26
Mitologi@s da Comunicação: De Roland Barthes a Michel Maffesoli Para uma resenha de Michel Maffesoli: Iconologias. Nossas idol@trias pós-modernas, 2009 1 . Cláudio Cardoso de Paiva 2 Quebra-Gelo Hoje, na primeira década do século XXI, no domínio das ciências humanas e sociais aplicadas, a universidade, as ciências humanas e ciências sociais aplicadas (e particularmente as escolas de comunicação) têm despertado para a necessidade de autocrítica e eleição de novos paradigmas de análise. Isto não ocorre espontaneamente, decorre de uma mudança das linhas de força, das intensidades e dos modos de transformação de toda materialidade física e simbólica que nos rodeia. Assim, um novo espírito científico se dissemina atento aos saberes, fazeres, artes, invenções e competências que norteiam a vida dos indivíduos e grupos sociais; nessa esteira, a grande Filosofia se volta para uma filosofia da ação dos agentes sociais, nas mais diversas áreas da experiência pragmática. O campo das ciências da comunicação tem evoluído de maneira marcante desde a segunda metade do século XX; isto tem se dado em diversas direções a partir de diferentes intersecções e transversalidades, conjugando arte, técnica, ciência e política. Aqui gostaríamos de demarcar um lugar de fala, que se caracteriza por meio de uma interface entre a comunicação humana, social, as mitologias e as tecnologias; assim distinguimos uma subárea do conhecimento que circunscreve o domínio (não de uma antropologia tout court), mas de uma “antropo-lógica da comunicação”. Assim, a antropologia - entendida como uma nuvem de saberes que se enraízam nas experiências da vida, do trabalho e da linguagem - abre caminho para um conhecimento aproximado das vivências dos atores sociais, das suas 1 Michel Maffesoli. Iconologies. Nos idol@tries postmodernes. Paris: Albin Michel, 2008. 2 Professor Associado, Departamento de Comunicação, Universidade Federal da Paraíba, Programa de Pós Graduação em Comunicação, UFPB. Pesquisador em Mídias Digitais; e Ficção Televisiva Seriada.

Maffesoli. iconologias. traduação cláudio paiva 05.05.2011

Embed Size (px)

DESCRIPTION

 

Citation preview

Page 1: Maffesoli. iconologias. traduação cláudio paiva 05.05.2011

Mitologi@s da Comunicação: De Roland Barthes a Michel MaffesoliPara uma resenha de Michel Maffesoli: Iconologias. Nossas idol@trias pós-modernas, 20091.

Cláudio Cardoso de Paiva2

Quebra-Gelo

Hoje, na primeira década do século XXI, no domínio das ciências humanas e sociais aplicadas, a universidade, as ciências humanas e ciências sociais aplicadas (e particularmente as escolas de comunicação) têm despertado para a necessidade de autocrítica e eleição de novos paradigmas de análise. Isto não ocorre espontaneamente, decorre de uma mudança das linhas de força, das intensidades e dos modos de transformação de toda materialidade física e simbólica que nos rodeia. Assim, um novo espírito científico se dissemina atento aos saberes, fazeres, artes, invenções e competências que norteiam a vida dos indivíduos e grupos sociais; nessa esteira, a grande Filosofia se volta para uma filosofia da ação dos agentes sociais, nas mais diversas áreas da experiência pragmática.

O campo das ciências da comunicação tem evoluído de maneira marcante desde a segunda metade do século XX; isto tem se dado em diversas direções a partir de diferentes intersecções e transversalidades, conjugando arte, técnica, ciência e política. Aqui gostaríamos de demarcar um lugar de fala, que se caracteriza por meio de uma interface entre a comunicação humana, social, as mitologias e as tecnologias; assim distinguimos uma subárea do conhecimento que circunscreve o domínio (não de uma antropologia tout court), mas de uma “antropo-lógica da comunicação”.

Assim, a antropologia - entendida como uma nuvem de saberes que se enraízam nas experiências da vida, do trabalho e da linguagem - abre caminho para um conhecimento aproximado das vivências dos atores sociais, das suas formas de pensar, falar e (inter)agir, dos mitos e ritos que regem o imaginário coletivo. Desta forma, o conhecimento científico despe-se de suas vestes dogmáticas e doutrinárias, evoluindo para uma práxis sociocultural e política que se banha na sabedoria secular da vida vivida.

É por essa via que situamos um ponto de partida, explorando as mitologias que organizam a vida mental e social nas cidades, numa “época estranha” em que diversos tempos históricos parecem conviver num mesmo espaço. E convém desde já traduzir o sentido das mitologias, como idéias, imagens e discursos que preenchem o vazio instalado pela eterna vontade de poder-saber dos humanos. A predisposição para explorar este universo, de certo modo, já possui uma história no pensamento social, nas artes e no mundo do conhecimento científico ocidental.

Caberia aqui citar alguns autores célebres, que se encarregaram de repertoriar as mitologias de seu tempo; cada um, à sua maneira, trouxe instigantes contribuições para refletirmos sobre as relações entre as narrativas históricas e imaginárias, que, para além dos seus regimes de verdade e credibilidade, forjaram os corações e mentes dos seus contemporâneos e persistem na memória social, enquanto referências ético-políticas, estéticas, cognitivas, comunicacionais.

Encontramos na história da inteligência expoentes extraordinários que “estremeceram as bases” dos cânones acadêmicos, mostrando a importância das

1 Michel Maffesoli. Iconologies. Nos idol@tries postmodernes. Paris: Albin Michel, 2008.2 Professor Associado, Departamento de Comunicação, Universidade Federal da Paraíba, Programa de Pós Graduação em Comunicação, UFPB. Pesquisador em Mídias Digitais; e Ficção Televisiva Seriada.

Page 2: Maffesoli. iconologias. traduação cláudio paiva 05.05.2011

mitologias na formação do imaginário; são autores que atravessaram um longo caminho, deslocando-se “da realidade sem mistérios aos mistérios do mundo” e, deste modo, puderam reanimar e revigorar a pesquisa científica.

Benjamin, Simmel, McLuhan, Morin, Barthes, Eco, Certeau, Baudrillard são alguns destes pensadores. Cada um deles, em seu tempo e lugar e à sua maneira estiveram preocupados com uma decifração do sentido do presente, e empenharam-se em realizar uma hermenêutica, uma fenomenologia da vida cotidiana, esta seara povoada por ídolos, fantasmas, iconicidades, que – ao mesmo tempo - silenciosa e ruidosamente, não deixam de relembrar a nossa condição de finitude e vontade de transcendência. Cada um deles, ao seu modo, incumbiu-se de fustigar as conexões entre o antigo e o novo, o espiritual e o corporal, o visível e o invisível, o imaginal e o legiferante, os emblemas, mitos e sinais que estruturam a nossa imaginação simbólica, vigilante e permanentemente criadora.

