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O CURRÍCULO NO ENSINO SUPERIOR ESTRUTURADO EM
CICLOS E UNIDADES TEMÁTICAS DE APRENDIZAGEM (UTA)
RESUMO:
A elaboração do currículo em cursos superiores de graduação no Brasil apresenta desafios
quanto a sua organização e estrutura. Diretrizes curriculares precisam ser cumpridas, leis
específicas sobre minorias respeitadas, orientações de órgãos e conselhos representativos de
várias áreas ouvidas, conteúdos, competências e habilidades demandados pelo mercado levados
em conta, sem falar na pressão econômico/financeira que recai sobre os cursos de instituições de
ensino privadas, que devem gerar retorno financeiro. Este artigo relata o processo de uma IES
privada no sentido da reestruturação da organização curricular de 26 cursos de graduação,
incluindo, bacharelados, licenciaturas e cursos superiores de tecnologia. Discute-se ainda, neste
trabalho, a questão da interdisciplinaridade, proposta central do modelo, que articula disciplinas,
conteúdos, competências e a atuação do professor em nova postura frente ao processo
educativo. A organização curricular que aqui é descrita, que toma a interdisciplinaridade como
elemento central, prevê a presença de ciclos e unidades temáticas de aprendizagem, cuja lógica
será brevemente explicada ao leitor. Após um ano da implantação do currículo, os resultados
mostram-se alentadores, embora ajustes estejam se fazendo necessários e dificuldades se
coloquem. A efetividade do processo mostra-se positiva e caminha para a consolidação do
modelo.
Palavras-chave:
Interdisciplinaridade, currículo, ensino superior
Introdução
Neste texto buscamos refletir sobre a questão da organização curricular no
Ensino Superior, nos cursos de graduação. Tratamos aqui, da construção coletiva de
proposta de uma IES que atua no âmbito da iniciativa privada, que teve como balizador
a perspectiva interdisciplinar. Não temos o intuito de apresentar um modelo exemplar, e
sim, de colocar em discussão uma proposta em construção que, embora permeada por
contradições, tem por norte a busca de um ensino de qualidade.
No desenvolvimento do artigo buscaremos inicialmente expor as bases teórico-
metodológicas em que assentamos a compreensão de currículo e de interdisciplinaridade
e na sequência apresentaremos o caso da IES a que nos referimos.
A metodologia que orienta a elaboração desta reflexão é a pesquisa-ação,
compreendida como importante estratégia na busca da superação da ação alienada por
parte de professores e pesquisadores. Isso porque a prática rotineira tende a ser alienada,
reiterativa, o que no caso de uma instituição de ensino superior (IES) é absolutamente
inadequado e precisa ser transformado, superado.
ANAIS DO X COLÓQUIO SOBRE QUESTÕES CURRICULARES & VI COLÓQUIO LUSO BRASILEIRO DE CURRÍCULO Desafios contemporâneos no campo do currículo l Belo Horizonte-MG l Setembro de 2012
Para TRIPP (2005, pg.446) a pesquisa-ação institui um ciclo por meio do qual
se aprimora a prática pela oscilação sistemática entre agir no campo da prática e
investigar a respeito dela. Planeja-se, implementa-se, descreve-se e avalia-se uma
mudança para a melhora de sua prática, aprendendo mais, no correr do processo, tanto a
respeito da prática quanto da própria investigação
A pesquisa-ação tem por objetivo estimular os participantes de um processo a
refletirem sobre sua prática à luz dos referencias teóricos, a assumirem, cada vez mais, o
papel de produtores do conhecimento. Por sua característica colaborativa favorece
ainda a troca de informações e conhecimentos, essencial à proposta curricular que se
pretendeu construir, que toma a interdisciplinaridade como referência.
Numa instituição de ensino superior (IES) a institucionalização de processos que
visem superar a separação entre conhecimento e ação é de extrema importância. Neste
sentido a pesquisa-ação contribui, por meio do estabelecimento de uma cultura
institucional de busca, de reflexão e de ação fundamentada, a formação continuada dos
docentes numa lógica mais coletiva, menos fragmentada, e mais reflexiva. Com isso,
favorece indiretamente que os estudantes desenvolvam uma nova forma de se relacionar
com o conhecimento e com sua futura profissão, também menos fragmentado e mais
reflexivo.
