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Respeite o direito autoral Reprodução não autorizada é crime Revista Brasileira de História da Educação

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Respeite o direito autoralReprodução não autorizada é crime

Revista Brasileira deHistória da Educação

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COMERCIALIZAÇÃO

Editora Autores AssociadosCaixa Postal 6164 – CEP 13081-970

Campinas (SP)Pabx/Fax: (19) 3289-5390

e-mail: [email protected]

Comissão EditorialDiana Gonçalves Vidal (USP); José GonçalvesGondra (UERJ); Marcos Cezar de Freitas (USF); Ma-ria Lúcia Spedo Hilsdorf (USP); Maria CristinaMoreira da Silva (secretária executiva).

Conselho Consultivo

Membros nacionais:Álvaro Albuquerque (UFAC); Ana Chrystina VenâncioMignot (UERJ); Ana Maria Casassanta Peixoto (SED-MG); Clarice Nunes (UFF e UNESA); Décio Gatti Jr.(UFU); Denice B. Catani (USP); Ester Buffa (UFSCar);Gilberto Luiz Alves (UEMS); Jane Soares de Almeida(UNESP); José Silvério Baia Hora (UFRJ); Luciano Men-des de Faria Filho (UFMG); Lúcio Kreutz (UNISINOS);Maria Arisnete Câmara de Moraes (UFRN); Mariade Lourdes A. Fávero (UFRJ); Maria do AmparoBorges Ferro (UFPI); Maria Helena Câmara Bastos(UFRGS); Maria Stephanou (UFRGS); Marta Araújo(UFRN); Paolo Nosella (UFSCar)

Membros internacionais:Anne-Marie Chartier (França); António Nóvoa (Por-tugal); Antonio Viñao Frago (Espanha); DarioRagazzini (Itália); David Hamilton (Suécia); NicolásCruz (Chile); Roberto Rodriguez (México); RogérioFernandes (Portugal); Silvina Gvirtz (Argentina);Thérèse Hamel (Canadá).

Revista Brasileira de História da EducaçãoPublicação semestral da Sociedade Brasileira de História da Educação – SBHE

A Sociedade Brasileira de História da Educação(SBHE), fundada em 28 de setembro de 1999, é umasociedade civil sem fins lucrativos, pessoa jurídicade direito privado. Tem como objetivos congregarprofissionais brasileiros que realizam atividades depesquisa e/ou docência em História da Educação eestimular estudos interdisciplinares, promovendo in-tercâmbios com entidades congêneres nacionais einternacionais e especialistas de áreas afins. É filiadaà ISCHE (International Standing Conference for theHistory of Education), a Associação Internacional deHistória da Educação.

DiretoriaPresidente: Dermeval Saviani (UNICAMP)Vice-Presidente: Marta Maria Chagas de Carvalho(PUC-SP)Secretária: Diana Gonçalves Vidal (USP)Tesoureira: Ana Waleska Pollo Campos Mendonça(PUC-Rio)

Diretores Regionais:Norte: Anselmo Alencar Colares (UFPA) e ÁlvaroAlbuquerque (UFAC)Nordeste: Marta Maria de Araújo (UFRN) e Mariado Amparo Borges Ferro (UFPI)Centro-Oeste: Nicanor Palhares Sá (UFMT) e SilviaHelena Andrade de Brito (UFMS)Sudeste: Maria de Lourdes de A. Fávero (UFRJ) eJosé Carlos de Souza Araújo (UFU)Sul: Lúcio Kreutz (UNISINOS) e Maria Elizabeth BlanckMiguel (PUC-PR)

Secretaria:Centro de Memória da Educação,Faculdade de Educação – USPAv. da Universidade, 308, bloco B, terceira fase,sala 40 – CEP 05508-900 – São Paulo-SP.Telefone: (0xx11) 3818-3194Página: http://paje.fe.usp.br/~sbhe/E-mail: [email protected]

Revista Sociedade Brasileira de História daEducação – SBHE

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Revista Brasileira deHISTÓRIAEDUCAÇÃO

SBHE

Sociedade Brasileira de História da Educação

da

janeiro/junho 2001 no 1

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Revista Brasileira de História da Educação

1º NÚMERO – 2001Editora Autores Associados – Campinas-SP

EDITORA AUTORES ASSOCIADOS

Uma editora educativa a serviço da cultura brasileira

Caixa Postal 6164 – CEP 13081-970Campinas - SP – Pabx/Fax: (19) 3289-5930e-mail: [email protected]álogo on-line: www.autoresassociados.com.br

Conselho EditorialCasemiro dos Reis FilhoDermeval SavianiGilberta S. de M. JannuzziMaria Aparecida MottaWalter E. Garcia

Diretor ExecutivoFlávio Baldy dos Reis

Diretora EditorialGilberta S. de M. Jannuzzi

Coordenadora EditorialÉrica Bombardi

RevisãoAna Maria Nogueira Sabbag

Tradução para o inglêsMiriam Nálio Matias de Faria

Diagramação e ComposiçãoÉrica Bombardi

Projeto Gráfico e CapaÉrica Bombardi

Impressão e AcabamentoGráfica Paym

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SUMÁRIO

EDITORIAL 7

ARTIGOS

A cultura escolar como objeto histórico 9Dominique Julia

Notas de lugar nenhum: sobre os primórdios da escolarização moderna 45David Hamilton

A idéia de Europa no período fascista: análise de um livro de história dapedagogia 75Giovanni Genovesi

La educación histórica del deseo 97Agustín Escolano Benito

Por uma bibliografia material das escritas ordinárias: o espaçográfico do caderno escolar (França – séculos XIX e XX) 115Jean Hébrard

El concepto de “emancipación espiritual” en el debate sobre la educación enHispanoamérica en la primera mitad del siglo XIX 143Gabriela Ossenbach Sauter

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Tempos da escola no espaço Portugal-Brasil-Moçambique:dez digressões sobre um programa de investigação 161António Nóvoa

La historia de la educación argentina y la formación docente:ediciones y demanda institucional 187Adrián Ascolani

RESENHAS

A ESCOLA ELEMENTAR NO SÉCULO XIX. O MÉTODO MONITORIAL/MÚTUO,Maria Helena C. Bastos e Luciano Mendes de Faria Filho (orgs.) 211Claudia Panizzolo Batista da Silva

NOSTALGIA DO MESTRE ARTESÃO, Antonio Santoni Rugiu 214Ana Elisa de Arruda Penteado

NOTAS DE LEITURA

REPÚBLICA E FORMAÇÃO DE CIDADÃOS: A EDUCAÇÃO CÍVICA NAS ESCOLAS PRIMÁRIAS DA

PRIMEIRA REPÚBLICA PORTUGUESA, Joaquim Pintassilgo 219Vera Lucia Gaspar da Silva

TEMPOS DE ESCOLA: FONTES PARA A PRESENÇA FEMININA NA

EDUCAÇÃO – SÃO PAULO – SÉCULO XIX, Maria Lúcia Spedo Hilsdorf 221Márcia H. Dias

ORIENTAÇÃO AOS COLABORADORES 225

CONTENTS 227

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A Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE), após a rea-lização do seu I Congresso, lança agora a Revista Brasileira de Históriada Educação (RBHE). O objetivo principal desta primeira gestão da novaentidade foi instalar a Sociedade e consolidá-la deixando-a em pleno fun-cionamento. Para isto, foi de fundamental importância dotá-la de canaisde comunicação em caráter permanente. O principal, sem dúvida, é umarevista, com periodicidade regular.

Para viabilizar o desenho da revista foi preciso vencer inúmeros obstá-culos desde a composição de sua comissão editorial e conselho consultivo,até a elaboração do projeto gráfico com a definição das seções. Dada aprioridade que conferimos à RBHE, foi preciso encontrar meios de contor-nar todos os obstáculos.

O primeiro número foi composto com a contribuição de especialistasestrangeiros amplamente reconhecidos na área. Este encaminhamento, aindaque possa parecer, à primeira vista, um tanto insólito já que estamos inau-gurando uma revista brasileira, surgiu como uma alternativa bastante apro-priada, porque, a par de ter nascido de uma entidade já marcada pelarepresentatividade internacional dos estudiosos brasileiros da história daeducação, a própria dinamização, aglutinação e fortalecimento da comu-nidade nacional de pesquisadores da área ganhará muito com a contribui-ção dos artigos que integram este número 1 da RBHE.

Editorial

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Os autores convidados são plenamente reconhecidos no campo daHistória da Educação, constituindo-se em referências internacionais dosseus respectivos países. Em sua maioria, ocupam ou já ocuparam cargosde direção das entidades nacionais de História da Educação.

Só foi possível realizar o projeto desta publicação porque contamoscom a receptividade irrestrita de todos aqueles a quem solicitamos cola-boração. Registramos aqui o nosso reconhecimento não apenas aos auto-res dos artigos e das resenhas que atenderam prontamente ao nosso convite,mas também aos tradutores que manifestaram grande disponibilidade pararealizar o trabalho no prazo curto por nós solicitado. Finalmente, a pro-dução técnica da revista foi viabilizada porque contamos com a boa von-tade e disposição inteiramente favorável da equipe da Editora AutoresAssociados com a qual a Sociedade Brasileira de História da Educaçãoestá publicando a revista em regime de co-edição.

Está aí, pois, a Revista Brasileira de História da Educação, órgãooficial da SBHE. Para a distribuição do conteúdo deste número 1, adota-mos o critério de começar pelos textos de caráter mais geral, seguindo-seos mais específicos.

A diretoria da Sociedade Brasileira de História da Educação, atravésda Comissão Editorial responsável pela RBHE, espera as críticas e su-gestões que permitirão aprimorar o projeto da revista, tornando-a aquelapublicação que leremos com prazer e na qual desejaremos divulgar osresultados de nossa produção em história da educação.

O número 2 da Revista Brasileira de História da Educação seráconstituído a partir do processo de seleção dos artigos, descrito na “orien-tação aos colaboradores”.

A DiretoriaSBHE

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A Cultura Escolarcomo Objeto Histórico*

Dominique Julia**

Tradução de Gizele de Souza***

* Este texto é tradução do artigo de Julia: “La culture scolaire comme objet historique”,Paedagogica Historica. International journal of the history of education (Suppl. Series,vol. I, coord. A. Nóvoa, M. Depaepe e E. V. Johanningmeier, 1995, pp. 353-382).

** É diretor de pesquisas do CNRS, antigo prof. do Instituto Universitário Europeu(Florença), e especialista em história religiosa e história da educação na época mo-derna. Publicou Les trois couleurs du tableau noir. La révolution (Paris, Berlim,1981) e, em colaboração com Marie-Madeleine Compère, Les colléges français (XVI-XVIII siècles), 2 vols. (Paris Editions du CNRS-INRP, 1984 e 1988). Dirigiu o vol.Enseignement de l’Atlas de la Révolution française (Paris, Editions du EHESS, 1988).

*** Professora do setor de Educação da Universidade Federal do Paraná e doutorandano Programa de Pós-Graduação em Educação: História, Política e Sociedade.O pre-sente texto de tradução contou com a colaboração de Angela Brandão e revisãotécnica de Sandra Moreira e Marta Maria Chagas de Carvalho.

O artigo tem como escopo a cultura escolar como objeto histórico. Demonstra que a culturaescolar não pode ser estudada sem o exame preciso das relações conflituosas ou pacíficas queela mantém, a cada período de sua história, com o conjunto das culturas que lhe são contempo-râneas. A cultura escolar é descrita como um conjunto de normas que definem conhecimentos aensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão dessesconhecimentos e a incorporação desses comportamentos. O trabalho é circunscrito ao períodomoderno e contemporâneo, período compreendido entre os séculos XVI e XIX. O texto é desen-volvido segundo três eixos, perspectivas interessantes para se entender a cultura escolar comoobjeto histórico: interessar-se pelas normas e pelas finalidades que regem a escola; avaliar opapel desempenhado pela profissionalização do trabalho do educador; interessar-se pela análisedos conteúdos ensinados e das práticas escolares.HISTÓRIA DA ESCOLA; CULTURA ESCOLAR; NORMAS E FINALIDADES DA ESCOLA;PROFISSIONALIZAÇÃO DO EDUCADOR; CONTEÚDOS DO ENSINO; PRÁTICAS ESCOLARES.

The aim of the article is to present the school culture as a historical object. It shows that theschool culture can’t be studied with the accurate examination of the conflicting or peacefulrelations they keep, each period of its history, with the set of cultures that are contemporary to it.The school culture is described as a set of rules that define knowledge to be taught and conductsto be implanted and a set of practices that permit the knowledge transmission and these behaviorsincorporation. The paper is circumscribed to the modern and contemporaneous period, withinthe 16th and 19th centuries. The text is developed according to three axles, interesting perspectivesto understand the school culture as a historical object: to become interested in the rules and thepurposes that govern the school; evaluate the role performed by the professionalism of the teacher’swork; to become interested in the taught contents analysis and the school practices.SCHOOL HISTORY; SCHOOL CULTURE; SCHOOL RULES AND PURPOSES; EDUCATORPROFESSIONALISM; TEACHING CONTENTS; SCHOOL PRACTICES.

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Ao me pedir que proferisse uma conferência no XV Congresso daAssociação Internacional de História da Educação, o professor AntónioNóvoa cometeu a imprudência de dar-me a liberdade de escolher o assun-to que eu proporia para a reflexão de vocês. Com efeito, eu lhe haviaobjetado enfaticamente que, nunca tendo sido, em nenhum momento daminha carreira, um historiador da colonização, sentia-me totalmente in-capaz de fornecer elementos úteis aos debates e pesquisas que vocês rea-lizariam durante esses três dias. Falar da cultura escolar como objetohistórico repousa, ao mesmo tempo, sobre os limites das minhas própriascompetências e sobre a preocupação de abrir esta leitura de encerramen-to direcionando-a para o tema do Congresso que se desenvolverá no pró-ximo ano em Amsterdã e que se indagará justamente sobre os problemasdas trocas e transferências culturais que se operam através da escola.Minha única ambição aqui será a de colocar algumas questões prelimina-res sem pretender, de modo algum, tratar todas as facetas de um assuntoque me parece, ao mesmo tempo, apaixonante, mas infinitamente difícilde tratar. Queiram, portanto, desculpar-me o aspecto exploratório deminhas asserções1.

É necessário, justamente, que eu me esforce em definir o que entendoaqui por cultura escolar; tanto isso é verdade que esta cultura escolarnão pode ser estudada sem a análise precisa das relações conflituosas oupacíficas que ela mantém, a cada período de sua história, com o conjuntodas culturas que lhe são contemporâneas: cultura religiosa, cultura polí-tica ou cultura popular. Para ser breve, poder-se-ia descrever a culturaescolar como um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensi-nar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem atransmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamen-tos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar se-gundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmentede socialização). Normas e práticas não podem ser analisadas sem se

1 Deve-se desculpar o intenso caráter francófono da bibliografia utilizada: razõesde comodidade, de acesso e de tempo nos obrigaram a restringir nosso campo deinvestigação. Não há dúvida de que avaliamos plenamente os limites desta expo-sição, na qual mantivemos o estilo próprio da expressão oral.

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levar em conta o corpo profissional dos agentes que são chamados aobedecer a essas ordens e, portanto, a utilizar dispositivos pedagógicosencarregados de facilitar sua aplicação, a saber, os professores primáriose os demais professores. Mas, para além dos limites da escola, pode-sebuscar identificar, em um sentido mais amplo, modos de pensar e de agirlargamente difundidos no interior de nossas sociedades, modos que nãoconcebem a aquisição de conhecimentos e de habilidades senão por inter-médio de processos formais de escolarização: aqui se encontra a escaladados dispositivos propostos pela schooled society que seria preciso anali-sar; nova religião com seus mitos e seus ritos contra a qual Ivan Illich selevantou, com vigor, há mais de vinte anos2. Enfim, por cultura escolar éconveniente compreender também, quando isso é possível, as culturasinfantis (no sentido antropológico do termo), que se desenvolvem nospátios de recreio e o afastamento que apresentam em relação às culturasfamiliares.

Ousaria eu uma questão provocadora? Dispomos, hoje, de instru-mentos próprios para analisar historicamente esta cultura escolar? Fazuns vinte anos, as problemáticas da história da educação refinaram-seconsideravelmente, mas também desconheceram em grande parte, pare-ce-me, o estudo das práticas escolares. Na década de 1970, o estudosociológico das populações escolares, em diferentes níveis de escolarida-de, assim como a análise do sucesso escolar desigual segundo as catego-rias socioprofissionais, conduziram numerosos historiadores, nas pegadasde Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron (mas também na agitação dosacontecimentos de maio de 1968) a ver na escola apenas “o meio inven-tado pela burguesia para adestrar e normalizar o povo”, responsável,portanto, sob o manto de uma igualdade abstrata, que veicula, intactas,as desigualdades herdadas, pela reprodução das heranças culturais e pelareposição do mundo tal qual ele é3. Nos anos 80, que assistiram, em

2 Cf. Illich (1971); numa visão bastante diferente, fundada na teoria da motivação evisando na verdade o fortalecimento dos dispositivos escolares de um complexoeducativo (cité éducative), cf. T.Husén (1974). A bibliografia sobre este tema éprecisa e abundante.

3 Esta interpretação encontra-se também na recente obra de M. Crubellier (1993). É

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vários países, à comemoração das grandes leis que impuseram, no fim doséculo XIX, a obrigatoriedade escolar, essa mesma escola foi, pelo con-trário, reabilitada como um triunfo ao mesmo tempo técnico e cívico,fruto da imposição segura de uma pedagogia normativa. Em um e outrocaso, os autores realmente compartilham uma convicção idêntica: a deuma escola todo-poderosa, onde nada separa intenções de resultados.Trabalhando principalmente sobre textos normativos, os historiadores dapedagogia tenderam sempre a superestimar modelos e projetos e a cons-tituir, no mesmo lance, a cultura escolar como um isolamento, contra oqual as restrições e as contradições do mundo exterior viriam se chocar:no colégio jesuíta, as hierarquias das antigas ordens seriam substituídas,como por milagre, pela igualdade fundada no mérito individual, e os ru-ídos da corte e da cidade não penetrariam nos pátios de recreio ou nassalas de aula; a escola de Jules Ferry teria sido inteiramente reservada àformação de perfeitos republicanos. Esta visão um pouco idílica da po-tência absoluta dos projetos pedagógicos conforma talvez uma utopiacontemporânea. Ela tem muito pouco a ver com a história socioculturalda escola e despreza as resistências, as tensões e os apoios que os proje-tos têm encontrado no curso de sua execução.

De fato, para evitar a ilusão de um total poder da escola, convémvoltar ao funcionamento interno dela. Sem querer em nenhum momentonegar as contribuições fornecidas pelas problemáticas da história do en-sino, estas têm-se revelado demasiado “externalistas”: a história das idéiaspedagógicas é a via mais praticada e a mais conhecida; ela limitou-se,por demasiado tempo, a uma história das idéias, na busca, por definiçãointerminável, de origens e influências; a história das instituições educati-vas não difere fundamentalmente das outras histórias das instituições (querse trate de instituições militares, judiciais etc.). A história das populaçõesescolares, que emprestou métodos e conceitos da sociologia, interessou-se mais pelos mecanismos de seleção e exclusão social praticados naescola que pelos trabalhos escolares, a partir dos quais se estabeleceu adiscriminação. É de fato a história das disciplinas escolares, hoje em

preciso, sobretudo, perguntar-se sobre quais acordos foram estabelecidos entre acultura imposta do alto pelo Estado e a cultura popular.

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plena expansão, que procura preencher esta lacuna. Ela tenta identificar,tanto através das práticas de ensino utilizadas na sala de aula como atra-vés dos grandes objetivos que presidiram a constituição das disciplinas, onúcleo duro que pode constituir uma história renovada da educação4. Elaabre, em todo caso, para retomar uma metáfora aeronáutica, a “caixapreta” da escola, ao buscar compreender o que ocorre nesse espaço par-ticular.

Minha proposta se limitará, por várias razões, ao período moderno econtemporâneo, isto é, o período compreendido entre os séculos XVI eXIX: razões de competência primeiramente, mas também por três razõesao menos, melhor fundadas sobre o plano epistemológico.

1ª. O século XVI vê a realização de um espaço escolar à parte, comum edifício, um mobiliário e um material específicos: o que é verda-deiro para as universidades desde o século XV prolonga-se nestemomento no colégio, que hoje chamamos secundário. Basta refletirsobre as exigências materiais manifestadas pelos jesuítas no mo-mento em que eles se vêem encarregados, por determinação da ad-ministração de determinada municipalidade, de um estabelecimentoescolar, e também sobre a proximidade das plantas utilizadas, quetorna ainda hoje reconhecível, no espaço urbano contemporâneo, oantigo colégio da Companhia (cf. Vallery-Radot, 1960). Quanto àescola elementar, tem-se a impressão de que as instituições de cari-dade tiveram um papel pioneiro, a partir do século XVIII: nos Paí-ses Baixos, as escolas diaconais dos pobres e os orfanatos tiveramassim, relativamente cedo, seu equipamento específico; na França,as escolas urbanas dos Frades das Escolas Cristãs dispunham deum local e de um mobiliário apropriados ao ensino simultâneo eJean-Baptiste de La Salle inspirou-se, em suas diretivas, nas expe-riências realizadas nas escolas das paróquias-piloto da capital, apartir do século XVII. É verdade que as escolas de caridade consti-tuíam apenas uma minoria e que a existência de um espaço escolar

4 Cf. Jean Hébrard (1988), “Pour une histoire des disciplines scolaires”, Histoirede l’éducation, n. 38, maio.

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autônomo só foi obtida, no conjunto das escolas primárias, no de-correr do século XIX.

2ª. O período moderno e contemporâneo vê instaurar-se a mudançadecisiva dos cursos em classes separadas; cada uma delas marcauma progressão de nível. De início, utilizado pelos Frades da ViaComum dos Países Baixos, o sistema foi retomado pela Universida-de de Paris, de onde seu nome modus parisiensis (cf. Mir, 1968),mais tarde difundido tanto nos ginásios protestantes dos paísesgermânicos (cf. Schindling, 1977, 1984; Maffei & De Ridder-Symoens, 1991) como na Companhia de Jesus, que aderiu a essesistema desde o início. Na Inglaterra, o ensino humanista se desen-volveu, após a dissolução, pela Reforma, dos monastérios e dascapelas (chantries), com a fundação das grammar schools que semodelaram pelas experiências feitas na St. Paul’s School por JohnCollet e nos colégios de Oxford e Cambridge, a partir das primeirasdécadas do século XVI (cf. Simon, 1966).

3ª. É a partir do século XVI que nascem os corpos profissionais quese especializaram na educação: eles podiam tomar a forma decorporações ou de congregações religiosas. A partir do fim do sécu-lo XVIII, quando os Estados ilustrados entendem que é necessárioretomar da Igreja o controle tanto do ensino das elites como do en-sino do povo, a formação profissional dos educadores torna-se umaprioridade reconhecida como o atesta, segundo cronologias diversi-ficadas, o estabelecimento de escolas ditas “normais”, nascidas,primeiramente, em torno do monastério dos cônegos agostinhos deSagan, cujo abade era Ignace Felbiger e desenvolvidas, em seguida,no conjunto dos países da coroa austro-húngara (AllgemeineSchulordnung für die deutschen Normal-, Haupt-, undTrivialschulen in den sämtlichen Kaiserlich-KöniglichenErblanden,Vienne, 1774; Ratio Educationis totiusque rei literariaeper regnum Hungariae et provincias eidem adnexas, Vienne 1777),antes de se estender ao conjunto da Europa.

Estes três elementos, espaço escolar específico, cursos graduados emníveis e corpo profissional específico, são essenciais à constituição de

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uma cultura escolar e justificam, portanto, a restrição cronológica queme impus.

Uma Questão Preliminar: Quais Fontes de Arquivos?