Todos estes arcanos já mereceram estudos rigorosos, confirmando o seu lugar na seara do pensamento social no Ocidente, e aqui os inserimos, indicando o trajeto de interessados em atualizar o tema das mitologias. E seguindo essa direção, encontramos no trabalho de Michel Maffesoli, o itinerário de um autor, misto de antropólogo, sociólogo, filósofo da comunicação e da vida cotidiana, perspicaz investigador do presente, com prestígio em várias partes do planeta, e que, tendo sido traduzido em diversos idiomas, constitui uma referência para os interessados em compreender a experiência cultural na contemporaneidade. Buscando manter vivo o intercâmbio cultural entre o Brasil e a França, que distingue uma especificidade no âmbito das latinidades, enunciamos, assim, cada um dos títulos que constituem a sua ampla produção bibliográfica, a fim de dar a conhecê-la àqueles que ainda não tiveram oportunidade de fazê-lo, quais sejam:

A lógica da dominação (1976); A violência fundadora (1978); A violência totalitária (1979); A conquista do presente, uma sociologia da vida cotidiana (1979); A dinâmica social. A sociedade conflituosa (1981); A sombra de Dionísio (1982); Ensaio sobre a violência banal e fundadora (1984); O conhecimento comum. (1985); O tempo das tribos (1988); No fundo das aparências (1990); A transfiguração do político (1992); A contemplação do mundo (1993); Elogio da razão sensível (1996); Do nomadismo, vagabundagens iniciáticas (1997); A parte do diabo. Resumo da subversão pós-moderna (2002); O instante eterno (2003); O ritmo da vida (2004); Notas sobre a pós-modernidade (2004b); O mistério da conjunção (2005); O reencantamento do mundo. (2007); Iconologias. Nossas idol@trias pós-modernas (2008); Após a modernidade (2008); A República dos bons sentimentos (2008).

Embora a obra de Michel Maffesoli tenha ampla circulação nos vários ambientes acadêmicos (e extra-acadêmicos), o seu recente livro, Iconologias - nossas idol@trias pós-modernas, até o momento, permanece praticamente desconhecido entre nós. Por isso, com o intuito de atualizar o trabalho dos pesquisadores nos Programas de Graduação & Pós Graduação em Comunicação, e por extensão, na área das Humanidades, em língua portuguesa, apresentamos - em primeira mão – a tradução de alguns fragmentos do seu opúsculo mais recente, Iconologias, nossas idolatrias pós-modernas (lançado na França, em 2009). Trata-se de uma iniciativa “diletante”, espontânea, que visa somente preparar os leitores para uma posterior degustação da obra, em sua íntegra, e se destina – principalmente – aos jovens pesquisadores engajados nos estudos das culturas midiáticas audiovisuais, pesquisas do cotidiano, imaginário social, tecnologias de comunicação e vida em comunidade.

Page 3: Maffesoli. iconologias. traduação cláudio paiva 05.05.2011

Dentre os vários capítulos do livro Iconologias – nossas idol@trias pós-modernas, apresentamos a tradução de apenas cinco deles, além da Introdução e para dar uma idéia geral da obra completa, indicamos aqui um sumário contendo os títulos dos capítulos:

MAFFESOLI. Iconologias. Nossas idol@trias pós-modernas. 2008Introdução; Abbé Pierre; Barba de três dias; Barroco; Brasilomania; Chabal, a besta humana; Che Guevara; Comércios (de proximidade); Cool; Dionísio (o retorno); Dumas (Mireille); Globalização; Google.fr; Graal (busca do); Hedonismo; Hermès (a alma dos objetos); Houellebecq; Humores; Johnny, noite, é noite!; Loft (Estórias); Mágica política; My Space; Orientalização da vida cotidiana; Oui coach!; Pacto; O pequeno príncipe; Raízes da pós-modernidade; Harry Potter; Prótese high tech; Pub; Cotidiano emocional; Festas Rave; Sarkolene; Second Life; Tatuagem; Teatralização; Tribos; Redes de Trotskismos; Zidane.

INTRODUÇÃO

“Nenhuma poesia é possível sem a participação do diabo” (William Blake)

Não há nenhuma sociedade sem que o diabo tenha tomado parte. É isso que – em todos os tempos – os mitos prestam conta: o claro-escuro, o preto e branco de toda existência humana.

Diz-se que são os sonhos que fazem crescer as crianças. Mas não apenas elas. É certo que os mitos, cristalização dos sonhos coletivos, permitem a uma sociedade ser o que ela é. É preciso, num primeiro tempo, saber demarcar e em seguida interpretá-los. E isto só é possível mostrando a que eles sucedem: porque cada época deve saber elaborar o atlas do seu imaginário a fim de estabelecer as marcas e identificar o “rei secreto” que, além dos poderes aparentes, a rege em profundidade.

A tarefa é infinita. Mas é preciso cumpri-la! Daí a descrição de alguns ícones, de alguns grandes temas mobilizadores, de alguns fenômenos societais que marcam em profundidade a nossa vida. São frequentemente antigos arquétipos que se tornam estereótipos cotidianos. Eles encontram ajuda na cibercultura em desenvolvimento. O que não deixa de ser paradoxal! Em todo caso, é divertido ver retornarem, com a internet, as figuras emblemáticas que surgiram na infância da humanidade.

Seria paradoxal dizer que o entusiasmo está de volta? E isto, é claro, num sentido etimológico: o que agita as paixões e as emoções comuns. As “razões do coração” que a razão desconhece. A vida social, com efeito, não se reconhece mais – com freqüência – nisso que Max Weber chamou justamente de “racionalização generalizada da existência”.

Pode ser que isso – novamente – permita-nos ficar atentos aos mitos. Certamente - como herança da tradição greco-latina - estes continuam, tanto para o bem quanto para o mal, a animar as obras da cultura. A ópera, a pintura, a tragédia, a literatura também, é claro, nutrem-se deles. As imagens clássicas só subsistem, no entanto, para dizê-lo metaforicamente, sob a forma do “1% cultural”. Dançarina que a sociedade produtivista tolera, pontualmente, mas que pode, facilmente, ser rejeitada quando for necessário. O importante é a lei de ferro da razão que submete todos e todas as coisas ao princípio da realidade de Utilidade Universal. E assim, nos anos 60, com a fineza e sutileza que lhe eram próprias, Roland Barthes escreveu suas Mitologias, mas o fez para operar uma

Page 4: Maffesoli. iconologias. traduação cláudio paiva 05.05.2011

“desmistificação”. Para retomar os seus próprios termos, ele se empenha em fazer uma semiologia que seja antes de tudo, como ele mesmo diz, semioclastia. O ar do tempo impunha um jargão garantido na época, a “crítica ideológica”. E para ele a noção de mito é correlativa à falsa evidência ou sem solicitar demasiadamente a sua proposta, uma falsa consciência.

Mas sabe-se que não existe nada de constante se isso não muda. E tal qual um ideal racional, que marcou a modernidade, encontra-se em vias de suceder uma ambiência idolátrica. Nossas sociedades, as jovens gerações o testemunham, não são mais iconoclastas. A imagem, o imaginário, as formas simbólicas desempenham um papel que está longe de ser negligenciável. A Internet, a Tela como se diz, irriga em profundidade as consciências. Convém então levar a serio todas estas representações. Tanto é verdade que a partir do momento em que uma coisa é verdadeira para alguém, para um grupo, uma sociedade, esta coisa existe e merece atenção. (Cf. Patrick Watier, em particular Uma introdução à sociologia compreensiva, Belval, Circe, 2002).

Assim, se não desprezarmos, a priori, o que faz vibrar as massas, se não virmos nessas “vibrações” os sintomas de alguma coisa pouco apetitosa, mas se as aceitamos nisso que elas são, então poderemos conceder aos mitos e aos múltiplos ícones que embelezam a vida cotidiana suas cartas de nobreza. É preciso estar atento. À diferença da história, assegurada de si própria e tendo ao mesmo tempo um Sentido e uma Verdade (em maiúsculo!), a mitologia é apenas uma seqüência de episódios de verdades pontuais e em todo caso efêmeras.

