relao a uma poca conhe cida apenas de fora, em segunda ou terceira mo, por intermdio de fontes da poca ou obras de historiadores posteriores. Meu tempo de vida coincide com a maior parte da poca de que trata este livro e durante a maior parte de meu tempo de vida do incio da adolescncia at hoje tenho tido conscincia dos assuntos pblicos, ou seja, acumulei opinies e preconceitos sobre a po ca, mais como contemporneo que como estudioso. Este um dos motivos pelos quais, enquanto historiador, evitei trabalhar sobre a era posterior a 1914 durante quase toda a minha carreira, embora no me abstivesse de escrever sobre ela em outras condies. Minha poca, como se diz no jargo profis sional, o sculo xix. Acho que j possvel ver o Breve Sculo xx de 1914 at o fim da era sovitica dentro de uma certa perspectiva histrica, mas chego a ele desconhecendo a literatura acadmica, para no dizer que desconheo quase todas as fontes primrias acumuladas pelo grande nmero de historiadores do sculo xx. Claro, na prtica completamente impossvel uma s pessoa conhecer a historiografia do presente sculo mesmo em uma nica lngua importante como, por exemplo, o historiador da Antiguidade clssica ou do imprio bizantino conhece tudo o que foi escrito sobre esses longos perodos, na poca e depois. Mesmo pelos padres de erudio histrica, contudo, meu conheci mento no campo da histria contempornea precrio e irregular. O mximo que consegui foi mergulhar na literatura das questes mais espinhosas e con trovertidas a histria da Guerra Fria ou dos anos 30, por exemplo o sufi ciente para convencer-me de que as opinies expressas neste livro so defen sveis luz da pesquisa especializada. Claro, posso no ter conseguido. Deve haver inmeras questes quanto s quais demonstro ignorncia e defendo opi nies polmicas.7 7. Este livro, portanto, assenta-se sobre alicerces estranhamente irregulares. Alm da ampla e variada leitura de muitos anos, complementada por toda a leitura necessria para dar cursos de histria do sculo xx aos ps-graduandos da New School for Social Research, recorri ao conhecimento, s memrias e s opinies acumulados por uma pessoa que viveu o Breve Sculo xx na posi o de observador participante, como dizem os antroplogos sociais, ou simplesmente como um viajante de olhos abertos, ou como o que meus ances trais chamariam kibbitzer e isso em inmeros pases. O valor histrico des sas experincias no decorre de ter presenciado grandes ocasies histricas ou de ter conhecido ou encontrado destacados estadistas ou protagonistas da his tria. Na verdade, minha experincia como jornalista ocasional em pesquisas neste ou naquele pas, sobretudo da Amrica Latina, tem sido a de que em geral as entrevistas com presidentes ou outros tomadores de deciso no so compensadoras, pela razo bvia de que a maior parte do que essas pessoas dizem para registro pblico. As pessoas que nos esclarecem de fato so as que podem ou querem falar livremente, de preferncia quando no tm responsabilidade por grandes questes. Apesar disso, meu conhecimento de pessoas e lugares, embora forosamente parcial e enganador, me foi de enor me valia, mesmo tratando-se to-somente de visitar a mesma cidade num intervalo de trinta anos Valncia ou Palermo , fato que permite com preender a rapidez e o mbito da transformao social no terceiro quartel do presente sculo, ou mesmo tratando-se to-somente da lembrana de algo dito h muito tempo em alguma conversa e guardado, s vezes sem motivo claro, para uso futuro. Se o historiador tem condies de entender alguma coisa deste sculo em grande parte porque viu e ouviu. Espero ter transmitido aos leitores algo do que aprendi por t-lo feito. Como no poderia deixar de ser, este livro tambm se baseia nas infor maes obtidas junto a colegas, estudantes, e todos a quem abordei durante sua elaborao. Em alguns casos a dvida sistemtica. O captulo sobre as cincias foi submetido a meus amigos Alan M ackay FRS que alm de cristalgrafo enciclopedista e John Maddox. Parte do que escrevi sobre desenvolvimento econmico passou pela leitura de meu colega na New School, Lance Taylor, que foi do m it [Massachusetts Institute of Technology Instituto de Tecnologia de M assachusetts]; uma parte muito maior depen deu da leitura de trabalhos, do acompanhamento dos debates e, de um modo geral, da ateno dedicada s conferncias organizadas sobre vrias questes macroeconmicas no Instituto Mundial para Pesquisa de Desenvolvimento Econmico da Universidade da o n u ( u n u / w i d e r ) , em Helsinque, quando esse instituto se transformou num grande centro internacional de pesquisa e deba tes sob a direo do dr. Lal Jayawardena. Os veres que tive ocasio de pas sar nessa admirvel instituio, na qualidade de pesquisador visitante com bolsa da M cDonnel Douglas, foram-me inestimveis, inclusive por sua proxi 8. midade da u r s s e sua preocupao intelectual com os ltimos anos desse pas. Nem sempre aceitei o conselho daqueles a quem consultei e, mesmo quando o fiz, a responsabilidade pelos erros exclusivamente minha. Beneficiei-me muito das conferncias e colquios durante os quais os acadmicos dedicam boa parte de seu tempo a encontrar seus pares, inclusive com o objetivo de estimular-se uns aos outros. No tenho como agradecer a todos os colegas que me ajudaram ou corrigiram em ocasies formais e informais, nem toda a in formao que adquiri por acaso, por ter a sorte de ensinar a um grupo muito internacional de estudantes na New School. Contudo, penso que devo especi ficar meu reconhecimento para com Ferdan Ergut e Alex Julca, pelo que aprendi em seus trabalhos sobre a revoluo turca e a natureza da migrao e mobilidade social no Terceiro Mundo. Devo, ainda, tese de doutoramento de minha aluna Margarita Giesecke, sobre a a p r a e o levante de Trujillo em 1932. A medida que o historiador do sculo xx se aproxima do presente, fica cada vez mais dependente de dois tipos de fonte: a imprensa diria ou peri dica e os relatrios econmicos peridicos e outras pesquisas, compilaes estatsticas e outras publicaes de governos nacionais e instituies interna cionais. M inha dvida para com jornais como o Guardian de Londres, o Financial Times e o New York Times mais que evidente. Minha dvida para com as inestimveis publicaes das Naes Unidas e seus vrios organismos e para com o Banco M undial est registrada na bibliografia. H que lembrar, ainda, a antecessora destes, a Liga das Naes, que embora na prtica fosse um fracasso quase total, realizou admirveis pesquisas e anlises, que culmi naram no pioneiro Industrialisation and World Trade [Industrializao e comrcio mundial], de 1945, merecedoras de nossa gratido. Nenhuma hist ria das mudanas sociais e econmicas ocorridas neste sculo poderia ser escrita sem essas fontes. Os leitores tero de aceitar a maior parte do que escrevi neste livro na base da confiana, com exceo das bvias opinies pessoais do autor. No h sentido em sobrecarregar um livro como este com um enorme aparato de refe rncias ou outras marcas de erudio. Tentei restringir minhas referncias fonte das citaes textuais, das estatsticas e outros dados quantitativos fontes diferentes s vezes apresentam nmeros diferentes e ocasional jus tificao de afirmaes que os leitores possam achar pouco comuns, desco nhecidas ou inesperadas e de alguns aspectos em que as opinies controverti das do autor possam exigir uma certa corroborao. Essas referncias esto entre parnteses no texto. O ttulo completo da fonte encontra-se no final do volume. Essa bibliografia no passa de uma relao completa de todas as fon tes efetivamente citadas ou mencionadas no texto. Ela no um guia sistem tico para outras leituras. Depois da bibliografia h um breve indicador de outras leituras. O conjunto das referncias tambm foi concebido de modo a ficar bem separado das notas de rodap, que apenas ampliam ou restringem o texto.9 9. Contudo, por uma questo de justia, quero indicar algumas obras em que me apoiei bastante ou com que estou particularmente em dbito. Eu no gostaria que seus autores deixassem de sentir-se devidamente apreciados. De um modo geral, devo muito obra de dois amigos: o historiador econmico e infatigvel compilador de dados quantitativos Paul Bairoch e Ivan Berend, expresidente da Academia Hngara de Cincias, a quem devo o conceito do Breve Sculo xx. Sobre a histria poltica geral do mundo desde a Segunda Guerra Mundial, P. Calvocoressi (World politics since 1945 [Poltica mundial de 1945 em diante]) foi um guia seguro e s vezes compreensivelmente custico. Sobre a Segunda Guerra Mundial, muito devo ao soberbo War, economy and society 1929-45 [Guerra, economia e sociedade 1929-45], de Alan Milward, e, sobre a economia p s-1945, achei utilssimos Prosperity and upheaval: The world economy 1945-1980 [Prosperidade e revolta: a economia mundial de 1945-1980], de Herman Van der Wee, e Capitalism since 1945 [Capitalismo a partir de 1945], de Philip Armstrong, Andrew Glyn e John Harrison. The Cold War [A Guerra Fria], de Martin Walker, merece uma aten o muito maior do que a morna recepo que lhe reservaram os crticos. Sobre a histria da esquerda desde a Segunda Guerra Mundial, muito devo ao dr. Donald Sassoon, do Queen Mary and Westfield College, Universidade de Londres, que teve a bondade de me deixar ler seu vasto e esclarecedor estudo do assunto, ainda incompleto. No que diz respeito histria da u r s s , minha dvida principal para com os textos de Moshe Lewin, Alec Nove, R. W. Davies e Sheila Fitzpatrick; no que diz respeito China, para com os de Benjamin Schwartz e Stuart Schram; e no que diz respeito ao mundo islmi co, para com Ira Lapidus e Nikki Keddie. Minhas opinies sobre as artes muito devem s obras (e conversa) de John Willett sobre a cultura de Weimar, bem como a Francis Haskell. No captulo 6, penso ser bvia minha dvida para com o Diaghilev de Lynn Garafola. Meus agradecimentos especiais aos que me ajudaram concretamente a preparar este livro. So eles, em primeiro lugar, minhas auxiliares de pesqui sa Joanna Bedford em Londres e Lise Grande em Nova York. Gostaria de acentuar sobretudo minha dvida para com esta ltima, sem quem eu no poderia ter preenchido as enormes lacunas em meu conhecimento nem confe rido fatos e referncias lembrados apenas pela metade. Tambm sou muito grato a Ruth Syers, que datilografou meus rascunhos, e a M arlene Hobsbawm, que leu vrios captulos do ponto de vista do leitor no acadmico com inte resse genrico pelo mundo moderno, a quem este livro se dirige. J mencionei minha dvida para com os estudantes da New School, que assistiram s aulas nas quais tentei formular minhas idias e interpretaes. A eles dedico este livro. Eric Hobsbawm Londres Nova York, 1993-4 10 10. O SCULO: VISTA AREA Olhar panormicoD O ZE PESSOAS VEM O SCULO XX Isaiah Berlin (filsofo, Gr-Bretanha): Vivi a maior parte do sculo xx, devo acrescentar que no sofri provaes pessoais. Lembro-o apenas como o sculo mais terrvel da histria. Julio Caro Baroja (antroplogo, Espanha): H uma contradio patente entre a experincia de nossa prpria vida infncia, juventude e velhice pas sadas tranqilamente e sem maiores aventuras e os fatos do sculo xx... os terrveis acontecimentos por que passou a humanidade. Primo Levi (escritor, Itlia): Ns, que sobrevivemos aos Campos, no somos verdadeiras testemunhas. Esta uma idia incmoda que passei aos pou cos a aceitar, ao ler o que outros sobreviventes escreveram inclusive eu mesmo, quando releio meus textos aps alguns anos. Ns, sobreviventes, somos uma minoria no s minscula, como tambm anmala. Somos aqueles que, por prevaricao, habilidade ou sorte, jamais tocaram o fundo. Os que tocaram, e que viram a face das Grgonas, no voltaram, ou voltaram sem palavras. Ren Dumont (agrnomo, ecologista, Frana): Vejo-o apenas como um sculo de massacres e guerras . Rita Levi M ontalcini (Prmio Nobel, cincia, Itlia): Apesar de tudo, neste sculo houve revolues para melhor [...] o surgimento do Quarto Estado e a emergncia da mulher, aps sculos de represso. William Golding (Prmio Nobel, escritor, Gr-Bretanha): No posso deixar de pensar que este foi o sculo mais violento da histria humana. E m st Gombrich (historiador da arte, Gr-Bretanha): A principal carac 11 11. terstica do sculo xx a terrvel multiplicao da populao do mundo. uma catstrofe, uma tragdia. No sabemos o que fazer a respeito. Yehudi Menuhin (msico, Gr-Bretanha): Se eu tivesse de resumir o sculo xx, diria que despertou as maiores esperanas j concebidas pela huma nidade e destruiu todas as iluses e ideais. Severo Ochoa (Prmio Nobel, cincia, Espanha): O mais fundamental o progresso da cincia, que tem sido realmente extraordinrio [...] Eis o que caracteriza nosso sculo. Raymond Firth (antroplogo, Gr-Bretanha): Tecnologicamente, coloco o desenvolvimento da eletrnica entre os fatos mais significativos do sculo xx; em termos de idias, destaco a passagem de uma viso relativamente racional e cientfica das coisas para outra no racional e menos cientfica . Leo Valiani (historiador, Itlia): Nosso sculo demonstra que a vitria dos ideais de justia e igualdade sempre efmera, mas tambm que, se con seguimos manter a liberdade, sempre possvel recom ear [...] No h por que desesperar, mesmo nas situaes mais desesperadas. Franco Venturini (historiador, Itlia): Os historiadores no tm como responder a essa pergunta. Para mim, o sculo xx apenas o esforo sempre renovado de entend-lo. 'v(Agosti & Borgese, 1992, pp. 42, 210, 154, 76, 4, 8, 204, 2, 62, 80, 140 e 160) T / Em 28 de junho de 1992 o presidente Mitterrand, da Frana, apareceu de forma sbita, no anunciada e inesperada em Sarajevo, que j era o centro de uma guerra balcnica que iria custar cerca de 150 mil vidas no decorrer daque le ano. Seu objetivo era lembrar opinio pblica mundial a gravidade da crise bsnia. E, de fato, foi muito observada e admirada a presena do conhecido estadista idoso e visivelmente frgil sob o fogo das armas portteis e da artilharia. Um aspecto da visita de Mitterrand, contudo, embora claramente fundamental, passou despercebido: a data. Por que o presidente da Frana escolhera aquele dia especfico para ir a Sarajevo? Porque 28 de junho era o aniversrio do assassinato, em Sarajevo, em 1914, do arquiduque Francisco jfm lin an d o da ustria-Hungria, ato que em poucas semanas levou ecloso da Primeira Guerra Mundial. Para qualquer europeu culto da gerao de 12 12. Mitterrand, saltava aos olhos a ligao entre data e lugar e a evocao de uma catstrofe histrica precipitada por um erro poltico e de clculo. Que melhor maneira de dramatizar as implicaes potenciais da crise bsnia que escolhen do uma data assim to simblica? Mas quase ningum captou a aluso, exce to uns poucos historiadores profissionais e cidados muito idosos. A memria histrica j no estava viva. A destruio do passado ou melhor, dos mecanismos sociais que vin culam nossa experincia pessoal das geraes passadas um dos fenme nos mais caractersticos e lgubres do final do sculo xx. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espcie de presente contnuo, sem qualquer rela o orgnica com o passado pblico da poca em que vivem. Por isso os his toriadores, cujo ofcio lembrar o que outros esquecem, tomam-se mais importantes que nunca no fim do segundo milnio. Por esse mesmo motivo, porm, eles tm de ser mais que simples cronistas, memorialistas e compila dores. Em 1989 todos os governos do mundo, e particularmente todos os mi nistrios do Exterior do mundo, ter-se-iam beneficiado de um seminrio sobre os acordos de paz firmados aps as duas guerras mundiais, que a maioria deles aparentemente havia esquecido. Contudo, no propsito deste livro contar a histria da poca de que trata, o Breve Sculo xx entre 1914 e 1991, embora todo aquele que j tenha ouvido um estudante americano inteligente perguntar-lhe se o fato de falar em Segunda Guerra Mundial significa que houve uma Primeira Guerra Mun dial saiba muito bem que nem sequer o conhecimento de fatos bsicos do sculo pode ser dado por certo. Meu objetivo compreender e explicar po r que as coisas deram no que deram e como elas se relacionam entre si. Para qual quer pessoa de minha idade que tenha vivido todo o Breve Sculo xx ou a maior parte dele, isso tambm, inevitavelmente, uma empresa autobiogrfi ca. Trata-se de comentar, ampliar (e corrigir) nossas prprias memrias. E falamos como homens e mulheres de determinado tempo e lugar, envolvidos de diversas maneiras em sua histria como atores de seus dramas por mais insignificantes que sejam nossos papis , como observadores de nossa poca e, igualmente, como pessoas cujas opinies sobre o sculo foram formadas pelo que viemos a considerar acontecimentos cruciais. Somos parte deste sculo. Ele parte de ns. Que no o esqueam os leitores que pertencem a outra era, por exemplo os estudantes que esto ingressando na universidade no momento em que escrevo e para quem at a Guerra do Vietn pr-histria. Para os historiadores de minha gerao e origem o passado indestrut vel, no apenas porque pertencemos gerao em que ruas e logradouros pblicos ainda tinham nomes de homens e acontecimentos pblicos (a estao Wilson na Praga de antes da guerra, a estao de metr Stalingrado em Paris), em que os tratados de paz ainda eram assinados e portanto tinham de ser iden tificados (Tratado de Versalhes) e os memoriais de guerra lembravam aconte13 13. cimentos passados, como tambm porque os acontecimentos pblicos so parte da textura de nossas vidas. Eles no so apenas marcos em nossas vidas privadas, mas aquilo que formou nossas vidas, tanto privadas como pblicas. Para este autor, o dia 30 de janeiro de 1933 no simplesmente a data, parte isso arbitrria, em que Hitler se tornou chanceler da Alemanha, mas tambm uma tarde de inverno em Berlim, quando um jovem de quinze anos e sua irm mais nova voltavam para casa, em Halensee, de suas escolas vizinhas em Wilmersdorf, e em algum ponto do trajeto viram a manchete. Ainda posso vla, como num sonho. Mas no apenas um velho historiador tem o passado como parte de seu presente permanente. Em vastas extenses do globo todas as pessoas de deter minada idade, independentemente de origens e histrias pessoais, passaram pelas mesmas experincias centrais. Foram experincias que nos marcaram a todos, em certa medida da mesma forma,. O mundo que se esfacelou no fim da dcada de 1980 foi o mundo formado pelo impacto da Revoluo Russa de 1917) Fomos todos marcados por ela, por exemplo na medida em que nos habituamos a pensar na moderna economia industrial em termos de opostos binrios, capitalismo e socialismo como alternativas mutuamente excludentes, uma identificada com economias organizadas com base no modelo da u r s s , a outra com todo o restante. Agora j deve estar ficando evidente que essa oposio era uma construo arbitrria e em certa medida artificial, que s pode ser entendida como parte de determinado contexto histrico. E no entanto mesmo hoje, quando escrevo, no fcil considerar, inclusive retros pectivamente, princpios de classificao mais realistas que aquela que reunia e u a , Japo, Sucia, Brasil, Repblica Federal da Alemanha e Coria do Sul num mesmo escaninho e as economias e sistemas de Estado da regio soviti ca que desmoronaram depois da dcada de 1980 no mesmo compartimento em que estavam as do Oriente e do Sudeste Asitico, que, como se constata, no desmoronaram. Mesmo o mundo que sobreviveu ao fim da Revoluo de Outubro um mundo cujas instituies e crenas foram moldadas pelos que pertenciam ao lado vencedor da Segunda Guerra Mundial. Os que estavam do lado perdedor ou a ele se associavam no apenas ficaram em silncio ou foram silenciados, como foram praticamente riscados da histria e da vida intelectual, investidos do papel de o inimigo no drama moral de Bem versus Mal. ( possvel que o mesmo esteja acontecendo hoje com os perdedores da Guerra Fria da segun da metade do sculo, embora talvez no na mesma medida, nem por tanto tempo.) (Esse um dos preos que se paga por viver num sculo de guerras religiosas, que tm na intolerncia sua principal caracterstica. Mesmo os que propalavam o pluralismo de suas no-ideologias acreditaram que o mundo no era grande o bastante para uma coexistncia permanente com religies secula res nvais. Confrontos religiosos ou ideolgicos como os que povoaram este 14 14. sculo erguem barricadas no caminho do historiador. A principal tarefa do his toriador no julgar, mas compreender, mesmo o que temos mais dificuldade para compreender. O que dificulta a compreenso, no entanto, no so apenas nossas convices apaixonadas, mas tambm a experincia histrica que as formou. As primeiras so fceis de superar, pois no h verdade no conhecido mas enganoso dito francs tout comprendre c est tout pardonner (tudo com preender tudo perdoar). Compreender a era nazista na histria alem e enquadr-la em seu contexto histrico no perdoar o genocdio. De toda forma, no provvel que uma pessoa que tenha vivido este sculo extraordi nrio se abstenha de julgar. O difcil compreender.II Como iremos compreender o Breve Sculo xx, ou seja, os anos que vo da ecloso da Primeira Guerra Mundial ao colapso da urss , que, como agora podemos ver retrospectivamente, formam um perodo histrico coerente j encerrado? No sabemos o que vir a seguir, nem como ser o segundo mil nio, embora possamos ter certeza de que ele ter sido moldado pelo Breve Sculo xx. Contudo, no h como duvidar seriamente de que em fins da dca da de 1980 e