Interdisciplinaridade: do que estamos falando?
Para iniciarmos a discussão sobre a interdisciplinaridade precisamos, antes de
tudo, ter claro que não é possível realizar um trabalho interdisciplinar consistente sem
que o docente tenha um alto nível de domínio do conhecimento especifico de sua
disciplina. O domínio do conteúdo específico é essencial para que a atuação
interdisciplinar não se torne mera justaposição de disciplinas ou conteúdos, sem que de
fato se estabeleçam relações entre elas e com o objeto da realidade em estudo, que é o
ponto de partida e de chegada da abordagem interdisciplinar. Isso porque quanto mais
conhecemos a fundo o conteúdo e o método da ciência que deu origem à disciplina que
lecionamos, mais fácil fica estabelecer as relações com as demais áreas do
conhecimento.
As disciplinas têm sua origem nas diversas ciências, mas não podem ser
compreendidas como mera transposição dos saberes e métodos da ciência de origem. As
ANAIS DO X COLÓQUIO SOBRE QUESTÕES CURRICULARES & VI COLÓQUIO LUSO BRASILEIRO DE CURRÍCULO Desafios contemporâneos no campo do currículo l Belo Horizonte-MG l Setembro de 2012
disciplinas representam um recorte, uma organização dos saberes de cada ciência numa
linguagem que possa ser assimilada por aprendizes. É importante ressaltar que a
concepção de ciência que originou as disciplinas é a positivista, que surgiu
concomitante ao advento do capitalismo e tem em sua base uma concepção positivista
acerca do conhecimento.
De acordo com Kuenzer (2002, p.57) se referindo à fragmentação do currículo
escolar1 em disciplinas:
... a seleção e a organização dos conteúdos sempre ocorreram com base em uma
concepção positivista de ciência, fundamentada em uma concepção de conhecimento
rigorosamente formalizada, linear e fragmentada, na qual cada objeto correspondia uma
especialidade que, ao construir seu próprio campo, se automatizava, desvinculando-se
das demais e perdendo o seu vínculo com as relações sociais e produtivas. Assim, os
diversos ramos da ciência deram origem a propostas curriculares que organizavam
rigidamente os conteúdos, em termos de sequenciamento intra e extradisciplinares, os
quais eram repetidos ano após ano, por meio do método expositivo combinado com
cópias e questionários, uma vez que a habilidade cognitiva a ser desenvolvida era a
memorização, articulados ao disciplinamento, ambos fundamentais para a participação
no trabalho e na vida social e organizados sob a hegemonia do taylorismo-fordismo.
Como já dissemos em outro texto (SUHR e SOARES, 2011, p.191)
esta concepção de ciência positivista respondeu aos interesses e demandas do sistema
capitalista em um tempo histórico específico, dado que atendia adequadamente a um
modelo de produção altamente fragmentado e especializado, que tem sua expressão
teórico-prática mais elaborada no taylorismo-fordismo2.
Naquele momento histórico cada ciência estava definindo seu objeto de estudo,
seu estatuto epistemológico, ou seja, o que a diferenciava de todas as outras. Com a
finalidade de estudar e aprofundar cada um desses objetos, as ciências buscaram a
especialização, que embora tenha possibilitado um grande avanço em todas elas,
contribuiu para a perda da visão de totalidade, ou seja, a fragmentação do
conhecimento.
