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11 A RELAÇÃO DA CIDADE DE CUIABÁ COM A ESTÉTICA MUSICAL CONTEMPORÂNEA 1 Teresinha Prada [email protected] Luciano Campbell [email protected] Em maio de 2008 iniciamos uma pesquisa sobre a Bienal de Música Brasileira Contemporânea de Cuiabá 2 que vem sendo realizada nesta cidade desde 2004, regularmente, e já está anunciada sua quarta edição para o ano de 2010. Idealizada pelo compositor Roberto Victorio nos moldes de uma mostra coletânea como é a Bienal do Rio de Janeiro 3 , o referido evento é um caso concreto de produção artística dentro da chamada “música de concerto” 4 , ao qual nos relacionamos, inicialmente, como participantes e, mais tarde, como pesquisadores desse objeto e de suas múltiplas questões transpassadas. Tais temas são gerados principalmente pelo ambiente de forte cultura popular como é Cuiabá, em paradoxal aceitação e sintonia com uma estética erudita e de vanguarda artística de origens européias. O que se coloca como problemática nesse momento é: como um ambiente de forte cultura popular (Cuiabá) aceita, interessa-se, relaciona-se e contagia-se por uma temática fora de seu contexto original (a Bienal)? A música de concerto abarca milênios de história; desde a Antiguidade Grega há registros de uma atividade musical difundida. Ao Ocidente coube o papel de guardião (a matriz) e difusor (via colonização dos territórios) desse termo “música de concerto”, que depois seguiu ampliado de acordo com o recorte histórico e estético a ser enfocado: música medieval, música renascentista, barroca, clássica, do Romantismo, do Modernismo, das vanguardas, contemporânea etc.. 1 SOARES, T. R. P.; CAMPBELL, Luciano. A Relação da Cidade de Cuiabá com a Estética Musical Contemporânea. In: II Semana de Ciências Sociais, 2009, Cuiabá. Anais da II Semana de Ciências Sociais. Universidade Federal de Mato Grosso, ISSN 2175-8867. Cuiabá: 2009. 2 Projeto registrado na Propeq, 181/CAP/2008. 3 Fazemos referência à Bienal de Música Brasileira Contemporânea, em sua 18. a edição, sempre patrocinada pela Funarte. 4 Também chamada de “música erudita” e “música clássica”.

Campbell, luciano; soares, t. r. p. a relação da cidade de cuiabá com a estética musical contemporânea

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A RELAÇÃO DA CIDADE DE CUIABÁ COM A ESTÉTICA MUSICAL CONTEMPORÂNEA1

Teresinha Prada [email protected]

Luciano Campbell [email protected]

Em maio de 2008 iniciamos uma pesquisa sobre a Bienal de Música Brasileira

Contemporânea de Cuiabá2 que vem sendo realizada nesta cidade desde 2004,

regularmente, e já está anunciada sua quarta edição para o ano de 2010. Idealizada

pelo compositor Roberto Victorio nos moldes de uma mostra coletânea como é a

Bienal do Rio de Janeiro3, o referido evento é um caso concreto de produção artística

dentro da chamada “música de concerto”4, ao qual nos relacionamos, inicialmente,

como participantes e, mais tarde, como pesquisadores desse objeto e de suas

múltiplas questões transpassadas.

Tais temas são gerados principalmente pelo ambiente de forte cultura popular

como é Cuiabá, em paradoxal aceitação e sintonia com uma estética erudita e de

vanguarda artística de origens européias. O que se coloca como problemática nesse

momento é: como um ambiente de forte cultura popular (Cuiabá) aceita, interessa-se,

relaciona-se e contagia-se por uma temática fora de seu contexto original (a Bienal)?

A música de concerto abarca milênios de história; desde a Antiguidade Grega

há registros de uma atividade musical difundida. Ao Ocidente coube o papel de

guardião (a matriz) e difusor (via colonização dos territórios) desse termo “música de

concerto”, que depois seguiu ampliado de acordo com o recorte histórico e estético a

ser enfocado: música medieval, música renascentista, barroca, clássica, do

Romantismo, do Modernismo, das vanguardas, contemporânea etc..