Antes de tocar no ponto central do assunto, convém, entretanto, fazeruma última questão. A partir de quais elementos e como podemos exami-nar a cultura escolar de maneira rigorosa? O historiador da educação temfreqüentemente oscilado entre duas afirmações contrárias e igualmentefalsas: ou declara que não há inovação pedagógica, já que sempre podedescobrir os antecedentes de uma nova idéia ou de um novo procedimen-to, pois tudo já existia desde o começo do mundo, sob o mesmo sol; ou,pelo contrário, ele ressalta a novidade das idéias de um determinado pen-sador em relação aos seus predecessores ou a originalidade absoluta quetal iniciativa pedagógica representaria. Por serem simplistas, estas afir-mações não têm propriamente sentido algum. Convém, pelo contrário, acada vez, recontextualizar as fontes das quais podemos dispor, estar cons-cientes de que a grande inércia que percebemos em um nível global podeestar acompanhada de mudanças muito pequenas que insensivelmentetransformam o interior do sistema; convém ainda não nos deixarmos en-ganar inteiramente pelas fontes, mais freqüentemente normativas, quelemos. A história das práticas culturais é, com efeito, a mais difícil de sereconstruir porque ela não deixa traço: o que é evidente em um dadomomento tem necessidade de ser dito ou escrito? Poderíamos pensar quetudo acontece de outra forma com a escola, pois estamos habituados aver, nesta, o lugar por excelência da escrita. Ora, os exercícios escolaresescritos foram pouco conservados: o descrédito que se atribui a este gê-nero de produção, assim como a obrigação em que periodicamente seacham os estabelecimentos escolares de ganhar espaço, levaram-nos ajogar no lixo 99% das produções escolares (cf. Chervel, 1988). Na Fran-ça, para a totalidade do Antigo Regime, chegaram-nos às mãos somenteseis pacotes de deveres escolares do colégio jesuíta de Louis-le-grand, deParis, realizados por volta de 1720, devido a um acaso inteiramente ex-cepcional: o antigo bibliotecário do colégio, precisando de papel para

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escrever um Comentário do Cântico dos Cânticos e uma obra consagra-da à liturgia, abasteceu-se com provas de tradução e de versão em latim,e de versos latinos, no verso das quais pôde escrever (cf. Compère &Pralon-Julia, 1992). Em relação ao século XIX, somente através das có-pias de exames ou de concursos é que podemos esperar reconstituir umahistória das práticas escolares em vigor e da apropriação, feita pelosalunos, dos conhecimentos disciplinares ministrados: cópias do Concur-so Geral, onde se confrontavam os melhores alunos dos colégios reais(transformados em liceus), foram conservadas, assim como as versõeslatinas do exame de baccalauréat feitos nas Faculdades de Letras5. Quantoaos ditados da escola primária da Terceira República, deve-se a conser-vação de alguns milhares deles à mania de um inspetor que, no decorrerde suas inspeções, propunha o mesmo texto aos alunos das classes quevisitava e os reunia aos relatórios que endereçava ao ministro (cf. Chervel& Manesse, 1989a, 1989b). André Chervel, o autor que encontrou o lotede ditados da Terceira República que dormiam nos Arquivos Nacionaisde Paris, ressaltou de modo pertinente, antes de analisar as faltas cometi-das pelos alunos, todos os vieses que caracterizam a amostra constituídapor esse inspetor que, devido ao estado das comunicações ferroviárias,só visitava as comunidades menos isoladas do território, por definiçãomais abertas à modernidade. Não é certo, infelizmente, que as cópias dosalunos estejam melhor conservadas no século XX, em razão tanto daexpansão da escolarização para o conjunto da sociedade quanto da exi-güidade dos locais escolares, a despeito do interesse que atualmente psi-cólogos e sociólogos da educação demonstram por este gênero (cf. Lahire,1994; Beaud, 1994): regularmente, como se diz, é preciso “arranjar es-paço” e os documentos não são nem mesmo transferidos para depósitosde arquivos que deveriam legalmente recebê-los. Seria conveniente, emcada um dos países que representamos, fazer uma coleta similar de docu-mentos idênticos, perguntando-nos a cada vez sobre a representatividadeque lhes podemos atribuir.

5 Relativo ao Concurso Geral, ver Biblioteca da Universidade de Paris, ms n° 1538-1546 (provas premiadas de 1809 a 1821) e Arquivos Nacionais AJ 16630-678 (provasdo período 1882-1903); para as versões latinas do vestibular, cf. A. Chervel (1994).

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Sem dúvida, não devemos exagerar o silêncio dos arquivos escolares.O historiador sabe fazer flechas com qualquer madeira: quanto ao séculoXIX , por pouco que procure e que se esforce em reuni-los, os cadernosde notas tomadas pelos alunos (mesmo sendo grande o risco de se veremconservados apenas os mais bonitos deles) e os cadernos de preparaçõesdos educadores, não são escassos6 e, na falta destes, pode-se tentarreconstituir, indiretamente, as práticas escolares a partir das normas di-tadas nos programas oficiais ou nos artigos das revistas pedagógicas.Mas estamos menos equipados para perceber as diferenças – diversassegundo as classes sociais de origem – que separam as culturas familia-res ou profissionais da cultura escolar. Os estudos quantitativos sobre astaxas de alfabetização que se multiplicaram no curso dos últimos anos,seja a partir das assinaturas por ocasião de casamentos, seja a partir dosdados de recenseamentos nacionais são extremamente preciosos, mas nãonos fornecem elementos para responder às questões que nos colocamoshoje: a assinatura é um teste frágil que não pode nos dar mais do que elatraz. A colocação em série destas assinaturas segundo a longa duraçãopermitiu estabelecer uma cronologia dinâmica das distribuições geográ-ficas regionais, das repartições entre cidade e campo, entre classes so-ciais, entre profissões, entre sexos; essa colocação em série fez ao mesmotempo emergir os grandes fatores econômicos que facilitam ou dificultamo acesso à escrita. Todas essas aquisições são capitais (cf. Julia, 1993).

A assinatura, porém, não nos diz nada e não pode nos dizer nadasobre o como da apropriação léxica, nem sobre os níveis de leitura atin-gidos por cada um. De fato, para especificar as culturas familiares, con-vém dirigir-se a outras fontes: nas regiões onde a alfabetização progrediusuficientemente, multiplicam-se, no século XIX – e às vezes bem antes,embora tais textos não tenham sido necessariamente conservados –, asautobiografias de camponeses e operários que, ao se tornarem “novos”leitores, adquiriram o domínio da escrita para contar seus próprios itine-rários: a organização de tais documentos em série permite-nos medir olugar do livro e das práticas de leitura no foro familiar, nos meios onde,

6 Para uma identificação sumária das riquezas conservadas na França cf. A.Sentilhes(1992) e D. Julia (1992).

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a priori, as taxas de alfabetização nos teriam impedido de imaginá-lo eavaliar também o desejo ou a recusa da escola nesses meios (cf. Hébrard,1985, 1991). Na pesquisa que Jacques Ozouf realizou com 4000 milprofessores primários franceses que ainda estavam vivos na década de1960 e que tinham exercido sua profissão antes da Primeira Guerra Mun-dial, o autor pôde mostrar que, se os professores primários da TerceiraRepública são oriundos de meios modestos (artesãos, camponeses, co-merciantes), seus pais (nascidos por volta de 1850) eram em geral muitomais alfabetizados que o conjunto de suas categorias sociais, e que emsuas famílias havia mesmo um desejo de escola, compartilhado por paise filhos, que permitiu a ascensão social em direção à profissão, entãomuito dignificada, de professor primário (cf. Ozouf et al., 1992). Seriapreciso, naturalmente, poder dispor de pesquisas similares sobre outrosmeios para esclarecer os respectivos graus de proximidade e dedistanciamento das diferentes famílias com relação à instituição escolare, se possível, de maneira diacrônica.

É verdade que estamos bem menos informados sobre os séculos an-teriores. Se as autobiografias espirituais dos puritanos ingleses, analisa-das em série, permitem-nos retraçar com precisão as etapas da entradade seus autores na escrita, em uma atmosfera familiar onde a leitura daBíblia tem uma importância capital (cf. Spufford, 1979), estamos redu-zidos, em outros lugares – e particularmente em países católicos – aretomar os textos literários oferecidos pelas descrições de aulas (masque tipo de veracidade atribuir à transposição literária?)7 ou as memó-rias de personagens cuja trajetória é, sob todos os pontos de vista, excep-cional. Tal como a de Valentim Jamerey-Duval, pequeno camponês iletradode Auxerrois, nascido no início do século XVIII que, tendo fugido deuma madastra particularmente severa, terminará sua vida como bibliote-cário do imperador em Viena, depois de uma errância autodidata, que oconduziu da sua cidade natal às florestas da Lorena, onde ele aprende aler por intermédio de seus companheiros pastores. Tendo chamado a aten-

7 Cf. a descrição do professor de Nitry, pequena cidade de Auxerrois, feita por Rétifde La Bretonne (1778) e, do mesmo autor (1796), a descrição da aula de leituraem Sacy.

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ção do duque da Lorena durante uma caçada, foi enviado à Universidadede Pont-à-Mousson para aí fazer seus estudos de língua e literatura greco-latinas, isto é, para terminar sua aculturação no mundo dos letrados (cf.Jamerey-Duval, 1981; Hébrard, 1985). Mas se tal percurso pode serinteressante pela sua própria estranheza, não podemos evidentementeatribuir-lhe uma representatividade que não possui. Se é verdade, noentanto, que os documentos não são abundantes para os períodos anti-gos, é certo que os historiadores os procuraram com a tenacidade de-monstrada por Armando Petrucci na Itália, reconstituindo, a partir daanálise paleográfica do registro de contas de uma salsicharia do bairrodo Trastevere, em Roma, as práticas de escrita utilizadas nos meios daCidade Eterna no século XVI: com efeito, os próprios clientes escreviamo reconhecimento de suas dívidas nesse registro (cf. Petrucci, 1978).Como repetia incansavelmente Armando Momigliano, as fontes podemser encontradas se temos a tenacidade de ir procurá-las.

Após esta recapitulação sumária das fontes utilizáveis pelo historia-dor, que constituem apenas uma fina película em relação a todos os tex-tos que foram realmente produzidos, gostaria de desenvolver minhaexposição segundo três eixos que parecem vias particularmente interes-santes de serem seguidas para o entendimento do objeto do qual nosocupamos hoje : a primeira via seria interessar-se pelas normas e pelasfinalidades que regem a escola; a segunda, avaliar o papel desempenha-do pela profissionalização do trabalho de educador; e a terceira, interes-sar-se pela análise dos conteúdos ensinados e das práticas escolares.

Análise das normas e das finalidadesque regem a escola

Não existe na história da educação estudo mais tradicional que o dasnormas que regem as escolas ou os colégios, pois nós atingimos maisfacilmente os textos reguladores e os projetos pedagógicos que as pró-prias realidades. Gostaria de insistir somente sobre dois pontos: os textosnormativos devem sempre nos reenviar às práticas; mais que nos temposde calmaria, é nos tempos de crise e de conflitos que podemos captarmelhor o funcionamento real das finalidades atribuídas à escola.

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Um exemplo: a elaboração do Ratio studiorum jesuíta

Sobre o primeiro ponto, me limitarei a tomar o exemplo de um textoque teve uma difusão européia; trata-se do Ratio studiorum jesuíta, cujaedição definitiva apareceu em 1599 e serviu de norma aos colégios até asupressão da Companhia em 17738. À primeira vista, o Ratio é apenasmais um dos inumeráveis programas de estudos e de lições que foramabundantes no curso do século XVI, detalhando para cada classe autoresa serem estudados, partes da gramática a serem aprendidas, exercícios aserem feitos. E, deste ponto de vista, pertence a um gênero bem estabele-cido do qual é herdeiro. Mas a originalidade do Ratio jesuíta deve-se àlentidão de sua elaboração: além do fato de que duas versões sucessivas,de 1586 e de 1591, circularam através de diversas regiões antes da publi-cação do texto definitivo de 1599, cinqüenta anos separam as primeirasregras do colégio de Messina, editadas pelo Padre Nadal em 1548, mes-mo que as Constituições da Companhia tivessem expressamente previstoa redação de um texto regulamentar destinado a unificar os modus agendidos jesuítas9. Ao menos duas razões dão conta da lentidão do processode redação: a primeira é que o objetivo perseguido nunca foi o de imporde cima para baixo uma norma cuja execução, no mais, teria sido proble-mática, mas o de elaborar um texto o mais próximo possível das expe-riências confrontadas. É necessário lembrar o papel primordial, no interiorda Companhia, da correspondência, cujas regras foram codificadas mui-to cedo e que tende a tomar o lugar ocupado pelo ofício divino nas anti-gas ordens religiosas10. É por esta correspondência contínua, como pelas

8 As diferentes versões do Ratio studiorum jesuíta foram reeditadas pelo PadreLadislas Lukács (1986).

9 O conjunto de textos pedagógicos da Companhia é atualmente objeto de umareedição crítica organizada pelo Padre Ladislas Lukács, da coleção publicadaem Roma Monumenta Paedagogica Societatis Iesu: sete volumes foram publica-dos entre 1965 e 1992.

10 Cf. as cartas de Ignácio de Loyola a Pierre Favre, 10 de dezembro de 1542, aNicolas Bobadilla, 1543, a toda a Companhia de Jesus, 27 de julho de 1547,traduzidas em francês (Giuliani, 1991).

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inspeções regulares dos padres visitadores (e a circulação dos própriospadres entre as regiões, ainda muito forte no século XVI), que se pôderealizar uma unificação das práticas. A segunda razão da lentidão daredação do Ratio é o extraordinário crescimento da Companhia no séculoXVI, que passa de um pouco mais de mil membros na ocasião da mortede Inácio de Loyola, em 1556, para mais de oito mil em 1600 e tornamais complexa tanto a troca de informações como a unificação desejada(cf. Lukács, 1960-1961, 1968). De fato, a redação final será fruto dareleitura do conjunto dos textos normativos relativos aos estudos produ-zidos, seja em Roma, seja nas províncias da Companhia, por uma comis-são internacional de seis padres jesuítas, e o texto definitivo de 1599 serápublicado somente após a versão de 1591 ser colocada à prova (adexperimentum) por três anos, no conjunto dos colégios, levando-se emconta a recepção e as observações vindas das províncias.

Eu não entraria nos detalhes das modificações que podem ser indicadasentre as diversas versões do Ratio, mas vou reter uma única mudança queme parece particularmente significativa. Entre a versão de 1586 e a de1591, o plano foi completamente alterado. Na primeira, o plano se desen-volve segundo obrigações a cumprir, isto é, segundo o currículo das au-las: trata-se de um programa de lições e de exercícios graduados queparte do curso de teologia para chegar na infima grammatica, isto é, amais simples aula de gramática. Na segunda versão, a de 1591, e tambéma de 1599, o plano se desdobra segundo as funções de cada jesuíta nointerior dos dispositivos de estudo, desde o papel do provincial até ohumilde ofício do porteiro, passando pelo prefeito (diretor) de estudos:aqui é estabelecida uma hierarquia de funções e de poderes especializa-dos, que se imbricam uns nos outros segundo uma arquitetura comple-xa, mas extremamente precisa. O que aconteceu entre os dois textos?Pode-se certamente invocar a dupla genealogia dos textos regulamenta-res jesuítas; uns, consagrados às lições e aos programas, outros, encar-regados de definir as funções atribuídas a cada membro da Companhia.Mas é necessário, sobretudo, recorrer a todo o movimento de reflexãoque se desenvolveu em seguida à crise que se abateu sobre os colégios eas dificuldades experimentadas quando se tentou manter no interior dascomunidades jesuítas o entendimento entre os regentes e a disciplina. Pouco

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a pouco, ao longo das experiências de revolta ou de abandonos, emergiua evidência de que o colégio não é somente um lugar de aprendizagem desaberes, mas é, ao mesmo tempo, um lugar de inculcação de comporta-mentos e de habitus que exige uma ciência de governo transcendendo edirigindo, segundo sua própria finalidade, tanto a formação cristã comoas aprendizagens disciplinares11. Donde a figura progressivamente cen-tral do diretor dos estudos que permanece, entretanto, subordinado aosuperior; donde, no interior de cada estabelecimento, esta imbricaçãohierarquizada de poderes especializados definindo a esfera de interven-ção própria de cada um. Donde, enfim – e isto é particularmente verda-deiro para os estabelecimentos com pensionistas –, a necessidade demunir-se de um conhecimento psicológico sobre as crianças extrema-mente detalhado para reconhecer não somente o nível intelectual em quese encontra cada uma delas, mas também a sua natureza, a fim de sabercomo agir apropriadamente sobre cada uma12. A cultura escolar desem-boca aqui no remodelamento dos comportamentos, na profunda forma-ção do caráter e das almas que passa por uma disciplina do corpo e poruma direção das consciências. A análise das congregações marianas fun-dadas pelos jesuítas a partir de seus colégios mostrou o papel essencialque estes grupos de piedade organizada desempenharam para umacatolicização profunda da Europa central (cf. Châtellier, 1987).

A evolução mesma do Ratio nos remete, portanto, às práticas que aexperiência progressivamente legitimou nos colégios. É necessário, so-bretudo, imaginar nesta, um texto normativo que teria sido aplicado demaneira uniforme de Lisboa a Viena ou de Bruxelas a Roma. Se é verda-de que a circulação dos textos, como a circulação dos homens, favorece-ram a constituição de um modus agendi comum ao conjunto do corpo daOrdem, a regra de ouro de Inácio de Loyola – o que aliás, faz a força daCompanhia –, foi sempre a lei da adaptação aos lugares e às circunstân-

11 Cf. particularmente as Constituições do Colégio Germânico de Roma, redigidaspelo padre G. Cortesono (Lukács, 1974, t.2, pp. 864-934).

12 Cf. particularmente o tratado do Padre M. Lauretano, diretor de estudos de línguae literatura greco-latinas no Colégio Germânico de Roma sobre a maneira de go-vernar o dito colégio (Lukács, 1974, t.2, pp. 934-953).

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cias: toda uma série de regras próprias a cada província ou à Assistência(Alemanha, Itália, Espanha), foram, aliás, explicitamente mantidas; pro-va de que uma diversidade podia ser tolerada no interior do corpo, contantoque as diretrizes gerais fossem aceitas (cf. Lukács, 1986).

Projetos pedagógicos e realidade histórica

A abordagem que acabamos de fazer mostra bem o quanto seriafalso imaginar o universo jesuíta como um mundo fechado, fechado aosruídos do exterior, e isto me leva a abordar a segunda pista de trabalhoque gostaria de propor para reflexão: temos sempre tendência, ao ler-mos textos normativos ou projetos pedagógicos, de destacar a tentação“totalitária”, ou ao menos englobante de todo o ser da criança, que oscaracteriza. Mas os tempos de crise nos revelam também o quanto, aomenos até a aurora do século XX (faço esta restrição porque, vocêscompreenderam bem, sou um historiador de períodos mais antigos), re-sistências e contradições atravessaram a aplicação dessas ambições. Sejao caso da instauração da instrução primária obrigatória que foi realiza-da em diferentes países da Europa , em diferentes momentos do séculoXIX: esta construiu-se mais freqüentemente ligada a um projeto políticoque visa a associar cada cidadão ao destino da nação à qual pertence.Não se trata somente de alfabetizar, trata-se de forjar uma nova cons-ciência cívica por meio da cultura nacional e por meio da inculcação desaberes associados à noção de “progresso”. Os professores primáriostornam-se funcionários do Estado que se emancipam progressivamenteda tutela dos padres e dos notáveis locais, sendo encarregados de difun-dir as luzes trazidas pelo advento das ciências. Como vocês todos sa-bem, o estabelecimento desta nova escola primária não se realizoupacificamente, e eu não preciso detalhar aqui a violência dos combatesque pontuaram as lutas das Igrejas e dos Estados neste terreno. É que,no momento em que uma nova diretriz redefine as finalidades atribuídasao esforço coletivo, os antigos valores não são, no entanto, eliminadoscomo por milagre, as antigas divisões não são apagadas, novas restri-ções somam-se simplesmente às antigas. Donde as insolúveis contradi-ções nas quais se exerceu o trabalho do professor primário, que constituem

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seu espaço de reflexão e de ação e o preservam dos totalitarismos insti-tucionais construídos sobre a convergência de todos os meios em dire-ção a um fim único. Os professores primários “republicanos” da RevoluçãoFrancesa ensinavam a ler usando a Declaração dos Direitos do Homem,a Constituição, mas também, sob a pressão das famílias, as preces cris-tãs e o catecismo (cf. Kennedy & Netter, 1981). A pesquisa desenvolvi-da por Jacques Ozouf junto aos professores primários da TerceiraRepública mostra a que ponto o testemunho destes desmente os estereó-tipos que foram complacentemente difundidos por seus adversários: elesestão conscientes dos limites do seu saber, longe de ser uma falangearrogante, agressiva e sectária; eles medem prudentemente seus atos emseu campo de atuação, distinguindo muito bem o possível do desejável etomando, por vezes, suas liberdades diante das diretrizes oficiais, quan-do elas não lhes parecem aplicáveis; eles não foram nem agentes de umgenocídio cultural nem de uma cruzada anti-religiosa, mesmo se suasposições, ao mesmo tempo políticas e sociais, em seus vilarejos fixam-nos em um papel predeterminado frente ao pároco. Enfim, a experiênciade ensino cotidiano ensinou-lhes que, mesmo no mais intenso de suasesperanças, a escola não pode fazer tudo: a obrigatoriedade escolar co-locou-os em presença do êxito, que lhes agrada obviamente evocar; mastambém frente ao fracasso (cf. Ozouf et al., 1992). Poderíamos certa-mente mostrar como, atualmente, a redefinição das finalidades da esco-la, que elimina cada vez mais as fronteiras da escola primária e do colégio,na maior parte dos países europeus, prolongando a obrigatoriedade es-colar e desembocando, ao mesmo tempo, em um prolongamento dosestudos gerais e no desenvolvimento das formações profissionais na ins-tituição escolar, também implica conflitos, confrontos e debates relacio-nados à manutenção dos valores e das finalidades antecedentes.

A profissionalização dos professores

Na análise histórica da cultura escolar, parece-me de fato funda-mental estudar como e sobre quais critérios precisos foram recrutadosos professores de cada nível escolar: quais são os saberes e o habitusrequeridos de um futuro professor? Sobre este ponto, um estudo sobre a

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longa duração e não apenas sobre a curta duração permitiria, sem dúvi-da, medir melhor as heranças e as modificações que se operam no decor-rer das gerações. Limito-me a destacar duas etapas importantes desteprocesso.