1 Para fins deste texto entendemos escola num sentido amplo, como instituição na qual
acontece, de maneira sistemática a intencional, a formação das novas gerações, indiferente do nível de ensino. Incluímos, portanto, o ensino superior neste conceito. 2 O termo taylorismo-fordismo se refere a um modelo de gestão do processo produtivo aplicado da fábrica de automóveis Ford a partir da segunda década do séc.XX, baseando-se na teoria de Administração Científica proposta por F. Taylor. Nesta proposta há a busca de organizar racionalmente a produção fabril; estabelecer normas científicas para organizar (controlar) o processo de produção. Estabelece-se o controle do tempo e dos movimentos dos trabalhadores. Para saber mais sobre este assunto sugere-se as leituras de: BRAVERMAN, H. (1977), Trabalho e capital monopolista. Rio de Janeiro, Zahar. Edição original, 1974. GOUNET, Thomas. Fordismo e toyotismo na civilização do automóvel. Ed. Boitempo; São Paulo, 1999.
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Mas o capitalismo é extremamente dinâmico, está em constante transformação e,
à medida que se alteram as relações de produção, muda também a concepção de qual
conhecimento é necessário para o desenvolvimento e a manutenção da ordem
estabelecida.
De acordo com Kuenzer (2002, p.59) a partir dos anos de 1990 aceleraram-se
mudanças tais como a globalização da economia, a reestruturação produtiva e as novas
formas de gestão. Transformam-se radicalmente as demandas para a formação dos
trabalhadores e, em decorrência, as demandas sobre a escola:
A mudança da base eletromecânica para a base microeletrônica, o que vale dizer, dos
procedimentos rígidos para os flexíveis, que atinge todos os setores da vida social e
produtiva nas últimas décadas, passa a exigir o desenvolvimento de habilidades
cognitivas e comportamentais, tais como a análise, síntese, estabelecimento de relações,
rapidez de respostas e criatividade em face de situações desconhecidas, comunicação
clara e precisa, interpretação e uso de diferentes formas de linguagem, capacidade para
trabalhar em grupo, gerenciar processos, eleger prioridades, criticar respostas, avaliar
procedimentos, resistir a pressões, enfrentar mudanças permanentes, aliar raciocínio
lógico-formal à intuição criadora, estudar continuamente, e assim por diante.
(KUENZER, 2002, p.59)
Consequentemente, na atualidade a compartimentalização dos conhecimentos
em disciplinas isoladas, espaços singulares e específicos de aprendizagem, não responde
mais às novas demandas e possibilidades de aprendizagem. Neste novo contexto, passa-
se a exigir das instituições de ensino uma visão mais abrangente, global e
interdisciplinar a respeito dos conhecimentos e da realidade.
A própria concepção de ciência positivista foi sendo superada por outras, que
concebem o conhecimento científico não mais como dogma, eterno ou imutável, mas
sim, como processo que tem sua base na materialidade da vida humana. Passou-se a
compreender que a realidade é muito mais complexa do que uma determinada ciência
pode descrever, o que implica, necessariamente, numa abordagem interdisciplinar.
Para Jantsh e Bianchetti (1997) a abordagem interdisciplinar é um produto
histórico, necessidade do modo como a sociedade se organiza hoje, mas que não
prescinde da abordagem disciplinar. Também Veiga Neto (1996) nega o antagonismo
entre a disciplinaridade e a interdisciplinaridade, demonstrando que ambas não
necessárias no atual momento histórico.
Compreendemos interdisciplinaridade como sendo um trabalho conjunto de várias
disciplinas em direção ao objetivo de favorecerem uma compreensão mais ampliada de
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um objeto de estudo, permitindo a compreensão das suas múltiplas determinações e,
com isso, se aproximando cada vez mais, da realidade objetiva.
Assim, defendemos a ideia de que um trabalho interdisciplinar deve buscar
estabelecer relações entre as diferentes disciplinas e seus conteúdos específicos, com a
realidade mais ampla em que se inserem, contribuindo para que alunos e professores
ampliem a compreensão acerca do real, e, quem sabe, as possibilidades deles intervirem
sobre tal realidade.
A construção de um currículo por Unidades Temáticas de Aprendizagem e a busca
da interdisciplinaridade
A busca de uma prática pedagógica interdisciplinar no ensino superior, além da
concepção teórica que a fundamenta, encontra respaldo também na legislação. As
Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de Graduação, indiferente do curso a que
se refiram, indicam que os projetos pedagógicos devem demonstrar de que modo se dá
interdisciplinaridade. Esta, além da relação teórico-prática é apontada como abordagem
dos conteúdos que favoreceria o preparo de profissionais capazes de enfrentarem as
rápidas transformações da sociedade com autonomia.