1 SOARES, T. R. P.; CAMPBELL, Luciano. A Relação da Cidade de Cuiabá com a Estética Musical

Contemporânea. In: II Semana de Ciências Sociais, 2009, Cuiabá. Anais da II Semana de Ciências Sociais. Universidade Federal de Mato Grosso, ISSN 2175-8867. Cuiabá: 2009. 2 Projeto registrado na Propeq, 181/CAP/2008.

3 Fazemos referência à Bienal de Música Brasileira Contemporânea, em sua 18.

a edição, sempre

patrocinada pela Funarte. 4 Também chamada de “música erudita” e “música clássica”.

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Se para cada momento a estética era relacionada aos modos de atuação de

seus compositores, agregados em “escolas” composicionais, no contemporâneo a

estética de seus autores já não se prenderá mais a um único conjunto de

procedimentos; da ruptura com o antigo, com o tradicional, os criadores seguirão por

diversas linhas, tendências múltiplas, acumulativas, dentro de um espaço pós-

moderno (SALLES, 2005) e às vezes até totalmente isoladas em único indivíduo

(NOBRE,1994).

No início da pesquisa desenvolvemos a análise de questões estético-históricas

dessa música de concerto, baseados em teóricos da Estética e da Estética Musical

(ADORNO, 1974; DAHLHAUS, 1991; DORFLES, 1992 e PAREYSON, 1989), verificando

termos de estilo composicional, quais as tendências gerais e isoladas, quais

procedimentos e novas ferramentas apresentadas no evento. Também foram

analisadas questões técnicas dessa música apresentada na Bienal, para a verificação de

novos elementos técnicos na execução dos intérpretes, o que foi necessário ao

músico-intérprete aprender, adaptar ou criar. Ao final da pesquisa, pretende-se

preparar um catálogo comentado das obras da Bienal, justamente elucidando as

questões relacionadas acima e que ficará disponível na biblioteca setorial do Instituto

de Linguagens e Central da UFMT para consulta pública.

Como foi dito acima, nossa intervenção nesse tema é dentro da linha de uma

pesquisa participativa; faz-se necessário abordar questões performáticas e de

comportamento, utilizando a observação dos membros atuantes na Bienal, localizados

no próprio departamento de Artes, tendo em vista que contribuirão para elucidar o

que mudou em termos técnicos e performáticos. Além de docentes intérpretes e

palestrantes, contamos discentes com experiência interpretativa e fruidora (de

público).

Outro ponto da pesquisa é sua abordagem na área de Arquivologia Histórica,

pois a pesquisa se estruturou a partir de fontes bibliográficas referenciais (biografias,

livros e teses sobre música erudita contemporânea), programas das três Bienais de

Música Brasileira Contemporânea de Mato Grosso (catálogos, folders, proporcionando

um levantamento dos concertos realizados nas três edições do evento), coletando

ainda relatos de participantes e artigos de jornais na Imprensa local e nacional.

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Na verdade, de todas as análises possíveis surgidas na pesquisa, o grupo

percebe que mais do que dados quantitativos que o estudo agrega, emerge uma

questão, entre tantas possíveis5, que é essa da geração de uma relação de culturas

distanciadas pelo tempo e pela territorialidade, mas reunidas no mesmo ambiente,

aceitas em convivência e contingências próprias.

Por meio das pesquisas já realizadas desde 2008 em todo o material obtido e

das leituras preliminares e atualizadas na literatura específica da área de música

contemporânea, conseguimos obter o perfil da Bienal para a pesquisa. Já podemos

afirmar que a Bienal representa um importante veículo estético e cultural para Cuiabá,

apresentando idéias de intelectuais de veiculação nacional6 e divulgando conceitos e

notícias essenciais para a formação de platéias7 e no gosto do público da cidade.

Por outro lado, o entendimento do cenário cultural da cidade de Cuiabá lança

luzes e traz à baila na pesquisa, com a devida análise crítica, um importante ponto

sobre a música na nossa cidade: como atuar na música erudita dentro de um ambiente

de forte cultura popular e riqueza de tradições? Em que ponto da chamada

“diversidade cultural” a música erudita se posiciona dentro desse cenário?