incio da dcada de 1990 uma era se encerrou e outra nova come ou. Esta a informao essencial para os historiadores do sculo, pois embo ra eles possam especular sobre o futuro luz de sua compreenso do passado, seu trabalho no tem nada a ver com palpites em corridas de cavalos. As ni cas corridas de cavalos que esses historiadores podem pretender relatar e ana lisar so as j ganhas ou perdidas. Seja como for, nos ltimos trinta ou quaren ta anos o desempenho dos adivinhos, fossem quais fossem suas qualificaes profissionais como profetas, mostrou-se to espetacularmente ruim que s governos e institutos de pesquisa econmica ainda tm, ou dizem ter, maior confiana nele. E possvel mesmo que depois da Segunda Guerra Mundial esse desempenho tenha piorado. Neste livro, a estrutura do Breve Sculo xx parece uma espcie de trpti co ou sanduche histrico^TT uma Era de Catstrofe, que se estendeu de 1914 at depois da Segunda Guerra Mundial, seguiram-se cerca de 25 ou trinta anos de extraordinrio crescimento econmico e transformao social, anos que provavelmente mudaram de maneira mais profunda a sociedade humana que qualquer outro perodo de brevidade comparvel. Retrospectivamente, pode mos ver esse perodo como uma espcie de Era de Ouro, e assim ele foi visto quase imediatamente depois que acabou, no incio da dcada de 1970.j(A lti- ' ma parte do sculo foi uma nova era de decomposio, incerteza e crise e, com efeito, para grandes reas do mundo, como a frica, a ex-URSS e as par tes anteriormente socialistas da Europa, de catstrofg). medida que a dcada 15 15. de 1980 dava lugar de 1990, o estado de esprito dos que refletiam sobre o passado e o futuro do sculo era de crescente melancolia fin-de-sicle. Visto do privilegiado ponto de vista da dcada de 1990, o Breve Sculo xx passou por uma curta E ra de Ouro, entre um a crise e outra, e entrou num futuro des conhecido e problemtico, mas no necessariamente apocalptico. Contudo, como talvez os historiadores queiram lembrar aos especuladores metafsicos do Fim da Histria, haver um futuro. A nica generalizao cem por cento segura sobre a histria aquela que diz que enquanto houver raa humana haver histria. O roteiro deste livro segue esse preceito. Ele comea com a Primeira Guerra Mundial, que assinalou o colapso da civilizao (ocidental) do sculo xix. Tratava-se de uma civilizao capitalista na economia; liberal na estrutu ra legal e constitucional; burguesa na imagem de sua classe hegemnica carac terstica; exultante com o avano da cincia, do conhecimento e da educao e tambm com o progresso material e moral; e profundamente convencida da centralidade da Europa, bero das revolues da cincia, das artes, da poltica e da indstria e cuja economia prevalecera na maior parte do mundo, que seus soldados haviam conquistado e subjugado; uma Europa cujas populaes (incluindo-se o vasto e crescente fluxo de emigrantes europeus e seus descen dentes) haviam crescido at somar um tero da raa humana; e cujos maiores Estados constituam o sistema da poltica mundial.* Para essa sociedade, as dcadas que vo da ecloso da Primeira Guerra Mundial aos resultados da Segunda foram uma Era de Catstrofe. Durante quarenta anos, ela foi de calamidade em calamidade. Houve ocasies em que mesmo conservadores inteligentes no apostariam em sua sobrevivncia. Ela foi abalada por duas guerras mundiais, seguidas por duas ondas de rebelio e revoluo globais que levaram ao poder um sistema que se dizia a alternativa historicamente predestinada para a sociedade capitalista e burguesa e que foi adotado, primeiro, em um sexto da superfcie da Terra, e, aps a Segunda Guerra Mundial, por um tero da populao do globo. Os imensos imprios coloniais erguidos durante a Era do Imprio foram abalados e ruram em p. Toda a histria do imperialismo moderno, to firme e autoconfiante quando da morte da rainha Vitria, da Gr-Bretanha, no durara mais que o tempo de uma vida humana digamos, a de Winston Churchill (1874-1965). Mais ainda: uma crise econmica mundial de profundidade sem prece dentes ps de joelhos at mesmo as economias capitalistas mais fortes e pare ceu reverter a criao de uma economia mundial nica, feit bastante notvel (*) Tentei descrever e explicar a ascenso dessa civilizao numa histria em trs volumes do longo sculo x ix (da dcada de 1780 a 1914), e analisar as razes do colapso. O presente texto far referncia a esses volumes, The age o f Revolution, 1789-1848, The age o f Capital, 18481875, e The age o f Empire, 1875-1914, ocasionalmente, onde parecer til.16 16. do capitalismo liberal do sculo xix. Mesmo os e u a , a salvo de guerra e revo luo, pareceram prximos do colapso. Enquanto a economia balanava, as instituies da democracia liberal praticamente desapareceram entre 1917 e 1942; restou apenas uma borda da Europa e partes da Amrica do Norte e da Austrlia. Enquanto isso, avanavam o fascismo e seu corolrio de movimen tos e regimes autoritrios. A democracia s se salvou porque, para enfrent-lo, houve uma aliana temporria e bizarra entre capitalismo liberal e comunismo: basicamente a vitria sobre a Alemanha de Hitler foi, como s poderia ter sido, uma vitria do Exrcito Vermelho. De muitas maneiras, esse perodo de aliana capitalista-comunista contra o fascismo sobretudo as dcadas de 1930 e 1940 constitui o ponto crtico da histria do sculo xx e seu momento decisivo. De muitas maneiras, esse um momento de paradoxo histrico nas relaes entre capitalismo e comunismo, que na maior parte do sculo com exceo do breve perodo de antifascismo ocuparam posies de antagonismo inconci livel. A vitria da Unio Sovitica sobre H itler foi uma realizao do regime l instalado pela Revoluo de Outubro, com o demonstra uma comparao do desempenho da economia russa czarista na Primeira Guerra Mundial com a economia sovitica na Segunda Guerra (Gatrell & Harrison, 1993). Sem isso, o mundo hoje (com exceo dos e u a ) provavelmente seria um conjunto de variaes sobre temas autoritrios e fascistas, mais que de variaes sobre temas parlamentares liberais. Uma das ironias deste estranho sculo que o resultado mais duradouro da Revoluo de Outubro, cujo objetivo era a derru- j bada global do capitalismo, foi salvar seu antagonista, tanto na guerra quanto j na paz, fornecendo-lhe o incentivo o medo para reformar-se aps a ' Segunda Guerra Mundial e, ao estabelecer a popularidade do planejamento econmico, oferecendo-lhe alguns procedimentos para sua reforma. Contudo, mesmo tendo sobrevivido por pouco ao triplo desafio da depresso, do fascismo e da guerra, o capitalismo ainda parecia enfrentar o avano global da revoluo, que s podia arregimentar-se em tomo da URSS, egressa da Segunda Guerra Mundial como superpotncia. E no entanto, como agora podemos ver retrospectivamente, a fora do I desafio socialista global ao capitalismo era a da fraqueza de seu adversrio, j/j Sem o colapso da sociedade burguesa do sculo xix na Era da Catstrofe, no teria havido Revoluo de Outubro nem u r s s . O sistema econmico improvi- ij sado na arruinada casca eurasiana rural do antigo imprio czarista sob o nome de socialismo no se teria acreditado nem teria sido considerado uma alternativa global realista para a economia capitalista. A Grande Depresso de 1930 criou essa impresso, pois foi o desafio do fascismo que fez da u r s s o instrumento indispensvel para a derrota de Hitler e, em conseqncia, uma das duas superpotncias cujos confrontos dominaram e aterrorizaram a segun da metade do Breve Sculo xx, estabilizando, ao mesmo tempo, em muitos , 17 17. aspectos como hoje podemos ver , sua estrutura poltica. A u r s s no teria estado durante uma dcada e meia, em meados do sculo, testa de um campo socialista que compreendia um tero da raa humana, com uma eco nomia que por um breve instante pareceu capaz de sobrepujar o crescimento econmico capitalista. Como e por que o capitalismo, aps a Segunda Guerra Mundial, viu-se, para surpresa de todos, inclusive dele prprio, saltar para a Era de Ouro de 19 4 7 - 7 3 , algo sem precedentes e possivelmente anmalo? Eis, talvez, a ques to central para os historiadores do sculo xx. Ainda no se chegou a um con senso e no tenho a pretenso de oferecer uma resposta persuasiva. Talvez seja preciso esperar que toda a longa onda da segunda metade do sculo xx possa ser vista em perspectiva para que surja uma anlise mais convincente, mas, embora hoje possamos ver a Era de Ouro, retrospectivamente, como um todo, no momento em que escrevo as Dcadas de Crise que o mundo viveu desde ento ainda no esto completas. Contudo, j podemos avaliar com muita con fiana a escala e o impacto extraordinrios da transformao econmica, social e cultural decorrente, a maior, mais rpida e mais fundamental da hist ria registrada. Vrios aspectos dessa transformao sero discutidos na segun da parte deste livro. E provvel que no terceiro milnio os historiadores do sculo xx situem o grande impacto do sculo na histria como sendo o desse espantoso perodo e de seus resultados. Porque as mudanas dele decorrentes para todo o planeta foram to profundas quanto irreversveis. E ainda esto ocorrendo. Os jornalistas e ensastas filosficos que detectaram o fim da his tria na queda do imprio sovitico estavam errados. O argumento melhor quando se afirma que o terceiro quartel do sculo assinalou o fim dos sete ou oito milnios de histria humana iniciados com a revoluo da agricultura na Idade da Pedra, quando mais no fosse porque ele encerrou a longa era em que a maioria esmagadora da raa humana vivia plantando alimentos e pastorean do rebanhos. Diante disso, provvel que a histria do confronto entre capitalismo e socialismo, com ou sem a interveno de Estados e governos como os e u a e a u r s s pretendendo representar um ou outro, parea de interesse histrico mais limitado comparvel, a longo prazo, s guerras religiosas dos sculos xvi e x v i i ou s Cruzadas. Para os que viveram um pedao qualquer do Breve Sculo xx, natural que capitalismo e socialismo paream enormes, e assim o so neste livro, escrito por um escritor do sculo xx, para leitores de fins do sculo xx. As revolues sociais, a Guerra Fria, a natureza, limitaes e falhas, fatais do socialismo realmente existente e seu colapso so discutidas ! exausto. Mesmo assim, convm lembrar que o impacto maior e mais dura douro dos regimes inspirados pela Revoluo de Outubro foi a grande acele rao da modernizao de pases agrrios atrasados. Na verdade, nesse aspec to suas grandes realizaes coincidiram com a Era de Ouro capitalista. As' 18 18. estratgias rivais para sepultar o mundo de nossos antepassados foram efica zes? Foram, inclusive, conscientes? Eis algo que no precisamos examinar aqui. Como veremos, at o incio da dcada de 1960 elas