A dificuldade de implantação de novas formas de conceber a prática pedagógica
no ensino superior se acentua, dentre outros fatores, pelo fato de a reflexão sobre a
interdisciplinaridade (que pode até estar presente na prática destes professores enquanto
médicos, administradores ou engenheiros), via de regra, não estar presente na formação
dos docentes. Como dissemos em outro texto,
em sua formação, serem profissionais das mais várias áreas e raramente terem
oportunidade de estudar e/ou discutir as questões relativas à educação.
Também os momentos de discussão coletiva acerca do projeto pedagógico de
curso, que poderiam contribuir para a formação continuada destes docentes são
raros, principalmente na rede privada na qual parte significativa dos
professores são horistas. Assim, a tendência é a da repetição de modos de
pensar e fazer oriundos de sua própria experiência acadêmica, com pouca
influência dos aportes das ciências da educação. (SUHR,I.; Soares, K. 2011, pg
196)
Cabe, portanto, um papel indutor da instituição de ensino na construção de outra
concepção curricular, rompendo com a tradição disciplinar tão fortemente arraigada na
educação superior.
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No caso relatado a reestruturação da proposta curricular tendo como horizonte a
interdisciplinaridade foi impulsionada por ações institucionais com este objetivo. A
equipe diretiva assumiu como sua a tarefa de “impulsionar” a Instituição de Ensino
Superior (IES) a uma nova perspectiva de trabalho, que seja, ao mesmo tempo,
formação continuada de docentes e mudança curricular.
No decorrer de 2010 a Coordenação Pedagógica promoveu reuniões periódicas
com os coordenadores de curso para apresentar a proposta desenhada pela Diretoria
Acadêmica e, coletivamente, reelaborar os projetos pedagógicos. Coube aos
coordenadores o papel de elos entre a Coordenação Pedagógica (representando a
Diretoria Acadêmica) e os colegiados de curso.
Embora o processo não tenha sido isento de limitações, contradições, obstáculos
e retrocessos, consideraram válido o relato que ora realizamos por meio deste texto,
para possibilitar a análise crítica de outros educadores engajados na melhoria constante
da qualidade do ensino superior.
A concepção de currículo que orientou (e orienta) a construção da proposta e de
sua implementação é a de currículo como processo, como práxis significativa
(Sacristán,1998), que expressa as relações, concepções limites e potencialidades das
pessoas que participam de sua elaboração e da instituição na qual foi gerado. O
currículo expressa o caminho que o aluno deverá trilhar para alcançar a formação
desejada. Neste sentido ele expressa opções em relação ao quê, como, quando e porque
ensinar. De acordo com SANTOMÉ (1998, p. 56) a construção do conhecimento é
resultado de ações coletivas, teórico-práticas, intencionais e, no decorrer da história, vai
se complexificando pela articulação de novas experiências. Com a diferenciação e a
especialização dos diversos campos de conhecimento surgiu o conceito de disciplina,
como agrupamento intelectualmente coerente de objetos de estudo diferentes entre si,
como um conjunto ordenado de conceitos, problemas, métodos e procedimentos
específicos, que organiza o pensamento, possibilitando a análise e a interação com a
realidade.
Embora a diferenciação entre as disciplinas tenha possibilitado, pela
especialização, alguns aprofundamentos e avanços, a falta de relação entre elas, tornou
cada vez mais difícil a compreensão dos fenômenos estudados. Com o decorrer do
tempo a fragmentação dos currículos organizados por disciplinas foi crescendo e em
muitos casos o estudante não conseguia sequer relacionar os conteúdos aprendidos entre
si e menos ainda com os problemas e demandas da sociedade.