A riqueza das manifestações cultuais cuiabanas, agrupadas fortemente dentro

do termo sintético, por consenso divulgado como “cuiabanía”, poderia desacreditar ou

desencorajar os trabalhos de valores simbólicos diferentes dessa manifestação. O caso

da música de concerto da área contemporânea é mais especifico do que a área de

concerto tradicional.

Os autores já consagrados pela História da Música, em especial a tríade Bach-

Mozart e Beethoven, atingiram uma espécie de unanimidade na programação de

5 Outro ponto intrigante é a falta de equipamento de ponta quando se pretende realizar concertos de

música eletroacústica, que é uma das vertentes dessa música de concerto contemporânea. O concerto desse estilo prima pela junção de várias mídias audiovisuais e, mais que tudo, um local apropriado para sua execução, um teatro com uma acústica que permita a percepção de nuanças sutis ou o suporte necessário para grandes blocos sonoros. Apesar disso, nas Bienais, sempre se “ousa” fazer esse tipo de música. As adaptações às possibilidades em mãos fazem prosseguir uma surpreendente produção de alunos e professores nessa vertente musical. 6 A Bienal apresenta conjuntamente a suas noites de concertos um ciclo de palestras com professores e

pesquisadores da Música de âmbito nacional, oriundos geralmente de universidades públicas. 7 Formação de platéias ou formação de público é um termo que vem se ampliando dentro das

perspectivas de projetos e produções culturais, reconhecendo na Arte e Cultura um veículo socializador pelo viés da cidadania. Em várias manifestações culturais e/ou artísticas, a busca pela formação de platéia muitas vezes garantirá a sobrevivência de uma tradição, por isso o empenho e a subvenção de várias entidades para a execução de um projeto, via Leis de Fomento ou similares.

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qualquer orquestra, grupos de câmara, conjuntos musicais acadêmicos, isto é, eles são

um marco, têm um lugar reservado e uma aceitação de público já abalizada pelo

tempo.

Em outro extremo, a música de concerto contemporânea tem seus autores

ainda vivos, de história recente e uma linguagem artística de ruptura com aquele

passado consagrado – daí para ser considerada “difícil” é um passo.

Ao se fazer música contemporânea, a confiança na capacidade de alcance dos

valores simbólicos dos espectadores não pode ser subestimada pela crença na

experiência anterior com o tradicional como única detentora de uma sensibilidade, e

isso conseqüentemente se constitui em um desafio.

Se à música de concerto tradicional agrega-se um juízo de valor já estabelecido

pelo tempo e um consenso como agente facilitador de seus conteúdos, ou como se diz

atualmente, se essa música já é “acessível” ao público, por outro lado a música

contemporânea aposta na capacidade de transmutar idéias (DELEUZE, 1999), do

surgimento espontâneo de uma nova emoção no espectador, que não se restrinja a

seu histórico musical tradicional em vigor ou que não objetive somente ao reforço de

seu arsenal de representações simbólicas, previamente adquirido.

A música contemporânea relaciona-se com um sistema de idéias que, ao

público iniciante, só permite indícios de uma compreensão; é um jogo de forças entre

a subjetividade do compositor e a do ouvinte; é uma criação artística que acredita na

possibilidade latente da reação estética das pessoas. E é justamente aí que está a força

dessa estética, paradoxalmente: tanto mais subjetiva seus signos sonoros mais capaz

de alcançar os valores simbólicos da platéia, sem o abandono de uma identidade

cultural local e sem subestimá-las com concessões.

Voltando ao caso da Bienal em Cuiabá, tal produção surpreende porque de

dentro de uma exuberante paisagem e um calor tropical, aparentemente fazer música

erudita contemporânea8 não faria o menor sentido aqui. O público que assiste à Bienal

já está formado e é em número considerável, com grande espaço dado pela Imprensa

local. Mas, voltamos à pergunta, o que pode explicar esse interesse?