São estas pequenas histórias que se pode contar. Sob a forma de vinhetas ditas de boca à boca. À imagem dos deuses da mitologia clássica, as estrelas contemporâneas ou as situações paradigmáticas apenas fazem cristalizar a luz coletiva. Elas têm uma irradiação específica e exercem consequentemente uma fascinação. Daí a necessidade de demarcar e se fazer algumas configurações prestando conta de uma (irradiação) e de outra (fascinação). Convém acrescentar (trata-se de uma tomada de partido que eu assumo) que as figuras míticas são eternas ou, para dizer à maneira de Carl Gustav Jung, “arquetipais”. Elas tomam formas diversas, mas sua realidade é intangível.

De Homero a James Joyce, poder-se-ia dizer que a estrada é longa. E, no entanto, Ulisses, ele próprio, corresponde à “figura” que ele deve, em um e outro caso, encarnar.

Os mitos são transpessoais e são metáforas obsediantes, ressurgem seguindo as épocas, sob estas ou aquelas vestimentas de aparatos, ou ouropéis desemparelhados. Mas sua realidade é incontornável. E em alguns momentos, o que é o caso para a pós-modernidade, retomam a força e o vigor. Como dizia Ernest Cassirer a propósito do simbólico, sua pregnância se torna, então, indubitável.

Seria preciso encontrar uma via mediana, a da sabedoria, sabendo dar conta disso. Uma via delicada, deslocamento altivo, recusando – ao mesmo tempo – as facilidades da moda, mais simpatizantes das frases do que da verdade das coisas, e o pensamento fechado dos escolásticos cabeçudos. Um caminho de pensamento atento à vida concreta.

Os ícones e os mitos nascem das circunstâncias. Necessitam de um enfoque que saiba levar a sério estas circunstâncias sem ser ele mesmo uma operação de circunstância. O que é difícil de se fazer num tempo em que a escritura é tão fortemente ligada ao inessencial. O que implica no fato de o pensamento saiba - para além ou aquém da simples razão razoável – velar os pesadelos, os sonhos, as fantasias, em suma, esta faculdade extraordinária de se evadir do princípio da realidade. É uma tal evasão que permite uma cultura ser o que ela é.

Page 5: Maffesoli. iconologias. traduação cláudio paiva 05.05.2011

Por aí podemos descrever os afloramentos contemporâneos dos ícones que vão, aqui e ali, emergir ou invadir nossas vidas cotidianas, exprimindo a renovação periódica, cíclica, espiralesca, da juventude do mundo. Não é por acaso, aliás, que as jovens gerações – sem nenhuma vergonha – levem a sério tais afloramentos. Suas tribos musicais, seus fóruns de discussão, seus sincretismos filosóficos ou religiosos, não têm medo de vestir os nomes dos deuses ou heróis os quais se acreditava esquecidos. Sem o saber, em seu nomadismo existencial, estas gerações regozijam este oxímoro pelo qual Goethe tinha definido a natureza: uma ordem móvel.

Há uma necessidade, algo intangível, irreflagravel, uma ordem: figuras emblemáticas, mas que possuem uma mobilidade que as torna atuais.

Nomadismo, tribalismo, androgenia, animalidade, barroco, proxemia, seitas, podem ser consideradas enquanto ícones intemporais, que, ao lado dos avatares como Zidane, Houellebecq, o abade Pierre, vão relembrar que o mundo social é, antes de tudo, o resultado de nossas representações, de nossos imaginários, de nossas imaginações. Sendo bem entendido que esta ilustração da sinergia existente entre o arcaico e o desenvolvimento tecnológico vai viver sobre a “Tela”, como o My Space e o Seconde Life o testemunham.

Estamos bem longe da mitologia das Luzes. E a expressão familiar: “é claro”, tal qual uma antífrase, traduz bem a consciência de que a existência é o próprio lugar do claro-escuro. (Cf. Pierre Lê Quéau. O homem em claro escuro. Leitura de Michel Maffesoli. Laval, P.U.F., 2007.

Os mitos, tanto os da mitologia clássica quanto da mitologia pós-moderna, são cintilações esclarecedoras, tão bem quanto mal, deste caminho, individual ou coletivo, que é toda existência humana. O mito é oxímoro: é a sombria claridade que serve de farol. Assim. Como diz belamente James Joyce a propósito deste Ulisses que, ao mesmo tempo, lhe é próprio e terno, o mito teria uma outra função além de fazer “resplandecer a alma obscura do Mundo”?

SECOND LIFE. In: MAFFESOLI. Iconologias. Nossas idolatrias pós-modernas. 2009.

Fala-se em seis milhões de internautas se encontrando, a toda hora, dia e noite, no Second Life. E inúmeros são os sites em que se pode, graças aos múltiplos avatares, viver, sonhar, fantasmar uma outra vida. Entropia Universes, There, World of Warcraft são alguns dos sites que permitem identificações múltiplas. Podemos ser ao mesmo tempo, ou sucessivamente, um monstro, meio-homem, meio animal, um feiticeiro, um cavaleiro, um duende, uma fada. Pouco importa. Trata-se simplesmente de participar, magicamente, do jogo do mundo, do mundo como jogo. E, evidentemente, trata-se de um jogo comunitário. O que dirão disso os observadores incapazes de ver o que é? Na mitologia Second Life, o indivíduo não é mais o centro; é a tribo que prevalece.

Estamos habituados à grande pretensão do positivismo moderno: a verdade não nos escapará. O mito, quanto a ele, não há nada a fazer diante de tal verdade. Além do mais, existem as verdades pontuais. A mitologia é apenas a arte dos episódios, das belas histórias que se conta a si mesmo, e graças às quais as tribos se estruturam enquanto tais. As histórias das religiões e as mitologias chamam atenção para o fato de que um mito é sempre plural. Ele é feito de uma multiplicidade de lições. Isto é, de diversas versões, cada uma contando este ou aquele aspecto da lenda, do conto. E é o conjunto que, como um mosaico, vai fazer sentido. Não é isso, justamente, que está em jogo no Second Life? Uma vida múltipla ali é possível. Cada elemento desta multiplicidade possui a sua verdade, e é a própria difratação da pessoa plural que faz de cada um de nós o que somos. Eis que pode parecer paradoxal. E isto é, certamente, a ideologia da

Page 6: Maffesoli. iconologias. traduação cláudio paiva 05.05.2011

transparência que tem sido progressivamente imposta desde a invenção do indivíduo. Este, indivisível por definição, à saída do processo educacional, é assegurado de sua identidade sexual, em seguida, ideológica e, enfim, profissional.

No contexto de tal transparência, caberia sermos racionalistas aproximando-nos do que Paul Valéry chama a “brutalidade do conceito”, em que o indivíduo é conceitualizado, isto é, fechado dentro de uma definição. À imagem do Deus um, ele é único, e consequentemente deve pensar e agir assim. Trata-se de uma compensação? Um pedaço de uma outra mitologia? O que é certo é que, através dos diversos avatares do Second Life, cada pessoa vai avançar mascarado, vai funcionar sob o segredo e expor os seus desejos menos confessáveis nas dobras acolhedoras dos diversos pseudônimos que lhe são atribuídos.

O próprio termo avatar é significativo. Não é assim que se costuma interpretar um acontecimento imprevisto, um acidente interropendo o curso harmonioso das coisas? Na mitologia hindu, trata-se das encarnações de múltiplas divindades, das metamorfoses, mudanças (e atualizações) da imagem, do conceito ou da definição que se tem sobre os deuses. Assim, as metamorfoses permanecem.

O grande poema sânscrito, o Mahabharata, neste sentido, constitui uma esclarecedora ilustração. É isto exatamente o que se dá a ver e a viver, nos jogos de papéis do Second Life. Ali, à expressão direta de sua própria personalidade oficial, o avatar prefere a ilusão, a frugalidade ou a escapada. Por essa via, ao mesmo tempo, ele se protege e exprime as múltiplas potencialidades, as diversas possibilidades que o constituem. O “eu é um outro” rimbaudiano não existe mais, simplesmente um exagero poético, mas uma hiperrealidade se multiplicando em miríades exemplares. Cada máscara exprime uma metáfora, procede por sugestões e assim afronta, protegendo-se da vertigem que é toda a existência.

