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A cidade do prazer: arte e entretenimento urbanos o ambiente urbano como espaço de sociabilidade e de produção artístico-imagética A cidade como galeria Estamos transitando de uma forma-cidade como coração da modernidade, com regulares contornos espaciais, perspectivas geométricas e divisões em classes precisas a uma forma-metrópole que dissolve tudo isso: uma metrópole comunicativa, que fragmenta tudo o que é sólido, do qual emergem novos e incontroláveis conflitos. (CANEVACCI, 1999, p. 120) É indiscutível a profunda importância das cidades de nosso tempo quanto à vivência coletiva e à produção das manifestações artísticas e culturais pelos mais distintos indivíduos e grupos. Tendo em vista esta constatação, este texto privilegiará as manifestações de cunho imagético dado o seu poder em diversos níveis. Imagens que surgem como componentes cumpridores de um importante papel na organização e na condução da lógica urbana. A urbe se fundamenta nela s em boa medida, elementos que são de socialização do ser urbano e promotoras de um processo de educação visual essencial. A paisagem urbana pode se afirmar em torno de certa cultura visual, relacionando urbanidade e visualidade, fazendo-se, ao mesmo tempo, um capítulo da história da imagem e da história da cidade (KNAUSS, 2001). Deste modo, os indivíduos que convivem com tais manifestações efetuam apropriações desse espaço plural. Saber efetuar uma leitura e entendê-la como pertencente a esta complexidade significa compartilhar suas versões de domínio público, não abrindo mão, entretanto, de seus sentidos particulares. Isto é, uma imagem não contém somente um significado, mas sim múltiplos e condicionados por subjetividades e formas de olhar. As imagens urbanas são, em alguma medida, resultados de um processo social básico, tendo o seu entendimento compartilhado, numa relação de afinidade, por determinados agrupamentos sociais. Tornam-se, com o passar do tempo e as sucessivas mudanças cognitivas do gênero humano, um processo comunicativo entre coletividades diferenciadas em muitas características que comungam códigos mediatizados pelo aspecto prático de suas funções. Ao refletirmos sobre nossa época, vemos uma manipulação dos processos imagéticos de produção nunca antes observada. Atualmente, diversos interesses vinculam-se a esta produção no sentido de estabelecer formas de comunicação e de diálogo com públicos que dominam códigos cada vez mais mundializados, que perpassam os mais variados segmentos constituintes das sociedades.

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A cidade do prazer: arte e entretenimento urbanos

o ambiente urbano como espaço de sociabilidade e de produção artístico-imagética A cidade como galeria

“Estamos transitando de uma forma-cidade como coração da

modernidade, com regulares contornos espaciais, perspectivas

geométricas e divisões em classes precisas a uma forma-metrópole

que dissolve tudo isso: uma metrópole comunicativa, que fragmenta

tudo o que é sólido, do qual emergem novos e incontroláveis

conflitos.” (CANEVACCI, 1999, p. 120)

É indiscutível a profunda importância das cidades de nosso tempo quanto à vivência

coletiva e à produção das manifestações artísticas e culturais pelos mais distintos indivíduos

e grupos. Tendo em vista esta constatação, este texto privilegiará as manifestações de cunho

imagético dado o seu poder em diversos níveis. Imagens que surgem como componentes

cumpridores de um importante papel na organização e na condução da lógica urbana. A

urbe se fundamenta nela s em boa medida, elementos que são de socialização do ser urbano

e promotoras de um processo de educação visual essencial.

A paisagem urbana pode se afirmar em torno de certa cultura visual, relacionando

urbanidade e visualidade, fazendo-se, ao mesmo tempo, um capítulo da história da imagem e

da história da cidade (KNAUSS, 2001). Deste modo, os indivíduos que convivem com tais

manifestações efetuam apropriações desse espaço plural. Saber efetuar uma leitura e

entendê-la como pertencente a esta complexidade significa compartilhar suas versões de

domínio público, não abrindo mão, entretanto, de seus sentidos particulares. Isto é, uma

imagem não contém somente um significado, mas sim múltiplos e condicionados por

subjetividades e formas de olhar.

As imagens urbanas são, em alguma medida, resultados de um processo social

básico, tendo o seu entendimento compartilhado, numa relação de afinidade, por

determinados agrupamentos sociais. Tornam-se, com o passar do tempo e as sucessivas

mudanças cognitivas do gênero humano, um processo comunicativo entre coletividades

diferenciadas em muitas características que comungam códigos mediatizados pelo aspecto

prático de suas funções.

