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EDUARDO KENEDY IVO DA COSTA ROSÁRIO MARIANGELA RIOS ANA BEATRIZ ARENA BETHANIA MARIANI LUCÍLIA SOUSA ROMÃO VANISE MEDEIROS SILMARA DELA SILVA ORGANIZAÇÃO ROBERTO PAES 1ª edição rio de janeiro 2013

Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso entremeios e fronteiras

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EDUARDO KENEDYIVO DA COSTA ROSÁRIOMARIANGELA RIOSANA BEATRIZ ARENABETHANIA MARIANILUCÍLIA SOUSA ROMÃOVANISE MEDEIROSSILMARA DELA SILVA

ORGANIZAÇÃO ROBERTO PAES

1ª edição

rio de janeiro 2013

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Conselho editorial bethania sampaio correia mariani, magda ventura,

mariangela rios de oliveira, paula caleffi, roberto paes de carvalho ramos,

rosaura de barros baião

Organizador do livro roberto paes de carvalho ramos

Autores dos originais eduardo kenedy nunes areas (capítulo 1), ivo da costa

rosário (capítulo 2), mariangela rios de oliveira e ana beatriz arena (capítulo

3), bethania sampaio correia mariani e lucília maria sousa romão (capítulo 4),

vanise gomes de medeiros e silmara cristina dela da silva (capítulos 5 e 6)

Projeto gráfico e desenho didático paulo vitor fernandes bastos

Redação final e desenho didático roberto paes de carvalho ramos

Revisão linguística aderbal torres bezerra

Com a colaboração de daniela ferreira reis, flavia oliveira teófilo da silva,

jarcélen thaís teixeira ribeiro

Site de apoio ao projeto editorial andré renato fernandes lage, danielle

vilar goulart dos santos, rafael de freitas alvarez jourdan, tainara oliveira

da rocha e thiago lopes amaral.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou

transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e

gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão

escrita da Editora. Copyright seses, 2013.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

l755 Língua, uso e discurso: entremeios e fronteiras

Roberto Paes [organizador].

— Rio de Janeiro: Editora Universidade Estácio de Sá, 2013.

128 p

isbn: 978-85-60923-05-2

1. Língua portuguesa, estudo e ensino 2. Linguagem 3. Texto

4. Discurso 5. Comunicação escrita I. Título.

cdd 469.09

Diretoria de Ensino – Fábrica de Conhecimento

Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa

Rio Comprido – Rio de Janeiro – rj – cep 20261-063

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Sumário

Prefácio 7

1. Linguagem, sociedade e cognição 9

A linguagem humana 10Linguagem e língua 12Língua = fenômeno cognitivo e sociocultural 15Aquisição da linguagem 17Formas e funções linguísticas 21Arbitrariedade 24Iconicidade 25A linguagem humana em ação 27A enunciação 30Função referencial x metáfora 32Para concluir 33

2. Língua e variação linguística 35

Papel e status dos interlocutores na comunidade linguística 36Propósitos da língua: exemplificando pela modalização 37Transformações na trajetória da língua: mudança e variação 38Variação linguística 39Por que a mesma língua é, também, diferente? 40Explorando mais o tema: variações dialetais 42

Variação diatópica (dialetal) 42Variação diastrática (sociocultural) 42

Língua padrão e língua culta 44Língua culta 47E as outras formas de uso? 48Preconceito e poder no uso da língua 49

3. Linguagem, unidade e diversidade 53

Língua vernacular 55Propriedades do texto falado 57Propriedades do texto falado: a fragmentação 58Propriedades do texto falado: a situacionalidade 59Propriedades do texto falado: a reiteração 61Propriedades do texto escrito 62Propriedades comuns da fala e da escrita 65

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4. Gênero, tipologia e sentido 69

O gênero discursivo 72Do gênero para o funcionamento do discurso 75Tipologia discursiva 77

Discurso lúdico 77Discurso polêmico 79Discurso autoritário 79

Situações de oralidade 80Homofonia 81Das tramas orais para a análise da conversação 82Linguagem em contextos midiáticos: o caso do blog 85Blog e jornalismo 86

5. Texto: coesão e coerência 89

Referência e referenciação 91Da referência para a coesão 93Coesão referencial endofórica 95Coesão por elipse 96Coesão sequencial 97Organização da estrutura textual 99Argumentação e texto argumentativo 101Argumentação e ironia 104Intertextualidade 105

6. Texto, discurso e interpretação 109

Do texto ao discurso 113Retomando o conceito: condições de produção 116O não-dito e os sentidos 121O não-dito e o silêncio 124O dizer e o já-dito 125Sujeito e sentido 127

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7

Prefácio

Durante muito tempo, atrevo-me a dizer que estivemos trabalhando a língua, as situações de lingua-

gem, de forma quase “estática”, enfatizando somente um aspecto da língua: o aspecto formal ou a for-

ma de prestígio, como hoje é denominada essa formalidade da língua. Essa denominação, na verdade,

parece ser a mais adequada, já que a referida forma é extremamente considerada e serve como determi-

nante de um “bom falar” e de “saber se comunicar”. Será que é assim?

Diversas atividades nos mostram a língua sendo utilizada de forma extremamente versátil, não só em

relação a vocabulário específico e à forma de falar de cada região mas também em relação às situações

com as quais nos deparamos. Bem, estamos falando de atividades de linguagem que, como tais, pressu-

põem a existência de “sujeitos” para se efetivarem. Logo, estamos falando de interações sociais, troca de

mensagens, e os sujeitos que atuam nesses cenários são diferentes, porque têm formações diferentes,

histórias diferentes, experiências diferentes. Isso nos dá enormes possibilidades de trocarmos mensa-

gens de várias maneiras, o que não significa que, necessariamente, teremos comunicações superiores a

outras. Claro que podemos, sim, ter comunicações mais claras, mais organizadas que outras.

Na busca de melhor entendimento dessa questão, diria que a consciência da necessidade de ade-

quação das mensagens funciona como fator de fundamental importância para o bom andamento da

interação. Melhor dizendo, cada situação necessita de adequação da linguagem, o que inclui forma-

lidade, informalidade e semiformalidade. Essa imagem fica mais clara quando falamos de festas: al-

gumas exigem roupas a rigor, outras, como festas ou reuniões com amigos, jantares ou almoços com

familiares, por exemplo, permitem roupas e cores diferentes. Enfim, para cada situação, concordamos

que há uma vestimenta adequada. Pois bem, o mesmo se dá com a organização de nosso discurso, de

modo que adquirir o aspecto formal da língua também faz parte das habilidades do falante.

Dito isso, podemos anunciar o objetivo deste livro: focalizar a linguagem em movimento, dando ên-

fase à formalidade e à semiformalidade através de várias possibilidades de organização do discurso e

práticas textuais, sem desconsiderar o potencial linguístico de cada um.

Mas como fazer isso? Trabalhando com a habilidade de leitura e a produção escrita, refletindo sobre

a relação dos elementos que compõem o texto, pois este é tomado como ponto de partida por ser lugar

de interação, de interpretação e produção de mensagens, onde há produção de sentido. Entendemos que

trabalhar atividades de linguagem focalizando a língua em movimento potencializará as habilidades dos

leitores, enfatizará um comportamento maduro em relação ao uso linguístico, podendo, com isso, au-

xiliar na tarefa de desfazer preconceitos e alargar a noção de língua — algo muito maior que, essencial-

mente, as regras gramaticais. Estas, juntamente com contextos socioculturais que integram a noção de

mundo de cada um, constituem esse fenômeno que possibilita diversas formas de comunicação.

Celebramos, juntamente com os autores que fizeram parte do início dessa conquista, o nasci-

mento de um livro que pretende conduzir à reflexão de assuntos urgentes em termos de lingua-

gem, mesmo considerando que alguns assuntos ou conceitos, pela própria dificuldade de trata-

mento que trazem, não são muito acessíveis.

Se a “leveza” com que pretendemos tratar tais assuntos for percebida e digerida por você, tere-

mos dado um grande passo.

rosaura de barros baião

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Linguagem, sociedade e cognição

eduardo kenedy

1

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10 • capítulo 1

A linguagem humana

A linguagem humana é um fenômeno impressionante. Ela se faz pre-

sente em quase todos os momentos da vida de uma pessoa: desde o

seu nascimento, quando recebe um nome e é inserida em uma comu-

nidade de fala, até a maturidade, quando transita diariamente pelos

complexos sistemas de comunicação e interação social modernos.

Concretizada em uma das milhares de línguas hoje existentes no

mundo, a linguagem humana nos surpreende porque é capaz de fazer

muito a partir de pouco.

A posse da linguagem, com seu ilimitado poder expressivo, faculta

aos humanos a organização e a veiculação de pensamentos, ideias, con-

ceitos, valores e, dessa forma, insere cada indivíduo que domina (pelo

menos) uma língua no dinâmico e intenso fluxo comunicativo das socie-

dades contemporâneas. Com efeito, os poucos sonsdalinguagem oral

podem ser substituídos por algumas letras em um sistema de escrita ou

por centenas de sinais em uma línguadesurdos sem que, com isso, o

poder mobilizador da linguagem seja significativamente alterado. Seja

na fala, na escrita ou na sinalização, a experiência humana se faz rica e

ilimitada com a linguagem e pela linguagem.

Para que você tome consciência da complexidade social e cogni-

tiva subjacente a um simples ato da linguagem humana, pense no

seguinte exemplo:

Um homem caminha distraído pela cidade, aproveitando os momentos que ainda lhe

sobram de seu horário de almoço. Subitamente, ele se dá conta de que pode estar

atrasado para o retorno ao trabalho e diz para si mesmo, com aquela voz interna e

silenciosa que, muitas vezes, ordena os nossos pensamentos: “Devo estar atrasado!”.

Com essa impressão, o homem se dirige a um transeunte e pergunta:

— Com licença. O senhor pode me informar as horas?

O transeunte, por sua vez, compreende o estado mental de seu interlocutor –

sua intenção de ser informado a respeito do horário – e busca o comportamento

adequado para a situação: olha para o relógio de pulso e dele retira a informação

necessária, que é codificada na frase-resposta:

— São doze e trinta!

A aparente banalidade de um evento como esse esconde sob si

um fenômeno extraordinário: a interação entre a mente humana e a

CURIOSIDADE

CURIOSIDADE

Língua de surdos:

O Brasil possui a Língua Brasileira de Sinais (libras). Ao contrário do que muitos pensam, a libras não é uma gestualização da língua portuguesa; na verdade, é uma língua à parte. Tanto é que, em Portugal, a língua de sinais é diferente da brasileira.

Sons da linguagem:

É com base em apenas três ou quatro dúzias de sons que nós, falantes de uma língua natural qualquer – como o português, por exemplo –, consegui-mos dominar dezenas de milhares de palavras, as quais, quando combinadas entre si de maneira ordenada, permi-tem-nos a produção e a compreensão de um número potencialmente infinito de frases e textos.

EXEMPLO

Linguagem, sociedade e cognição1

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capítulo 1 • 11

realidade sociocultural na tarefa de produzir e compreender estru-

turas e significados linguísticos. Podemos não nos dar conta, mas,

na comunicação humana, o indivíduo que fala executa trabalho so-

ciocognitivo muito complexo. Ele deve codificar os seus pensamen-

tos e as suas ideias em palavras, que, por sua vez, devem ser combi-

nadas entre si em frases, as quais, por fim, são pronunciadas para

um interlocutor em um dado contexto discursivo.

Da mesma forma, a tarefa do indivíduo que compreende é também

engenhosa: ele deve decodificar os sons da fala que lhe são dirigidos

no ato do discurso, de modo a identificar palavras e frases para, assim,

conseguir interpretar os pensamentos e as ideias de seu colocutor.

Ora, podemos perguntar: como os humanos fazem isso? De que maneira essa

sequência de codificação e decodificação de formas e significados linguísticos

ocorre? Pense bem, pois as respostas para essas perguntas não são nada

fáceis ou simples.

Lembre-se de que as estruturas das frases e dos textos nas línguas

naturais são, geralmente, muito complexas. Mesmo se analisássemos

uma frase simples, como “O senhor pode me informar as horas?”,

encontraríamos nela regras de ordenação de palavras, concordância,

regência, seleção de pronomes… Enfim, verificaríamos a existência

de uma suntuosa maquinaria gramatical a serviço da comunicação e

da interação social.

Entretanto, a despeito de toda essa complexidade, nós, huma-

nos, somos capazes de produzir e compreender frases e textos com

extrema facilidade. Em uma conversa qualquer, produzimos e com-

preendemos dezenas, centenas, milhares de enunciados, um após

o outro, em uma velocidade incrivelmente rápida, muitas vezes me-

dida em milésimos de segundo.

Em circunstâncias normais, fazemos isso de maneira inconsciente e sem esforço

cognitivo aparente. Ora, como somos capazes disso? De que maneira nossas

mentes se tornam aptas a estruturar nossos pensamentos em frases e textos

codificados em sons, socialmente compartilhados?

Ao formularmos essas perguntas, acreditamos ter despertado em

você a consciência do complexo mundo sociocognitivo que se escon-

de sob cada uso cotidiano que fazemos da linguagem. De fato, espe-

ramos ter também aguçado o seu interesse pelos estudos linguísti-

cos. Você deve saber que encontrar respostas para tais perguntas é

tarefa das ciênciasdalinguagem.

REFLEXÃO

REFLEXÃO

CURIOSIDADE

Ciências da linguagem:

Essas ciências vêm alcançando um extraordinário desenvolvimento ao longo das últimas décadas e, assim, muitos segredos a respeito da estrutura e do funcionamento das línguas naturais estão sendo rapidamente revelados. Algumas dessas descobertas serão apresentadas a você neste livro.

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12 • capítulo 1

Neste capítulo inicial, vamos aprender alguns conceitos funda-

mentais e indispensáveis ao estudo da linguagem. Começaremos

pelas noções de linguagem e língua. Os termos parecem se referir a

conceitos aproximados, mas teremos uma seção inteira para enten-

dermos que se trata, na verdade, de duas realidades diferentes. Com

base no que estudaremos sobre a noção de língua, seguiremos para

a seção em que diferenciaremos a dimensão cognitiva da dimensão

sociocultural da linguagem. Aprenderemos que uma língua sempre

existe simultaneamente no interior do indivíduo que a fala e no seio

da sociedade em que esse indivíduo se encontra inserido, sendo, por

isso, um fenômeno sociocognitivo (ou cognitivossocial).

Logo em seguida, trataremos do fantástico fenômeno da aquisição

da linguagem. Vamos analisar alguns aspectos da árdua tarefa das crian-

ças, que, de maneira inconsciente e compulsória, devem criar em suas

mentes uma versão do sistema linguístico que a elas se revela indireta-

mente na fala das pessoas que as circundam.

Também teremos, neste capítulo, uma seção dedicada às diferenças

entre as formas e as funções linguísticas. Estudaremos para que serve a

linguagem humana e como ela dá conta de seus diversos ofícios.

Por fim, apresentaremos os principais fatos imbricados no uso da

linguagem pelos indivíduos adultos que, em tempo real, precisam pro-

duzir e compreender frases e textos, codificando e decodificando men-

talmente informações nas diversas formas de comunicação e expres-

são que se tornam possíveis pela língua. Esperamos que você tenha

apreciado esse roteiro, pois nossa viagem pelo mundo da linguagem

está apenas começando!

Linguagem e língua

FerdinanddeSaussure foi um importante linguista franco-suíço que

ainda hoje é considerado o pai das modernas ciências da linguagem.

Foi Saussure quem formulou, explicitamente e com grande clareza,

uma importante distinção entre aquilo que compreendemos por

linguagem e por língua. Vamos entender do que se trata.

De acordo com Saussure, “a língua não se confunde com a linguagem,

pois é somente uma parte determinada e essencial dela” (1916: p.17).

O que o mestre genebrino nos ensina nessa passagem é que a lingua-

gem é um fenômeno muito mais geral e abrangente do que uma lín-

gua. Comparada com a linguagem, diz-nos Saussure, uma língua pos-

sui um caráter muito mais específico.

Na verdade, alguns animais chegam a possuir sistemas de lin-

guagem impressionantemente complexos, como é o caso das abe-

lhas. As abelhas possuem um complicado sistema de dança em zi-

guezagueado que permite a indicação da direção e da distância em

que se encontra uma fonte de néctar que tenha sido descoberta por

AUTOR

CURIOSIDADE

Ferdinand de Saussure:

Saussure (1857-1913) é considerado o “pai da Linguística”.

Nascido na Suíça, seu pensamento exerceu grande influência na Litera-tura e nos Estudos Culturais, princi-palmente para o desenvolvimento do Estruturalismo no século xx.

Linguagem:

Para entender melhor isso, pensemos no seguinte: você acha que animais não humanos, como cachorros, gatos, maca-cos, pássaros etc., possuem algum tipo de linguagem? A resposta é um tanto óbvia: é claro que sim. A maior parte dos animais possui algum sistema de co-municação que permite a expressão de seus estados internos e a interação com o seu ambiente. Embora as mensagens que cães e gatos possam transmitir se-jam um tanto limitadas (com seus ruídos característicos, com a posição do corpo, do rabo e com a emissão de certos odores), não há dúvidas de que se trata de um tipo de linguagem que permite a comunicação tanto entre os membros daquelas espécies animais quanto entre eles e os seres humanos.

Por exemplo, se você possui um cão ou gatinho, certamente é capaz de perceber o tipo de latido (ou miado) que ele produz quando está com fome, com dor, quando se sente em perigo ou está alegre.

Page 13: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 1 • 13

alguma delas. As abelhas que, durante alguns minutos, observam a

abelhinha que localizou o néctar dançar para lá e para cá, chacoa-

lhando o seu corpo de maneira frenética, são capazes de “entender”

a informação que está sendo transmitida e, logo ao fim da dança,

rumam para a fonte do néctar com bastante precisão. Ora, esse

exemplo ilustra, claramente, a existência de uma “linguagem dos

animais”, ou, mais precisamente, a linguagem específica de cada

espécie animal em particular.

Você já deve ter entendido que a linguagem é um conceito bas-

tante abrangente, que se refere a todo e qualquer sistema de comu-

nicação e expressão. É por isso que podemos falar em “linguagem

dos animais”, “linguagem das cores”, “linguagem dos cheiros”, “lin-

guagem corporal”, “linguagem da arte” (incluindo a “linguagem da

dança”, “linguagem da moda”) etc.

Pois bem, se linguagem é qualquer sistema de comunicação e ex-

pressão, então o que é uma língua? Com efeito, língua é um tipo espe-

cífico de linguagem, como o próprio Saussure já havia dito. Afinal, uma

língua também é um sistema de comunicação e expressão e, assim, é

uma forma de linguagem. Acontece que a língua é uma forma singular

de linguagem, com características próprias que a distinguem de todas

as demais linguagens animais ou humanas não verbais.

Você deve estar se perguntando que características são essas.

Trata-se de dois fatores sociocognitivos muito importantes. Veja-

mos cada um deles a seguir.

O primeiro fator que distingue uma língua humana qualquer –

como o português, o inglês ou o xavante – dos demais sistemas de lin-

guagem é a existência de um léxico.

No léxico, encontramos uma coleção de formas (significantes) que

são associadas, sistematicamente, a certos conteúdos (significados).

Assim, por exemplo, em português, possuímos o significante [kaza]

(representado na escrita pela grafia “casa”) que será sempre associa-

do ao significado [tipo de moradia] todas as vezes que usarmos essa

palavra. Também temos no léxico de nossa língua o significante [a],

sufixo presente ao fim da forma [menina], ao qual está associado o

significado [pessoa do sexo feminino]. Da mesma maneira, temos o

significante da expressão [dar uma mãozinha] que se associa, em lín-

gua portuguesa, ao significado [oferecer ajuda].

O número total de palavras e expressões existentes em um léxico

é bastante variável de língua para língua. Pois bem, nos sistemas ge-

rais de linguagem, não existe nada parecido com o léxico das línguas

humanas. Afinal, quantos tipos de latido, miado ou canto podem ser

discriminados pelos cães, pelos gatos ou pelos pássaros? Quantas

“palavras” poderíamos transmitir com a linguagem corporal, com a

linguagem dos cheiros ou pela dança? Ainda que consigamos catalo-

gar um grande número delas, não encontraríamos algo tão organiza-

do, sistemático e vasto como o léxico de uma língua.

CONCEITO

CURIOSIDADE

Léxico:

O léxico pode ser compreendido como o conjunto de palavras e expressões que são socialmente compartilhadas pelos falantes de uma dada língua.

Número:

A título de ilustração, saiba que um falante escolarizado do português do Brasil domina, pelo menos, 50.000 itens, sem contar as formas flexionadas das palavras (como as diversas expressões do verbo “estudar”: estudo, estuda, estudamos, estudava, estudarei, estudaria etc.), mas os dicionários da língua portuguesa chegam a registrar de 200.000 a 400.000 palavras. Trata-se de números bem impressionantes, não?

Page 14: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

14 • capítulo 1

O segundo fator que distingue uma língua dos demais tipos de

linguagem é o mais importante: as línguas humanas possuem um

sistemacombinatório, que chamamos gramática.

O interessante é que, se o número de itens existentes em um léxico

qualquer já é consideravelmente grande, ele não é quase nada quando

pensamos no número de expres-

sões que o sistema combinatório

de uma língua pode gerar utili-

zando suas regras computacio-

nais. De fato, o número de frases

e textos que podemos construir

em uma língua ao combinarmos

léxico e gramática é ilimitado.

Se compararmos as línguas

humanas com os sistemas mais gerais de linguagem (humanos ou

animais), poderemos deduzir que a principal diferença entre eles

é a recursividade – também denominada infinitude, criatividade

ou produtividade –, que existe somente nas línguas.

Neste momento, você talvez tenha curiosidade de saber se existe

algum tipo animal não humano que possua língua (e não apenas

linguagem). Muito bem, os cientistas ainda não conseguiram regis-

trar nenhuma espécie de vida, além dos humanos, que use algum

sistema de comunicação remotamente parecido com uma língua

natural. Por tudo o que até hoje sabemos, somente nós, humanos,

conseguimos usar um sistema de linguagem com recursividade.

É por isso que as línguas parecem ser um verdadeiro patrimônio da humanidade,

algo que nos distingue, claramente, de todas as formas de vida conhecidas pela

ciência. A posse da linguagem, na forma de uma língua, é de fato uma das carac-

terísticas mais distintivas e mais importantes do homo sapiens.

Não obstante, existem muitos cientistas que vêm tentando ensi-

nar uma língua humana a animais inteligentes, como os chimpanzés

e algumas espécies de papagaios e de golfinhos.

No entanto, alegar que macacos ou papagaios são realmente

capazes de aprender e usar uma língua humana é um flagrante e

descomunal exagero, o qual se motiva muito mais por questões

ideológicas (por exemplo, conferir maior importância ao aprendi-

zado sociocultural em oposição à natureza biológica humana na

aquisição de conhecimento) do que linguísticas.

Quando falamos uma língua, somos capazes de produzir e compreender um número infinito de frases e textos.

CONCEITO

CONCEITO

Sistema combinatório:

Esse sistema é capaz de combinar entre si, de maneira ordenada e contro-lada por regras, as unidades do léxico, de modo a construir expressões, como as frases e os textos. Por exemplo, o léxico do português possui unida-des como “casa”, “bonita”, “comprar”, “você”, “mais”, porém, é a gramática dessa língua que permitirá a criação de expressões complexas como “que casa mais bonita você comprou!”.

Recursividade:

A recursividade é justamente a capa-cidade de criar um número infinito de frases e textos com base no número finito de palavras existentes no léxico. A recursividade emerge, portanto, da combinação entre os dois compo-nentes fundamentais de uma língua: o léxico e o sistema combinatório

(gramática).

RESUMO

Page 15: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 1 • 15

No link abaixo, você verá um exemplo que registra as tentativas de ensino de

línguas entre espécies.

Você provavelmente ficará encantado com as proezas linguísticas desse animal

raríssimo e genial. Mas acreditamos que não ficará convencido de que ele, de fato,

“aprendeu” a usar uma língua e que demonstra domínio de um léxico e de um sis-

tema combinatório. O máximo que podemos dizer é que esse adorável bichinho é

capaz de aprender, após intensos anos de treinamento, um sistema de linguagem

bastante complexo e avançado, inspirado no léxico das línguas humanas – algo

fantástico que, por si só, já é merecedor de destaque científico.

Até o momento, com efeito, a linguagem, na forma de um sistema

combinatório que opera recursivamente sobre um léxico, é um fenôme-

no identificado somente na espécie humana e ainda irreproduzível nos

sistemas de inteligência artificial desta segunda década do século xxi.

Muito bem, agora que você já sabe distinguir linguagem e língua,

fique atento às expressões “linguagem” ou “linguagem humana”. Mui-

tas vezes, essas expressões querem dizer “língua” (léxico e gramática)

e não apenas “linguagem” (qualquer sistema de comunicação). É bem

verdade que podemos usar esses termos de maneira um tanto livre e

mais ou menos metafórica, no dia a dia ou mesmo ao longo de um livro

mais especializado – como, de fato, já o fizemos e tornaremos a fazer

aqui –, mas, sempre que necessário, devemos distinguir tais conceitos.

Língua = fenômeno cognitivo e sociocultural

As línguas humanas são uma autêntica maravilha do mundo natu-

ral e sociocultural. Talvez você já se tenha dado conta de que, desde

que estejam inseridos em um ambiente de interação social, todos

os indivíduos saudáveis, de todos os tempos da história e de todas

as culturas humanas, desenvolvem, de maneira natural e espontâ-

nea, a habilidade de produzir e compreender oralmente palavras,

frases e textos na língua de seu ambiente.

Por exemplo, uma criança que nasça no Brasil desenvolverá, já

nos primeiros anos de vida, a capacidadelinguística de produção e

MULTIMÍDIA

Alex Papagaio cinza africano

que conseguia comunicar-se

usando várias palavras do inglês.

Capacidade linguística:

Essa capacidade permanecerá na mente da criança no curso de sua vida saudável e será modificada, na adoles-cência e na vida adulta, de acordo com suas experiências particulares.

CURIOSIDADE

Page 16: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

16 • capítulo 1

compreensão de enunciados em português, em uma de suas moda-

lidades socioculturais – se não o português, então, uma das línguas

minoritárias do país (por exemplo, uma língua indígena) –, que será,

assim, a língua ambiente dessa criança.

Como maravilha do mundo natural e sociocultural, o fenôme-

no das línguashumanas comporta necessariamente duas dimen-

sões: uma dimensão individual e mental e uma dimensão coleti-

va e sociocultural.

O influente linguista norte-americano Noam Chomsky formu-

lou dois importantes conceitos para dar conta da diferença entre

a dimensão individual e psicológica das línguas e a sua dimensão

social e cultural. Chomsky propôs que a dimensão mental e cog-

nitiva do fenômeno da linguagem seja sintetizada pelo conceito

de Língua-i, em que “i” significa interna, individual. Já a dimensão

sociocultural das línguas é denominada por Chomsky como Lín-

gua-e, em que “e” quer dizer externa, extensional. Vejamos melhor

esses conceitos.

A noção de Língua-e corresponde, grosso modo, ao que comu-

mente se interpreta como língua ou idioma no senso comum. Por

exemplo, o português é uma Língua-e no sentido de que é esse fenô-

meno sociocultural, histórico e político que compreende um con-

junto de sons, palavras, regras gramaticais e um sistema de escrita

que, juntamente, permitem a comunicação e a interação entre os

seus falantes. Trata-se de um fenômeno supraindividual, na verdade,

exterior ao indivíduo.

A noção de Língua-i, por sua vez, corresponde ao conjunto

de habilidades mentais que permitem ao indivíduo a produção

e a compreensão de um número potencialmente infinito de ex-

pressões na sua língua ambiente. Uma Língua-i diz respeito,

portanto, àquilo existente no interior da mente das pessoas, que

lhes faculta a aquisição e o uso cotidiano de uma língua natural.

Nesse sentido, entende-se que uma língua seja parte do sistema

cognitivo humano.

Uma Língua-i é uma faculdade psicológica ou, por assim dizer, um

órgão mental. Todo indivíduo humano sem deficiências neuropsicoló-

gicas graves é capaz de manipular, em sua língua, diversos recursos

gramaticais e textuais que veiculam significados do indivíduo para o

mundo exterior e desse para a consciência do indivíduo. Essa compe-

tência cognitiva para a manipulação das estruturas e dos significados

da linguagem é individual e inconsciente. É a ela que nos referimos

com o conceito de Língua-i.

Às vezes, quando pensamos sobre a linguagem humana, precisa-

mos ter clareza se estamos discutindo aspectos cognitivos ou aspec-

tos socioculturais da língua – ou mesmo se estamos considerando

ambos os aspectos em interação. Fique, portanto, sempre atento a

esse particular.

CONCEITO

Línguas humanas:

Sempre que ocorre o fenômeno lin-

guagem humana, temos, de um lado, o indivíduo particular que possui a capaci-dade mental de produzir e compreender expressões linguísticas e, do outro, a sociedade em que esse indivíduo se insere, a qual lhe forneceu não só os contextos de uso da linguagem em interação com outros humanos mas também os sons e as palavras necessá-rios à expressão verbal.

AUTOR

Noam Chomsky:

Avram Noam Chomsky (1928) é um linguista americano, conside-rado uma das figuras

acadêmicas mais proeminentes (durante 12 anos, foi o cientista vivo mais citado em trabalhos científicos no mundo). É conhecido como o pai da Linguística Moderna, especialmente por sua Teoria da Gramática Universal.

Page 17: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 1 • 17

É muito importante que você compreenda que uma língua é, ao mesmo tempo, um

fenômeno cognitivo e individual (uma Língua-i) e um fenômeno coletivo e sociocul-

tural (uma Língua-e). Embora nem sempre usemos os termos chomskianos, essa

dualidade está lá inevitavelmente todas as vezes em que falamos sobre as línguas.

Aquisição da linguagem

Para que você compreenda a dramática situação sociocognitiva em

que se encontra um bebê na fase de aquisição da linguagem, vamos

liberar a imaginação com a seguinte história fantástica:

Suponha que você seja abduzido por alienígenas. Você acordaria em uma galáxia

distante, cercado de criaturas diferentes, cujos comportamentos você não com-

preende. Apesar de toda a estranheza inicial, não lhe seria difícil notar que tais

criaturas possuem uma espécie de orifício em sua extremidade superior (algo

como uma boca), de onde certos sons são regularmente emitidos.

Com um pouco de observação, você consegue perceber que esses estra-

nhos seres parecem se comportar de alguma maneira relacionada aos sons que

trocam entre si. Por exemplo, você vê um ser alto emitindo sequências de sons

enquanto um baixinho o observa. Ao final da produção de sons, o baixinho se

desloca no espaço, toma um objeto para si e o leva até o altão, como se tivesse

cumprido um pedido ou uma ordem.

Para você, parecerá coerente concluir que os sons compartilhados entre es-

ses alienígenas sejam uma espécie de sistema de comunicação e, para conseguir

descobrir o que aconteceu consigo, onde está, quem são essas criaturas etc., você

terá de aprender a usar esse sistema. Tal tarefa não será nada fácil, pois você não

contará com nenhum professor de “alienígena para terráqueos”, nenhum livro ou

curso preparatório e, além disso, o aparente sistema de comunicação usado por

aquelas criaturas não é semelhante a nenhum outro que você já tenha visto antes...

Se você conseguiu compreender o quão dramática seria essa situa-

ção, está apto a entender que a aquisição da linguagem pelos bebês e

pelas crianças é um autêntico milagre do mundo biocultural. Note bem:

os bebês chegam a um mundo completamente desconhecido, retirados

que foram do aconchegante útero materno. Esse mundo é povoado por

seres estranhos ao bebê (os seres humanos) cujo comportamento pare-

ce estar estreitamente relacionado aos sons que todos trocam entre si.

Tais sons mais parecem ao bebê uma grande confusão, um continuum

de ruídos quase indecifráveis. Afinal, como um bebê poderia identificar,

no fluxo da fala humana, onde um som termina e o outro começa?

Idioma:

Quando dizemos que o russo é a língua da Rússia ou que o chinês é a língua da China, entendemos língua como esse fenômeno desincorporado dos falantes, a Língua-e. Da mesma forma, essa língua se refere a um fenômeno cuja existência é externa às pessoas e, nesse caso, do qual elas devem se apropriar: as línguas do ambiente.

Uma criança nascida no Paraguai pro-vavelmente aprenderá a falar espanhol e guarani, ou seja, as línguas do ambiente.

Bebês:

Já ao nascer, os bebês parecem ser muito espertos e, para eles, não é difícil deduzir que os sons emitidos pelas cria-turas que o circundam constituem, na verdade, um sistema de comunicação.

CURIOSIDADE

CURIOSIDADE

EXEMPLO

RESUMO

Page 18: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

18 • capítulo 1

Talvez tenha sido em razão disso que o famoso psicólogo de Har-

vard, o canadense StevenPinker, denominou tal fenômeno como instin-

to para a linguagem: um bebê humano rapidamente “compreende” que

precisa dominar esse sistema para descobrir o que os seres ao seu redor

dizem e também para que ele próprio possa dizer alguma coisa e comu-

nicar-se com as outras pessoas.

Mas bebês e crianças estão, em grande parte, quase sozinhos no

interior de suas mentes durante a odisseia pela descoberta e pelo do-

mínio da língua do seu ambiente. Eles não possuem um professor

particular de “língua humana para bebês recém-nascidos” e, o que é

mais grave, o seu cérebro é ainda um protocérebro, ou seja, apenas

um rascunho do potente processador de informações que é o cérebro

de um indivíduo maduro.

Usamos a palavra “milagre” para descrever a aquisição da lingua-

gem pelos bebês e pelas crianças porque, apesar de todas as dificul-

dades que descrevemos, os pequenos humanos conseguem dominar

a língua de seu ambiente, para a compreensão e a produção da lin-

guagem, com extrema eficiência e em um intervalo de tempo incrivel-

mente pequeno, que não ultrapassa três ou quatros anos.

As crianças pequenas sequer parecem fazer esforço cognitivo

para adquirir a sua língua materna. De fato, a aquisição da lingua-

gem é muito mais algo, que simplesmente, acontece com os bebês e

com as crianças – e não algo que elas façam deliberadamente com o

seu pequeno cérebro em formação.

A par de ser um fenômeno sociocognitivo extraordinário, a aquisição da língua

do ambiente (ou das línguas do ambiente, no caso das comunidades bilíngues ou

multilíngues) é um dos eventos mais importantes na vida de um ser humano. Esse

fenômeno é, ao mesmo tempo, a porta de entrada para as relações sociais huma-

nas, que são quase sempre mediadas pela linguagem, e a janela para o aperfei-

çoamento cognitivo individual, uma vez que grande parte da cognição humana se

utiliza da linguagem como instrumento de desenvolvimento e de complexificação.

Na verdade, o que chamamos de aquisição da linguagem é um fenô-

meno duplo que envolve a aquisição de dois diferentes tipos de habili-

dades sociocognitivas. Vejamos isso com mais detalhes.

Um tipo particular de aquisição da linguagem é aquele que denomina-

mos aquisição em sentido amplo ou aquisição da linguagem lato sensu. Em

seu sentido amplo, adquirir linguagem significa apropriar-se das habilida-

des de comunicação, expressão e interação social. Esse tipo de aquisição

demanda dos bebês e das crianças a absorção dos aspectos mais gerais

da linguagem, tais como a interação sociocomunicativa, a organização de

conceitos e de pensamentos, e envolve, também, o desenvolvimento das

noções de autoconsciência e de individualidade nas relações humanas.

AUTOR

Steven Pinker:

Steven Arthur Pinker nasceu em Montreal (1954), é linguista e psicólogo da Universi-

dade de Harvard. Escreve sobre lingua-gem e ciências cognitivas e foi nomeado uma das 100 pessoas mais influentes pela revista Times.

RESUMO

Page 19: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 1 • 19

O outro tipo de aquisição da linguagem é muito mais específico e,

por isso mesmo, denomina-se aquisição em sentido restrito ou aquisição

da linguagem stricto sensu. Em seu sentido restrito, adquirir linguagem

significa apropriar-se do léxico e do sistema combinatório existentes na

língua do ambiente.

Esse tipo de aquisição demanda dos bebês e das crianças a habi-

lidade de discriminação perceptual e de articulação intencional de

toda a maquinaria gramatical necessária ao funcionamento da lín-

gua. Na aquisição stricto sensu, a criança adquire, de fato, o aparato

linguístico formal que estará a serviço das interações sociais e da or-

ganização cognitiva do indivíduo em desenvolvimento.

Se você já entendeu a diferença entre aquisição da linguagem

lato sensu e stricto sensu, podemos, agora, falar um pouco mais so-

bre a aquisição em sentido restrito.