No labirinto do vivido, se é sempre vários. Nos dédalos do Second Life, nos surpreendemos continuamente. E por aí, além ou aquém do princípio da realidade da vida profissional, da rotina familiar, vive-se ou sonha-se, mas o princípio é um só, dos sonhos quiméricos, às vezes pesadelos, graças aos quais podemos nos evadir dos hábitos cansativos, que aos poucos desgastam a energia vital. Os avatares, ao contrário, permitem-nos viver os fantasmas e fantasias que têm uma função revigorante. Romain Rolland definia com sutileza a essência da literatura burguesa: “Não lemos os livros, nos lemos através dos livros”. Difícil uma melhor definição para a galáxia de Gutemberg. Pelo viés das leituras, há um perpétuo diálogo que se opera entre o indivíduo e o seu duplo fantasmado. Segundo os gostos, ele será Rastignac ou Madame Bovary, d”Artagnan ou Gavroche, Julien Sorel ou a princesa de Clèves. Trata-se, no sentido forte do termo, de tipos, através dos quais se exprimem todas as vidas paralelas de que nos nutrimos. (Cf. M. Déon. Da cumplicidade dos livros, 2006). Podemos ir mais longe e perceber ali como tantos arquétipos cristalizam uma memória coletiva fazendo de cada um entre nós aquilo que nós somos, e fazendo de uma comunidade de destino, ou seja, a cultura, aquilo que ela o é. É algo desta ordem que está em jogo nesta galáxia do imaginário que é a cultura numérica. Não lemos os avatares, nos lemos através dos avatares. O amigo dos livros cede lugar ao amigo dos jogos virtuais. O princípio da realidade se detém ante a fantasmagoria vivida. Mas se trata de uma metamorfose tal que... : o indispensável é relativizado pelo supérfluo; o fantasma se eleva ante o espírito sisudo. Tudo isso faz parte da cultura. Porque como os amantes de Proust ou Balzac, há sociedades secretas que se constituem no próprio seio do Second Life. Pequenas tribos se articulando em rede e que, por sedimentações sucessivas, vão elaborar onde crescerá o estar-junto pós-moderno.

Page 7: Maffesoli. iconologias. traduação cláudio paiva 05.05.2011

Relembremo-nos do que é, em seu sentido original, uma mitologia: um segredo partilhado que serve laço, ligando aqueles que o possuem. Pouco importa que isto se torne real. Existe no virtual o hiperreal. Porque certamente, pode haver adição, mas também um tipo de completude quando jogamos uma segunda vida. Este jogo de papéis relembra uma coisa simples, em algumas épocas, o importante não é existir por e para si mesmo, mas sob e pelo olhar do outro. É o outro quem decide o que eu sou. Eis aí o mito do narcisismo pós-moderno, próximo nisso daquele da pré-modernidade: um narcisismo de grupo.

GOOGLE.FR. In: MAFFESOLI. Iconologias. Nossas idolatrias pós-modernas. 2009.

Eterno problema para filósofos, teólogos, sociólogos: o que sustenta a conjunção de coisas díspares? O que é que faz com que, apesar das diversas e múltiplas formas de egoísmo (egotismo) e agressividade, haja assim mesmo o laço social? Onde se situa o centro dessa união? Como entender as múltiplas digressões, análises, pensamentos, mais ou menos pertinentes, sobre o “tecido social”?

Expressão – ao mesmo tempo – trivial e significante que dá conta do entrecruzamento das relações tornando possível a vida social.

Cada época tem a sua circulação específica e a mitologia correspondente. A descoberta do Novo Mundo desempenhou um papel importante para a mitologia moderna. A navegação eletrônica é da mesma ordem que mobiliza em todos os domínios os sonhos mais loucos, as esperanças mais vãs.

Um nome as resume: Google. Não que este seja a única ferramenta de busca. Mas simboliza bem todas as buscas desenfreadas, específicas da tela pos-moderna. O tecido social se elabora a partir das pesquisas da alma irmã, de idéias subversivas, de textos clássicos, de objetos mais baratos ou de viagens a bons preços. Em suma, o comércio ali é bem sucedido; e para compreendermos a mitologia que isto secreta, é de bom agouro um olhar mais detido.

“Quanto mais de perto observamos uma palavra, mais ela parece nos observar de longe”. Esta observação de Karl Kraus, Walter Benjamin a citava a propósito da vasta confusão em torno da noção de espaço provocada pela sua experiência relatada no texto “Haxixe em Marselha”. Ele fala do espaço ilimitado e deste dispêndio de si que produz o amor. Todas as coisas reenviam ao papel das mitologias que, além do fechamento individual, nos integram a um conjunto mais vasto e nos lançam generosamente na vida.

As palavras, com efeito, as mais simples e as mais sofisticadas, detêm uma força mágica. Assim, observando-as de perto, deixando-as nos observar de longe, lhes concedemos asas. O que nos eleva o espírito. O que nos ajuda a flanar.

A palavra tela é dessas. Designando um objeto familiar e usual na vida cotidiana, tem toda uma série de conotações, um pouco metafóricas, significando os diversos aspectos da vida social. É uma questão de costura, de entrecruzamentos, de fios tecidos, mais ou menos sólidos, em suma, laços desejados ou aceitos, constitutivos da interatividade própria da existência humana.

É tudo isso que espera descrever essa tela numérica que é a internet. O fio da rede, a rede (network) de relações que isso induz. A utilização e a gestão dos contatos pessoais cifrados graças a essa tela; é isso que instiga o imaginário social. Mas, como sempre, para melhor apreciar os detalhes, talvez não seja inútil se deter diante de uma mitologia simultaneamente bem antiga e bem instrutiva.

Um pequeno apólogo. Uma bela história. Aquela que a igreja católica, em seu catecismo tradicional, tinha chamado de a comunhão dos santos.

Page 8: Maffesoli. iconologias. traduação cláudio paiva 05.05.2011

Façamos um pequeno retrocesso, aos terceiro e quarto séculos de nossa era. Nesse período que, quando não se tinha medo das palavras, falávamos sobre a decadência romana. Caía efetivamente uma certa civilização e uma outra estava em vias de nascer. Ali se tratava de algo bem banal: quando existe desagregação de uma forma social, vemos nascerem novas agregações. Naquela época quais eram elas? Essencialmente o que os historiadores das religiões chamam de cultos dos mistérios, partilhados por alguns iniciados. Neste sentido, seitas órficas renovaram os mistérios de Eleusis. Templo de Mithtra. O Sol invictus, o sol invencível, em que se celebravam as iniciações marcadas pelas refeições em comum. E, certamente, pequenas comunidades cristãs, estreitamente soldadas e vivendo uma osmose existencial das mais sólidas.

O que era o denominador comum destes diversos grupos, além da busca da salvação individual e progressivamente atingida, era uma solidariedade à toda prova (ajudas cotidianas diversas, encarregadas pela comunidade em prol dos velhos e doentes, socialização dos jovens....), sem esquecer a gestão da sexualidade: as uniões intracomunitárias.

Mas, esta aliança no interior da comunidade, o cristianismo nascente vai lhe dar maior amplitude estendendo-a aos diversos grupos cristãos espalhados no conjunto do império. Ela vai de algum modo secretar a doutrina da comunhão dos santos que, além da união dos desaparecidos, estabelece uma ligação firmada entre as igrejas distanciadas no espaço, mas unidas em espírito. E é esta especificidade que assegura, entre os diversos cultos aos mistérios (mitraicos, órficos, cristãos), o sucesso destes últimos e obstrui o desenvolvimento da civilização que a acolheu.