Ao refletirmos sobre nossa época, vemos uma manipulação dos processos

imagéticos de produção nunca antes observada. Atualmente, diversos interesses vinculam-se

a esta produção no sentido de estabelecer formas de comunicação e de diálogo com públicos

que dominam códigos cada vez mais mundializados, que perpassam os mais variados

segmentos constituintes das sociedades.

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Tendo sido proclamado a “era da imagem”, o século XX, e agora o século XXI,

emergem como o período do apogeu da vida urbana. As cidades aparecem como locais

de propagação de hábitos e de costumes compartilhados em maior ou menor intensidade

pelos mais diversos aglomerados populacionais. Seus aspectos específicos (religiões,

ideologias etc.) são relegados ao segundo plano frente a uma massificação muito veloz e às

transformações em franco e acelerado curso num mundo regido por um acentuado

processo de globalização. As cidades tornam-se, então, espaços por excelência das

manifestações visuais de maior vulto e abrangência. Elas corporificam um curioso e essencial

paradoxo: a coexistência de uma expressiva pluralidade cultural, social etc., e uma

singularidade igualmente inerente.

Nossa aula-texto tem o objetivo de abordar aspectos do horizonte imagético do

espaço da cidade no mundo ocidental na construção da realidade contemporânea, aportando,

para tanto, uma perspectiva deliberadamente heterogênea de posições e de autores.

Cidade, cultura e espaço imagético

Nas últimas décadas, a cidade transformou algumas das funções que predominavam

em outras épocas. Ao invés de assegurar proteção, de ser lugar de mercado etc., transforma-

se em um aparato de comunicação e para o qual “nove décimos da nossa experiência [nela]

transcorrem” e que por isso “a cidade é a fonte de nove décimos das imagens sedimentadas

em diversos níveis da nossa memória” (ARGAN, 1995, p. 235).

No cenário da cidade contemporânea, uma perspectiva de interpretação visual

tende a abrir possibilidades de conquista da experiência de sua complexidade. Nesse sentido,

portanto, tais condições fazem da cidade um “lugar que autoriza as diferenças e que encoraja

sua concentração, construindo pertencimentos díspares e experiências cada vez mais

complexas” (PESAVENTO, 1995, p. 285). A cidade é o lugar do olhar, onde a

multiplicação da exposição e da comunicação via imagens parece destruir, num certo

sentido, a distinção tradicional entre cultura de elite e cultura de massa.

Do ponto de vista desse olhar do qual a cidade é o locus privilegiado, é interessante

notar, como nos mostra Robert Pechman (1995), o caráter de “invenção do urbano”,

enquanto busca da construção de uma ordem. Para ele, a história da cidade está

geneticamente dissociada da história do urbano, devendo este último ser visto como

ruptura, como propositor de articulações e de conceitos que pretendem nomear uma

“nova” ordem. Assim, o urbano não é exatamente um “lugar”, um espaço, mas sim um

ambiente de representação, um espaço abstrato.

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A dimensão plural da constituição da cidade, seu caráter dialógico e multicultural por

excelência, potencializa a participação e a expressão dos mais diversos sujeitos e

heterogêneos grupos urbanos. Essa pluralidade cultural urbana prefigura a existência de

“arenas culturais”, condicionadas e condicionadoras de um conjunto múltiplo de ação

coletiva, de muitas dimensões e significados.

Num clássico texto sobre a cultura brasileira, Fernando de Azevedo afirma que “as

cidades exerceram sempre um papel importante no desenvolvimento das artes, das

letras e das ciências, [e por isso] não é possível separar a cultura da vida urbana”

(AZEVEDO, 1996, p. 38). Deste modo, as cidades atuais figuram como os lugares que se

caracterizam pela velocidade de circulação e pela forma da organização de suas imagens.

No tocante a essa circulação das imagens, podemos ter, é claro, tipos diferenciados de

suportes. Móveis ou fixos (como no caso dos muros em que incidem as pinturas dos grafites),

eles podem variar, por exemplo, dos transportes coletivos, como ônibus ou metrô, até o

conjunto de monumentos públicos, geralmente históricos e alguns outdoors.