Um dos fatos mais intrigantes a respeito do processo de aquisição

do léxico e do sistema combinatório da língua do ambiente é que ele

parece ser universal. As fases pelas quais passam os bebês e as crian-

ças durante a aquisição stricto sensu são muito semelhantes em todas

as culturas do mundo, seja qual for a língua do ambiente e o nível de

inteligência geral da criança. Isso quer dizer que todas as crianças

parecem atravessar as mesmas etapas nos mesmos estágios de de-

senvolvimento biológico, desde o nascimento até o domínio comple-

to da língua, estejam onde estiverem, em qualquer classe social e sob

qualquer tipo de cultura.

Não obstante, o grande salto qualitativo na produção linguística

dos bebês ocorre aos 12 meses, quando eles já são capazes de produ-

zir suas primeiras palavras reconhecíveis como tais. Essas são, na ver-

dade, mais do que simplesmente “palavras”, pois sempre assumem o

valor de uma frase completa inserida em um contexto discursivo. In-

dependente da língua do ambiente, as primeiras palavras produzidas

por uma criança são sempre monossilábicas e seguem uma estrutura

[consoante + vogal]. Em pouco tempo, essa estrutura vai tornando-se

cada vez mais complexa e caminha em direção à complexidade exis-

tente na fala adulta.

Por exemplo, uma criança brasileira pode dizer algo como “bó” para significar uma

frase inteira, como “olhe, a bola”, conforme o contexto permita compreender. Pou-

cos meses depois, “bó” ganhará complexidade fonológica e tomará a forma con-

vencional de “bola”. O mesmo fenômeno pode ser observado com as centenas

de outras palavras que as crianças adquirem durante essa fase, que os linguistas

nomeiam de fase holofrástica.

Com pouco menos de 24 meses, as crianças já atingem a fase de

duas palavras (também chamada de fase sintagmática). Nessa etapa de

Universal:

Na aquisição da linguagem lato sensu, a criança adquire, na verda-de, os fundamentos da interação entre os humanos: os valores e as ações imbricados nos usos da linguagem, a própria noção de si, a percepção do(s) outro(s), os modos de interagir social-mente e assim por diante.

Já ao nascer, todas as crianças nor-mais balbuciam no ritmo da sua língua ambiente. Na verdade, algumas pesqui-sas recentes descobriram que o choro de bebês recém-nascidos transcorre conforme o ritmo e a melodia da língua que a circunda (Wermke et al., 2011). Esses fatos parecem indicar que a aquisição da linguagem tem início ain-da no útero materno, quando aspectos sonoros da língua do ambiente (como o ritmo, a entoação e o acento) já pare-cem ser discriminados pelo feto.

CURIOSIDADE

Seu bebê chora em que língua?

Roberto Lent – ufrj

MULTIMÍDIA

EXEMPLO

Page 20: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

20 • capítulo 1

seu desenvolvimento linguístico, frases com estruturas do tipo sujei-

to e predicado semelhantes às dos adultos começam a ser produzidas

pelos bebês. São frases como “qué papá”, “mais colinho”, “meia pa-

pai” e “banho não”. O interessante é que os enunciados produzidos

pelos bebês durante a fase sintagmática não são apenas uma combi-

nação entre duas palavras soltas. Pelo contrário, tal como ocorre na

fase holofrástica, essas palavras também assumem o valor de um ato

comunicativo completo, cuja interpretação é dependente do contex-

to interacional e comunicativo.

Por volta dos 30 meses de vida, as crianças já conseguem criar

frases com extensão ilimitada, compostas por três, quatro, seis,

nove, dez palavras... Interessantemente, ao longo dessa fase, cha-

mada de fase telegráfica, artigos, preposições, conjunções e pro-

nomes estão ainda ausentes na fala infantil. Com efeito, até o ter-

ceiro ano de vida, as palavras que as crianças inserem em frases e

textos são sempre itens de conteúdoreferencial, como substantivos,

adjetivos e verbos.

É possível dizer que, por volta dos 4 anos de vida, a língua que uma

criança domina para a produção e para a compreensão da linguagem

é indistinguível da língua de um adulto. As únicas diferenças, é claro,

dizem respeito aos aspectos linguísticos que envolvem letramento,

escolarização e certas regras de comportamento social que se desen-

volvem posteriormente, na adolescência e na vida adulta.

Conteúdo referencial:

As partículas gramaticais (como a preposição, por exemplo), que pos-suem conteúdo puramente formal, só emergem na fala das crianças, de modo consistente, a partir dos 36 meses de vida – embora haja intensas variações individuais sem causa aparente regis-tradas pelos cientistas.

CURIOSIDADEAQ

UISI

ÇÃO

DA LI

NGUA

GEM

PRIMEIROS MESES

DE 12 A 24 MESES

DE 24 A 36 MESES

1) Na fase inicial, a criança se comunica pelo choro (dor, fome, frio etc.);2) 6 semanas – choros diferenciados e sons guturais/primitivos, aparecem as primeiras vogais;3) 18 semanas – aparecem as primeiras consoantes (p, b, k, g) e o balbucio;4) Até os 8 meses o balbucio se caracteriza pelo dobramento de sílabas (“mama”, p. ex.) e pela imitação de sons produzidos por ele e por adultos.

1) Começa a utilizar as primeiras palavras, ainda sem o mesmo formato das pronunciadas por adultos (“papá”, p. ex.);2) Reconhece nomes de alguns objetos, compreende ordens simples;3) Vocabulário passa de 50 palavras, a aquisição de novas é diária;4) Começa a produzir frases curtas (“qué papá”, p. ex.);5) Adapta as palavras aos sons que conhece (como “tapéu” para “chapéu”, p. ex.).

1) Uso constante de linguagem telegráfica;2) Começa a utilizar partículas gramaticais (artigo, preposição etc.);3) Forte expansão do vocabulário;4) Começa a distinguir singular/plural, masculino/feminino;5) Produz todos os fonemas;6) Toma consciência do ritmo de fala, entonação (frases interrogativas, p. ex.).

Page 21: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 1 • 21

Infelizmente, parece exis-

tir um fim para o período da

aquisição da linguagem. Isto

é, os humanos não podem ad-

quirir a língua do ambiente

tão rapidamente e sem esfor-

ço em qualquer momento de

sua vida, da infância à velhi-

ce. O neurocientista alemão

Eric Lenneberg denominou

período crítico (ou idade críti-

ca) a fase de desenvolvimento

físico e cognitivo humano no

limite da qual a aquisição da

linguagem deve acontecer.

Há muitas discussões

sobre qual seria o fim des-

sa fase, mas, como existem

muitas variações individuais no desenvolvimento humano, não é pos-

sível defini-lo com precisão. A maioria dos estudiosos aponta a puber-

dade, por volta dos 12 ou 13 anos, como o momento em que “a janela

automática” para a aquisição da linguagem se fecha.

A partir de então, a aquisição da linguagem não é mais possível, e

tudo o que podemos fazer para dominar uma (nova) língua é aprendê-la

por meio de estudos formais em escolas ou cursos de idioma. A linha

divisora entre aquisição e aprendizado é justamente a idade crítica.

Formas e funções linguísticas

Muito bem, já sabemos diferenciar linguagem e língua, compreende-

mos as dimensões cognitiva e sociocultural de uma língua natural e te-

mos noção da pequena epopeia que cada ser humano atravessa, em ten-

ra infância, ao longo da aquisição da(s) língua(s) de seu ambiente. Mas e

se perguntassem a você para que serve uma língua (como o português),

qual seria a sua resposta? Muito provavelmente, você diria algo como

"para permitir a comunicação entre as pessoas". Em essência, tal res-

posta está correta. Contudo, a pergunta é mais complexa do que parece,

de tal modo que é preciso esmiuçá-la um pouco mais. Façamos isso.

A questão paraqueserveumalíngua pressupõe dois conceitos fun-

damentais: (1º) as línguas possuem um conjunto de formas e (2º) cada

uma dessas formas “serve” para algum fim, isto é, cada forma linguísti-

ca possui uma dada função ou um conjunto de funções. As formas exis-

tentes em uma língua podem ser também denominadas estrutura.

Quando estudamos linguística e falamos dos aspectos formais de

uma língua, estamos fazendo referência exatamente a essa aparato

O conceito de aquisição opõe-se ao de aprendizado porque a aquisição da linguagem ocorre na infância de maneira espontânea, natural e mesmo involuntária, enquanto o aprendizado de línguas estrangeiras demanda do adolescente e do adulto esforço consciente e instrução mais ou menos formal.

AUTOR

Eric Lenneberg:

Eric Heinz Lenneberg (1921-1975), alemão, foi um linguista e neurocientista pionei-

ro nos estudos de aquisição da lingua-gem e psicologia cognitiva, em especial do inatismo. Curiosamente, residiu no Brasil durante sua adolescência, quando sua família fugia do nazismo.

CONCEITO

Estrutura:

Trata-se da superfície ou do meio concreto, material, pelo qual uma língua se realiza nos atos de fala humanos. Por exemplo, uma palavra (como “casa”) e uma estrutura sintática (como “esta é minha casa”) são ilustrações de formas que usamos quando produzimos e com-preendemos enunciados em uma língua.

o automóvel derrapou

Det N

SN SV

V

F

Page 22: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

22 • capítulo 1

estrutural que precisamos utilizar para que a língua tome vida em um

ato linguístico qualquer. Por outro lado, sabemos que as formas de

uma língua não existem por si mesmas. Com efeito, a razão de ser de

cada forma linguística é desempenhar determinada função.

Para que você entenda melhor a dualidade entre forma e função,

veja o quadro a seguir:

OCORRÊNCIA FORMA

FONÉTICA

PROSÓDIA

VOZ VERBAL

FORMAÇÃO DE PALAVRAS

FUNÇÃO

a) Ex.: forma [s]

b) Ex.: forma [f]

c) Ex.: forma [m]

a) Ascendente

b) Descendente

Acréscimo de sufixo

diminutivo

Ex.: [casa], [casinha]

a) Voz ativa

Ex.: “João cometeu erros”

b) Voz passiva

Ex.: “Erros foram

cometidos”

Contraste na significação

a) [sorte]

b) [forte]

c) [morte]

a) Formular pergunta

“João saiu?”

b) Formular declaração

“João saiu!”

a) Demonstrar afeto

b) Demonstrar desprezo

a) Destacar o

responsável

b) Esconder o

responsável

Uma forma linguística (um som, uma entonação, um

sufixo, uma voz verbal etc.) é a maneira pela qual uma

dada função se realiza materialmente na língua.

Se você compreendeu o que são formas e funções linguísticas, tal-

vez possa, agora, repensar a sua resposta à questão para que serve

umalíngua(comooportuguês)? Na verdade, as formas existentes em

uma língua se prestam a inúmeras funções. Não é possível descre-

ver todas elas neste capítulo, mas podemos dizer a você que, em sua

maioria, as funções a que se destinam as formas linguísticas são emi-

nentemente comunicativas.

É por isso que importantes estudiosos, como o já citado Steven

Pinker, acreditam que as línguas “servem” para a comunicação huma-

na. Não obstante, cientistas não menos ilustres, como o também já men-

cionado Noam Chomsky, um dos linguistas mais influentes de todos os

tempos, destacam outras funções linguísticas que são tão importantes

CURIOSIDADE

Função:

O escritor Graciliano Ramos (1892-1953) compreendeu isso perfeitamente ao

afirmar que “A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”. No caso, “o dizer da palavra” é justamente a sua função. Em outras palavras, uma forma linguística não existe senão para provocar algum efeito de significado ou de sentido, isto é, uma forma não existe senão pela sua função.

Page 23: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 1 • 23

ou ainda mais vitais do que a comunicação, tais como a organização do

pensamento e a criação do conhecimento individual.

Isso quer dizer que, ainda que a comunicação possa ser a primei-

ra e mais fundamental

função das línguas, não

podemos desprezar as

outras funções, tais como

a metacognitiva, isto é, a

função de organização do

pensamento, e a instru-

mental, ou seja, a função

de adquirir e organizar

outros tipos de cognição,

como o conhecimento ma-

temático, o conhecimento

sobre a História, o conhecimento sobre as relações sociais etc.

Atento à natureza comunicativa das línguas, Karl Bühler foi um

dos primeiros a tentar sintetizar, de maneira esquemática, as corre-

lações entre linguagem e comunicação. Foi ele que destacou que os

usos da linguagem pressupõem (1) um emissor, (2) uma mensagem e

(3) um destinatário.

Esse modelo tripartido de comunicação se tornou mais complexo na

análise do linguista russo RomanJakobson, que introduziu as noções de

(4) referente, de (5) canal comunicativo e de (6) código linguístico.

É desse modelo de Bühler e Jakobson que se derivam as famosas

funções da linguagem, que são amplamente estudadas no ensino es-

colar: (1) a “função emotiva”, em que o emissor da mensagem se des-

taca; (2) a “função poética”, em que a própria mensagem transmitida

é destacada; (3) a “função conativa”, na qual o destinatário da mensa-

gem assume a função central; (4) a “função referencial”, em que o re-

ferente é o foco da comunicação; (5) a “função fática”, em que o canal

comunicativo é meramente testado e (6) a “função metalinguística”,

em que se estabelece quando é o próprio código linguístico (a língua) o

fator de destaque na comunicação.

Na realidade, as funções linguísticas, entendidas como as funções que determi-

nadas formas podem desempenhar nos usos da língua, são muito mais nume-

rosas do que essas seis. Todavia, tal modelo parece ser um bom caminho para

começarmos a entender as funções comunicativas e expressivas que as formas

da linguagem humana podem desempenhar.

Se você for uma pessoa curiosa, talvez tenha pensado: será que exis-

te alguma relação natural entre determinada forma e sua respectiva

função? Ou será que formas e funções linguísticas são associadas de

De fato, muitas vezes, nós, humanos, usamos a língua internamente, em voz alta ou em silêncio, como se falássemos com o nosso próprio eu – e isso, é claro, não pode ser considerado literalmente comunicação.

AUTOR

AUTOR

Karl Bühler:

Karl Bühler (1879-1963), linguista e psicólogo alemão, sistematizou as

funções da linguagem tomando como ponto de partida a representação – característica, por excelência, da língua.

Roman Jakobson:

Roman Osipovich Jakobson (1896-1982) foi um pensador rus-so que se tornou um

dos mais renomados linguistas de todos os tempos, cujos conceitos ainda são usados e pesquisados. Jakobson esteve no Brasil nos anos 1970.

RESUMO

Page 24: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

24 • capítulo 1

uma maneira um tanto imprevisível que precisam ser memorizadas

pelos falantes de determinada comunidade? Boa pergunta.

Na verdade, esse é um questionamento milenar que remonta à

antiga Grécia clássica. Os filósofos gregos que se dedicavam ao es-

tudo da linguagem dividiam-se, basicamente, entre os analogistas e

os anomalistas. Em termos muito simples, os analogistas afirmavam

que as formas da linguagem eram análogas às suas funções e era so-

mente em razão da passagem do tempo que, para as novas gerações

de falantes, a analogia entre forma e função deixava de ser percebida.

Por seu turno, os anomalistas sustentavam que as relações entre

forma e função sempre foram totalmente acidentais e improvisadas,

um verdadeiro acordo social tacitamente estabelecido entre os falan-

tes de uma língua humana. Contemporaneamente, a controvérsia

entre analogistas e anomalistas é reanalisada na oposição iconicida-

de versus arbitrariedade. Vejamos o que é isso.

Arbitrariedade

Dizer que uma forma está arbitrariamente associada a uma função signi-

fica assumir que não é possível deduzir espontaneamente a que função

determinada forma se presta. Sendo assim, torna-se preciso aprender e

memorizar, caso a caso, a correspondência entre cada forma e sua respec-

tiva função em uma dada língua, tal como apregoavam os anomalistas.

A Escola de Atenas é uma das mais famosas pinturas do renascentista italiano Rafael e representa a Academia de Platão. Foi pintada entre 1509 e 1510 sob encomenda do Vaticano.

IMAGEM

Page 25: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 1 • 25

Um bom exemplo disso é a relação existente entre o significante

(forma) e o significado (conteúdo) de cada uma das palavras do léxico

do português. Só sabemos que a forma [kaza] (que escrevemos “casa”)

deve ser associada ao conteúdo [tipo de moradia] porque aprendemos

isso durante a aquisição da linguagem. Mas a relação entre forma e

conteúdo nessa palavra é totalmente arbitrária, isto é, não é natural ou

motivada por algum princípio lógico.

Isso tanto é verdade que, em outras línguas, o mesmo significa-

do (conteúdo) pode ser codificado por outro significante (forma), tal

como o termo “house”, que em inglês é a forma correspondente do

conteúdo [tipo de moradia].

Por exemplo, a aparência física

de uma “casa” não se assemelha

em nada à forma [kaza], em portu-

guês, ou à forma [hauz], em inglês.

Com efeito, a língua portuguesa,

no curso de sua história, poderia

ter escolhido arbitrariamente qual-

quer outra forma para expressar o

conceito [tipo de moradia]. A esco-

lha por [kaza] foi arbitrária.

Vejamos outros exemplos de ar-

bitrariedade entre forma e função.

Em língua portuguesa, a forma

de entonação ascendente ao fim

da frase desempenha a função de

formular perguntas. Dizemos que

a relação entre essa forma e essa função é arbitrária porque não há

nada natural entre uma subida melódica e a “expressão de pergun-

tas”. Trata-se de uma associação arbitrária que todos os falantes do

português precisam aprender e memorizar.

Também a sequência “sujeito > verbo > objeto” (svo) é uma for-

ma arbitrária de codificar, em uma dada frase, a relação entre um

agente, uma ação e um paciente. Embora a nós, falantes de portu-

guês, pareça razoável pensar em codificar os participantes de uma

ação na ordem “quem fez o que a quem”, não existe nada que torne

essa ordem “mais natural” do que outra: trata-se, novamente, de

uma arbitrariedade.

Iconicidade

Pelo que expusemos, você talvez já possa deduzir que a iconicidade é o

justo oposto da arbitrariedade. Sendo assim, uma forma é icônica quan-

do reflete, com clareza, a função a que se destina, conforme pensavam

os analogistas. Um rápido exemplo pode bem ilustrar o conceito.

Em outras palavras, ao afirmarmos que uma forma é arbitrária em relação à sua função, estamos dizendo que não existem semelhanças entre o feitio de determinada forma e o seu respectivo conteúdo.

Sequência:

De fato, a maioria das línguas do mundo apresenta a ordenação “sujeito > objeto > verbo” (sov) e, assim, codifica na frase os participantes de uma ação na sequência “quem fez a

quem o quê”, em outro tipo de seleção arbitrária. A título de curiosidade, o japo-nês é uma língua sov; o mandarim, svo.

CURIOSIDADE

Page 26: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

26 • capítulo 1

Imagine que uma pessoa lhe tenha apresentado desculpas por

determinado incômodo. Essa pessoa teria discursado por um lon-

go tempo, mas, ao fim e ao cabo, não teria dito nada que, de fato,

reparasse o problema. Você poderia descrever a tediosa conversa

com essa pessoa dizendo algo como “Fulano falou, falou, falou e

não disse nada”. Ora, nessa frase a repetição do verbo “falar” é pra-

ticamente um ícone, isto é, um representação evidente do fato de a

pessoa ter falado repetidamente. Trata-se, portanto, de uma forma

(um verbo repetido) que, com clareza, reflete a sua função (indicar

a repetição de um ato).

Outro exemplo de iconicidade é o alongamento de vogais que

podemos usar em determinada palavra quando queremos enfati-

zar o tamanho ou a duração de algo. Se você quer dizer que alguma

coisa é exageradamente grande, pode dizer algo como “Era muito

graaaaaaaaaaande”. Mais uma vez, a forma (alongamento da vogal)

reflete, claramente, sua função. Também no plano do léxico, na re-

lação entre significante e significado, existem casos de iconicidade.

Trata-se das famosas onomatopeias: palavras cuja forma se asseme-

lha ao conteúdo representado.

As relações icônicas entre forma e função são bastante regula-

res, tanto que há muitos estudiosos, não por acaso denominados

funcionalistas, que defendem a ideia segundo a qual as formas exis-

tentes nas línguas, em grande medida, refletem as funções a que se

destinam. A motivação funcional para a existência de certas formas

pode ser, de fato, encontrada em todos os domínios de uma língua,

tal como vemos nos seguintes exemplos do português:

Onomatopeias:

A forma “tique-taque” possui uma ex-pressão fonética parecida com o som das batidas de um relógio. Da mesma maneira, “miar” é um verbo inspirado na forma acústica do miado dos gatos.

“Tim-tim” é um substantivo que, iconi-camente, representa o som produzido pelo rápido toque entre taças quando se faz um brinde.

CURIOSIDADE

EXEMPLO

Fonologia

Pense na palavra “sussurrar” que se parece com os sons emitidos quando alguém su... ssu... rra.

Morfologia

Pense, por exemplo, nas palavras compos-tas, como “saca-rolha”, “guarda-roupa”, cujas funções são rapidamente dedutíveis pela análise de suas formas constituintes.

Semântica

Lembre-se de expres-sões como “pé-da-me-sa” ou “braço da cadei-ra”, que transferem para objetos a estrutura do corpo humano e, assim, iconicamente, permitem a codificação formal de suas funções.

Sintaxe

Tal como se vê na famo-sa sequência atribuída ao romano Júlio César, “Vim, vi e venci”, que re-flete, de forma icônica, a sequência temporal com que os atos se de-ram: o general primeiro veio, depois, viu para, enfim, vencer.

Se você está curioso para saber quem vence a batalha entre analogis-

tas e anomalistas, saiba que temos, aqui, um empate técnico. As línguas

humanas estão repletas de casos claros de arbitrariedade e casos eviden-

tes de iconicidade. Ambos os fenômenos são encontrados em todas as

línguas quando cotejamos formas e funções.

Page 27: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 1 • 27

Com efeito, a análise mais interessante que os cientistas da lingua-

gem vêm apresentando ao longo dos últimos anos é interpretar a rela-

ção entre arbitrariedade e iconicidade em uma espécie de continuum,

isto é, como uma sequência gradual de várias etapas que separam um

extremo de arbitrariedade, de um lado, e um extremo de iconicidade

de outro – mais ou menos como representamos a seguir:

[+ icônico] → [+/- icônico] → [+/- arbitrário] → [+ arbitrário]

Sendo assim, não devemos pensar que as relações entre forma e

função em uma língua sejam sempre uma questão de tudo ou nada; ou

temos arbitrariedade ou temos iconicidade. A escalaridade parece ser

uma boa chave para entendermos a dualidade forma e função. Pense, por

exemplo, que, no uso de uma língua como o português, podemos desli-

zar rapidamente da forma dos substantivos para a forma dos adjetivos,

dependendo da função de um item no interior de um contextosintático.

Em suma, você deve ter em mente que a gradiência no mapeamen-

to entre formas e funções linguísticas ocorre de maneira generalizada

tanto no léxico quanto na gramática de uma língua.

A linguagem humana em ação

Para finalizarmos este capítulo, passemos a descrever e analisar

alguns fenômenos sociocognitivos que ganham vida todas as vezes

em que colocamos a língua em ação nas inúmeras tarefas comuni-

cativas e interacionais de nossa vida cotidiana. Antes de iniciarmos

essa análise, devemos explicitar que existem duas modalidades fun-

damentais no uso da linguagem humana: a produção e a compreen-

são. Além disso, não podemos nos esquecer de que, em sociedades

letradas, como é o caso da maior parte das comunidades brasilei-

ras, a língua pode se realizar pelo canal oral ou pelo canal escrito.

Sendo assim, as quatro habilidades sociocognitivas envolvidas no

uso de uma língua natural são a produção oral, a compreensão oral,

a produção escrita e a compreensão escrita.

Comecemos pela produção linguística. Essa habilidade demanda

do falante (ou do escritor) uma série de tarefas cognitivas que se ar-

ticulam dinamicamente ao contexto social da interação linguística.

Por exemplo, para produzir a fala (ou a escrita), uma pessoa deve,

primeiramente, selecionar de sua memória de longo prazo os itens

lexicais que expressarão os conceitos que deseja veicular no ato de

linguagem. Essa seleção de palavras na mente é o que os psicolin-

guistas chamam de planejamento de fala ou planejamento conceitual.

Vejamos como isso ocorre.

Contexto sintático:

Vemos isso acontecer na célebre ci-tação de Memórias Póstumas de Brás

Cubas, de Machado de Assis: em [um autor defunto], “autor” é substantivo e “defunto” é adjetivo, mas, em [um defunto autor], “defunto” é substantivo e “autor” é adjetivo. Do mesmo modo, formas como “furado” podem ser analisadas como adjetivos ou como verbos (na forma de particí-pio), dependendo de sua função na frase, tal como vemos acontecer em “isso é papo furado” versus “a roupa foi furada pelo alfinete”, respectivamente. Na verdade, mesmo certas formas verbais, dependendo de sua função na frase, podem ser reanalisadas como substantivos, tal como acontece na expressão “sala de jantar”.

EXEMPLO

Page 28: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

28 • capítulo 1

Esquematicamente, podemos representar a produção linguística oral pela sequência

ilustrada a seguir:

Plano Conceitual → Seleção Lexical → Combinação Sintática → Expressão Fonética

Você deve ter notado que acabamos de descrever a produção da fala fazendo com

que ela parecesse semelhante à produção da escrita. Pelo que sugerimos, a diferença

entre essas duas modalidades residiria no simples fato de que, na escrita, usaríamos

grafemas para representar a expressão fonética do texto. No entanto, essa descrição é,

na verdade, uma supersimplificação.

De fato, a produção oral é muito diferente da produção escrita. De uma maneira bem re-

sumida, podemos dizer que as pessoas, quando escrevem, estão muito mais conscientes do

uso que fazem da linguagem, sendo, por isso mesmo, bem mais atentas e vigilantes tanto em

relação ao que dizem quanto em relação a como dizem.

Page 29: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 1 • 29

A tomada de consciência e a vigilância, comuns na produção es-

crita, estão em flagrante contraste com o caráter mais espontâneo e

automático da fala natural. Não é por outra razão que a escrita fluen-

te, típica das pessoas bem escolarizadas e treinadas nessa arte, de-

manda muitos anos de aprendizado formal, desde a alfabetização até

o letramento profundo na vida adulta.

Por sua vez, a produção fluente da fala emerge já em crianças bem

pequenas e se torna visível em qualquer conversa oral entre humanos,

independente da escolarização ou do letramento dos sujeitos falantes.

Portanto, atente para essa ressalva: apesar de os mecanismos básicos envolvi-

dos na produção oral e escrita serem semelhantes, falar e escrever são fenôme-

nos sociocognitivos dramaticamente diferentes.

No eixo da compreensão linguística, o ouvinte (ou leitor) deve per-

ceber as formas manifestadas no sinal da fala (ou da escrita) de seu

interlocutor para, então, acessar, em sua memória de longo prazo, os

conteúdos por elas evocados. Podemos dizer que a compreensão é o

espelho invertido da produção. Vejamos por quê.

Na produção linguística, começamos com um plano conceitual.

Esse plano nos leva a dizer certas coisas por meio de dadas palavras,

as quais são inseridas nas frases que

conduzem os textos. Já na compreen-

são da linguagem, tudo começa pela

detecção, nos textos, dos elementos

do ato linguístico, tais como frases e

palavras. É com base na identificação

desses elementos que se torna possí-

vel compreender o plano conceitual e

os valores comunicativos que move-

ram a produção do interlocutor.

Mais uma vez, as semelhanças en-

tre oralidade e escrita estão aqui exa-

geradas. No caso, a especificidade da

compreensão da escrita diria respeito, de maneira muito simplifica-

da, apenas à decodificação ortográfica (leitura) que faria a função da

percepção fonética.

Infelizmente, não podemos tratar de tantos detalhes no espaço li-

mitado deste capítulo, mas, se você estiver interessado em compreen-

der as minúcias que diferenciam oralidade e escrita, sugerimos a leitu-

ra do excelente livro Osneurôniosdaleitura (2012), do neurocientista

francês Stanislas Dehaene.

Para sintetizar o que acabamos de dizer sobre a produção e a compre-

ensão linguística, a figura a seguir parece ser um bom recurso didático.

RESUMO

Na realidade, porém, a compreensão linguística pela leitura é muito mais complexa do que a “decodificação ortográfica” sugere.

Os neurônios da leitura:

Segundo o autor, as pesquisas realizadas pela psicologia cognitiva experimental comprovaram o centro de reconhecimento da palavra escrita no cérebro. Tal descoberta afeta profundamente as metodologias em-pregadas nas escolas, que deverão rever suas abordagens.

LEITURA

Page 30: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

30 • capítulo 1

A B

Note que as setas que correm da esquerda para a direita indicam que o “plano con-

ceitual” presente na mente de A é transformado na informação linguística veiculada

para B. Por sua vez, B recebe essa informação linguística e, rapidamente, consegue

interpretar os conceitos ali representados. A figura é interessante, também, porque,

nela, podemos perceber que a produção e a compreensão da linguagem são auto-

maticamente intercambiáveis no fluxo da fala normal. Pelas setas que correm da

direita para a esquerda, notamos que, agora, é B quem produz a informação linguís-

tica que será veiculada para A.

A enunciação

Na dinâmica da produção e da com-

preensão da linguagem, o intercâm-

bio de posições entre aquele que fala

e aquele que ouve dá origem ao fenô-

meno conhecido como enunciação.

Na enunciação, a pessoa que pro-

duz a fala (ou a escrita) é o enunciador

– a primeira pessoa do discurso. Já a

pessoa que compreende a fala (ou a escrita) é o enunciatário – a segunda

pessoa do discurso, a quem a fala (ou a escrita) se destina. Chamamos

de terceira pessoa, ou de não pessoa – em um termo interessante formu-

lado pelo linguista francês ÉmileBenveniste –, os objetos e as pessoas

sobre os quais falamos (ou escrevemos) durante a enunciação.

Em termos linguísticos e comunicativos, é interessante notar que,

na enunciação explícita na produção da linguagem, as chamadas

pessoas do discurso (os pronomes pessoais que você, certamente,

conhece das aulas de português) são, justamente, categorias linguís-

ticas que indicam a figura da primeira pessoa (eu, nós), da segunda

pessoa (você, vocês) e da terceira pessoa (ele, ela, eles, elas e todas as

expressões referenciais, como os substantivos).

EXEMPLO

A enunciação deve ser compreendida como o ato de criação de um enunciado linguístico.

AUTOR

Émile Benveniste:

Émile Benveniste (1902-1976) foi um linguista francês, cuja principal obra, Problè-

mes de linguistique générale, ressalta a ideia de ocorrência de dois planos de enunciação – o da história e o do dis-curso –, através dos quais demonstra a oposição entre a “não pessoa” (terceira) e as “pessoas” (eu-tu).

Page 31: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 1 • 31

É com base na existência do enunciador, do enunciatário e dos referentes do

discurso que diversas expressões linguísticas são colocadas sob perspectiva du-

rante a enunciação.

Por exemplo, pronomes como [meu/minha/nosso/nossa] indicam

a posse de algo em relação à primeira pessoa do discurso, enquanto

pronomes como [seu/seus/sua/suas] indicam a posse relativa à segun-

da pessoa, e expressões como [dele/deles/dela/delas] denotam a posse

da terceira pessoa. Na verdade, mesmo o espaço ocupado pelas pessoas

do discurso é posto em perspectiva durante a enunciação. Assim, ter-

mos como [aqui/este] indicam o espaço da primeira pessoa, enquanto

[aí/esse] denotam o espaço da segunda pessoa, e [lá/aquele] apontam

o espaço do referente, o lugar da terceira pessoa.

De maneira muito interessante, o próprio tempo que utilizamos

quando produzimos e compreendemos a linguagem só assume algu-

ma interpretação coerente quando é colocado sob perspectiva duran-

te a enunciação. Desse modo, sabemos que [ontem] é um termo que

denota um momento anterior ao tempo da enunciação, ao passo que

[hoje] indica o momento que coincide com a criação do enunciado,

enquanto [amanhã] marca um tempo futuro que acontecerá depois

de a enunciação ter sido concluída.

Para que você tenha uma boa noção de como pessoa, espaço e tempo são ca-

tegorias linguísticas cujas referência e interpretação dependem, crucialmente, da

enunciação, imagine que você esteja andando pelo centro de sua cidade, quando, de

repente, encontra um bilhete que flutua em sua direção.

Como pessoa curiosa, você abre o bilhete e encontra a seguinte mensagem:

“Eu estive aqui hoje.” Ora, você será capaz de compreender o significado básico

dessas expressões (afinal, é possível depreender do bilhete que “alguém esteve

em algum lugar, em algum dia”), mas não será possível identificar o sentido do

enunciado, justamente porque você não participou da enunciação – e, portanto,

não conseguirá encontrar o referente da primeira pessoa (eu) nem poderá deduzir

o lugar (aqui) que ela ocupava ao produzir o bilhete, tampouco descobrirá qual foi

o tempo presente (hoje) naquela enunciação.

Algo totalmente diferente aconteceria se o bilhete contivesse uma frase como

“A presidente Dilma esteve na Prefeitura do Rio de Janeiro em 04 de maio”. Nesse

caso, a identificação referencial da pessoa, do espaço e do tempo do enunciado

não são totalmente dependentes do contexto estabelecido na enunciação. Sabemos

apenas que a produção dessa frase ocorreu depois da visita da Presidente à Prefei-

tura – e deduzimos isso em função do tempo verbal passado expresso em “esteve”.

ATENÇÃO

EXEMPLO

Tempo futuro:

Por que a frase “Fiado, só amanhã” é engraçada? Pela perspectiva da enun-ciação, esse dizer, na prática, torna a venda a crédito impossível: o “amanhã”, seja quando for lido, sempre desloca para o dia posterior – e assim por dian-te, ad infinitum.

CURIOSIDADE

Page 32: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

32 • capítulo 1

Das pessoas do discurso que são acionadas sempre que usamos a lin-

guagem para a produção e a compreensão, a mais curiosa, em termos

científicos, é a terceira. Como dissemos, a terceira pessoa é, na verdade,

a não pessoa, isto é, é a ausência da primeira e da segunda pessoas. Tra-

ta-se doreferentediscursivo de um dado uso da língua.

A função referencial é, muitas vezes, considerada a mais pro-

eminente dentre as funções da linguagem, já que os humanos ti-

picamente usam a língua para falar do mundo, seus objetos, suas

ações e pessoas. Todavia, a proeminência da “função referencial”

pode nos passar a falsa ideia de que a linguagem humana, quando

colocada em ação, seja essencialmente referencial. É bem verdade

que muitos usos linguísticos são objetivos, isto é, focam-se no obje-

to (terceira pessoa) de maneira puramente referencial. Entretanto,

grande parte da experiência linguística humana é metafórica. Vejamos

o que isso quer dizer.

Função referencial x metáfora

Nossa tradição escolar se esforça para nos fazer crer que o uso co-

tidiano e comum da linguagem seja referencial, isto é, somos ensi-

nados que, quando produzimos e compreendemos a fala e a escrita,

fazemos referências a coisas e pessoas de maneira mais ou menos

objetiva. A linguagem metafórica seria, então, característica dos usos

linguísticos mais elaborados e artísticos, como a poesia e os roman-

ces. Essa ideia é reforçada quando, na escola, estudamos as “figuras

de linguagem” e ficamos com a impressão de que elas só acontecem

nos textos literários.

Na verdade, o uso metafórico da linguagem não é exclusividade da

arte. Com efeito, todos os seres humanos comuns, no dia a dia, também

utilizam metáforas ao produzir enunciados linguísticos. Por exem-

plo, quando dizemos

alguma coisa como

“Decidirei se vou ca-

sar ou não só mais

à frente ao longo da

minha vida” estamos

fazendo referência a

uma realidade tem-

poral (a passagem

da vida) por meio de

uma categoria espa-

cial (a localização no

espaço — “à frente”). Quando produzimos frases assim, estamos, na

verdade, cruzando domínios de sentidos para fazer referência àquilo

que queremos dizer.

CONCEITO

Referente discursivo:

O já citado linguista Roman Jackob-son havia destacado a existência da não pessoa ao batizar com o termo “referencial” a função da linguagem que privilegia a terceira pessoa como o referente do discurso.

No exemplo, estamos transferindo propriedades do espaço para fazer referência à noção de tempo. Precisamente é esse o princípio de toda a linguagem metafórica: a transferência de domínios de significados.

Page 33: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 1 • 33

A linguagem metafórica é, na verdade, generalizada nos usos linguísticos. Podemos di-

zer que ela é a regra, e não a exceção, quando produzimos e compreendemos a linguagem

humana. Um uso de linguagem estritamente objetivo e referencial é raro. Só o encontra-

mos em abundância no discurso científico das áreas da natureza, como a Física, a Química

e a Biologia. Mesmo em outras áreas da ciência, como a Economia, encontramos fartos

exemplos de linguagem metafórica em frases como “O mercado está aquecido”, “Os preços

estão nas alturas”, “Esperamos uma queda brusca na taxa de juros” etc. Para os cidadãos

comuns, em seu cotidiano linguístico, a metáfora é muito mais do que uma mera figura de

estilo: ela é um produtivo recurso natural de pensamento e de linguagem.