Demos asas às palavras. Não é qualquer coisa dessa ordem que se encontra em vias de acontecer sob nossos olhos? Em síntese, não seria a internet a comunhão dos santos pós-moderna? Encontramos ali todos os ingredientes de uma nova forma de socialidade; formas de solidariedade material aos sonhos mais desenfreados. A generosidade ali tem livre curso graciosamente. Pode-se ali encontrar as ajudas mais diversas. As gerações, as crianças, jovens, adultos, velhos, encontram todos como satisfazer seus gostos, interesses, desejos. A dimensão enciclopédica de alguns sites permite se satisfazer esta libido sciendi, este prazer de saber na fonte de todo conhecimento. As ofertas permitem trocas, discussões, encontros, todos os elementos que constituem a base do laço social. Na mundial circunavegação pós-moderna, o Google acaba de criar “OpenSocial”. Site de socialização, plataforma de troca. Os termos não são negligenciáveis, descrevem bem a abertura para o outro, elaborando lugares, altos lugares a partir dos quais se pode partir para a conquista de outros. E as comunidades virtuais que assim se criam terminam por resultar em comunidades reais; com as mitologias que isso não deixa de impulsionar.

As auto-estradas da informação criadas pela internet participam desta noosfera um pouco mística, profetizada por Teilhard de Chardin. Podemos perceber como esta palavra anódina, e bem familiar, a “tela”, suscita fantasmas, fantasias, fantasmagorias, fontes eternas de todas as mitologias. Mas relembremos a fórmula de Max Weber a propósito da ligação entre a ética protestante e o espírito do capitalismo: não se compreende bem o real senão em função do irreal. O irreal, segundo a interpretação teológica proposta pela Reforma, engendra o real: o capitalismo nascente e a modernidade que este suscita.

É exatamente algo desta ordem que está em jogo em nossos dias. O virtual está estruturando um inegável real. Aquele das múltiplas possibilidades de tribos propostas pela tela. O business faz do site o seu domínio predileto. E se o sucesso do Google faz sonhar, são sonhos que eventualmente se tornam realidade. A Net Economy é uma realidade incontornável, de desenvolvimento exponencial. Os políticos os mais atentos

Page 9: Maffesoli. iconologias. traduação cláudio paiva 05.05.2011

perceberam que a difusão das idéias, dos programas, a expressão das opiniões e das emoções, não eram mais possíveis sem os blogs de efeitos frequentemente prejudiciais.

As igrejas, as seitas, os movimentos filosóficos diversos se servem da internet para propagar suas convicções. E, de forma paroxística, os fanatismos religiosos, as militâncias múltiplas utilizam os canais da Rede para mobilizar, iniciar, provocar convictos, simpatizantes, opositores.

Sem falar, é claro, no comércio amoroso tal qual este se exprime nos múltiplos sites eróticos, pornográficos ou simplesmente amigáveis, e cujo site Meetic tornou-se um ícone incontornável. As mídias clássicas se deram conta do que leva à baixa audiência. E, deste ponto de vista, estamos somente no começo do processo. Hegel via na leitura do jornal a prece matinal do homem moderno. Sem dúvida, a conexão da internet será a prece do homem pós-moderno. A consciência se amplia. Ela é tudo, menos individual. Cresce nas dimensões da comunidade de que participa. A consciência se amplia a partir de todos estes olhos que, do ponto de vista afastado do globo, olham isto que você é, e o que você faz. São estes olhares distanciados que fazem de cada um o que ele é. A mística e a tecnologia se unem num misto sem fim.

BRASILOMANIA. In: MAFFESOLI. Iconologias. Nossas idolatrias pós-modernas. 2009.

Se há um ícone que caracteriza bem o retorno do barroco na pós-modernidade este é o Brasil. Mas retornemos aos clássicos. Camões, em Os Lusíadas, faz um paralelo talvez ousado entre a Lusitânia (Portugal) e Lusus, um companheiro de Bacchus. Verdadeiro? Falso? Isso não está em questão. O mito não se mede por aí. Pelo contrário, isso não deixa de deixar seus traços no inconsciente coletivo. Sendo herdeiro dessa lusitania antiga, o Brasil ecoa sempre em nosso imaginário, como lugar do prazer, do culto ao corpo, de um hedonismo ambiente. Em suma, de tudo isso que vale o preço das coisas sem preço. E isso de uma maneira unilateral. O positivismo de Auguste Comte marcou profundamente as elites no subcontinente que é a América Latina. E em certas cidades, Rio, Porto Alegre, Belo Horizonte, as igrejas positivistas testemunham a profundeza desta influência. Como anedota, relembramos que a rua Benjamin Constant, no Rio, representa uma redução de um teço da Igreja do Pantheon, na montanha Sainte-Geneviève e sobre o adro da igreja uma rosa indica a direção de Paris.

Os historiadores das artes relatam as “missões” culturais que, desde meados do século XIX, são enviadas a Paris, a pedido das autoridades brasileiras, para organizar a arquitetura, as belas artes, a Ópera e as escolas superiores de engenheiros.

Relembremos enfim que, nos anos 30, do século XX, o Estado de S. Paulo fez apelo aos intelectuais franceses, como Roger Bastide ou Claude Lévi-Strauss, para organizar esta que vai se tornar uma das universidades mais prestigiosas da América Latina: a USP, a Universidade de São Paulo.

E sem querer ser exaustivo, relembramos a atração exercida pela Europa, pela França, em particular, e isso porque elas são consideradas laboratórios da pós-modernidade. Depois de algumas décadas, a situação está se invertindo porque ousemos a hipótese, com alguns raros outros países, o México de um lado, a Coréia ou o Japão de outro, o Brasil é, seguramente, o laboratório da pós-modernidade, de onde os mitos não deixam de proliferar.

Mitos em perfeita congruência com o espírito do tempo pós-moderno e a mutação dos valores que aos poucos ganha em todos os domínios da vida social. Eu indico apenas alguns destes mitemas, pedacinhos de mitos, cada podendo, por retumbância, por ressonância, por contaminação, reenviar a outros, sugerindo outros, o

Page 10: Maffesoli. iconologias. traduação cláudio paiva 05.05.2011

que cada leitor pode fazer como assim o desejar. Antes de tudo, há a mestiçagem. Quer se queira ou não, acredite ou não, trata-se de uma peça cardinal da mitologia pós-moderna. Pode-se pensar em termos mais rigorosos, nisso que Max Weber chamava de “politeísmo de valores”, ou nisso que vai se chamar de policulturalismo ou multiculturalismo. O que é certo é que o monoteísmo semítico, o monodeísmo decorrente, ou o universalismo, que aqui se mostra em transcrição teórica, tudo isso já era.

Em seu famoso livro sobre a cultura brasileira, Casa Grande e Senzala, Gilberto Freyre fala a respeito da miscigenação. Mistura de raças levando a uma abertura de espírito e um potente relativismo. Porque, no sentido forte do relativismo, é relativização das culturas, das maneiras ser diversas, e por essa via a relativização de cada umas dessas culturas por uma outra. É isso que é induzido pela mestiçagem, paradigma em ato de uma nova civilização. Uma das conseqüências de tal mestiçagem é a revivescência dos cultos afro-brasileiros outrora secretos, em seguida discretos e agora largamente praticados. Candomblé de Salvador na Bahia, xangô em Recife, umbanda no sul do Brasil, só para citar alguns. Mas, em cada um desses casos, são cultos de possessão, onde o transe ocupa um lugar importante.