pareciam no mnimo emparelhadas, viso que parece absurda luz do colapso do socialismo sovi tico, embora um primeiro-ministro britnico, em conversa com um presidente americano, ainda pudesse considerar a u r s s um Estado cuja exuberante eco nomia [...] em breve ultrapassar a sociedade capitalista na corrida pela rique za material (Home, 1989, p. 303). Contudo, o importante notar, simples mente, que na dcada de 1980 a Bulgria socialista e o Equador no socialista tinham mais em comum entre si que com a Bulgria e o Equador de 1939. Embora o colapso do socialismo sovitico e suas enormes conseqncias, por enquanto impossveis de calcular por inteiro, mas basicamente negativas, fossem o incidente mais dramtico das Dcadas de Crise que se seguiram Era de Ouro, essas iriam ser dcadas de crise universal ou global. A crise afetou as vrias partes do mundo de maneiras e em graus diferentes, mas afetou a todas elas, fossem quais fossem suas configuraes polticas, sociais e econ micas, porque pela primeira vez na histria a Era de Ouro criara uma economiat mundial nica, cada vez mais integrada e universal, operando em grande medi da por sobre as fronteiras de Estado (transnacionalmente) e, portanto, tam bm, cada vez mais, por sobre as barreiras da ideologia de Estado. Em decor-,; rncia, as idias consagradas das instituies de todos os regimes e sistemas ficaram solapadas. No incio havia a esperana de que os problemas da dca da de 1970 fossem uma pausa temporria no Grande Salto Avante da econo mia mundial, e pases de todos os tipos e modelos econmicos e polticos buscaram solues temporrias. Porm., foi ficando cada vez mais claro que se tratava de uma era de problemas de longo prazo, para os quais os pases capi talistas buscaram solues radicais, muitas vezes ouvindo telogos seculares do livre mercado irrestrito, que rejeitavam as polticas que to bem haviam ser vido economia mundial durante a Era de Ouro e que agora pareciam estar falhando. Os fanticos do laissez-faire tiveram tanto xito quanto os demais. Na dcada de 1980 e incio da de 1990, o mundo capitalista viu-se novamen te s voltas com problemas da poca do entreguerras que a Era de Ouro pare cia ter eliminado: desemprego em massa, depresses cclicas severas, contra posio cada vez mais espetacular de mendigos sem teto a luxo abundante, em meio a rendas limitadas de Estado e despesas ilimitadas de Estado. Os pases socialistas, agora com suas economias desabando, vulnerveis, foram impeli dos a realizar rupturas igualmente ou at mais radicais com seu passado e, como sabemos, rumaram para o colapso. Esse colapso pode assinalar o fim do Breve Sculo xx, como a Primeira Guerra Mundial pode assinalar o seu in cio. Nesse ponto minha histria chega ao fim. ? Chega ao fim como todo livro concludo no incio da dcada de 1990 com um olhar para a escurido. O colapso de uma parte do mundo revelou 19 19. o mal-estar do resto. medida que a dcada de 1980 passava para a de 1990, foi ficando evidente que a crise mundial no era geral apenas no sentido eco nmico, mas tambm no poltico. O colapso dos regimes comunistas entre !Istria e Vladivostok no apenas produziu uma enorme zona de incerteza poltijca, instabilidade, caos e guerra civil, como tambm destruiu .0 sistema inter) nacional que dera estabilidade s relaes internacionais durante cerca de i quarenta anos. Alm disso, esse colapso revelou a precariedade dos sistemas polticos internos apoiados essencialmente em tal estabilidade. As tenses das economias em dificuldades minaram os sistemas polticos das democracias liberais, parlamentares ou presidenciais, que desde a Segunda Guerra Mundial vinham funcionando to bem nos pases capitalistas, assim como minaram todos os sistemas polticos vigentes no Terceiro Mundo. As prprias unidades bsicas da poltica, os Estados-nao territoriais, soberanos e independen tes, inclusive os mais antigos e estveis, viram-se esfacelados pelas foras de uma economia supranacional ou transnacional e pelas foras infranacionais de regies e grupos tnicos secessionistas, alguns dos quais tal a ironia da histria exigiram para si o status anacrnico e irreal de Estados-nao em miniatura. O futuro da poltica era obscuro, mas sua crise, no final do Breve Sculo, patente. Ainda mais bvia que as incertezas da economia e da poltica mundiais era a crise social e moral, refletindo as transformaes ps-dcada de 1950 na vida humana, que tambm encontraram expresso generalizada, embora con fusa, nessas Dcadas de Crise. Foi uma crise das crenas e supostos sobre os quais se apoiava a sociedade moderna desde que os Modernos ganharam sua famosa batalha contra os Antigos, no incio do sculo xvm: uma crise das teo rias racionalistas e humanistas abraadas tanto pelo capitalismo liberal como pelo comunismo e que tomaram possvel a breve mas decisiva aliana dos dois contra o fascismo, que as rejeitava. Um observador conservador alemo, Michael Strmer, disse corretamente, em 1993, que as crenas do Oriente e do Ocidente estavam em questo: H um estranho paralelismo entre Oriente e Ocidente. No Oriente, a doutrina de Estado insistia em que a humanidade era dona de seu destino. Contudo, mesmo ns acreditvamos numa verso menos oficial e extrema do mesmo slogan: a humanidade estava para tornar-se dona de seus destinos. A pretenso de onipotn- ! cia desapareceu absolutamente no Oriente, e s relativamente chez nous mas I os dois lados naufragaram. (De Bergdorf, 98, p. 95) Paradoxalmente, uma era cuja nica pretenso de benefcios para a humanida de se assentava nos enormes triunfos de um progresso material apoiado na cincia e tecnologia encerrou-se numa rejeio destas por grupos substanciais da opinio pblica e pessoas que se pretendiam pensadoras do Ocidente. Contudo, a crise moral no dizia respeito apenas aos supostos da civiliza 20 20. o modema, mas tambm s estruturas histricas das relaes humanas que a sociedade modema herdara de um passado pr-industrial e pr-capitalista e que, agora vemos, haviam possibilitado seu funcionamento. No era a crise de uma forma de organizar sociedades, mas de todas as formas. Os estranhos ape los em favor de uma sociedade civil no especificada, de uma comunida de, eram as vozes de geraes perdidas e deriva. Elas se faziam ouvir numa era em que tais palavras, tendo perdido seus sentidos tradicionais, se haviam tomado frases inspidas. No restava outra maneira de definir identidade dei grupo seno definir os que nele no estavam. Para o poeta T. S. Eliot, assim que o mundo acaba no com uma exploso, mas com uma lamria. O Breve Sculo xx se acabou com os dois.III Como comparar o mundo da dcada de 1990 ao mundo de 1914? Nele viviam 5 ou 6 bilhes de seres humanos, talvez trs vezes mais que na ecloso da Primeira Guerra Mundial, e isso embora no Breve Sculo xx mais homens tivessem sido mortos ou abandonados morte por deciso humana que jamais antes na histria.' Uma estimativa recente das megamortes do sculo mencio na 187 milhes^(Brzezinski, 1993), o equivalente a mais de um em dez da populao mundial total de 1900. Na dcada de 1990 a maioria das pessoas era mais alta e pesada que seus pais, mais bem alimentada e muito mais longeva, embora talvez as catstrofes das dcadas de 1980 e 1990 na frica, na Amrica Latina e na ex-URSS tomem difcil acreditar nisso. O mundo estava incompa ravelmente mais rico que jam ais em sua capacidade de produzir bens e servi os e na interminvel variedade destes. No fora assim, no teria conseguido manter uma populao global muitas vezes maior que jamais antes na histria do mundo. At a dcada de 1980 a maioria das pessoas vivia melhor que seus pais e, nas economias avanadas, melhor que algum dia tinha esperado viver, ou mesmo imaginado possvel viver. Durante algumas dcadas, em meados do sculo, chegou a parecer que se haviam descoberto maneiras de distribuir pelo menos parte dessa enorme riqueza com um certo grau de justia entre os tra balhadores dos pases mais ricos, mas no fim do sculo a desigualdade volta va a prevalecer e tambm entrava maciamente nos ex-pases socialistas, onde antes imperava uma certa igualdade de pobreza. A humanidade era muito mais culta que em 1914. Na verdade, talvez pela primeira vez na histria a maioria dos seres humanos podia ser descrita como alfabetizada, pelo menos nas estatsticas oficiais, embora o significado dessa conquista estivesse muito menos claro no final do sculo do que teria estado em 1914, em vista do fosso enorme talvez crescente entre o mnimo de competncia oficialmente aceito como alfabetizao, muitas vezes descrito como analfabetismo funcio 21 21. nal , e o domnio da leitura e da escrita ainda esperado nas camadas de elite. O mundo estava repleto de uma tecnologia revolucionria em avano constante, baseada em triunfos da cincia natural previsveis em 1914 mas que ^na poca mal haviam comeado e cuja conseqncia poltica mais impressio1 ante talvez fosse a revoluo nos transportes e nas comunicaes, que prati n ca m en te anulou o tempo e a distncia. Era um mundo que podia levar a cada residncia, todos os dias, a qualquer hora, mais informao e diverso do que dispunham os imperadores em 1914. Ele dava condies s pessoas de se fala rem entre si cruzando oceanos e continentes ao toque de alguns botes e, para quase todas as questes prticas, abolia as vantagens culturais da cidade sobre o campo. Por que, ento, o sculo terminara no com uma comemorao desse pro gresso inigualado e maravilhoso, mas num estado de inquietao? Por que, como mostram as epgrafes deste captulo, tantos crebros pensantes o vem em retrospecto sem satisfao, e com certeza sem confiana no futuro? No apenas porque sem dvida ele foi o sculo mais assassino de que temos regis tro, tanto na escala, freqncia e extenso da guerra que o preencheu, mal ces sando por um momento na dcada de 1920, como tambm pelo volume nico das catstrofes humanas que produziu, desde as maiores fomes da histria at o genocdio sistemtico. Ao contrrio do longo sculo xix, que pareceu, e na verdade foi, um perodo de progresso material, intelectual e moral quase inin terrupto, quer dizer, de melhoria nas condies de vida civilizada, houve, a partir de 1914, uma acentuada regresso dos padres ento tidos como nor mais nos pases desenvolvidos e nos ambientes da classe mdia e que todos acreditavam piamente estivessem se espalhando para as regies mais atrasadas e para as camadas menos esclarecidas da populao. Visto que este sculo nos ensinou e continua a ensinar que os seres huma nos podem aprender a viver nas condies mais brutalizadas e teoricamente intolerveis, no fcil apreender a extenso do regresso, por desgraa cada vez mais rpido, ao que nossos ancestrais do sculo xix teriam chamado padres de barbarismo. Esquecemos