Para concluir

Neste primeiro capítulo, começamos nossa pequena incursão pelo fantástico e complexo mun-

do da linguagem humana. Aprendemos, aqui, diversos conceitos importantes, como a dife-

rença entre linguagem e língua, a distinção entre Língua-i e Língua-e, as noções e as fases da

aquisição da linguagem, a oposição entre formas e funções linguísticas e os fundamentos da

linguagem em ação. Nosso objetivo, ao longo do capítulo, foi apresentar a você uma visão pano-

râmica dos principais temas e figuras do estudo científico da linguagem, o qual tem em conta a

interação dinâmica entre sociedade e cognição. Você terá boas oportunidades de ampliar seus

conhecimentos sobre o assunto ao consultar os vídeos e os livros que indicamos. Bons estudos!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

IMAGENS DO CAPÍTULOp. 11 Cloud Tainara Oliveira · Estácio

p. 12 Ferdinand de Saussure Autor desconhecido · Wikimedia . cc

p. 12 Nice dog Michael Sagmüller · stock.xchng

p. 15 Quatro Paulo Vitor Bastos · Estácio

p. 16 Noam Chomsky Duncan Rawlinson · Wikimedia . cc

p. 17 Bandeira do Paraguai Domínio público

p. 18 Steven Pinker Charles Gauthier · charlesgauthier.com

p. 19 Bebês Paulo Vitor Bastos · Estácio

p. 20 Pequeno Paulo Vitor Bastos · Estácio

p. 20 Médio Paulo Vitor Bastos · Estácio

p. 20 Grande Paulo Vitor Bastos · Estácio

p. 21 Eric Lenneberg Autor desconhecido

p. 22 Graciliano Ramos Autor desconhecido · Wikimedia . cc

p. 23 Karl Bühler Autor desconhecido · cmu

p. 23 Roman Jakobson Autor desconhecido · Wikimedia · cc

p. 24 A Escola de Atenas Rafael Sanzio · Wikimedia · cc

p. 26 Champagne Chin Chin Roger Kirby · stock.xchng

p. 29 Os neurônios da leitura Stanislas Dehaene

p. 30 Émile Benveniste Autor desconhecido · Jacket Magazine

p. 31 Fiado Tainara Oliveira . Estácio

CHOMSKY, N. O conhecimento da língua. Sua natureza, origem e uso. Lisboa: Caminho, 1986.

DEHAENE, S. Os neurônios da leitura. Pará: Pense, 2012.

PINKER, S. O instinto da linguagem: como a mente cria a linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

SAUSSURE, F. [1916]. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2004.

WERMKE, K. et al. Cry Melody in 2 Month Old Infants With and Without Clefts. The Cleft Palate-Craniofacial Journal,

v. 48, n. 3, p. 321–330, 2011.

Page 34: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras
Page 35: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

Língua e variação linguística

ivo da costa do rosário

2

Page 36: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

36 • capítulo 2

Neste capítulo, vamos discutir as relações entre língua e usuários da

língua. Para iniciar a abordagem desse assunto, leia o texto a seguir:

Não tenho sabença,

pois nunca estudei,

apenas eu sei

o meu nome assiná.

Meu pai, coitadinho,

vivia sem cobre

e o fio do pobre

não pode estudá.

Você já conhecia esse texto? Consegue reconhecer o estilo de escrita des-

se poeta? Quem escreveu esses versos foi Antônio Gonçalves da Silva,

mais conhecido como Patativa do Assaré, um dos mais aplaudidos poetas e

compositores brasileiros, reconhecido inclusive internacionalmente.

À primeira vista, você deve ter estranhado a linguagem empregada

pelo poeta. Afinal, há várias palavras e construções que não estão em

conformidade com a ortografia oficial da língua portuguesa, ou seja,

com a linguagem exigida, por exemplo, pelas gramáticas normativas.

Você acha que, por conta disso, Patativa do Assaré falava errado? Existe

uma maneira certa de falar e escrever? São essas questões, entre ou-

tras, que vamos discutir neste capítulo.

Papel e status dos interlocutores na comunidade linguística

A língua é, sem dúvi-

da, o meio mais efi-

caz de comunicação

entre as pessoas. Por

meio da língua, os seres humanos, de todos os tempos e lugares,

estabeleceram e estabelecem relações sociais de diferentes manei-

ras. Sendo assim, podemos afirmar que o uso da língua reflete, em

parte, a estruturação de uma dada sociedade.

AUTOR

Antônio Gonçalves da Silva:

Patativa de Assaré (Assaré, ce, 1909-2002) alfabetizou-se

aos 12 anos e, a partir de então, come-çou a fazer repentes e poemas. O nome “Patativa” faz referência a uma ave amazônica de canto triste e melódico. Antônio Gonçalves da Silva escreveu diversos livros, também foi nomeado cinco vezes Doutor Honoris Causa em universidades brasileiras.

O uso da língua é elemento fundamental para a construção da sociedade.

Língua e variação linguística2

Page 37: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 2 • 37

Em outras palavras, só existem as línguas porque existem seres humanos que as

falam em sociedade, com propósitos diversos. E, ao estabelecer relações sociais

– no trabalho, na escola, na igreja, no sindicato, na conversa informal e em várias

outras instâncias –, a língua vai se moldando às necessidades comunicativas dos

falantes e ao contexto da fala.

De fato, as mudanças na sociedade costumam provocar mudanças tam-

bém nos sistemaslinguísticos, pois todas as línguas naturalmente existem

no seio de uma sociedade, que a (re)processa e a (re)elabora continuamente.

Propósitos da língua: exemplificando pela modalização

Até o momento estamos falando de aspectos relacionados à língua e

à sociedade. Para começar a aprofundar o tema, traremos uma breve

noção sobre modalidade, que o ajudará a entender como o falante

utiliza a língua para se relacionar com o contexto que o cerca.

Entende-se por modalidade os recursos da língua utilizados para expressar a

atitude do locutor, nos conteúdos, em relação ao interlocutor. Há dois tipos prin-

cipais de modalidades: a epistêmica e a deôntica.

Na modalidade epistêmica, com base no grau de conhecimento que

possui, um falante expressa sua atitude em relação à verdade ou à falsi-

dade do conteúdo de seu enunciado. Os valores epistêmicos podem ser de

certeza, probabilidade ou possibilidade. Vamos a um exemplo?

RESUMO

RESUMO

EXEMPLO

Sistemas linguísticos:

Com o advento da tecnologia, por exemplo, muitas pessoas inseriram em seus vocabulários palavras até então inexistentes ou de pouca frequência de uso. Assim, caminhando pela rua ou conversando, é comum ouvirmos que “Fulano acessou a web”, “torpedos

foram trocados”, “novos tablets foram lançados”, “dá um google para ver” etc.

CURIOSIDADE

O estudante foi aprovado na disciplina.CERTEZAo locutor se compromete com a veracidade da informação

O estudante deve ter sido aprovado na disciplina. PROBABILIDADEo uso de “deve” condiciona a verdade, o locutor infere que tenha ocorrido

O estudante pode ter sido aprovado na disciplina.POSSIBILIDADEo locutor não assume compromisso em relação à verdade

Page 38: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

38 • capítulo 2

Na modalidade deôntica, um locutor exprime juízos, procurando

agir sobre o seu interlocutor, impondo, proibindo ou autorizando a

realização de algo em um tempo necessariamente posterior ao dis-

curso. Estabelece-se uma relação hierárquica entre locutor e interlo-

cutor. Tradicionalmente, a modalidade deôntica divide-se em valores

de obrigação e valores de permissão. Veja:

“Saia daqui agora!”“Agora você não vai sair.”

O valor modal de obrigação ocorre quando o locutor impõe ou proíbe a realização de uma ação ao interlocutor.

“Só sai se terminar antes.” “Se terminar, você pode sair.”

O valor modal de permissão ocorre quando o locutor define e/ou oferece escolhas ao interlocutor para realizar uma ação.

A modalidade, tanto epistêmica quanto deôntica, serve para aten-

der, como vimos, a necessidades comunicativas. Afinal, informar,

descrever, contar, ordenar, permitir, proibir, impor etc. são ações

típicas veiculadas pelas línguas humanas. Elas dependem da situação

comunicativa e, muitas vezes, da intencionalidade do falante.

Usamos a língua não só para nos comunicarmos e articularmos informações

mas também para agirmos sobre nossos interlocutores e até mesmo para con-

trolar o nível de comprometimento ou de verdade usado nas declarações que

fazemos cotidianamente.

Transformações na trajetória da língua: mudança e variação

Esse processo de adap-

tação da língua aos

propósitos do falante,

que não está restrito

somente à modalida-

de, provoca dois fenômenos naturais atestados em todos os lugares e em

todos os tempos. Trata-se da mudança e da variação linguística (iremos

enfatizar a variação ao longo deste capítulo).

EXEMPLO

RESUMO

Mudança:

A expressão vossa mercê, como sabemos, não é mais utilizada no português atual. Atualmente utiliza-mos o pronome você para substituir essa expressão. Portanto, houve um processo de mudança, transformando, ao longo do tempo, a expressão vossa

mercê em você.

CURIOSIDADE

Por mudança, devemos entender as transformações sofridas pelas línguas ao longo do tempo.

Page 39: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 2 • 39

Pesquisadores vêm estudando já há muito tempo essas transfor-

mações na trajetória da língua, gerando um número bastante expres-

sivo de publicações acerca desse assunto. Esses estudos, que têm

como objetivo analisar as mudanças da língua ao longo do tempo,

são chamados estudos diacrônicos. Veja o exemplo a seguir:

“Este rrey Leyr nõ ouue filho, mas ouue tres filhas muy fermosas e amaua-as

mujto. E huu dia ouuve sas rrazõoes com ellas e disse-lhes que lhe dissessem

uerdade quall dellas o amaua mais”.

Você conseguiu ler o texto anterior? Qual foi a sua sensação? Se você ima-

gina que se trata de um texto antigo, acertou! Esse texto, cujo título é Lenda do

Rei Lear, é datado do século XIII ou XIV. Ele serve para ilustrar como a língua

muda ao longo do tempo, basta verificar como era a escrita séculos atrás…

Variação linguística

Voltando ao exemplo dado

no início deste capítulo, no

poema de Patativa do Assa-

ré vimos palavras como

sabença, assiná e estudá.

Você deve ter percebido que, no português formal, gramatical, essas

palavras equivalem a sabedoria, assinar e estudar. Aí está a ideia de va-

riação, que pode ser compreendida como a face heterogênea da língua.

Assim, da mesma forma como Patativa do Assaré utiliza a forma saben-

ça para se referir a sabedoria, há outras formas que variam, e não somente

em termos de ortografia, mas inclusive em termos vocabulares. Cariocas,

por exemplo, falam chuva fina enquanto paulistas falam garoa. O português

doBrasil utiliza o termo ônibus, enquanto em Portugal falam autocarro.

O tópico da variação, devido à sua relevância, chegou a ser poeti-

zado pelos modernistas brasileiros. ManuelBandeira, por exemplo,

foi um crítico do modo artificial como alguns brasileiros tentavam

imitar os estilos lusitanos, nas primeiras décadas do século xx:

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros

Vinha da boca do povo na língua errada do povo

Língua certa do povo

Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil

Ao passo que nós

O que fazemos

É macaquear

A sintaxe lusíada...

EXEMPLO

No uso da língua em sociedade, muitas vezes há várias formas de se dizer a mesma coisa.

Português do Brasil:

Nossas favelas são conhecidas como bairros de lata em Portugal. Em Angola, que também tem a

língua portuguesa como oficial, utiliza-se o termo musseque. Para saber mais sobre diferenças entre o português brasileiro e o português europeu, recomendamos uma visita ao site do Instituto Camões.

CURIOSIDADE

AUTOR

Manuel Bandeira:

Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho (1886-1968) nasceu em Recife (pe).

Juntamente com Oswald de Andrade e Mário de Andrade, formou o grupo de escritores mais importantes da Primeira Fase Modernista de nossa literatura.

BANDEIRA, Manuel Estrela da vida inteira. 2 ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1970.

Page 40: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

40 • capítulo 2

Em busca de uma língua essencialmente marcada por traços da

cultura brasileira, os modernistas costumeiramente defendiam, de

forma ávida, usos linguísticos característicos do Brasil, mesmo que

não estivessem de acordo com o “português correto”. É por isso que

Manuel Bandeira afirma que a “a língua errada do povo” era a “língua

certa do povo”. Parece paradoxal, mas não é.

O português vivo falado pelos brasileiros é, na opinião do modernista, a verdadeira língua

do Brasil, que traduz um falar “gostoso”, segundo suas palavras. Enfim, mesmo que sem

os termos técnicos que utilizamos, defendia-se a legitimidade da variação linguística.

Voltando ao nosso tema, os estudos de variação linguística são sempre

feitos dentro de um recorte temporal específico, ou estudos sincrônicos.

Sincronia, portanto, designa um estado específico da língua.

Se um pesquisador se ocupar do estudo do pronome você no português do Brasil atual

(ou até mesmo em todos os lugares da comunidade lusófona onde esse item é utilizado),

dizemos que esse é um estudo sincrônico. Por outro lado, se analisa um determinado

uso linguístico ao longo de décadas ou séculos, com o objetivo de descrever transfor-

mações do item ao passar do tempo, então estamos diante de um estudo diacrônico.

Por que a mesma língua é, também, diferente?

A língua portuguesa era a língua falada/escrita pelas classes escolariza-

das de Portugal. Aqui encontrou as línguas indígenas que, na fase inicial

da colonização, formaram uma “língua de intercurso”: mistura de por-

tuguês e línguas indígenas, que promovia a comunicação entre o coloni-

zador europeu e os nativos indígenas.

Em seguida, o povo que aqui se encontrava – índios, negros escraviza-

dos e mestiços, praticamente todos sem acesso à escolarizaçãoformal –

ia adquirindo o idioma de Portugal. Esse idioma, aqui no Brasil, tornou-se

também “mestiço”, sendo passado de pai para filho, com gerações apren-

dendo e ensinando, de forma empírica, a língua portuguesa.

Como se pode perceber, por falta de um ensino sistematizado para to-

dos, grande parcela da população utilizava a língua oficial conforme suas

próprias “regras”, de acordo com suas necessidades, e foi, pouco a pouco,

promovendo variações na língua portuguesa. Surgia, assim, uma variante

daquele português das elites escolarizadas: a língua falada pelo povo.

Após mais de 500 anos de uso do português no Brasil, nada mais na-

tural que a língua tenha passado por mudanças e apresente variações

RESUMO

EXEMPLO

Escolarização formal:

Somente após 300 anos, com a che-gada da família real, que a educação superior começou a fazer parte da nossa realidade: em 1808, surge o Colégio Médico-Cirúrgico da Bahia. A elite bra-sileira (membros da Corte, membros da Igreja e filhos de grandes latifundiários), até então, só tinha por opção estudar na Europa. A primeira universidade brasileira surgiu em 1920, e foi chamada de Universidade do Rio de Janeiro (hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Mudanças:

Um bom exemplo para vermos as mudanças é a inserção de palavras estrangeiras, como shopping. O uso da forma original (em inglês) dessa palavra é tão disseminado entre nós que praticamente não se utiliza uma forma correspondente em português (como “centro comercial”, por exemplo). Em outros casos, uma palavra estrangeira acaba sendo incorporada à língua. É o famoso “aportuguesamento”, como na forma ballet (francês) para balé.

CURIOSIDADE

CURIOSIDADE

Page 41: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 2 • 41

conforme a região, a classe social e, até mesmo, conforme a idade dos falantes.

Nesse contexto de mudanças e variações, há palavras e construções linguísticas que,

embora ainda em uso, são cada vez mais escassas ou restritas a uma situação de alta for-

malidade. Mesmo assim, tais usos são ensinados nas escolas, estão presentes em todas

as gramáticas, são cobrados em exames, concursos etc. Vamos a um exemplo:

EXEMPLO 1: “O ônibus já passara quando chegamos ao ponto”

Caso em questão Regra gramatical Uso mais comum

Emprego do pretérito

mais-que-perfeito

Emprega-se o pretérito

mais-que-perfeito para assinalar

um fato passado em relação a

outro, também no passado

A forma composta, com uso de

verbo auxiliar:

“O ônibus já tinha passado

quando chegamos ao ponto”

EXEMPLO 2: “Amanhã, pegá-lo-emos no horário”

Caso em questão Regra gramatical Uso mais comum

Colocação pronominal O uso de próclise em vez de

mesóclise, ou uso de pronome

reto em vez de oblíquo:

“Amanhã, o pegaremos

no horário”.

“Amanhã, pegaremos ele

no horário”.

Emprega-se a mesóclise quando

o verbo estiver no futuro do

presente ou no futuro do

pretérito do indicativo, desde que

não se justifique a próclise.

Por outro lado, há momentos em que estamos com nossos amigos, nossos familia-

res, nossos grupos sociais. Nessas situações, é comum haver um uso menos formal da

língua, que comumente é acompanhado por gírias, expressões populares etc. Esse uso,

ao contrário do que muitos pensam, não é errado. Trata-se apenas de um uso diversifi-

cado do idioma. Portanto, esses usos são naturais, seguem uma lógica própria e preci-

sam ser respeitados, já que são igualmente úteis à comunicação.

Assim como as culturas são diversas, as línguas (que são parte da cultura) também

o são: os diversos domínios sociais atestam e influenciam o modo de fala e de escrita

dos cidadãos. Assim, podemos afirmar que, em geral, os eventos de uma sala de aula

ou de uma reunião de trabalho costumam ser mais monitorados do que as conversas

espontâneas no seio familiar, por exemplo. Nessas situações práticas do dia a dia,

invariavelmente se atesta o fenômeno da variação. Pense em como você se comunica

com o professor na universidade e como você conversa com seus amigos ou com seus

familiares. Não é diferente?

Imagine um cartão de apresentação profissional com erros gramaticais. Inconcebível, não é? Pois então, em con-

textos “monitorados”, o uso que um falante faz da língua oral ou escrita é “analisado” pelo ouvinte/leitor, como parte

de um processo de legitimidade, de adequação e de pertinência do conteúdo ao sujeito que fala/escreve.

EXEMPLO

Page 42: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

42 • capítulo 2

Explorando mais o tema: variações dialetais

Para nos aprofundar-

mos no conceito de

variação, falaremos

agora das variações

dialetais. Dentre os

dialetos que mais chamam a atenção dos estudiosos da língua, estão

os usos que se dão conforme a região (diatópicos) e conforme o estrato

sociocultural (diastráticos).

Variação diatópica (dialetal)

No Rio de Janeiro,

chama a atenção o

“chiado” caracterís-

tico da população ao

pronunciar o “s” em

determinadas posi-

ções na palavra, como

em “misto” ou “mais” (com som de x). Por outro lado, é próprio do fa-

lar nordestino a abertura das vogais “e” e “o” antes da sílaba tônica, em

palavras como “receita” e “morena”. Em São Paulo, o uso da palavra

“guia” corresponde ao uso de “meio-fio” no Rio de Janeiro. Todos es-

ses são exemplos de variação diatópica.

Variação diastrática (sociocultural)

A língua também varia conforme o grau de escolaridade do falante, pela

cultura familiar, pela situação financeira, por grupos profissionais e so-

ciais específicos e, até mesmo, por idade ou gênero, entre outros.

Além do uso de gírias pelos mais jovens ou por pessoas em situação

de grande informalidade e da falta de concordância de número (singu-

lar-plural) entre os menos escolarizados, os jargões profissionais são

também exemplos clássicos de variação diastrática.

No universo do futebol, por exemplo, “ir para o chuveiro mais cedo”

significa que o jogador foi expulso de campo ou substituído. No discur-

so de advogados, há grande uso de expressões latinas, como data venia,

que corresponde a “com o devido respeito” em português.

Para o estudo científico da linguagem, a variação é um fenômeno normal, natural, inerente a todas as línguas.

Pessoas que residem em localidades diferentes, distantes, tendem a ter pronúncia e vocabulário também diferentes.

CONCEITO

Dialetos:

Dialeto é a forma como uma língua é falada em uma região específica. Podemos considerar, por exemplo, que o português brasileiro e o português euro-peu são variedades dialetais. O mesmo pensamento vale dentro do Brasil, onde temos subvariedades: o grupo dialetal carioca, gaúcho, baiano etc.

Page 43: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 2 • 43

Vamos fazer um teste? Veja as frases e as associe a um determinado perfil:

1

2

3

4

5

6

7

Mamãe, eu quero um au-au!

A coroa lá em casa tá bolada...

A moçoila está uma teteia.

Que gracinha! Amei isso, é lindo!

É mister ampliarmos o repertório vocabular do corpo discente.

Os poliça pegou os bagulho lá do pessoal!

Vc ker tc comigo?

Pessoa com baixa escolaridade

Pessoa com alta escolaridade

Uma criança

Um idoso

Pessoa conversando online

Pessoa do sexo feminino

Um jovem

Você provavelmente respondeu a seguinte sequência: 6, 5, 1, 3, 7, 4, 2. Repare que há, inclusive, certo

determinismo na resposta, pois nem toda mulher fala usando diminutivo ou exageros e não há pessoa de

alta escolaridade que não use gírias eventualmente. Mas podemos considerar que todas essas frases são

bem características de alguns perfis de usuários da língua. Alguns usos são muito estigmatizados, como o

exemplo 6, outros são considerados mais “neutros”, outros despertam ternura, despojamento, informalida-

de etc. Todos esses usos linguísticos são continuamente praticados e avaliados pela sociedade.

ATIVIDADE

De forma consciente ou não, nós reconhecemos essas variantes. Afinal, sempre que queremos nos

dirigir a alguém, refletimos acerca da situação (se é apropriado ou não falar naquele momento), do

interlocutor (não falamos com nossos amigos da mesma maneira como falamos com nosso chefe) e

do ambiente (há lugares mais apropriados para piadas, para conversa espontânea, para ensinamentos

morais etc.). Em outras palavras, utilizamos variantes distintas dependendo dos nossos propósitos e

objetivos, em cada situação particular.

ASA BRANCA Luiz Gonzaga

Quando oiei a terra ardendo

Qual fogueira de São João

Eu perguntei a Deus do céu, ai

Por que tamanha judiação

Que braseiro, que fornaia

Nem um pé de prantação

Por farta d’água perdi meu gado

Morreu de sede meu alazão

Inté mesmo a asa branca

Bateu asas do sertão

Intonce eu disse: adeus, Rosinha

Guarda contigo meu coração

Hoje longe, muitas léguas

Em uma triste solidão

Espero a chuva cair de novo

Pra mim vortá pro meu sertão

Quando o verde dos teus óio

Se espalhar na prantação

Eu te asseguro, não chore não, viu

Que eu voltarei, viu

Meu coração

Asa Branca foi composta por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira em 1947.

Teria o mesmo sentido se usasse as regras gramaticais e a ortografia oficial na letra da música?

Page 44: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

44 • capítulo 2

Em Asa Branca, temos um claro exemplo de como a língua varia.

Poeticamente, LuizGonzaga canta as características de sua terra, em-

baladas pelo linguajar local. O uso da língua padrão, no caso dessa

música, continuaria comunicando a mesma emoção que ela nos traz

quando cantada em seu estilo original? Certamente, não!

Um fato curioso sobre a variação é que os usos fortemente de-

fendidos como corretos, no passado, muitas vezes invertem-se e

passam a ser condenados. Por exemplo: nos século xvi e xvii, era

comum registrar, em obras escritas na língua padrão, os vocábulos

frauta, frecha, molher, entre outros. As variantes flauta, flecha, mu-

lher, que hoje designam o padrão formal dessas palavras, eram

fortemente estigmatizadas.

Língua padrão e língua culta

Como você já deve ter

percebido, um usuá-

rio do português pode

ser altamente escola-

rizado, expressar-se

bem, com correção, sem, necessariamente, empregar, a cada vez que

fala ou escreve, as regras prescritas pela gramática tradicional. É pos-

sível ainda que, por sua baixa escolaridade, um falante não conheça as

normas gramaticais e deixe de fazer concordâncias ou pronuncie deter-

minadas palavras em desacordo com a ortografia, por exemplo. Ainda

assim, todos falam língua portuguesa.

A variação linguística nos faz pensar em algumas questões: as regras gramaticais

são frequentemente usadas pelos falantes do português contemporâneo? São

mais comuns na fala ou na escrita? São empregadas apenas por pessoas escolari-

zadas? Qual seria a forma usada por aqueles com pouca escolaridade?

Se pensarmos em termos puramente científicos, não há erro no

uso da língua. Ao utilizar a língua portuguesa, por exemplo, nas suas

variantes, os falantes não a utilizam de forma errada, mas de forma

diferente. Entretanto, existe, de fato, a necessidade de uma língua

padrão para que haja unidade, no uso do idioma, em contextos mais

monitorados, como nas situações escolares de ensino-aprendizagem,

nos textos formais (científicos, acadêmicos, legislativos etc.), no am-

biente de trabalho...

AUTOR

Luiz Gonzaga:

Luiz Gonzaga do Nas-cimento (1912-1989) nasceu no interior de Pernambuco. É consi-

derado um dos grandes divulgadores da música e cultura nordestinas.

Há uma diferença entre saber falar uma língua, “dominar” as regras gramaticais e usá-la de forma erudita.

ATENÇÃO

Page 45: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 2 • 45

A gramática tradicional – aquela usada em instituições de ensino – enquadra-se

no domínio do normativo, isto é, que define “certo” e “errado”, que prescreve

como a língua deve ser empregada e proscreve o que não deve ser dito.

A escola e a universidade precisam investir no ensino e aprendi-

zagem da língua padrão, pois é esperado que falantes escolarizados a

dominem nas situações em que seu uso for necessário ou valorizado.

Quanto a isso, não há discussão nem divergência.

Nesse cenário, a gramá-

tica normativa se afigura

como grande pilar da lín-

gua padrão, posto que se

enquadra no domínio do

prescritivo, isto é, define

o que é “certo” e “errado”,

determina como a língua

deve ser empregada e aponta o que não deve ser dito.

Entretanto, geralmente as gramáticas normativas apresentam

como modelo de “português correto” escritores de séculos passados,

pautando-se, na maioria das vezes, em textos literários.

Vamos a um exemplo? Observe a construção a seguir, de Eça de

Queirós, escritor português do século xix, retirada da Nova Gramática

do Português Contemporâneo (CUNHA E CINTRA, 2001:364).

“Ao outro dia, ao almoço, Amélia estava pálida, com as olheiras até ao meio da face”

(Eça de Queirós, in CUNHA E CINTRA, 2001:69).

Ao longo dessa gramática, assim como em outras, encontramos

trechos retirados de diversos outros escritores de diferentes perío-

dos, incluindo-se brasileiros como Machado de Assis ou Érico Ve-

rissimo. Porém, fica claro que todos são cânones de um português

elitizado, ou até arcaico, distante do que usamos cotidianamente,

mesmo entre os grupos mais escolarizados.

Para confirmar essa tendência, vamos a outro exemplo retirado da

mesma obra (CUNHA E CINTRA, 2001:231). Dessa vez, a construção

linguística analisada é apresentada por meio de texto literário de

MachadodeAssis, escritor brasileiro do século xix.

“Vi-os felizes a todos quatro” (Machado de Assis, in CUNHA E CINTRA, op.cit., 1126).

A gramática normativa contempla usos que, por razões menos linguísticas e mais socioculturais e históricas, contam com maior prestígio social.

ATENÇÃO

Gramáticas normativas:

Gramática é um estudo, não um livro. Existem outras gramáticas além da normativa, como a descritiva (não determina regras, mas procura des-crever como a língua se dá para fins de investigação), a histórica (estuda a origem e a evolução de uma língua), a comparada (compara línguas de mes-ma origem, como as oriundas do latim, por exemplo), entre outras.

CURIOSIDADE

AUTOR

AUTOR

Eça de Queirós:

José Maria de Eça de Queirós (1845-

1900) foi um dos mais importantes escrito-

res portugueses de todos os tempos, autor de obras como O Crime do padre

Amaro (1875) e A relíquia (1887).

Machado de Assis:

Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) é o maior nome da literatura

brasileira, também considerado por mui-tos estudiosos como um dos grandes gênios da literatura mundial. Foi autor de obras como Memórias póstumas de

Brás Cubas (1881) e Dom Casmurro (1889). Foi fundador e eleito primeiro presidente, por unanimidade, da Acade-mia Brasileira de Letras.

EXEMPLO

EXEMPLO

Page 46: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

46 • capítulo 2

Até mesmo fenômenos linguísticos já consagrados, presentes na fala e escrita de pes-

soas escolarizadas, são tratados com reservas pela tradição gramatical. O uso do “você”

combinado com pronomes de segunda pessoa, por exemplo, ou o emprego do “tu” com

pronomes ou verbos de terceira pessoa, são alvos de críticas por parte dos puristas.

Porém, no português brasileiro, o pronome “você” é de ampla aceitação, predomi-

nando em praticamente todo o território brasileiro e ocupando, cada vez mais, o lugar

do “tu”. Entretanto, por causa da sua origem como pronome de tratamento, a norma

gramatical prescreve que “você” seja sempre acompanhado por verbos e outros prono-

mes na terceira pessoa.

Não sei mais o que fazer com você! Vou te dar um castigo exemplar.

...empregar o pronome oblíquo átono de 2º pessoa, concordando com “você”. Neste exemplo, temos duplo erro gramatical: 1) o erro de concordância de pessoa; 2) o emprego de pronome oblíquo átono (“te”) em vez de tônico, haja vista ocorrer preposição, por causa da regência verbal.

Não sei mais o que fazer com você! Vou lhe dar um castigo exemplar.

A regra gramatical prescreve que...

Mas o uso mais comum é...

...“você” é um pronome de tratamento empregado para representar o interlocutor (2º pessoa); entretanto, deve concordar com a 3º pessoa, assemelhando-se a outros pronomes de tratamento (Vossa Alteza, por exemplo). Sendo assim, o pronome oblíquo tônico correspondente é “lhe” (3º pessoa).

Partindo desse exemplo, muito do que é falado e ouvido nas ruas, dentro de

casa, nas repartições públicas e até mesmo nas escolas e universidades, margeia

a gramática normativa, posto que incorpora variantes linguísticas no seu uso.

EXEMPLO

A forma verbal no imperativo (“vem”) é

referente ao pronome “tu”, não ao pronome

“você”. Logo, deveria ser “venha” para se

estabelecer concordância.

Vem pra

Vocêtambém!

Você sabia que, segundo a visão normativa, um famoso comercial veiculado pela mídia

comete erros gramaticais? Vamos explorar?

Mas não é só isso… Você reparou na forma “pra”?

Ela é própria da fala, mas não admitida na escrita,

de acordo com a tradição gramatical. Assim, se a

propaganda respeitasse a norma, ganharia em

correção, porém perderia em expressividade,

sonoridade e ritmo, não é mesmo?

Page 47: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 2 • 47

Língua culta

Você pode estar se perguntando qual seria a diferença entre língua pa-

drão e língua culta. A língua padrão, como vimos, é aquela preconizada

pelas gramáticas normativas. A língua culta, por sua vez, representaria

o português utilizado por pessoas letradas, das camadas mais escolari-

zadas da sociedade. Estes,

pela lógica, seguiriam as

normas gramaticais.

Iniciemos, então, esta

seção com um poema bas-

tante conhecido, do escri-

tor modernista Oswaldde

Andrade, que, já no início do século xx, trazia, em seu poema Prono-

minais, questionamentos sobre o português “da gramática” e o usado, de

fato, no Brasil:

Pronominais

Dê-me um cigarro

Diz a gramática

Do professor e do aluno

E do mulato sabido

Mas o bom negro e o bom branco

Da Nação Brasileira

Dizem todos os dias

Deixa disso camarada

Me dá um cigarro.

ANDRADE, Oswald. Poesias Reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.

O primeiro verso do poema – “Dê-me um cigarro” – apresenta o

que qualquer gramática normativa recomenda, no capítulo dedicado

a tratar da colocação dos pronomes átonos: quando o verbo abrir o

período, ou iniciar qualquer das orações que o compõem, a posição dos

pronomes átonos é depois do verbo (ênclise). Trata-se, portanto, de um

uso que se enquadraria no conceito de língua padrão.

Por sua vez, o último verso – “Me dá um cigarro” – reproduz um

caso em que o pronome átono está em próclise, isto é, posiciona-se

antes do verbo. Mesmo condenado pela tradição gramatical, certa-

mente era o uso que Oswald de Andrade ouvia nas ruas e nas suas

rodas de conversa no início do século xx.

Mas, se tal uso foi defendido por uma pessoa letrada, com alta escola-

ridade, o último verso poderia se enquadrar no conceito de língua culta?

Aqui cabe outra questão: se a língua culta é o português utilizado

por pessoas letradas e, por consequência, pelos grandes escritores,

A língua padrão é um ideal de correção, visto que nem mesmo falantes cultos seguem irrestritamente os seus ditames.

AUTOR

Oswald de Andrade:

José Oswald de Souza Andrade (1890-1954) per-

tencia a um grupo de intelectuais e artistas envolvidos no Movimento Modernista, cujo objetivo era tentar “eliminar definitivamente da cultura brasileira qualquer vestígio da influên-cia lusitana” (Alambert, 1992:8).

Page 48: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

48 • capítulo 2

o que dizer de GuimarãesRosa? Há diversos trechos de suas obras que

também não estão em acordo com a língua culta. Seria ele um “falante

inculto” ou um mau escritor? Não se defende algo dessa natureza…

Além dos casos trazidos à discussão, outros usos condenados pela

norma padrão são considerados como próprios entre falantes esco-

larizados. Até mesmo um professor de língua portuguesa, ciente das

regras prescritas pela tradição gramatical, dificilmente declararia seu

amor com um “Amo-te!”. O muito mais romântico e brasileiríssimo

“Te amo!” é a preferência nacional.

A essa altura, você já deve estar percebendo que a língua culta é a variedade

em uso por aqueles que têm acesso à variedade padrão, por aqueles que

provavelmente tiveram detalhadas lições sobre a gramática normativa, nas

aulas de língua materna, mas que não apresentam, na sua fala, o mesmo rigor

gramatical que têm quando escrevem ou quando falam em contextos formais,

monitorados. Ou seja, são usuários que sabem ajustar seu texto/fala à situ-

ação comunicativa.

Portanto, língua culta é aquela em que se enquadram os usos

linguísticos da parcela letrada da sociedade, inserida nas práticas

associadas a diferentes atividades sociais, científicas, religiosas,

profissionais; enfim, manifestações culturais que requerem nível

alto de escolaridade.

E as outras formas de uso?

Até aqui, você conheceu duas varie-

dades da língua portuguesa: aque-

la que é ensinada nas escolas por

meio da gramática normativa, cujo

foco é a escrita – a língua padrão;

outra que circula entre as camadas

mais escolarizadas e letradas da

sociedade, detentoras de prestígio

social – a língua culta.

Como vimos também, há usos externos à língua padrão que

também são igualmente válidos, em termos comunicativos e ex-

pressivos, mas que são condenados pela gramática. Em relação a

isso, várias causas são alegadas para justificar a ocorrência de va-

riedades não padrão: falta de cuidado com a língua, má qualidade

do ensino, déficit cultural, perda da identidade nacional, falta do

hábito de leitura etc.

AUTOR

Guimarães Rosa:

João Guimarães Rosa (1908-1967) foi um dos mais importantes escri-

tores brasileiros de todos os tempos, eleito por unanimidade à Academia Brasileira de Letras (apesar de eleito em 1963, assumiu somente em 1967,

pouco antes de morrer). Veja como ele “brinca” com a língua em Grande

Sertão: Veredas (1956): “Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães”.

RESUMO

A ideia de que há pessoas que “falam e escrevem de forma errada” está muito disseminada em nosso país.

Page 49: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 2 • 49

Se uma perspectiva prescritivista é adotada, bem ao gosto dos famosos “consul-

tórios gramaticais” a que temos assistido na TV e em outros meios de comunica-

ção, todos os empregos linguísticos, em desacordo com a norma padrão, passam

a ser combatidos, como se fossem um mal à sociedade.

Um fato curioso é que, dentro da própria língua padrão, também

há variação, ou melhor, posturas divergentes. Assim, os gramáticos as-

sumem posições distintas quanto ao uso do infinitivo flexionado, da

colocação pronominal (próclise, mesóclise e ênclise), dos conceitos de

sujeito, da lista de orações adverbiais, da classificação de advérbios,

entre tantos outros pontos.

Na prática, não existe o falanteidealizado pelas gramáticas e pe-

los puristas, já que ninguém segue 100% as prescrições normativas

em todos os momentos de sua vida. Embora a língua padrão seja a va-

riedade linguística ensinada nas escolas, especialmente nas aulas de

português, em que se prioriza o ensino das normas gramaticais e da

língua escrita, não se deve concebê-la como melhor ou superior às de-

mais variedades.