Cultos paradoxais em que as classes populares se aproximam da classe média e a burguesia; onde o engenheiro e o universitário se misturam aos empregados domésticos ou aos desempregados. O terreiro, lugar destes cultos, é um mundo encolhido. É legalmente o lugar onde coexistem diversas formas de solidariedade e generosidade próprias da reliança pós-moderna.

É Lenine quem definia o comunismo pela conjunção da eletricidade e dos soviéticos. Mudando um pouco os termos desta proposição, eu diria que a pós-modernidade, é a ligação do candomblé e da eletrônica. Isso não simplesmente pelo prazer de uma palavra provocante, mas porque os protagonistas destes cultos podem ser bons racionalistas e, ao mesmo tempo, defensores ferrenhos dessas práticas não racionalistas.

Ocorre que estas contaminam a maior parte das grandes cidades européias. Inversão da influência fazendo com que seja algo em moda freqüentar em Paris, Londres ou Berlim um candomblé brasileiro. Testemunham isso as pequenas fitas do Senhor do Bonfim, vindas da Bahia, que são portadoras de boa sorte e que têm as cores dos orixás, dos espíritos e dos cultos. É por um lado, destes terreiros que advêm as músicas e danças brasileiras das quais se conhece a importância na maior parte das festas contemporâneas. Realizam em pequena medida o que o transe diz de maneira mais ampla. Elas pontuam com seus ritmos os restaurantes, casas noturnas, boates e outros lugares de convívio, repercutindo na Europa os modos de vida e alegria de seus países.

Tudo isso culmina na moda do carnaval - na época ou fora de época, porque as datas podem ser móveis - que se vai festejar aqui e ali, desde que se trata de celebrar tal aniversário, tal comemoração, tal personagem a valorizar ou tal acontecimento que se quer destacar a importância.

Pode-se assim falar justamente de carnavalização do mundo. O que é certo é que a mitologia do momento não é mais a seriedade da existência, mas a excitação, a encenação dos corpos e outras exacerbações das paixões coletivas. Porque o denominador comum da mestiçagem, dos cultos de possessão, das músicas e das danças com ritmo endiabrado, isso são as práticas comuns. Estamos longe do individualismo moderno. A lógica da brasilomania é essencialmente tribal.

A sociedade da praia é assim um exemplo bem acabado, que só é legítimo em grupo. É como a feijoada, que só tem sentido em grupo. Quanto às diversas

Page 11: Maffesoli. iconologias. traduação cláudio paiva 05.05.2011

manifestações futebolísticas (de que Pelé e Ronaldinho são seus ícones mais expressivos), sabe-se que o papel que desempenham nas múltiplas histerias coletivas.

Em cada caso, comer, parecer, jogar se inscrevem no vasto e permanente teatro do mundo cuja característica é se viver em grupo, de se provar em tribo. É tudo isso que faz do Brasil este espaço em que se elabora um imaginário pós-moderno. Imaginário contaminando aos poucos numerosos aspectos da vida cotidiana. Em um ato simbólico, Stefan Zweig, fugindo de uma Europa que auto-destrói sua própria cultura, numa guerra suicida, escreveu em Petrópolis a obra Brasil, país do futuro. Expressão premonitória que permanece atual em nossos dias.

Por outro lado esta terra do futuro se tornou um país do presente. (Cf. Juremir Machado. Brasil, país do presente, 1999). Presente que é preciso compreender em seu sentido mais forte: estar de acordo profundo com este mundo aqui a fim de tirar dele o máximo de proveito possível. Isto que apesar de tudo não é uma sabedoria insensata.

Do Presidente Lula, enfrentando os habituais e retrógrados procedimentos políticos a Gilberto Gil, musico e ministro, sem esquecer Chico Buarque, cantor de renome e intelectual aguçado, a lista seria longa de todos os ícones brasileiros exprimindo perfeitamente, uma terra em preto e branco onde se expressa o eterno presente da pós-modernidade.

DIONÍSIO (O RETORNO). In: MAFFESOLI. Iconologias. Nossas idolatrias pós-modernas. 2009.

Ser possuído pelos objetos que se crê possuir tem grande importância no sentido estético das coisas, participar das múltiplas histerias (esportivas, musicais, religiosas, políticas) pontuando a vida social nos torna atentos para uma antiga figura mitológica de que se tem pouco compreendido a importância. Falando de modo insolente (e acadêmico) de Dionísio, Nietzsche amedrontou os universitários “CDF” de sua época! Nos diversos campos da inteligência moderna o medo permanece. Por outro lado, grupos musicais, vestuário da moda, marcas de bebidas, produções cinematográficas, instalações artísticas, círculos de reflexão filosófica, e mesmo lugares de encontros fortuitos não hesitam em aceitar o apadrinhamento deste deus petulante e ambíguo. Se existe um ícone difícil de se negar sua ressurgência, este é Dionísio. No sentido strictu trata-se da reaparição de uma água subterrânea. De um lençol freático que não se vê, mas que sustenta toda a vida à superfície. Mito recorrente; além ou aquém do eclipse moderno, um mito persistente. Do prazer de ser, de que a pós-modernidade nos fornece múltiplas e constantes ilustrações.

Nome próprio, Dionísio pode se tornar um adjetivo qualificativo dionisíaco. Pode igualmente, designar uma forma de sabedoria, dionisíaca, e graças a ela pode tirar proveito deste mundo, tanto “na melhor” quanto “na pior”. Não é preciso ser um especialista em mitologia grega para sacar que este é um dos arquétipos eternos e em certas épocas, retorna com força e vigor.

Sendo um ícone emblemático, é uma espécie de totem inconsciente em torno do qual se operam múltiplas agregações sociais constituindo a sociedade. Dionísio é o deus dos cem nomes. É múltiplo como a própria imagem da vida, sempre em fluidez e em perpétuo devenir. É um deus proteiforme.

Pode-se compará-lo ao imortal Proteu que, acompanhado de seu rebanho de focas, evoca as águas do mar. Um mar – ao mesmo tempo – distinto em suas ondas e em sua beleza. Próximo, neste sentido, da deusa Maya dos hindus, em suas inumeráveis formas. É, então, uma entidade que sob nomes variados refere uma única realidade.

Page 12: Maffesoli. iconologias. traduação cláudio paiva 05.05.2011

Sempre me perguntei porque meu pequeno ensaio A sombra de Dionísio – Contribuição a uma sociologia da orgia, sobre a utilização sociológica e metafórica deste deus petulante era traduzido, além das línguas européias, em japonês, coreano ou chinês. Descobri que este arquétipo possui correspondência – nos quatro cantos do mundo – com a revitalização da função orgiástica nas sociedades. Trata-se, de uma maneira transversal, de um estado da consciência ou do inconsciente coletivo que, sob nomes diversos, traduz o retorno de uma nova vitalidade.

Esta orgia pode suscitar de desprezo, deboche, indiferença e conspirações de silêncio. Prevalece na opinião intelectual moderna o espírito sisudo. Este profundismo que o mediterrâneo Paul Valéry me mostrou os defeitos. Em suma, o medo da vida, o desprezo por este mundo em nome de hipotéticos paraísos futuros, sejam religiosos ou políticos.

O catastrofismo ambiente se encarrega de vituperar contra o homo festivus, que em sua efervescência tende a escapar à injunção moral. Rindo de si mesmo, com desenvoltura, não poderia ser mais irritante. Basta assistir a estes talk shows da tv para nos darmos conta da obsessão curiosa, doentia da maior parte dos protagonistas explicando os fenômenos sociais em termos políticos ou econômicos. E quando um sonhador se predispõe a fazer uma interpretação destes mesmos fenômenos, referindo o emocional ou a partilha das paixões, após tê-los distraidamente escutado, é convidado a descer à terra e colocar os pés no chão.