Uma das primeiras figuras desta profissionalização ocorre quando aantiga Cristandade se desmembra em confissões plurais e, nos paísescatólicos, na dinâmica que segue o Concílio de Trento: ser cristão não émais, como nos séculos passados, somente pertencer a uma comunida-de, manifestando-se como tal, mas ser capaz de proclamar pessoalmenteas verdades da fé e ser instruído sobre as verdades de sua religião. Nóstemos, aliás, refletido o bastante sobre a mutação fundamental que umatal definição pôde representar? Para dar apenas um exemplo, quando,no século XVIII, nos vilarejos da bacia parisiense, párocos jansenistastotalmente imbuídos de cultura urbana requisitaram de suas ovelhasiletradas um enunciado mínimo das verdades teológicas para poderemter acesso à comunhão e estabelecer, com a mesma medida, uma espéciede exame de passagem, com seu lote de fracassos, eles excluem da so-ciedade dos adultos os jovens que têm entre quinze e dezoito anos. Orecurso contra esta discriminação humilhante foi, por vezes, ocasião deuma missão jesuítica, no decorrer da qual os sacramentos eram distri-buídos com maior indulgência; segue-se que, bem antes da obrigatoriedadeescolar do século XIX, é colocada uma questão que continua extrema-mente atual: se a pertença a uma comunidade passa pelo domínio de umsaber (aqui, catequético), que destino se deve reservar àqueles que nãose consegue instruir? E a intransigência quanto ao nível de exigêncianão levará à rejeição dos mais desfavorecidos? (cf. Julia, 1988; Boutry,1986). De resto, a rejeição não é unilateral, mas recíproca, pois aquelesque a religião rejeita estarão entre os primeiros a rejeitá-la: as regiõesfortemente marcadas pelo jansenismo foram também aquelas entre asquais a “descristianização” foi mais forte. Seria conveniente analisar,sob este mesmo ponto de vista, os efeitos acarretados, do lado luteranoou calvinista, pela prática, muito precoce – e ela é atestada desde osséculos XVI e XVII – do exame feito na frente do pastor antes da confir-mação; os pastores na verdade se perguntam: todos devem ser admiti-dos? Que cristãos serão esses que não sabem ler ou que, sabendo ler,

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não compreendem o que lêem?13. A importância concedida pela doutrinapietista à confirmação, nas igrejas luteranas, como afirmação públicade uma convicção interior diante da comunidade reunida, não só refor-çou a pressão em favor da obrigatoriedade escolar, mas também de umamaior visibilidade do fracasso (cf. Liedtke, 1991).

No século XVI, na conjuntura da reconquista religiosa que se incen-tiva, seja do herético, seja do selvagem do Novo Mundo, não é pois es-pantoso que, no seio da Igreja católica, as ordens religiosas missionáriastenham-se investido das tarefas de ensino que devem atingir a totalidadedos fiéis: as elites e o povo. Mas se notará imediatamente a divisão que seopera desde cedo nos meios moderados, onde já se pode observar umprimeiro corte entre o que é um ensino elementar no sentido próprio dotermo (os elementos da fé) e o que é uma instrução voltada para a forma-ção superior: a missão, pregação extraordinária que retorna, no entanto,em intervalos regulares, é a modalidade escolhida para atingir o conjuntode uma população em que todas as idades estão misturadas (cf. Châtellier,1993); o colégio destina-se às futuras elites e os jesuítas sempre manifes-taram a maior reticência em admitir em seus colégios as classes ditas deabecedários, julgando que tal ensino dos rudimentos não estava previstopor suas funções. Não nos esqueçamos de que um dos principais objeti-vos de Inácio de Loyola é a recatolicização da Alemanha: esta passa poruma reconquista da nobreza alemã14 ; donde a preocupação de competi-ção intelectual que visa a fazer dos colégios jesuítas alemães universida-des completas, nas quais a qualidade dos ensinos ministrados deveria ser,ao menos, igual à das universidades luteranas. Não podemos nos espan-tar com o fato de que, muito cedo, as congregações que ensinam nos

13 Cf. a título de exemplificação, o catálogo dos alunos da paróquia de Lebus naPrússia, redigido em 1779 pelo pregador Baumann: dentre 34 alunos de 14 a 15anos que se preparavam para a confirmação, 4 não conheciam as letras, 9 sabiamsoletrar com dificuldade, 15 liam gaguejando e de maneira quase sempre incorre-ta; 6 liam com dificuldade e sem compreender (texto publicado por W. Neugebauer,1992).

14 Cf. A carta de Inácio de Loyola aos Companheiros que partem para a Alemanha,24 de setembro de 1549 (Giuliani, 1991, pp.757-762); carta a Claude Jay, 8 deagosto de 1551 (Giuliani, 1991, pp. 793-795); carta a Albert V, duque da Baviera,22 de setembro de 1551, Giuliani, 1991, pp. 798-801).

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colégios tenham estabelecido em seu proveito uma identificação sistemá-tica das capacidades suscetíveis de oferecer ao corpo da Ordem as com-petências apropriadas ao ensino: as Constituições da Companhia de Jesusprevêem, antes do ingresso, um exame geral que comporta uma análisedas qualidades intelectuais dos candidatos jesuítas, e elas sublinham anecessidade de desencorajar, no decorrer do curso, os que não sejam ca-pazes de segui-lo, estando a Companhia de Jesus sempre livre para recu-sar, até os votos finais, aqueles que ela não considere adequados às tarefasde sua vocação. Os catálogos trienais, compostos em cada província eencaminhados a Roma, julgam aliás, regularmente, o ingenium (inteli-gência), a prudentia (perspicácia), a pietas (devoção) e as vires (querdizer, a saúde) de cada membro, instituindo assim um controle de cadaum deles, pelas autoridades centrais. Entre os oratorianos franceses, osregistros do noviciado, onde são detalhadas as qualidades dos noviços,mantêm quatro critérios: além das qualidades físicas (um candidato quemanca ou que gagueja será mais dificilmente aceito), entra em jogo ainclinação para as ciências (os espíritos “obtusos” ou “pequenos” nãosão particularmente apreciados, contrariamente aos espíritos “abertos”ou “ágeis”). Mas também entram em jogo a natureza (a um caráter “som-brio” ou “melancólico” será preferível uma natureza “doce” ou “dócil”) enaturalmente a piedade, o que parece, depois de tudo, bem normal, emuma congregação cuja finalidade é primeiramente religiosa. Quanto aomodo de recrutamento dos professores do colégio na antiga universidadede Paris, que não é uma congregação religiosa e que antes funciona comouma corporação medieval, ele assemelha-se a uma formação preceptoral:cabe ao principal de cada colégio identificar os melhores elementos, retê-los no colégio e ensinar-lhes o ofício progressivamente , dando-lhes pro-vas para corrigir, exercícios a fazer ou aulas para substituir, antes deestabelecê-los definitivamente em uma cátedra. Aqui também entram emjogo, segundo matizes variáveis e difíceis de documentar, não somente acompetência, mas também o caráter, a piedade e os costumes (cf. Julia,1994).

Com relação a essas corporações que se propõem a construir ou amanter uma sociedade católica por meio da educação e enquadramentode suas elites, a figura do mestre de escola elementar e particularmente a

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do mestre do campo continuaram pouco profissionalizadas por muitotempo. Em países católicos, pelo menos, a aprendizagem das verdades dasalvação pôde ser feita por via puramente oral, através de um catecismoaprendido de cor, freqüentemente mesmo em dialeto, posto que a Igreja,diferentemente dos Estados, privilegia a língua vernácula local em detri-mento da língua imposta pelo poder central: que necessidade então de umprofessor, se não se faz sentir a necessidade da escrita? A forma propria-mente escolar, com um local separado da igreja e um pessoal apropriado,não é, portanto, consubstancial ao ensino da doutrina, que pode servir-sede canais menos formais. Por outro lado, a competência desses professo-res elementares dependeu largamente não só do nível de exigência mani-festada pelas municipalidades, que os remuneravam, como também daimportância dos honorários que elas podiam pagar. Já que nenhuma for-mação inicial comum lhes era dada, certamente é preciso admitir umaextrema heterogeneidade desse pessoal, que se dedicava, freqüentemente,a outras atividades. A preocupação de pôr fim à errância das criançaspobres da cidade e exercer um controle sobre seus comportamentos, quepodiam ser delituosos, desencadeia, no fim do século XVII, a criação deuma figura original: o irmão-professor. Jean Baptiste de La Salle podebem ser considerado um inovador incômodo, que rompe com a tradiçãodas congregações religiosas quando decide fundar um instituto de lei-gos – os Irmãos das Escolas Cristãs não são padres – que se excluem,por vocação, da cultura das elites para se consagrarem às escolas decaridade destinadas aos mais pobres: eles não ensinarão o latim, massomente os rudimentos do ler, do escrever e do contar e eles o farão emfrancês. Para essas categorias urbanas desfavorecidas, entre as quais aescrita não tinha penetrado – ou tinha pouca penetração – a formação deum habitus cristão será baseada em uma pedagogia escolarizada nosmínimos detalhes: emprego do tempo, curso gradual de aprendizagem daleitura e da escrita, tecnologias de transmissão e de disciplina, centros deformação para os mestres. Mas sabe-se bem, ao mesmo tempo, o quantoesta nova figura do mestre de escola continuou minoritária no AntigoRegime. Um contra-exemplo disso é fornecido pela congregação das Es-colas Pias estabelecida por Joseph Calasanz para o mesmo objetivo doInstituto dos Irmãos das Escolas Cristãs. Posto que seu fundador não

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havia expressamente proibido que seus membros fossem padres, não es-capou à deriva que a levou a responsabilizar-se por colégios e pensionatospara a elite, notadamente na Europa Central.

Nos países protestantes, a situação pôde variar consideravelmente,segundo os Estados. A Reforma luterana funda-se, no entanto, na idéiade que os Estados devem criar e manter as escolas: é com efeito necessá-rio, como lembra Melanchthon, ensinar às crianças os princípios de umavida cristã e piedosa. Sabe-se o papel decisivo desempenhado peloPraeceptor Germaniae na inspiração das Schulordnungen, nos diferen-tes Estados alemães no século XVI; a Schulordnung editada para Saxe(1528) serviu de modelo para a maioria das demais15. Sem dúvida, ainfluência dos reformados foi mais sensível na instalação das escolaslatinas que no estabelecimento de um ensino elementar; isto não impediuque a Reforma favorecesse largamente o desenvolvimento de um controleregular das escolas e dos mestres pelas autoridades laicas, o que pôde,por sua vez, favorecer a emergência de um perfil “profissional”. Aqui, épreciso permanecer extremamente prudente, distinguir entre mestres dacidade e mestres do campo, entre grandes e pequenos Estados. SegundoW. Neugebauer, que estudou a Prússia entre os séculos XVI e XVII, oEstado Moderno não tinha os meios para impor uma política escolar: adespeito da legislação, as escolas permaneceram sob o controle das auto-ridades locais – e em grande parte nas mãos do clero – até o fim do séculoXVIII; devido à mediocridade de seu salário, o professor primário ruralera condenado a exercer uma atividade paralela, sendo ela, na maioriados casos, a de alfaiate (Neugebauer, 1985). Não é certo, entretanto, queos resultados obtidos para a Prússia possam ser generalizados para oconjunto da Alemanha: a fragmentação territorial em múltiplos principa-dos, freqüentemente minúsculos, que muitas vezes foi considerada peloshistoriadores como uma fraqueza no plano do poder político, revela-se,aqui, como um trunfo, na medida em que a política dos príncipes, sendoexercida sobre um espaço mais reduzido, pôde assegurar o controle daaplicação de suas decisões e um enquadramento mais eficaz da socieda-

15 Cf. Paulsen (1919), G. Mertz (1902), R. Vormbaum (1860); para uma análiserecente dos métodos e dos conteúdos, cf. Strauss (1978).

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de. A Kleinstaaterei serviu, na verdade, aos propósitos do absolutismo e,sem dúvida, contribuiu para melhorar a competência dos professores (cf.Vogler, 1975; Le Cam, 1992). Seria preciso, aqui, ainda estabelecer ascronologias exatas e se perguntar como o impulso vindo do alto pôdeencontrar-se com as aspirações culturais oriundas das populações: emque momento e em quais meios é atestada a leitura intensiva da Bíblia noforo familiar? É certo que no interior do espaço luterano e calvinista doNorte da Europa defasagens importantes podem ser identificadas. Emtodo caso, não se pode fazê-lo na Suécia, onde o aprendizado da leitura edo catecismo ocorreu sem a presença das escolas e por intermédio apenasdo pastor que anotava os resultados de seus jovens discípulos tanto noque diz respeito à capacidade de leitura quanto à compreensão dos con-teúdos; uma espécie de modelo: esta alfabetização que não conhece aforma escolar parece ser um caso inteiramente particular (cf. Johansson,1981).

A segunda etapa da profissionalização poderia ser situada no mo-mento em que os Estados substituem as Igrejas e as corporações munici-pais no controle do ensino: esta etapa situa-se no fim do século XVIII ecoincide com a supressão da Companhia de Jesus, que obrigou, duranteum período muito breve – 15 anos, de 1759 a 1773 – os Estados católicosa considerar substitutos para os professores de mais ou menos 600 colé-gios, distribuídos por toda a Europa católica. Estudando de maneira com-parativa os grandes Ratio studiorum editados pelos diferentes príncipesilustrados, seria necessário examinar com atenção o leque das condiçõesdisponíveis para o professorado do ensino secundário: a virada maior meparece ser, aqui, a passagem de uma seleção discricionária que se opera-va no interior do corpo religioso pela única autoridade das congregaçõesou dos principais, para a do exame ou do concurso, que introduz umavisibilidade que repousa sobre provas escritas e orais codificadas; o exa-me ou o concurso definem, tanto na forma das provas como nos conteú-dos dos saberes propostos aos candidatos, a base mínima de uma culturaprofissional a se possuir. Não será mais possível, daqui por diante, elimi-nar um candidato, senão com provas ostensivas de incompetência relati-vas às próprias provas e não mais simples suspeitas. Seria precioso poderbeneficiar-se de estudos transversais e diacrônicos de vários países que

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analisassem de maneira aprofundada este momento específico do recru-tamento dos professores, levando em conta simultaneamente três termos,a fim de esboçar o que é a cultura do professor ideal no século XIX: aevolução dos autores no que se refere ao programa dos exames e dosconcursos e dos assuntos das provas efetivamente aplicadas, asperformances efetivamente realizadas pelos candidatos (que podem sercontroladas quando são conservadas cópias das mesmas), os relatóriosdas bancas, que prestam conta das expectativas e dos desejos – satisfei-tos ou não – dos examinadores.

Para tomar o único exemplo do concurso de magistério francês parao ensino secundário no século XIX, recentemente estudado por AndréChervel (1993), percebe-se que, desde então, a piedade ou o caráter nãomais são objeto de prova (como no interior das antigas congregaçõeseducadoras); durante o período da Restauração (1815-1830) os candida-tos ainda devem fornecer certificados sobre a ortodoxia de sua condutareligiosa e a conformidade de seu comportamento político aos princípiosmonárquicos. Sobretudo, um julgamento sobre os habitus dos candida-tos é imperceptivelmente reintroduzido nas provas: o candidato dito “bri-lhante” se distingue do bom aluno, mais lento, por um domínio daargumentação oral ou da explicação, uma facilidade, um gosto, em resu-mo, uma gama de qualidades que remetem não tanto ao exercício pro-priamente dito, mas à natureza do candidato, ela mesma socialmenteconotada. Ao mesmo tempo, os candidatos ao concurso magistério de-vem curvar-se a uma regra absoluta, a de se restringir aos limites dopensável autorizado no concurso. É por ter transgredido esta regra que ofuturo historiador Hyppolite Taine, aluno da Escola Normal, que tinhatodos os habitus requeridos para ser aceito em primeiro lugar no concur-so de magistério de filosofia, em 1851, foi finalmente recusado: não tinhaele pretendido tratar das divisões da moral separando-a da existênciadivina? Nos tempos de ordem moral consecutivos à Revolução de 1848,uma tal audácia não era de modo algum admissível e o presidente dabanca sublinhou as razões que levaram os examinadores a rejeitar “umjovem ávido de renome e pleno de confiança em si mesmo, que buscadistinguir-se, desviando-se dos caminhos traçados”. O dever prescrevia àbanca “desencorajar tentativas semelhantes [...] É útil advertir aqueles

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que se destinam ao ensino da moral que não se poderá ter toda a liberdadede inovar em semelhante matéria”. Para bom entendedor, meia palavrabasta! A cultura escolar é efetivamente uma cultura conforme, e serianecessário definir, a cada período, os limites que traçam a fronteira dopossível e do impossível.

Seria conveniente desenvolver uma análise similar a propósito da fi-gura do professor primário. Desde os primeiros seminários de professo-res primários e das primeiras escolas normais nascidas no domíniogermânico no final do século XVIII, foi necessário um século para queemergisse, através de toda a Europa, seu novo perfil profissional. Serianecessário aqui avaliar as heranças do passado, que se desfazem muitolentamente – a profissão de professor primário não tinha sido pensada,até muito recentemente, como uma “vocação”, leiga certamente, e nosdois sentidos do termo; mas esta denominação religiosa não é sem signi-ficado. Seria necessário também entender como esta figura subalternaprogressivamente tornou-se autônoma e definida nas competências deuma profissão muito diferente daquela do professor secundário. O pro-fessor primário não ministra um curso magistral, mas seu papel é fazeras crianças trabalhar, circular entre as carteiras para verificar como sedesenvolvem as atividades de cada grupo (quando deve, por exemplo, daraula em uma classe multiseriada), mandar um aluno para a lousa para acorreção, constantemente dar conselhos ou ordens a fim de melhor admi-nistrar a sucessão dos exercícios que cada aluno não chega a realizarnecessariamente no mesmo ritmo. Na memória dos professores primá-rios, as lições da escola normal não os preparava, de modo algum, paraesta gestão cotidiana das práticas da sala de aula; donde sua bulimia pelaleitura de revistas pedagógicas, onde eles esperavam encontrar suportespara a sua inexperiência (cf. Ozouf et al., 1992). Contrariamente ao tra-balho do professor do ensino secundário, no do professor primário existeuma espécie de corpo a corpo físico com a aula do qual seria precisoreconstituir as modalidades históricas (cf. Chartier, 1992). A separaçãoinstitucional das duas ordens de ensino, as finalidades completamentedistintas que elas perseguiam (a instrução obrigatória de todo um povo,de um lado, o ensino de uma parte das elites, do outro) não puderamsenão acentuar a oposição de duas culturas, primária e secundária.

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Conteúdos ensinados e práticas escolares

A análise precedente remete-nos a um estudo daquilo que hoje sechama disciplinas escolares: estas não são nem uma vulgarização nemuma adaptação das ciências de referência, mas um produto específico daescola, que põe em evidência o caráter eminentemente criativo do sistemaescolar. Como notou muito bem André Chervel, as disciplinas escolaressão inseparáveis das finalidades educativas, no sentido amplo do termo“escola”, e constituem “um conjunto complexo que não se reduz aos en-sinos explícitos e programados”16. O ensino clássico, tanto no AntigoRegime quanto no século XIX, comportava também toda uma educaçãomoral contínua, através dos modelos propostos às crianças como exem-plo na escolha das versões, dos temas ou dos assuntos a serem desenvol-vidos. E não se pode esquecer que a inércia do sistema pode efetivamentemascarar, para os próprios agentes, as finalidades reais das disciplinasque ensinam: um exemplo manifesto disso é o desenvolvimento e o uso dagramática escolar do francês, concebida de início como um simples auxi-liar da aprendizagem da ortografia e transformada pouco a pouco emfinalidade em si mesma da escola primária. Contrariamente às idéias re-cebidas, o estudo histórico das disciplinas escolares mostra que, diantedas disposições gerais atribuídas pela sociedade à escola, os professoresdispõem de uma ampla liberdade de manobra: a escola não é o lugar darotina e da coação e o professor não é o agente de uma didática que lheseria imposta de fora. Mesmo se a corporação à qual pertence exerceuma pressão – quer se trate de visitantes de uma congregação, ou deinspetores de diversas ordens de ensino –, ele sempre tem a possibilidadede questionar a natureza de seu ensino; sendo a liberdade evidentementemuito maior nas margens do sistema (nos internatos ou junto aopreceptorado que pode ser exercido depois da aula). De fato, a únicarestrição exercida sobre o professor é o grupo de alunos que tem diantede si, isto é, os saberes que funcionam e os que “não funcionam” diantedeste público. Os professores primários interrogados por Jacques Ozouf

16 Nós nos inspiramos aqui nas reflexões pertinentes propostas por A. Chervel emartigo publicado em 1988.

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sublinham com encantamento o sentimento de ser rei no seu reino queexperimentavam quando entravam na sua sala de aula, orgulhando-se desua destreza e dos procedimentos que inventaram, procurando submetera renovação da pedagogia às restrições de uma instrução coletiva (Ozoufet al., 1992). Fazer um inventário sistemático destas práticas, períodopor período, constituiria, a meu ver, um campo de trabalho efetivamenteinteressante: ele permitiria compreender as modificações, freqüentemen-te insensíveis, que surgem de geração em geração. Aliás, é a mudança depúblico que impõe freqüentemente a mudança dos conteúdos ensinados.Uma das primeiras gramáticas escolares do francês (a de Noël e Chapsal)foi abandonada a partir do momento em que o ensino primário tornou-seum ensino de massa. Seu conteúdo era julgado demasiado complicado, eera necessário chegar rapidamente a uma simplificação dos métodos edos exercícios (cf. Chervel, 1977). Convém examinar atentamente a evo-lução das disciplinares escolares, levando em conta diversos elementosque, em ordem de importância variada, compõem esta estranha alquimia:os conteúdos ensinados, os exercícios, as práticas de motivação e de esti-mulação dos alunos, que fazem parte destas “inovações” que não sãovistas, as provas de natureza quantitativa que asseguram o controle dasaquisições.

Aqui, vou-me deter sobre apenas duas delas. Sobre os conteúdos en-sinados, muito trabalho já foi feito e bem feito. Em particular sobre osmanuais escolares (cf. Choppin, 1993). Mas eu gostaria de fazer umadupla advertência: o manual escolar não é nada sem o uso que dele forrealmente feito, tanto pelo aluno como pelo professor. Por outro lado,não temos tido muito freqüentemente a tendência de fazer uma análisepuramente ideológica desses manuais, que frisa o anacronismo? É claroque uma das razões maiores da crise da escola contemporânea e douniversalismo laico que a fundamenta foi a descolonização: havia paraos republicanos continuidade da emancipação pela escola na emancipa-ção pela colonização. E os professores primários da Terceira República,interrogados em plena guerra da Argélia na década de 1960, reconheciamfacilmente, acerca disso, que seus olhos se abriram muito tardiamente:sim, vibraram em uníssono com as conquistas que separavam os nativosdos feiticeiros e potentados locais e transformavam os pequenos selva-

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gens em civilizados; sim, a política colonial parecia-lhes uma necessida-de, pois se tratava de acelerar o acesso de todos os povos à razão. Éconveniente, portanto, recontextualizar muito precisamente os manuaisem sua circunstância histórica (cf. Ozouf et al., 1992). Aqui, dois tiposde pesquisas poderiam trazer resultados convincentes: a primeira seriaanalisar sistematicamente o gesto que consistiu em expurgar os autoresclássicos antigos e reescrevê-los sem cerimônia, como o fizeram os jesuí-tas, preocupados em não permitir que seus alunos conhecessem as inde-cências de um Terêncio ou de um Marcial17; a outra seria fazer, a longoprazo, uma comparação internacional do cânone dos autores ensinadostanto no nível primário como no secundário, e que são promovidos àdignidade de autores cujos textos são propostos para a meditação doscandidatos dos exames e concursos. Na França, em um século XIX quevai até 1880, o cânone dos autores clássicos tende a se organizar, noensino secundário, em torno de alguns autores maiores do século de LuisXIV, enquanto que quatro autores sobre cinco citados nos manuais deensino primário pertencem ao século XIX. O cânone, no ensino secundá-rio, alarga-se em seguida ao século XVI e ao século XIX, segundo umanomenclatura que praticamente não é mudada até os anos de 1960. Ésintomático constatar que a explosão deste cânone coincide com a explo-são escolar que caracterizou o decênio de 1960 (cf. Milo, 1986; Chervel,1986).

Tratando-se dos exercícios escolares, parece-me que o terreno acabade se abrir e que nós estamos no coração mesmo da caixa preta da qual eufalava na introdução. Os primeiros resultados adquiridos são suficiente-mente promissores para que possamos esperar muito ainda desse lado: avariação das performances escolares identificadas nos mesmos ditados,com um século de intervalo, permitiu medir como mudou a relação dosfranceses com a sua própria língua. O exercício de versão latina no sécu-lo XVIII não é percebido pelos alunos nem corrigido do mesmo modopelos professores no século XVIII e no século XX. O estudo diacrônicodos exercícios nos introduz, portanto, em uma historicização das modali-

17 Cf. sobre este ponto, algumas indicações rápidas em F. de Dainville (1940); cf.também P.-A. Fabre (a ser publicado).

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dades de relacionamento com a escrita escolar: neste campo ainda novoonde podemos enfim perceber concretamente a distância entre a realidadee a ambição inicial e a norma prescrita, tudo, ou quase tudo está por serfeito.