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Conclui-se que o currículo disciplinar não tem dado conta de atender às
necessidades de aprendizagem do alunado nem as demandas da realidade do mundo do
traballho e da vida cidadã. Como nenhum problema da atualidade pode ser enfrentado
apenas com a contribuição de uma única área do conhecimento e como a aprendizagem
significativa se dá à medida que o aluno estabelece as relações entre os diversos saberes,
o currículo deverá ser, necessariamente, interdisciplinar.
É preciso ainda ter como pressuposto inerente a todas as atividades acadêmicas
que compõem os currículos, a necessária indissociabilidade entre teoria e prática,
compreendendo que a prática é o critério de verdade da teoria e que,
concomitantemente, é a teoria que orienta e ilumina a prática, permitindo uma visão de
totalidade sobre o objeto estudado.
Partindo dos referenciais teóricos brevemente descritos acima, a organização
curricular proposta pela Diretoria Acadêmica e que orientou os trabalhos é a de
Unidades Temáticas de Aprendizagem (UTAs). Tal lógica permite “reunir disciplinas
afins de modo que os alunos percebam as suas tangências ou intersecções”.
(CORTELAZZO, 2009, pg.8).
A lógica das UTAs visa
romper com a linearidade e a segmentação do currículo e favorecer a
intersecção entre o conteúdo trabalhado no decorrer do curso e as demandas do
mundo do trabalho. Cada UTA reúne disciplinas a partir de eixos comuns, de
modo que o objeto de estudos de cada semestre seja abordado de diversos
pontos de vista, o que pretende favorecer a sua compreensão ampliada pelos
estudantes. Tem por objetivo propiciar uma compreensão mais significativa
dos conteúdos e suas interfaces, estabelecer uma relação mais orgânica entre os
conteúdos de sala e a prática social, o que se dá, principalmente por meio da
interdisciplinaridade que ela promove. Assim, cada semestre letivo passou a
compor uma UTA. Não se pretendeu eliminar a especificidade de cada
disciplina já que não é possível promover a interdisciplinaridade sem um sólido
conhecimento advindo de cada uma delas. Mas, por meio desta “nova”
estrutura curricular favorecer o estabelecimento de relações entre as disciplinas
e destas com o objeto da realidade em estudo, que é o ponto de partida e de
chegada da abordagem interdisciplinar. (SUHR, I; SOARES, K., 2011, pg.198)
Nessa organização os períodos não precisam necessariamente ser cursados de
maneira linear e sequencial, mas há uma lógica que precisa ser respeitada para a
aprendizagem, pois alguns temas permitem o contato inicial com a profissão, outros são
mais avançados em relação ao que exigem do estudante. Assim, embora os períodos não
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precisem ser cursados linearmente (primeiro período, segundo período, terceiro, etc.) há
uma lógica de progressão que precisa ser respeitada.
Para corresponder a esta necessidade, além dos cursos serem organizados por
UTAs são divididos em ciclos. Cada ciclo abrange duas, três ou até mesmo quatro
UTAs, que podem ser cursadas em qualquer ordem, desde que dentro do ciclo. (ver
figura 1)
O primeiro ciclo – fundamentação – se propõe a trabalhar com os conhecimentos
considerados referenciais básicos necessários para a progressão na formação
profissional mais estrita. Isso não significa que seja um ciclo “genérico” e sim, que nele
se concentram as bases para a futura ação laboral. Fazem parte integrante do primeiro
ciclo também as ações de nivelamento, principalmente no que se refere ao domínio da
leitura e da interpretação, da escrita e do cálculo.
O segundo ciclo – chamado estruturante – objetiva trazer à discussão outras
competências demandadas pela profissão em questão. Os trabalhos interdisciplinares
são substituídos por disciplinas optativas, com o objetivo de favorecer a diversificação
de itinerários educativos a partir das necessidades e interesses dos alunos. É também no
2º ciclo que se concentram os estágios, importante estratégia na busca da construção da
práxis.
O terceiro ciclo – complementação – aprofunda as discussões sobre a prática
laboral em cada curso e enfoca mais estritamente a questão da pesquisa, considerada
essencial num mundo em que as mudanças são aceleradas e a produção do
conhecimento é essencial tanto para a produção quanto para sobrevivência do planeta.