Além disso, se considerarmos que os usuários do português de-

vam falar, ou até mesmo escrever, seguindo somente os modelos da

gramática normativa, estaremos diante de uma língua artificial, dis-

tante da realidade dos diferentes falares presentes em toda a exten-

são do Brasil. E o nosso pais é muito grande, comportando muitas

variedades linguísticas.

Preconceito e poder no uso da língua

De fato, não há nada de errado e

feio no uso não padrão. O que ocorre,

na verdade, é que esses usos consi-

derados desviantes nada mais são

do que diferentes dos usos linguís-

ticos das elites socioculturais.

Em síntese, o modo diferente de fala das classes menos escolarizadas e, normal-

mente, menos abastadas, passa a ser alvo de preconceito por parte das classes

mais escolarizadas; portanto, mais influentes na sociedade. Assim, o poder da-

queles que gozam de mais prestígio, por conta de fatores políticos, econômicos e

culturais, transfere-se para a variedade linguística que utilizam. Essas variedades

passam a ser consideradas mais corretas, mais dignas.

RESUMO

RESUMO

O preconceito linguístico origina-se das relações sociais estabelecidas.

Falante idealizado:

Sirio Possenti aponta divergências no tipo de tratamento gramatical para erros sociais, como se fossem erros estruturais. Segundo o autor, a varia-ção de [l] com [r], como em “flamengo/framengo”, estruturalmente se situa em um processo histórico que derivou, entre outras, palavras como “praia” e “prata” (se compararmos ao espa-nhol, por exemplo, teremos “playa” e “plata”). Mesmo explicáveis, tais pronúncias são socialmente estigma-tizadas. Para Possenti, “dizer que é um erro (em língua) equivale a dizer que uma saia curta é um erro no campo da moda (ou em moralidade!). É uma avaliação social, não linguística (…). Às vezes, alguém diz que o som [fra] é horrível, mas ninguém o acha horrível em [fraco]. No entanto, trata-se do mesmo som, e no mesmo contexto.” (Coluna Palavreado, Instituto Ciência Hoje/uol, janeiro de 2012)

CURIOSIDADE

Page 50: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

50 • capítulo 2

Essa associação, se pensarmos bem, é muito perversa. Afinal, a lín-

gua é um fator de identidade, um meio de acesso aos bens culturais

e o principal modo como nos comunicamos. Se assumirmos que há

pessoas que falam errado, que utilizam uma variante indigna, auto-

maticamente podemos estender à ideia de que essas mesmas pessoas

não têm direito aos bens culturais produzidos pela sociedade como

um todo. Afinal, se elas “não sa-

bem sequer falar corretamente”,

como vão ter acesso à cultura?

Assim, a variedade culta é

mais valiosa porque é falada por

pessoas também mais prestigia-

das. As variedades não padrão,

por sua vez, acabam sendo estigmatizadas porque as pessoas que as fa-

lam também o são. O uso da língua, portanto, reflete o poder e a autori-

dade (ou a falta deles) nas relaçõeseconômicas,políticasesociais.

O que fica mais claro ao longo dessas constatações é que, de fato,

o preconceito linguístico encontra espaço até mesmo em veículos que

gozam de prestígio na sociedade. Muitas vezes, o que é ainda pior, não

há espaço para opiniões divergentes, o que cria a falsa imagem de um

consenso em torno das questões levantadas. Sem dúvida, o espaço na

mídia e a grande aceitação dessas questões pelo público em geral difi-

cultam o trabalho de esclarecimento sobre questões da língua, fazendo

permanecer o preconceito linguístico.

A existência do preconceitolinguístico é uma das maiores provas do

quanto língua e sociedade são imbricadas. Afinal, esse tipo de preconceito

está diretamente relacionado ao status dos interlocutores na comunidade

linguística. Nesse contexto, a escola e a universidade devem integrar esfor-

ços para que o preconceito linguístico seja paulatinamente combatido.

Preconceito linguístico:

Marcos Bagno é, no Brasil, um dos maiores estudiosos do pre-

conceito linguístico. Um dos seus livros mais conhecidos é Pre-

conceito linguístico: o que é, como se faz?, obra que já conta

com dezenas de edições. Nele, o autor sintetiza em oito pontos

os principais equívocos veiculados quanto ao português do Brasil. A esses pontos,

o autor chama mitos, os quais você poderá ver mais detalhadamente no artigo.

Enfim, chegamos ao final de nossa reflexão sobre as relações entre

língua e sociedade. Discutimos o papel e status dos interlocutores na co-

munidade linguística, abordamos os conceitos de modalidade e eviden-

cialidade, como também de variação e mudança. Também discutimos a

questão do preconceito linguístico e suas nuances. Bons estudos!

Na prática, uma variedade linguística acaba tendo o mesmo valor que as pessoas que a adotam.

Variante indigna:

Um erro na grafia da placa causou estranheza aos policiais que pararam o veículo em questão. Resultado: o erro mostrava, na verdade, um crime de estelionato. Mas não podemos es-quecer que há bandidos que também dominam a norma padrão…

Relações econô-micas, políticas e sociais:

No livro Triste fim de

Policarpo Quaresma, escrito por Afonso Enriques de Lima Barreto (1881-1922), a questão do na-cionalismo é discutida. A personagem principal do livro, Policarpo Quares-ma, em um dado momento, propõe à Assembleia Legislativa que a língua nacional deveria ser o tupi, a verdadeira língua nativa do país. Algo parecido ocorreu recentemente, mas na vida real. O então deputado federal Aldo Rebelo propôs um projeto que comba-tesse o estrangeirismo, para “proteção, promoção, defesa e uso da língua portuguesa” (cf. Faraco, 2001). Essa proposta, por exemplo, revela o quanto as nossas elites estão desinformadas em termos de língua, uso e variação.

CURIOSIDADE

CURIOSIDADE

CONCEITO

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capítulo 2 • 51

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

IMAGENS DO CAPÍTULOp. 36 Patativa de Assaré Autor desconhecido · O Nordeste.com

p. 37 Mensagem Tainara Oliveira · Estácio

p. 39 Favela Eduardo Trindade · Estácio

p. 39 Manuel Bandeira Autor desconhecido · abl

p. 44 Disco Forró do Gonzagão Divulgação · Sony/BMG

p. 45 O escritor Eça de Queirós em 1882 Photographia Contemporanea Domínio Público

p. 45 Machado de Assis Autor desconhecido · abl

p. 47 Oswald de Andrade Auto desconhecido · Domínio Público

p. 48 Guimarães Rosa Revista Pájaro de Fuego – nº18 – agosto 1979

p. 50 Frorianópolis Paulo Vitor Bastos · Estácio

p. 50 Lima Barreto Autor desconhecido · Wikimedia . cc

BAGNO, M. Não é errado falar assim! Em defesa do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2009.

______. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 1999.

BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola, 2009.

CAGLIARI, L. C. Alfabetização e Linguística. São Paulo: Scipione, 1991.

FARACO, C. (Org.) Estrangeirismos: guerras em torno da língua. São Paulo: Parábola, 2001.

GONÇALVES, S. C. L. Gramaticalização, modalidade epistêmica e evidencialidade: um estudo de caso no português

do Brasil. Campinas (sp), Instituto de Estudos da Linguagem da unicamp, 2003. Tese de Doutorado em Linguística.

LYONS, J. Linguagem e Linguística: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1981.

MARTINS, A. Evidencialidade no discurso dos media. In: Estudos Linguísticos/Linguistic Studies. Lisboa: Edições

Colibri/cluni, 2010.

MOLLICA, C. A influência da fala na alfabetização. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1998.

OLIVEIRA, M. R. Preconceito linguístico. In: PERES, Deila Conceição; et al. (Org.) 1º seles – Seminário sobre Leitura e

Escrita. Avaliação da redação no vestibular da uff. Niterói: EdUFF, 2006.

SCHERRE, M. M. P. Doa-se lindos filhotes de poodle: variação linguística, mídia e preconceito. São Paulo: Parábola, 2005.

TRAVAGLIA, L. C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática. São Paulo: Cortez, 2003.

Page 52: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras
Page 53: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

Linguagem, unidade e diversidade

ana beatriz arena e

mariangela rios

3

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54 • capítulo 3

No capítulo anterior, ao final, abordamos o assunto preconceito lin-

guístico. Iniciamos este capítulo refletindo sobre um dos questiona-

mentos linguísticos mais famosos de que se tem notícia no Brasil: o

ex-Presidente Lula sabe ou não “falar” português, estaria ou não em

condições de exercer a Presidência da República?

Desde que se destacou no cenário político brasileiro como can-

didato à Presidência da República, em 1989, Luiz Inácio Lula da

Silva, ou simplesmente Lula, tem sido submetido a uma série de

críticas por causa do seu português falado. Provavelmente, isso se

deve ao fato de que, ao longo de seus dois mandatos, Lula sem-

pre gostou de falar de improviso, “cometendo”, por vezes, desli-

zes gramaticais, especialmente de concordância, e algumas ou-

tras "impropriedades", se considerarmos a língua padrão. Seria

isso o bastante para acusá-lo de

não saber português, ou estaria o

ex-Presidente sendo alvo de pre-

conceito linguístico, conforme já

abordamos no capítulo anterior?

As críticas vinham de todos os

lados: dos gramáticos puristas,

dos professores, especialmente

os de Língua Portuguesa, de jor-

nalistas e também de cidadãos muitas vezes tão ou menos escola-

rizados do que Lula. Era possível encontrarmos na mídia ironias

do tipo: “Lula na coletiva só não convenceu no português”, ou

ainda “O nosso Exmo. Presidente, com todo respeito, NÃO sabe

falar português”. Os defensores do “português bom é português

correto” não se orgulhavam de ter um Presidente, segundo eles,

que não sabia falar a própria língua.

Afinal, que português é esse que o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva fala?

Para refletirmos sobre tal assunto e chegarmos a uma resposta consistente e

objetiva, neste capítulo, vamos tratar dessas questões, abordando a variedade

mais estigmatizada, popular: a língua vernacular. Abordaremos, também, as di-

ferenças e as correspondências entre fala e escrita, considerando os recursos

linguísticos específicos a cada uma dessas modalidades.

PERSONALIDADE

Lula:

Luiz Inácio Lula da Silva (Caetés, pe, 1945) foi o 35º Presidente brasileiro

(2003-2011). Além da carreira política, foi metalúrgico, líder sindical, co-fun-dador do Partido dos Trabalhadores (pt) e, atualmente, presidente de hon-ra do partido. É considerado por mui-tos o político mais popular da história brasileira. Ainda, foi condecorado com vários títulos de doutor honoris causa, dentre eles o da Fundação Scien-ces-Po (França, 2011). Foi o primeiro latino-americano a receber tal título.

Naturalmente, em face da importância de seu cargo, ele teve seus discursos constantemente monitorados.

RESUMO

3 Linguagem, unidade e diversidade

Page 55: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 3 • 55

Língua vernacular

Se você consultar o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portugue-

sa, encontrará a seguinte abonação para vernáculo: “a língua própria

de um país ou de uma região; língua nacional, idioma vernáculo”.

Nos estudos linguísticos, vernáculo é todo uso linguístico conside-

rado popular, incluindo gírias, regionalismos, e também aquilo que a

tradição gramatical considera “erro”, como a falta de concordância, por

exemplo, ou ainda o emprego de palavras socialmente desprestigiadas.

Variações no léxico (vocabulário), na prosódia (forma de pronun-

ciar) e na sintaxe (concordância, emprego dos pronomes oblíquos áto-

nos, por exemplo), são comumente alvos de análise não só por parte de

estudiosos da língua como também pela sociedade em geral.

EXEMPLOS DE VARIAÇÕES DESPRESTIGIADAS (não padrão)Variação no léxico “arribar”, em lugar de “melhorar de saúde”

Variação na prosódia “tauba”, em lugar de “tábua”

Variação na sintaxe “nós vai”, em lugar de “nós vamos”

Normalmente, essas variações são mais frequentes entre as camadas mais pobres, menos

escolarizadas, não urbanas, e os falantes costumam sofrer forte preconceito linguístico.

As próprias gírias, tão expressivas e recheadas de criatividade,

também não são merecedoras dos aplausos de muitos brasileiros. Há

quem defenda, inclusive, que elas sejam banidas.

Porém, observe que interessante: muitos jornais, propagadores dos

usos próprios da língua padrão, na modalidade escrita, apresentam

em suas páginas, em letras garrafais, manchetes como as seguintes:

Vernáculo:

A palavra vernáculo deriva da forma latina verna, cujo significado é “escravo nascido na casa do senhor, em cativeiro; nativo”. Veja só que interessante! Podemos até fazer uma analogia com a relação existente entre o português brasileiro – que nasceu “escravo” – e o português lusitano – idioma da casa do “senhor”, o colonizador.

CURIOSIDADE

EXEMPLO

EXEMPLOFilho de Constância manda o funcionário do clube entregar um bilhete para a morena, e rola um clima entre os dois

Marquezine curte show e reclama de ‘excesso’ de namorados: ‘Encalhada?’

Perdeu, Albertinho! Gilda se encanta pelo capoeira Chico

Fani se empolga e dá selinho em Aslan na piscina

Exemplos retirados da página do jornal online Globo.com. Acesso em 19 de janeiro de 2013.

Page 56: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

56 • capítulo 3

Os exemplos listados reproduzem usos bastante atuais, em que gírias e co-

loquialismos, como “perdeu”, “rola”, “curte” e “dá selinho”, ajudam a transmi-

tir a mensagem com bastante propriedade, sem incorrer em inadequação de uso.

A proposta do jornal – de enfocar assun-

tos voltados à programação televisiva e es-

portiva – pode justificar o emprego des-

sas variantes linguísticas.

Como se pode ver, até mesmo a im-

prensa escrita usa termos tratados, nor-

malmente, com discriminação. Então, por que não são comuns críticas direcionadas

aos jornalistas que escrevem tais matérias? Por que somente a fala dos jovens, dos la-

vradores ou das domésticas, por exemplo, são consideradas “erradas”?

Linguistas têm outra compreensão desses fenômenos. Vejamos o que dois deles afir-

mam em relação ao uso popular e ao ensino de língua:

Trata-se de uma linguagem adequada ao perfil do jornal e à situação comunicativa de menor formalidade.

Voltando ao preconceito linguístico, é importante lembrar que ele veicula uma ideia

desfocada – esta, sim, um erro com tudo de negativo que a palavra pode significar – so-

bre as variedades linguísticas do Brasil. De Norte a Sul, de Leste a Oeste, em todas as

regiões, temos falares diversos.

Concluindo esta primeira seção, po-

demos considerar respondidas aque-

las perguntas iniciais, suscitadas pela

menção ao português do ex-Presidente

Luiz Inácio Lula da Silva. É muito prová-

vel que as críticas feitas à sua expressão

verbal estejam diretamente relacionadas à origem humilde de Lula, já que o próprio

ex-Presidente nunca escondeu sua difícil história de vida, nem, em consequência,

sua baixa escolaridade. É importante deixar claro, também, que normalmente temos

contato, por meio da televisão, com a fala de Lula, e a modalidade falada de qualquer

usuário de qualquer língua é menos formal do que a escrita. É sobre este assunto que

vamos tratar a partir de agora.

São falares regulares, sistemáticos, acatados por toda a comunidade linguística a que o usuário pertença.

Sobre a norma popular Sobre o ensino de língua materna

Para Dante Lucchesi (2006, p. 88), a norma

popular “emerge do uso da grande maioria da

população do país, desprovida de educação formal

e dos demais direitos da cidadania, com os

previsíveis reflexos na língua da pluralidade étnica

que está na base da sociedade brasileira”.

Para Roberto Camacho (2013): “A tradição da

instituição escolar consiste em não apenas ignorar

a legitimidade da variação linguística, mas também

submeter as variedades linguísticas ao critério de

correção, como uma peneira fina. O que passa é

um conjunto de expressões vinculadas ao registro

formal da modalidade escrita e o que sobra é

estigmatizado como realizações incorretas e

deficientes em confronto com a matriz de valores

eleita como a variedade-padrão”.

Page 57: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 3 • 57

Propriedades do texto falado

Na análise das marcas constitutivas do texto falado, vamos partir da transcrição do

relato de opinião de uma aluna universitária do Rio de Janeiro, a Valéria. Ela deu seu

depoimento ao Grupo de Estudos Discurso & Gramática, no final da década de 1990,

tratando da situação política do Brasil, em uma escolha temática a partir das suges-

tões apresentadas pelo entrevistador.

Como se trata de texto falado, o fragmento é transcrito de acordo com critérios específi-

cos e consensuais na área dos estudos linguísticos, assim definidos:

SÍMBOLO SIGNIFICADO... qualquer pausa

/ ruptura, truncamento

eh hesitação

? interrogação

:: alongamento

( ) trecho inaudível

(palavra) suposição de audição

[palavra] sobreposição de fala

((risos)) comentários do transcritor

E entrevistador

I informante (a entrevistada)

E: e::... agora eu queria que você me dis-

sesse a sua opinião... ou sobre a situa-

ção... política... ou econômica... ou da

educação... no Brasil...

I: das três?

E: não... de uma... uma das três...

I: eh... só se/ política... eu estou achan-

do que agora está tendo uma abertura

maior... né? a gente está... está vendo

o que está acontecendo com o país...

está/ tudo o que está acontecendo a

gente está vendo... não é o que era anti-

gamente... onde... a gente não... sabia de

nada... ficava tudo escondido... achava

que/ não tinha informação... né? a ver-

dade é isso... a imprensa tem/ eu estou

achando que (está num) papel funda-

mental... na divulgação das coisas... né?

que... pô... fulano roubou... a gente está sabendo... eh:: não sei quem foi preso... a gente está

sabendo... está tudo às claras... eu acho que o pessoal também está... com medo disso... aí

eu acho que estão andando mais na linha... não é que antigamente não roubava... lógico que

roubava... mas hoje em dia a gente está vendo que... quem rouba mesmo... e::... quando rouba a

gente sabe... e antigamente não acontecia isso... não podia se falar::... não podia/ tudo... tudo

proibi::do... não podia ter uma opinião de na::da... ficava todo mundo mais alienado... hoje em

dia eu acho que está melhorando... um dia a gente chega lá... eu tenho esperança ((risos))

E: você... é a primeira otimista [que eu entrevisto] ((risos))

I: [eu tenho... ] eu tenho esperança... sei lá... pode ser uma ilusão mas::... uma utopia mas::... que

se eu não acreditar... fica um pouco sem sentido... né? vamos tentar lutar para melhorar isso aí...

E: então tá... obrigada Valéria...

I: só isso?

Disponível em: http://www.discursoegramatica.letras.ufrj.br/

Page 58: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

58 • capítulo 3

Propriedades do texto falado: a fragmentação

Um rápido olhar na transcrição do relato falado de Valéria já nos aponta traços constituti-

vos próprios dessa modalidade. Uma de tais propriedades diz respeito à relativa fragmen-

tação do texto falado. Dizemos “relativa” por comparação ao formato dos textos escritos em

geral, com os quais nossos olhos já estão muito acostumados, pelos anos de escolarização

envolvendo escrita e leitura que acumulamos até hoje.

Observamos na transcrição, por exemplo, uma profusão de frases curtas margeadas por pausa (no caso,

cada sinal de reticência representa uma parada ou quebra no fluxo da informação). São sequências como

por exemplo: tudo o que está acontecendo a gente está vendo... não é o que era antigamente... onde... a

gente não... sabia de nada... ficava tudo escondido..., em que registramos seis dessas frases curtas.

Esse é um traço muito típico de textos falados – via de regra, emitimos pequenos “jatos” de in-

formação, e o conjunto desses fragmentos, proferidos em sequência, é que acaba por compor a

totalidade da informação veiculada, tal como no fragmento aqui ilustrado.

Além de frases curtas, outra marca contextual da fala que concorre para a proprieda-

de de fragmentação é a presença explícita da hesitação. Como se trata de modalidade

falada, o tempo de planejamento de que dispomos para a elaboração de textos, compa-

rado ao tempo para a produção da modalidade escrita, é bem menor. Alguns especialis-

tas chegam a considerar que, na fala, o planejamento é quase online, no sentido de que

temos pouquíssimo tempo, por vezes menos de um segundo, para pensarmos, selecio-

narmos o conteúdo e nos expressarmos oralmente. Vamos voltar ao texto de Valéria:

Ao ser apresentada pelo entrevistador às opções de tema para dar sua opinião (agora eu queria

que você me dissesse a sua opinião... ou sobre a situação... política... ou econômica... ou da edu-

cação... no Brasil...), a universitária inicia seu relato com alguma hesitação – eh... só se/ política...,

parecendo não ter muita certeza, nesse momento inicial, se de fato queria escolher a política

para opinar. Valéria está diante do entrevistador e é chamada a elaborar seu depoimento: a hesi-

tação é considerada, em ambientes de fala, como traço constitutivo dessa prática discursiva. Não

se trata de erro ou defeito; é simplesmente a manifestação da relativa insegurança e do pouco

tempo de planejamento de que todos nós dispomos ao nos expressarmos oralmente.

Concorrem também para a hesitação alguns alongamentos silábicos verificados no texto

(marcados na transcrição por quatro pontos), como em não podia se falar:: e tudo proibi::do... Tais

alongamentos são considerados marcas de hesitação, na medida em que têm certo efeito suspen-

sivo no fluxo comunicacional, mantendo o que se declara por mais tempo do que o devido.

A hesitação pode ser usada como estratégia, entre outras motivações, para que o locutor ganhe algum

tempo, enquanto (re)formula seu texto. No caso de Valéria, o tema da falta de liberdade de expressão

e da censura pode a ter levado a produzir os alongamentos aqui ilustrados.

COMENTÁRIO

RESUMO

Page 59: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 3 • 59

Uma terceira característica da fala que concorre para a impressão

geral de fragmentação é o que chamamos de ruptura ou truncamento

(marcado na transcrição pela barra inclinada /). Trata-se de uma estra-

tégia que, tal como a hesitação, tem muito a ver com o pouco tempo

de planejamento do texto falado. É comum, nesse sentido, mudarmos

nossa rota de expres-

são, trocarmos de as-

sunto em meio ao que

já havíamos iniciado.

As correções de

rumo dependem de

muitos fatores, desde

a mudança de nosso planejamento e das escolhas pessoais, até altera-

ções das condições de recepção do interlocutor, entre muitas outras.

No texto de Valéria, por exemplo, sequências como ficava tudo escondido...

achava que/ não tinha informação... né? ou ainda e antigamente não acontecia

isso... não podia se falar::... não podia/ tudo... tudo proibi::do... ilustram ruptu-

ras. Na primeira sequência, a aluna interrompe a declaração achava que para

iniciar outra (não tinha informação); na segunda sequência, Valéria suspende

repentinamente a frase não podia para substituí-la por tudo... tudo proibi::do.

Examinadas as marcasdefragmentação do texto de Valéria, que tal

tomar agora seus textos falados como ponto de referência e de reflexão?

Propriedades do texto falado: a situacionalidade

Uma segunda propriedade geral dos textos falados é sua situacio-

nalidade. Enquanto as produções escritas podem ser lidas, teorica-

mente, em qualquer tempo e lugar, permitindo inclusive releituras

várias, textos falados são altamente contextualizados e dependentes

da situação em que foram elaborados. Daí serem considerados mais

apoiados no contexto comunicativo em que são elaborados.

O trecho inicial do depoimento de Valéria já exemplifica essa vinculação

com a situação contextual: eu estou achando que agora está tendo uma

abertura maior... né? a gente está... está vendo o que está acontecendo

com o país... está/ tudo o que está acontecendo a gente está vendo...

A referência temporal agora diz respeito à época em que a aluna elaborou o

texto – o final dos anos 1990, momento em que o Brasil entrava mais efeti-

vamente no regime democrático (relativo ao termo abertura maior), inclusive

com o plebiscito sobre o regime de governo (parlamentarista, presidencialista

Ao falar, estamos de certa forma mais “autorizados” a fazermos correções de rumo, que são explicitadas no próprio texto.

Marcas de fragmentação:

Pense nas situações de fala a que você é exposto no dia a dia, no certo grau de tensão, de insegurança e de hesitação que esses contextos motivam. Veja como é “natural” a fragmentação de nossas produções faladas e como tal propriedade é inerente a esse tipo de prática discursiva. Observe o número de frases curtas, hesitações, alonga-mentos e rupturas que caracterizam nossas produções faladas.

CURIOSIDADE

COMENTÁRIO

Page 60: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

60 • capítulo 3

ou monárquico). A menção ao que está acontecendo com o país relaciona-se

novamente ao momento de transição rumo à redemocratização no Brasil, que

é retomado a seguir com a inversão dos termos (tudo o que está acontecendo

a gente está vendo...). Essas referências ao momento presente contrastam

com a declaração não é o que era antigamente, em alusão ao período anterior

aos anos 1990 no Brasil.

Outra estratégia muito ancorada na situação contextual é a utili-

zação de pronomes. No caso de textos falados, esses pronomes, mui-

tas vezes, não são aqueles listados nos compêndios gramaticais do

português; trata-se de usos meio “marginais”, que surgem e se con-

sagram na fala, conferindo a este tipo de produção um traço de maior

informalidade se comparado aos textos escritos.

Valéria utiliza muito a gente (tudo o que está acontecendo a gente está

vendo; a gente está sabendo), para se referir não só a ela como ao povo

brasileiro em geral. A aluna usa ainda termos genéricos, que têm seu senti-

do preenchido no texto (fulano roubou; não sei quem foi preso; o pessoal

também está... com medo disso...; ficava todo mundo mais alienado).

Esses termos, aparentemente imprecisos e vagos, são usados com toda a

propriedade em produções faladas, uma vez que a situação comunicativa

trata de preencher seu sentido.

Ainda falando em situacionalidade, outra marca dos textos falados é

a utilização dos chamados marcadoresdiscursivos. São termos que não

cumprem uma função sintática específica, uma vez que não participam

da organização interna da frase. Ao

contrário, formam uma classe cujo

papel é concorrer para a contextua-

lização externa do texto, para a bus-

ca de interlocução e concordância

dos demais participantes.

Como outros recursos linguísti-

cos dessas produções, os marcado-

res discursivos não são referidos pe-

los compêndios gramaticais, já que

tais fontes se voltam de modo precípuo para a descrição das produções

escritas, tendo no chamado “período composto” seu limite de análise.

COMENTÁRIO

CONCEITO

Marcadores discursivos:

Marcadores discursivos são itens, em geral tomados de empréstimo de outras classes gramaticais do português, que são articulados com o intuito de provocar a adesão e a anuência do interlocutor ao que está sendo dito. Estamos nos referindo a termos como né?, pô e sei lá, ilustra-dos no texto de Valéria.

Os marcadores, bem como os demais recursos atinentes à situacionalidade, conferem tom mais informal aos textos falados.

Page 61: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 3 • 61

Propriedades do texto falado: a reiteração

A terceira propriedade que caracteriza a fala é a reiteração. Se, em

textos escritos, o que declaramos pode ser lido e relido, o que evita

repetições ou paráfrases, na fala; pelo contrário, é mesmo pertinente

e necessária a reiteração, o reforço do que dizemos.

Tal reforço tem a ver não só com a necessidade de clareza, ênfase e convenci-

mento como também com a preocupação em relação ao interlocutor, com sua

capacidade de memorização de informações em curto prazo.

Seja por um motivo ou pelo outro, o fato é que a repetição nos

textos falados é considerada marca constitutiva dos mesmos. Tal

como outras propriedades mencionadas nesta seção, não se trata de

problema ou falha de organização das produções faladas, mas sim

de traços fundamentais que caracterizam, em menor ou maior grau,

essa modalidade em suas distintas manifestações.

Voltando ao texto de Valéria, podemos observar a constância com

que as declarações são reiteradas, principalmente aquelas cujo senti-

do é fundamental para a expressão da sua opinião acerca da situação

política do Brasil.

Assim, a afirmativa inicial de que agora está tendo uma abertura maior é logo

retomada na paráfrase (a gente) está vendo o que está acontecendo, na

sequência reformulada em tudo o que está acontecendo a gente está vendo.

Ao longo do texto, Valéria vai retomando a tese inicial, o que vem reforçar

sua opinião e garantindo, por tabela, o convencimento de seu interlocutor.

De outra parte, e até para destacar sua opinião, ao longo do texto a

aluna contrasta a situação política atual com o momento anterior. Para-

lelamente às declarações da boa fase do Brasil, em termos políticos, ve-

rifica-se uma série de outras referências contrastivas em relação à época

atual, voltadas para comentários avaliativos de períodos passados.

A reiteração concorre também para instaurar o contraste referido. Desse

modo, a informação não é o que era antigamente encontra-se reiterada em

a gente não... sabia de nada,ficava tudo escondido, não tinha informação e

não podia se falar, entre outras tantas.

Um recurso de caráter reiterativo e também fortemente apoiado na si-

tuação contextual é o que se denomina ressonância, conforme definido

em Du Bois (2010). No texto de Valéria, essa estratégia pode ser verificada

em alguns momentos, quando a aluna interage com o entrevistador.

RESUMO

CONCEITO

Ressonância:

Segundo esse postulado, quando falamos utilizamos recursos linguísti-cos que foram usados pelos interlo-cutores; assim, nossa fala acaba por “ressoar”, repetindo e reiterando o que foi dito imediatamente por outro.

Page 62: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

62 • capítulo 3

Inicialmente, sua pergunta das três? configura-se como retomada dos três eixos sobre os quais

poderia falar e que foram propostos pelo entrevistador: agora eu queria que você me dissesse a sua

opinião... ou sobre a situação... política... ou econômica... ou da educação... no Brasil... A resposta

do entrevistador, por sua vez, ressoa e retoma também a pergunta da Valéria: não... de uma... das

três... Na sequência final do relato, novamente o entrevistador intervém como a declaração você...

é a primeira otimista [que eu entrevisto]; logo após, inclusive sobrepondo-se à fala do entrevistador

(como marcado pelos colchetes), Valéria reitera essa referência com [eu tenho... ] eu tenho espe-

rança, em uma declaração que posteriormente ainda é retomada em que se eu não acreditar... fica

um pouco sem sentido e, por fim, em vamos tentar lutar para melhorar isso aí.

Ficou claro, até agora, como no texto falado as informações são retomadas, seja de

forma literal, seja como paráfrase; observa-se também como nos apropriamos de per-

guntas e declarações de nossos interlocutores a fim de elaborarmos criativamente nos-

sas produções faladas.

Somos menos originais do que podemos supor; nossa fala tem mais expressão do que propriamente con-

teúdo novo... Enfim, falar é retomar, reelaborar e repetir, sejam as próprias declarações, sejam as de outros.

Propriedades do texto escrito

Tratados alguns dos traços mais característicos da fala, vamos agora nos voltar para a

produção escrita. Para tanto, nos debruçamos sobre o relato de Valéria, redigido pela

própria. Destacamos que o texto é apresentado aqui tal como escrito por ela, sem qual-

quer correção ortográfica ou outros ajustes.

A respeito da situação política do país, acho que as pessoas estão se conscientizando deque

cada um, é, de algum modo, responsável pela “vida” do País. Os meios de comunicação per-

ceberam a arma que tem nas mãos e com a dita democracia ficou mais fácil deles desempe-

nharem a função de informantes, que informam o que as pessoas estão interessadas em ser

informadas e não aquela “incheção de linguiça” que não nego ainda existi, mas que a cada dia

que passa vem sendo mais criticada, acho que as pessoas estão mais acordadas, principal-

mente os jovens, que foram às ruas e tiveram a sensação de tirar um Presidente do governo.

Hoje, a sujeira está mais às claras, todos ficam sabendo. Antes quando tudo era mais censu-

rado, as coisas aconteciam, mas ninguém ficava sabendo.

Tenho esperança de que um dia as coisas entrem nos eixos, que esta tão falada moralização,

definitivamente impere e tenho certeza de que se todos fizessem sua parte seria bem mais fácil,

faço a minha, mas sei que posso fazer mais. Acho que é por aí.

Disponível em: http://www.discursoegramatica.letras.ufrj.br/

RESUMO

Page 63: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 3 • 63

A primeira leitura do texto escrito já indica que estamos diante de

outra prática discursiva. Comparadas as três propriedades básicas da

fala (fragmentação, situacionalidade e reiteração), tratadas na subseção

anterior, temos aqui marcas distintivas. Levando-se em conta que se tra-

ta da mesma pessoa, Valéria, discorrendo sobre o mesmo tema, no mes-

mo tipo de texto, de caráter dissertativo, as distinções aqui destacadas

são entendidas como efetivamente ligadas às condiçõesdeprodução de

modalidade distinta, no caso a escrita.

Uma dessas implicações reside no formato mais compactado da

escrita, em comparação à fragmentação da fala. Na versão escrita,

Valéria utiliza frases mais longas e encadeadas. A disposição do tex-

to, organizado em torno de períodos compostos por coordenação e

subordinação, distribuídos em três parágrafos, concorre para que se

instaure essa marca de maior condensação da escrita.

Já no primeiro período, destaca-se tal característica: A respeito da situação

política do país, acho que as pessoas estão se conscientizando de que cada

um é, de algum modo, responsável pela “vida” do país. Após anunciar o tema

sobre o qual discorre (a respeito da situação política do país), a aluna formula

sua opinião valendo-se do encadeamento de três estruturas oracionais, mar-

cadas pelos usos verbais eu acho que, se conscientizando e é responsável.

Essa estratégia, que confere mais complexidade de forma e senti-

do à sua expressão, é retomada ao longo de todo o texto, concorrendo

para que haja maior vinculação tanto em termos estruturais (no nível

formal) quanto em termos semânticos (no nível conceitual).

Se, no texto falado, a unidade é obtida por intermédio da continuidade de frases

curtas, hesitações e rupturas, no texto escrito o caráter unitário se consegue por

meio de outras estratégias, como a maior integração de frases, organizadas em

períodos maiores e distribuídos em parágrafos.

Como a produção escrita é aprendida, mediante recursos que

devem ser bem treinados, uma das tarefas da escola é justamente

capacitar as pessoas a utilizarem com competência as estratégias

de compactação escrita, na elaboração de períodos e parágrafos

eficientes e capazes de satisfazer as exigências do texto. Portanto,

são dois tipos de continuidade distintos.

RESUMO

Condições de produção:

Essa constatação evidencia que todos nós, ao falar e escrever, portamo-nos linguisticamente de modo diferencia-do, dadas as características inerentes a cada tipo de produção. Nesse caso, não se trata da nossa escolha ou von-tade, mas simplesmente de outro tipo de contextualização que nos impõe comportamento diverso, o que tem fortes implicações do ponto de vista linguístico, entre outros.

CURIOSIDADE

Page 64: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

64 • capítulo 3

CONTINUIDADE NA FALAArticula-se pela justaposição de frases curtas, entremeadas por hesitações e rupturas.

CONTINUIDADE NA ESCRITAMaior integração de sentido e forma, organizada em torno de frases e períodos mais longos e parágrafos.

Em termos de situacionalidade, a segunda propriedade abordada

na subseção anterior, também as condições de produção apresentam

distinções. Enquanto, no texto falado, Valéria confere com o entrevis-

tador o tema sobre o qual vai discorrer, no texto escrito, ela já parte

dessa definição anterior (A respeito da situação política do país).

Tal característica aponta o maior tempo de planejamento da escrita, a preparação

que se dá previamente e que evita, na elaboração das produções escritas, que

essas marcas sejam expressas. Se ainda temos referências ao momento em que

se dá a produção escrita, como o uso de hoje e antes, por exemplo, por outro lado,

estas referências são mais esporádicas do que no texto falado.

Em termos de articulação pronominal, os pronomes usados no

texto escrito são mais convencionais, se comparados aos do texto

falado. Na comparação entre as duas produções, temos:

USO DE PRONOMES NA FALA“a gente”“fulano”

“o pessoal”“Não sei quem”

USO DE PRONOMES NA ESCRITA“as pessoas”

“todos”“as coisas”

Embora não sejam muito formais, as referências pronominais da escrita podem

ser consideradas mais convencionais e próximas do que descreve e prescreve a

tradição gramatical do português.

Com relação ao uso de elementos de conexão, a situação é outra. Se,

na fala, Valéria marca seu texto com elementos como né?, pô e sei lá,

agora, na modalidade escrita, a aluna praticamente não utiliza esse tipo

de estratégia coesiva. O vínculo entre sentido e forma é atingido pela jus-

taposição de períodos, sem recurso a marcadores ou operadores.

No que se refere à propriedade de reiteração, o texto escrito, embo-

ra não se afaste do tema, recorre menos a retomadas e paráfrases do

que seu correspondente falado. A maior compactação de sentido/for-

ma da escrita concorre para que haja menos recorrências e repetições.