Conclusão

Tenho plena consciência de aqui ter tratado apenas de uma ínfimaparte do assunto que escolhi para falar. Gostaria, ao menos, de assinalartrês lacunas de minha exposição que me parecem importantes:

1º) Não falei sobre a inculcação dos habitus tal como ela foi operadano espaço escolar: habitus cristãos, habitus cívicos, ou simples-mente civilidade pueril e discreta. Seria preciso, aqui, poder acom-panhar, a longo prazo, os manuais de piedade e de civilidade,identificar a evolução dos mesmos, mensurando a atenção que con-ferem às hierarquias sociais, mas também distinguindo o que pro-vém do fundo muito antigo dos Padres da Igreja, o que vem dacivilidade de Erasmo ou de seus contemporâneos, e o que é acres-centado pelos manuais escolares ao longo das gerações (cf. Elias,1939; Chartier, 1986; Revel, 1986). Mas em retrospectiva e nomesmo movimento, seria preciso recolher, através das autobiografi-as, como através de uma história oral, questionando as antigas ge-rações, tudo o que de uma cultura tradicional, ou de uma culturaespecífica de determinado grupo social, pôde resistir à tentativa deaculturação da escola, tudo que também pôde acolhê-la e sustentá-la. Todos sabem que os professores não conhecem tudo que se passanos pátios de recreio, que existe, há séculos, um folclore obscenodas crianças (cf. Gaignebet, 1974) e hoje, como ontem (pensemosnas antigas abadias da juventude)18, existe uma cultura dos jovensque resiste ao que se pretende inculcar: espaços de jogos e de astú-

18 Cf. por exemplo, N. Zemon Davis (1971); para um exemplo regional, cf. N.Pellegrin (1982).

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cias infantis desafiam o esforço de disciplinamento. Essa culturainfantil, no sentido antropológico do termo, é tão importante de serestudada como o trabalho de inculcação.

2º) Seria conveniente analisar atentamente as transferências culturaisque foram operadas da escola em direção a outros setores da socie-dade em termos de formas e de conteúdos e, inversamente, as trans-ferências culturais operadas a partir de outros setores em direção àescola. A quais retraduções específicas procede a escola quando eladeixa passar no seu próprio dispositivo aprendizagens que não erampropriamente escolares e dependiam de culturas “profissionais”?Como, por exemplo, as aprendizagens da cultura comercial trans-mitidas nas lojas dos grandes negociantes foram escolarizadas? (cf.Hébrard, 1988). Segundo quais modalidades e quais inflexões apedagogia da história que era reservada à educação do príncipe trans-formou-se, no século XIX, em uma disciplina própria dos colégiossecundários? Como são reintroduzidos na escola, hoje, certos pro-cedimentos que já tiveram sucesso na formação dos adultos?

3°) Última pergunta, mas não a menos desprovida de sentido: o quesobra da escola após a escola? Quais marcas ela realmente impri-miu nos indivíduos de uma sociedade onde há efetivamente sempremais escola, já que a formação não pára de se prolongar (e os orça-mentos nacionais para a educação vêem suas despesas aumentaremde maneira exponencial), mas onde a escola sofre a concorrênciados media infinitamente mais fortes, como a televisão? Quais sãohoje os poderes reais da escola nas sociedades onde não só não exis-te uma religião majoritária, mas onde desmoronaram também asesperanças de uma regulação comum dos costumes por uma crençacomum, uma religião “civil”, quer se trate da fé na nação, no pro-gresso ou no triunfo do proletariado? Nós vivemos um momentoinédito da história, o da individualização das crenças, em que a es-cola deve repensar sua articulação entre a sua visada universalista eo pluralismo do público que ela recebe, entre a esfera pública e avida privada, protegendo a infância das agressões do mundo adulto,sem, contudo, deixá-la ignorar os conflitos que o atravessam. Otema da cultura escolar nos remete, assim, ao problema central da

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transmissão: as rupturas culturais vividas no curso dos últimos trintaanos não questionaram, primeiramente, toda idéia de tradição (nosentido etimológico do termo) e não estamos mais distanciados dageração dos homens que tinham vinte anos em 1945 que eles mes-mos o estavam dos homens do século XVIII?

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Notas de Lugar Nenhum:sobre os primórdios da escolarização moderna

David Hamilton*

Tradução de Luiz Ramires**

Este artigo trata das iniciativas inovadoras nos métodos de ensino empreendidas porautores como Hoole e Comenius no século XVII. As inovações introduzidas por eles nãosó representavam reformulações herdadas de períodos mais remotos, como também con-tribuíram para a reconfiguração da política e a ascensão do Estado Moderno. Centradona questão da emergência paralela da escolarização moderna e do Estado Moderno, oautor investe na crítica às leituras evolucionárias a partir de uma história cultural quelhe dá sustento para afirmar a tese de que a escolarização moderna não teve ancestraisinstitucionais. Como argumentos em favor da sua tese, ao autor opera duplo movimento:uma preliminar crítica historiográfica, pautada em fontes originais, mas subjugadas porum arcabouço darwiniano de interpretação, e uma subseqüente exposição de complexosmeandros por meio dos quais idéias e práticas desordenadas combinaram-se para darnascimento à escolarização moderna.HISTÓRIA DA ESCOLA; ESCOLARIZAÇÃO MODERNA; MÉTODOS DE ENSINO: HISTÓRIA;HISTÓRIA CULTURAL DA EDUCAÇÃO.

This chapter deals with the innovating initiatives in the teaching methods taken by authorssuch as Hoole and Comenius in the sixteenth century. The innovations introduced notonly represented a rework on ideas from remote ages but also contributed to reconfigurepolitics and the rise of the modern state. Focused on the parallel of modern schoolingand the modern state, David Hamilton fosters as critical view on the evolutionary readingsfrom a cultural history that provides him with support to assert the idea that modernschooling did not have institutional ancestors. As a supportive argument to his assumption,Hamilton operates a dual movement: a preliminary historiographical critique, based onoriginal sources but subjugated by a Darwinian interpretative framework and a subsequentexposition of complex pathways through which disorderly ideas and practices intermingledto give birth to modern schooling.HISTORY OF SCHOOL; MODERN SCHOOLING; TEACHING METHODS: HISTORY; CULTURALHISTORY OF EDUCATION.

* David Hamilton (1943 - ) é professor de Educação na Universidade de Umeå, Sué-cia. “Notas de Lugar Nenhum” foi escrito quando ele era professor de Educação naUniversidade de Liverpool. Seus interesses em pesquisa derivam de uma crença deque a educação é um assunto mais profissional do que acadêmico. Além de estartrabalhando num livro sobre as origens da escolarização moderna, ele também dedi-ca-se a explorar a relação entre pesquisa e prática educacional. Dentre as suas inú-meras publicações, merecem destaque duas de suas obras: Learning about Education:An Unfinished Curriculum (1995, Philadelphia, Open University Press); e, Towardsa Theory of Schooling (1989, East Sussex, The Falmer Press).

** O presente texto de tradução contou com a revisão técnica de Mirian Warde.

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O livro A New Discovery of the Old Art of Teaching Schoole, deCharles Hoole, foi publicado em 1660. Compreende “quatro pequenostratados” que relatam o “método e a ordem” e que “concernem à profissãode mestre-escola”. Charles Hoole (1610-1667) reuniu essas idéias quandoera um aluno do liceu em sua cidade natal de Wakefield (Yorkshire), maistarde como estudante do Colégio Lincoln (Oxford), e ao longo de trintaanos lecionando em “escola pública” em Roterdã, Londres e Essex.

O “pequeno manual” de Hoole, entretanto, foi mais do que um com-pêndio de procedimentos educacionais. Como Hoole proclamava, era tam-bém uma “nova descoberta” da “velha arte”. Hoole utilizou fontes e idéiasclássicas, e o que ele trouxe de novo – um significado próprio do séculoXVII para o termo “descoberta” – foi a conversão da velha arte numa for-ma que, em sua percepção, pudesse ser adotada por seus contemporâneos.

Uma nova edição do manual de Hoole foi publicada em 1913; edita-da e apresentada por Ernest Trafford Campagnac, classicista e professorde Educação na Universidade de Liverpool, de 1908 a 1938. Aos olhosde Campagnac, a obra de Hoole tem uma dupla significação. Primeiro,ela “merece atenção” porque trata-se de “uma das mais ricas fontes dehistória da educação”. E, em segundo lugar, Campagnac achava que aobra de Hoole merecia ser republicada porque ainda era “acessível” aos“professores do nosso tempo”. Nela “ainda poder-se-ia”, sugeria ele, “en-contrar utilidade prática”.

Hoole não estava sozinho em seus esforços de repensar a práticaeducacional. Outros escritores do século XVII empreenderam esforçossemelhantes para retomar e retrabalhar a sabedoria cumulativa dos sécu-los anteriores. De fato, o mais famoso inovador educacional europeu doperíodo foi John Amos Comenius (1592-1670), um tcheco que falavaquatro idiomas e viajava por toda a Europa. A Reformation of Schoolesde Comenius – uma “reforma geral do aprendizado comum” – apareceraem inglês em 1642. Expressava a convicção do autor de que “métodosdigressivos concebidos por cérebros fantasiosos” poderiam ser “retira-dos do caminho” e que “finalmente poder-se-ia lidar com todas as coisasnuma única ordem e método”.

Inovadores acadêmicos, como Hoole e Comenius, representaram ummovimento reformista e modernista no pensamento educacional. Refor-

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mularam uma herança educacional que remontava à Reforma e aoRenascimento, recuando até idéias clássicas da Idade Média. MasComenius e Hoole não estavam buscando um retorno a um passado mítico.Reconheciam, ao contrário, que antigas idéias poderiam ser mobilizadasno interesse da inovação. Seus escritos, portanto, foram contribuições auma transformação social muito mais ampla – a reconfiguração da polí-tica e a ascensão do Estado Moderno. Desse modo, no microcosmo, oquarto tratado de Hoole, Scholastic Discipline or the Way of Order inGrammar Schoole, era uma codificação ou representação da disciplina eda ordem do Estado Moderno. É contra esse pano de fundo político – aemergência paralela da escolarização moderna e do Estado Moderno –que obras como A Reformation of Schooles e A New Discovery of theOld Art of Teaching Schoole devem ser avaliadas.

Notas de Lugar Nenhum

Mas de onde se originou a escolarização moderna? E por que elaassumiu as formas revistas e divulgadas por Hoole, Comenius e outros?A primeira dessas questões é tipicamente respondida pela forma adotadapor Hoole: a nova (ou moderna) escolarização emergiu da escolarizaçãoantiga. Tais pressupostos, entretanto, são imediatamente limitadores. Elesdão atenção preferencial à continuidade em detrimento da mudança. Des-tacam a evolução ao invés da gênese das instituições sociais. Além disso,tais histórias evolucionárias – às vezes caracterizadas como histórias noestilo “uma droga após a outra” – são comparativamente fáceis de cons-truir. Elas recontam as mudanças em termos de seqüências e conseqüên-cias numa instituição já existente. Escorregando confortavelmente na suavetrilha “darwiniana” (Grafton, 1983, p. 73), suas narrativas apresentamentraves injustificáveis. A complexidade do registro histórico é simplifi-cada, mas não esclarecida.

Este artigo não apela para a lógica – ou os atalhos – da históriaevolucionária. Busca entendimento em outro lugar – nos domínios dahistória cultural. Sua perspectiva é a de que os escritos históricos não sãonunca abstratos, jamais são lineares. Eles não apenas interpretam as evi-

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dências, mas também representam uma resposta a debates contemporâ-neos. Constituem um diálogo entre o presente e o passado. Assim, a his-tória cultural deve destacar essa dialética. Mais ainda, deve encontrarcaminhos para reconhecer, e até celebrar, a existência desse diálogo, areflexividade explícita do autor e – o que não é pouco – a permanentehistoricidade dos esforços do autor.

Este artigo reconhece a fecundidade da referência de Walter Ong à“crise”, impelida pelo humanismo, que “resistiu à organização curricularcomo um todo e à profissão docente como tal” (Ong, 1958, p. 166). Elevê possibilidades na afirmação de Terrence Heath de que “apesar da con-cordância geral sobre o que aconteceu, a história da mudança no interiordas escolas e do currículo é pouco conhecida” (Heath, 1971, p. 9). Inspi-ra-se nos revisionistas que estão reavaliando os “humanistas que revolu-cionaram as escolas secundárias e as faculdades de artes na Europa doRenascimento” (Grafton & Jardine, 1986, p. xii). E, acima de tudo, bus-ca ir além das práticas historiográficas – ora hagiográficas, ora celebra-tórias ou predatórias – que debilitaram os estudos educacionais de línguainglesa por mais de um século.

Da mesma forma, este ensaio parte de um pressuposto excêntrico(fora do centro): o de que a escolarização moderna não teve ancestraisinstitucionais. Se, por um lado, é conscientemente desafiadora edesconfortante, essa premissa de trabalho – de que a escolarização mo-derna veio de lugar nenhum – é também libertadora. Ela desatrela a in-vestigação da escolarização moderna do curso da teorização linear, quecoloca uma coisa após a outra. Dois recentes relatos de práticas educa-cionais anteriores ao século XVII – The Growth of English Schooling1340-1548 (Moran, 1985) e Schooling in Renaissance Italy 1300-1600(Grendler, 1989) – ilustram esses problemas da busca de caminhos.

Tanto Moran quanto Grendler identificaram e analisaram novas fon-tes; mas, ao mesmo tempo, também se depararam com problemas recor-rentes de interpretação. Grendler, por exemplo, lutou com o problemade que:

o uso de scholas (escolas) nos documentos acadêmicos da Renascença, in-

clusive textos jesuítas do final do século XVI, é um pouco desconcertante.

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Pode-se traduzir a expressão tenet scholas [mantém escolas] mais literal-

mente como “mantém classes” ou “leciona”. Mas o sentido é “leciona esco-

la” [p. 24n].

Três comentários podem ser feitos em relação a essa reveladora notade rodapé. Primeiro, Grendler observou a ausência da palavra “classes”.Segundo ponto, ele traduziu um plural do latim (scholas) para um singu-lar em inglês (school, isto é, escola). E, em terceiro lugar, ele observou apersistência de schola em “textos jesuítas” posteriores.

Felizmente, o desconforto de Grendler pode ser aliviado. A palavraclasse não reaparece nos documentos da Renascença até as primeirasdécadas do século XVI (ver Hamilton, 1989, 2º capítulo). Enquanto isso,schola podia referir-se a um grupo de pessoas (cf. uma escola de pensa-mento), ao passo que o termo scholas remetia a grupos de pessoas (cf.classes). E, finalmente, as inovações educacionais associadas àreintrodução da palavra latina classis parece ter ocorrido anteriormenteem escritos protestantes da Europa do Norte mais do que entre católicoseuropeus do Sul.

Moran experimenta sentimentos comparáveis de apreensão. Sua nar-rativa evolucionária contém uma variedade de comentários qualificadores.Muitas escolas elementares, escreve ela, foram “transitórias” (1985,p. 222). O referido “status e treino do mestre de escola” era “repleto deambigüidades” (p. 71). Tinha “um quê de mistério” no fato de ela encon-trar “tão poucas” cópias manuscritas da “mais simples cartilha primáriainglesa” (p. 44). E ela só conseguiu encontrar provas “não muito satisfa-tórias” do “uso de cartilhas inglesas nas escolas” (p. 45).

O comentário de Moran sugere que existia uma tensão entre a(des)organização do ensino e as (claramente definidas) estruturas de es-colarização. Embora a “confusão” dos deveres docentes não fosse“incomum durante este período”, Moran observa que é possível perceber“níveis separados de educação e mesmo escolas separadas” naquele mo-mento (p. 56). No geral, parece que Moran projeta seus dados sobre umpano de fundo interpretativo de ordem social e estabilidade social. Outroscomentadores, entretanto, talvez se sentissem mais à vontade utilizando osmesmos dados como índices de fluxo social e transitoriedade institucional.

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A ainda nascente e problemática estabilidade das escolas medievaisé, contudo, sensivelmente reconhecida em Education and Society in Me-dieval and Renaissance England (Orme, 1989). Orme tinha bastanteconsciência, por exemplo, de que “só depois da conquista normanda, nofinal dos séculos XI e XII, é que as escolas começam a ser mencionadascom instituições separadas em lugares particulares e com número signifi-cativo” (pp. 3-4). No entanto, como Orme também aceita – e Morandemonstra – tais agências educacionais não foram distinta ou segura-mente localizadas no interior de seu tecido social. “A maioria dos pensa-dores e escritores medievais”, conclui Orme, “não conseguiu distinguiras crianças como um grupo separado, ou a educação como um processodistinto da vida humana em geral” (p. 156).

Moran e Grendler descobriram evidências valiosas; mas depararam-se com manifesta dificuldade em divisar e apresentar suas interpretações.Escreveram com confiança sobre uma época em que as manifestações daescola e da escolarização estão desigualmente delineadas no registro his-tórico. Durante aquele período, por exemplo, estava apenas começando atornar-se justificável distinguir o ensino doméstico do ensino escolar.Referências ao professor e ao ato de ensinar, portanto, não devem serlidas como referências à escola e à escolarização. Nem a diversidade naexistência de escolas deve ser equiparada a um sistema escolar com ad-ministração centralizada. Em suma, a prática educacional medieval nãodesfrutou da infra-estrutura conceitual que dá suporte ao arcabouço daescolarização moderna.

Foi Arthur Francis Leach a “pedra de toque” que contrabandeou talinfra-estrutura para a interpretação (em língua inglesa) da provisão es-colar na Idade Média. Suas pesquisas de trinta anos sobre The Schoolsof Medieval England (Leach, 1915) “constituíram a base de todo o tra-balho posterior sobre a escolarização medieval e na Reforma até a pu-blicação de English Schools in the Middle Ages, de Nicholas Orme, em1973” (Moran, 1985, p. 4). No entanto, como observa Moran, Leachdeparou-se com o mesmo tipo de dificuldades interpretativas que pertur-baram gerações de seus sucessores intelectuais. As alegações de Leach,sugere ela, “nem sempre eram dotadas de suficiente apoio de suas fon-tes” (p. 3). Ele, também, fora compelido a explicações anacrônicas, ba-

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seadas na ordem e na estabilidade sociais. Pode-se imputar a ele, porexemplo, a defesa da existência, durante séculos, de uma escola a partirde “um ou dois registros”; da mesma forma como era “inclinado” aafirmar a “existência de uma escola elementar” quando os documentosoriginais referiam-se exclusivamente ao “ensino de jovens crianças” (p. 5,grifo meu).

As evidências reunidas por Leach e seus sucessores iluminam as prá-ticas e as mudanças educacionais durante a Idade Média. Mas a impli-cação – patente nos títulos de seus livros – de que tais mudanças tambémconstituíram a institucionalização e sistematização em bloco da práticaeducacional é, a meu ver, um injustificado reducionismo do registro his-tórico. A atividade docente fora conscientemente organizada e debatidadesde os tempos clássicos. Mas a consolidação e a persistência de taisatividades – “separadas da vida humana em geral” (grifo meu) – foi umprocesso diferente. A história da escolarização não é idêntica à históriada educação; esse é um vigoroso argumento defendido por outra análiserevisionista expressa no livro The Social Origins of English Educationde Joan Simon (1971).

As escolas da Inglaterra medieval devem ser lembradas, talvez, nãocomo o sementeiro cuidadosamente organizado da escolarização moder-na mas, ao contrário, em termos evolucionários, como os chamados “es-portes” não domesticados (variações acidentais ou anormais). Essasescolas foram muito mais precursores mal nutridos do que robustos arautosda escolarização moderna. Não sobreviveram intactas. Ao invés, foramsignificativamente obliteradas por outros desenvolvimentos que são o temado restante deste artigo.

Este ensaio, então, tenta evitar o conservadorismo limitado dos rela-tos convencionais. Ele examina as fontes secundárias que vão desde adescoberta de uma versão completa de Institutio oratoria, de Quintiliano,no início do século XV, até o aparecimento de A New Discovery of theOld Art of Teaching Schoole, de Hoole, em meados do século XVII. Noprocesso, presta-se particular atenção à teia de ênfases educacionais –tais como o livro-texto, o currículo, a catequese, a disciplina e a didática –que conferiram identidade cultural tanto à escolarização moderna quantoà sociedade européia moderna.

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O Status Mutante do Conhecimento

Um dos principais processos de remodelação, trazido peloRenascimento, foi a reconfiguração da base do conhecimento educacio-nal da Academia. Fontes clássicas (p.ex. Aristóteles, Cícero) foramressuscitados, revisados e, acima de tudo, retrabalhados. Ostensivamen-te, essa renovação tinha um propósito conservador – a fiel recuperaçãode textos corrompidos por repetidas cópias e/ou más traduções medie-vais. Os tradutores medievais trabalhavam de acordo com o princípioverbum et verbo (palavra por palavra). Suas convenções, entretanto,foram contestadas pelos gregos que se estabeleceram na Itália (p.ex.Manuel Chrysoloras, c1350-1414), por italianos nativos que haviamestudado na Grécia (p.ex. Guarino de Verona, 1374-1460) e por pes-soas associadas aos tradutores gregos recém-chegados (p.ex. LeonardoBruni, c1369-1444). Bruni, por exemplo, procurava representar frasesinteiras em grego na forma de construções aceitáveis em latim; e rejei-tava a transliteração de termos técnicos gregos em neologismos medie-vais ou latim barbarizado.

Além disso, uma maior atenção às fontes também conduziu a umaconsciência mais aguçada das circunstâncias que cercavam sua criaçãooriginal. Honrar a elegância e a retórica da voz de um autor era, assimacreditavam os tradutores renascentistas, essencial à preservação do sig-nificado de um autor. O grego clássico, na opinião deles, merecia tradu-ção para o latim clássico e para o medieval. E essa autoconsciência eraclaramente articulada nos comentários, anotações e até mesmo nas “po-lêmicas”, que acompanhavam seus esforços humanistas (Schmitt, 1983,p. 64).

A influência dessas novas traduções e práticas afins foi multiplicadapelo advento da imprensa de tipos móveis (ver, por exemplo, Eisenstein,1979). No final do século XV, praticamente todo o corpus de Aristótelestinha, segundo Schmitt, sido “recém passado para o latim” e, no séculoseguinte, “foram feitas mais novas traduções de muitas obras e revisõesde traduções já existentes [...] do que durante todos os séculos anterioresjuntos” (1983, pp. 68, 70).

Mas a combinação das novas técnicas de impressão e das novas téc-

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nicas de tradução também teve uma conseqüência qualitativa. As basesracionais da tradução renascentista também transformaram gradativa-mente em intencionais as práticas de adaptação e retificação. Começa-ram a surgir textos não tanto em diferentes traduções mas também emdiferentes versões. Foram produzidas, por exemplo, na forma de edições,exposições, paráfrases, catecismo e compêndios paralelos. De fato, mui-tas dessas versões também foram produzidas para “uso na sala de aula”(Schmitt, 1988, p. 792), presumivelmente por tradutores que tambématuavam como professores.

Esse último desenvolvimento é de suprema importância educacional.De acordo com Schmitt, as variantes de sala de aula (p. ex. sumáriosestruturados) tornaram-se “cada vez mais populares durante fins do sé-culo XVI e dominaram os cem anos seguintes”. Além disso, os comentá-rios de Schmitt implicam que essas novas variantes também começarama impingir-se sobre a linguagem da prática educacional. Sua introduçãocorrespondeu a uma redefinição do termo cursus (curso) o qual, sugereele, foi “utilizado nesse sentido, pela primeira vez, no final do séculoXVI” (1988, p. 792). Não é, portanto, acidental que a palavra cursustenha tomado tal forma simultaneamente à entrada da palavra “curriculum”no léxico educacional (ver Hamilton, 1989, 2º capítulo).