Há quem sustente, por exemplo, ser a própria cidade, seu espaço e suas

referências, a obra de arte por excelência (PEIXOTO, 1998). Para este autor, mesmo o

caráter em grande medida insatisfatório da construção da cidade para o ser humano - que,

humanamente, quer sempre mais! - apresenta-se como essencialmente artístico. Como é

propalado no livro Arte & Cidade, a arte é “modo de habitar a cidade. E, nesse sentido, a

arte não existe na cidade”. E segue dizendo, “ela é a cidade enquanto a cidade reflete

a si mesma: a experiência da cidade passa a ser constitutiva do fazer arte.” (PEIXOTO,

1998, p. 31).

Como alude Massimo Canevacci, em A cidade polifônica, a comunicação urbana é

dialógica e não unidirecional (1993, passim). Não há unicamente espectadores na

cidade, mas sim atores que continuamente dialogam com seus aspectos, reconstruindo a cada

momento os seus significados, tão mutantes quanto a realidade global que a cerca. Pois

bem, se a cidade tem discursos, se é um discurso, como defende BARTHES (1987), a

relação dialógica se estabelece, multi-interpretativa e polissêmica, onde nós falamos à

nossa cidade, assim como ela também nos fala. Conforma-se então um processo

construtivo nessa relação, poder-se-ia mesmo dizer simbiótica, entre a metrópole e seus

metropolitanos (DIÓGENES, 1998).

As ruas são o espaço privilegiado para que as manifestações ao ar livre tenham um

alcance espetacular, onde tais manifestações estão imbuídas de um julgamento estético.

Certo tipo de julgamento visual, de apreciação estética, é necessário como dado básico de

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“sobrevivência” no multifacetado ambiente da cidade.

É incontestável, no debate acadêmico e científico, o papel e o poder das imagens e de

sua sedução sobre o homem contemporâneo. Mesmo aquelas imagens que em sua primeira

aparição poderiam “causar irritação e descontentamento, ao fim de poucos meses

convertem-se em manifestações apreciadas e buscadas” (ALMEIDA JUNIOR, 1994, p.

75, grifos meus). Ainda de acordo com o autor, há uma constatação cada vez mais

plausível sobre a crescente “iconização da sociedade contemporânea”, em praticamente

todos os setores culturais, com a intensificação da comunicação por meio de imagens

(ALMEIDA JUNIOR, idem, p. 67).

Como nos recorda NEIVA (1999, p. 8), a “representação da realidade não é o primeiro

item da produção de imagens”. Elas, as imagens, possuem dois espaços determinantes

para a sua percepção: o olhar de quem as produz e o outro de quem as recebe. Face a isto,

pode-se afirmar que as percepções aproximadas ou equivalentes podem ser provocadas

pela contemporaneidade dos sujeitos, “aqueles que compartilham de seu programa de

produção”. Portanto, a aproximação com os sentidos das imagens, por si sós múltiplos e

variantes de acordo com o olhar, confere ao analista o estatuto de autor de novas

interpretações.

Ambas, cidade e imagem, apresentam um ponto comum: devem se fazer ver,

provocar uma visibilidade total. As imagens são sempre percebidas por espectadores, pois a

“verdade” requer testemunhas. Este é o paradigma de um mundo midiático: o mundo nunca

se parecerá com uma imagem, mas uma imagem pode se parecer com o mundo. A

sedução exercida pelas imagens é uma sedução multiplicada quando envolve o nosso

lugar vivido, o agenciamento de nossa memória com partilhada, as expectativas do futuro

vivenciadas no nosso lugar de referência.

Nunca é demais atentar para o caráter de formação cultural e simbólica da

imagem. Sua interpretação deve ser resultado de uma imbricação analítica que

pressupõe lançar mão da relação com a cultura, a história e com a formação social dos

sujeitos enredados na análise. Nessa perspectiva, a imagem é um discurso e deve-se atribuir-

lhe um sentido do ponto de vista social e ideológico, e não proceder à descrição (ou

segmentação) dos seus elementos visuais. Na qualidade de produto de um aprendizado

cultural e histórico, as imagens acabam por obedecer, em sua constituição, mais a uma

subjetividade da autoria sempre ideologizada e imbuída de múltiplos interesses, do que

a uma objetividade concernente à “realidade”. Na imagem visual, poderíamos dizer, é

possível vislumbrar o que não é dito e que de alguma forma escapa, escamoteia.