RESUMO

RESUMO

Reiteração:

Esse menor recurso aos elementos reiterativos tem a ver com as condi-ções da escrita, em que tanto escrito-res como leitores podem, a qualquer momento, retomar o texto, ler nova-mente o que está escrito.

CURIOSIDADE

Page 65: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 3 • 65

Sintetizando o que vimos até agora: podemos dizer que fala e es-

crita apresentam distinções em termos de:

PRINCIPAIS DISTINÇÕES ENTRE FALA E ESCRITA

Distribuição das informações- Fala é mais fragmentada;- Escrita é mais compactada.

Contextualização

- Fala é mais apoiada nos elementos da situação comunicativa (contexto imediato);- Escrita é baseada na utilização de código específico (ortografia, acentuação, pontuação, paragrafação).

Recursos de reiteração- Fala é mais repetitiva, com retomadas literais e uso de paráfrases;- Escrita usa menos o recurso de reiteração.

Para fecharmos esta subseção, vamos assistir ao vídeo a se-

guir, em que os professores e linguistas Angela Dionísio e

Luiz Antônio Marcuschi tratam das modalidades falada e es-

crita como “multimodais”. Que característica é essa? Do que

falam esses especialistas? Vamos lá!

Vídeo produzido pelo Centro de Estudos em Educação e Linguagem (ceel) da

Universidade Federal de Pernambuco (ufpe). Publicado no YouTube pelo canal

institucional do ceel em 06/04/2011.

Observadas as propriedades gerais das modalidades falada e es-

crita, é hora de nos atermos ao que ambas as modalidades têm em co-

mum, aos traços que as caracterizam como faces da mesma moeda.

Propriedades comuns da fala e da escrita

Se, a princípio, fala e escrita têm traços próprios, relativos às con-

dições específicas a partir das quais cada modalidade é produzida,

há, por outro lado, propriedades comuns a ambas, que as fazem ser

vistas como manifestações da mesma língua. Nesta seção, vamos nos

dedicar a três dessas marcas constitutivas que textos falados e escri-

tos manifestam. Para ilustrarmos os comentários, vamos nos valer

novamente dos textos falado e escrito de Valéria, apresentados nas

subseções anteriores.

Em termos de sentido, a primeira das propriedades gerais partilha-

das por produções faladas e escritas é a centralidadetemática.Nesse

aspecto, qualquer texto produzido, independentemente da modalidade,

MULTIMÍDIA

CONCEITO

Centralidade temática:

Significa dizer que falamos e es-crevemos “sobre” um assunto, um tema geral, ainda que, como no caso da fala, possamos nos desviar da proposta inicial, com hesitações e rupturas em relação ao que começa-mos a declarar.

Page 66: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

66 • capítulo 3

deve responder a perguntas como: de que trata esse texto? Qual o tema

desenvolvido? O que aborda? Se essas respostas não puderem ser da-

das, estamos diante de produções com falha ou deficiência, em termos

de articulação de sentido.

Assim posto, os relatos de Valéria são entendidos como compe-

tentes produções, na medida em que manifestam, efetivamente, a

opinião da aluna acerca da situação política do Brasil. Ao final de

cada relato, é possível ao interlocutor saber a opinião referida.

Dizemos, assim, que se trata de produções com centralidade temática, com foco

sobre aquilo que efetivamente se quer desenvolver e se desenvolve.

No plano estrutural, uma segunda propriedade geral a marcar tex-

tos falados e escritos é a organizaçãosintática. Mesmo com a maior

fragmentação da fala e a maior compactação da escrita, sempre há,

para as produções verbais do português, a necessidade de ordenação

de constituintes segundo critérios da gramática da nossa língua.

Assim, tanto nas muitas frases curtas do texto falado de Valéria (como

em fulano roubou... a gente está sabendo... eh:: não sei quem foi preso...),

quanto nos períodos maiores e mais complexos de seu texto escrito

(como em as coisas entrem nos eixos... se todos fizessem sua parte seria

bem mais fácil... faço a minha...), a ordenação svo está presente.

Outro ponto comum a produções faladas e escritas é a conexão

textual. Ainda que na fala haja hesitações, rupturas, frases mais cur-

tas e reiterações, é necessária a presença de termos responsáveis pela

garantia da vinculação de sentido e forma. Vejamos:

ELEMENTOS DE CONEXÃO ESTRUTURAL NO TEXTO ANALISADO

NA FALA

Os elementos de conexão são mais informais, considerados “marginais” na tradição gramatical do português. No relato de Valéria, os elementos de conexão destacados são os marcadores né?, pô e sei lá.

NA ESCRITA

A conexão textual é articulada por intermédio de elementos mais formais, como as conjunções. No relato de Valéria, os elementos de conexão se restringem ao elemento que, iniciando uma série de orações subordinadas (acho que, a

arma que tem, que informam, entre outras) e a outros usos conectivos, como mas ou de que.

De um modo ou de outro, o que queremos aqui ressaltar é que

cada tipo de produção, consideradas suas condições contextuais es-

pecíficas, faz uso de recursos linguísticos cuja função é garantir uni-

dade de sentido e de forma ao que é expresso.

RESUMO

CONCEITO

Organização sintática:

Em português, a ordem/organiza-ção mais comum e regular é aquela sintaticamente referida como svo (sujeito + verbo + objeto), chamada “ordem padrão”. É essa ordem que a comunidade linguística mais facilmen-te produz e recebe as manifestações linguísticas.

Page 67: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 3 • 67

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

IMAGENS DO CAPÍTULOp. 54 Presidente Lula Ricardo Stuckert · Planalto

p. 63 Agendando compromisso Autor desconhecido · Office

ALAMBERT, Francisco. A Semana de 22: a aventura modernista no Brasil. Rio de Janeiro: Scipione, 1992.

CAMACHO, Roberto G. Norma culta e variedades linguísticas. Disponível em: http://acervodigital.unesp.br/

bitstream/123456789/40354/1/01d17t03.pdf. Acessado em 25 jan. 2013.

CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova Gramática do português contemporâneo. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

DU BOIS, John. Discourse and Grammar. In: TOMASELLO, M (ed). The New Psychologie of Language: cognitive and

functional approaches to language structure. v.2. London: Lawrence Erlbaum, 2003, p. 47-87.

LUCCHESI, Dante. Parâmetros sociolinguísticos do português brasileiro, Revista da ABRALIN, v.V, nº 1 e 2, 2006, p. 83-112.

ROCHA LIMA, Carlos Henrique. Gramática normativa da língua portuguesa. 28 ed. Rio de Janeiro:

José Olympio, 1987.

TEYSSIER, Paul (Tradução Celso Cunha). História da língua portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

Page 68: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras
Page 69: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

Gênero, tipologia e sentido

bethania mariani e lucília

de souza romão

4

Page 70: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

70 • capítulo 4

O presente capítulo tem como tema a palavra em seu uso cotidiano, ou

seja, os modos como ela é mobilizada em situações diversas: seja na

fala diária, nos relatos jornalísticos, na literatura, nos escritos dispos-

tos em muros das cidades, na comunicação pessoal na rede digital etc.

O fato é que toda palavra produz sentido em um contexto dado e

específico, e isso faz toda diferença para compreendermos os signifi-

cados, os sentidos em jogo.

O senso comum nos ensina que o sentido da palavra é sempre e apenas um,

como se a língua estivesse em estado de dicionário, congelada e sem movimento.

Para compreender que os sentidos são múltiplos, precisamos perce-

ber os movimentos dos sentidos. Comecemos pelo que ManoeldeBarros

nos proporciona no livro Memórias inventadas (2008).

Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra esco-

vando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque

ficavam ali sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que

aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar

osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas

civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei de

escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram

conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que esta-

riam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras pos-

suem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remonta-

das. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada

uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. Comecei a

fazer isso sentado em minha escrivaninha. Passava horas inteiras, dias inteiros

fechado no quarto, trancado, a escovar palavras. (Barros, 2008, p. 21)

Pois bem, partindo dos conceitos iniciais e da leitura de Manoel de

Barros como inspiração, podemos traçar o objetivo de compreender

“alguns clamores antigos”, “muitas oralidades remontadas” e “as sig-

nificâncias” de certas palavras em dadas situações. Para isso, é preciso

“escovar” a palavra, o que para nós significa interpretá-la em seu con-

texto de uso, buscando compreender como o texto e o discurso funcio-

nam, como se inscrevem de modo singular a cada novo enunciado e

como produzem sentido a partir da posição de onde fala o sujeito.

Sentido:

A palavra “fogo” pode, em primeira vista, indicar ao menos dois sentidos: incêndio ou disparo de arma. Esse exemplo aponta a necessidade de es-cuta dos dados contextuais em que a palavra foi proferida, a situação e/ou a conjuntura em que foi pronunciada; mais ainda, a posição social de quem a proferiu.

EXEMPLO

COMENTÁRIO

AUTOR

Manoel de Barros:

Manoel Wenceslau Leite de Barros, nascido em Cuiabá (1916), é um poeta brasileiro do século

xx. Pertence cronologicamente à Geração de 45, mas, formalmente, ao Modernismo brasileiro.

4 Gênero, tipologia e sentido

Page 71: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 4 • 71

Três textos servirão de começo para nossos estudos. O primeiro é um poema-música de

Carlinhos Brown, Marisa Monte e Arnaldo Antunes, denominada Contato imediato (disco

Qualquer, de Arnaldo Antunes, 2007):

Peço por favor / Se alguém de longe me escutar / Que venha aqui pra me buscar / Me leve para

passear / No seu disco voador / Como um enorme carrossel / Atravessando o azul do céu /

Até pousar no meu quintal / Se o pensamento duvidar/ Todos os meus poros vão dizer / Estou

pronto para embarcar / Sem me preocupar e sem temer / Vem me levar / Para um lugar / Longe

daqui / Livre para navegar / No espaço sideral (...)

O eu poético convoca nosso olhar para perceber a necessidade de encontrar um al-

guém perto para depois viajar “para além do céu”, um alguém de carne e osso com

quem viveria a aventura de uma viagem amorosa, quase ao modo de uma odisseia inter-

planetária. Vamos analisar alguns fragmentos?

Rememoramos as inúmeras narrativas de contatos com seres extraterrestres, contatos imediatos de primeiro e segundo graus, os filmes que já trataram desse tema.

O poema está endereçado a alguém com quem se pretende um contato, mas não qualquer um (“alguém de longe”, que nunca teve contato antes).

Contato imediato (Título)

“Peço por favor / se alguém de longe me escutar / que venha aqui para me buscar”

Diz estar preparado para mudar sua vida radicalmente, sem medo do novo, aberto para novas experiências.

“Estou pronto para embarcar / sem me preocupar e sem temer”

O poema-música aponta um modo de dizer ao outro, lançar um pedido, fazer um contato, não por

um meio tecnológico, mas pela poesia; e o seu contexto nos diz do deslizamento de sentido que a

poesia permite, qual seja, da viagem espacial para a viagem amorosa.

O texto a seguir, disposto no muro de uma capital brasileira, também é endereçado

a um outro.

Não há alongamento na trama do

texto: ele é curto, pois será lido, no

contexto da urbanidade, com a rapi-

dez de um passar de olhos, da janela

de um carro ou ônibus, no flash de

um momento.

O autor conversa com a Alice, que

pode ser uma moradora de São Paulo

e/ou a personagem do conto famoso

de LewisCarroll. Ou seja, mais de uma

possibilidade de “Alice” estão em fun-

cionamento na poética dessa inscrição.

COMENTÁRIO

Page 72: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

72 • capítulo 4

Seriam as maravilhas do fantástico, do sonho e dos delírios mais

estranhos que a personagem vive na ficção maravilhosa, ou seriam

as maravilhas de uma Alice que tem lá seu cotidiano cheio de graça?

A abertura de sentidos, ou seja, a possibilidade de surgirem novos

sentidos onde antes só existia um, está aqui fazendo funcionar dados

de um contexto: o da cidade imensa (talvez sem tantas maravilhas de

inventar) e o da obra literária.

O gênero discursivo

Os dois exemplos que vimos colocam-nos diante de um conceito impor-

tante para compreender o funcionamento dos textos: o gênero discursivo.

Refletindo sobre o termo, notamos que é muito amplo, sendo em-

pregado em vários campos do saber. Vejamos alguns exemplos:

NO CINEMA NA LITERATURA NAS CIÊNCIAS SOCIAIS

São criados modos de classificar filmes pelo gênero, como drama, suspense, ação.

Os gêneros textuais marcam modos diferentes das estruturas para definir conto, poesia, romance, entre tantos outros.

As ciências sociais marcam os estudos de gênero ligados ao campo da sexualidade, assinalando as singularidades do feminino e do masculino.

Neste capítulo, o objeto é o gênerodiscursivo, e ele tem longa história.

Para começarmos a falar de gênero textual, vamos partir de um

filósofo russo da linguagem, MikhailBakhtin (2003), que fundou al-

guns conceitos importantes, como:

DialogismoProcesso de interação entre textos orais e escritos, posto que eles sempre se remetem e continuam em outros textos posteriores.

Carnavalização

Manifestação da cultura popular e, a partir da leitura e análise da obra de François Rabelais, na Idade Média e no Renascimento, define-se tal termo como um processo de desestabilização, subversão e ruptura do mundo oficial e das convenções estabelecidas.

PolifoniaTermo emprestado da música que significa as várias vozes que percorrem os textos e os discursos.

AUTOR

AUTOR

Lewis Carroll:

Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898) sempre foi mais conhecido por seu

pseudônimo, Lewis Carroll. Estudou Matemática na Universidade de Oxford e lá se tornou professor. Em suas obras, há presença de enigmas, jogos matemáticos e desafios de lógica, ainda que implícitos. Sua obra mais famosa é Alice no país das maravilhas, publicada em 1865.

Mikhail Bakhtin:

Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975) foi um filósofo e pensador russo, des-

tacando-se por seus estudos nas áreas de crítica literária, filosofia da linguagem e antropologia, entre outras. Atribui-se a ele o pioneirismo nas pesquisas sobre polifonia e gêneros do discurso.

Gênero discursivo:

O genêro discur-sivo foi teorizado primeiramente na Grécia antiga, por Platão. Ele propôs

uma classificação dual, entre gênero sério (epopeia e tragédia) e burlesco (comédia e sátira).

CURIOSIDADE

Page 73: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 4 • 73

Bakhtin debruçou-se de modo mais alentado sobre o tema e definiu que

gênero são formas “relativamente estáveis” de um enunciado, determina-

das historicamente, com as quais nos comunicamos, falamos e escrevemos.

Não há possibilidade de enunciar e/ou tomar a palavra sem mo-

bilizar as formasinfindáveisdegêneros com os quais lidamos desde

que aprendemos a falar e escrever.

“A riqueza e a diversidade dos gêneros discursivos são ilimitadas, porque as pos-

sibilidades de atividade humana são também inesgotáveis e porque cada esfera

de atividade contém um repertório inteiro de gêneros discursivos que se diferen-

ciam e se ampliam na mesma proporção que cada esfera particular se desenvol-

ve e se torna cada vez mais complexa” (BAKHTIN, 1986, p. 60) .

Assim, o autor define gênero como uma forma típica de enunciado,

que sofre mudanças a depender do contexto em que está inserido e que

tem uma plasticidade imensa, posto que está em movimento constante.

Por isso, a cada situação comunica-

tiva, colocamos em movimento uma

grande heterogeneidade de gêneros.

Para o autor russo, o gênero re-

nasce e se renova em cada nova eta-

pa do desenvolvimento da literatura

e em cada obra individual de um

dado autor. Nisso consiste a sua vida. Para ordenar a complexidade

do conceito que funda, ele divide gêneros em dois grupos:

Referem-se a situações comunica-cionais cotidianas, espontâneas, informais que sugerem um contato mais imediato entre os sujeitos.

São normalmente mediados pela escrita, indiciam situações comunicacionais mais complexas, elaboradas.

As conversas de elevador, a carta, o bilhete, chat etc.

Roteiro de uma peça de teatro, uma tese, uma palestra etc.

PRIMÁRIOS SECUNDÁRIOS

EXEMPLOS EXEMPLOS

Temos, segundo o autor, duas esferas de produção de enunciados

que se originam na oralidade e transbordam para além dela, que se

combinam em inúmeras possibilidades de recriar o mundo e que ga-

nham materialidade em gêneros primários e secundários.

O autor propõe ainda que os gêneros secundários são elabora-

ções dos primários, visto que é a partir das discursividades cotidianas

REFLEXÃO

Formas infindáveis de gêneros:

Você já teve um diário ou ao menos se lembra de um? A maioria já teve diversos desses livros em que se re-gistram ideias, opiniões, sentimentos, utilizando uma linguagem mais infor-mal, tendo o uso do vocativo presente (“querido diário”) . Pois então, assim como em qualquer gênero discursivo, o diário possui características linguís-ticas específicas.

CURIOSIDADE

“O gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo” Bakhtin.

Page 74: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

74 • capítulo 4

que se originam muitos dos relatos, nar-

rativas e enunciados levados a termo pela

literatura, jornalismo etc.

Essa teorização nos coloca diante de

um impasse: como definir o fio que separa

um gênero de outro? Como classificar,

sem dúvidas, algum texto? De que modo

teríamos condições de fixar as fronteiras entre gêneros se o próprio Bakhtin observou a

porosidade entre eles? Vamos ver um exemplo:

Fonte: ROSA, João Guimarães. Ooó do Vovô. São Paulo: Edusp, 2003.

O texto nos coloca diante de uma indagação classificatória: seria o cartão-postal do

vovô Guimarães Rosa enviado para sua netinha Vera um gênero primário, pois repro-

duz uma situação informal, cotidiana e docemente apresenta um tom infantil na de-

monstração de carinho?

Esse ponto de brincar com a língua da netinha, de desenhar, o jeito de estar com ela a despeito da

distância, de adaptar a escrita esbarrando na oralidade, como vimos, traça um modo de funcionamento

mais próximo da informalidade, um registro espontâneo e sem preocupação com a complexidade –

embora isso seja extremamente trabalhoso, diga-se de passagem.

No cartão há sonoridades, palavras, nomes de pessoas, referências familiares e lem-

branças apenas compartilhadas entre avô e netinha, que engendram um dado contexto

familiar, uma situação e uma estratégia de dizer.

No fundo, o que marca a diferenciação entre os dois gêneros é o nível de complexidade em que os enunciados se apresentam.

EXEMPLO

COMENTÁRIO

Page 75: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 4 • 75

Porém, as mesmas características estão em passagens de romances

e contos de Rosa, como marcas de informalidade e do dizer espontâ-

neo para caracterizar personagens, por exemplo.

No entender de Bakhtin, no romance, tais marcas de espontaneidade ganham

corpo de gênero secundário, posto que o estatuto de complexidade do discurso

é maior e está mediado pela escrita. De certo modo, elas derivam de situações

menos formais em que a língua foi posta à prova na cotidianidade e desdobrada

em situações menos compromissadas com o rigor de uma formalização.

O importante nesse caso não é apenas identificar o gênero dis-

cursivo, mas o seu modo de funcionamento, as marcas que ele traz,

inscreve e atualiza em um dado contexto comunicacional.

Por conta disso, julgamos que, além do conceito de gênero visto

anteriormente, podemos enriquecer nosso olhar com a reflexão de

EniOrlandi, especialmente em relação ao conceito tipologia discursiva.

Do gênero para o funcionamento do discurso

Orlandi (1996), tomando como ponto de vista a análise do discurso,

propõe observar o funcionamento dos discursos a partir dos lugares

ocupados pelos sujeitos ao enunciar, ou seja, a partir do modo como

o sujeito se posiciona diante do objeto de que fala, do outro a quem

fala e de si mesmo como interlocutor possível a este outro.

Além do lugar ocupado pelo sujeito, Orlandi também aponta as

condiçõesdeprodução como objeto de análise, bem como a dinâmi-

ca da interlocução que se dá no discurso.

Preocupada em discutir a interação entre sujeitos, a autora aposta que “todo fa-

lante, quando diz algo a alguém, estabelece uma configuração para seu discurso”.

(ORLANDI, 1996, p. 153)

Como exemplo podemos citar, a título apenas de passagem, que

dizer "esquerda", em diferentes momentos da vida política nacional,

teve implicações muito diferentes. Ou seja, essa palavra (e qualquer

outra) colocada em um discurso reclama que olhemos as condições

de produção em que foi proferida, o modo como as relações de poder

estão estabelecidas na trama social, o lugar que o sujeito ocupa e de

onde fala historicamente.

Tal pressuposto faz cair por terra a máxima da neutralidade absolu-

ta, isto é, de que haveria uma relação direta, isenta de posicionamento

RESUMO

ATENÇÃO

AUTOR

Eni Orlandi:

Pesquisadora, professora universi-tária e introdutora, no final dos anos 1970, da Análise do

Discurso no Brasil. Eni Orlandi é au-tora de diversas obras relacionadas à teoria do discurso. Em 1993, venceu o prêmio Jabuti em Ciências Humanas, com o livro As Formas do silêncio.

CONCEITO

Condições de produção:

As condições de produção são enten-didas aqui como o contexto linguís-tico e o contexto da situação, o que envolve o sócio-histórico e a memória. As condições de produção constituem toda e qualquer tomada de palavra.

Esquerda:

Na política, o termo "esquerda" deriva da Revolução Francesa. Durante uma votação na Assembleia Nacional Constituinte, em 28 de agosto de 1789, deputados que se opunham à proposta de “veto do rei” sentaram-se à esquer-da do assento do presidente, o que tornou-se um costume na demarcação entre o apoio à República e o apoio à Monarquia. Na imagem você vê um dos símbolos artísticos da Revolução Francesa, o quadro A liberdade guiando

o povo (1830), de Eugène Delacroix (1798-1863).

CURIOSIDADE

Page 76: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

76 • capítulo 4

e correspondente entre palavra-mundo, que o sujeito

deveria preservar em sua fala para ser fiel à realidade.

Por exemplo, ao dizer “terra”, não tomamos

essa palavra como neutra e dicionarizada, isenta do

político; dizer “terra” implica tomar o sujeito que a diz e de onde ele se situa para fazê-lo.

Temos um efeito de sentido quando “terra” é falada por um índio lutando pela preservação de sua aldeia.

Para um retirante, o efeito de sentido da palavra “terra” pode ser outro, como “esperança”, por exemplo.

No caso de um astrônomo, “terra” pode ser vista como um corpo planetário, um conceito de pesquisa.

Não é de acreditar que uma palavra será dita e significada do mesmo modo por todos igualmente, visto

que os sentidos, na trama social, são distribuídos de modo heterogêneo, desigual e contraditório. Por

isso, dizer “terra” tem como implicação assumir-se em uma posição e produzir sentidos a partir dela.

Em cada discurso há uma “dinâmica da interlocução”.

A dinâmica da interlocução, por sua vez, é o modo como a troca de papéis entre lo-

cutor e ouvinte se materializa no discurso.

No momento de dizer, os sujeitos atribuem uma imagem do lugar social que ocupam, ou seja, fazem uma

representação para si mesmos desse lugar. Também fazem uma imagem, uma representação do lugar

ocupado pelo interlocutor. E, finalmente, também atribuem sentidos ao objeto que está em discurso.

Por ora, interessa compreender que essas imagens, ou representações, estão me-

diando os movimentos de interlocução e isso produzirá maior ou menor abertura à

polissemia, à troca de turnos, à poética e ao deslizamento de sentido.

A palavra é sempre um ato político no sentido mais amplo do termo.

EXEMPLO

RESUMO

ATENÇÃO

Page 77: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 4 • 77

Tipologia discursiva

Entendemos, assim, que o estudo da tipologia discursiva sinaliza a

possibilidade de analisarmos o movimento tenso entre a paráfrase

– repetição e manutenção dos sentidos legitimados – e a polissemia –

possibilidade do novo e emergência do sentido outro.

Eni Orlandi define, então, uma tipologia discursiva com três mo-

dos de funcionamento:

• Discurso lúdico;

• Discurso polêmico;

• Discurso autoritário.

Em cada um deles há “uma atividade estruturante de um discurso determinado, para

um interlocutor determinado, por um falante determinado, com finalidade específica”.

(ORLANDI, idem, p. 153)

Discurso lúdico

No discurso lúdico, a reversibilidade é total, a polissemia é aberta e o

objeto do discurso está em jogo sem que nenhum dos interlocutores

queira tê-lo apenas para si. Estamos no campo da poética, em que

os sentidos correm soltos com possibilidade de tornarem-se outros.

Vamos a dois exemplos, nos quais está presente o funcionamento

do discurso lúdico, isto é, de um brincar com os sentidos.

Assum preto

Tudo em vorta é só beleza / Sol de abril e a mata em frô / Mas Assum Preto,

cego dos óio / Em um vendo a luz, ai, canta de dor (bis) / Tarvez por ignorança /

Ou mardade das pió / Furaro os óio do Assum Preto / Pra ele assim, ai, / cantá

de mió (bis) / Assum Preto véve sorto / Mas em um pode avuá / Mil vez a sina

de uma gaiola / Desde que o céu, ai, pudesse oiá (bis) / Assum Preto, o meu

cantar / É tão triste como o teu / Também roubaro o meu amor / Que era a luz,

ai, dos óio meus / Também roubaro o meu amor / Que era a luz, ai, dos óios meu

Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga (1950)

A analogia entre o sentimento do poeta e o pássaro que teve seus olhos

furados está posta aqui de modo a promover um deslizamento poético,

do canto do pássaro para o cantar do trovador, um representando o outro.

CONCEITO

Paráfrase e polissemia:

Paráfrase é, em resumo, dizer o mesmo com outras palavras, conservando as ideias trazidas no enunciado original. Eventualmente, na paráfrase acrescen-tam-se comentários ou informações novas, mas sempre com o intuito de ratificar o texto original. A polissemia, por sua vez, é o fenômeno natural em que qualquer palavra adquire sentidos múltiplos, múltiplas interpretações, de acordo com as condições de produção e as posições de sujeito assumidas, entre outros.

COMENTÁRIO

EXEMPLO

Page 78: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

78 • capítulo 4

No poema, o eu poético e o pássaro não conseguem ver que “em

vorta é só beleza”. Nesse discurso, não há interesse em ser dono de

uma verdade sobre o pássaro ou sobre os efeitos de vida, prisão e li-

berdade. Busca-se trazer um sentimento, a partir de uma analogia,

que permite a qualquer interlocutor interpretar, aplicar em sua reali-

dade, ser atravessado por aqueles sentidos.

A cantoria brinca com a cegueira dos “óio” que veem sem enxergar o amor, e

isso coloca em jogo uma polissemia aberta, produzindo novas significações em

virtude do efeito paradoxal ali estabelecido (“ver” e “não ver” ao mesmo tempo).

Continuando nessa concepção, veremos na música a seguir que

um diálogo se estabelece pelo nome do pássaro e pela forma como o

sujeito se coloca diante dos sentidos de amor e liberdade.

Assum Branco

Quando ouvi o teu cantar / Me lembrei nem sei do quê / Me senti tão só / Tão

feliz tão só / Só e junto de você / Pois o só do meu sofrer / Bateu asas e voou /

Para um lugar / Onde o teu cantar / Foi levando e me levou / E onde a graça de

viver / Como a chuva no sertão / Fez que onde for / Lá se encontre a flor / Que

só há no coração / Que só há no bem-querer / E na negra escuridão / Assum

preto foi / Asa branca dói / Muito além da solidão

José Miguel Wisnik (álbum Pérolas aos poucos, 2010)

O poeta aqui brinca com o título de duas canções de Luiz Gonzaga

(Assum preto e Asa branca), promovendo uma retomada para dizer de

outro pássaro, agora branco, de outro sentimento, já que o “só” do

sofrer do poeta bateu asas e voou.

Algo do “bem-querer” se configura como saída para o poeta, que

escolhe uma cor de paz e tranquilidade para nomear o pássaro, o co-

ração de “bem-querer”. Aqui é possível estar feliz e só, só e junto com

o amor, ou seja, os efeitos de presença/ausência deslocam o que an-

tes estava posto em torno dos sentidos de visão e dos “óios” na prisão.

O primeiro texto, de Luiz Gonzaga, possui polissemia tão marcadamente aberta que

permite, inclusive, outros efeitos de sentido para outros poetas, como visto no texto

de José Miguel Wisnik. Esses dois textos, que consideramos de tipo lúdico, abrem

caminho para que sentidos fluam e a dinâmica de interlocução se materialize.

COMENTÁRIO

EXEMPLO

AUTOR

José Miguel Wisnik:

José Miguel Soares Wisnik (1948) é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo, além de músico e compositor de discos e trilhas sonoras. Publica regularmente textos sobre música e literatura.

REFLEXÃO

Page 79: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 4 • 79

Discurso polêmico

No discurso polêmico, a reversibilidade e a polissemia são controladas. O objeto do

discurso está presente em disputa e os interlocutores tentam dar a ele uma direção. A

ilustração a seguir nos indica um funcionamento discursivo desse tipo, posto que colo-

ca em cena duas vozes em tensão pelo mesmo objeto.

Inspirado na charge original de Angeli, publicado na coluna do autor no portal uol

(http://www2.uol.com.br/angeli/). Acesso em 21/04/2013.

O anúncio de um político, em campanha eleitoral televisiva, marca a posição de su-

posto desenvolvimento na urbanização da cidade, com a construção de obras grandes

para acesso viário.

O que tal voz coloca em cena é a cidade como lugar prioritário para a circulação de carros, ou seja,

daqueles que possuem carros e consequentemente outros bens (casa, por exemplo).

A resposta de um dos muitos que estão vivendo nas ruas aponta outra voz e coloca a

cidade em disputa tensa pelos sentidos não de circulação, mas de moradia. Obras como

viadutos e elevados são discursivizados como locais de ocupação e como promessa do

fim dos problemas da casa própria.

As vias públicas da cidade são tomadas pelos interlocutores a partir de diferentes posições e, ao modo de

uma disputa, cada um responde pela posição que ocupa e pela imagem que traça do espaço que habita.

Discurso autoritário

No discurso autoritário, a reversibilidade e a polissemia tendem a zero, o sujeito oculta

o objeto do discurso que não deve ser colocado à prova, restando o sentido de ordem e

a submissão ao comando de um dos interlocutores.

COMENTÁRIO

ATENÇÃO

Page 80: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

80 • capítulo 4

“A verdade é imposta”, afirma Orlandi (1996, p. 155), e a paráfrase se estabelece

como única via possível. Repetir o mesmo e copiar o estabelecido sem questionamento

e sem que o interlocutor possa se posicionar.

Outra ilustração aponta para o que estamos explicando. Ele faz falar a assimetria e a

voz de comando que sustentam o discurso autoritário.

Apenas o “patrão” tem direito a sentenciar sobre o “fim da folia”, inscrevendo um

modo de fazer retornar os papéis aos seus lugares já estabelecidos, que não serão mo-

dificados senão no enquanto da festa do carnaval.

Embora a fantasia faça parecerem próximas ou iguais as duas pessoas, o dizer de uma delas silencia qualquer

possibilidade de semelhança, inscrevendo a voz de autoridade na relação patrão e empregado. No tempo

presente, não há caminho aberto para colher a resposta do empregado, pois a reversibilidade é zerada.

Situações de oralidade

A tipologia proposta por Orlandi traz a possibilidade de compreensão, em cada

texto, seja falado ou escrito, dessa tensão inscrita na língua em uso. Vamos seguir

adiante com esse tópico da língua em uso

pensando, agora, exclusivamente em situa-

ções de oralidade.

Para Barthes, não se pode retomar o que

foi dito, “a não ser que se aumente: corrigir

é, nesse caso, estranhamente, acrescentar. Ao falar, não posso usar a borracha, apa-

gar, anular; tudo o que posso fazer é dizer: ‘anulo, apago, retifico’, ou seja, falar

mais”. (1988, p.90)

ATENÇÃO

“A palavra é irreversível, tal é a sua fatalidade.” Roland Barthes

Page 81: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 4 • 81

Que tal exemplificarmos? Acompanhemos, a seguir, uma conver-

sa entre uma avó e seus netinhos:

“Vamos, Julinha, vamos Pedrinho, está na hora de ir para a caminha. Hoje temos

de dormir com as galinhas. Amanhã vamos bem cedo para a praia”, disse a vovó

para os netinhos de 6 e 4 anos, respectivamente. “Dormir com as galinhas? Que

esquisito!”, exclamou Pedro. “Por que vamos dormir com as galinhas? Eu não

quero!”, estranhou Júlia fazendo uma careta. A vovó riu muito e explicou para os

netos o que a expressão “dormir com as galinhas” queria dizer.

Como podemos perceber, na situação de oralidade, quando o que é dito

fica truncado ou ambíguo, podemos retomar as palavras já ditas e per-

guntar, pedir esclarecimentos.

No diálogo entre a avó e os netos, fica claro que, diante de uma pa-

lavra ou expressão nova, ainda desconhecida, ou ao ouvir metáforas

e provérbios, as crianças não se acanham e logo perguntam sobre o

que parece bizarro, sem sentido.

Lembremos que, como vimos, as situações de discurso muitas ve-

zes são do tipo autoritário, quase impedindo que nos manifestemos,

seja para perguntar, seja para pedir mais exemplos, seja para discor-

dar, seja para propor outras formas de explicação.

Homofonia

Avancemos mais um pouco. Um fenômeno linguístico específico da lin-

guagem oral que muitas vezes causa

interferência na compreensão do que

está sendo dito é a homofonia.

Em todas as línguas há palavras ho-

mófonas. Como exemplo, vejamos o

seguinte diálogo, que resulta da trans-

crição de parte de uma entrevista dada

pela escritora Clarice Lispector:

“— Você tem paz, Clarice?”

“— Nem pai nem mãe.”

“— Eu disse paz.”

“— Que estranho, pensei que tivesse dito pais. Estava pensando em minha mãe

alguns segundos antes. Pensei – mamãe – e então não ouvi mais nada. Paz?

Quem é que tem?” (biografia de Clarice Lispector, por Benjamin Moser, p. 101)

As homofonias, assim como outras formas de ambiguidade, estão na língua.

EXEMPLOCONCEITOHomofonia:

Homofonia são palavras pronuncia-das de maneira semelhante, mas que são escritas de maneiras diferentes e possuem significações distintas.

Page 82: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

82 • capítulo 4

Homofonicamente semelhantes, sobretudo quando faladas no

Rio de Janeiro, “paz” e “pais” produziram uma ambiguidade inicial,

um equívoco logo desfeito e justificado por Clarice.

Das tramas orais para a análise da conversação

Alguns linguistas, diante da língua em uso, se propuseram a analisar a

conversação. Há, portanto, um campo de estudos que se interessa jus-

tamente pela compreensão do modo de funcionamento da conversa.

Por que estudar os processos conversacionais? Como nos lem-

bra o linguista Luiz Antonio Marcuschi (1986, p. 5), a linguagem

humana, e, portanto, o ato de conversar, é uma prática social que

constitui lugar para construção de identidades.

Claro que há diferentes maneiras de a conversação se realizar,

depende do contexto. Por exemplo, uma conversa entre patrão e em-

pregados funciona de modo diferente da conversa entre pais e filhos.

As situações são inúmeras: conversas entre crianças, entre médico e

paciente, entre deficientes auditivos etc. Assim, poderíamos seguir

adiante pensando nas diferentes situações.

Por outro lado, poderíamos nos perguntar se entre árbitro de futebol e jogadores há

prática conversacional. Ou, ainda, em julgamentos, haveria alguma conversa ali entre o

juiz e o réu? De um modo geral, o que importa é compreender o que permite que a con-

versa prossiga ou, por outro lado, o que determina uma interrupção ou mal-entendido.

Haveria princípios que governam uma conversação para que ela

seja eficaz? Seria possível depreender princípios para uma maior efi-

cácia na conversa? Para responder a estas questões, vamos estudar

o que Herbert Paul Grice, um especialista nas áreas de semântica,

pragmática e filosofia da linguagem, propõe sobre a conversação.

Imagine o seguinte diálogo entre dois alunos: “Que horas são?” E o outro

responde: “Hora de ir embora, já vai tocar o sinal.” Nesse diálogo, a respos-

ta é dada a partir da pressuposição de que ambos partilham um mesmo

conhecimento sobre o horário de término da aula. Por isso, um não se pre-

ocupa em responder exatamente a partir da indicação do relógio.

Tal diálogo nos remete ao traço polissêmico da linguagem, qual seja a

abertura para uma resposta da ordem do inesperado, já que se pode an-

tecipar de uma pergunta como aquela (“Que horas são?”) uma resposta

direta e relacionada à pergunta (“São xx horas“).

REFLEXÃO

COMENTÁRIO

AUTORHerbert Paul Grice:

Herbert Paul Grice (1913-1988) foi um filósofo britânico e linguista, tendo

prestado enorme contribuição aos estudos da filosofia da linguagem, sobretudo às questões de significa-ção e lógica.

Page 83: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 4 • 83

Quando analisamos os processos conversacionais, podemos aprender mais sobre

o funcionamento geral da linguagem, sobretudo em contextos específicos das situa-

ções de interlocução.