Pedagogia e Didática

Como já foi indicado, os textos do século XVI vieram a se organizarvisando uma gama de finalidades educacionais. Tais textos podem serdispostos na forma de um continuum. Numa extremidade estão os textoseducacionais destinados aos pais; ao mesmo tempo, no outro extremo,estão os textos reformulados para os professores escolares. Os primeirosatendem a propósitos pedagógicos (isto é, voltam-se à criação dos fi-lhos); ao passo que os últimos podem ser caracterizados como dispositi-vos didáticos (isto é, destinam-se à instrução). Na mesma linha, ainda, osmateriais elaborados visando a auto-instrução podem ser designados comotextos autodidáticos. Com efeito, a inovação educacional do século XVIpossibilitou uma distinção entre a pedagogia e a didática.

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A obra A New Discovery of the Old Art of Teaching Schoole (Hoole,1660) encaixa-se inequivocamente no gênero didático. Mas não é tãofácil categorizar muitos de seus precursores. As práticas pedagógicas edidáticas se sobrepuseram e foram facilmente fundidas nos escritos edu-cacionais do século XVI. Essa não separação dos conceitos educacio-nais, já abordada com relação ao uso no início do Renascimento dostermos schola e classis, é ilustrada num relato germinal das práticaseducacionais do século XVI – William Shakespeare’s Small Latine &Lesse Greeke, de T.W. Baldwin (1944). O título de Baldwin advém deBen Jonson (1572-1637) que alegava que Shakespeare tinha recebidoapenas uma educação clássica perfunctória (daí o uso de “pouco latim emenos grego”). Jonson acreditava, portanto, que a Shakespeare faltavaa erudição esperada de alguém que havia concluído um curso escolar(ver Baldwin, 1944, vol. 1, pp. 2, 9).

O obra de Baldwin, com 1525 páginas em dois volumes, reavalia adeclaração de Jonson contra o pano de fundo das práticas e influênciaseducacionais quinhentistas:

Se Shakespeare freqüentou ou não um único dia sequer uma escola me-

nor ou um liceu, o certo é que essa escola e esse liceu exerceram uma pode-

rosa influência modeladora sobre ele, já que influíam – e seu intuito era

esse – sobre a sociedade como um todo em sua época. Diretamente e através

desses outros instrumentos, Shakespeare seria moldado [p. vii].

Baldwin conclui que “carece absolutamente de importância o fato deShakespeare ter ou não concluído o liceu” (vol. 2, p. 663). Se absorveu“do ar” ou adquiriu através de “exercícios formais” ou da “bagagemacumulada” do Renascimento e da Reforma, tais idéias difundiram nãoapenas práticas escolares mas também cenários culturais “menos for-mais” do mesmo período (vol. 2, pp. 663-664).

Provas adicionais do entrelaçamento da pedagogia com a didáticapodem ser encontradas em outras publicações do século XVI. A proble-mática diferenciação entre formação e escolarização é evidente, por exem-plo, no títulos e conteúdos de obras tais como Boke Named theGouvernour (1531) e The Education or Bringing Up of Children (c1533),

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de Thomas Elyot, Scholemaster (1570) de Roger Ascham e The FirstPart of the Elementarie (1582) de Richard Mulcaster.

Os livros de Elyot e Ascham “pretendiam ser guias para a corretaeducação dos filhos da nobreza e dos fidalgos” (Pepper, 1966, pp. vii-viii). Traziam uma dimensão normativa (ou reformativa) às discussõessobre formação. Apesar do título de Ascham, tais argumentos estavamdistantes da organização das escolas. Nem Elyot nem Ascham jamaishaviam sido “mestre de um liceu”. De fato, de acordo com Pepper, a“primeira” obra a abordar o currículo das escolas comuns inglesas numa“peça sistemática de exposição detalhada “ (p. vii) surgiu um pouco de-pois e era The Education of Children in Learning de William Kempe(1588).

Mulcaster, em contrapartida, parece ter ficado a meio termo entre aspráticas pedagógicas e didáticas. Seguiu o mesmo estilo prescritivo – osdos guias para a “correta” educação – tal como Elyot e Ascham. Noentanto, apesar de atuar como mestre-escola em Londres por cinqüentaanos, “em lugar nenhum” Mulcaster “descreveu [...] o real currículo dasescolas nas quais lecionou “ (Pepper, 1966, p. viii).

A dificuldade de interpretação do uso quinhentista do termo “mestre-escola” também cerca a palavra grega pedagogus. Deveria ser a mesmatraduzida, por exemplo, como servo, mentor, tutor ou professor? Seráque denota um servo doméstico que cuidava da criação de um jovem?Tais servos tinham responsabilidades como mentores (isto é, de aconse-lhamento)? Ou poderiam encarregar-se da instrução didática ativa da-queles sob seus cuidados? Na prática, esses papéis provavelmente sesobrepunham – como era o caso, por exemplo, quando os servos nãoapenas acompanhavam os jovens até colégios distantes mas também par-ticipavam – como acompanhantes, mentores, tutores e instrutores – noprogresso de seus estudos colegiais (ver, por exemplo, Grafton & Jardi-ne, 1986, pp. 149-157).

Essas dificuldades de tradução, entretanto, não precisam ser encara-das como resultantes de uma confusão conceitual. Ao contrário, são umafunção de circunstâncias educacionais fluidas – ou assimétricas – doséculo XVII. Práticas duradouras de formação de crianças (isto é, peda-gógicas) tornaram-se cada vez mais sujeitas à interferência de pressu-

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postos didáticos que, por sua vez, emergiam juntamente com a reformu-lação das idéias clássicas e de sua incorporação aos textos e práticas decolégios e escolas quinhentistas. Gradualmente, as práticas pedagógicas(o ensino como criação) tornou-se sinônimo das, e a ser dirigida pelas,mais novas práticas didáticas do ensino escolar (o ensino como instrução).De fato, como discutiremos em seguida, poderia haver uma significativadiferença entre os fundamentos autodidatas da Ratio studiorum (1599)dos jesuítas e o didatismo da Great Didactic de Comenius (1632). ComoMcLintock deturpadamente observou, “Comenius não se preocupava emnada com o estudo, o ensino e o aprendizado eram o seu objeto”(McLintock, 1972, p. 178).

Método e Disciplina

A reorganização dos textos, juntamente com a priorização da didá-tica, também pode ser avaliada em contraposição à importância con-temporânea de duas outras noções – as de método e disciplina. Areorganização dos textos, para fins quer pedagógicos quer didáticos,significou que o aprendizado e/ou o ensino tornaram-se “metodizados”(Hoole, 1660, p. v). A metodização proporcionou um atalho ao aprendi-zado, assim como, seguir uma seqüência metodizada era seguir um cursusou currículo. Desse modo, o traço definidor de um cursus ou currículoquinhentista não era seu conteúdo (derivado dos textos) mas seu carátermetódico – a composição e a ordenação que faziam parte de sua remo-delação.

Por esse motivo, houve uma íntima associação entre metodização edisciplina. Originária de uma raiz latina preocupada em “fazer com que”o aprendizado “entrasse” na criança, a disciplina denotava, segundoHoskin (1990, p. 30), o “duplo processo” de “apresentar um determinadoconhecimento ao aprendiz, e […] o de manter o aprendiz diante de talconhecimento”.

Nos séculos XVI e XVII, essa dualidade parece ter-se tornado maisexplícita. Mesmo correndo o risco de uma excessiva simplificação: oRenascimento contribuiu para a idéia de que disciplina relaciona-se à

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apresentação do conhecimento – sua remodelação de acordo com o méto-do e a ordem; ao passo que a Reforma possibilitou uma variedade derazões para manter os aprendizes diante de tal conhecimento. Desneces-sário é dizer que tais significados diferentes sobreviveram até o séculoXX – ao ponto de uma disciplina denotar tanto um corpo de conhecimen-tos quanto uma modalidade de coibição.

No século XVI, portanto, disciplina e didática tinham uma preocupa-ção conjunta no estabelecimento da ordem e na promoção do método.Podiam referir-se à promoção de uma disciplina mental ou ao inculcar deuma disciplina corporal. Juntos, esses elementos prefiguravam a modela-gem de corpos dóceis, isto é, passíveis de serem ensinados (Foucault,1979, pp. 135 e ss.). No século XVII, também, as concepções de disci-plina eram estendidas do corpo físico para o corpo político. A disciplinaera tão relevante para a emergência da escolarização moderna quanto oera para o surgimento do “Estado secular soberano como estrutura domi-nante na sociedade” (Collins, 1989, p. 7).

A ascensão do protestantismo oferece a ilustração dos duplos proces-sos de disciplina mental e corporal. A “força dominante” na herança inte-lectual de Martinho Lutero, “eclipsando todas as outras influênciaspós-bíblicas “ (Dickens, 1976, p. 83), era a teologia de Agostinho deHippo (354-430). O entendimento herdado de Agostinho era o de que aQueda de Adão tinha tornado a humanidade impotente para salvar a simesma. A humanidade sofria, portanto, de uma “doença moral hereditá-ria” (Cross, 1957, p. 107) que a tornava “irremediavelmente corrupta [e]moralmente incapacitada” (Dickens, 1976, p. 84).

Lutero (1483-1546) veio a compartilhar a visão de Agostinho de quefaltava à humanidade os recursos para superar tal corrupção moral eespiritual. Esse déficit era retificado, em termos luteranos, pelo dom deDeus da retidão ou da fé. Além disso, os luteranos chegaram a acreditarque a aquisição instantânea da fé – ou a justificação pela fé – tambémprecisava ser complementada por um processo secundário e permanentede limpeza – a santificação. Numa formulação popularizada por PhillipMelanchthon (1497-1560), a justificação é o processo em que se é decla-rado reto e a santificação é o processo em que é tornado reto (McGrath,1994, p. 387).

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Essas idéias sobre justificação e santificação foram ampliadas nosescritos de João Calvino (1509-1564) a respeito da “dupla graça”:

Primeiro, a união do crente com Cristo conduz diretamente à justificação

do mesmo [...] Em segundo lugar, por conta da união do crente com Cristo –

e não por conta da sua justificação – o crente inicia o processo de tornar-se

como Cristo através da regeneração. Calvino assevera que tanto a justifica-

ção quanto a regeneração são resultantes da união do crente com Cristo

através da fé [McGrath, 1994, p. 388].

Assim, entre os protestantes, havia uma íntima associação teológicae histórica que cercava as noções de santificação, regeneração e reforma.A reforma da vida social – com relação às escrituras (a palavra de Deus),a observância religiosa (a fé) e a promulgação da retidão (santificação) –era também a reforma (ou regeneração) das instituições sociais. Não sur-preende, portanto, que os reformadores luteranos trabalhassem visando a“inculcação de disciplinas práticas” que santificariam “o membro útil daigreja e da sociedade” (Strauss, 1976, p. 77).

A organização integrada da vida pessoal, da vida familiar e da vidapública para atender aos propósitos disciplinares sobrepostos de ordemmental, corporal e social é um traço permanente da Europa nos séculosXVI e XVII. Luteranos, calvinistas e católicos reformularam sua heran-ça cristã, derivada de Agostinho, de Tomás de Aquino e outros. Criarame seguiram uma ampla estrada intelectual, pavimentada com ordenseclesiais, ordens escolares e ordens políticas. Essa estrada foi o elo deunião entre a fundação calvinista da Academia de Genebra em 1559; apublicação do esquema de estudos jesuíticos católicos (Ratio Studiorum)em 1599; a disciplina jansenista (cf. agostiniana) católica das PetitesÉcoles de Port Royal, de Paris no século XVII (ver Barnard, 1913); oaparecimento, em inglês, de A Reformation of Schooles de Comenius(1642); e, no mesmo ano, da declaração feita pelo filósofo político, ThomasHobbes (1588-1679), de que o objetivo da “ciência civil” era investigaros “direitos dos estados e os deveres dos súditos” (apud Skinner, 1978,vol. 2, p. 349).

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O Ensino e a Pregação como Estilo de Expressão

Mas se era preciso inculcar uma disciplina, como poderia a mesmaser estruturada? O que, em termos quinhentistas ou seiscentistas, cons-tituía o método e a ordem de uma disciplina? O modelo era efetivamen-te fornecido pela disciplina clássica da retórica. Currículos e disciplinasdeveriam ser apresentados, isto é, dados de uma maneira muito pareci-da com um discurso ou sermão (ver, por exemplo, Howell, 1956,passim).

A ocorrência desse uso é, de fato, evidente no Elementarie de Mulcaster(1582). Sua “promessa” era a de “auxiliar os pais em seu desempenhovirtuoso e assistir aos professores em sua orientação aprendida, que tan-to o estilo de exposição em um pudesse proceder com ordem como arecepção no outro pudesse com prazer se beneficiar”. Além disso,Mulcaster priorizava os destinatários de sua obra, os mestres acima dospais: “Proferi meus préstimos em geral a todos eles, mas em primeirolugar de todos os eles ao professor primário” (Mulcaster, 1582, p. 5, eminglês moderno).

É por essa razão – uma vinculação entre o ensino, a pregação e aoratória – que o Institutio oratorio de Quintiliano (c35-c100 d.C.) rece-beu atenção detalhada nos séculos XV e XVI. O Institutio de Quintilianoera uma elaboração dos ideais educacionais e dos modelos práticos de-fendidos por Cícero (106-43 a.C.). Seu pressuposto essencial era o deque a criação de oradores deveria se dar ao redor de uma educaçãometodizada e disciplinada em argumento e eloqüência. No Renascimento,também se aceitava que tais artes práticas fossem igualmente bem apro-priadas ao progresso de “poderosas e lucrativas profissões” (Grafton &Jardine, 1986, p. xiii).

Mas a inserção dos modelos de Cícero não era simplesmente umaquestão de injetar idéias frescas no pensamento educacional da Renas-cença. Era um processo muito mais dilacerador. Representava umreordenamento do trivium – o estágio preparatório das artes liberais (asaber, gramática, lógica e retórica). Durante a Idade Média, a gramáticae a lógica (também conhecidas, na época, como dialética) haviam recebi-do particular atenção. Mas os argumentos de Cícero conduziram ao des-

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locamento da lógica pela retórica. Isto é, a lógica do argumento era con-siderada mais útil do que a lógica da prova. Como observa McConica:

[...] por toda a Europa do Norte, as faculdades de artes passavam das disci-

plinas especulativas e dialéticas para as concepções orais e retóricas da

linguagem; a lógica sobrevivia em todos os lugares, mas era a lógica da

assembléia e do átrio de debates, ao invés da lógica do filósofo da lingua-

gem [1983, pp. 42-43; ver também McConica, 1979, p. 294].

Inspirados pelos preceitos ciceronianos, acadêmicos e estudantes aban-donavam a atividade medieval da disputa e, em seu lugar, elaboravam,ensaiavam e apresentavam declamações. E a compilação de tais decla-mações era o centro de sua educação, baseada no método e na ordenação.Inspirados, talvez, pelo aforismo de Cícero – “a pena, o melhor e princi-pal professor de oratória” (ver Kennedy, 1962, p. 117) – tais esforçostambém eram precursores dos textos de seminário, ensaios estudantis esociedades de discussão que ocuparam subseqüentes gerações de alunos(Costello, 1958, pp. 31-4).

Mas qual era a relação entre a retórica e a oratória? Escrito na épocaantiga de Cícero, De oratore (55 a.C.) é muito mais do que um manual deretórica. As habilidades retóricas não deviam ser aprendidas no vácuomas, ao contrário, deveriam ser a culminação de uma educação muitomais abrangente – a puerilis institutio (o treinamento dos jovens) conven-cionalmente desfrutada pelos privilegiados jovens romanos (ver Gwynn,1964, passim). Para elaborar uma oração de mérito, um orador precisavaconhecer todo o campo do saber, e não simplesmente as regras de umaapresentação elegante e persuasiva.

Institutio oratoria de Quintiliano foi publicada 140 anos depois deDe oratore. Baseava-se nas experiências do autor quanto à ocupação deuma “cadeira pública (publicam scholam)” em retórica latina (Gwynn,1964, p. 182). A forma dessa posição não é clara. Smail descreve a posi-ção de Quintiliano como “Professor de Retórica”, uma posição que era o“primeiro reconhecimento oficial da responsabilidade do Estado em ma-téria de instrução pública” (1938, p. vi). Quintiliano ocupou esse cargodo ano 70 a 90 d.C., durante os quais ele não apenas atuou como profes-

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sor, mas também como “suplicante” em casos jurídicos, experiências quevieram a se tornar “ricas histórias de conhecimento e experiência práti-cos” (p. vii).

O título da Institutio oratore, que pode ser traduzido como A Educa-ção de um Orador, o separa de manuais mais restritos voltados às artesretóricas. Para Quintiliano e Cícero, um orador não era simplesmentealguém versado na limitada arte da retórica mas, nas palavras (traduzidas)de Quintiliano, um homem dotado de instrumentos suficientes para levar:

uma vida reta e honrada [...] [um] cidadão ideal, apto a assumir sua parte na

condução dos negócios públicos e particulares, capaz de governar cidades

por meio do seu sábio conselho, de estabelecê-las sobre uma fundação segu-

ra de boas leis e de aprimorá-las através da administração imparcial da

justiça [Citado por Smail, 1938, p. 5].

A tais ideais – em seus originais, na tradução ou em variantesretrabalhadas – apelavam os humanistas renascentistas os quais, por suavez, os transportavam para as práticas de pregação e de docência nosséculos XV e XVI. Um dos primeiros tratados em inglês devotados “ex-clusivamente” à arte da pregação foi originalmente escrito em 1555 porum teólogo protestante “influente” (André Gerhard). Tendo surgido ini-cialmente em latim, uma versão em inglês apareceu em 1577 sob o títuloThe Practise of Preaching, Otherwise called the Pathway to the Pulpit:containing an Excellent Method How to Frame Divine Sermons. Comoobserva Howell, a obra de Gerhard baseava-se na “retórica de Cícero”mas reformulada de maneira tal a demonstrar uma “consciência da dife-rença entre o orador e aquele que fala no púlpito” (1956, pp. 110-112).

Outro elo entre a oratória e a atividade docente é sugerido por umconjunto incompleto de sinopses de declamações, geralmente atribuído aQuintiliano, conhecido como Declamationes minores. Mesmo desconsi-derando-se a autoria, mais da metade das declamações resumidas cons-tantes nas Declamationes minores são acompanhadas por um sermo(plural: sermones). Esses, dentre outras coisas, compreendiam suges-tões práticas para a elaboração e apresentação de um argumento. Porexemplo:

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Se eu às vezes repito a mesma coisa diversas vezes em minhas análises

destas controversiae, lembre-se de que eu o faço em parte em nome dos

novatos, em parte porque a análise envolve repetição. Pois àqueles que não

estejam nas classes iniciais devem ser ensinados os princípios gerais que se

aplicam a todas as controversiae, e a análise (divisio) é especialmente im-

portante na espécie de controversia que estamos fazendo agora [Citado por

Gwynn, 1964, p. 217].

Não seria descabido supor que tal aconselhamento clássico sobre ométodo e a ordem também tivesse apelo aos professores do Renascimentoe aos pregadores da Reforma preocupados com o estilo de exposição – oudidática – de sermões e de currículos.

Retórica e Doutrina

Mas a atenção aos ideais clássicos também deu margem a disputasteológicas e divisões políticas. Se as idéias clássicas eram pré-cristãs(isto é, pagãs), como poderiam manter-se ao lado de fontes cristãs deautoridade? Uma tentativa de reconciliação originava-se na recuperação,no século XIII, das obras de lógica de Aristóteles. Albertus Magnus(c1200-1280) e um de seus alunos, Tomás de Aquino (1225-1274), inse-riram os princípios lógicos aristotélicos no quadro da teologia cristã me-dieval. Aceitaram que as doutrinas da fé cristã não poderiam, em últimainstância, ser estabelecidas pela razão. No entanto, simultaneamente,achavam que as práticas aristotélicas não tinham condições de confirmara teologia cristã com um cânon logicamente coerente de idéias.

O escolasticismo é o nome que se deu ao movimento medieval, quefloresceu entre 1200 e 1500, o qual enfatizava a validação racional dascrenças religiosas. Não obstante, a harmonização das idéias cristãs e pagãsnunca foi completa. Noções de uma “dupla lógica” ou “dupla verdade”sobreviveram, reconhecendo a “subordinação da verdade relativa da fi-losofia à verdade absoluta da teologia” (Dickens, 1976, p. 80; Kraye,1993, p. 17).

Disputas quanto à hierarquia e à subordinação jazem por detrás de

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um outro importante capítulo no fracionamento da doutrina teológica – ochamado “Grande Cisma”. A morte do Papa Gregório XI, em 1378, le-vou a pleitos rivais pela sucessão. Uma facção italiana apoiava Urbano VI,enquanto Clemente VII recebia apoio francês. Papas paralelos coexisti-ram até 1417; e, por um breve período ao redor de 1409, o Papado atraiutrês pretendentes. A disputa foi finalmente resolvida pela ascensão doPapa Martinho V, em si mesma uma conseqüência do Concílio de Cons-tância (1414-17). O “Grande Cisma”, entretanto, não eliminou a rivali-dade teológica. Interpretações conflitantes permaneceram. O poder daIgreja estava nas mãos dos Concílios Eclesiais ou do Papa?

Mais rivalidades teológicas surgiram das reformulações da BíbliaVulgata – a tradução latina autorizada, elaborada durante o século V.Um dos mais importantes humanistas, Desiderius Erasmo de Roterdã(c1466-1530), descobriu anotações no texto grego do Novo Testamentoque havia sido elaborado por Lorenzo Valla (1407-1457). Com o auxíliodessas notas, Erasmo publicou o primeiro Novo Testamento em grego,impresso em 1516. Pela primeira vez, teólogos e outras pessoas tinham amesma oportunidade de comparar um texto grego antigo com a versão daVulgata.

A versão de Erasmo não apenas questionou a exatidão da Vulgata,como também lançou dúvida sobre as práticas que se reivindicavam comopositivamente sancionadas pelas escrituras latinas. Por exemplo, a Vulgatafalava do casamento como um sacramentum – uma cerimonia que des-frutava do imprimatur de Jesus. Seguindo Valla, Erasmo salientou que apalavra original em grego tinha conotações mais fracas, significando sim-plesmente “mistério”. Outro exemplo relacionava-se a Maria, a mãe deJesus. A Vulgata considerava Maria como sendo “cheia de graça” o queimplicava que ela, também, era uma portadora significativa dos poderesde Deus. Novamente, Erasmo seguiu Valla e destacou que o original gre-go poderia facilmente significar apenas “alguém que tinha encontradofavor” (ver McGrath, 1988, pp. 39-40).

De modo geral, os tradutores humanistas injetaram conscientementeincertezas novas na doutrina cristã. Além disso, a invenção da imprensapropiciou a circulação de textos que chamavam a atenção para tais incer-tezas – como no caso dos “livros-texto, traduções e edições entusiastica-

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mente bem-sucedidas, constantemente reimpressas, revisadas e reeditadas”de Erasmo (Jardine, 1993, p. 5). A reformulação de textos para fortale-cer a disciplina do discurso público provocava todo o tipo de reaçõespolíticas contrárias. A eloqüência era uma prática que também servia àpolítica na prática. Nas palavras de McGrath, “para os humanistas, aretórica promovia a eloqüência; para os reformadores, promovia aReforma” (1988, p. 48).