No terceiro ciclo a atividade que consolida a relação teórico-prática é o Trabalho de
Conclusão de Curso.
Outro elemento que passou a fazer parte dos currículos nesta IES é o Trabalho
Interdisciplinar, que se caracteriza como uma problematização – que toma a relação
teórico-prática como ponto de partida – a ser desenvolvida pelos alunos com o objetivo
de promover a síntese compreensiva dos conhecimentos abordados nas UTAs.
Dentro de cada ciclo, composto por uma ou mais UTAS, outras atividades
podem ser consideradas e/ou agregadas à formação. O aluno poderá realizar estágios
não obrigatórios, participar de grupos de pesquisa, participar de laboratórios de prática,
realizar disciplinas optativas visando à flexibilidade do currículo e a complementação
de estudos.
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O processo de Criação das Unidades Temáticas de Aprendizagem
A interdisciplinaridade no currículo não acontece de forma instantânea nem é
isenta de dificuldades na sua implantação. Ela deve ser planejada e articulada, ou seja, é
um processo que se constrói a partir de uma proposta inicial que vai sendo repensada à
medida que a implantação avança.
Para facilitar o entendimento da lógica de construção do currículo
interdisciplinar abordaremos a seguir o caminho adotado para a estruturação das UTAs.
O primeiro passo foi a análise de alguns norteadores: Diretrizes Curriculares Nacionais
de cada curso, Classificação Brasileira de Ocupações, orientações das associações de
classe, expectativas do mercado de trabalho na região, com o objetivo de estabelecer o
perfil do egresso. Foi importante neste momento também, a análise dos dados do perfil
do ingressante na IES, coletados semestralmente pela CPA (Comissão Própria de
Avaliação).
A partir da definição do perfil do egresso foram elencadas as habilidades e
competências que deverão ser desenvolvidas no decorrer do curso e estas deram origem
à temática de cada UTA. Nesta lógica as ementas de cada disciplina precisaram ser
repensadas, agora não mais organizadas a partir da lógica interna de cada disciplina e
sim, de sua relação com o tema da UTA. Dito de outro modo, a pergunta norteadora
para a proposição das ementas foi: quais conteúdos é preciso trabalhar nesta disciplina a
fim de contribuir para que o aluno compreenda o tema em questão na UTA?
Exemplificaremos este raciocínio usando a UTA INTEGRAÇÃO FUNCIONAL
do curso de Administração. O foco principal da UTA é o desenvolvimento da visão
sistêmica, de forma a ampliar a capacidade de análise dos problemas organizacionais.
Ela é composta pelas disciplinas de: Gestão de pessoas, Administração Mercadológica,
Gestão da Produção, Legislação Trabalhista, por uma disciplina optativa e pelo
Trabalho Interdisciplinar de Viabilidade Operacional. Cada disciplina (ver figura 2)
precisa, necessariamente, trabalhar determinados conteúdos para que o objetivo da UTA
seja alcançado e a interdisciplinaridade aconteça.
A disciplina Gestão de Pessoas, por exemplo, precisa trabalhar os conteúdos
relacionados aos seguintes temas: plano de recrutamento e seleção, plano de cargos e
salários, plano de treinamento e desenvolvimento, desenvolvimento de competências. A
disciplina Estratégias de Custos precisa trabalhar, necessariamente, os conteúdos
relacionados aos temas custos fixos e custos variáveis, rateios de custos, apuração de
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resultados. Em Legislação Trabalhista os temas deverão ser: impactos da legislação no
negócio, negociação com sindicatos, custos da mão de obra em função da legislação e
relações trabalhistas. A disciplina Gestão da Produção deverá abordar os seguintes
temas: estratégias de fabricação, layout, objetivos de desempenho, estrutura de produtos
e capacidade produtiva. Finalmente, a disciplina Administração Mercadológica abordará
os elementos do plano de marketing: produto, preço, praça e promoção.