que o velho revolucionrio Friedrich Engels ficou horrorizado com a exploso de uma bomba republicana irlande sa em W estminster Hall porque, como velho soldado, afirmava que a guer ra se travava contra combatentes e no contra no-combatentes. Esquecemos que os pogroms na Rssia czarista, que, com justia, indignaram a opinio pblica e impeliram milhes de judeus russos para o outro lado do Atlntico entre 1881 e 1914, eram pequenos, quase insignificantes, pelos padres de massacre modernos: os mortos contavam-se s dezenas, no s centenas, e jam ais aos milhes. Esquecemos que no passado uma conveno internacional estabeleceu que as hostilidades da guerra no devem comear sem aviso pr vio e explcito, sob a forma de uma arrazoada declarao de guerra ou de um ultimatum com declarao de guerra condicional, pois quando foi mesmo a22 22. ltima guerra iniciada com tal declarao explcita ou implcita? Ou que aca bou com um tratado de paz formal negociado entre os Estados beligerantes? Durante o sculo xx as guerras tm sido, cada vez mais, travadas contra a eco-| nomia e a infra-estrutura de Estados e contra suas populaes civis. Desde a ' Primeira Guerra M undial, o nmero de baixas civis na guerra tem sido muito f maior que as militares em todos os pases beligerantes, com exceo dos e u a . ; Quantos de ns recordam que em 1914 se tinha por certo que 1 A guerra civilizada, diz-nos o manual escolar, limita-se, at onde possvel, incapacitao das Foras Armadas do inimigo; no fosse assim, a guerra continuaria at o extermnio de uma das partes. H boas razes [...] para que essa prtica se tornasse um costume nos pases da Europa. (Encyclopaedia Britannica, xi ed., 1911, arte: Guerra.) No que ignoremos o ressurgimento da tortura, ou mesmo do assassinato, como parte normal das operaes de segurana pblica nos Estados moder nos, mas provvel que no avaliemos com preciso a dramtica reviravolta implcita, considerando-se a longa era de desenvolvimento jurdico, desde a primeira abolio formal da tortura num pas ocidental, na dcada de 1880, at 1914. E no entanto no podemos comparar o mundo do final do Breve Sculo xx ao mundo de seu incio, em termos da contabilidade histrica de m ais e l menos. Tratava-se de um mundo qualitativamente diferente em pelo menos trs aspectos. ] Primeiro, ele tinha deixado de ser eurocntrico. Trouxera o declnio equeda da Europa, ainda centro inquestionado de poder, riqueza, intelecto e civilizao ocidental quando o sculo comeou. Os europeus e seus descen dentes estavam reduzidos de talvez um tero para no mximo um sexto da humanidade: uma minoria decrescente vivendo em pases que mal reprodu ziam quando reproduziam suas populaes, uma minoria cercada e, na maioria dos casos com algumas brilhantes excees, como os e u a at a dcada de 1990 , erguendo barricadas contra a presso da imigrao das regies pobres. As indstrias, em que a Europa fora pioneira, migravam para outras partes. Os pases do outro lado dos oceanos, que outrora se voltavam para a Europa, agora se voltavam para outras partes. A Austrlia, a Nova Zelndia e at mesmo os bi-ocenicos e u a , viam o futuro no Pacfico, seja l qual for o significado exato disso. As grandes potncias de 1914, todas europias, haviam desaparecido, como a u r s s , herdeira da Rssia czarista, ou sido reduzidas a um status regio nal ou provincial, com a possvel exceo da Alemanha. O prprio esforo para criar uma Comunidade Europia supranacional nica e inventar um senso de identidade europia a ela correspondente, substituindo as velhas lealdades a pases e Estados histricos, demonstrava a profundidade desse declnio. Seria essa uma mudana de grande significado, a no ser para os historia23 23. dores polticos? Talvez no, pois refletia apenas mudanas menores na confi gurao econmica, intelectual e cultural do mundo. Mesmo em 1914, os e u a j eram uma grande economia industrial, o grande pioneiro, modelo e fora propulsora da produo em massa e da cultura de massa que conquistaram o globo durante o Breve Sculo xx, e, apesar de suas muitas peculiaridades, eram a extenso da Europa no alm-mar, enquadrando-se no Velho Continente sob a denominao civilizao ocidental . Quaisquer que fossem suas pers pectivas futuras, os e u a da dcada de 1990 viam o Sculo Americano s suas costas, sua era de ascenso e triunfo. O conjunto dos pases da industrializa o do sculo xix continuava sendo, de longe, a maior concentrao de rique za e poder econmico e cientfico-tecnolgico do globo, alm daquele cujos povos tinham, de longe, o mais alto padro de vida. No fim do sculo isso ainda compensava fartamente a desindustrializao e a mudana da produo para outros continentes. Nessa medida, a impresso de um velho mundo eurocntrico ou ocidental em pleno declnio era superficial. A segunda transformao foi mais significativa. Entre 1914 e o incio da dcada de 1990 o globo foi muito mais, uma unidade operacional nica, como no era e no poderia ter sido em 1914. Na verdade, para muitos propsitos, notadamente em questes econmicas, o globo agora a unidade operacional bsica, e unidades mais velhas como as economias nacionais, definidas pelas polticas de Estados territoriais, esto reduzidas a complicaes das atividades transnacionais. O estgio alcanado na dcada de 1990 na construo da aldeia1 global expresso cunhada na dcada de 1960 (McLuhan, 1962) no pare cer muito adiantado aos observadores de meados do sculo xxi, porm j havia transformado no apenas certas atividades econmicas e tcnicas e as operaes da cincia, como ainda importantes aspectos da vida privada, sobretudo devido inimaginvel acelerao das comunicaes e dos transportes. Talvez a carac-"! , terstica mais impressionante do fim do sculo xx seja a tenso entre esse pro- j. cesso de globalizao cada vez mais acelerado e a incapacidade conjunta das j instituies pblicas e do comportamento coletivo dos seres humanos de se aco-Mas a .implicao da 'tese era que a nica "potncia rival da Rssia*,.ou seja, os E U A ^ t e r i a j J e conter a presso desta por uma resistncia i n f lc x vel, m e s m o q u e el a npfosse comunista. / Por outro lado, do ponto de vista de Moscou, a nica estratgia racional para defender e explorar a vasta, mas frgil, nova posio de potncia interna cional era exatamente a mesma: nenhum acordo. Ningum sabia melhor que Stalin como era fraca a sua mo de jogo. No poderia haver negociaes sobre as posies oferecidas por Roosevelt e Churchill na poca em que o esforo sovitico era essencial para vencer Hitler, e ainda considerado fundamental para derrotar o Japo. A u r s s poderia estar disposta a recuar de qualquer posi o exposta alm da posio fortificada que ela considerava ter sido combina da nas conferncias de cpula de 1943-5, sobretudo em Yalta por exemplo, nas fronteiras de Ir e Turquia em 1945-6 , mas qualquer tentativa de reabrir Yalta s podia ser respondida com uma recusa direta. Na verdade, tomou-se notrio o No do ministro das Relaes Exteriores de Stalin, Molotov, em todas as reunies internacionais depois de Yalta. Os americanos tinham o poder; embora s at certo ponto. At dezembro de 1947 no havia avies para transportar as doze bombas atmicas existentes, nem militares capazes de mont-las (Moisi, 1981, pp. 78-9). A u r s s no o tinha. Washington s abriria mo de alguma coisa em troca de concesses, mas estas eram precisamente o que Moscou no podia se dar o luxo de bancar, mesmo em troca de ajuda eco nmica, extremamente necessria, a qual, de qualquer modo, os americanos no queriam dar-lhe, alegando ter perdido o pedido sovitico de um emprs timo no ps-guerra, feito antes de Yalta. Em suma, enquanto os e u a se preocupavam com o perigo de uma poss vel supremacia mundial sovitica num dado momento futuro, Moscou se preo cupava com a hegemonia de fato dos e u a , ento exercida sobre todas as partes do mundo no ocupadas pelo Exrcito Vermelho. No seria preciso muito para transformar a exausta e empobrecida u r s s numa regio cliente da economia americana, mais forte na poca que todo o resto do mundo junto. A intransi gncia era a ttica lgica. Que pagassem para ver o blefe de Moscou. Contudo, a poltica de intransigncia mtua, e mesmo de permanente rivalidade de poder, no implicava perigo dirio de guerra. As secretarias das Relaes Exteriores do sculo xix, que tinham como certo que os impulsos expansionistas da Rssia czarista deviam ser contidos continuamente, sabiam muito bem que os momentos de confronto aberto eram raros, e as cri ses de guerra mais ainda. Menos ainda intransigncia mtua implica uma pol tica de luta de vida ou morte, ou guerra religiosa. Contudo, dois elementos na situao ajudavam a fazer o confronto passar do reino da razo para o da emo 231 230. o.yComo a u r s s , o s e u a eram uma potncia representando uma ideologia, que a maioria dos americanos sinceramente acreditava ser o modelo para o mundo. Ao contrrio da u r s s , os e u a eram uma democracia. triste, mas deve-se dizer que estes eram provavelmente mais perigosos, y Pois o govemo sovitico, embora tambm demonizasse o antagonista global, no precisava preocupar-se com ganhar votos no Congresso, ou com eleies presidenciais e parlamentares. O govemo americano precisava. Para os dois propsitos, um anticomunismo apocalptico era til, e portanto tenta dor, mesmo para polticos no de todo convencidos de sua prpria retrica ou do tipo do secretrio de Estado da marinha do presidente Tmman, James Forrestal (1882-1949), clinicamente louco o bastante para suicidar-se porque via a chegada dos russos de sua janela no hospital. Um inimigo externo amea ando os e u a no deixava de ser conveniente para governos americanos que haviam concludo, corretamente, que seu pas era agora uma potncia mundial na verdade, de longe a maior e que ainda viam o isolacionismo ou protecionismo defensivo como seu grande obstculo intemo. Se a prpria Amrica no estava segura, no havia como recusar as responsabilidades e recompensas da liderana mundial, como aps a Primeira Guerra Mundial. Mais concretamente, a histeria pblica tomava mais fcil para os presidentes obter de cidados famosos, por sua ojeriza a pagar impostos, as imensas somas necessrias para a poltica americana. E o anticomunismo era genuna e visce ralmente popular num pas construdo sobre o individualismo e a empresa pri vada, e onde a prpria nao se definia em termos exclusivamente ideolgicos (americanismo ) que podiam na prtica conceituar-se como o plo oposto ao comunismo. (Tampouco devemos esquecer o voto dos imigrantes da Europa Oriental sovietizada.) No foi o govemo americano que iniciou o sinistro e irracional frenesi da caa s bruxas anticomunista, mas demagogos exceto isso insignificantes alguns deles, como o notrio senador Joseph McCarthy, nem mesmo particularmente anticomunistas que descobriram o potencial poltico da denncia em massa do inimigo intemo.