Os esforços dos humanistas, portanto, foram transpostos para umavariedade de subdisciplinas paralelas. Essas surgiam das diferenças reli-giosas e geográficas mas, em conjunto, constituíam a ampla estrada daescolarização moderna. De fato, a escolarização moderna surgiu de umafusão parcial dessas diferenças. E o processo que acentuou esta fusãoeducacional foi a separação gradual das premissas teológicas e políticas.

Igreja e Governo

O rótulo “protestante” relaciona-se aos seis príncipes alemães e aosquatorze governos municipais que se opuseram ao fim da tolerâncialuterana tal como decretada pela Dieta de Speyer (1529). Como esse fatoilustra, as disputas da história da Reforma estavam vinculadas a unida-des geográficas e políticas que entraram em conflito com a autoridade doVaticano. Por sua vez, grupos separatistas começaram a dar atenção àarte do autogoverno e à manutenção de sua própria autoridade mundana.

Mas qual deveria ser a base de tal autoridade? Os debates luteranosdas décadas de 1520 e 1530 ilustram esse problema. Na medida em queos fiéis baseavam suas práticas na autoridade das escrituras, qual era opapel a ser desempenhado pelas instituições visíveis da Igreja? E qual eraa base teológica para a inserção de tais instituições entre a união do indi-víduo que crê em Deus? Tal questionamento levou Lutero a uma novaperspectiva quanto à Igreja. Devia ser uma fraternidade ou congrega-ção – o chamado “sacerdócio de todos os crentes” – sem nenhuma exis-tência real, exceto nos corações dos fiéis.

Essa nova interpretação permitiu que os luteranos rejeitassem as for-mas de autoridade que, anteriormente, tinham sido investidas nas estru-

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turas da Igreja. A Igreja não podia reger seus membros porque ela nãopossuía uma autoridade separada. A responsabilidade pela manutençãoda ordem social, através dos esquemas de santificação, foi cada vez maisadotada pelas instituições públicas, deixando à Igreja a responsabilidadepela pregação do Evangelho.

Depois de 1530, contudo, parece ter ocorrido uma completa “volteface” (Skinner, 1978, vol. 2, p. 74). Lutas no interior da igreja luteranaperturbavam a convivência entre a Igreja e as autoridades civis. As res-ponsabilidades supervisoras dos governantes e magistrados não podiamais ser garantida. Há uma disjunção entre Teologia e Política. A autori-dade política dos conselhos locais, tal como a autoridade dos ConcíliosEclesiais de Roma, pode ser legitimamente contestada – recorrendo-se aoutras autoridades (p. ex., as novas traduções da Bíblia).

As conseqüências dessa reação à autoridade política deram-se emdois níveis. Primeiro, divisões na “vertente dominante” ou “magisterial”da teologia da Reforma possibilitaram uma abertura para os luteranos“radicais”, alguns dos quais se encaminharam com o objetivo de fundar aIgreja reformada ou Calvinista (McGrath, 1988, p. 6). E, em segundolugar, Lutero deu seu apoio à mudança da responsabilidade educacionaldas instituições particulares para as públicas. Com efeito, as famílias oucongregações de fiéis deveriam ser organizadas de maneira a assegurarsua fé. Não é desprovido de significado, por exemplo, que Lutero tenhapublicado seu Pequeno Catecismo e o Grande Catecismo (para adultose crianças) em 1529 e, no mesmo ano, tenha escrito para Margrave Georgede Brandenburg sugerindo que “uma ou duas universidades” bem como“boas escolas primárias” fossem estabelecidas em “todas as cidades evilas” (cit. por Eby, 1971, pp. 98-99).

De fato, a Igreja luterana voltou sua atenção da pedagogia domésticapara a didática pública. Uma tal re-orientação tornou-se um traço forteno sistema político luterano, reunindo idéias sobre pregação, ensino esupervisão política. “Somente a educação pública”, sugere Strauss,

poderia introduzir estes traços de modo uniforme e equitativo; O destino do

Estado como um todo era, portanto, pensado como dependente do ensino

público da doutrina e da disciplina [1978, p. 152].

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O realinhamento protestante da prática política e teológica tambémtinha paralelos na prática educacional católica. Mas as reformas educa-cionais católicas e protestantes diferiam num aspecto importante. Luteroera influenciado por Agostinho, ao passo que a reforma católica era ins-pirada no tomismo. O século XVI foi efetivamente marcado por um for-talecimento da influência tomista: o Papa Pio V declarou Tomás de Aquino“Doutor da Igreja “ em 1567, incentivando o pensamento tomista a ga-nhar um “firme controle” sobre as práticas dos colégios e seminárioscatólicos pós-Reforma (Dickens, 1976, p. 80).

Tais diferenças podem ser discernidas na fundação e desenvolvimen-to da Companhia de Jesus. Depois de ver sua carreira de soldado profis-sional ser encerrada em virtude de ferimentos, Inácio de Loyola(1491-1556) assumiu uma carreira espiritual que o conduziu através deperegrinações, à vida de eremita e às universidades de Alcalá e Salamanca.Loyola finalmente dedicou-se aos estudos em 1528 na Universidade deParis. A Companhia de Jesus data de 1534. Loyola e seis companheirosfizeram votos de uma vida de pobreza, castidade, trabalho missionárionas cruzadas e absoluta obediência ao Papa. E a petição jesuíta ao Papa,aprovada em 1540, previa uma sociedade de clérigos que propagassem afé por meio de exercícios espirituais, sermões, obras de caridade e a ins-trução de crianças e outras pessoas nos princípios cristãos.

O “esporão do esforço missionário militante” dos jesuítas (Dickens,1968, p. 80) estava nos Exercícios Espirituais – um manual de medita-ções ordenadas mas transformadoras, sobre a vida e a morte de Cristo.Os jesuítas acreditavam que a fé não era alcançada tanto pela infusãoinstantânea de uma graça sobrenatural mas pelo repetido exercício dointelecto humano. Tanto os Exercícios Espirituais (elaborados antes de1535) quanto o manual escolar dos jesuítas, a Ratio studiorum (1599),refletem esse senso programático da disciplina (a saber, um caminho parao conhecimento).

Desse modo, talvez seja uma simplificação excessiva caracterizar aRatio studiorum como uma fonte didática. Certamente, ela foi fortemen-te influenciada pelas considerações ciceronianas sobre o método e a or-dem. Mas em termos históricos, é provavelmente mais razoável perceberos Exercícios Espirituais, a Ratio studiorum, a Reformation of Schooles

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de Comenius e A New Discovery of the Old Art of Teaching Schoole deHoole como um contínuo que exemplifica a substituição gradual da pe-dagogia pela didática. De fato, o didatismo associado de forma estereoti-pada à prática jesuíta pode ter aparecido mais tarde – através das tensõesque surgiram entre o trabalho missionário dos jesuítas e as prioridadespolíticas de seus patronos e patrocinadores seculares.

Da Fé à Cidadania

Nesse caso, contudo, as diferenças entre a teologia católica e a pro-testante foram menos do que permanentes. Uma considerável fertilizaçãomútua ocorreu à medida que teólogos, professores, pais e pedagogos re-petidas vezes mudavam suas filiações religiosas. Um renomado teóricodessa vertente cruzada foi Justus Lipsius (1547-1606) que foi luteranoem Jena (1572-74), calvinista em Leiden (1579-90) e católico em Louva-in (1592-1606). Efetivamente, Lipsius mudou de fé com tanta freqüênciaque acabou estigmatizado na imprensa como Lipsius Proteus – um ho-mem que, “com tanto desprendimento”, reformulava suas idéias em fun-ção de suas circunstâncias cambiantes (Grafton, 1983, p. 65). Apesar –ou por causa – de seu pragmatismo teológico, Lipsius promoveu umasignificativa contribuição ao pensamento do século XVI: a extensão danoção de disciplina ao domínio político.

Lipsius também recorreu a fontes clássicas – notadamente Cícero eSêneca. De Cícero ele tomou a importância da retórica como construçãoda argumentação racional; e, do estóico Sêneca (que também impressio-nou João Calvino), Lipsius tomou o pressuposto de que o domínio dasemoções poderia ser alcançado através da aplicação da razão. Através daligação com “várias centenas de correspondentes [europeus]”, Lipsustornou-se pivô de rede política “neo-estóica”, pós-Reforma, que operava“junto ao calvinismo e ao jesuitismo” (Oestreich, 1982, pp. 60, 68).

As implicações práticas do projeto neo-estóico foram auxiliadas pelaPolitics de Lipsius (1589) e através da produção dos manuais afins em1604: a Manductio e a Physiologica. A última consistia em apresenta-ções sistemáticas do estoicismo de Lipsius que foram utilizadas em apoio

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ao auto-estudo ou instrução (Morford, 1991, pp. 168-171). Dentre ou-tras coisas, a intervenção neo-estóica transpôs a disciplina do zelo pes-soal na virtude do dever público. Um apelo racional ao dever foiconsiderado para obliterar ou neutralizar o sofrimento (ou o ônus) quepoderia advir das atividades religiosas, sociais ou políticas. Em suma, oneo-estoicismo traduziu os deveres do indivíduo em responsabilidades dacidadania. Segundo Oestreich:

O cidadão ideal no mundo político, tal como retratado por Lipsius [...] é o

cidadão que age de acordo com a razão, responsável perante si mesmo, con-

trola suas emoções e está pronto para lutar [1982, p. 30].

Tais responsabilidades informaram gradualmente novas teorias doEstado Moderno – conceitualizações das relações que poderiam ser for-jadas entre diferentes segmentos de um grupo social. O absolutismo polí-tico, por exemplo, que cresceu a partir do neo-estoicismo sustentava quesomente um monarca forte poderia manter a unidade política e a pazmilitar.

Um dos mais influentes teóricos absolutistas foi Jean Bodin (1530-1596) que escapou por pouco do Massacre do Dia de São Bartolomeu(Paris, 1572). A crítica de Bodin de teorias políticas anteriores – inicia-da nos Six Books of a Commonweal (1576) – abordava a fragilidade daordem existente. O absolutismo, portanto, ganhou credibilidade políticamais ampla porque elevou a soberania política acima do sectarismo daReforma. Isto é, priorizava o poder do Estado sobre o poder eclesial.Além disso, a meta fundamental de um governo absolutista era o de“garantir a ‘ordem’ mais do que a liberdade” (Skinner, 1978, vol. 2,p. 287).

A busca do neo-estoicismo e suas vertentes foi marcada por trêscorolários ideológicos. Primeiro, o Estado devia tornar-se um locus deautoridade centralizada, disciplina pública e dever pessoal. Em segundolugar, a manutenção de tal poder político devia ser alcançada através deuma variedade de instituições formais (p. ex., o corpo diplomático e exér-citos permanentes); e, finalmente, as aspirações políticas do Estado Mo-derno deviam ser incentivadas através de uma matriz institucional

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patrocinada pelo Estado – a escolarizaração moderna (ver também Melton,1988, capítulo 1).

Conclusão

Esses foram, então, alguns dos tributários políticos e ideológicos quefizeram de A New Discovery of the Old Art of Teaching Schoole de CharlesHoole um novo paradigma da prática educacional. O objetivo de Hooleera “descobrir a velha arte de ensinar Eschola, e como a mesma podia seraprimorada em cada aspecto adequado aos anos e às capacidades de taiscrianças como são agora comumente ensinadas” (p. 1). Além disso, osesforços de Hoole para injetar método e ordem no ensino e aprendizadodestinavam-se a recorrer não somente aos pais mas também aos mestres-escolas, seus contemporâneos. Em relação a esses últimos, sugeriu ele, oensino escolar (neo-estóico) era “uma vocação muito necessária” – umaprofissão, “comandada por Deus”, cujos “grandes desencorajamentos [...]com fortaleza [poderiam] ser vencidos”. No entanto, Hoole reconheciaque tais argumentos morais eram insuficientes para compensar o “pesode ensino escolar”. Ao contrário, as “exasperantes” provocações do ensi-no escolar – de fato, sua “tortura diária” – poderiam ser melhor enfrenta-das por um procedimento técnico – a adoção do método e da ordem.

Porém, em última instância, o apelo de Hoole dirigia-se a outro lugar,ao “benefício da Igreja e do Estado”. Adequadamente organizado, o ensi-no escolar poderia alcançar o “treinamento” de crianças tornando-as “ins-trumentos úteis de muita valia [na Igreja e no Estado]”. E sem a sustentaçãopolítica proporcionada pelas instituições da escolarização, o “Estado”definharia, como “o corpo”, porque “nenhum membro desempenhariasua função correta” (pp. viii-xiv).

Mas Hoole não foi o único responsável por relatar essas idéias. Aemergência da escolarização não foi um processo linear e evolucionário.Como este artigo sugere, idéias desordenadas combinaram-se, extraídasque foram de diferentes sistemas complexos. A justaposição e interaçãodessas idéias gerou novas premissas e práticas. E a relevância dessa novaconstelação de idéias e práticas – a sopa primordial da escolaridade mo-

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derna – foi contemporaneamente reconhecida e divulgada por inovadoreseuropeus e norte-americanos, entre eles Hoole e Comenius. Seus esfor-ços abraçaram tanto a agregação de idéias (re)tiradas do passado e, con-seqüentemente, a criação de uma base de lançamento para a nova ordemmundial que projetavam para o futuro.

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A Idéia de Europa no Período Fascistaanálise de um livro de história da pedagogia*

Giovanni Genovesi**Tradução de Maria de Lourdes Menon***

O artigo propõe-se a evidenciar a imagem de Europa presente no manual de MicheleFederico Sciacca, O problema da educação na história do pensamento filosófico e peda-gógico. Após apresentar os critérios metodológicos que presidiram a análise, o textoevidencia: a falta de contextualização histórica; o entendimento superficial dos concei-tos de educação e pedagogia; a apologia da civilização cristã; a exaltação do historicismode Vico e do “espiritualismo italiano” em contraste com uma concepção anti-historicistado iluminismo; e a condenação do positivismo, em geral, em contraposição a uma ava-liação favorável do positivismo filosófico italiano. Em suma, na perspectiva do livroanalisado, a idéia de Europa não pode suscitar senão a imagem de competitividade e deperigo. O livro detém-se numa consciência provinciana de um nacionalismo mesquinhoque considera a Itália a nação mais civilizada da Europa.IDÉIA DE EUROPA; HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO; HISTÓRIA DA PEDAGOGIA; MANUAISESCOLARES.

The proposition of the article is to make evident the image of Europe present in theMichele Frederico Sciacca manual, “The education problem in the philosophical andpedagogical thought history”. After presenting the methodological criteria that managedthe analysis, the text points out: the lack of historical contexture; the superficialunderstanding of the education and pedagogical concepts; the Christian civilizationapology; the Vico historicism exaltation and the “Italian spiritualism” in contrast with ananti-historicist conception of enlightenment and the positivism, generally in contrapositionwith a favorable evaluation from the Italian philosophical positivism. Summarizing, inthe perspective of an analyzed book, the Europe conception can’t suggest otherwise theimage of danger and competitiveness. The book detains itself in a provincial conscienceof a poor nationalism that considers Italy the most civilized nation in Europe.EUROPE CONCEPTION; EDUCATION HISTORY; PEDAGOGICAL HISTORY; SCHOOLMANUALS.

* Texto do trabalho apresentado no I Congresso da SPICAE (Sociedade de história compara-da da educação) ocorrido em Cassino de 25 a 27 de novembro de 1999 sobre o tema “Aimagem e a idéia de Europa nos livros escolares de 1900 a 1945”. Publicado anteriomenteem Ricerche Pedagogiche, n. 132-133, pp. 1-12, 1999.

** Professor de Pedagogia e de História da Educação na Universidade de Ferrara, Itália.Diretor da revista Ricerche Pedagogiche e do Boletim do CIRSE (Centro Italiano per laRicerca Storico-Educativa), do qual é o atual presidente. Publicou inúmeros trabalhos naforma de artigos e de livros, entre os quais destacamos: Storia dell’educazione. Sinossidelle idee e dei costumi educativi e scolastici dall’antichità ai nostri giorni (Ferrara,Corso Editore, 1994) e Pedagogia: dall’empiria verso la scienza (Bologna, PitagoraEditrice, 1999).

*** Tradução de Maria de Lourdes Menon, professora de italiano em Campinas. Traduçãorevista por Dermeval Saviani.

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1. Considerações Gerais e Critérios Metodológicos

A imagem de Europa que se pode extrair de livros como aqueles dehistória da filosofia e da pedagogia é certamente sugerida por indíciosindiretos, como bem se pode intuir. A própria natureza desse tipo detexto não implica, certamente, um reconhecimento sistemático das con-dições políticas dos vários países dos autores que são confrontados. Ésobretudo o modo com que estes autores são apresentados que nos fazentender qual a concepção de Europa, e também do resto do mundo,que o compilador do livro tem e que, mesmo se de maneira quase sem-pre indireta, faz-se presente na organização de todo o trabalho. É claroque podem existir também parâmetros, por assim dizer, objetivos, comopor exemplo o do espaço concedido a autores de outras nações euro-péias com relação ao concedido aos italianos, a mesma articulação dediscurso com o fim de fazer emergir a influência que determinado autorteve nos fatos e no desenvolvimento do pensamento humano; mas estessão aspectos derivados do critério geral que anima o autor do livro.

Procurarei identificar tal critério expondo os resultados do examede um manual de história da filosofia e da pedagogia redigido porMichele Federico Sciacca1, para uso dos Institutos de Magistério du-rante os vinte anos do período fascista. Trata-se de um livro de históriada filosofia e da pedagogia, porque os programas da época previam aunião das duas disciplinas, uma vez admitido e não permitido que asegunda, a história da pedagogia, pudesse ser considerada uma disci-plina autônoma.

Fez-se a escolha de apresentar o livro de Sciacca2 porque o volume é

1 Michele Federico Sciacca, nascido em 1908, docente de história da filosofia naUniversidade de Pavia e posteriormente de filosofia no Magistério de Gênova,parte de posições atualistas para depois confluir precisamente na corrente católicade cunho tomista. O livro que aqui consideramos é Il problema dell’educazionenella storia della filosofia e pedagogia (para uso dos Institutos de Magistério),Napoli, Morano, 1941-XIX, volume único. As referências no texto serão assinala-das pelo número da/s página/s entre parênteses.

2 Esta obra foi publicada em português no Brasil, em 1966, pela Editora Herder,hoje EPU, em co-edição com a Editora da Universidade de São Paulo. A traduçãofoi feita por Antônio Pinto de Carvalho, doutor em Filosofia e em Letras, antigo

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editado no período em que já começa a decadência do fascismo. Estamosem 1941, a Itália está já há um ano em guerra e o clima social e políticoera tal que poderia já permitir aberturas manifestadas pela união dosintelectuais. De fato, o livro de Sciacca, ainda que não sem ambigüidadee com uma firme vontade de não se comprometer ou, de qualquer forma,de se camuflar, empenha-se em evidenciar enfaticamente os valores daIgreja e afastar o atualismo gentílico. Mesmo se depois retoma nas notascomentários à doutrina do fascismo.

Em suma, o manual de Siacca mostra-se linear e acessível do pontode vista dos estudantes, quase o ponto de chegada do livro-modelo, quefornece as noções essenciais previstas pelos programas à luz de poucosconceitos básicos, que não importa se são exatamente aqueles de educa-ção e de pedagogia. De fato, no livro fica bastante confusa a definição doque possa ser a educação e, em particular, a pedagogia, incorporada semmeios termos na filosofia.

Em relação aos critérios com os quais procedi ao exame do livro, elesse caracterizam pela atenção aos seguintes aspectos: a) atenção à contex-tualização histórico-social do autor tratado; b) tratamento pedagógico,setor que aqui interessa; c) espaço dado ao autor estrangeiro ou à corren-te estrangeira e às referências a eles feitas no desenvolver das váriasligações dos argumentos confrontados; d) interpretação com a qual foiapresentado o autor ou uma determinada corrente cultural educativa nãoitaliana e a conseqüente importância a ela atribuída com as relativasmotivações (se declaradas); e) coerência da análise dos vários autorescom base nos conceitos de educação e de pedagogia eventualmente ex-pressos pelo autor do manual. O uso cruzado de tais critérios de análiseforneceu-me elementos suficientes e, de qualquer forma, interessantes,

professor das Universidades de Coimbra e de Lisboa, a partir da quinta ediçãoitaliana: Il Problema dell’Educazione nella storia del pensiero filosofico epedagogico, publicada em 1960 pela Casa Editrice Giuseppe Principato, Milano –Messina (Itália). Ver, M.F. Sciacca, O Problema da Educação na história do pen-samento filosófico e pedagógico, 2 vols., São Paulo, HERDER/USP, 1966. Ao quetudo indica, houve alteração da primeira edição, que o autor do presente artigotoma por base, para a quinta edição, na qual se baseou a tradução brasileira. Comefeito, desta não consta o capítulo “A formação do homem no Estado fascista”nem o apêndice “A doutrina do fascismo de Benito Mussolini” (N. da T.).

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para chegar a supor qual imagem e qual idéia de Europa estão contidasno livro em questão e, sobretudo, se tal idéia e tal imagem estão em con-sonância com a apresentação de um texto de educação vista, neste caso,em sua vertente histórica.

2. A Falta de Contextualização Histórica

Em primeiro lugar é necessário observar uma grave lacuna de fundoque desvaloriza o livro, uma lacuna que no entanto, apesar de neste estarmuito acentuada, é encontrada também na maior parte dos livros atuais.Trata-se do fato de que a apresentação dos autores, individualmente, étotalmente desvinculada da situação histórica em que viveram. O pensa-mento deles, assim, é analisado in vitro, sem nenhum confronto com asproblemáticas sociais dos países onde viveram e atuaram. Isso evidente-mente corresponde a uma postura idealista, compartilhada, no fundo,também por quem não era idealista no sentido estrito, por quem reduz ahistória à história do pensamento, história das idéias, como se estas nãofossem originadas da realidade efetiva, mas fossem, elas mesmas, a rea-lidade ou, de qualquer modo, a única realidade que valesse a pena consi-derar. Tal posição leva a uma conseqüência por certo não positiva:aquela segundo a qual o mundo pode ser considerado, enfim, como umtodo único, até mesmo homologável por força de uma circulação de umúnico pensamento que o caracteriza. Um pensamento que se manifesta,certamente, de várias formas, mas que não demora em reconhecer-se sem-pre igual à sua raiz.

Se o mundo é o pensamento que o gera, não existem diferenciações erupturas em sentido próprio, mas somente diferentes facetas fenomênicasque não têm dificuldade em integrar-se, em se complementar e dialetizar-se. Nesta perspectiva há uma substancial unidade entre os homens, aomenos aqueles pensantes, de todo o mundo. Não tem nenhuma importân-cia se o representante daquela particular forma de pensamento é italianoou de uma outra nação da Europa ou outro continente. A intelligentzia,principalmente no nível mais alto, aquele que merece ser lido, interpreta-do e apresentado aos jovens, é unida por postulado, não tem barreiras

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nacionais: ela representa a própria essência do homem como tal, cosmo-polita e sem limitações territoriais.

Nesta ótica, Europa ou América, Ásia ou Austrália e assim por dian-te, não são outra coisa senão subdivisões convenientes, repartiçõesterritoriais metodológicas. Em princípio elas são o grande, único e unidocenário onde o Pensamento recita a sua parte de criador e de regente darealidade. Infelizmente neste alargamento desmedido da unidade do mun-do, perde-se a importância das caracterizações particulares, dos proble-mas que cada determinada realidade apresenta e que levam a hipóteses desolução que a eles estão estreitamente ligadas.

A ilusão de um Pensamento unificador elimina, inevitavelmente, asdiferenças substanciais que caracterizam o nascimento dos Pensamentosindividuais e acaba por isolar o problema de fundo: que a unidade não éuma doação, mas uma conquista, uma penosa reconstrução das váriaspedras que compõem o mosaico, tendo claro o desenho que este deveráassumir. Neste caso, que aqui interessa, o da idéia de Europa.