8 Criada na Europa, a música contemporânea é herdeira de grandes mudanças na estética musical,

ocorridas especificamente em Viena, Áustria, se colocarmos como ponto de mudança a Escola de Viena (Schoenberg, Berg e Webern) ou em Paris se anteciparmos as mudanças por meio da escola impressionista (Debussy) ou, ainda, Bayreuth, Alemanha (com Wagner).

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O aspecto do diferente presente nas audições das obras contemporâneas pode

se mostrar problemática para grande parte do público mato-grossense; o que

afirmamos ser positivo, pois, de alguma forma os indivíduos são afetados

esteticamente. Cada sujeito busca a sua maneira de se inserir no contexto dessas

novas práticas musicais, seja pesquisando, dialogando com os palestrantes e

compositores ou ouvindo o repertório disponibilizado nos poucos acervos da cidade.

Porém, isso é um fator que depende da personalidade de cada sujeito.

A indecifrável ambigüidade intrínseca à Música Contemporânea se mostra

como um fator determinante no posicionamento do público. Segundo Dorfles (1992:

29-30), tal ambigüidade presente na arte contemporânea age como condição

plurissignificante, pois possibilita ao mesmo tempo criação e fruição estética. Essa

complexidade requer orientação na percepção das relações entre o conhecido e o

desconhecido. A aparente "imprecisão" da música serve para torná-la ainda mais

preciosa e misteriosa.

A música de concerto se desenvolve diretamente a partir do conhecimento e da

tecnologia proporcionados pela ciência; compositores e pesquisadores atuantes

dentro e fora da academia renovam o fazer artístico através da experimentação e da

“mistura” de diferentes técnicas composicionais. Sem dúvida alguma, a música

folclórica e a popular também se nutrem através das novas tecnologias, porém isso só

ocorre depois que essas práticas já estão estabelecidas, seja pela afirmação da eficácia

das técnicas desenvolvidas seja pela forma que se mostra acessível.

Ao contrário do que possa parecer, a música contemporânea apresentada na

Bienal pelos compositores residentes em Mato Grosso é a mais prematura música

regional; obviamente sua estética é das mais remotas; mas ainda assim é produção

local. Os elementos regionais acabam por se misturarem aos pensamentos dos

compositores, a exemplo da música ritual indígena9.

Fazer música é ocupar-se de si próprio. O artista antes de qualquer coisa

preocupa-se consigo mesmo, parte do íntimo e do impalpável estado de consciência

pessoal. A motivação por outro lado pode partir dessa ou de várias esferas distintas;

9 Há muita música de concerto no passado baseada na temática indígena. Hoje, a rigor, busca-se uma

correspondência com a não-linearidade do tempo, coisa tão natural a tantas etnias, como um aspecto formal da estética musical contemporânea.

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seja pela busca de um novo timbre, pela busca de novas formas de organização sonora

ou pelo simples cumprimento de uma encomenda.

A pesquisa está nesse ponto de reflexão; foram formuladas hipóteses nessa

direção – como vem sendo estabelecida uma relação de manifestações culturais e

artísticas distintas? Talvez uma intuição coletiva dê crédito a um universo poético tão

distante dessa comunidade, legitimando e salvaguardando o que antes não poderia ser

concebido, sem se incomodar com os segredos da linguagem ou se o sentido desvela-

se ou não. Cremos também que o fato de estar dentro da universidade, que aqui é

uma referência para a sociedade mato-grossense, traga uma credibilidade aos

compositores, suas obras e um evento como a Bienal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor. W.. Filosofia da nova música. São Paulo: Perspectiva, 1974. DAHLHAUS, Carl. Estética Musical . Lisboa: Edições 70, 1991.

DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. São Paulo: Editora 34, 1999. DORFLES, Gillo. O Devir das Artes. São Paulo: Martins Fontes, 1992. NOBRE, Marlos. "Tendências da Criação Musical Contemporânea", in Revista

da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea, Ano I n.°1 pg. 71-86, Goiânia. PAREYSON. Luigi. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

SALLES, Paulo de Tarso. Aberturas e impasses: o pós-modernismo na música e seus

reflexos no Brasil, 1970-1980. São Paulo: Editora UNESP, 2005.