* O potencial burocrtico j fora h muito descoberto por J. F. Edgard Hoover (1895-1972), o praticamen te irremovvel chefe do Departamento Federal de Investigaes ( f b i ). O que um dos principais arquitetos da Guerra Fria chamou de ataque dos primi tivos (Acheson, 1970, p. 462) facilitava e ao mesmo tempo limitava a polti ca de Washington levando-a a extremos, sobretudo nos anos aps a vitria dos comunistas na China, pela qual Moscou foi naturalmente responsabilizada. Ao mesmo tempo, a exigncia esquizide, feita por polticos Sensveis ao voto, de uma poltica que ao mesmo tempo fizesse retroceder a mar de agresso comunista , poupasse dinheiro e interferisse o mnimo possvel no (*) O nico poltico de verdadeira solidez a surgir do submundo dos caadores de bruxas foi Richard Nixon, o mais antiptico dos presidentes americanos do ps-guerra (1968-74).232 231. conforto dos americanos, comprometeu Washington e, com ela, o resto da aliana, no apenas com uma estratgia voltada mais para as bombas nuclea res que para os homens, como tambm com a sinistra estratgia de retaliao em massa anunciada em 1954. O agressor potencial era ameaado com armas nucleares mesmo no caso de um ataque limitado convencional. Em suma, os e u a viram-se comprometidos com uma posio agressiva, de mnima flexibi lidade ttica. Os dois lados viram-se assim comprometidos com uma insana corrida armamentista para a mtua destruio, e com o tipo de generais e intelectuais nucleares cuja profisso exigia que no percebessem essa insanidade. Os dois tambm se viram comprometidos com o que o presidente em fim de mandato, Eisenhower, militar moderado da velha escola que se via presidindo essa des cida loucura sem ser exatamente contaminado por ela, chamou de comple xo industrial-militar , ou seja, o crescimento cada vez maior de homens e recursos que viviam da preparao da guerra. Mais do que nunca, esse era um interesse estabelecido em tempos de paz estvel entre as potncias. Como era de se esperar, os dois complexos industrial-militares eram estimulados por seus governos a usar sua capacidade excedente para atrair e armar aliados e clientes, e, ao mesmo tempo, conquistar lucrativos mercados de exportao, enquanto reservavam apenas para si os armamentos mais atualizados e, claro, suas armas nucleares. Pois na prtica as superpotncias mantiveram seu mono plio nuclear. Os britnicos conseguiram bombas prprias em 1952, por ironia com o objetivo de afrouxar sua dependncia dos e u a ; o s franceses (cujo arse nal nuclear era na verdade independente dos e u a ) e os chineses na dcada de 1960. Enquanto durou a Guerra Fria, nada disso contou. Nas dcadas de 1970 e 1980, outros pases conseguiram a capacidade de fazer armas nucleares, notadamente Israel, frica do Sul e provavelmente a ndia, mas essa prolife rao nuclear s se tomou um problema internacional srio aps o fim da ordem bipolar de superpotncias em 1989. Assim, quem foi responsveFpela Guerra Fria? Como o Hp.hatp snhrp psta questo foi durante longo, tempo uma partida de tnis entre os que punham_a culpa apenas na u r s s e os dissidentesjjobretudo, deve:se dizer^jimericanos) que culparam basicamente os e u a , tentador juntarmo-nos.aos.mediadoreshistricos que a atribuem ao medo mtuo do confronto que aumentou at os dois campos armados comearem a mobilizar-se sob suas bandeiras.opostas (W cr1993, p. 55). Claro que isso verdade, mas no toda a verdade. Explica o que foi chamado de congelamento dos fronts em 1947-9; a paula tina diviso da Alemanha, de 1947 at a construo do Muro de Berlim em 1961; o fato de os anticomunistas do lado ocidental no conseguirem evitar o completo envolvimento na aliana militar dominada pelos e u a (com exceo da Frana do general De Gaulle); e o fato de o lado oriental no conseguir escapar completa subordinao a Moscou (com exceo do marechal Tito, 233 232. na Iugoslvia). Mas no explica o tom apocalptico da Guerra Fria. Ela se ori ginou na Amrica. Todos os governos europeus ocidentais, com ou sem gran des partidos comunistas, eram empenhadamente anticomunistas, e decididos a proteger-se de um possvel ataque militar sovitico. Nenhum deles teria hesi tado, caso solicitados a escolher entre os e u a e a u r s s , mesmo aqueles que, por histria, poltica ou negociao, estavam comprometidos com a neutralidade. Contudo, a conspirao comunista mundial no era um elemento srio das polticas internas de nenhum dos governos com algum direito a chamar-se de mocracias polticas, pelo menos aps os anos do imediato ps-guerra. Entre as naes democrticas, s nos e u a os presidentes eram eleitos (como John F. Kennedy em 1960) para combater o comunismo, que, em termos de poltica interna, era to insignificante naquele pas quanto o budismo na Irlanda. Se algum introduziu o carter de cruzada na Realpolitik de confronto internacio nal de potncias, e o manteve l, esse foi Washington. Na verdade, como demonstra a retrica de campanha de John F. Kennedy com a clareza da boa oratria, a questo no era a acadmica ameaa de dominao mundial comu nista, mas a manuteno de uma supremacia americana concreta.* Deve-se acrescentar, no entanto, que os governos membros da o t a n , embora longe de satisfeitos com a poltica dos e u a , estavam dispostos a aceitar a supremacia americana como o preo da proteo contra o poderio militar de um sistema poltico antiptico, enquanto este continuasse existindo. Tinham to pouca dis posio a confiar na u r s s quanto WashingtoimEra suma, conteno era a poltica de todos; destruio do comunismo, no.KIIIEmbora o aspecto mais bvio da Guerra Fria fosse o confronto militar e a cada vez mais frentica corrida armamentista no Ocidente, no foi esse o seu grande impacto. As armas nucleares no foram usadas. As potncias nucleares se envolveram em trs grandes guerras (mas no umas contra as outras). Aba lados pela vitria comunista na China, os e u a e seus aliados (disl'aradqs;cumo Naes Unidas) intervieram na Coria cm 1950 para impedir que o regime comunista do Norte daquele pas se estendesse ao Sul. O resultado foi um empate. Fizeram o mesmo, com o mesmo objetivo, no Vietn, e perderam. A u r s s retirou-se do Afeganisto em 1988, aps oito anos nos quais forneceu ajuda militar ao govemo para combater guerrilhas apoiadas pelos americanos (*) Vamos moldar nossa fora e nos tornar os primeiros de novo. No os primeiros se. No os primeiros mas. Mas primeiros e ponto. Quero que o mundo se pergunte no o que o sr. Kruschev est fazendo. Quero que eles se perguntem o que os Estados Unidos esto fazendo (Beschloss, 1991, p. 28).234 233. e abastecidas pelo Paquisto. Em suma, o material caro e de alta tecnologia da competio das superpotncias revelou-se pouco decisivo. A ameaa constan te de guerra produziu movimentos internacionais de paz essencialmente diri gidos contra as armas nucleares, os quais de tempos em tempos se tomaram movimentos de massa em partes da Europa, sendo vistos pelos cruzados da Guerra Fria como armas secretas dos comunistas. Os movimentos pelo desar mamento nuclear tampouco foram decisivos, embora um movimento contra a guerra especfico, o dos jovens americanos contra o seu recrutamento para a Guerra do Vietn (1965-75), se mostrasse mais eficaz. No fim da Guerra Fria, esses movimentos deixaram recordaes de boas causas e algumas curiosas relquias perifricas, como a adoo do logotipo antinuclear pelas contraculturas ps-1968 e um entranhado preconceito entre os ambientalistas contra qual quer tipo de energia nuclear.Muito mais bvias foram as conseqncias polticas da Guerra Fria, j Quase de imediato, ea pTanzu o mundo controlado pelas superpotncias em / dois campos marcadamente divididos. Os governos de unidade antifascista L !a/v que tinham acabado com a guexra.m Jiuropa (exceto, significativamente, os j trs principais Estados beligerantes, u r s s , e u a e Gr-Bretanha) dividiram-seem regimes pr-comunistas e anticomunistas homogneos, em 1947-&-. No ) Ocidente, os comunistas desapareceram dos governos e foram sistematica mente marginalizados na poltica. Os e u a planejaram intervir militarmente se os comunistas vencessem as eleies de 1948 na Itlia. A u r s s fez o mesmo eliminando os no-comunistas de suas democracias populares multipartidrias, da em diante reclassificadas como ditaduras do proletariado , isto , dos partidos comunistas. Para enfrentar os e u a criou-se uma Internacional Comunista curiosamente restrita e eurocntrica (o Cominform, ou Departa mento de Informao Comunista), que foi discretamente dissolvida em 1956, quando as temperaturas internacionais baixaram. O controle direto sovitico l estendeu-se a toda a Europa Oriental, exceto, muit o~criosamcfite, a~Fm l nd ia, | que estava merc dos soviticos c cxclirin de-^etr grrvcm o o forterPHrtTdo j Comunista, em 1948. Permanece obscuro o motivo pelo qual Stalin se absteJ velfe t+nstatar um govemo satlite. Talvez a elevada probabilidade de os fin landeses voltarem a pegar em armas (como fizeram em 1939-40 e 1941-4) o tenha dissuadido, pois ele com certeza no queria correr o risco de entrar numa guerra que podia fugir ao seu controle. Ele tentou, sem xito, impor o contra- le sovitico Iugoslvia de Tito, que em resposta rompeu com Moscou em 1948, sem se juntar ao outro lado. As polticas do bloco comunista foram da em diante previsivelmente monolticas, embora a fragilidade do monolito se tomasse cada vez mais bvia depois de 1956 (ver captulo 16). A poltica dos Estados europeus alinhados com os e u a era menos monocromtica, uma vez que praticamente todos os partidos locais, com exceo dos comunistas, se uniam em sua antipatia aos 235 234. soviticos. Em termos de poltica externa, no importava quem estava no poder. Contudo, os e u a simplificaram as coisas em dois pases ex-inimigos ^-sffusTTapo e Itlia, criando o que eqivalia a um sistema unipartidrio perma| nente. Em Tquio, encorajou a fundao do Partido Liberal-Democrata (1955), j e na Itlia, insistiu na total excluso do partido de oposio natural ao poder, | porque acontecia ser comunista e entregou o pas aos democrata-cristos, japoiados quando a ocasio o exigia por uma srie de partidos nanicos libe rais, republicanos etc. A partir do incio da dcada de 1960, os socialistas, que formavam o nico parido de oposio substancial, entraram na coalizo de /governo, aps desembaraar-se de uma longa aliana com os comunistas de/pois de 1956. A conseqncia nesses dois pases foi a de estabilizar os comu nistas (no Japo, os socialistas) como o maior partido de oposio e instalar um regime de govemo de corrupo institucional em escala to sensacional que, quando finalmente revelada em 1992-3, chocou at mesmo os italianos e japoneses. Govemo e oposio, assim congelados at a imobilidade, desabaI ram com o equilbrio das superpotncias que tinham mantido a existncia deles. I Embora os e u a logo revertessem as polticas reformadoras antimonopolistas que seus assessores rooseveltianos haviam de incio imposto na Ale manha e Japo ocupados, felizmente para a paz de esprito dos aliados dos americanos a guerra eliminara do panorama pblico aceitvel o nacionalsocialismo, o fascismo, o declarado nacionalismo japons e grande parte do setor direitista e nacionalista que compunha o espectro poltico. Portanto, ainda era impossvel mobilizar esses elementos anticomunistas, inquestiona velmente eficazes para a luta do mundo livre contra o totalitarismo , como podiam ser as restantes grandes corporaes alems e o zaibatsu japons.