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Juventude e produção cultural na cidade

A juventude contemporânea particulariza-se por ter múltiplos gostos em termos de

suas formas de entretenimento e de contato social. Dentre estas, as manifestações musicais

aparecem como um ponto nodal de sociabilidade e de interação.

Numa discussão teórica, autores (ABRAMO 1994; HERSCHMANN, 1997) que se

debruçaram na temática da juventude enquanto categoria social, concordam que ela reflete o

tempo que vive. E não é diferente com a juventude que produz os grafites. Como afirma

HERSCHMANN (1995, p. 90), “os jovens vêm encontrando nas representações associadas

aos universos musicais e à sociabilidade que eles promovem, o estabelecimento de novas

formas de representação social”. Tais representações funcionariam como liames de

associação, no sentido de se formarem grupos de simpatizantes das mais variadas e

disponíveis linguagens artísticas de nosso tempo.

Nesse sentido, a cidade inteira se constitui em objeto de impugnação nas práticas e

comportamentos juvenis. Uma vez que eles avançam sobre ela, tendem a efetuar-lhe uma

(re)apropriação, a partir de uma ressemantização e de uma reafirmação de um domínio

simbólico a que a submetem. Poderíamos dizer que esses mesmos universos musicais e

sociabilidade compartilhados promovem também novas formas de autorrepresentação social,

sendo uma dessas, na ordem do simbólico, o grafite.

Mesmo sendo a categoria jovem problemática, uma vez que a divisão entre as idades é

arbitrária (ver, para isso, os trabalhos de BOURDIEU, 1983), ainda assim os jovens e a

juventude aparecem, já no século XX, como categoria e como “depositária[s] de valores

novos, capazes de reavivar uma sociedade velha e esclerosada”, conta Philippe Ariès

(1981, p. 46, grifos meus). Em nosso tempo, os grupos juvenis constituem espécies de

“grupos espetaculares”, na expressão de Helena Abramo (1994, p. xiv), produzindo uma

intervenção crítica no espaço público através de suas manifestações urbanas.

O estilo jovem, suas práticas e suas representações, podem ser pensados como

“marcas da atualidade”, conforme argumenta Eloísa Guimarães (1997, p. 199). Aparecendo

como atores por excelência dessas novas dinâmicas urbanas, os jovens adotam o movimento,

a velocidade e a superexposição como referenciais centrais nas encenações protagonizadas

nesses espetáculos urbanos. Assim, eles criam um código visual diferenciado e se fazem

reconhecer por tal ou qual estilo, seja por suas roupas, que seguem determinadas marcas,

incluindo-os, como jovens, num nicho específico da cultura de massa, seja por suas

posturas, gírias, gestos e pelas imagens de si que passam. Esse conjunto de traços se

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apresenta como forma de comunicação visual, montando uma coreografia em que a

gestualidade e a visibilidade do corpo promove um reconhecimento individual e/ou grupal

(os “funkeiros”, os “metaleiros”, os “skatistas” etc).

Nessa produção cultural jovem no contexto urbano, atualmente parece haver um

“consumo” da cidade da qual não participam “legalmente” de maneira ativa. Isto é, eles não

desfrutam dos canais de comunicação e expressão mais comuns, tais como as emissoras

de rádio, os jornais, as revistas, entre outros, como mecanismos habituais de veiculação de

discursos. A cidade funciona aí como uma espécie de vitrine que extrapola a

dimensão local, possibilitando, ao contrário das vitrines tradicionais, ver e ser visto em

perspectiva ampliada, seja no seu andar pela rua, na exposição plena de sua figura, seja na

sua produção imagética. Ainda segundo DIÓGENES (1998, p. 103), “observar as vitrines

e ser vitrine através de „corpos panoramáticos‟ postos em constante movimento nos

locais de intensa visibilidade pública” configura o ser jovem no atual contexto urbano.1

Sem dúvida, a busca da diferença, o desejo de causar impacto, de provocar contrastes,

marcas definidoras de existência social, é o que parece mobilizar a juventude das últimas

décadas.