O fato de estes serem os temas mínimos da disciplina não significa que não
possam ser acrescidos outros dependendo dos interesses da turma, das características do
docente e das novas demandas advindas do mercado de trabalho. Além disso, cada tema
se desdobra em vários conteúdos que devem ser constantemente reavaliados mediante o
desenvolvimento da produção científica.
A síntese do processo ensino-aprendizagem realizado em cada UTA se expressa
no trabalho interdisciplinar. Nesta UTA, no trabalho interdisciplinar os alunos deverão
elaborar um estudo de viabilidade operacional para uma organização produtora de bens
e serviços, levando em consideração os seguintes aspectos: estudos de viabilidade
operacional (produção), estudos de necessidades de mão-de-obra (qualificação e
quantificação), estabelecimento do plano de marketing para o produto ou serviço,
verificação da legislação trabalhista inerente ao projeto e verificação dos resultados
advindos do projeto, mediante a elaboração dos demonstrativos de resultado para o
negócio.
As orientações oferecidas aos alunos para a execução deste trabalho implicam que
os temas acima descritos sejam trabalhados nas disciplinas que compõem a UTA. O
passo a passo para o trabalho interdisciplinar é descrito no Ambiente Virtual de
Aprendizagem (AVA) e os alunos são informados que todos os docentes do semestre
estão à disposição para tirar as dúvidas.
Para que o trabalho interdisciplinar flua de maneira mais organizada, em cada
UTA uma disciplina é eleita como motriz, como condutora do processo, sendo seu
professor o grande articulador da interdisciplinaridade. Cabe-lhe instigar a troca de
ideias entre os demais docentes da UTA e destes com os estudantes, além de apoiar os
alunos nas dúvidas que porventura tenham na execução do trabalho. Como o Trabalho
Interdisciplinar ocorre na modalidade semipresencial este professor é remunerado por
apenas uma hora/aula por turma orientada. Na UTA acima descrita, a disciplina motriz é
Estratégias de Custos e o Trabalho Interdisciplinar é desenvolvido em várias etapas,
pré-organizadas pelo conjunto dos docentes, mas sempre deixando espaço para a
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pesquisa e a elaboração própria dos estudantes, que nesta UTA o desenvolverão em
grupos de até 04 pessoas. Com o objetivo de socializar os conhecimentos construídos
por cada equipe, ao final do semestre é realizada a apresentação final do trabalho em
sala de aula para o conjunto de professores envolvidos na UTA.
Considerações finais: Análise do primeiro ano de implantação do modelo.
Encerramos este texto reafirmando seu objetivo inicial, ou seja, apresentar aos
nossos pares, educadores preocupados com a constante melhoria da qualidade do ensino
superior, uma proposta de currículo interdisciplinar e o processo de sua construção
numa IES. Não temos a pretensão de considerar que este é o melhor ou mais adequado
modelo, mas sim, que contribuir para a reflexão e, inclusive, permitir e favorecer a
crítica, o questionamento, e com isso, o aprimoramento desta proposta de outras que,
com certeza, estão sendo gestadas em outras instituições.
Nesse sentido ressaltamos que a etapa de concepção do modelo e de sua descrição
nos projetos pedagógicos de curso, embora complexa, não garante, por si só, a
implantação da proposta. A teorização – como é um projeto pedagógico de curso – , por
si só, não muda a prática, mas sua existência é essencial. O projeto descreve o horizonte
que se quer perseguir, orienta as ações e decisões que se seguirão. Mas a efetivação da
proposta se fará na prática diária de professores, coordenadores, estudantes, sujeitos
deste processo.
Por isso mesmo, as ações coletivas de reflexão, a formação continuada dos
docentes, a luta por condições de trabalho docente que permitam reuniões periódicas,
são essenciais para sua implantação e consolidação. Os limites impostos pela cultura
institucional e pela concepção do que é o ensino superior também são aspectos a
considerar e a vencer.
O primeiro ano de implantação do currículo nos indica algumas dificuldades, tais
como o fato de a IES contar com um número significativo de professores horistas, o que
não favorece a troca de informações entre os docentes de uma mesma UTA. Esta
dificuldade nos indica a importância das reuniões periódicas dos professores para troca
de experiências acerca do progresso do trabalho em cada turma e para correção de
rumos quando necessário. Acreditamos que sem isso a interdisciplinaridade no trabalho
pedagógico no ensino superior é muito mais difícil de alcançar.