* A base poltica dos governos ocidentais da Guerra Fria ia da esquerda socialdemocrata de antes da guerra direita no nacionalista moderada tambm anterior guerra. A os partidos ligados Igreja Catlica se mostraram teis, pois as credenciais anticomunistas e conservadoras da Igreja no ficavam atrs das de ningum, mas seus partidos democrata-cristos (ver captulo 4) tinham tanto uma slida folha de servios antifascistas quanto um programa social (no socialista). Esses partidos desempenharam, assim, um papel central na poltica ocidental aps 1945, temporariamente na Frana, mais permanente mente na Alemanha, Itlia, Blgica e ustria (ver tambm pp. 277-8). Contudo, o efeito da Guerra Fria foi mais impressionante ait_fffllca ^ internacional do continente europeu que em sua poltica interna. Provocou a ^ / c r i a o da Comunidade Europia , com todos os seus problemas; uma forma jy de organizao sem precedentes, ou seja, um arranjo permanente (ou pelo menos duradouro) para integrar as economias, e em certa medida os sistemas (*) Contudo, ex-fascistas foram sistematicamente usados desde o com eo pelos servios de espionagem e em outras funes longe das vistas do pblico.236 235. legais, de vrios Estados-nao independentes. Inicialmente (1957) formada por seis Estados (Frana, Repblica Federal da Alemanha, Itlia, Pases Bai xos, Blgica e Luxemburgo), ao final do Breve Sculo xx, quando o sistema comeou a balanar, como todos os outros produtos da Guerra Fria, nela j haviam entrado outros seis (Gr-Bretanha, Irlanda, Espanha, Portugal, Dina marca, Grcia), e em teoria ela se comprometia com uma integrao poltica ainda mais estreita, alm da econmica. Isso devia levar a uma unio federada ou confederada permanente da Europar. / A Comunidade , como tantas outras coisas na Europa ps-1945, era ao mesmo tempo a favor e contra os e u a . Ilustra tanto o poder e a ambigidade daquele pas quanto os seus limites; mas tambm mostra a fora dos temores que manteve unida a aliana anti-sovitica. No eram apenas temores em rela o u r s s . Para a Frana, a Alemanha continuava sendo o perigo principal, e o temor de uma potncia gigantesca revivida na Europa Central era comparti lhado, em menor medida, pelos outros Estados europeus que haviam partici pado da guerra ou sido ocupados, todos eles agora trancados dentro da alian a da o t a n tanto com os e u a quanto com uma Alemanha economicamente revigorada e rearmada, embora felizmente dividida. Havia tambm, claro, temores em relao aos e u a , um aliado indispensvel contra a u r s s , mas um aliado suspeito, porque no confivel, sem mencionar que, previsivelmente, ' podia pr os interesses da supremacia americana no mundo acima de tudo mais incluindo os interesses dos seus aliados. No se deve esquecer que em , todos os clculos sobre o mundo do ps-guerra, e em todas as decises do ps- i guerra, a premissa de todos os formuiadores. de polticas cra a prceininnda/ econmica americana (Maier, 1987, p. 125). Felizmente para os aliados dos e u a , a situao da Europa Ocidental em 1946-7 parecia to tensa qnc Warhiflgton.scutiu que o fortalecimento da eco nomia europia e, um pouca, depois, tambm da japonesa, era a prioridade mais urgente, e o Flano Marshall, um projeto macio para a recuperao euro pia, foi lanado, em junho de 1947. Ao contrrio da ajuda anterior, qne fazia claramente parte de uma agressiva diplomacia econmica,..cssv assinui iTmais a lorma .de verbas, que de emprstimos. Mais uma vez, e felizmente para aqueles, p plano americano original para uma economia ps-guerra de livre comrcio, livre converso e livres mercados, dominada pelos e u a , mostrou-se inteiramente irrealista, quanto mais que os desesperadores problemas de paga mento da Europa e do Japo, sedentos de cada dlar cada vez mais escasso, significavam que no haveria perspectiva imediata para liberalizar o comrcio e os pagamentos. Tampouco estavam os e u a em posio de impor aos Estados europeus seu ideal de um plano europeu nico, de preferncia conduzindo a uma nica Europa modelada com base nos e u a , tanto em sua estrutura polti ca quanto em sua florescente economia de livre empresa. Nem os britnicos, que ainda se viam como uma potncia mundial, nem os franceses, que sonha237 236. vam com uma Frana forte e uma Alemanha fraca e dividida, gostavam disso. ^Contudo, para os americanos uma Huropa efetivamente restaurada, parte da aliana militar anti-sovitica que era o complemento lgico do Plano Marshall a Organizao do Tratado do Atlntico Norte ( o t a n ) de 1949 tinha de basear-se realisficamente na fora econmica alem, reforada pelo rearmaf mento do pas.(O melhor que os franceses podiam fazer era e n t r e la a r os cios alemes ocidentais e franceses de tal modo que o conflito entre osjioisvelhos adversrios fosse impossvel.|us franceses, portanto, propuseram sua N prpria verso de unio europia, a ^Comunidade Europia do Carvo e_dolAo (1950), que se transformou numa Comunidade Econmica Europia, 'ou Mercado Comum (1957), depois simplesmente Comunidade Europia , e, a partir de 1993, Unio Europia j O quartel-general era em Bruxelas, mas o ncleo era a unidade franco-germnica. A Comunidade Europia foi estabe^ lecida como uma alternativa ao plano americano de integrao europia. Mais uma vez, o fim da Guerra Fria iria solapar a fundao sobre a qual se haviam erguido a Comunidade Europia e a parceria franco-alem; no menos pelo desequilbrio causado pela reunificao alem de 1990 e os imprevistos pro blemas econmicos que isso trouxe.; Contudo, embora os e u a fossem incapazes de impor em detalhes seus planos poltico-econmicos aos europeus, eram suficientemente fortes para dominar seu comportamento internacional. A poltica da aliana contra a u r s s era dos e u a , e tambm seus planos militares. A Alemanha foi rearmada, os anseios de neutralismo europeu foram firmemente eliminados, e a nica tenta tiva de potncias europias de se empenhar numa poltica mundial indepen dente dos e u a , ou seja, a guerra anglo-francesa de Suez contra o Egito em 1956, foi abortada por presso americana. O mximo que um Estado aliado ou cliente podia permitir-se fazer era recusar a completa integrao na aliana militar, sem na verdade deix-la (como o general De Gaulle). / f E, no entanto, medida que a era da Guerra Fria se estendia, abria-se um /crescente fosso entre a dominao esmagadoramente militar, e portanto polti ca, que Washington exercia na aliana e o enfraquecimento da predominncia d econmica dos e u a . O peso econmico da economia mundial passava ento dos e u a para as economias europia e japonesa, as quais os e u a julgavam ter salvo e reconstrudo (ver captulo 9). Os dlares, to escassos em 1947, haviam fludo para fora dos e u a numa torrente crescente, acelerada sobre tudo na dcada de 1960 pela tendncia americana a financiar o dficit gera do pelos enormes custos de suas atividades militares globais, notadamente a Guerra do Vietn (depois de 1965), e pelo mais ambicioso programa de bemestar social da histria americana. O dlar, moeda-chave da economia mundial do ps-guerra planejada e garantida pelos e u a , enfraqueceu. Em teoria apoiado pelos lingotes de Fort Knox, que abrigava quase trs quartos das reservas tfe ouro do mundo, na prtica consistia sobretudo em dilvios de papel ou moeda 238 237. V contbil mas como a estabilidade do dlar era garantida por sua ligao com determinada quantidade de ouro, os cautelosos europeus, encabeados pelos ultracautelosos franceses de olho no metal, preferiram trocar papel potencialmente desvalorizado por slidos lingotes. O ouro, portanto, rolou do Fort Knox, o preo aumentando com o crescimento da demanda. Durante a maior parte da dcada de 1960, a estabilidade do dlar, e com ela a do sistema de pagamento internacional, no mais se baseava nas reservas dos e u a , mas na disposio dos bancos centrais europeus sob presso americana de no trocar seus dlares por ouro, e entrar num Pool do Ouro para estabilizar o preo do metal no mercado. Isso no durou. Em 1968 o Pool do Ouro , esgo tado, dissolveu-se. D efa cto , acabou a conversibilidade do dlar. Foi formal mente abandonada em agosto de 1971, e com ela a estabilidade do sistema de pagamentos internacional, e chegou ao fim o seu controle pelos e u a o u por qualquer outra economia nacional. ^ Quando a Guerra Fria terminou, restava to pouco da hegemonia econ mica americana que mesmo a hegemonia militar no mais podia ser financia da com os recursos do prprio pas. A Guerra do Golfo, em 1991, contra o Iraque, uma operao essencialmente americana, foi paga, com boa ou m vontade, pelos outros pases que apoiaram Washington. Foi uma das raras guerras com as quais uma grande potncia na verdade teve lucro. Felizmente para todos envolvidos, com exceo dos infelizes habitantes do Iraque, acabou ^ em poucos dias.IVEm determinado momento do incio da dcada de 1960, a Guerra Fria pareceu dar alguns passos hesitantes em direo sanidade. Os anos perigo sos de 1947 at os dramticos fatos da Guerra da Coria (1950-3) haviam pas sado sem uma exploso mundial. O mesmo acontecera com os abalos ssmi cos que sacudiram o bloco sovitico aps a morte de Stalin (1953), sobretudo em meados da dcada de 1950. Assim, longe de ter de lutar contra a crise social, os pases da Europa Ocidental comearam a observar que estavam na verdade vivendo uma era de inesperada e disseminada prosperidade, que ser discutida com mais amplitude no prximo captulo. No jargo tradicional dos diplomatas da velha guarda, o afrouxamento da tenso era a dtente. A pala vra tomou-se ento familiar. Ela aparecera primeiro nos ltimos anos da dcada de 1950, quando N. S. Kruschev estabeleceu sua supremacia na u r s s aps alarmes e excurses psStalin (1958-64). Esse admirvel diamante bruto, um crente na reforma e na coexistncia pacfica, que alis esvaziou os campos de concentrao de Stalin, dominou o cenrio