A produção dessas posturas envolve a elaboração crítica de questões relativas à

sua condição e ao seu tempo. Significa também um esforço de expressão dessas

elaborações no espaço público, esforço que implica em uma intenção de intervir nos

acontecimentos. Como diz ABRAMO (op.cit., p. XV), em seu trabalho sobre punks e

darks, esses grupos produzem uma intervenção crítica no espaço público, em um

sentido dialógico. A ênfase em certas questões e a busca de respostas sobre,

simultaneamente, a sua condição juvenil, sobre a ordem social e sobre o mundo que os cerca

anima estes grupos urbanos. A partir da “montagem de uma encenação, da articulação de

uma fala, com suas figuras carregadas de signos, com sua circulação pelas ruas das cidades,

[pelas] suas músicas...”, eles demonstram a importância destes instrumentos na

construção de uma auto-imagem e de um ambiente para o compartilhamento de

atitudes e práticas.

Dentre os grupos urbanos, a música como manifestação de entretenimento e de lazer

é uma necessidade que cresce com a urbanização e a industrialização. A linguagem

musical é hoje um dos códigos mais importantes, sendo em torno dela que se formam as

1 Corpo panoramático é uma noção criada por CANEVACCI (1999) que se refere à intensa exposição do ser

urbano, aqui especificamente os jovens, pela visibilidade plena de suas roupas, tatuagens, piercings etc.,

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“tribos”, as gangues e os grandes grupos. A importância da música reflete o comportamento

e as atitudes que, no conjunto, ou lhes são de uso estritamente grupal ou lhes transcendem

espalhando-se para o conjunto maior da sociedade, não se restringindo à dimensão do local e

atingindo níveis regionais e nacionais.

Estas manifestações de comportamento e de atitudes formam um determinado

estilo de vida, aqui entendido como conjunto de comportamentos e de atitudes que

conformam a postura, as preferências em vários níveis e as ações dos sujeitos

encerrados numa dada cultura e coletividade social, econômica, política etc. Estes não são

fixos e imutáveis, pelo contrário, metamorfoseiam-se de acordo com as condições existentes.

Esse estilo de vida não possui uma essência, no sentido de uma estrutura estática e sem

maleabilidade, pois depende do quanto se transformam os projetos pessoais, conforme

variam os gostos e os posicionamentos perante as circunstâncias que se apresentam.

Os estilos de vida e os gostos de grupo são importantes pois influenciam a

produção das imagens, emprestando-lhes seus temas e suas projeções culturais,

visceralmente associados aos seus universos reais e simbólicos. O estilo, sendo uma

fundamental maneira de ser do indivíduo no mundo, implica num sistema de uso. Esse uso

define o fenômeno social através do qual um dado sistema de comunicação se manifesta de

fato. Assim, tanto o estilo quanto o seu uso tem a ver com um modo de operar (de falar,

de andar etc.), desenvolvendo um processo simbólico que procura expressar uma maneira

de ser que busca se singularizar.

Retomando a questão da encenação, Abramo lembra (op.cit.) que a ideia de encenação

também permite compreender a questão de artificialidade do estilo, ou do estilo como uma

máscara ou fantasia que se veste e se desveste. O estilo não é uma representação do ser

jovem, que o exibe, ou do seu modo de vida, mas das ideias que ele quer expressar, que

ele quer comunicar através do que a autora chama de espetáculo (isto é, formas

extraordinárias de manifestar suas posturas e comportamentos, que se fazem ver através das

roupas, gestos, gírias etc. sendo apresentados de maneira massiva ao olhar). Ainda nesse

sentido, da criação de um espaço estilístico para si, é importante considerar as ideias de

HERSCHMANN (1997, p. 8ss), em que a principal relevância das expressões culturais

juvenis parece ser a de se oferecerem como “espelhos de seu tempo”, por formarem um

conjunto de códigos e de estilos híbridos, com referências locais e internacionais.

A rapidez e a volatilidade da assunção e descarte de posturas entre os grupos

demonstrando simbolicamente uma forma de identidade pessoal como um sujeito social que está na

vanguarda.

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jovens é um dado de fundamental importância no mundo contemporâneo. Os estilos de

roupas, os gêneros musicais, a participação em grupos, funcionam como linguagens

temporárias e provisórias com as quais o indivíduo se identifica e manda sinais de

reconhecimento para outros. Estes jovens pertencem a uma pluralidade de redes, de grupos

e de relações identitárias. Entrar e sair dessas diferentes formas de participação é mais rápido

e mais frequente do que em épocas anteriores e a quantidade de tempo que se investe em

cada uma delas é reduzida. Mas adotar um estilo pela imitação, por mais efêmero que seja o

caráter dessa adoção, não deixa de lado a capacidade de interpretar e de ressignificar o que

é imitado. Os jovens da modernidade (entendida aqui simplesmente como o tempo

cronológico atual) podem assumir posições originais e criativas, seja nos hábitos e nas

vestimentas, seja nos projetos e ideais.