Curiosa negação, pois é bem nessa terra justamente, que se enraíza aquele que se qualifica de divindade arbustiva: Dionísio. E o orgiasmo – que não se reduz ao orgasmo sexual – é antes de tudo um jogo de paixões (orgé) coletivas. Uma libido generalizada que não se limita a um pansexualismo redutor. Um tipo de rumor subterrâneo contaminando aos poucos, todas as maneiras de interpretar o mundo.

Quais são então as grandes características do ícone dionisíaco?Em princípio, justamente, esta dimensão terrena. Deus que se chamou de

ctoniano. Deus autóctone. Ele se prende à terra e é preso a esta também. Por aí, para retomar um termo da filosofia clássica, o acento é colocado sobre um forte imanentismo. O que quer dizer isso, senão experimentar o gozo aqui e agora?

Pode-se dizer que isso é compreendido perfeitamente em diversos idiomas. Assim, o carpem diem de longa memória, e o que se vai declinar em francês no texto, de todas as maneiras possíveis. Bistrots, T-shirts, bandas de rock, círculos de meditação, camping, confrarias de bebidas, vestuário da moda, associações zen, o que não se viu - around the world - aplicar ao velho adágio latino?

O mesmo vale para o não menos célebre, porém mais recente No future. Aqui ainda se exprime este repatriamento próprio às práticas ou técnicas dionisíacas. Não esperar o prazer para mais tarde, mas extraí-lo, seja isso relativamente, desses que se dá a viver, com os outros, nesse instante eterno que se consegue absorver, em meio aos condicionamentos sociais.

O bom momento, a boa ocasião, o senso de oportunidade, eis o que caracteriza o presenteísmo dionisiano. E não se trata aqui de uma simples questão de escola, tanto a falta quanto à recusa de um projeto é por aí que podemos caracterizar a sensibilidade juvenil face ao futuro.

Não se trata de uma angústia existencial frente à frente com um futuro incerto. Mas é uma postura de vida, em congruência com o espírito do tempo. Basta se aproveitar do que esse tempo oferece. Amanhã se verá o que fazer.

Postura trágica, que renasce sempre de par com o júbilo. O gozo e o trágico avançam de mãos dadas. E o presenteísmo dionisiano é uma forma de sabedoria se

Page 13: Maffesoli. iconologias. traduação cláudio paiva 05.05.2011

encarregando de homeopatizar a morte, de acordo com a intensidade do momento vivido e, por aí, lutar contra a angústia do tempo que passa.

Outra marca deste mito é o culto do corpo. Sabe-se da sua precariedade, convém então celebrá-lo, valorizá-lo o mais vivamente possível.

Os historiadores mostraram como no séc. XIX, e parte do século XX, o que só foi legítimo produzindo ou reproduzindo. O que se despedaça aos nossos olhos é a reprise destas grandes épocas da cultura que foram, por exemplo, a decadência romana ou a renascença européia, quando o que se impunha era – para retomar o conselho de Ronsard – aprender a “colher as rosas da vida”. Sabe-se de seu aspecto efêmero, o que nos incita ainda mais a apreciar o buquê.

Corpo amoroso, corpo sarado. É o que se vê na moda, na dietética, no corpo malhado. As revistas e lojas especializadas se multiplicam. E os lugares onde se curte o bem-estar são, hoje, moeda corrente. Saunas, Spas, diversas tassaloterapias, salas de massagem tailandesa, californiana, cachemeriana, coreana todas as coisas que se declinam na direção das técnicas ancestrais de apelos étnicos reais ou inventados.

Ayurvéda, banhos de lama de diversas origens, óleo de ervas, de amêndoa, figo da índia, xarope de pepino, suco de pétula, sem esquecer o Tantra, o Tao, ou o Qi-qong, tudo é bom para celebrar o bem estar integral ou para valorizar o corpo individual.

Mas, é o corpo social que é celebrado aqui, porque o hedonismo induzido por estas técnicas e práticas contamine aos poucos o conjunto da sociedade. Trata-se, no sentido forte do termo, de uma ambiência determinante dos modos de vida de cada um, e nada nem ninguém escapa dela. A corporeidade é aqui o valor dominante, em que o gozo se vive à flor da pele.

Para retomar uma expressão que se reencontra, curiosamente, na sociologia clássica de Durkheim e no vocabulário contemporâneo da geração new age, estamos em presença de uma concepção holística da existência. É preciso entender aí, ao mesmo tempo, a globalidade como interação do corpo e da alma, mas também o que concerne à sociedade como um todo. E estamos assim no coração palpitante da última característica do mito de Dionísio.

O próprio destas paixões vividas em comum não é nada individualista. Deixemos os encantamentos do coro das virgens chorosas, que são os intelectuais modernos sem herdeiros, cantar o reforço do individualismo contemporâneo. E empiricamente, observemos todas estas confusões pós-modernas em que a efervescência coletiva leva alegria ao coração. Pesquisas de qualidade mostram que raros são os domínios em que os agrupamentos tribais não são a regra. (Cf. Pesquisas do Centro de estudos sobre o Atual e o Cotidiano da Universidade Paris V, Sorbonne. <www.ceaq-sorbonne.org>).

A música, é claro, qualquer que seja a sua marca: techno, metal, rock, rap... é o êxtase em estado puro. Estes exemplos não são apenas parênteses excepcionais no entediante vaivém cotidiano, mas ao contrário, são pontuações regulares ritmando e determinando toda a existência dos protagonistas.

Política, vida econômica, coisas sérias na existência cotidiana, tudo isso é marginalizado durante um campeonato de futebol, de rugby, um torneio de tênis ou um grand prix de Fórmula 1. Aqui ainda, o emocional faz-se presente, onde prevalecem as histerias coletivas que não ficam devendo nada aos rituais das tribos primitivas ou das sociedades tradicionais. É nesta mesma ordem de idéias que é preciso analisar os momentos e os lugares de fervor religioso. Agrupamentos mundiais da juventude, peregrinação a São Jacques de Compostela ou à Chartres, festas rituais hindus à borda do Ganges, cultos de possessão afro-brasileiros, festas de casamento em todas as partes

Page 14: Maffesoli. iconologias. traduação cláudio paiva 05.05.2011

do mundo, celebração de Halloween e as comemorações do Ramadan, são miríades de manifestações desta ordem, as quais não podemos negar a importância.

Em cada um destes casos, o pretexto doutrinal tem pouca importância. Trata-se antes de tudo de vibrar junto. Entrar em comunhão e, eventualmente, em transe. A religiosidade ambiente deve ser compreendida em um dos sentidos etimológicos da palavra: o desejo, o prazer, de estar religado ao outro. Seja este outro o grupo, a natureza ou a divindade. Reliança fundamental, religando o individualismo na ordem do passado moderno. Basta ver, igualmente, o aspecto das campanhas políticas para se convencer que Dionísio está lá. O corpo das doutrinas pode estar sendo murmurado em silêncio. O que importa é a excitação não racional própria dos encontros e diversas paradas “à moda americana”, em que a histeria se faz presente. E em todos os campos, não seria neutro observar os mais doutrinários políticos se eclipsarem em proveito dos salteadores das estradas. Com efeito, mesmo o mais sério dos políticos perde sua dimensão apolínea, sua ossatura racional, para dar lugar à expressão das paixões coletivas em que a música, gritos, encenações, o arrebatam para além da performance pré-ordenada, da demonstração argumentada. Em suma, enfatizando o emocional, a política pós-moderna também se tornou dionisíaca.