Grice quer demonstrar aquilo que é efetivamente dito e o que não é dito na constituição de uma con-

versação, de tal modo que, muitas vezes, uma pergunta ou uma resposta é dada em função de algo

que foi implicado, sugerido, significado.

A partir dessa constatação, Grice afirma que algumas implicaturas são conversa-

cionais, ou seja, estão conectadas a certas características gerais da conversação. Nesse

sentido, quando falamos não emitimos frases desconexas, mas sim esforços cooperati-

vos para gerarmos aceitação do interlocutor sobre o que e como falamos.

“Cada participante reconhece (...) um propósito comum ou um conjunto de propósitos ou, no mí-

nimo, uma direção mutuamente aceita. Este propósito ou direção pode ser fixado desde o início

(...) ou pode evoluir durante o diálogo; pode ser claramente definido ou ser bastante indefinido a

ponto de deixar aos participantes considerável liberdade (como em uma conversação casual) .”

(GRICE, 1982 [1967], p. 86)

Para Grice, como vimos, alguns princípios gerais devem ser observados em uma conver-

sação. Em outras palavras, o autor formula um conjunto de princípios gerais, ou máximas

conversacionais, que podem funcionar como elementos para um uso cooperativo e eficaz

da linguagem, como se fossem uma espécie de guia para uma conversação bem sucedida.

As máximas conversacionais se inserem em um princípio geral: o princípio da cooperação. Sendo

assim, podem ser divididas em quatro categorias:

1. máxima da quantidade (seja tão informativo quanto necessário);

2. máxima da qualidade (seja o mais verdadeiro possível);

3. máxima da relevância (ser pertinente em relação ao objetivo da conversa);

4. máxima do modo (seja ordenado, claro e breve).

Para Grice, se uma conversa é uma troca de informações, então é importante seguir a má-

xima da quantidade, por exemplo. Da mesma forma, é importante que a informação que da-

mos seja verdadeira. Assim, estaremos de acordo com a máxima da qualidade.

A cooperação entre os interlocutores na conversa também precisa ser relevante. Por

fim, se de fato temos a intenção de cooperar em uma situação de conversa, é importante

o modo de dizer.

Para que você compreenda melhor as máximas conversacionais de Grice, analise o

trecho de letra da música Sinal Fechado, de Paulinho da Viola, lançada no disco Sinal

Fechado (1974), de Chico Buarque.

RESUMO

REFLEXÃO

ATENÇÃO

Page 84: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

84 • capítulo 4

– Olá! Como vai? / – Eu vou indo. E você, tudo bem? / – tudo bem! Eu vou indo, correndo pegar meu

lugar no futuro... e você? / – Tudo bem! Eu vou indo em busca de um sono tranquilo... Quem sabe?

/ – Quanto tempo! / – Pois é, quanto tempo! / – Me perdoe a pressa – é a alma dos nossos negócios!

/– Qual, não tem de quê! Eu também só ando a cem! / – Quando é que voê telefona? Precisamos nos

ver por aí! / – Pra semana, prometo, talvez nos vejamos... Quem sabe?

Com muita argúcia e valendo-se de frases curtas, o compositor escreve um diálo-

go, fruto do reencontro entre dois amigos que não se veem faz muito tempo. Uma con-

versa corrida, palavras trocadas no espaço de tempo de um sinal fechado no trânsito

de uma cidade, por exemplo.

Comecemos pensando na máxima da cooperação. Houve cooperação nesse diálogo? Nesse caso, po-

demos afirmar que os dois amigos de fato investiram, no curto espaço de tempo que havia, em buscar

um princípio cooperativo a fim de estabelecerem algum intercâmbio conversacional.

E as máximas da quantidade e da relevância também foram aplicadas? Nesse caso,

vale ponderarmos: como julgar a quantidade de informações necessárias a serem tro-

cada nesse curto espaço de tempo?

Se avaliarmos as repostas dadas à pergunta “Como vai?”, ambos dizem que estão bem. Porém, acres-

centam que “Eu vou indo... correndo pegar meu lugar no futuro”, e “Eu vou indo em busca de um sono

tranquilo...”. Seriam essas informações necessárias, verdadeiras e relevantes? Teria havido alguma

cooperação conversacional aqui? Essas expressões são claras?

Uma conversa é, como nos diz o referido linguista, repleta de implicaturas e de re-

ticências que vão sendo significadas de várias maneiras. Assim, devemos assinalar o

quanto o estabelecimento de concatenações na modalidade oral da língua depende do

contexto de uso, ou seja, depende da situação de interlocução e das representações que

fazemos de nosso interlocutor.

Embora a contribuição de Grice seja extremamente relevante para os estudos da conversação, não é

possível seguir à risca as exigências das máximas conversacionais.

A compreensão, na modalidade oral, depende também da troca de olhares, dos ges-

tos, bem como da ênfase, da entonação, ou seja, de mecanismos paralinguísticos e su-

pra-segmentais, respectivamente. Nesse sentido, na língua em uso, vamos nos valer de

recursos bem diferentes daqueles empregados na modalidade escrita. E isso define a

EXEMPLO

COMENTÁRIO

RESUMO

REFLEXÃO

Page 85: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 4 • 85

relação dos interlocutores entre si e com os objetos aos quais fazem

referência, relação esta que se aproxima do que estudamos anterior-

mente sobre a tipologia e o gênero discursivos.

Linguagem em contextos midiáticos: o caso do blog

Partimos dos conceitos já apresentados nesse capítulo para anali-

sar o uso da linguagem em contextos midiáticos; mais especifica-

mente, os blogs.

Os blogs são uma forma de textualização que colocam em frontei-

ra os gêneros que estudamos, já que comportam marcas da oralidade

e de um tratamento considerado menos sofisticado dos enunciados

(gênero primário), e também materializam certo tratamento mais

elaborado pela escrita (caracterizando o gênero secundário).

Tal movimento nos coloca diante do desafio de perceber as novas configurações

dos gêneros e a fragilidade das classificações engessadas quando tratamos de

textos eletrônicos.

Também entendemos o blog como espaço aberto a diferentes ti-

pologias discursivas que podem se dar e funcionar, em geral, permi-

tindo a polissemia e a reversibilidade, posto que a interatividade é

um dos pontos necessários à rede digital.

DeniseSchittine, cujo trabalho sobre blog é um dos pioneiros nos

estudos da linguagem, sinaliza que “(...) é importante observar como

antigas questões relativas ao diário no papel ganham uma nova pers-

pectiva quando se trata do diário virtual, embora permaneçam as mes-

mas” (2004, p. 14–15). Vejamos alguns pontos que a autora desenvolve:

Memória imortalidade e permanência

Segredo o contar ou não a intimidade a um desconhecido

Tensão entre o espaço público e privado

que aumentará com a passagem para a internet

Relação com o romance ficção

Relação com o jornalismo observação dos fatos

Analisaremos o último ponto registrado pela autora, isto é, a rela-

ção entre o blog e o jornalismo, cujo discurso inscreve um modo de

ordenar e estabilizar efeitos de verdade sobre o mundo.

CONCEITO

Blogs:

Blogs são páginas da internet nas quais são publicados conteúdos de diversos tipos e finalidades, sejam textos, imagens, músicas, vídeos etc. Normalmente apresentam espaço para comentários dos leitores.

ATENÇÃO

Denise Schittine:

Denise Schittine, autora do livro Blog - comunicação e escrita íntima na

internet (2004) , investiga o fenômeno dos blogs, principalmente na forma como eles substituem os velhos diá-rios de papel.

CURIOSIDADE

Page 86: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

86 • capítulo 4

Blog e jornalismo

Sabemos que os jornais, em sua ampla maioria, dependem dos

anunciantes e dos assinantes, ficando, desse modo, subditos aos

jogos de relações de poder vigentes, bem como buscam se adequar

a um imaginário de liberdade e de práticas/concepções valorizadas

pelos leitores/usuários do jornal.

Na produção do discurso jornalístico, tais relações funcionam de modo a não

permitir que certos sentidos se inscrevam, circulem ou produzam outros efeitos.

No entanto, no jornalismo online, algumas brechas se abrem para

a circulação de outros sentidos, para a emergência de outras posi-

ções e para o aparecimento de dizeres que não podem nem devem

ser postos em circulação nas páginas impressas, especialmente nos

ditos blogsinformativos.

Tais blogs (informativos ou jornalísticos) são marcados por uma medida de tem-

po real, estabilizam dizeres sobre a realidade de modo quase contínuo, são

suscetíveis a deslizamentos quase instantâneos, abrem espaço para o discurso

do tipo polêmico e contam com a palavra do leitor internauta tão logo uma

palavra seja postada.

O jornalista Juca Kfouri, comentarista esportivo vinculado a um

grande jornal de circulação nacional, atualiza, mais de uma vez ao

dia, o seu blog. Uma de suas postagens produz o seguinte enlace:

1

2

RESUMO

RESUMO

Discurso jornalístico:

Os manuais de redação e estilo de jornais são exemplo de certa ordem a ser mantida, não apenas no modo de tratar os acontecimentos, ilusoriamente com a certeza de uma narrativa neutra, mas também no modo de dizer e dese-nhar os enunciados, pasteurizados por regras e convenções de escrita.

Blogs informativos:

Muitos jornalistas, com empregos nas grandes empresas de comunicação, mantêm em funcionamento blogs nos quais postam artigos e notícias que não teriam e não têm espaço fora da rede.

CURIOSIDADE

CURIOSIDADE

Page 87: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 4 • 87

1. Juca parte da premissa de que todos viram a renúncia do Papa Bento XVI (2007-2013) , que co-

nhecem o assunto, o que dispensa um relato sobre o sabido. O que se tem aqui é uma suposição, uma

torcida, uma anunciação. “Vai que” sinaliza algo que aconteceu e que poderia ser deslocado para as

autoridades do futebol e dos esportes nacionais.

2. Ao citar uma estatística de quase cem por cento e sinalizar o papa como exemplo de uma “escola”,

Kfouri sugere que as referidas autoridades deixem seus cargos, o que é uma provocação que muitos

jornais impressos não sustentam.

Consideramos que o efeito jocoso de duas manchetes colocadas em sequência, sem

comentários ou sem maior desdobramento como notícia ou como artigo, não seria pos-

sível em um jornal impresso; mas, no blog, isso é possível. Os internautas, por sua vez,

replicaram ativamente, ora sustentando os efeitos postos em discurso, ora discordan-

do e abrindo caminho para outros sentidos, ora comentando sobre religião e política...

Tal polissemia é marca da rede digital e dos blogs, e sinaliza um modo de produzir um funcionamento

discursivo em que a abertura a novos dizeres é latente.

Ao longo deste capítulo, buscamos sinalizar como é fundamental conhecer os con-

ceitos de gênero discursivo, tipologia discursiva, oralidade e análise da conversação, e

tomá-los para o trabalho com diferentes materialidades textuais.

Sabemos que analisar e interpretar textos e discursos reclamam a formação de um lei-

tor conhecedor de dispositivos teóricos e analíticos, exigindo o estudo de vários pesquisa-

dores que se debruçaram sobre a linguagem no anseio e na (in)certeza de compreendê-la.

Se retomarmos o conceito de paráfrase, conforme Orlandi propõe, temos o proces-

so que faz falar a repetição do sentido legitimado como evidente, garantindo a reto-

mada dele sem rupturas ou mudanças. Nesse pêndulo, entre paráfrase e polissemia,

o jogo da linguagem é tecido.

COMENTÁRIO

Page 88: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

88 • capítulo 4

BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense, 1981.

______. Speech genres & other late essays. Austin: Univ. of Texas, 1986.

BARROS, M. Memórias inventadas – as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta do Brasil, 2008.

BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988.

GRICE, Herbert Paul. Lógica e conversação. In: Dascal, Marcelo (org.) Pragmática: problemas, críticas, perspectivas,

bibliografia da linguística. Campinas: Instituo de Estudos da Linguagem da unicamp, 1982.

LEVINSON, Stephen C. Grice’s theory of implicature. In: Pragmatics. Cambrigde: University Press, 1983.

MARCUSHI, L. A. Análise da conversação. São Paulo: Ática, 1986.

MARIANI, B. O pcb e a imprensa. Campinas: unicamp e Revan, 1998.

ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento. Campinas: Pontes, 1996.

SCHITTINE, D. Blog: comunicação e escrita íntima na internet. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

IMAGENS DO CAPÍTULOp. 70 Memórias inventadas Divulgação · Editora Planeta

p. 71 Alice Paulo Vitor Bastos · Estácio

p. 72 Lewis Carroll Autor desconhecido · Wikimedia · dp

p. 72 Busto de Platão A General History for Colleges and High School, Myers, 1894 . Wikimedia · cc

p. 72 Mikhail Bakhtin Autor desconhecido · Wikimedia · dp

p. 72 No cinema M.Zacharzewski · stock.xchng · rf

p. 72 Livro de estudos Autor desconhecido · Office

p. 72 Gêneros Paulo Vitor Bastos · Estácio

p. 75 As formas do silêncio Divulgação · Editora Unicamp

p. 75 A Liberdade guiando o povo Eugène Delacroix · Wikipedia · dp

p. 76 Índio Terena Agência Brasil · Wikimedia · cc

p. 76 Mãos segurando planta Autor desconhecido · Office

p. 76 Spying Jasmaine Mathews · stock.xchng · rf

p. 78 Pérolas aos poucos Divulgação · Maianga Discos

p. 79 Sem teto Victor Maia · Estácio

p. 80 Carnaval Eduardo Trindade · Estácio

p. 82 Herbert Paul Grice Autor desconhecido

Page 89: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

Texto: coesão e coerência

vanise medeiros e

silmara dela silva

5

Page 90: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

90 • capítulo 5

Neste capítulo, vamos apresentar algumas noções importantes para

a conceituação de texto.

Também, iremos apresentar os elementos que contribuem na or-

ganização textual a fim de proporcionar legibilidade ao que escreve-

mos.Nosso objetivo é fazer com que você compreenda o modo de or-

ganização textual para assim poder escrever seus textos acadêmicos

com maior clareza e eficiência.

Um texto, seja oral ou escrito, seja na forma de uma narrativa, de uma descrição

ou de uma dissertação, é uma construção linguística que precisa seguir determi-

nadas estratégias a fim de garantir sua organização interna.

Segundo os linguistas Halliday e Hasan (1976, p. 1), “um texto é

uma unidade da língua em uso”. Essa definição de texto é bastan-

te ampla e apresenta duas características importantes: a unidade e

o uso. Porém, quais são os elementos linguísticos que organizam a

unidade textual? Como a unidade de um texto está relacionada a seu

uso? Vamos responder a essas questões, inicialmente, com o auxílio

de dois renomados autores da área:

CONCEITO

Alcir Pécora, em seu clássico livro Problemas de redação (1983), diz que “um texto não é o produto

de uma justaposição de elementos linguísticos sem referência entre si: não se trata, por exemplo,

de uma soma de orações fechadas ou completas em si mesmas, ocupando um espaço vizinho no

papel ou na enunciação oral. Pelo contrário, quando se reconhece uma determinada manifestação

verbal como sendo constitutiva de um texto, está implícita a ideia de que existem nexos, nós,

ligas (ties) entre seus componentes e que, dessa forma, conferem-lhes uma mútua depen-

dência de significação”. (PÉCORA, 1983, p. 49, grifo nosso)

Ampliando a definição de Pécora, ao incorporar os fatores relativos ao uso, Ingedore Koch (1989)

afirma: “Poder-se-ia, assim, conceituar o texto como uma manifestação verbal constituída de ele-

mentos linguísticos selecionados e ordenados pelos falantes durante a atividade verbal, de modo a

permitir aos parceiros, na interação, não apenas a depreensão de conteúdos semânticos, em decor-

rência da ativação de processos e estratégias de ordem cognitiva, como também a interação (ou

atuação) de acordo com práticas socioculturais”. (KOCH, 1989, p. 23, grifo nosso)

CURIOSIDADE

Texto:

Se buscarmos a etimologia da palavra "texto" no dicionário Houaiss (2001, p. 2713), veremos que, em latim, quer dizer tanto entrelaçar e construir, como também quer dizer narrativa, expo-sição, em que o que foi narrado ou exposto seguiu determinadas formas de organização.

5 Texto: coesão e coerência

Page 91: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 5 • 91

A partir das duas definições vistas anteriormente, pode-

mos chegar à ideia de textualidade, ou seja, uma qualidade

que podemos atribuir a qualquer manifestação verbal que

seja compreensível, legível.

Logo, um texto supõe o manuseio de estratégias linguís-

ticas e algum compartilhamento social e cultural da parte

de falante/ouvinte ou autor/leitor. Vejamos, abaixo, uma pequena e verídica história.

Em uma roda de leitura, a professora anunciou para seus pequenos ouvintes de seis anos que

iria contar uma história: “O sítio do Picapau Amarelo”. Com olhares atentos e respiração suspen-

sa, as crianças ouviram as aventuras de Pedrinho, de Narizinho, do Visconde de Sabugosa, de

Emília, alguns dos personagens do mundo encantado de Monteiro Lobato. Ao final da narrativa,

a professora perguntou se haviam gostado da história. Apesar do “sim” coletivo, uma delas ba-

lançou negativamente a cabeça e disse, para espanto da professora: “Não gostei. Você disse que

era sobre o sítio do picapau amarelo, mas não apareceu nenhum picapau amarelo na história!”.

Essa inusitada reclamação infantil incide sobre uma importante característica das

línguas humanas: as palavras de uma língua, qualquer que seja essa língua, estão vol-

tadas para o mundo exterior e dizem respeito a um objeto desse exterior, ao mesmo

tempo em que constituem esses objetos. Vejamos uma análise:

O item lexical ‘sítio’, tomado isoladamente, constitui uma referência exofórica, ou seja, remete para indicações no mundo, e o referente está situado fora do texto. “Sítio” na história, trata de algum sítio possível.

• Remete para uma possível existência de algum picapau amarelo no mundo.• Relaciona-se a “sítio” - picapau amarelo que está no sítio.• Determina/nomeia “sítio”.

sítio do picapau amarelo

Ao enunciar tal expressão, indicou-se a existência de um lugar (“sítio”) e constituiu-se um ser (“picapau”).

sítio

picapau

Como o picapau não aparece na história, a criança aponta o paradoxo da comunicação linguís-

tica: como é possível que uma mesma história constitua um objeto e não fale dele? Ou seja, a

criança não reconheceu que “picapau amarelo” determina/nomeia “sítio”.

Referência e referenciação

Chama-se referência a característica das línguas naturais de necessariamente estabele-

cer uma orientação, uma indicação para o mundo exterior. Chama-se referente o obje-

to que, na língua, é nomeado, descrito, indicado, enfim, constituído discursivamente,

instituído em palavras.

Um texto, portanto, não é uma simples superposição de frases.

Page 92: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

92 • capítulo 5

Oswald Ducrot afirma: “Desde que haja um ato de fala, um dizer, há uma orientação necessária para

aquilo que não é o dizer. É a esta orientação que podemos chamar ‘referência’, chamando ‘referente’

ao mundo ou objeto que ela pretende descrever. (O referente de um discurso não é, assim, como

por vezes se diz, a realidade mas sim sua realidade, isto é, o que o discurso escolhe ou ins-

titui como realidade)”. (DUCROT, 1984, p. 419, grifo nosso)

Vejamos, agora, esse outro fragmento de texto, no qual se percebe um tecido de re-

missões entre as duas frases presentes:

Suco de laranja faz bem para sua saúde – essa história é velha. A nova é que em breve ele

deve se tornar ainda melhor para nosso corpo. (revista Galileu, fevereiro 2013, número 259, p. 20)

... foi substituído por...“SUCO DE LARANJA”

... foi substituído por...Com omissão do termo “história”

Além de substituir, faz o texto avançar em sua progressão lógica

“HISTÓRIA VELHA”

... foi substituído por...“FAZ BEM PARA SUA SAÚDE”

“ELE”

“NOVA”

“TORNAR AINDA MELHOR PARA SEU CORPO”

Esse jogo de remissões internas ao texto constitui um conjunto de referências

endofóricas, ou seja, formas de organização dos sentidos a partir do conjunto de

remissões referenciais internas ao texto, com outros elementos linguísticos da

superfície textual. Como vimos no exemplo, a referência pode ser estabelecida

por substantivos, sintagmas nominais, fragmentos de oração ou até mesmo por

enunciados completos.

Quando o referente é um substantivo, ou um sintagma nominal, o sistema de remissões endofóricas

que vai sendo construído ao longo do texto irá agregar e produzir modificações na significação inicial.

“Isto é, o referente é algo que se (re)constrói textualmente”. (KOCH, op. cit., p. 31, grifo nosso)

Vejamos nesse pequeno texto, que tem como título Cidade-desejo, o tecido de remis-

sões endofóricas que agrega sentidos.

Cidade-desejo

O Rio de Janeiro não só continua lindo como está mais badalado do que nunca. Sede da

final da Copa do Mundo de 2014 e cidade anfitriã das Olimpíadas de 2016, tem recebido

muitas atenções e lojas de marcas gringas. (revista Claudia, janeiro de 2013, pg. 120)

COMENTÁRIO

CURIOSIDADE

Page 93: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 5 • 93

... é um título cujo sentido é construído pelos sintagmas nominais que o substituem:

“CIDADE-DESEJO”

“Rio de Janeiro”“Sede da final da Copa do

Mundo de 2014”“Cidade anfitriã das

Olimpíadas de 2016”

Em seu conjunto, as subs-

tituições referenciais estabele-

cidas entre os sintagmas que

você acabou de ver organizam

um tecido textual de dependên-

cias internas de significação,

tornando o texto coeso.

Da referência para a coesão

A coesão faz com que um texto tenha sentido, seja compreensível.

Antes de prosseguir, porém, vamos pensar na diferença entre coesão

e coerência. Não se trata de uma distinção simples, mas, de modo

geral, conforme Travaglia e Koch (1990), a coerência é global:

“[a coerência] está diretamente ligada à possibilidade de se estabelecer um sen-

tido para o texto, ou seja, ela é o que faz com que o texto faça sentido para os

usuários, devendo, portanto, ser entendida como um princípio de interpretabi-

lidade, ligada à inteligibilidade do texto em uma situação de comunicação e à

capacidade que o receptor tem para calcular o sentido deste texto”. (TRAVAGLIA

e KOCH, 1990 p. 21)

Imagine a seguinte cena: você encontra uma lista de nomes em

cima de sua mesa de trabalho. Você pega a lista e a guarda na sua

pasta. Na véspera, você havia pedido a um funcionário os nomes de

alguns candidatos a uma vaga de trabalho para avaliar. O que dá

coerência àquela lista é exatamente seu pedido no dia anterior. A

lista sozinha com nomes, fora de “contexto”, não significa, ou me-

lhor, não produz sentido.

Como você pode perceber, a coerência não é uma característica

do texto, mas reside no processos de interação com o texto. Já por

coesão, entende-se “as ligações entre os elementos da superfície tex-

tual” (TRAVAGLIA, 1994, p. 72). Voltemos, agora, ao estudo dos me-

canismos de coesão.

RESUMO

Diremos que um texto é coeso quando o jogo de referências está bem organizado no nível intratextual.

CONCEITO

Coerência:

Os fatores para uma coerência são vários, por exemplo, o conhecimento da situação, os fatores da contextu-alização, as inferências possíveis, a relevância, entre outros.

Page 94: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

94 • capítulo 5

CONCEITO

Endofóricos:

Como já vimos, a referência é situacio-nal (exofórica) e textual (endofórica).

Há distintas maneiras de estabelecer a coesão de um texto. São dois os princi-

pais procedimentos linguísticos que constroem textualmente essa totalidade se-

mântica: “a coesão referencial (referenciação, remissão) e a coesão sequencial

(sequenciação)”. (KOCH, op.cit., p. 27)

A fim de apreender melhor a coesão referencial, vamos ler, agora,

o fragmento do conto intitulado A primeira noite, da autora francesa

Marguerite Yourcenar:

A primeira noite

Era uma viagem de núpcias. O trem seguia para a Suíça trivial: sen-

tados no compartimento reservado, eles se davam as mãos. Um

silêncio pesava entre os dois. (YOURCENAR, 1995, p. 51)

Nesse fragmento, título e primeira frase do texto funcionam como

elementos linguísticos que estabelecem uma referência exofórica,

ou seja, remetem à situação que está sendo narrrada. Essa situação

constitui o contexto.

Observemos que o título e a primeira frase referem-se mutuamente, estabele-

cendo correferência, ou seja, estabelecem uma identidade de referência e uma

proximidade semântica.

Em seguida, o substantivo “trem”, o particípio passado flexio-

nado “sentados”, o pronome pessoal “eles” e o numeral “dois” são

elementos referenciais endofóricos já circunscritos a esse contex-

to, constituído inicialmente pelo título e pela primeira frase. Es-

ses itens lexicais estão concatenados entre si a partir de uma orga-

nizada rede de procedimentos linguísticos, produzindo um efeito

de totalidade.

Quando falamos ou escrevemos, esse jogo referencial precisa ser estabelecido e

partilhado com nossos interlocutores a fim de evitar as ambiguidades, as frases

truncadas e sem continuidade.

No âmbito da modalidade escrita da língua, portanto, é funda-

mental saber usar os procedimentos linguísticos que estabelecem a

referência, ou seja, é necessário saber manejar os nexos coesivos da

produção textual escrita.

ATENÇÃO

COMENTÁRIO

ATENÇÃO

Page 95: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 5 • 95

De início, precisamos planejar o que vamos escrever, o que significa que devemos

ter em mente o tipo de texto que pretendemos e qual nosso objetivo ao escrevê-lo.

Lembremos que nosso interlocutor não estará na nossa frente para fazer perguntas ou

tirar dúvidas. Por isso precisamos conectar as ideias que queremos transmitir em um

todo coeso e coerente; afinal, um texto não é uma mera sequência de frases.

Coesão referencial endofórica

Para haver interpretação semântica, como vimos, é necessário que os elementos do texto sejam

remetidos entre si de modo sistemático. Vamos, agora, ampliar nosso conhecimento sobre a

construção dos procedimentos linguísticos necessários para a coesão referencial endofórica.

Isso pode ser feito de duas formas. Quando ocorre a retomada de um item lexical já colocado no texto,

temos uma anáfora; quando, ao contrário, ocorre a antecipação, temos uma catáfora.

Vejamos um texto cujos termos estabelecem entre si dois diferentes procedimentos

linguísticos de remissão textual:

Cidades históricas e turísticas, Angra dos Reis e Paraty convivem, desde o início

do ano, com um problema diário de 270 toneladas. Ambos os municípios estão

despejando seus resíduos em locais inapropriados, segundo o Instituto Estadual do

Ambiente (inea) . (jornal O Globo, 24/01/2013, pg. 13)

Fragmento 1: “Cidades históricas e turísticas”

CATÁFORAA interpretação semântica depende do que vem a seguir no texto, respectivamente, “Angra dos Reis e Paraty”.

Fragmento 2: “Ambos os municípios”

ANÁFORAO sintagma que inclui o numeral “ambos”, em “ambos os municípios”, retoma itens lexicais que apareceram anteriormente.

A substituição ocorre quando colocamos uma palavra no lugar de outra para evitar uma repetição.

De uma maneira geral, a coesão referencial resulta do funcionamento de vários mecanis-

mos linguísticos: a substituição, a elipse e a sequenciação.

A substituição pode se realizar de diferentes maneiras. Porém, quando substituímos

uma palavra por outra, precisamos ficar atentos ao contexto semântico a fim de garantir

sua continuidade. Vejamos o seguinte trecho:

O maior poeta vivo brasileiro da atualidade, Manoel de Barros, ou, como seus leitores

tocados pela magia de seus versos o definem, “o poeta do pantanal”, “o Guimarães

Rosa da poesia”, “o grande poeta das pequenas coisas.” (HENRIQUES, 2012, p. 58)

ATENÇÃO

Page 96: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

96 • capítulo 5

Temos, aqui, um conjunto de substituições que estabelecem equivalências semânticas em torno

do sintagma nominal “o maior poeta vivo brasileiro da atualidade”.

“O maior poeta vivo brasileiro da atualidade”

“o grande poeta das pequenas coisas”

“o Guimarães Rosa da poesia”“o poeta do pantanal”

“Manoel de Barros”(nome próprio)

EPÍTETOSSubstantivo, adjetivo ou expressão

que qualifica um nome

Se você voltar ao texto, verá ainda que o pronome possessivo “seus”, em “seus versos”, também

é um elemento substitutivo: “magia dos seus versos [do Manoel de Barros]”.

De acordo com Fávero e Koch (1983, p. 40), a substituição pode ser: a) nominal,

feita por meio de pronomes, numerais, indefinidos; b) por nomes genéricos (hipe-

rônimos), como “coisa, gente, pessoa”; c) por substitutos, como “respectivamente, o

mesmo, também, sim, não”.

Ponto importante a observar: a substituição referencial deve considerar o gênero e a flexão de número

do termo que será substituído.

Coesão por elipse

A elipse, por sua vez, marca uma omissão que é recuperável no próprio texto, evitando

uma repetição desnecessária. No trecho a seguir, a coesão é realizada de outra maneira:

Manoel de Barros nasceu no Beco da Marinha, beira do rio Cuiabá, em 1916. (Ø)Mudou-

se para Corumbá, onde se fixou de tal forma que chegou a ser considerado corumba-

ense. Atualmente (Ø)mora em Campo Grande. É advogado, fazendeiro e poeta. (site da

Fundação Manoel de Barros – www.fmb.org.br – acesso em 20/01/2013)

Nesse pequeno trecho, o nexo coesivo é instaurado a partir da elipse, ou seja, da

ausência (representada pelo símbolo Ø) de repetição do nome próprio “Manoel de Bar-

ros”. O verbo “nascer” na 3ª pessoa do singular refere-se a Manoel de Barros, sujeito do

verbo. A partir dessa relação (sujeito–verbo), todos os outros verbos (“mudar-se”, “fixar-

se” e “morar”) também se referem a Manoel de Barros.

COMENTÁRIO

Page 97: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 5 • 97

Para nós, falantes do português, não é necessário que um nome seja repetido, como

vimos no exemplo, pois podemos inferir que estão todos relacionados entre si.

Coesão sequencial

Mencionamos a importância da continuidade na construção de um

texto. Em outras palavras, a continuidade (ou progressão) depende

da seleção lexical e, também, do uso dos elementos de sequenciação.

Os elementos de sequenciação são aqueles que estabelecem nexos coesivos

entre as orações, entre as orações de um mesmo parágrafo e entre os parágra-

fos de um texto. (FÁVERO e KOCH, 1983)

Vamos ler, agora, um fragmento do poema A pesca, de Affonso

RomanodeSant’anna.

O anil / o anzol / o azul

o silêncio / o tempo / o peixe

a agulha / vertical / mergulha

a água / a linha / a espuma

o tempo / o peixe / o silêncio

a garganta / a âncora / o peixe

(...)

O título do poema, associado à seleção lexical que compõe os

versos, não deixa dúvidas: trata-se da descrição de uma pescaria.

Observemos que, no fragmento transcrito, o poeta se utilizou de vá-

rios substantivos e um único verbo.

Em seu conjunto e na maneira em que estão organizados, os itens lexicais for-

mam, de modo adequado, coerente e progressivo, a descrição de uma pescaria.

Vejamos agora outras maneiras de construir a sequenciação tex-

tual, esse importante mecanismo responsável pelos encadeamentos

semânticos.

Os elementos linguísticos que estabelecem encadeamentos, ou

seja, uma rede de conexões internas em um texto, são chamados nexos

ou operadores coesivos. Consideremos a seguinte frase:

CURIOSIDADE

CONCEITO

RESUMO

AUTOR

Affonso Romano de Sant'anna:

Affonso Romano de Sant’anna (1937) é escritor e cronista

brasileiro. Com sólida formação acadê-mica na área de literatura, atuou como docente em diversas universidades brasileiras e estrangeiras, além de criar e dirigir programas de pós-graduação na área. Foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional (1990-1996).

Page 98: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

98 • capítulo 5

Por causa da atuação de uma frente fria, todo o Estado do Rio en-

trou em estágio de atenção, ontem. (jornal Metro, 06/02/2013)

Essa frase poderia ser reescrita de várias maneiras. Vejamos algu-

mas possibilidades de substituição:

... por...“por causa da”

POSSIBILIDADES DE SUBSTITUIÇÃO“em função da”

... por...“atuação de uma frente fria”“presença de massa

de ar frio”

... por...“todo o Estado do

Rio de Janeiro”“o Rio de Janeiro inteiro”

... por...“entrou em estágio

de atenção”“ficou em alerta”

Essas substituições, como se pode observar, ficam circunscritas à

manutenção sinonímica de um mesmo campo semântico.

Nesse processo de substituição, é fundamental manter o sentido estabelecido

pelo operador “por causa da”, que estabelece um nexo coesivo de causalidade

entre as duas orações.

Como você pode notar, é possível alterar os nexos coesivos, mas

manter a ideia geral de causalidade. Se, no lugar de qualquer um des-

ses operadores, colocassemos outro, de outro sentido, toda a significa-

ção seria alterada, você não acha? Volte ao exemplo e substituía “por

causa da” por “apesar da” para ver se o sentido de causa permanece.

Se quisermos que nosso texto tenha manutenção temática e encadea-

mento lógico de ideias, é necessário usar adequadamente os operadores

coesivos para estabelecermos as relações lógico-semânticas pertinentes.

Koch (1989, p. 62–9) distingue oito tipos de encadeamento adequa-

dos a textos dissertativos, narrativos e descritivos.

RELAÇÕES LÓGICO-SEMÂNTICAS

Relação de causalidade“porque”, “visto que”, “em virtude de”, “devido a”, “por motivo de” etc.

Relação de oposição“mas”, “porém”, “apesar de”, “embora”, “contudo” etc.

Relação de condicionalidade“se”, “caso”, “a não ser que”, “contato que”, “a menos que” etc.

COMENTÁRIO

Causalidade:

A causalidade pode ser expressa por diferentes conjunções: "porque”, “já que”, “visto que” etc. E também podemos expressar causalidade em-pregando determinados substantivos (“motivo”, “razão”, “pretexto”, “o porquê”) ou verbos, como “causar”, “acarretar”, “motivar”. (cf. GARCIA, 1977, p. 49)

ATENÇÃO

Page 99: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 5 • 99

Relação de mediação “a fim de”, “com o propósito de”, “para”, “com o objetivo de” etc.

Relação de disjunção“ou” de valor inclusivo – (um ou outro, ambos)“ou” de valor exclusivo – (nunca ambos)

Relação de conformidade “conforme”, “consoante”, “segundo”, “de acordo com” etc.

Relação de modoModo como se realiza uma ação/evento:“Eles seguiam o bloco pulando animadamente”

Relação de temporalidadePode ser tempo simultâneo, anterior, posterior, contínuo: “assim que”, “antes que”, “depois que”, “enquanto” etc.

Além dos operadores citados, Garcia (1977, p. 265–71) enumera outras possibilida-

des de sequenciação. Vejamos os encadeadores apresentados por esse outro autor, a

partir de exemplos:

a) relações de adição, continuação (“Tom Jobim, além de maestro, era compositor também.”);

b) relações de dúvida (“O avião já aterrisou? Quem sabe? É provável, mas ainda não apareceu qual-

quer registro no painel.”);

c) relações de certeza ou ênfase (“Sem dúvida, o avião já pousou.”);

d) relações de surpresa (“Inesperadamente, ouvimos a notícia sobre o atraso do avião.”);

e) relações de esclarecimento (“O avião pousou, em outras palavras, ele já se encontra no pátio.”);

f) relações de recapitulação ou conclusão (“Em suma, vimos o conjunto de possibilidades de estabe-

lecer relações sequenciais coesivas.”) .

O que se observa no modo de construir a sequenciação também é válido quando temos a produção

de um texto maior.

Organização da estrutura textual

Para nossos propósitos, é fundamental que você se lembre de fazer sucessivos encadea-

mentos de forma a apresentar e organizar progressivamente o tema do texto. Agora, ire-

mos explorar como isso se dá em um plano mais amplo, tomando o texto como unidade.

Vamos ler, a seguir, o seguinte parágrafo, transcrito do livro A construção da ordem

(1996), de José Murilo de Carvalho:

“Elemento poderoso de unificação ideológica da política imperial foi a educação superior. E isso por três

razões. Em primeiro lugar, porque quase toda a elite possuía estudos superiores, o que acontecia com

pouca gente fora dela: a elite era uma ilha de letrados em um mar de analfabetos. Em segundo lugar,

EXEMPLO

ATENÇÃO

Page 100: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

100 • capítulo 5

porque a educação superior se concentrava na formação jurídica e fornecia, em consequência, um

núcleo homogêneo de conhecimentos e habilidades. Em terceiro lugar, porque se concentrava, até a

Independência, em quatro capitais provinciais, ou duas, se considerarmos apenas a formação jurídica. A

concentração temática e geográfica promovia contatos pessoais entre estudantes das várias capitanias

e províncias e incutia neles uma ideologia homogênea dentro do estrito controle a que as escolas su-

periores eram submetidas pelos governos tanto de Portugal como do Brasil.” (CARVALHO, 1996, p. 55)

Nesse texto de José Murilo de Carvalho, a progressão textual é realizada com a utilização

de operadores que ordenam a sequência dos motivos que justificam a afirmativa de que foi

a educação superior a responsável pela unificação ideológica durante o período do império.