É notável que, ao atribuírem novos sentidos aos espaços da cidade, os jovens os

transformam em espaços de acentuada simultaneidade cultural e simbólica. Partindo do

postulado de que diferentes âmbitos de experiência conformam diferentes juventudes, é

possível perceber as plurais possibilidades de abordagem desta temática no horizonte de uma

multiplicidade e complexidade cultural.

É certo que as práticas de lazer proporcionam aos jovens os espaços indispensáveis à

constituição autônoma das suas identidades individuais e coletivas. Suas práticas culturais

no espaço urbano, longe de serem somente atividades comprometidas com uma finalidade

“séria”, “funcional”, constituem-se também em atividades de entretenimento e lazer.

A experiência social contemporânea fez da identidade juvenil algo profundamente

associado à expressividade cultural, tanto no âmbito das práticas individuais e coletivas de

lazer, como nas práticas religiosas e/ou políticas, que são, em seu conjunto, marcas

expressivas das cidades e da época contemporâneas. Enfim, na produção cultural juvenil nas

cidades, além da já enfatizada pluralidade e heterogeneidade, há que se considerar também,

e em função disso, a habilidade que este grupo possui de alinhavar os retalhos ou pedaços

disponíveis. Estes são fragmentos de sua experiência urbana, que possibilitam a criação de

produtos culturais novos, tendo uma ideologia ou visão de mundo de autoconhecimento.

Julgamento visual e perspectiva artística no ambiente urbano

Trabalhar com a noção de arte, ampla e complexa, implica considerações

múltiplas sobre uma grande diversidade de fenômenos que nos circundam. Interessa-nos,

aqui, contemplar questões sobre arte e artista no mundo contemporâneo, por serem duas das

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mais importantes categorias que compõem o grafite eleito por nós.

É certo que a categoria arte possui uma complexidade inerente. Isto causa um

problema teórico difícil de resolver nas diferentes organizações sociais: o que é arte? E,

nesse sentido, a discussão envolvendo grafite urbano significa a apreciação de uma temática

que não goza unanimemente da “chancela oficial” de expressão artística.

Numa definição possível desta categoria, uma obra pode estar, a princípio, fora do

circuito oficial da história da arte, mas se o “mundo artístico” a coopta, fazendo-a

circular como arte, então ela é arte. São os representantes desse tal mundo artístico, ou seja,

artistas, críticos, comerciantes e colecionadores, e não a história em si, que detêm o poder

de decidir essas questões.

Diversas são as teorias que tentam dar conta da definição do(s) campo(s) da(s)

arte(s). Como um produtivo teórico do campo, Argan, em sua obra Arte Moderna

(1992, p. 509), sustenta que o que conhecemos historicamente como arte é um conjunto de

coisas produzidas por técnicas diferenciadas, mas tendo entre si afinidades pelas quais se

constituem em sistemas. Para ele, o forte teor de experiência estética conforma igualmente a

nossa experiência da realidade, que, por sua vez, constitui-se num componente necessário da

experiência global.

O espaço urbano costumeiramente credita o estatuto de artístico à diversidade

expressiva de suas particularidades e formas de apresentação estética e visual. Já que o

espaço urbano comporta tantas e tão distintas linguagens, classificá-las taxonomicamente

constitui uma violação do direito à pluralidade.

Clifford Geertz, em sua obra Saber local (1997), defende a perspectiva de uma

construção de discursos e conceitos sobre a arte e o objeto artístico baseados em

construções inerentes à própria cultura, às suas estruturas locais de funcionamento.

Nestes termos, a arte e suas expressões só poderiam ser definidas a partir de conceitos

locais e válidos para aquela formação cultural. O contexto, a configuração espacial e

histórica e a situação social comporiam então o cenário cultural de uma coletividade. Estes

fatos podem se transformar de acordo com mudanças internas e externas, levando a toda

uma diferenciada releitura - às vezes usando, inclusive, instrumentos completamente

diferentes e até mesmo opostos àqueles primeiros utilizados. Estas, mesmo que subvertam

as primeiras impressões, consideram sempre e antes de mais o movimento local da mudança

cultural, econômica, política, social etc.