Digo logo que a consciência de tal idéia, de tal desenho, não existe nolivro examinado. Existe, claro, a idéia geográfica de Europa e, num outroâmbito, aquela de Europa que, na marcada visão antropocêntrica que acultura ocidental sempre cultivou, eleva-se naturaliter sobre todos osoutros continentes como sede de um antropocentrismo à enésima potên-cia, mas não tem a idéia de uma Europa que tende a harmonizar suasdiferenças e que possua verdadeira consciência de uma unidade própriaeconômica, política e, portanto, cultural. A unidade da Europa é, sobre-tudo, uma abstração, uma consolação acadêmica que faz retomar as suasorigens nos ideais do homem e da democracia grega que, no final dascontas eram somente expressões de uma pequeníssima porção não so-mente do orbe terráqueo, mas até da própria Europa.

O próprio império romano, quase sempre apresentado como ummomento de unidade do mundo conhecido, não era outra coisa senão aadesão, por várias razões que vão da força à tolerância por interesse, dediferentes povos que estavam, contudo, bem longe de acabar com as dife-renças das populações presentes, então, na mesma Europa. A fortiori,um mesmo discurso vale para o renascido Sacro império romano na épo-ca carolíngea, num mundo que, na própria Europa, tendia inexoravelmente

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a diferenciar-se, a nacionalizar-se, através de processos mais ou menoslongos e, de qualquer forma, a não reconhecer mais um único pólo deagregação.

Se a expansão do Cristianismo e o prolongado uso da língua latinana cultura ocidental pode dar ainda a ilusão de uma unidade, ao menosem âmbito europeu, no período do Humanismo e do Renascimento, tam-bém por uma circulação de idéias que se mostra favorecida não só pelouso do latim, mas também e, sobretudo, por um confirmado e conclamadoretorno às origens da cultura européia, de fato são exatamente esses mo-vimentos que vão acelerar a manifestação de tendências que já tinhamsido atraídas pela tardia Escolástica, que levam à particularização e àdiferenciação, em suma, a um processo de reivindicação da autonomia,no aspecto político e religioso, epistemológico e territorial. Praticamen-te, é justamente a partir do Humanismo que toma corpo de maneira subs-tancial um processo que torna claramente visível a necessidade de procurare de criar uma unidade naquilo que unido não é, porque nunca foi. Oproblema da unidade da Europa faz parte deste problema. Um problemaque não parece ser percebido, senão, em termos diferentes daqueles queprocurei aqui sintetizar e que agora veremos em maiores detalhes.

3. Educação e Pedagogia

A introdução do volume é dedicada a esclarecer o que deve ser enten-dido por educação e por pedagogia. Encara-se o problema em dois pará-grafos, um intitulado A importância da obra educativa (pp. 7-11) e ooutro, Necessidade da pedagogia (pp. 11-13). A postura é, como foidito, de tipo espiritualista: “Educação é formação da personalidade hu-mana livre, consciente do próprio valor de realidade espiritual” (p. 7). Oindivíduo que se educa adquire uma sempre “mais clara e mais compre-ensiva consciência de si” (ibidem). Somente o homem pode iniciar umprocesso similar, dado que, na visão antropocêntrica que sempre guiou eguia os teóricos da educação, ele só pode ser pessoa concebida semprecomo fim e nunca como meio (p. 8).

A obra educativa, que tende a “elevar os outros àquele nível de

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perfeição que acreditamos ser digno da nobreza da natureza humana”(ibidem), ou seja, iluminar a sua razão com a luz da verdade e os seuscorações com os valores do espírito, é imparcial. Ela diz respeito àpessoa como um todo, já que educando o seu espírito educa-se tambémo seu corpo; diz respeito a toda atividade humana e dura por toda vidaporque tende a perseguir um ideal de perfeição, do qual santos e heróissão os modelos mais próximos e que não pode nunca ser atingido. Parainiciar tal busca, a educação se faz necessariamente “comércio de al-mas, compenetrações de espíritos” (p. 10), in primis aquele do educa-dor e do educando os quais participam, ambos, do esforço de educar-se.O ideal de perfeição do mestre e do educando coincidem porque o edu-cando toma-o como seu, conscientemente, e o persegue em plena liber-dade com a participação do mestre. Por isso a educação é exercício daliberdade, “exercício que é disciplina interior e não acúmulo inútil deregras externas” (p. 11). Esta exaltação da liberdade acaba, depois, poranular-se, no momento em que se afirma, com passagens de claro cunhoidealista que o espiritualismo católico faz seu, que “o educando devetraduzir em si a obra do mestre, de modo que a sua vontade de se educare aquela do mestre de educar, tornem-se uma vontade única” (ibidem).São conclusões como estas, por outro lado carregadas de notável ambi-güidade, que definitivamente conseguem fazer conciliar uma idéia deeducação que quer se apresentar como caracterizada pela liberdade epela consciência, pelo esforço de tender ao ideal de aperfeiçoamento emcomunhão com os outros, com a instrumentalização efetiva da mesmaeducação no final do Estado fascista, a cuja doutrina se faz referência ese comenta em apêndice.

Com relação à pedagogia, é definida como a teoria que determinandoos fins e os métodos, estabelece e organiza a atividade educativa. Nestesentido a pedagogia, como teoria da educação, não é senão filosofia,“ou melhor, é reflexão filosófica sobre o momento educativo” (p. 13).Portanto, a pedagogia é filosofia mesmo não se resolvendo “sic etsimpliciter na filosofia” (ibidem). Com estas definições rápidas e pe-remptórias, que esclarecem pouco ou nada e que são de qualquer formainsuficientes para abordar a história de alguma coisa que não se conse-guiu claramente abranger, conclui-se a Introdução. Como se vê, ela não

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toca absolutamente o problema da idéia de Europa. Não obstante, lançaas premissas negativas afim de que os leitores para quem o livro se diri-ge, os alunos dos Institutos de Magistério, não possam formar para si,entre outras, uma idéia de Europa a partir de uma concepção lógica eargumentada da educação e da pedagogia. Se houver, e é isso que procu-raremos ver, ela será veiculada através de outras dimensões, culturais nosentido geral, políticas, de opinião, filosóficas também, mas não, certa-mente, educativas e pedagógicas.

4. A civilização como civilização cristã, melhor setambém italiana

Tem início, então, o excursus histórico e filosófico-pedagógico atra-vés dos séculos a partir da educação na antiga Grécia. Não é o caso deconsiderar em detalhe as várias passagens interpretativas que Sciaccarealiza ao apresentar, não obstante com forte acentuação dos aspectosfilosóficos, as várias fases da primeira parte (“A idade antiga”) e dasegunda (“A idade cristã e a Idade Média”).

É suficiente notar um aspecto que se revela fundamental porque é achave interpretativa de todo o volume e do qual nasce uma forte contradi-ção que o autor não sabe resolver ou da qual, talvez, não esteja conscien-te. Trata-se da forte ênfase com a qual Sciacca evidencia a contribuiçãoinovadora e, eu diria, regeneradora da cultura e da sociedade como umtodo, do Cristianismo nas suas duas componentes, de religião e de filoso-fia (Revelação). O Cristianismo, efetuando a passagem do intelectualismoao voluntarismo (p. 144), representa a descoberta do “homem como ob-jeto livre, isto é, como objeto moral” (p. 147) que encontra no amor ofundamento de si próprio e de toda a realidade. Um amor que, sustentadopela fé em Cristo e pela esperança da chegada do reino de Deus (p. 146),leva o homem à comunhão com todos os outros seres do universo numainspiração de ativa fraternidade.

Uma vez fixados estes parâmetros, Sciacca tem em mãos um instru-mento de aferição para avaliar os progressos da civilização humana,que como tal não poderá ser outra senão a civilização cristã. Cumpre-se

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uma operação que revela já plenamente a contradição de usar um princí-pio que iguala e irmana os homens como momento de discriminação dospróprios homens e do seu pensamento que, de qualquer forma, mesmono assunto religioso-cristão do autor, é sempre uma manifestação deDeus.

A idéia ecumênica do Cristianismo poderia dar o tom, exatamente,na definição de uma concepção de colaboração e de confronto dialéticoentre todos os povos da Terra e, portanto, da própria Europa no espíritode tolerância e de fraternidade. Não é isso que ocorre, dado que o autorse serve da idéia cristã para procurar, não sem uma vontade de naciona-lismo, o fio condutor dos traços de progresso da civilização. Assim, avalorização do Humanismo e do Renascimento é feita sobretudo sobre abase de um revigorado espírito cristão que resgata a cultura do pântanointelectualista no qual tinha se atolado a Escolástica tardia que, com oscotismo e, especialmente o occamismo “uma vez excluída a possibilida-de, mesmo limitada, de uma justificação racional do conteúdo da fé [...]esgota-se em discussões dialéticas e em sutilezas sofísticas, em um labi-rinto de problemas inúteis e irrisórios” (pp. 222-223). O Humanismo e oRenascimento, apresentados em continuidade com a Escolástica sobre-tudo pelo espírito cristão que os anima, são vistos por Sciacca como os“séculos de glória da civilização italiana”, ou seja, “como um dos mo-mentos mais exuberantes e fecundos do caminho da civilização cristã,que é a nossa verdadeira civilização” (p. 232). Praticamente a contribui-ção cultural do resto da Europa é colocada entre parênteses e, principal-mente, não só é minimizada, mas vista de modo negativo justamenteporque não é cristã, católica e romana, como a da Reforma.

Humanismo e Renascimento são apresentados, portanto, como fenô-menos refinadamente italianos, separados da Reforma protestante consi-derada um movimento substancialmente anti-humanista e, portanto,em tudo culturalmente inferior. Escreve Sciacca: “Renascimento e Re-forma protestante são dois movimentos antitéticos. Não têm em comumnem mesmo o comportamento de revolta contra o princípio de autoridadee de libertação da investigação de sua submissão à teologia. De fato [...]o Renascimento reivindica a liberdade da investigação não contra a auto-ridade teológica mas, mais que tudo, contra a autoridade aristotélica e em

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nome da distinção entre ciência e teologia (já consolidada por S. Tomás)e não de discrepância entre ciência e teologia com vantagem [...] de umae de outra. Portanto, o assim chamado individualismo do Renascimentonão tem nada a ver com o individualismo da Reforma, a qual com oprincípio do livre exame e a revolta aberta contra a Igreja, nega a essên-cia do Cristianismo e rompe com aquela Idade Média, da qual, ao invés,o Renascimento é uma continuação e um aprofundamento. Além disso, aReforma, tendo se constituído em religião positiva, é obrigada a cristali-zar-se nas fórmulas dogmáticas luteranas, isto é, numa escolástica piora-da [...] Especulativamente a Reforma é inferior ao Renascimento [...] Noobscuro misticismo protestante, que nega o valor da pessoa humana enega a santa fecundidade das obras [...] perverte aquele jubiloso Cristia-nismo que é próprio do Renascimento e que se exprime na ativa conquis-ta do Reino de Deus, na exaltação da ação guiada pela boa vontade,atenua-se o impulso em direção ao infinito e ao amor pelo belo, pelo bom,pelas coisas. A Reforma perdeu aquilo que há de mais fecundo na prega-ção de Jesus e desemboca numa visão pessimista que condena o homem ea natureza” (pp. 233-235, passim).

Com exceção da interpretação forçada e, de qualquer modo, apodíctica,não argumentada, apresenta-se uma visão não só contraposta, mas queclassifica os dois pólos em questão como inferiores e superiores semjustificativa e que quer somente enfatizar, com um forte sopro naciona-lista de fundo católico, o papel fundamental da Itália. Papel fundamen-tal que a Itália mostrará também no dar vida ao movimento daContra-reforma católica, continuadora “do espírito do Renascimento”e, contra “o individualismo e o subjetivismo da Reforma protestante”,empenhada “na restauração [...] daqueles valores éticos e religiosos quetornam possível a vida unida” (p. 254). Este tom nacionalista é repropostona opinião sobre Maquiavel, considerado um pensador de forte dimen-são ética quando lido pelo ângulo italiano, e ao contrário, como teorizador[...] da infâmia e da malvadeza política” (p. 244) se lido, como o é, peloângulo europeu.

É muito clara a intenção de reivindicar uma natural legitimidadeinterpretativa italiana em relação à má vontade que os europeus demons-tram em relação a nós.

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O Humanismo e o Renascimento são fenômenos culturais principal-mente italianos: “Na filosofia fora da Itália, não há nada que possa ser,mesmo de longe, a eles comparado” (p. 265). Deste ângulo, não se admi-ra que se declare com absoluta decisão que “Galilei e não Bacon é, assim,o verdadeiro fundador da ciência moderna” (p. 265). Todo o pensamentomoderno, aliás, continua Sciacca, “nasce com o Renascimento italiano edele obtém os seus desenvolvimentos” (ibidem).

O próprio Erasmo não apresenta, na visão de Sciacca, um pensamen-to educativo “muito original em comparação com aquele dos nossos me-lhores humanistas” (p. 277). Sem falar do Humanismo alemão que, comose viu, partia de premissas “ruins”, não fosse outro, para a nulla vishumanista de Lutero e bastante escassa de Melanchthon, e portanto des-tinado a ser efêmero (ibidem).

Estas afirmações apodícticas de tom nacionalista não parecem, cer-tamente, as melhores premissas, não somente para formar uma idéia po-sitiva de Europa, mas para considerar a contribuição que os seus váriospaíses deram para o desenvolvimento do pensamento.

Passadas de modo rápido e geral (cinco páginas escassas) as propos-tas de reforma educativa de Rabelais e de Montaigne, assim como aque-las da Reforma protestante da qual o autor não pode deixar de observaralguns resultados decisivos como a universalidade da instrução elemen-tar e o legítimo dever do Estado de encarregar-se da instrução do povo(p. 282), Sciacca dedica cinco páginas inteiras para “a obra educativada Contra-reforma” enaltecendo a obra dos Jesuítas para quem “a obe-diência absoluta, a mortificação de si próprio, compreendidas não comodevoção exterior ou preguiça espiritual, mas como disciplina interna,são também elas afirmações de personalidade e, como tais, educativas”(p. 286). Certamente o ideal de uma educação uniformizadora e caracte-rizadora, aquelas que importavam na Europa da época, renova a ilusãode uma unidade cristã no mundo ocidental. Ilusão porque o projeto diziarespeito somente aos poderosos, excluindo sistematicamente as classespobres e, sobretudo, porque se trata da contemplação de uma unidadecomo uniformidade sob a égide ética e política do catolicismo, e nãocomo orquestração da diversidade.

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5. Do Historicismo de Vico ao Anti-historicismoIluminista

A análise continua sem grandes problemas particulares, ou seja, aco-modando-se mais ou menos nos lugares comuns e “afogando” as consi-derações pedagógicas nas análises das idéias filosóficas dos vários autoressem se dedicar a uma reflexão sobre as conseqüências educativas, atéGiambattista Vico. O pensador napolitano é apresentado, mesmo que in-diretamente, como precursor do atualismo estadólatra gentiliano. É este,de resto, o “resultado de grande relevo” (p. 384) a que chega o historicismode Vico segundo Sciacca que, assim fazendo, pretende realizar duas ope-rações numa só: exaltar a força especulativa do pensador italiano e, aomesmo tempo, indicar que as nações civilizadas mais prósperas são aquelasgovernadas com espírito totalitário. Esta é, de fato, a verdadeira indica-ção que resulta de Vico. Escreve Sciacca: “O individualismo cartesianoque, levado às suas conseqüências se concluirá na Revolução Francesa, éabandonado e substituído pelo princípio da formação da personalidadehumana dentro da vida do Estado. O homem obedecendo à autoridade,obedece à sua mais profunda humanidade e realiza a sua liberdade”(ibidem).

E assim, sob uma dialética das idéias, organizam-se nações democrá-ticas e liberais como França e Inglaterra, que procuram inspirar a suaconduta nos princípios da Revolução Francesa ou da Carta Magna e daGloriosa Revolução. O verdadeiro Estado civilizado, moderno, desen-volvido e forte é aquele inspirado na autoridade e no totalitarismo. Aidéia de Europa que dialoga e interage, ao invés de discordar entre si euniformizar-se, está fortemente comprometida. Nesta linha, e aqui o au-tor demonstra certamente coerência, tem origem uma desvalorização detodo o período iluminista considerado anti-historicista, individualista econtra a autoridade da tradição representada pelo Estado e pela Igreja.“O princípio da autoridade – escreve Sciacca – era substituído por aque-le do individualismo, do indivíduo como centro de toda a vida social. Osiluministas, deste modo, exatamente para tornar o indivíduo independen-te, submetiam-no à sua própria natureza e o reduziam a um dos tantosanéis da engrenagem mecânica da vida social. O indivíduo, livre da auto-

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ridade do Estado e da Igreja, tornava-se escravo das cegas e infrangíveisleis que governam a vida humana. Além disso, arrancado de sua concretudee colocado contra a história, anulava-se em uma abstração. E o iluminismoprocessa a história. Todas as formas de organização social e política, asinstituições econômicas e jurídicas, as crenças religiosas consagradas pelatradição e que constituem o conteúdo da história são submetidas a umaimplacável revisão crítica, que deve liberar a humanidade do estorvo dopassado e constituir uma nova ordem, que traga perfeição e felicidade àsociedade. Os iluministas com o seu anti-historicismo, perdiam de vista alegitimidade e a força viva daquilo que é historicamente real [...] Assim,este movimento, principalmente na França, prepara a verdadeira rupturacom a história: a Revolução que conclui tragicamente, entre torrentes desangue e esplendores de armas, a idade das luzes” (pp. 387-388, passim).O movimento cultural, ao qual recorre a libertação dos povos do absolu-tismo déspota e irracional, e através do qual terá início a possibilidade deorganizar a Europa política e socialmente, de modo menos mesquinho emíope que aquele imposto pelos governos de famílias das dinastias rei-nantes, é tachado sem meios termos, sem nenhuma cautela e discerni-mento, como furiosa e brutal iconoclastia destinada somente a fechar-sede maneira truculenta e desastrosa.

As iniciativas filantrópicas a favor da escola, da laicização da esco-la, da difusão da instrução ao povo são registradas sem muita insistênciaou limitando-se a comentar que elas eram fruto de uma tensão utilitaristaque caracteriza todo o Iluminismo.

Com relação ao Iluminismo italiano, menciona-se Antonio Genovesee Filangieri, o primeiro movido mais pelo “sentido de concretude e derealismo” (p. 413) e o segundo pela “abstração racionalista” (ibidem),mas merecedores de menção porque em ambos “é vivo [...] o conceito dointeresse do Estado mais que do direito do indivíduo” (ibidem) que, toda-via, diferentemente de que indicava Rousseau, deve ser educado primeirocomo cidadão e depois como homem (ibidem). Finalmente, à formulaçãoeducativa “realista e anti-humanista” do Iluminismo (p. 416), que com oFilantropismo, havia influenciado também a Alemanha, “logo reagirá apedagogia do Romantismo” (ibidem).

O “intervalo” kantiano, ao qual são dedicadas trinta páginas e das

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quais uma é para mencionar rapidamente os “corolários pedagógicos”,permite a Sciacca “lançar-se” num terreno que o mantém, como filósofoe historiador da filosofia, mais coerente.

Além da rápida menção a Rousseau “sempre lembrado com origina-lidade” (p. 449) e da importância dada a Kant pela formação autônomada pessoa que está consciente de subordinar os seus atos “à lei do deverque coincide com a liberdade” (ibidem), não se acrescenta mais nada.Nada, por exemplo, sobre os problemas da paz, sobre aqueles da autono-mia da própria pedagogia, sobre as tensões cosmopolita e racionalistaque agitaram profundamente a reflexão kantiana com uma inspiraçãoque quer ser verdadeiramente de âmbito europeu e mundial pela sua men-sagem educativa de alta especulação moral para um eu que tende a colo-car-se como o verdadeiro legislador de si próprio.

Em resumo, não se entende, absolutamente, que o Iluminismo não seconcluía somente na revolução e no sangue das guerras napoleônicas(p. 451), mas também no grande esforço do criticismo kantiano que tentasuperar os limites do mecanicismo naturalístico intrínsecos à correnteiluminista e que, em grande parte, acabou por ser destorcido pelo idealis-mo romântico do período oitocentista alemão.

6. O Idealismo e o Espiritualismo do PeríodoOitocentista

O cosmopolitismo kantiano foi transformado em potente estímuloao nacionalismo; aquilo que em Kant é pura metodologia, função, comoo “Eu penso”, transforma-se, no idealismo, em Ente metafísico criadorque não possui mais dualismos porque tudo se resolve no Espírito ab-soluto. As portas estão agora escancaradas para a unificação forçada,para a eliminação das diferenças entre númeno e fenômeno, entre sujei-to e objeto, entre natureza e espírito: os dois momentos coincidem umavez que o Absoluto é a única nascente da atividade consciente. O deter-se sobre estes aspectos, interpretando-os não só como mecanismos, eespeculativos, mas como modalidades de interpretações da história hu-mana e como verdadeiras soluções da convivência política, não permi-

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te, certamente, ressaltar a possibilidade de se formar uma imagem deEuropa que se liberte da homogeneização imposta por força de um tota-litarismo imperante. Não é a Europa das nações que surge, mas simaquela submetida ao domínio de uma nação, aquela mais forte e maisorganizada a induzir a vontade de todos para que coincida com a insti-tuição ou as instituições que encarnam o Espírito absoluto ou no qualele se encarna.

Não entro no mérito das análises de Pestalozzi ou de Froebel, deSchopenhauer e de Herbart porque, além de comentar a interpretação queSciacca faz deles – uma interpretação, por outro lado, que não tem nadade original – não me parece que evoque nenhum aspecto relacionadodireta ou indiretamente à idéia e imagem de Europa, se não pelo aspectonegativo – mais acima ressaltado como lacuna geral – de ignorar qual-quer contextualização histórica das idéias dos autores citados.

Detenho-me, ao contrário, no capítulo dedicado ao “Espiritualismoitaliano” que Sciacca vê como portador de “um novo sopro de vida nanossa milenar civilização romano-católica” (p. 496). Partindo deste pres-suposto, Sciacca se lança em afirmações tais como “os nossos grandesespiritualistas do Risorgimento iluminam, com uma luz ideal, todo omovimento do pensamento europeu” (ibidem). Além de entrar no méritode tal dimensão, talvez procurando apurar realmente quanto do pensa-mento dos espiritualistas italianos tenha influenciado o pensamento euro-peu e, até mesmo quanto dele foi conhecido na Europa, parece-me queafirmações como estas acima citadas são pouco cautelosas, ditadas prin-cipalmente por uma alta dose de chauvinismo e, igualmente, por umavontade de injetá-las nos jovens leitores contra qualquer esforço no senti-do de orientar visões mais abertas e européias.

As grandes afirmações com relação à secular tensão da penínsulapor causa da unificação numa pátria independente e autônoma que ani-mam os escritos dos pensadores aqui considerados, e de modo mais exa-gerado os escritos de Gioberti, teriam necessidade daquela precisacontextualização histórico-política, que mencionei acima, e não de co-mentários genéricos, sob o aspecto crítico, mas “venenosos” do ponto devista nacionalista. “Eles – escreve Sciacca referindo-se aos espiritualistas –apelam sempre para uma fé ética e religiosa que, para além das negações

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desagregantes, une os homens, súditos e cidadãos da mesma Pátria, mi-nistros do mesmo Deus, obedientes aos mesmos ideais” (p. 497). Comose vê estamos diante de um tipo de pensamento que tende ao misticismoe bastante confuso, mas sem dúvida impregnado de nacionalismo. ESciacca exagera ainda na dose, admitindo, sem acrescentar nenhumanota crítica, conceitos de destino nacional, de missões que a Itália devecumprir como eleita pela providência entre as outras nações européias.“Todo povo, e mais que qualquer outro, o povo italiano – continua onosso autor sem hesitar –, possui energias nacionais vitais, as quais énecessário potencializar para a sua sempre maior grandeza e para quecumpra a missão que lhe está reservada no conjunto da história univer-sal” (ibidem). Não se pode deixar de refletir sobre o fato que a sempremaior grandeza de um povo aumenta o perigo de que esta seja alcançadaem detrimento da grandeza de outros povos que, por sua vez, tentarão amesma operação em nome de uma missão dada a eles pela História, porDeus, pela providência ou por quem quer que seja. Nesta perigosaescalation a convivência na Europa – mas também no mundo – com-preendida simplesmente como “expressão geográfica” não sugere outracoisa senão a idéia de uma luta constante, às vezes latente e às vezesmanifesta, de todos e contra todos, e não, é certo, de uma pacífica convi-vência que sabe crescer e se fortalecer buscando motivação e energia noencontro dialético das diferenças e criando um clima de colaboração e detolerância ativa que alimenta a educação, nutrindo-se dela por sua vez.