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Apesar da clareza sobre esta necessidade de reuniões frequentes é preciso admitir
que realizá-las tem sido um dos dificultadores do processo. A carga horária diferenciada
dos docentes, o fato de não haver remuneração de horas para reunião com este fim, além
das outras atividades profissionais realizadas por grande parte dos professores – que
para muitos são prioridade – dificultam a discussão coletiva acerca do currículo e de sua
implantação.
Outro aspecto a relatar é a dificuldade de alguns docentes em compreenderem a
lógica interdisciplinar que rege o currículo e, consequentemente, em articular os
conteúdos a partir dela. Nesse sentido consideramos que a formação continuada,
promovida pela própria IES, é imprescindível para o sucesso desta proposta, já que as
instâncias de formação inicial do professor de ensino superior raramente discutem
questões pedagógicas e, menos ainda, promovem a reflexão sobre a
interdisciplinaridade. Novamente, os elementos apontados no parágrafo anterior são
obstáculos a serem vencidos.
No que se refere o Trabalho Interdisciplinar, embora haja boa aceitação por parte
dos alunos, a quantidade de trabalho dos docentes cresceu o que vem gerando
insatisfações. No presente momento a IES vem questionando se não seria o caso de
alterar a proposta, colocando um docente como “responsável” pelo Trabalho
Interdisciplinar, com carga horária específica para isso e, portanto, com horas dentro de
sala de aula para orientar os alunos. Embora seja um avanço oferecer uma orientação
mais próxima aos alunos estando o professor em sala com este fim, nosso receio é que
se perca o processo, ainda tênue é verdade, de construção coletiva do currículo. Isso
porque apesar das reclamações, a atual estrutura do Trabalho Interdisciplinar força os
docentes a conversarem mais entre si, a saberem o que o outro está trabalhando na
mesma turma, a buscarem apoio uns nos outros. Receamos que a definição de um
docente seja compreendida pelos demais como se tal tarefa não lhes coubesse mais.
Sabemos que a interdisciplinaridade não se dá apenas na integração dos docentes, que a
própria construção do currículo pode favorecer que o aluno compreenda os conteúdos
de maneira mais global e menos fragmentada, mas com certeza a ação conjunta dos
professores é um diferencial neste processo.
Finalmente, vale relatar a aceitação positiva dos alunos ao novo currículo,
retratada pelos dados da CPA coletados no final de 2011. Cerca de 70% dos estudantes
consideram a proposta adequada às suas expectativas e com um nível de exigência
adequado. Reconhecem a relação teórico-prática presente nos Trabalhos
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Interdisciplinares, porém relatam que nem todos os docentes se envolvem na sua
execução.
Esta é a etapa que a IES citada vive hoje: a de implantação e consolidação dos
novos projetos pedagógicos, permeada de avanços e retrocessos, de dúvidas,
contradições, busca de soluções. Temos claro que ainda há muito que caminhar, que
com certeza ocorrerão equívocos e dificuldades, mas ressaltamos que é mister iniciar o
processo, e, à medida que ele avança, “aprender a caminhar”.
Referências
CORTELAZZO, Iolanda B. C. Dialogicidade e Unidade Temática de Aprendizagem:
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ANAIS DO X COLÓQUIO SOBRE QUESTÕES CURRICULARES & VI COLÓQUIO LUSO BRASILEIRO DE CURRÍCULO Desafios contemporâneos no campo do currículo l Belo Horizonte-MG l Setembro de 2012
Apêndices
Figura 1: modelo de organização curricular
Figura 2: Exemplo de uma UTA do curso de Administração
ANAIS DO X COLÓQUIO SOBRE QUESTÕES CURRICULARES & VI COLÓQUIO LUSO BRASILEIRO DE CURRÍCULO Desafios contemporâneos no campo do currículo l Belo Horizonte-MG l Setembro de 2012