As “três razões” estão justapostas, não há predominância de qualquer uma delas.

ENCADEAMENTO ARGUMENTATIVO DO TEXTO

“Em segundo lugar” “Em terceiro lugar”“Em primeiro lugar”

TESE / OPINIÃOA educação superior foi a responsável pela unificação ideológica no período do império no Brasil

argumentos / justificativas apresentados por nexos coesivos

Por outro lado, quando queremos escrever um texto em que a progressão se dá por rele-

vância, ou prioridade, devemos nos valer de outros nexos coesivos, como, por exemplo, “antes

de mais nada”, “acima de tudo”, “sobretudo”, “primordialmente”(cf. GARCIA, 1977, p. 263).

A utilização desses operadores introduz uma hierarquia semântica entre os elementos

que compõem o texto. Vamos a outro fragmento extraído de A construção da ordem, de José

Murillo de Carvalho. O texto é construído por contraste. Vejamos:

“O exame da política de terras permite aprofundar a análise das relações entre governo e pro-

prietários rurais. Como a política abolicionista, a política de terras, sobretudo seu ponto alto, a lei

de 1850, atingia de maneira profunda os interesses dos proprietários, ou pelo menos de parcela

deles. Mas ela possui valor analítico distinto por ter provocado alinhamento de proprietários di-

ferente daquele provocado pelo abolicionismo e por não ter sofrido interferência direta da coroa.

Sua especificidade se manifesta ainda com mais clareza quando se examinam os resultados ob-

tidos. Em contraste com a política de abolição, a política de terras quase não saiu do debate

legislativo e dos relatórios dos burocratas dos ministérios do Império e da Agricultura, Comércio

e obras Públicas. Ela foi vetada pelos barões.” (CARVALHO, 1996, p. 303)

Observemos que a progressão é realizada a partir da frase inicial, em que se explicita o

tema “o exame da política de terras...”. A partir daí, o texto vai sendo encadeado por compa-

ração e contraste. Essa forma de sequenciação aparece logo na segunda frase com a intro-

dução do operador “como” (“como a política abolicionista...”). O contraste (ou contrajun-

ção) se inicia na terceira frase, a partir do uso da conjunção “mas” (“mas ela possui...”), e

continua mais adiante no texto, com “em contraste com a política de abolição...”.

Page 101: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 5 • 101

Argumentação e texto argumentativo

Normalmente, quando pensamos em argumentação e em textos ar-

gumentativos, costumamos associá-los a um tipo específico de texto,

o chamado textodissertativo.

É o que fazemos, por exemplo, quando escrevemos uma redação

para o vestibular: argumentamos sobre uma dada questão, como so-

bre o trânsito nas grandes cidades ou a influência da tecnologia na

educação, dentre outras, e, se formos bem sucedidos, teremos como

resultado um texto coerente e coeso, com boa argumentação e bem

aceito pelo leitor que, nesse caso, é um avaliador.

Esse tipo de texto dissertativo/

argumentativo é também muito fre-

quente em jornais impressos: logo

nas primeiras páginas, costumamos

encontrar o editorial, destinado a emi-

tir a opinião do periódico sobre um

determinado assunto.

O que faz o jornal nesse espaço é justamente argumentar, na tentativa de mostrar

ao leitor como a questão em pauta pode e deve ser compreendida. Também nos

jornais são comuns os artigos assinados, que são textos opinativos nos quais jor-

nalistas e especialistas, em diversas áreas, argumentam sobre uma dada questão.

No discurso jornalístico, a presença desses textos declaradamente

argumentativos, em seções específicas, tem um funcionamento particu-

lar: marcar lugares diferenciados para a opinião e para a informação,

mantendo esta última sob

o rótulo da objetividade, do

simples relato dos fatos.

De modo análogo ao que

ocorre no discurso jornalís-

tico, a classificação dos tex-

tos em tipos diversos tam-

bém produz os seus efeitos:

por ela, somos levados a

pensar que somente alguns textos são argumentativos, ou seja, são des-

tinados a “ganhar” a cumplicidade dos leitores. Vejamos algumas afir-

mações de Koch a respeito da relação entre argumento e discurso:

“A simples seleção das opiniões a serem reproduzidas já implica, por si mesma,

uma opção. Também nos textos denominados narrativos e descritivos, a

CONCEITO

Texto dissertativo:

Diferentemente de outros tipos textu-ais, como o narrativo ou o descritivo, o texto dissertativo teria como função principal discorrer sobre uma determi-nada questão a partir de um ponto de vista e, consequentemente, ganhar a adesão do leitor a esse ponto de vista ali expresso, através de argumentos.

COMENTÁRIO

ATENÇÃO

COMENTÁRIO

Lugares diferenciados:

As análises do discurso jornalístico têm discutido muito essa ilusão de objetividade que é construída pela imprensa. Você pode não ter percebido, mas a própria seleção do que será ou não noticiado na imprensa já é uma escolha e diz ao leitor o que deve ser considerado importante em um dado momento histórico. Em outras palavras, entendemos que o discurso jornalístico agenda o que será tema de discussão na cidade e no país. Logo, todo ele é, por natureza, argumentativo.

Sob essa perspectiva teórica, toda linguagem se dirige ao outro e, nesse sentido, todo ato linguístico é argumentativo.

Page 102: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

102 • capítulo 5

argumentação se faz presente em maior ou menor grau (...) O uso da lingua-

gem é inerentemente argumentativo.” (KOCH, 1987, p. 19–20, 104)

De um modo geral, a argumentatividade na linguagem está relacio-

nada à persuasão do outro, ao agir sobre o outro em termos linguísti-

cos. Além disso, há textos e enunciados que têm como característica

marcante uma formulação construída para levar o leitor a certos tipos

de conclusão, ou de eliminação de opiniões divergentes. Esses textos

se marcam por lançar mão de diferentes estratégias que orientam a

argumentação. Compare, por exemplo, os dois enunciados a seguir:

Meu time, aliás, está preparado para o jogo.

A palavra “aliás” implica uma força argumentativa maior que a vista no primeiro enunciado, pois funciona como uma afirmação que atua sobre o interlocutor de modo a não ser possível negar sua veracidade.

Trata-se de uma afirmação, de limitado poder de argumentação/persuasão, depende de o interlocutor acatar ou não a afirmação como verdade.

Meu time está preparado para o jogo.

Observe agora os exemplos a seguir e veja qual enunciado, na sua

opinião, possui maior força argumentativa:

1

2

Ele leu e fichou tudo para fazer a monografia.

Ele não só leu como também fichou tudo para fazer a monografia.

Você já percebeu que o segundo tem maior força argumentativa,

não é? E o que está servindo para isso são os elementos “não só” e “como

também”, que funcionam como em uma escala argumentativa, de acor-

do com o semanticista OswaldDucrot. (In: GUIMARÃES, 1987, p. 19–32)

Vamos entender melhor como isso funciona?

Para a linha teórica de Ducrot, a argumentação está na própria língua, “especificamente

no léxico”, como nos explica Zoppi-Fontana (2006). Assim, os enunciados e as palavras

que compõem o léxico de uma língua em particular já trariam consigo valores argumen-

tativos específicos, que conferem certa direção ao que é dito (orientação argumentativa).

RESUMO

AUTOR

Oswald Ducrot:

Oswald Ducrot (1930) é um linguista francês cujas obras e estudos versam, especialmente, sobre

a semântica da enunciação. Em seus estudos semânticos, uma das questões abordadas é justamente a argumenta-ção. Para Ducrot, a argumentação não é uma propriedade de certos tipos de texto e não está meramente condicio-nada à intenção do sujeito que busca persuadir o outro com o seu dizer.

Page 103: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 5 • 103

Alguns elementos linguísticos teriam então maior valor argumen-

tativo que outros, o que permitiria dispô-los em uma escala argumen-

tativa (dos termos com menor valor argumentativo para aqueles com

maior “poder” de argumentação).

Quer outro exemplo de como os próprios termos empregados no dizer funcionam

argumentativamente? Você já deve ter ouvido a metáfora do copo, geralmente

utilizada para diferenciar as pessoas otimistas daquelas consideradas pessimistas:

“Meio cheio”“Meio vazio”Pessimista Otimista

Diante de uma mesma quantidade de água em um copo, é possível afirmar que ele

está “meio cheio” ou “meio vazio”. Dependendo do enunciado emitido, podemos che-

gar a conclusões diferentes, apesar de a quantidade de água no copo ser a mesma.

Como afirma Zoppi-Fontana (2006) , nesse exemplo, “meio cheio” e “meio va-

zio” possuem valores argumentativos, e nos permitem entender a argumentação

como “direcionamento para uma possível continuação” (p. 196); ou, como nos diz

Guimarães (2002, p. 78) , “argumentar é dar uma diretividade ao dizer”.

O tempo verbal é outro importante operador argumentativo.

Formas verbais no imperativo, por exemplo, possuem um valor ar-

gumentativo bastante relevante e, por isso, são muito frequentes no

discurso publicitário.

O modo imperativo é muito recorrente nos discursos da mídia que

buscam uma maior proximidade com os seus leitores, posto que seus

enunciados interpelam o interlocutor, incitando-o a uma atitude/

ação. Chamadas como “Acompanhe a movimentação do trânsito no

Carnaval” e “Tire suas dúvidas de português com nosso dicionário”

são apenas alguns exemplos do funcionamento dessa forma verbal.

Como podemos observar, todos esses enunciados buscam encami-

nhar a uma única conclusão: a efetivação da compra. O que nos leva a

concluir que a publicidade é um texto argumentativo por excelência; afi-

nal, seu objetivo é levar quem a lê a comprar o produto. Ela age sobre o

COMENTÁRIO

EXEMPLO

Imperativo:

Você se lembra daquele anúncio em que uma meninha ficava dizendo de forma encantadora “compre Baton?” Pois é, reparou que o verbo encon-tra-se em uma forma imperativa? É o mesmo funcionamento que vemos em slogans famosos, como “Beba Coca-Cola” e em dizeres correntes em propagandas das mais diversas, como “Compre agora”, “Assine já” ou “Compre um e leve dois”.

CURIOSIDADE

Page 104: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

104 • capítulo 5

outro de forma a impeli-lo a preferir um produto a outro, a substituir um

produto por outro mais moderno. Para isso, a comparação, o verbo e os

adjetivos (como “novo” produto) têm força argumentativa.

Argumentação e ironia

Até aqui mostramos e destacamos a importância dos elementos coesi-

vos na construção de um texto; e como, dentre eles, alguns têm maior

força argumentativa que outros. É hora de pensar em outro mecanis-

mo que também tem força argumentativa: trata-se daironia.

Estudada desde a retórica, a ironia é do interesse do campo lite-

rário, do filosófico, e, como veremos, também da linguística. Vamos

pensar um pouquinho sobre isso. Leia o fragmento abaixo retirado

do romance O amor, de Julian Barnes:

Podemos ver aí um uso oposto, sarcástico e inteligente do silogismo servindo à argumentação de um discurso não religioso.

Deus é perfeito; nada no mundo é perfeito; portanto, nada no mundo foi feito por Deus. (Barnes, 2000, p. 33)

Nesse fragmento, está em cena um silogismo. O enunciado de

Barnes apresenta duas premissas – “Deus é perfeito” e “nada no

mundo é perfeito” – e uma conclusão – “portanto, o mundo não foi

feito por Deus” – que vai contra um discurso religioso presente e

atuante em nossa sociedade: “Deus criou o mundo”.

Indo adiante, para Ducrot (1987) a ironia consiste em um fenôme-

no polifônico, isto é, com a ironia, duas vozes comparecem: uma que

enuncia e outra que é trazida nessa enunciação. Essa outra, além de

não ser da responsabilidade do locutor – não é ele quem a diz, mas

um outro que lhe é anterior –, é posta como absurda ou contraditória.

Se voltarmos ao silogismo de Barnes, nele, outro dizer é trazido à baila – o de

que Deus criou o mundo – e é posto em suspeição por uma lógica aristotélica

(o silogismo). Daí advém sua força argumentativa: da corrosão do dizer do outro.

Corrosão que pode se dar seja pelo riso, seja pelo estranhamento, seja pela des-

construção da lógica de uma determinada forma de pensar.

A ironia desfaz, portanto, a argumentação do outro. É por isto que a

ironia é muitas vezes apontada como perigosa, percebeu? E não se trata

apenas de um fenômeno verbal mas também não verbal, como ocorre

na caricatura e nos quadrinhos, por exemplo.

COMENTÁRIO

CONCEITO

CONCEITO

Ironia:

Segundo o dicionário Houaiss (2009), ironia é: “1. ret figura por meio da qual se diz o contrário do que se quer dar a entender; uso de palavra ou frase de sentido diverso ou oposto ao que deveria ser empregado, para definir ou denominar algo [A ironia ressalta do contexto.] 1.1 lit esta figura, caracteri-zada pelo emprego inteligente de con-trastes, usada literariamente para criar ou ressaltar certos efeitos humorísticos (...) 3. uso de palavra ou expressão sarcástica; qualquer comentário ou afirmação irônica ou sarcástica 4. fil disposição fingida de aprender com outrem, a quem se interroga habilmen-te, fazendo-o entrar em contradição e evidenciando o caráter errôneo de suas concepções.

Silogismo:

Silogismo é uma forma de raciocínio, desde os gregos, que consiste em apresentar três proposições afirmativas, sendo as duas primeiras funcionando como premissas que se articulam entre si e que levam à conclusão posta na terceira afirmação. Um silogismo famo-so, que você deve conhecer, é: “Todo homem é mortal. Sócrates é homem. Logo, Sócrates é mortal.”

Page 105: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 5 • 105

Observe a figura a seguir:

No caso da figura, a ironia coloca em confronto a expectativa que

é gerada a partir do estereótipo de “surfista”, contrastada pela forma-

lidade que ele emprega no uso da língua.

Por fim, é preciso lembrar que a ironia é, sobretudo, relacional, isto é, depende

da relação daquele que diz com aquele que a escuta ou a lê. Da conivência ou do

repúdio. Sua força corrosiva – e, portanto, argumentativa – está em desdizer um

dizer outro, em expô-lo para destruí-lo, em fazer rir do outro.

Intertextualidade

Até aqui, tratamos do funcionamento do texto de um modo geral, bus-

cando mostrar os modos como ele se organiza. Para isso, falamos so-

bre noções importantes, como referência, coesão, textualidade e argu-

mentatividade. Para fecharmos esta nossa conversa sobre texto, vamos

abordar apenas mais um de seus aspectos: a intertextualidade.

Da mesma maneira que podemos observar, em qualquer texto, os

modos como os seus elementos internos se organizam e a maneira

como esse objeto linguístico estabelece referências com a exterioridade,

também podemos perceber um diálogo constante com outros textos,

que geralmente se faz por retomadas, remissões e releituras.

Veja o que afirma Bentes (2003, p. 269), ao tratar da intertextualidade: “Em nossas

práticas cotidianas de linguagem, não percebemos o quanto os produtores utili-

zam-se dessa rede de relações entre os textos, ao elaborarem os seus próprios

CONCEITO

Intertextualidade:

Para Ingedore Kock (1990), a inter-textualidade é um fator que confere coerência aos textos, uma vez que para ser interpretado, é necessário que ele guarde alguma relação com textos que o antecederam. Mas alguns textos de fato retomam, explicitamente ou não, outro texto, o que permite ao leitor reconhecer esse diálogo entre textos. Segundo Indursky, a intertextualidade consiste na “retomada/releitura que um texto produz sobre outro texto, dele apropriando-se para transformá-lo e/ou assimilá-lo.” (INDURSKY, 2006, p. 70)

RESUMO

ATENÇÃO

Page 106: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

106 • capítulo 5

textos, e o quanto nós, leitores ou destinatários, não percebemos que, ao processarmos o que lemos ou

ouvimos, muitas vezes nos utilizamos de nosso conhecimento sobre outros textos, para atribuir sentido

global às diversas formas textuais com as quais temos contato”.

De fato, como afirma Bentes, a intertextualidade é mesmo muito frequente e comparece

em textos variados. Um exemplo clássico de intertextualidade está no hino nacional brasileiro:

[...]

Do que a terra, mais garrida,

Teus risonhos, lindos campos têm mais flores;

"Nossos bosques têm mais vida",

"Nossa vida" no teu seio "mais amores." [...]

Joaquim Osório Duque Estrada (1922)

Observou como os dois últimos versos comparecem grafados entre aspas? É justamente um indicativo

de que se trata de uma citação de dois versos da famosa Canção do Exílio, poema de Gonçalves Dias:

[...]

Nosso céu tem mais estrelas,

Nossas várzeas têm mais flores,

Nossos bosques têm mais vida,

Nossa vida mais amores.

Gonçalves Dias, em Primeiros cantos (1847)

Nesse caso, a letra do hino nacional marca explicitamente o emprego de dois dos versos do

poema de Gonçalves Dias, incorporando, assim, parte desse texto.

A citação é um modo de estabelecer relações intertextuais e também é uma prática mui-

to frequente nos textos acadêmicos, como você já percebeu durante a leitura deste capítulo.

Porém, nem todas as relações intertextuais são assim tão explícitas como ocorre na citação.

Em alguns casos, ela tem um funcionamento diferente, menos marcado. Observe essa frase:

Essa cruzada, a guerra contra o terrorismo, vai demorar algum tempo.Declaração de George W. Bush, então presidente dos EUA, cinco dias após o ataque às

Torres Gêmeas (11/09/2011)

Quando o então presidente utilizou a palavra “cruzada”, intencionalmente ou não, provocou ira e pro-

testos. Isso porque a palavra remete a um contexto de perseguição de cristãos contra muçulmanos,

na Idade Média, o que resultou em uma jornada de extermínio àquele povo. Muitos interpretaram o

discurso de Bush como uma convocação de cristãos para uma guerra santa contra o universo islâmico.

COMENTÁRIO

Page 107: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 5 • 107

Outra forma de intertextualidade é a paródia. São vários exem-

plos, como as do quadro Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, e são tam-

bém várias as paródias do poema Canção do Exílio, que já menciona-

mos. Uma delas, analisada por Sant’anna (2007), é o Canto de regresso

à Pátria, de Oswald de Andrade:

Minha terra tem palmares

Onde gorjeia o mar

Os passarinhos daqui

Não cantam como os de lá [...]

Em sua análise, Sant’anna (2007) mostra como a substituição de

“palmeiras”, do poema de Gonçalves Dias, por “palmares” traz para

o poema de Oswald de Andrade o nome do quilombo liderado por

Zumbi dos Palmares, marcando assim um posicionamento crítico

em relação à história brasileira.

A paródia, nesse caso, também é um modo de argumentar, de dar uma direção aos

sentidos, fazendo com que sentidos outros compareçam na relação entre textos.

Também são frequentes as paródias nos textos publicitários. As

propagandas da rede Hortifruti, por exemplo, brincam muito com

a paródia ao recriar títulos de filmes famosos, tendo como persona-

gens frutas, legumes e verduras.

Tal como a ironia, a paródia também apresenta duas vozes, ou,

ainda, duas posições distintas em cena. Ambas têm ainda em comum

o humor em seus diferentes efeitos de sentido.

No capítulo seguinte, vamos retomar a noção de texto, e seguir

adiante com uma novidade: a questão dos efeitos de sentidos.

CONCEITO

Paródia:

Na paródia, geralmente, o que ocorre é a reescritura de uma obra conhecida, de forma bem humorada, seja obra literária, filme, música, pintura etc. As paródias normalmente são reconheci-dos pelo leitor, mesmo ao contar com uma nova escrita ou nova linguagem.

Hortifruti:

Já circularam em outdoors enunciados como: “Alface americana”, em uma retomada do filme Beleza americana; “Batatas do Caribe”, paródia ao título da saga da Disney Piratas do Caribe; “A hortaliça rebelde”, paródia do título do clássico A noviça rebelde, e “Horta de elite”, em uma clara relação de intertextualidade com o título do filme brasileiro Tropa de elite.

CURIOSIDADE

ATENÇÃO

Page 108: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

108 • capítulo 5

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBARNES, J. O amor etc. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

BENTES, A.C. Linguística textual. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A.C. (Orgs.). Introdução à linguística: domínios e

fronteiras. v.1. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2003. p. 245-287.

CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem. Rio de Janeiro: Editora da ufrj & Relume dumará, 1996.

Dicionário Houaiss da língua portuguesa, 2009. Versão eletrônica.

DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987.

GARCIA, Othon Moacir. Comunicação em prosa moderna. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Geúlio Vargas, 1977.

GUIMARÃES, E. Os limites do sentido: um estudo histórico e enunciativo da linguagem. 2. ed. Campinas: Pontes, 2002.

. Texto e argumentação: um estudo de conjunções do português. Campinas: Pontes, 1987.

Halliday, M. A. K., and Ruqaiya Hasan. Cohesion in English. London: Longman, 1976.

HENRIQUES, Claudio Cezar. Dicionário de apelidos dos escritores da literatura brasileira, Curtiba: Appris, 2012.

INDURSKY, F. O texto nos estudos da linguagem: especificidades e limites. In: ORLANDI, E.P.; LAGAZZI-RODRIGUES,

S. (Orgs.). Introdução às ciências da linguagem: discurso e textualidade. Campinas: Pontes, 2006. p. 33-80.

KATO, Mary. No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística. São Paulo: Ática, 1986.

KOCH, I.V. A coesão textual. São Paulo: Contexto, 1989.

PÉCORA, Alcir. Problemas de redação. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

SANT’ANNA, A.R. Paródia, paráfrase & cia. 8 ed. São Paulo: Ática, 2007.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Contibuições do verbo à coesão e coerência textuais. Caderno de Estudos Linguíticos, 27.

Campinas, 1994.

YOURCENAR, Marguerite. Conto azul e outros contos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

ZOPPI-FONTANA, M. Retórica e argumentação. In: ORLANDI, E.P.; LAGAZZI-RODRIGUES, S. (Orgs.). Introdução às

ciências da linguagem: discurso e textualidade. Campinas: Pontes, 2006. p. 177-210.

ROCHA LIMA, Carlos Henrique. Gramática Normativa da Língua Portuguesa. 28. ed. Rio de Janeiro:

José Olympio, 1987.

TEYSSIER, Paul. História da Língua Portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

IMAGENS DO CAPÍTULOp. 93 Connect with Central Hub Salman Ali Ehsan · stock.xchng · rf

p. 97 Affonso R. de Sant'anna Renato Araújo · Wikimedia · cc

p. 101 My Daily Sanja Gjenero · stock.xchng · rf

p. 102 Oswald Ducrot Divulgação · Minuit

p. 103 Wine Glass Andrzej Gdula · stock.xchng · rf

p. 103 Chocolate... 2 Zsuzsanna Kilian · stock.xchng · rf

p. 105 Surfista Roberto Bindes Jr. · Estácio

Page 109: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

Texto, discurso e interpretação

silmara dela silva e

vanise medeiros

6

Page 110: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

110 • capítulo 6

Neste capítulo, vamos falar de um último aspecto da linguagem e,

em especial, do texto. Vamos tratar da sua relação com a significa-

ção, ou seja, com a produção de sentidos. Iniciamos com a leitura

de duas estrofes do poema Não-coisa, de FerreiraGullar, que repro-

duzimos a seguir:

Não-coisa

O que o poeta quer dizer/ no discurso não cabe/ e se o diz é pra saber/

o que ainda não sabe./ [...]/A linguagem dispõe/ de conceitos, de nomes

/ mas o gosto da fruta/ só o sabes se a comes/[...]

Ferreira Gullar

Fonte: trecho de poema extraído dos Cadernos de Literatura Brasileira, edi-

tados pelo Instituto Moreira Salles — São Paulo, nº 6, setembro de 1998, p. 77.

Nesse fragmento do poema, podemos observar que Ferreira Gullar

fala sobre a relação do poeta com a sua prática de fazer poesias, que é

uma prática de linguagem. Ele nos diz que é impossível para o poeta

dizer tudo aquilo que ele quer dizer, ainda que a linguagem disponha

de tantos “conceitos” e “nomes”...

O que Ferreira Gullar traz nessa sua reflexão, entre outros aspec-

tos, é mais ou menos a mesma questão abordada em uma das músi-

cas gravadas pelo grupo Paralamas do Sucesso que, em seus três pri-

meiros versos, diz assim:

La bella luna

Por mais que eu pense/ Que eu sinta, que eu fale/

Tem sempre alguma coisa por dizer

Herbert Viana

Fonte: Disco 9 luas, do grupo Paralamas do Sucesso, lançado em 1996.

No fragmento do poema Não-coisa e nos versos iniciais da música

La bella luna, temos exemplos de uma breve reflexão sobre essa

relação que é específica do ser humano: a relação com a lingua-

gem. É por essa relação que, como vimos até aqui, o ser humano

AUTOR

Ferreira Gullar:

José Ribamar Ferreira (1930), mais conhecido como Ferreira Gullar, é um poeta brasileiro,

além de crítico literário, ensaísta e tra-dutor. Participou de diversos movimen-tos literários, mas sua obra transcende classificações ou rotulações. Foi agra-ciado com diversos prêmios, dentre eles Molière, Jabuti e Camões, além de ter recebido indicações ao Prêmio Nobel de Literatura.

6 Texto, discurso e interpretação

Page 111: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 6 • 111

consegue expressar os seus pensamentos, comunicar-se e interagir

socialmente, utilizando-se, para isso, de textos também.

Contudo, por mais que a gente diga, sempre fica “alguma coisa

por dizer”, como nos lembram os versos de Herbert Viana. Por mais

que a gente se aproprie dos “conceitos” e “nomes” oferecidos pela

linguagem, Ferreira Gullar nos diz que: “o gosto da fruta/ só o sabes

se a comes”. Daí podermos pensar que a relação humana com a lin-

guagem não se esgota, não tem fim.

Como sempre resta algo a dizer, podemos entender que um texto, que é uma

manifestação de linguagem, nunca está completo em si mesmo: é preciso um

sujeito que, diante dele, possa atribuir sentidos, possa interpretar.

Retomando o que vimos no capítulo anterior, quando aprendemos

que a linguagem representa o mundo e a nós mesmos, podemos ir além

e afirmar então que a linguagem nos possibilita interpretar, atribuir

sentidos a tudo o que nos cerca, inclusive significar a nós mesmos.

Para entendermos melhor essa relação humana com a interpreta-

ção, trazemos como exemplo uma história bem conhecida: a parábo-

la dos sábios cegos e do elefante. Vamos à leitura?

Os cegos e o elefanteSeis homens sábios do Industão, uma terra bem distante / Ouviram atentos

os boatos sobre um animal gigante / E, apesar de serem cegos, foram ver o

elefante. / O primeiro passou as mãos sobre a barriga dura e falha / E explicou

bem confiante: / minha análise não falha / Esse tal de elefante mais parece

uma muralha. / O segundo tocou as presas e proclamou com confiança: /

Esse tal de elefante não é brinquedo pra criança / Tão pontudo e afiado, mais

parece uma lança. / O terceiro chegou à tromba, elogiando a bela obra / Tão

comprido e gelado, vejam só, ele até dobra. / O flexível elefante mais parece

uma cobra. / O quarto sentiu a pata e teve logo a recompensa / Percebendo as

semelhanças, anunciou com indiferença: / Esse animal mais parece com uma

árvore imensa. / O quinto tocou as orelhas e sugeriu conservador: / Mas que belo

utensílio nessas tardes de calor / Esse tal de elefante mais parece um abanador.

/ O sexto subiu às costas, despencando na outra borda / E pendurado ao rabo

disse: Não sei se alguém discorda, / mas para mim esse animal se parece

com uma corda. / E então os sábios homens discutiram inconformados

/ Cada um com seu discurso, sem ouvir os outros lados / Pois estavam

certos em partes, mas completamente errados.

Fonte: Versão para o português do poema Six blind men and the elephant,

de John Godfrey Saxe (1816-1887), traduzido livremente por Josadarck To-

maz Coutinho, a partir de transcrição de vídeo disponível no YouTube.

ATENÇÃO

CONCEITO

Possibilita interpretar:

Ao estudar a linguagem, a analista de discurso Eni Orlandi nos lembra que a interpretação é inerente ao ser humano, o que quer dizer que “diante de qualquer fato, de qualquer objeto simbólico, somos instados a interpretar.” (2001, p. 10) Orlandi nos diz ainda: “Não temos como não interpretar” (2001, p. 9), ou seja, não temos como não atribuir sentidos diante de qual-quer texto, diante de qualquer prática de linguagem.

Page 112: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

112 • capítulo 6

Nesse texto, que é uma parábola, lemos a história dos cegos sá-

bios em suas experiências diante da novidade ali representada pela

presença de um elefante. Podemos observar, de imediato, esse dese-

jo humano de atribuir sentidos a tudo o que o cerca: os sábios que-

riam entender o que era aquele ser tão diferente de tudo o que conhe-

ciam e buscaram interpretar o elefante, tocando cada um em uma

parte específica do animal.

As interpretações e, consequentemente, os sentidos que cada um

vai atribuindo ao elefante, são bem diversos: uma lança, uma cobra,

um abanador, uma muralha... Os cegos vão conferindo sentidos à me-

dida que reconhecem nas partes do animal características semelhan-

tes a coisas já conhecidas, com as quais já tinham tido um contato.

É assim também que nós, sujeitos da linguagem, reagimos diante de qualquer

texto: tentamos interpretá-lo, buscando dar sentido a ele a partir de tudo

aquilo que já ouvimos e lemos. E, muitas vezes, o fazemos por partes, sem a

visão da totalidade.

Ao ler o texto dos cegos e o elefante, certamente você deve ter en-

tendido que essa história não trata apenas de cegos em seu primeiro

contato com um elefante, não é mesmo? Quando lemos a parábola,

podemos extrair dela vários sentidos.

Isso nos mostra mais um ponto importante quando consideramos o texto a partir

dos efeitos de sentido que ele produz: um texto sempre se abre à interpretação,

o que quer dizer que o seu sentido pode sempre ser outro, já que o sentido de um

texto também se produz, como estamos vendo, na relação com o sujeito que o lê.

Ao mesmo tempo, embora o sentido de um texto possa sempre ser

outro, ele não pode ser qualquer um. Isso porque, diante de um texto,

não podemos interpretar qualquer

coisa: pela relação com a lingua-

gem e com as condições em que é

produzido, o texto também impõe

limites para a sua interpretação.

Se voltarmos ao nosso exemplo

da parábola, outro sentido que po-

demos interpretar a partir dela é

que a verdade pode ser alcançada

com a observação de um objeto ou

de um fato em sua totalidade; mas não podemos afirmar o inverso, ou

seja, que um olhar apressado e parcial nos levaria igualmente à verdade.

COMENTÁRIO

São vários os sentidos possíveis, mas isso não faz de um texto uma obra totalmente aberta a toda e qualquer interpretação.

ATENÇÃO

COMENTÁRIO

Interpretações:

Por exemplo, na atitude dos cegos que tentam dizer o que é o elefante, consi-derando apenas uma parte do animal, podemos interpretar a necessidade de se considerar sempre uma visão geral sobre qualquer fato, antes de tirarmos conclusões precipitadas. Nessa mesma linha, podemos interpretar que os cegos que se apressaram em dizer do que se tratava o elefante não conse-guiram chegar a boas conclusões, o que nos faria entender, na parábola, um sentido semelhante àquele que temos no provérbio popular: “o apressado come cru”.

Page 113: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 6 • 113

Quando passamos a considerar o texto a partir dos efeitos de sentido que ele pro-

duz, levando em conta o modo como ele significa para nós, sujeitos de linguagem, esta-

mos pensando na relação entre texto e discurso.

Do texto ao discurso

No capítulo anterior, vimos as estratégias necessárias para a construção da coesão textual,

as quais asseguram, na superfície linguística, a suposta unidade de um texto, a tessitura

das partes de um texto. Agora, passamos

do conceito de texto para o de discurso.

Já começamos a perceber que a pro-

dução dos efeitos de sentido está rela-

cionada aos sujeitos e às circunstân-

cias sócio-históricas em que o texto é

produzido e interpretado, ou seja, em relação às suas condições de produção.

Para entendermos melhor a relação entre o texto, os sujeitos e as circunstâncias na

produção dos efeitos de sentido, vamos ler os dois fragmentos textuais a seguir. Eles

tratam de uma mesma questão – o casamento –, mas os efeitos de sentido que se pro-

duzem em cada um deles aparentemente são bem diversos. Vejamos:

Veja 20 conselhos para um casamento feliz

Você está prestes a começar a sua vida de casada e, certamente, o seu maior desejo é que o seu

casamento dure. Não existe receita exata para isso, entretanto, alguns conselhos podem te ajudar.

1. Respire fundo e pense no quanto você o ama antes de começar uma discussão.

2. Cumprimente-o todas as manhãs carinhosamente, como se tivessem acabado de se encon-

trar e despeça-se dele com um beijo toda vez que ele for sair. [...]

5. Seja sensível, compreensiva e otimista.

6. Mantenha sua casa organizada, nada melhor do que a limpeza. [...]

13. Toque-o constantemente. Dê a mão para ele ao andarem na rua.

14. Comemore datas especiais como o aniversário de namoro, o seu próprio aniversário e qual-

quer outra data que possa ser importante. [...]

Fonte: Portal Terra, editoria Mulher-Comportamento. Autor não informado. Acesso em 21/04/2013.

RESUMO DO TEXTO 1

Para quem é o texto? É dirigido à mulher recém-casada, que deseja que seu casamento dure.

Qual é o gênero textual?Trata-se de uma matéria jornalística de comportamento, caracterizada por tratar de relacionamentos interpessoais e por oferecer conselhos especializados.

Qual é o contexto de produção?

Destinado à circulação em um site de notícias, em um espaço reservado às mulheres leitoras.

Podemos entender o discurso como os efeitos de sentido que se produzem a partir da leitura de um texto.

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114 • capítulo 6

Desabafos de um bom marido

Minha esposa e eu temos o segredo pra fazer um casamento durar: duas vezes por semana, vamos

a um ótimo restaurante, com uma comida gostosa, uma boa bebida e um bom companheirismo.

Ela vai às terças-feiras, e eu às quintas.

Nós também dormimos em camas separadas: a dela é em Fortaleza e a minha em São Paulo.

Eu levo minha esposa a todos os lugares, mas ela sempre acha o caminho de volta.

Perguntei a ela onde ela gostaria de ir no nosso aniversário de casamento. "Em algum lugar que

eu não tenha ido há muito tempo!", ela disse. Então eu sugeri a cozinha.

Nós sempre andamos de mãos dadas. Se eu soltar, ela vai às compras. [...]

Eu me casei com a "Sra. Certa". Só não sabia que o primeiro nome dela era "Sempre".

Já faz 18 meses que não falo com minha esposa. É que não gosto de interrompê-la. Mas tenho que

admitir: a nossa última briga foi culpa minha. Ela perguntou: "O que tem na TV?" E eu disse "Poeira". [...]

Fonte: Desabafos de um bom marido. Crônica atribuída a Luis Fernando Veríssimo, disponível em

vários sites na internet, fonte primária desconhecida.

RESUMO DO TEXTO 2

Quem é o sujeito representado no texto?

São dizeres produzidos a partir da imagem do lugar social atribuído aos maridos em geral.

Qual é o gênero textual?Uma crônica, um gênero que traz traços dos textos literários, normalmente tratando de questões cotidianas.

Qual é o contexto de produção?

Destinado à circulação livre, com o objetivo de provocar humor, quase uma paródia a textos como o primeiro, destinados a aconselhar sobre relacionamentos.

Como vimos, os efeitos de sentido de um texto se produzem na relação entre a ma-

terialidade do texto, que é linguística, os sujeitos e as circunstâncias em que ele é pro-

duzido e interpretado.

Se levarmos em conta essas três condições, vamos observar que os dois textos pro-

duzem efeitos de sentidos diversos. O primeiro, por meios dos conselhos que traz, pro-

duz um efeito de sentido de verdade para as leitoras a quem se destina. Uma marca no

texto, dessa produção do efeito de verdade, é o emprego dos verbos no modo imperativo,

no início de cada conselho:

RESPIRE PENSE CUMPRIMENTE-O SEJA MANTENHA TOQUE-O

Já no texto 2, um efeito de sentido que se produz é o de humor, que se dá pela re-

tomada de um conselho, como o de sair para jantar fora com a esposa, e um desfecho

inesperado, surpreendente: eles, de fato, não saem para jantar fora como um casal,

juntos, como vemos na menção aos dias da semana.