A mesma coisa acontece, enfim, na sociedade de consumo, tomando múltiplas formas. Eu delimitaria aqui os momentos de excitação coletiva, que são os períodos “de liquidação e outros momentos de desconto”. Aqui ainda, o culto do estridente Dionísio é flagrante. E sem falso pudor, sem reservas, é, no dia “D” e na hora “H”, que a multidão de bacantes desenfreadas se precipitam sobre os objetos de consumo, arriscando pisotear os outros, ou quebrar os objetos de desejo.

A multidão em fúria é movida pelo desejo de possuir este ou aquele objeto que a atrai, mas se encontra rapidamente possuída por isto que acredita possuir. Estaríamos ainda na ordem da economia, quando uma espécie de instinto animal está na origem dos movimentos das multidões consumistas? De fato, “o efeito impulso” é resultante da ação subterrânea deste “malandro divino” que é Dionísio.

Uma mitologia de efervescência, um pouco gregária encontra-se em vias de se esboçar. Retorno de um societal profundo em que a simpatia, a empatia, substitui a racionalidade prevalente durante a modernidade. Nada resiste aos golpes de bastão do Dionísio polimorfo. Mas isso que ele destrói é, ao mesmo tempo, uma garantia de criação. Tudo isso de formas múltiplas e minúsculas é o que caracteriza as pequenas utopias ou liberdades intersticiais que, por sedimentações sucessivas, constituem o imaginário social do momento.

MY SPACE. In: MAFFESOLI. Iconologias. Nossas idolatrias pós-modernas. 2009.

Pensemos no mito do Golem, como o relata Gustav Meyrink. Este robô escapa ao controle de seu senhor. Ele se emancipa e sabota tudo em torno deste. A criatura acaba por dominar o seu criador.

Assim, como Hegel pode falar nos “ardis da razão”, não se pode deixar de invocar, nesta pós-modernidade nascente, um ardil da técnica. Uma técnica que, à imagem do Golem desenfreado, atinge um outro fim que aquele para o qual tinha sido previsto.

Todos os historiadores das ciências e das técnicas mostram como, no século XIX, estas participaram de uma refrigeração do social, suscitando este isolamento que vai se tornar, cada vez mais, algo próprio da metrópole moderna. A técnica é um elemento de importância na racionalização da existência, causa e efeito da perda das solidariedades comunitárias que especificaram as sociedades tradicionais. A causa foi

Page 15: Maffesoli. iconologias. traduação cláudio paiva 05.05.2011

compreendida. O desenvolvimento tecnológico contribuiu para este enclausuramento de si, fundamento de uma solidão gregária, de que psicólogos, sociólogos e filósofos analisaram as múltiplas conseqüências. E convém dizer que é esta opinião comum que tende, ainda, a prevalecer uma vez que os jornalistas e os diversos observadores evocam os prejuízos da internet ou dos instrumentos ligados à cibercultura. Mas é este o ardil da técnica. Uma reviravolta foi operada. O Golem se revoltou. Esta cibercultura reinveste os afetos e recria uma mitologia específica: o laço social não é mais aniquilado pela técnica, ocorre exatamente o contrário, ele é reconfortado pelos seus efeitos.

Não se repetirá jamais o suficiente, uma das manifestações inegáveis da pós-modernidade é esta sinergia entre o arcaísmo e o desenvolvimento tecnológico. My Space é a sua expressão mais evidente.

O arcaísmo reenvia, de maneira mais próxima de sua etimologia, às características essenciais de nossa natureza humana: a capacidade de jogar, de sonhar ou ainda de construir, a partir do imaterial, Ora, é exatamente este imaginário coletivo que se expande no corpo social graças à tela. Uma nova socialidade se elabora. E My Space enquanto site comunitário é um elemento de escolha disso que eu chamo de “reencantamento do mundo”. O altíssimo número de acessos nos surpreende: mais de 189 milhões de usuários buscam ali um espaço de liberdade. E fora dos canais habituais de formato comercial, os grupos musicais se encarregam de travar conhecimento, os desenhistas e múltiplos videastas difundem suas obras, os artistas de todas as modalidades utilizam a transversalidade para encontrar um público.

Criação de páginas pessoais, blogs, correios eletrônicos, sites de músicas, de fotos, não é isto que constitui justamente aquilo que se convencionou chamar de laços sociais?

Eu digo socialidade, indicando aquilo que se opõe a um social racional, previsível e rígido demais, em oposição a um social institucionalizado, o próprio da socialidade é de conceder força e vigor à dimensão imaterial da existência. De acentuar o fato de que a sociedade repousa também sobre o preço das coisas sem preço.

Certamente, este não deixa de ser o caso do My Space, que pode promover a recuperação, mercantilização de uma tendência. Mas isso não o impede que a mitologia de fazer amigos se difunda no dia a dia cada vez mais. Fazer amigos, eis o que contradiz uma tecnologia do isolamento. Para exprimir isso em termos topológicos, pode-se dizer que a tecnologia moderna se inscrevia na verticalidade do saber desviante; ele próprio derivado da “lei do pai”, do Deus onisciente e onipotente.

O que está em jogo na sinergia da tecnologia e do arcaísmo, é ao contrário uma topologia horizontal. O “peer to peer” é a “lei dos irmãos”; o lugar (simbólico) promove laços. My Space reenvia a uma erótica mais difusa. Os afetos relativizam a prevalência, moderna, da razão.

Existe uma forma de paradoxo. Fazer amigos coloca em jogo uma criatividade inegável. O intempestivo e o inatual, de Nietzsche, encontram aqui uma nova atualidade. A cibercultura permite fazer de sua vida uma obra de arte. Uma arte vivida no cotidiano. Uma arte contaminando, cada vez mais, o conjunto da existência social. Descontruindo, pouco a pouco, o sisudo que se impunha com a burguesia moderna. Uma bela metáfora é testemunho disso: o utopista Charles Fourier propôs em seu Novo mundo amoroso a teoria do gratte talon (coça calcanhar). Nesta sociedade perfeita, o falanstério, era facultado a um jovem de 20 anos, que só poderia gozar acariciando o calcanhar de uma senhora de 60 anos, encontrar uma pessoa idônea que só poderia gozar com um jovem lhe acariciando o calcanhar. Eis a elaboração de uma combinatória matemática bem complicada, permitindo o ajustamento dos gostos sexuais. Sendo entendido que esta busca de satisfação era estendida ao conjunto das apetências,

Page 16: Maffesoli. iconologias. traduação cláudio paiva 05.05.2011

perversões e desejos diversos. Ora, é exatamente isso que propõe My Space como outros sites de trocas sociais, como Facebook que acaba de ser lançado na cena mundial da Net. Se podemos dizê-lo, cada um pode, sem problema, encontrar “o sapato para o seu pé”. E a diversidade de gostos, sexuais, musicais, esportivos, consumistas, religiosos, filosóficos, vai encontrar, stricto sensu, o seu correspondente.

Toda civilização nascente tem lugar para a agitação cultural. É a partir daí que se elaboram pouco a pouco as grandes obras da cultura. Cada época sonha numa seqüência de ensaios, de erros, nos laboratórios onde o que está em estado nascente, o instituinte despreza o instituído.

É bem um tal fervilhamento que está em jogo em MySpace. Tudo, não importa o que, tem o seu lugar. Mas uma tal efervescência merece atenção, por ela é a fôrma do que será, amanhã, a vida social. Relembremo-nos de que o anômico de hoje é o canônico de amanhã.