Assim, o artista nasce numa configuração sempre específica e sua condição é regulada

por estas condições, visto que o que ele faz será arte de acordo com as leituras que se

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puderem fazer de sua produção (esta produção é muitas vezes enquadrada como artística por

uma chamada “teoria institucional” da arte.). Os “mundos da arte” diferem quanto à maneira

como atribuem o título honorífico de artista e quanto aos mecanismos por meio dos quais

escolhem quem entra nele ou não.

Em seus verbetes Artes e Artista, DAMISCH (1984) chama a atenção para a

pluralidade das manifestações concernentes ao campo da arte. Propõe também que o valor e

o domínio das artes não se pautam apenas no critério da utilidade social das obras. Ele

defende que para encarar o problema da arte, e das várias artes, seria preciso

“desligarmo-nos do ponto de vista da nossa cultura, a fim de as apreciarmos em termos de

valor, e segundo a sua „dignidade relativa‟, mas não necessariamente para conhecê-las”

(DAMISCH, idem, p. 15, grifo no original).

Tal discussão sobre o que é arte ou sobre o que pode ou não ter o estatuto

artístico envolve questões que vão além da categoria de belo, interessante ou da

categoria de apuro estético. Partindo desta certeza e dos debates em torno de sua

inserção no universo das artes visuais, a obra, no mundo contemporâneo, precisa ser

reconhecida como “de arte” para consagrar-se. A legitimação do produto como de

grande alcance simbólico é caracterizada arte a partir do olhar de uma subjetividade

capacitada para o seu reconhecimento: em outras palavras, é considerado arte e artístico o

que é eleito como tal, o que é consensualmente estabelecido como portador de

atributos estruturantes de uma obra de arte – o mesmo é afirmado por DAMISCH (op.cit., p.

22), que defende que “um objeto de arte é, por definição, um objeto definido como tal por

determinado grupo”.2

A arte do grafite de muros, imagens de impacto em uma profusão de cores que se

expandem em dimensões avantajadas em vias públicas, alcança as ruas e rouba a

atenção do ser urbano cada vez mais sem tempo para contemplar as obras confinadas em

galerias e museus.

Entende-se, como sustenta ARGAN (Arte..., op.cit., p. 507), que não há mais um

núcleo e uma periferia para a arte. Visto que os ambientes (urbanos) modificados pelos

“artistas” tornam-se diferentes e esteticamente interessantes, se justificaria a discussão do

grafite urbano como uma modalidade artística contemporânea. Essas pinturas promovem

2

2 Assim, também GELL (2001, p. 117) diz ser arte “tudo aquilo que não apenas eu mas também outras

pessoas que pensam do mesmo modo classificam como tal” e, a título de alargamento do campo

comparativo sobre quem estabelece o que é arte, considerar também a célebre frase de Piotr Kowalski (apud

MORAIS, 1998, p. 33): “A arte é um conceito estatístico. Se há gente suficiente que decide que uma coisa é

arte, então é arte.”

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uma ressignificação, no plano do simbólico, da rede de relações que compõem a cidade e

que afetam diretamente os seus usuários no processo de sua fruição da mesma.

Parece também apresentar, a partir de suas formas e ideias, tanto no real

empírico quanto no imaginário da figuração, a possibilidade de formular de novo, ou ao

menos de outro modo, essas relações sociais, na sua plena diversidade. Isso tudo sem

perder de vista a possibilidade de ser agradável e até mesmo de ser persuasivo, dando

prazer ao olhar. Talvez por isso o âmbito público seja um espaço diferencial para um

trabalho de arte, sendo essencialmente um espaço de conflito contínuo. Isto reforça a

emancipação do produtor diante dos sistemas estabelecidos de dominação cultural e

política.

Finalizando, em concordância com o caráter relativizado dos conceitos aqui

discutidos, abertos por excelência, a reflexão sobre cidade, imagem, juventude e arte

por intermédio da inserção do grafite de muros no espaço urbano pode gerar um instigante

debate e, para tanto, a construção de olhares e definições confere ao indivíduo uma

autonomia que, por assim dizer, possibilita uma autoralidade.

Referências bibliográficas

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