Por outro lado, apesar de tantas aparentes diferenças, os dois textos também permi-

tem algumas interpretações semelhantes. Você concorda? Veja só:

Page 115: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 6 • 115

PAPEL ATRIBUÍDO À MULHER

NO TEXTO 2Acontece o mesmo, ainda que de forma humorística: “O que tem na TV?” E eu disse “Poeira”; ou em “Então eu sugeri a cozinha”.

NO TEXTO 1Atribui-se à mulher as tarefas domésticas, como em “mantenha a casa organizada”.

CARACTERÍSTICAS ATRIBUÍDAS À MULHER

NO TEXTO 1A mulher deve ser “sensível, compreensiva e otimista”, deve ser carinhosa (“Toque-o constantemente”), deve ser atenciosa (“Cumprimente-o todas as manhãs...”) etc.

NO TEXTO 2A imagem de consumista (“Se eu soltar, ela vai às compras”), de autoritária (“me casei com a ‘Sra. Certa’. Só não sabia que o primeiro nome dela era ‘Sempre’”).

Como podemos observar, os textos 1 e 2 são bem atuais, mas rea-

firmam sentidos que já ouvimos antes, circulando por aí, não?

É que os sentidos que atribuímos a um texto sempre decorrem da sua relação

com outros textos e com outros dizeres que já foram ditos e esquecidos, mas

continuam em circulação em um contexto sócio-histórico. E isso nos permite

dizer que os sentidos se constituem a partir de uma memória do dizer.

Do mesmo modo, quando falamos sobre casamento e sobre as

funções do homem e da mulher, nessa relação, retomamos muitos

dizeresjáditos e esquecidos sobre o casamento. Aqui mesmo, com

essa nossa afirmação, já retomamos um dizer corrente sobre o casa-

mento que funciona como uma memória a cada vez que falamos so-

bre esse tipo de união: a de que o casamento pressupõe um homem e

uma mulher, princípio que pode ser questionado atualmente. Viu só

como funciona a memória na interpretação?

Você já deve ter percebido que estamos caminhando para uma

noção de texto como não sendo somente um objeto fechado, com

princípio, meio e fim, resultado da utilização adequada das regras de

coesão. Chegamos a um conceito de texto como um objeto linguís-

tico e histórico (Orlandi, 1996, p. 53), ou seja, como tendo relação

com outros textos e dizeres, como tendo história (não somente da

situação de sua produção, mas das leituras dele feitas, por exemplo),

e como também tendo relação com o sujeito (com suas histórias, o

que permite ou impossibilita tal ou tais sentidos).

COMENTÁRIO

Dizeres já ditos:

Também é assim que, tanto na crônica como no fragmento do texto sobre os conselhos para um bom casamento, um dos sentidos que se constitui para o casamento é o de que ele tem de durar, ou seja, ele não pode não dar certo. E aí temos um exemplo de outro dizer em circulação no casamento. É mais um ponto questionável, mas que retorna como se fosse evidente quando falamos sobre o assunto.

CURIOSIDADE

Page 116: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

116 • capítulo 6

Para prosseguir, tomemos de imediato um enunciado muito comum em teorias

linguísticas: trata-se da exclamação – “Que calor!” – dita em uma sala de reunião

por um diretor e que tem como contrapartida o gesto de um funcionário se le-

vantando e ligando o ventilador do teto. Volte ao enunciado e reflita: será que, se

tivesse sido proferido pelo funcionário, o chefe teria se levantado? Ou será que

o chefe teria dado ordem para ligar o ventilador?

Pois é esse o ponto ao qual queremos chegar. A produção dos efei-

tos de sentidos está vinculada à imagem que se faz do lugar social

ocupado por aquele que diz “que calor!”. E isso faz toda a diferença:

se era o chefe ou o funcionário... É aí que entra em cena uma noção

muito importante para entender a produção de efeitos de sentidos:

trata-se da noção de condiçõesdeprodução.

Em outras palavras, há representações, imagens sobre o lugar so-

cial ocupado (sobre ser chefe ou funcionário, por exemplo). Tais ima-

gens implicam posições de linguagem, visto que são definidas por

uma relação com o que pode ou deve ser dito a partir de um lugar

socialmente marcado. Estamos sinalizando para algo que faz parte

das condições de produção: as formações imaginárias.

“Todo falante e todo ouvinte ocupa um lugar na sociedade, e isso faz parte da significa-

ção. Os mecanismos de qualquer formação social têm regras de projeção que estabe-

lecem a relação entre as situações concretas e as representações (posições) dessas

situações no interior do discurso: são as formações imaginárias.” (Orlandi, 1988, p. 18).

Dito de outro modo, em relação a qualquer lugar social, inscrevem-se

projeções imaginárias sobre os interlocutores (imagens sobre si, sobre o

outro e sobre o objeto do discurso) que fazem parte daquilo que se diz.

Retomando o conceito: condições de produção

Você já começa a perceber por que a noção de condições de produ-

ção é fundamental na produção de sentidos e por que é diferente da

noção de contexto, que vimos nos capítulos 4 e 5.

Condições de produção é um conceito que agrega os interlocutores e a situação, ambos

materializados no jogo imaginário das relações sociais de uma sociedade. A noção de

condições de produção abarca ainda outros elementos, como a memória e a historicidade.

EXEMPLO

CURIOSIDADE

ATENÇÃO

CONCEITO

Condições de produção:

Compreender discurso como efeito de sentidos significa que “o sentido não está (alocado) em lugar nenhum, mas se produz nas relações: dos sujeitos, dos sentidos...” (Orlandi, 1983, p. 229). Diremos, portanto, que quando toma-mos a palavra, o fazemos de “lugares determinados na estrutura de uma formação social” (Pêcheux, 1997, p. 82). A tais lugares atribuem-se imagens. É por isso que tomamos o imaginário como parte integrante do funciona-mento da linguagem: as imagens que fazemos dos lugares sociais são atra-vessados por sentidos – já existentes, em conflito, possíveis ou não – em uma sociedade.

Page 117: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 6 • 117

Vejamos, então, outros exemplos, como o fragmento a seguir retirado do livro Amor,

etc., de Julian Barnes:

O amor em um bairro arborizado e democrático, com uma renda de seis dígitos por ano, é dife-

rente do amor em um campo de concentração stalinista. (Barnes, p. 33).

Nesse trecho, como podemos ler, o autor está opondo duas condições sociais para significar o amor –

“renda de seis dígitos” e “bairro arborizado e democrático” versus “campo de concentração stalinista”.

Em outras palavras, os sentidos para amor decorrem do contexto histórico e social.

Vamos observar dois outros exemplos, que dizem respeito à história da língua portuguesa:

“E entre nós e os latinos há esta diferença: eles fazem comparativos de todos os seus nomes

adjetivos que podem receber maior ou menor significação, e nós temos mais comparativos que

estes: maior, que quer dizer mais grande; menor, que quer dizer menos grande; melhor para mais

bom; pior, para mais ruim.” (Adaptação nossa do original)

“E antre nós e os latinos há ésta diferença: eles afazem comparativos de todolos seus nomes ajetivos

que podem receber maior ou menor sinificaçám, e nós nam temos mais comparativos que estes:

maior, que quer dizer mais grande; menor, por mais pequeno; millór por mais bom; pior, por mais máo.”

(João de Barros, Gramática da língua portuguesa, 1540, apud Quental, 1995)

Cessem do sábio Grego e do Troiano / As navegações grandes que fizeram; / Cale-se de Alexandro e

de Trajano / A fama das vitórias que tiveram; / Que eu canto o peito ilustre Lusitano, / A quem Netuno

e Marte obedeceram: / Cesse tudo o que a Musa antiga canta, / Que outro valor mais alto se alevanta.

(Trecho da obra Os Lusíadas, publicada em 1572, por Luiz Vaz de Camões, 1524-1580)

O primeiro exemplo traz a adaptação de um trecho da segunda gramática de língua

portuguesa; já o segundo exemplo é um trecho do famoso poema épico Os Lusíadas, de

Camões. A gramática e o poema são contemporâneos entre si, como se pode perceber.

Na gramática, está em jogo a língua portuguesa, que, neste momento, é significada como sendo

do mesmo quilate que a língua latina e até mais completa que ela (tem mais comparativos que a

língua latina) . No poema estão em jogo, como já é sabido, os feitos portugueses: feitos marítimos,

conquistas, e também a língua portuguesa que, nesse momento, “se alevanta” frente a uma antiga

musa: a língua latina.

Você deve estar se perguntando: O que isso tem a ver com condições de produção?

Pois bem, pense e responda: será que sempre a línguaportuguesa foi posta como supe-

rior à língua latina? Não é o caso.

EXEMPLO

ATENÇÃO

Page 118: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

118 • capítulo 6

Ora, o que está em jogo é que as condições de produção são outras:

no século xvi, das descobertas, os portugueses estavam percorrendo

o mundo; e a sua língua – uma língua de uma nação que se mostrava

extremamente forte – estava no mesmo patamar que seus feitos: maio-

res que os latinos... Já no século xix, as condições de produção são ou-

tras: a língua portuguesa já possuía literatura expressiva, gramáticas e

dicionário; não precisava mais se impor frente ao latim, que também

deixa de significar ameaça à portuguesa para poder ser exemplo e mo-

tivo para a dignificação da língua pela semelhança.

A partir desse exemplo, já podemos entender a definição de condições de produ-

ção como compreendendo “o contexto histórico-social, ideológico, a situação, os

interlocutores e o objeto do discurso, de tal forma que aquilo que se diz significa

em relação ao que não se diz, ao lugar social, para quem se diz, em relação aos

outros discursos etc.” (Orlandi, 1988, p. 95) .

Quer outro exemplo de como funcionam as condições de produ-

ção? Então, veja só a charge a seguir:

Inspirado em charge original de Miguel Paiva, publicada no jornal O Estado de

São Paulo, em 05/10/1988 (edição histórica, p. 3).

Para pensarmos no funcionamento das condições de produção,

no processo de produção de sentidos nessa charge, podemos come-

çar observando a datadecirculação da charge original: 05 de outu-

bro de 1988. É justamente nessa data que foi promulgada a Consti-

tuição Federal, a lei máxima do país. A menção à Constituição está

marcada, na charge, na expressão: “São direitos sociais a educação, a

moradia...”, grafada no primeiro balão, que traz justamente a leitura

de um dos artigos da lei então recém-aprovada.

Na charge, podemos observar a representação das figuras de uma fa-

mília, e podemos interpretar pela imagem que tal família provavelmente

COMENTÁRIO

COMENTÁRIO

CONCEITO

Língua portuguesa:

No século xix, por exemplo, o que se dizia da língua portuguesa, nas gramá-ticas, era que ela valia tanto quanto a língua latina. Não se tratava de dizer que tinha mais comparativos ou não, mas de destacar a origem latina da lín-gua portuguesa. Buscavam-se, assim, exemplos nas duas línguas que fizes-sem a portuguesa valer tanto quanto o latim. Então, no século xv, a língua portuguesa era posta como sendo mais completa que a latina; já no século xix, o português era visto como equivalente à língua latina.

Data de circulação:

Como podemos ver, conhecer as cir-cunstâncias imediatas em que o texto foi produzido é muito importante para que possamos entender os efeitos de sentido possíveis a partir dela. Contudo, não é somente a circunstân-cia imediata de enunciação, ou seja, a situação em que um texto foi produ-zido, que conta nos modos como ele irá produzir efeitos de sentidos para os sujeitos leitores. As circunstâncias imediatas dialogam sempre com o contexto sócio-histórico ideológico.

Page 119: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 6 • 119

não tem uma moradia digna. O cenário e os lugares atribuídos aos sujei-

tos ali presentes denunciam o sentido de que “moradia”, “comida”, “saú-

de” e tantos outros direitos básicos do cidadão brasileiro não passam de

um sonho para muitos cidadãos que, naquele momento histórico, viviam

na pobreza, apesar de a lei já ter sido promulgada.

No texto da charge, como vemos, a família ali representada ocupa

um lugar social específico na sociedade brasileira: o lugar daqueles

que esperam ser amparados pelo Estado, mas que raramente o são,

não possuindo, de fato, condições sociais dignas de subsistência.

A crítica ao Estado se marca justamente na fala da mulher, que ao dizer “aquele

pedaço bonito que fala de comida, saúde...”, denuncia justamente que as leis, de um

modo geral, são mesmo bonitas no papel, mas não se efetivam para todos os brasilei-

ros igualmente. E aí temos mais um exemplo do funcionamento da memória do dizer,

um dizer já-dito: as leis são muito boas na teoria, e não necessariamente na prática.

Nesse nosso exemplo, mostramos como funciona, na charge, o

contexto histórico-social e ideológico. Agora, vamos nos deter um

pouco em ideologia; para isso, leia mais um fragmento textual, esse

retirado do conto As cidades invisíveis, de ItaloCalvino:

“A cidade de Leônia refaz a si própria todos os dias (...) mais do que pelas

coisas que todos os dias são fabricadas, vendidas, compradas, a opulência

de Leônia se mede pelas coisas que todos os dias são jogadas fora para

dar lugar às novas. (...) O resultado é o seguinte: quanto mais Leônia expele,

mais coisas acumula (...). A imundície de Leônia pouco a pouco invadiria o

mundo se o imenso depósito de lixo não fosse comprimido, do lado de lá de

sua cumeeira, por depósitos de lixo de outras cidades que também repelem

para longe montanhas de detritos.” (Calvino, As cidades invisíveis, p. 105).

O conto de Calvino fala de uma cidade cuja opulência é marcada

pelo que se joga fora, pelo dejeto. Essa cidade não é estranha ao nosso

mundo contemporâneo. Ao contrário, vivemos sob a égide do consumo

incessante: as propagandas que todos os dias nos dizem que é preciso

comprar, que isso ou aquilo já está ultrapassado, que, então, é preciso

se livrar do que se torna obsoleto para obter o último e mais avançado

modelo de algo... (“quanto mais Leônia expele, mais coisas acumula”).

Em outras palavras, a cidade de Leônia, como lembra Bauman (2010), inscreve-se

em um estágio do capitalismo em que o acúmulo implica um incessante descartar

que joga contra a durabilidade das coisas. Não é mais a durabilidade que vale.

EXEMPLO

RESUMO

AUTOR

Italo Calvino:

Italo Calvino (1923-

1985) nasceu em Cuba, filho de pais italianos. Logo após

o nascimento, sua família retornou à Itália. Foi um dos escritores contem-porâneos mais traduzidos, além de ter sido indicado ao Prêmio Nobel de Literatura.

Page 120: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

120 • capítulo 6

Tais constatações remetem à ideologia, ou seja, é a ideologia que

permite o efeito, imaginário, de se supor o mundo como já tendo ou

fazendo sentido, como “sendo assim”.

Leia agora outro fragmento que exemplifica ainda mais o que

estamos tomando como ideologia:

“ (...) pegue esses fenômenos migratórios que observamos nas nossas es-

tradas, por ocasião do que chamamos férias. É, de certo modo, espanto-

so. Para estar seguro de que se trata de férias, é preciso que você faça

como todo mundo, sofrer, passar por engarrafamentos, pela dor. A situação

que descrevi sem dúvida é paródica, mas todo mundo já pôde observá-la.

Quando você ouve o rádio anunciar um ‘domingo infernal’ nas estradas, ele

diz que o seu comportamento é perfeitamente inscrito e previsto. Antes

mesmo que você aja, sabe-se o que vai fazer. O grande irmão, Big Brother,

está lá, nesse discurso benevolente; ele diz: atenção, domingo, vocês vão

todos cair na estrada. Você vive sem surpresa, você não vai voltar três dias

mais cedo, nem um dia depois.” (Melman, 2003, p. 98).

Pois é, agora que você já compreendeu que os sentidos são produ-

zidos histórica e socialmente, podemos avançar mais um pouquinho

na compreensão de que ideologia constitui um mecanismo imaginário

que produz, em um dizer já dado, um sentido que para o falante aparece

como evidente, ou seja, natural, óbvio para ele enunciar daquele lugar.

É por isso que podemos afirmar que os sentidos são ideologicamente marcados

porque eles não são naturais, mas estão relacionados às posições que os sujei-

tos ocupam em um dado contexto sócio-histórico.

Para vermos mais um exemplo de como os sentidos são ideológi-

cos, ou seja, como eles são construídos pelas práticas ideológicas que

nos dizem como as coisas devem ser entendidas, basta observarmos

como um mesmo objeto pode ser significado de modos diferentes,

dependendo de quem fala sobre ele. Um bom exemplo é o “salário”,

aquele pagamento mensal recebido pelo trabalhador:

SALÁRIO

“condição de sobrevivência”

“retorno justo como pagamento por tarefas realizadas”

“aumento de custos, ou recursos que saem do caixa da empresa

todos os meses para cumprir a folha”

Os sentidos da palavra “salário” para um assalariado podem ser...

O sentido da palavra “salário” para um patrão pode ser...

COMENTÁRIO

CONCEITO

Ideologia:

“É a ideologia que fornece as evidên-cias pelas quais ‘todo mundo sabe’ o que é um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve etc., evidências que fazem com que uma palavra ou um enunciado ‘queiram dizer o que real-mente dizem’: e que mascaram, assim, sob a ‘transparência da linguagem’ aquilo que chamaremos de o caráter material do sentido das palavras e do enunciado.” (Pêcheux, 1988, p. 160).

Page 121: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 6 • 121

São as posições ideológicas de trabalhador e de patrão que, nesse

caso, determinam que uma mesma quantia em dinheiro signifique

diferentemente.

Como viemos mostrando até aqui, os efeitos de sentido se constituem na relação

da materialidade textual com as suas condições de produção, que incluem desde

as circuntâncias imediatas em que um texto é produzido até o contexto sócio

-histórico de disputa e tensão pelo poder, que é sempre ideológico.

No jogo dos sentidos, entram em cena a memória do dizer, que,

como vimos, é composta por dizeres já–ditos que permanecem em

circulação, e também as imagens dos lugares ocupados pelos sujei-

tos que, por sua vez, decorrem de práticas ideológicas.

Logo, como você já deve estar percebendo, o sentido não depende

somente daquilo que é dito, isto é, da materialidade linguística pre-

sente em um texto. O que é dito significa sempre na relação com o

já-dito, que é a memória do dizer; e significa também na relação com

o não-dito, mas que, de diferentes modos, se marca no dizer, partici-

pando da produção de efeitos de sentido.

Por essa você não esperava, não é mesmo? Você deve estar se per-

guntando: como aquilo que não é dito pode significar no dizer? De

fato, é uma questão bastante intrigante... Mas isso apenas a princí-

pio. Observando mais atentamente, vamos ver que a questão não é

tão complicada assim.

O não-dito e os sentidos

O não-dito pode se marcar no dizer de diferentes modos, como nos

mostram os trabalhos de vários estudiosos de linguagem. O seman-

ticista francês Oswald Ducrot (1972), por exemplo, dedicou parte de

seus estudos à compreensão do funcionamento dos implícitos, que

são justamente um modo de manifestação da relação entre o dizer e

o não-dizer na linguagem.

Na base dessa sua reflexão está o entendimento de que não é somente aquilo que é dito

textualmente que pode ser compreendido a partir de um texto. Algumas informações

que ficam implícitas participam igualmente do processo de constituição de sentidos.

Para entendermos melhor o que Ducrot chamou de implícitos,

vamos partir de um exemplo: o poema Do amoroso esquecimento, de

Mario Quintana, que reproduzimos a seguir.

RESUMO

RESUMO

CONCEITO

Não é dito:

Se é verdade que não podemos dizer tudo, também é verdade que nem tudo precisa ser dito para ser signi-ficado, para ser compreendido. Um exemplo disso nós já vimos quando falamos sobre o funcionamento de enunciados como “que calor!”, que podem fazer com que alguém ligue o ventilador, ainda que esse pedido não tenha sido expresso textualmente. Pois bem, o pedido não foi dito, mas foi significado em função de questões contextuais, como vimos.

Page 122: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

122 • capítulo 6

Do amoroso esquecimento (1945)

Eu, agora - que desfecho!/Já nem penso mais em ti.../

Mas será que nunca deixo/De lembrar que te esqueci?

(Mário Quintana, em Antologia poética, 2001)

No segundo verso do poema, o poeta afirma o esquecimento daquela pessoa que ele

amava. Nesse dizer do poeta, o emprego do advérbio “mais” marca o funcionamento de

um implícito. Vamos ver como isso acontece?

Já nem penso mais em ti...

Ao afirmar que deixou de fazer alguma coisa, o sujeito que enuncia marca em seu dizer que essa mesma coisa era feita anteriormente, em um tempo passado.

O pressuposto é um tipo de implícito, que está relacionado ao funcionamento da instância da lingua-

gem, ou seja, àquilo que é dito propriamente. Como afirma Orlandi (2001, p. 82): “O posto (o dito) traz

consigo um pressuposto (não-dito, mas presente).”

Na continuidade do poema, os dois versos finais denunciam justamente que esse

pensar ainda não faz parte do passado, sinalizando a dificuldade do poeta em esquecer

esse outro, ao final de um relacionamento amoroso vivido.

Mas será que nunca deixo / De lembrar que te esqueci?

Será que o fim do relacionamento foi contra a vontade do poeta? Poderíamos interpretar que ele não consegue deixar de lembrar de um relacionamento que acabou virando um “esquecimento amoroso”.

Pensar que o relacionamento acabou contra a vontade do poeta já é uma interpreta-

ção a partir do que foi dito, pois o motivo para o poeta ter de esquecer esse amor tam-

bém fica não-dito no poema.

Nesse caso, temos outro tipo de implícito: o subentendido, que não está diretamente ligado àquilo

que é dito, à instância da linguagem, mas que pode ser interpretado em função do contexto em

que foi enunciado.

Os implícitos, como vemos, são modos de funcionamento do não-dito naquilo que é

dito. Outros modos de funcionamento do não-dito na linguagem estão mais diretamente

CONCEITO

COMENTÁRIO

Page 123: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 6 • 123

relacionados à instância do discurso, na relação com o funcionamento

da memória do dizer e da ideologia.

Na relação com a memória do dizer e a evidência do sentido, que é um trabalho da

ideologia, o não-dito significa justamente pela sua ausência no dizer, pela relação

entre o que é dito e aquilo que poderia igualmente ser dito, mas que não o foi.

Vejamos um exemplo de produção de sentidos na imprensa. Ao relatar

a ação de movimentos como o dos trabalhadores rurais sem terra (mst), a

grande imprensa geralmente designa tal ação de “invasão”, enquanto os

membros do movimento costumam falar em “ocupação”, como afirma

Indursky (1999), após várias análises dos discursos do/sobre o mst.

A MESMA AÇÃO PODE SER NOMEADA COMO...

Quando se opta pela palavra “INVASÃO”, marca-se na língua uma oposição ao termo “OCUPAÇÃO”, adotado pelo MST.

Além de se marcar uma oposição, o termo “INVASÃO” constitui sentidos para a memória de quem lê, relacionando o termo aos sentidos de outras “invasões”: atos criminalizados, passíveis de punição.

INVASÃO OCUPAÇÃO

É justamente essa a relação entre o dito e o não-dito que podemos

observar nos enunciados a seguir:

Ministério Público denuncia 72 alunos pela ocupação de reitoria em 2011Fonte: Jornal online Última Instância, portal uol, publicado em 06/02/2013.

Até alunos contra a invasão da reitoria criticam denúnciaFonte: O Estado de São Paulo (versão online), publicado em 07/02/13.

Os dois enunciados tratam de uma mesma ação: a denúncia feita pelo Ministério Públi-

co do Estado de São Paulo contra funcionários e alunos da Universidade de São Paulo

(usp), que, em protesto, ocuparam a reitoria da universidade em 2011. Nesse exemplo,

dizer “ocupação” é não-dizer “invasão”, e vice-versa, e esse não-dito também irá produ-

zir os seus efeitos no dizer, marcando uma posição ideológica, dentre outras, e fazendo

com o que os sentidos sejam filiados a certas memórias do dizer e não a outras.

RESUMO

COMENTÁRIO

CONCEITO

Implícitos:

Como afirma Eduardo Guimarães (2006, p. 135) , ao tratar do implícito: “Há algo que está significado no que se diz que não está diretamente dito, é preciso que um certo tipo de raciocínio (um procedimento de inter-pretação) seja feito para se retirar da língua, com suas regras de combina-ção e das condições específicas de funcionamento dos enunciados no acontecimento, o que eles significam.”

Page 124: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

124 • capítulo 6

Desse modo, podemos observar que o não-dito é mesmo constitu-

tivo do dizer: dizer uma palavra é necessariamente não dizer outra. É

justamente entre o dito e o não-dito que os efeitos de sentido se pro-

duzem. Ou, como nos diz Orlandi (2001, p. 82): “... ao longo do dizer,

há toda uma margem de não-ditos que também significam.”

O não-dito e o silêncio

Do mesmo modo que para dizer de um jeito é necessário não di-

zer de outro, o não-dito também pode funcionar de modo a apa-

gar outros sentidos, ou seja, fazendo com que alguns sentidos não

compareçam no que é dito, sejam silenciados, enquanto outros

são privilegiados.

Para além desse silêncio que constitui mesmo os sentidos, Orlandi (2002) , ao

estudar as formas do silêncio, apresenta-nos outros dois modos de seu funcio-

namento diretamente ligados ao não-dito: o silêncio fundador, que é condição da

linguagem, e o silenciamento ou política do silêncio, que se divide em dois tipos:

o silêncio constitutivo e o silêncio local.

Em nosso exemplo, com os enunciados sobre a decisão do Mi-

nistério Público paulista de denunciar estudantes da usp, temos um

caso de silêncio constitutivo. Vejamos novamente:

Até alunos contra a invasão da reitoria criticam denúncia

Dizer “invasão” é impedir que os sentidos de “ocupação” se legitimem, sejam reconhecidos. Nesse caso, é calar o sentido da ação dos estudantes como um movimento legítimo, justamente porque dizer “invasão” significa silenciar esse outro sentido possível (o de “ocupação”).

Já a noção de silêncio local é empregada pela autora para explicar

o funcionamento da censura, que consiste justamente na interdição

a certos dizeres em uma conjuntura dada.

São inúmeras as letras de músicas, por exemplo, que tentam es-

capar à proibição de dizer imposta pela ditadura militar no Brasil,

recorrendo a dizeres outros. Vejamos um exemplo no fragmento da

letra da música Meu caro amigo, uma composição de Chico Buarque

e Francis Hime:

CURIOSIDADE

Ao definir o silêncio constitutivo, Orlandi (2001, p. 83) afirma: “... uma palavra apaga outras palavras (para dizer é preciso não-dizer)”.

CONCEITO

Censura:

Censura é uma prática adotada por um grupo no poder para impedir ou punir a circulação de informação não autori-zada. Atualmente, pode ser entendida como qualquer tentativa de cercear a liberdade de expressão. Durante o período da ditatura militar no Brasil, entre 1964 e 1985, a interdição ao dizer resultou no exílio de muitos artistas e intelectuais brasileiros, que insistiam em dizer aquilo que, segundo o governo militar, não podia ser dito.

Page 125: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

capítulo 6 • 125

Meu caro amigo

[...]

Aqui na terra tão jogando futebol / Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll / Uns dias chove,

noutros dias bate sol / Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui / tá preta

[...]

Fonte: disco Meus caros amigos, de Chico Buarque, lançado em 1976.

Os autores afirmam a banalidade das ações cotidianas, marcadas em expressões

como “jogando futebol”, “muito samba” e no verso “uns dias chove, noutros dias bate sol”.

No entanto, não deixam de afirmar que o que “querem dizer”, ainda que não possam, é

que a situação não vai bem. A expressão “a coisa aqui tá preta”, que será repetida várias

vezes na canção, sinaliza a interdição ao dizer, os sentidos da censura marcados pela

cor preta que silencia, impedindo sentidos outros de circular. Outra marca é a expres-

são “muito choro”, que em meio à menção a “samba” e “rock’n’roll” pode ser signifi-

cada meramente como um ritmo musical, mas que também pode encaminhar para o

sentido de sofrimento provocado pelas prisões, pelos sumiços e pelas mortes impostas

àqueles que teimavam em não silenciar.

No caso do silêncio local, a interdição ao dizer leva à busca por possibilidades outras de fazer com-

parecer o não-dito naquilo que ainda pode ser dito. Conforme nos diz Orlandi (2001, p. 83): o “silêncio

local, que é a censura (...) faz com que o sujeito não diga o que poderia dizer: em uma ditadura não se

diz a palavra ditadura não porque não se saiba, mas porque não se pode dizê-lo.”

Como vemos, é na relação entre a possibilidade do dizer (o dito e o não-dito) que os

efeitos de sentido vão se constituindo, podendo sempre ser outros, o que é possibilita-

do pelo silêncio e pela natureza mesmo da linguagem, que é incompleta.

O dizer e o já-dito

Uma vez que todo dizer traz consigo um já-dito e um não-dito, que, como vimos, são

trabalhados via memória do dizer, podemos afirmar que todo dizer retoma em si sen-

tidos já-ditos, ao mesmo tempo em que permitem que sentidos outros se constituam,

possibilitando assim novos processos de significação.

Uma consequência disso é que todo dizer retoma dizeres ditos previamente e que são atualizados ao

serem ditos de novo, em novas condições sócio-históricas e ideológicas, por e para outros sujeitos.

COMENTÁRIO

ATENÇÃO

Page 126: Apostila Análise Textual - Língua uso e discurso   entremeios e fronteiras

126 • capítulo 6

Vamos ver um exemplo para entendermos melhor esta relação en-

tre o dizer e o já-dito? Têm circulado muito na internet, de um modo

geral, quadrinhos que trazem novas versões de ditados populares

bem conhecidos. Vejamos dois deles:

“Amigos, amigos, senhas à parte.”

O já-dito é “Amigos, amigos, negócios a parte”, sendo o termo “negócios” substituído por “senhas”, muito requeridas no espaço digital. Mas um dos sentidos do ditado tradicional permanece: as relações de amizade devem ser separadas das negociações, sejam elas no mundo real ou virtual.

“Não adianta chorar sobre o arquivo deletado.”

O já-dito é “Não adianta chorar sobre o leite derramado”. No dito, a expressão “leite derramado” é substituída por “arquivo deletado”. O sentido do ditado original, no entanto, permanece: em algumas situações, não há nada que possa ser feito, daí ser inútil chorar.

Em casos como esses, apesar de termos uma formulação original nos ditados,

que aparecem repaginados em relação a novas condições de produção do espa-

ço virtual, temos uma retomada de dizeres já-ditos, o que quer dizer que discursi-

vamente temos o funcionamento da paráfrase.

Agora, veja mais um exemplo de ditado popular da era digital:

Na informática nada se perde, nada se cria. Tudo se copia…. e depois se cola.

Nesse caso, vemos que o sentido do provérbio tradicional não se man-

tém; ele é deslocado, a partir da recuperação da famosa frase de Lavoisier.

O ditado retoma um dizer já-dito, mas também promove uma rup-

tura de sentido: “Tudo se copia... e depois se cola”. Na retomada de

outro dizer já-dito em outro espaço, “copiar e colar” textos, retoman-

do a facilidade de cópia proporcionada pelos comandos “Ctrl+c” e

“Ctrl+v”, a ruptura se evidencia.

Nesses dois casos, temos a possibilidade de sentidos outros, um deslocamento

de sentido, apesar da aparente retomada de uma frase famosa. Desse modo,

temos o funcionamento da polissemia. Segundo afirma Orlandi (2001, p. 36) , “na

polissemia, o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significação.

Ela joga com o equívoco.”

COMENTÁRIO

RESUMO

CONCEITO

Funcionamento da paráfrase:

Como afirma Orlandi (2001, p. 36), “em todo dizer há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memó-ria. A paráfrase representa assim o retorno aos mesmos espaços do dizer. Produzem-se diferentes fomulações do mesmo dizer sedimentado”. Logo, a pa-ráfrase tem como marca a repetição, a reiteração de certos dizeres que fazem parte da memória discursiva e que são mobilizados pelos sujeitos.

AUTOR

Lavoisier:

Antoine Laurent de Lavoisier (1743-1794) é considerado o pai da Química moder-

na. Apesar da excepcional contribui-ção científica que deu à humanidade, especialmente nos estudos da maté-ria e sua conservação, foi condenado à guilhotina.

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capítulo 6 • 127

É na relação entre paráfrase e polissemia que os dizeres se assentam, uma vez que

eles sempre retomam dizeres já-ditos, mas também promovem deslocamentos, que

fazem com que o sentido possa sempre ser outro.

Sujeito e sentido

Até agora, pensamos no funcionamento da linguagem e nos modos como os processos de

sentido se constituem, observando a relação entre texto e discurso do lado da interpretação.

Mas como será que podemos pensar todas essas características da linguagem do lado da sua

produção? Qual a relação do sujeito com a linguagem, com os seus enunciados e textos?

Se compreendemos que os sentidos sempre se constituem na relação entre a lin-

guagem e as suas condições de produção, e que assim fatores sócio-históricos e ideo-

lógicos determinam o modo como os discursos produzem os seus efeitos de sentido,

é preciso também entendermos que, nessa mesma relação de linguagem e de senti-

dos, está imerso o sujeito da/na linguagem.

O sujeito ocupa sempre uma posição discursiva ao abrir a boca para falar, e essa posição traz suas

marcas ideológicas, o que equivale a dizer que o sujeito diz sempre de um lugar, produzindo sentidos

que para ele aparecem como se fossem evidentes e naturais.

É por isso que, quando pensamos o texto da perspectiva de sua produção, em sua

relação com o discurso, pensamos que o sujeito, autor de seu texto, constitui-se por um

efeito imaginário, que coloca o sujeito na origem de seu texto, apesar de seu dizer se

constituir sempre a partir de uma memória discursiva, a partir do já-dito. O mesmo irá

se dar com o sujeito-leitor.

Vejamos um episódio verídico: uma criança com quase 7 anos, já alfabetizada, recém-ingressada em

uma nova escola, que, no caso, era católica, em um dos exercícios a serem feitos, em que aparecia

“Qual é o nome do papa?”, acrescenta um “i” ao nome “papa” e escreve, então, o nome do seu pai.

Ora, de imediato temos aí um exemplo do que dissemos no início: somos instados a dar sentido e o

fazemos. Para ela, era evidente que faltava um “i” para papai; o “i” de “papai” inscreve-a como leitora.

Disso resulta que a leitura, então, não é aqui considerada como decodificação de um

código; ao contrário, como explica Orlandi (1988, p. 39), “o leitor traz para sua leitura a

sua experiência discursiva, que inclui sua relação com todas as formas de linguagem”.

Tal como a função-autor, a função-leitor tem condições de produção que produzem cer-

tos sentidos e não outros, o que produz, por fim, a evidência de que só pode ser assim...

Terminamos, então, essa nossa jornada que foi do texto ao discurso, introduzindo no-

ções teóricas novas que estabelecem relação de continuidade com conceitos já estudados

ATENÇÃO

COMENTÁRIO

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128 • capítulo 6

em capítulos anteriores, tais como posição-sujeito, polissemia e tipologia discursiva.

É justamente assim que julgamos ser importante proceder aos estudos da linguagem:

acrescentando, ao dispositivo de análise, novos desafios e teorizações.

BARNES, J. O amor. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

BAUMAN, Z. Capitalismo parasitário. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

CALVINO, I. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

DUCROT, O. (1972). O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987.

GUIMARÃES, E. Semântica e pragmática. In: GUIMARÃES, E.; ZOPPI-FONTANA, M. G. (Orgs.). Campinas: Pontes,

2006. p. 113-146.

INDURSKY, F. De ocupação à invasão: efeitos de sentido no discurso do/sobre o MST. In: INDURSKY, F.; LEANDRO-

FERREIRA, M. C. (Orgs.). Os múltiplos territórios da Análise do Discurso. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999. p. 173-186.

MELMAN, C. O homem sem gravidade. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003.

ORLANDI, E. P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 5. ed. Campinas: unicamp, 2002.

______. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 3. ed. Campinas: Pontes, 2001.

______. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes, 1996.

______. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. Campinas: Pontes, 1983.

______. Discurso e Leitura. Campinas: Cortes, 1988.

PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (aad-69). In: GADET, F.; HAK, T. (Org.). Por uma análise automática do

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QUENTAL, V. As gramáticas do século xvi: a questão da norma. In HEYE, J. (Org.) Flores verbais. Rio de Janeiro: 34, 1995.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

IMAGENS DO CAPÍTULOp. 110 Resmungos Divulgação · Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

p. 115 Wedding cake Olah Beata · stock.xchng · rf

p. 118 Constituição Victor Maia · Estácio

p. 119 Italo Calvino Autor desconhecido · Wikimedia

p. 126 Antoine Lavoisier Louis Jean Desire Delaistre · Wikimedia · cc