internacional por poucos anos seguintes. Foi talvez o nico 239 238. campons a governar um grande Estado. Contudo, a dtente primeiro teve de sobreviver ao que pareceu um perodo extraordinariamente tenso de confron tos entre o gosto de Kruschev pelo blefe e os gestos polticos de John F. Kennedy (1960-3), o mais superestimado presidente americano do sculo. As duas superpotncias foram assim levadas a duas operaes de alto risco num momento em que difcil lembrar o Ocidente capitalista sentia estar per dendo terreno para as economias comunistas, que haviam crescido mais rapi damente na dcada de 1950. No acabavam elas de demonstrar uma (breve) superioridade tecnolgica em relao aos e u a com o sensacional triunfo dos satlites e cosmonautas soviticos? Alm disso, no tinha o comunismo para surpresa de todos acabado de triunfar em Cuba, um pas a apenas algu mas dezenas de milhas da Flrida (ver captulo 15)? Por outro lado, a u r s s se preocupava no s com a retrica ambgua, porm muitas vezes apenas belicosa demais, de Washington, mas com o rom pimento fundamental da China, que agora acusava Moscou de amolecer dian te do capitalismo, forando assim o pacfico Kruschev a uma posio pblica mais inflexvel em relao ao Ocidente. Ao mesmo tempo, a sbita acelerao da descolonizao e de revoluo no Terceiro Mundo (ver captulos 7, 12 e 15) parecia favorecer os soviticos. Os e u a , nervosos mas confiantes, enfrentavam assim uma u r s s confiante mas nervosa por Berlim, pelo Congo, por Cuba. Na verdade, o resultado lquido dessa fase de ameaas e provocaes mtuas foi um sistema internacional relativamente estabilizado, e um acordo tcito das duas superpotncias para no assustar uma outra e ao mundo, sim bolizado pela instalao da linha quente telefnica que ento (1963) passou a ligar a Casa Branca com o Kremlin. O Muro de Berlim (1961) fechou a lti ma fronteira indefinida entre Oriente e Ocidente na Europa. Os e u a aceitaram uma Cuba comunista em sua soleira. As pequenas chamas da guerra de liber tao e de guerrilha acendidas pela Revoluo Cubana na Amrica Latina, e pela onda de descolonizao na frica, no se transformaram em incndios na floresta, mas pareceram extinguir-se (ver captulo 15). Kennedy foi assassina do em 1963; Kruschev foi mandado para casa em 1964 pelo establishment sovitico, que preferia uma viso menos impetuosa da poltica. Os anos 60 e 70 na verdade testemunharam algumas medidas significativas para controlar e limitar as armas nucleares: tratados de proibio de testes, tentativas de deter a proliferao nuclear (aceitas pelos que j tinham armas nucleares ou jamais esperaram t-las, mas no pelos que estavam construindo seus prprios arse nais nucleares, como a China, a Frana e Israel), um Tratado de Limitao de Armas Estratgicas ( s a l t ) entre os e u a e a u r s s , e mesmo alguns acordos sobre os Msseis Antibalsticos ( a b m s ) de cada lado. Mais objetivamente, o comrcio entre os e u a e a u r s s , politicamente estrangulado de ambos os lados por tanto tempo, comeou a florescer medida que os anos 60 desembocavam nos 70. As perspectivas pareciam boas. 240 * 239. V No eram.lEm meados da dcada de 1970, o mundo entrou no que se cha mou de Segunda Guerra Fria (ver captulo 15). Coincidiu com uma grande mudana na economia mundial, o perodo de crise a longo prazo que caracte rizaria as duas dcadas a partir de 1973, e que atingiu o clmax no incio da dcada de 1980 (captulo 14). Contudo, de incio a mudana no clima econ mico no foi muito notada pelos participantes do jogo das superpotncias, a no ser por um sbito salto nos preos da energia provocado pelo bem-sucedido golpe do cartel de produtores de petrleo, a o p e p , um dos vrios aconteci mentos que pareceram sugerir um enfraquecimento no domnio internacional dos e u a . A s duas superpotncias estavam razoavelmente satisfeitas com a soli dez de suas economias. Os e u a foram visivelmente menos afetados pela nova crise econmica que a Europa; a u r s s os deuses tomam primeiro compla centes aqueles a quem desejam destruir achava que tudo ia a seu favor. Leonid Brejnev, sucessor de Kruschev, que presidiu os vinte anos que os refor madores soviticos chamariam de era da estagnao , parecia ter algum moti vo de otimismo, no mnimo porque a crise do petrleo de 1973 acabara de qua druplicar o valor de mercado das gigantescas novas jazidas de petrleo e gs natural que haviam sido descobertas na u r s s desde meados da dcada de 1960. Contudo, economia parte, dois acontecimentos inter-relacionados pare ciam ento alterar o equilbrio das duas superpotncias. O primeiro era ajTrc, sumida derrota e desestabilizao nos e u a , quando esse pas se lanou numa |Ynova grande guerra. A Guerra do Vietn desmoralizou e dm dIunacn-em J , meio a cenas TeIcvisaaslle motins e manifestaes cntr gcfrT destruiu um presidente americano; levou a uma derrota e retirada universlmente pre/ vistas aps dez anos (1965-75); e, o que interessa mais, demonstrou o isolajncnto dos e u a . Pois nenhum de seus aliados europeus mandou sequer contin gentes nominais de tropas pIr:IWjntlSlpSTfOT Por qs e u a foram se envolver numa guerra condenada, contra a qual seus aliados, os neutros e at a u r s s o s tinham avisado,* quase impossvel compreender, a no ser como parte daquela densa nuvem de incompreenso, confuso e parania den tro da qual os principais atores da Guerra Fria tateavam o caminho. E, se o Vietn no bastasse para demonstrar o isolamento dos e u a , a guer ra do Yom Kipur de 1973 entre Israel que os americanos permitiram tomarse seu mais estreito aliado no Oriente Mdio e as foras de Egito e Sria, abastecidas pelos soviticos, mostrou isso de forma mais evidente. Pois quan do Israel, duramente pressionado, com poucos avies e munio, apelou aos e u a para mandar suprimentos depressa, os aliados europeus, com a nica (*) Se vocs querem, vo em frente e combatam nas selvas do Vietn. Os franceses luta ram l durante sete anos e mesmo assim tiveram de acabar saindo. Talvez os americanos possam agentar mais um pouco, mas vo acabar tendo de sair tambm. Kruschev a Dean Rusk em 1961 (Beschloss, 1991, p. 649).241 240. exceo do ltimo bastio do fascismo pr-guerra, Portugal, se recusaram at mesmo a permitir o uso das bases areas americanas em seu territrio para esse fim. (Os suprimentos chegaram a Israel via Aores.) Os e u a acredita vam no se sabe exatamente por qu que seus interesses vitais estavam em causa. Na verdade, o secretrio de Estado americano, Henry Kissinger (cujo presidente, Richard Nixon, se achava empenhado inutilmente em defen der-se de seu impeachment), decretou o primeiro alerta nuclear desde a crise dos msseis cubanos, uma ao tpica, em sua brutal insinceridade, desse hbil e cnico operador. Isso no abalou os aliados dos e u a , muito mais preocupa dos com o fornecimento de petrleo do Oriente Mdio do que em apoiar uma manobra local americana que Washington dizia, sem convencer, ser essencial para a luta global contra o comunismo. Pois, atravs da o p e p , o s Estados ra bes do Oriente Mdio tinham feito o possvel para impedir o apoio a Israel, cortando fornecimentos de petrleo e ameaando com embargos. Ao fazer isso, descobriram sua capacidade de multiplicar o preo do petrleo no mundo. E os ministrios das Relaes Exteriores do mundo todo no podiam deixar de observar que os todo-poderosos eua no faziam nem podiam fazer nada imediatamente a respeito. O Vietn e o Oriente Mdio enfraqueceram os e u a , embora isso no alte rasse o equilbrio global das superpotncias, ou a natureza do confronto nos vrios teatros regionais da Guerra Fria. Contudo, entre 1974 e 1979, uma nova onda de revolues surgiu numa grande parte do globo (ver captulo 15). Esta, a terceira rodada dessas revoltas no Breve Sculo xx, na verdade parecia que podia mudar o equilbrio das superpotncias desfavoravelmente aos e u a , pois vrios regimes na frica, sia e mesmo no prprio solo das Amricas eram atrados para o lado sovitico e mais concretamente forneciam u r s s bases militares, e sobretudo navais, fora de seu ncleo interior. Foi a coinci dncia dessa terceira onda de revoluo mundial com o fracasso pblico e a derrota americanos que produziu a Segunda Guerra Fria. Mas foi tambm a coincidncia desses dois fatos com o otimismo e auto-satisfao da u r s s de Brejnev na dcada de 1970 que a tomou certa^Essa fase de conflito se deu por uma combinao entre guerras locais no Terceiro Mundo, travadas indireta mente pelos e u a , que agora evitavam o erro de empenhar suas prprias foras cometido no Vietn, e uma extraordinria acelerao da corrida armamentista nuclear; as primeiras menos evidentemente irracionais que a ltima, j) Como a situao na Europa estava nitidamente estabilizada nem mesmo a revoluo portuguesa de 1974 e o fim do regime de Franco na Espa nha a mudaram e as linhas tinham sido to nitidamente traadas, na verda de as duas superpotncias haviam transferido sua competio para o Terceiro Mundo. A dtente na Europa dera aos e u a de Nixon (1968-74) e Kissinger a oportunidade de faturar dois grandes sucessos: a expulso dos soviticos do Egito e, muito mais significativo, o recrutamento informal da China para a 242 241. / aliana anti-sovitica. A nova onda de revolues, todas provavelmente contra os regimes conservadores dos quais os e u a se haviam feito os defensores glo bais, deu u r s s a oportunidade de recuperar a iniciativa. medida que o esboroante imprio africano de Portugal (Angola, Moambique, Guin-Cabo Verde) passava para o domnio comunista e a revoluo que derrubou o impe rador da Etipia se voltava para o Leste; medida que a velozmente desenvol vida marinha sovitica passava a contar com grandes novas bases nos dois lados do oceano ndico; medida que o x do Ir caa, um clima beirando a histeria foi tomando conta do pblico americano e do debate privado. De que outro modo (a no ser, em parte, por uma ignorncia assombrosa da topogra fia asitica) vamos explicar a viso americana, apresentada a srio na poca, de que a entrada de tropas soviticas no Afeganisto assinalava o primeiro passo de um avano sovitico que logo chegaria ao oceano ndico e ao golfo Prsico?* (Ver pp. 463-4) A injustificada auto-satisfao dos soviticos estimulou esse clima som brio. Muito antes de os propagandistas americanos explicarem, postfacto , que os e u a haviam decidido ganhar a Guerra Fria levando seu antagonista ban carrota, o regime de Brejnev comeara a conduzir a si prprio falnci,' mer gulhando num programa de armamentos que elevou os gastos com defesa numa taxa anual de 4% a 5% (em termos reais) durante vinte anos aps 1964. A corrida fora sem sentido, embora desse u r s s a satisfao de poder afirmar que chegara paridade eom os Em lanadores de msseis em