A “tirada” nacionalista-patrioteira que Sciacca coloca como con-clusão do primeiro parágrafo deste capítulo não parece realmente tal aponto de estimular a pensar nos termos acima expostos. Ela, por outrolado, na sua pirotecnia retórica não desprovida de efeito, mas nemtampouco de confusão, é um testemunho esclarecedor das dificuldadesem definir uma clara concepção educativa e, ao mesmo tempo, da vonta-de de avançar defendendo-se atrás do comentário aos espiritualistas,dos distinguo em relação ao aval que o idealismo estadolatra gentílicohavia dado ao totalitarismo fascista. Trata-se de uma página que vale apena referir inteiramente, mesmo porque parece que Sciacca a usa comomanifesto para sintetizar as linhas básicas da união entre catolicismo efascismo. Portanto, não obstante o fato do autor comentar, aparente-

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mente, o espiritualismo, evidentemente olhando bem além, não por aca-so – mesmo com uma evidente anti-historicidade – usa tout-court a ex-pressão “o pensamento italiano”. Assim, de fato escreve:

O pensamento italiano aceita o conceito orgânico da sociedade e do Esta-

do contra o individualismo da Revolução Francesa, mas sem degenerar na

estadolatria de Hegel: considera o Estado como soberania ética e agente em

todos os aspectos da vida nacional contra a doutrina liberal do Estado au-

sente e mal necessário, mas coloca a soberania e o conteúdo ético do Estado

na dependência de um mundo moral que transcende qualquer Estado, por-

que transcende a história, mesmo operando no Estado e na História dos

povos: renuncia ao anti-historicismo iluminista, mas rejeita o conceito da

História como Deus terreno e único, conceito que acaba por negar a própria

história: faz seu o princípio da liberdade do homem e do cidadão, mas evita

confundir a liberdade como arbítrio do indivíduo ou com a absoluta autono-

mia da vontade, isto é, com uma liberdade que não é própria do homem;

rejeita o princípio da ordem natural que necessariamente dirige o homem e

as coisas com um mecanismo que exclui toda finalidade, assim como rejeita

a concepção dialética desta ordem, a qual não o nega, absolutamente, como

tal, mesmo se lhe dá um novo significado dinâmico e instaura, no lugar de

uma concepção mecânica da natureza humana e física, uma concepção

finalista, na qual a história se torna realização de ideais eternos de verdade

e de bem e não luta de formas históricas que se destroem reciprocamente, e

a necessidade mecânica é um mundo iluminado pela Providência divina:

rejeita ainda, com o conceito da ordem natural, outro a ele ligado, do homo

oeconomicus, substituindo-o pelo conceito de homem objeto espiritual que

se serve das necessidades econômicas como meio para a realização de fins

morais, religiosos e políticos [pp. 499-500].

7. Do Positivismo à Contemporaneidade

Depois de uma panorâmica, pragmática e, por muitos aspectos, fracae, mais ainda, de caráter recognitivo sobre a pedagogia do Risorgimento,Sciacca examina o discurso sobre o Positivismo que – e não poderia ser

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de outro modo dados os viscerais pressupostos anti-iluministas do nossoautor – é tachado de grave confusão e incoerência. Ele, de fato, “cometeuo erro de confundir, sempre, filosofia e ciência, mundo humano e mundofísico, espírito e matéria e de fazer, não raramente, péssima ciência sobrea base de pressupostos filosóficos e péssima filosofia sobre a base depressupostos científicos [...] Também em pedagogia o positivismo (maisuma forma mentis que uma doutrina filosófica) foi levado a uma formade naturalismo, que quase sempre despreza a importância educativa dosvalores ideais e desconhece a profunda diferença entre o desenvolvimen-to espiritual e o processo de formação física” (pp. 532-533, passim).

Não obstante este péssimo juízo geral, Sciacca salva (bondade sua!)do naufrágio o positivismo italiano, pelo menos o filosófico, uma vez que“o científico dos biólogos, psicólogos, físicos, médicos, etc. [...] é ummisto de ciência e de filosofia, ou seja , nem ciência nem filosofia, masmuitas vezes um conjunto de grosserias” (p. 541). O positivismo filosófi-co, ao contrário, “tem um sentido especulativo dos problemas filosóficose pedagógicos que falta também nos maiores representantes do positivismoestrangeiro. Na Itália, de resto – prossegue Sciacca procurando ligar onosso positivismo a Galilei – ele não é um movimento de importação”(pp. 541-542). Resta, de qualquer forma, o fato que, também o nossopositivismo – para o qual se acena brevemente a Ardigò e Gabelli – aidéia final é totalmente liqüidante, definindo-o somente como “a expres-são de uma época da nossa história”.

O capítulo seguinte, dedicado a “O pensamento contemporâneo”, éum rápido panorama sobre a filosofia do início do século XX: em seispáginas e meia se esgota “o pensamento alemão” (duas páginas), “o pen-samento francês” (três páginas e meia) e “o pensamento anglo-america-no” (uma página). Para “a filosofia italiana”, porém, são concedidas dezpáginas, das quais quatro e meia são para Croce e três para Gentile.Somente uma página é dedicada à dimensão educativa, mas com umaexposição muito caótica e formalmente pouco feliz como se deduz destetrecho: “A ação do educador é realmente educativa quando o educando sereconhece naquele: a educação é auto-educação. O objeto do educadornão é a criança como um ser da humanidade, nem é sujeito da criança omestre, como um ser no qual está instaurada toda a humanidade. Todo o

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saber se reduz à unidade do processo criador que coincide com a forma-ção moral da personalidade. Filosofia, pedagogia e ética formam umaunidade no ato concreto da educação” (p. 564). Não se trata mais aqui desugerir ou não uma idéia positiva de Europa, mas de um escrito realmen-te infeliz que não consegue comunicar senão obscuridade.

O volume compreende depois, uma parte V (A atividade do espíritoe os seus momentos) subdividida em três capítulos. O primeiro, intitulado“A filosofia e os seus problemas”, expõe a concepção filosófica do autor,impregnada de espiritualismo que tende a identificar a própria instânciametafísica que une filosofia e religião, com um complemento postiço so-bre a “metodologia educativa” de pouco mais de duas páginas nas quaisse ressalta que a metodologia educativa “não é um sistema de regrasimpostas de fora à consciência do educador”, mas “estudo do processo deespontânea formação do espírito” (pp. 585-586, passim). No todo trata-se de páginas muito imprecisas porque são, geralmente, desprovidas dequalquer argumentação. Pode parecer também que, para os propósitosdo discurso aqui em questão, ou seja, a idéia de Europa, causassem pou-co dano. No caso específico é verdadeiro, certamente. Mas não o é doponto de vista geral; se pensamos que a construção de alguma coisa quevalha a pena ser vivida, como acredito que possa ser considerada a for-mação de uma concepção positiva, ou seja, harmônica e colaborativa,pacífica e aberta para a formação racional e democrática de todos, daEuropa, são necessárias contínuas e claras sugestões para se meditar demodo sempre mais complexo e profundo, e não, certamente, retóricasenfumaçadas ou afirmações ou convicções expressas de modo apodíctico.

O segundo capítulo é dedicado a “A formação do homem no Esta-do fascista” onde são comentadas, em parágrafos pobres e referênciasà “Doutrina fascista” inserida no apêndice, as retumbantes afirmaçõessobre um Estado que rejeita com força o liberalismo e o socialismo,que se coloca “espiritualisticamente” acima de todos os cidadãos, quenão admite nada além de si, e que se coloca como Estado forte e autoritá-rio e que promove exclusivamente uma educação nacional. A conclusãocom relação a uma idéia de Europa não poderia ser mais clara.

O terceiro capítulo, “Acenos sobre a literatura infantil”, esgota-seem cinco páginas que se limitam a ressaltar que o livro, por ser um verda-

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deiro livro educativo para crianças, não deve ser “exteriormente pedagó-gico”, mas uma verdadeira obra de arte (p. 596). E lista, rapidamente,uma sucessão de autores de livros (evidentemente entendidos como obrasde arte!) para a infância, dentre os quais somente dois estrangeiros: Defoee Verne. Também para este capítulo vale quanto foi dito para o primeiro,com o agravante de que o inexperiente leitor poderia ter a impressão deque as outras nações fossem totalmente estranhas à produção de livrospara a infância, tesouro e produto quase que exclusivo da Itália fascista.

O volume conclui-se com um apêndice que traz, obrigatoriamente,“A doutrina do Fascismo de Benito Mussolini”. Não me aprofundo emnenhum comentário, dado que não é nada além de uma parte postiça dolivro, cuja responsabilidade não deve ser atribuída ao seu autor. Limito-me a constatar a sua presença e a observar quão pouco, com sua visãototalitária e absolutista do Estado que marginaliza ou sufoca e que, dequalquer modo, não admite diversidade e contrastes, poderia servir paraa formação educativa em geral e, em particular, para dar uma idéia posi-tiva de Europa.

8. Considerações Conclusivas

No todo, para concluir, a imagem de Europa que resulta de um talmanual é aquela de uma simples expressão geográfica, repleta de naçõesque, mesmo tendo exprimido ou podendo exprimir idéias e conceitos so-bre o problema educativo, não conseguiram fazê-lo e não o fazem tãobem quanto a Itália, que é o verdadeiro berço da civilização, compreendi-da como civilização cristã. As idéias nascidas na península são sempreboas e vigorosas e serviram aos outros povos para que crescessem e sedesenvolvessem. Quando (às vezes acontece ou aconteceu) também a Itá-lia teve que retomar reflexões e sugestões que surgiram em outros luga-res, foi capaz não somente de reelaborá-las de forma original, mas tambémde reuni-las como já havia exprimido e amadurecido anteriormente a pontode saber colher a melhor parte.

Além disso, não poderia ser diferente, dado que a Itália é o berço dacivilização cristã e a Providência atribuiu-lhe uma missão a cumprir que,

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substancialmente, é aquela de se tornar sempre maior e mais potente.Nesta empresa o Fascismo é um formidável e indispensável aliado. Inspi-rado numa visão espiritualista da sociedade e do mundo, ele persegue,com força e decisão, o fortalecimento constante do povo italiano. Porisso o Estado não pode permitir ser perturbado, nesta sua alta funçãomissionária, por partidos e sindicatos que exprimam discordâncias ouentraves. Tudo deve retornar ao interior do Estado que, único, atua parao bem e a prosperidade da Itália colocando-se contra tudo e contra todos,indivíduos, associações ou nações, que se coloquem como freios para oalcance do seu objetivo.

Também a educação, portanto, deve fazer parte não somente do Esta-do, mas seguir as mesmas finalidades que ele se propõe. Deve ser umaeducação nacional. Nessa perspectiva, a idéia de Europa não pode susci-tar senão a imagem de competitividade e de perigo. Aquilo que conta eaquilo que deve ser educado é a consciência, inteiramente provinciana noseu mesquinho nacionalismo de serem cidadãos italianos, a nação maiscivilizada da Europa.

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La Educación Histórica del Deseo

Agustín Escolano Benito*

O artigo interroga-se sobre o desejo como leitmotiv essencial do mundo da vida e domundo da cultura e educação. Destaca a importância da aventura da utopia na açãoeducativa, esta última percebida como prática cultural. Discorre sobre estudos acerca dodesejo realizados no campo da história, demonstrando a revalorização do estatuto epis-temológico e prático do desejo nas análises da modernidade. Conclui sinalizando parauma educação do desejo como forma de emancipá-lo criticamente das velhas e novastutelas que o protegem.DESEJO; MEMÓRIA; CULTURA; EDUCAÇÃO.

The article questions itself about the desire as an essential leitmotiv of the life world andof the culture and education world. It points out the importance of the utopia adventurein the educative action, this last one noticed as a cultural practice. It discourses aboutstudies on the desire accomplished in the history field, showing the revalorization of theepistemology and practical statute of the desire in the modernity analyses. It concludessignalizing into a desire education as a way of emancipating it critically from the old andnew tutorship that protect it.DESIRE; MEMORY; CULTURE; EDUCATION.

* É catedrático de História da Educação da Universidade de Valladolid (España),presidente da Sociedade Espanhola de História da Educação e membro do ComitêExecutivo da ISCHE (International Standing Conference for History of Education),isto é, a Associação Internacional de História da Educação. É, ainda, fundador ediretor da Revista Espanhola de História da Educação (Universidade de Salamanca).Áreas de investigação: Manualística, Culturas Escolares, História da Escola e doCurrículo, História Comparada da Educação.

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El Ethos del Deseo

Este ensayo bascula hacia un leitmotiv esencial del mundo de la vida,y también de la cultura y de la educación: el deseo. Del deseo emerge enrealidad no sólo la voluntad de construir la vida y la cultura, sino inclusoel viaje a la memoria, a la hermenéutica de la tradición. El deseo no essólo impulso, energeia, hacia la realización del sentido, sino la fuerzaque orienta el discurso, en bucle retrospectivo, hacia la narratividad de laexperiencia histórica y personal, o una prolongación de ésta.

La educación es, en primer término, urgencia y deseo. Ella se originacomo necesidad en la lógica interna de los sistemas sociales, y se manifiestaasimismo como expresión de una íntima y autorreferente vocaciónproyectiva o poiética del mundo de la vida y de la cultura. Si la memoria,que sólo puede ser reclamada por las solicitudes del presente y por losretos del futuro, asegura la continuidad del transfondo mítico de la historiapersonal y colectiva, el deseo introduce en esta dialéctica la aventura porla utopía, el ethos del entusiasmo que nace en la ilusión y el sueño.

“Lo deseo más que lo espero. Hay muchas cosas en la república deUtopía que, más que confiar o esperar en ellas, las desearía para nuestrasciudades”. Así cerraba Tomás Moro (1986) su proyecto para la nuevapolis. Toda utopía es en verdad, como afirmaba Ernst Bloch (1977), unaforma histórica del “principio esperanza”, pero también es, ante todo,una expresión de la voluntad y el deseo.

“El paraíso está en nuestros deseos” – se puede leer en Ultimas noti-cias del paraíso, de Carmen Sánchez (2000), el último premio Alfaguara.Luego viene la aventura, mezcla de razón y de pasión, por encontrar lautopía en los surcos de la memoria y en los anuncios del porvenir quedarán fundamento y coherencia a la educación como proyecto.

La salida hacia el futuro suele ser casi siempre como el juego de unlaberinto: un viaje nómada por corredores tortuosos que ha de estar guia-do por la intuición, pero también por la memoria. Se puede atravesar estelaberinto como un ciego, por azar. Pero si se quiere evitar rondar en eldédalo hasta el infinito, y repetir los mismos errores, el nómada necesitasignos o guías, comenta Jacques Attali en su reciente y sugerente Traité

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du Labyrinthe (s.d., pp. 173-175). Mas si no encuentra el hilo mágicoque le señale el camino, el hombre que se forma tendrá necesidad de lamemoria y de la hermenéutica.

La experiencia es la clave para educar a los navegantes en la aventuradel deseo y hasta para descifrar algunos códigos herméticos del camino.Y por eso tal vez la educación de la memoria haya sido un elemento esencialen la iniciación de los jóvenes de la mayor parte de las culturas antiguas.El arte de la memoria, un capítulo central en la retórica clásica, seconstituyó así en una de las claves en la educación histórica de los deseos.Por eso, Mnemósyne fue para los griegos la madre de las musas, y paraCicerón el mejor guardián de la virtud de la prudencia y de todo el tesorode invenciones que creó la cultura humana (Yates, 1977, pp. 7-17).

En la Iconología de Cesare Ripa, del XVII, la memoria aparece re-presentada por una mujer con dos rostros que sostiene con una mano lapluma y con la otra un libro. La memoria puede abarcar la totalidad delpasado, gracias a lo cual podemos autorregularnos con previsión y cál-culo en relación a las cosas por venir (Ripa, 1997, pp. 66-69). El libropodría ser, en este sentido, el registro de la experiencia que inspiraría lanueva escritura, la que emanaría del ámbito del deseo, aún por materia-lizar.

Pero más allá de sus vinculaciones con la memoria, el ethos del deseoestaría desde luego, como vio Nietzsche, en la voluntad de vivir y en lacreación de valor y de sentido, esto es, en la fuerza de la moral ascenden-te, que tiene que ver también con la voluntad de poder.

Nuestro tiempo asiste, como hace un siglo, a una nueva crisis de lamodernidad, que ha sido denunciada ad nauseam por la crítica de lacultura de las últimas décadas. No es fácil, por eso mismo, suscitar unanueva estimativa que oriente la moral del deseo. “¡Qué difícil es cuandotodo baja no bajar también!” – escribió Antonio Machado en LosComplementarios (1957, p. 14). Más, en todo caso, la esperanza de unnuevo programa emancipador sólo emerge del análisis crítico de lagenealogía de la crisis.

Un sugerente ensayo de Raimundo Cuesta me ha ayudado a enfocarcon racionalidad el tratamiento de esta incertidumbre. El deseo, según él,ha de ser cultivado en el seno de comunidades críticas que se afanan en

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construir pedagogías radicales, y debe sustentarse al tiempo sobre eldesarrollo histórico “deseante e insatisfecho” – expresión que toma deErnts Bloch – y un futuro utópico desiderativo. La positividad del impul-so ético se recuperaría, así, mediante una cierta educación histórica deldeseo que mostraría cómo aprender a desear un mundo mejor (Cuesta,1999, pp. 71 y ss.). A ello nos referiremos más adelante.

Confieso que cuando rotulé este programa desconocía que el deseohubiera sido objeto de reflexión para los historiadores, casi siempreabocados hacia la mirada retro. El trabajo de Cuesta me aportó informaciónacerca de los usos que la historiografía británica reciente había hecho dela expresión “educación del deseo”. La biografía de E. P. Thompson (1998)sobre William Morris hablaba de enseñar al deseo a desear más, mejor yde un modo diferente, y un libro de Harvey J. Kaye, de 1992, se anunciababajo el sugestivo título The Education of Desire. En todas estas referenciasse apuntaba hacia un uso emancipador del pasado en relación con elfuturo y en definitiva a la necesidad de pensar históricamente la realidad,como concluye el propio autor.

El ethos del deseo vendría así a configurarse como una síntesisdialéctica entre el impulso y la genealogía de la moral y la cultura histó-ricas, entre las emergentes expectativas del mundo del mundo de la viday la experiencia acrisolada por la sociedad. Este esfuerzo de convergenciaentre la ética y la historia puede orientar la búsqueda del sentido, en unaépoca que sufre a diario la tentación de abocarse al nihilismo y al vacío,como advirtió Lipovetsky (1986), o de entregarse a los dictados perfor-mativos y acríticos de la tecnología, según concluía Lyotard (1984).

En la perspectiva estrictamente historiográfica, la lectura del pasadoha de permitir, como sugiere Chartier (1998), situar los discursos y losrelatos en las estrategias utilizadas para producir sentido, pero eludiendoal tiempo la dogmática de los metarrelatos y la nostalgia de la gran teoría.No en vano, la historia se está viendo hoy también afectada por los airesdeconstructivos que provienen de la postmodernidad, y ello ha introducidoun notorio y saludable relativismo en cuanto a la aplicación de los mode-los teóricos clásicos, y un retorno a la narratividad.

No es fácil sentirse un extranjero al tratar de contextualizar nuestrosdeseos, pero a veces hay que intentarlo como ejercicio de creatividad y

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profilaxis. Maxine Green (1995, pp. 82-85) habla del profesor comoextranjero que ha de ensayar situarse con perplejidad e interrogativamenteen el mundo en que vive y frente a su pasado. Al igual que el viajero queregresa a casa después de una larga estancia en otro lugar, el nuevo ob-servador “descubre que tiene que pensar de nuevo los rituales y lascostumbres de su pueblo para poder entenderlos”. Ya no puede, sin más,“asumir el patrón heredado”. Para darle sentido otra vez a su cultura, hade reordenar y reinterpretar todo lo que ve bajo su renovada mirada.Obligado a releer una realidad siempre diferente, se sentirá más vivo quenunca.

Nuestros deseos, continuamente renovados, también invitan a revisarsin estereotipos la tradición y a reconstruir críticamente y sin prejuiciosla memoria. En esta nueva lectura de la historia los grandes relatos estánya bajo sospecha, y sólo la nostalgia o la rigidez ortodoxa puede refugiarseen ellos. Tras la renuncia a los discursos de las teorías fuertes, el análisisse aboca inevitablemente a la narratividad, y bajo la lógica de un nuevoconstructivismo hermenéutico indaga en la escritura y en los silencios,que también pertenecen a la lingüisticidad del logos, las tramasintertextuales que otorgan sentido a la memoria y la hacen inteligible.Luego comunica estos hallazgos con los deseos.

Las historias nos han formado a todos y, al igual que el narrador lasutiliza para construir ficciones, nosotros nos servimos de ellas para pro-longar nuevos relatos, nuevos experimentos, en los que fundar la esperanza.En esta dialéctica tal vez podríamos coincidir con Tomás Moro. Tambiénnosotros podemos desear, aún dentro de la prudente espera. El ethos deldeseo se sitúa así justamente en el juego entre la memoria y la esperanza.

La Crisis del Deseo

Es un lugar común de la critica sociopedagógica de los últimos añosadvertir que nuestra educación está sumida en un mar de incertidumbres,que apenas guarda memoria de sus tradiciones, ni aún a veces de losensayos de las últimas vanguardias, y que no tiene horizontes que guíenel sentido y atribuyan significación a sus proyectos y a sus prácticas.

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La crisis de los relatos y la fractura de los lazos sociales que regularonlos códigos de comunicación en las instituciones de educación y culturaen épocas todavía recientes han afectado también a los deseos y a laconstrucción del ethos que dimana de ellos. Más aún, si “educar e ins-truir son – como indicó Lyotard en la La postmodernidad explicada a losniños – actos filosóficos” (1995, p. 115), el discurso pedagógicocontemporáneo ha debido verse afectado inevitablemente, en su logos yen su pragmática, por la crisis antes notada.

La narrativa de la modernidad se nucleó en torno a relatos queimplicaban a la vez deseos: la realización de un espíritu universal, eldesarrollo de las libertades, la sociedad sin clases, la paz perpetua, lailustración general… Estos desiderata perdieron fuerza y legitimidad comocreencias plausibles y como discursos realizables y dieron paso a lasdiversas formas de lo que Vattimo (1988) denominó el “pensamiento dé-bil”. A esta crisis de confianza siguió la disolución de las formacionessociales en que sustentaban aquellos relatos, hoy sólo justificados por laretórica política y mediática, pero sujetos desde luego a sospecha metódi-ca y moral. No es que estos discursos se vean como inmorales. Lo que síse percibe en crisis es su credibilidad, puesta en tela de juicio por elcinismo retórico con que se han interpretado y aplicado por los intelectualesorgánicos de las grandes ideologías.

Los valores decaídos han sido reemplazados por las ideas que a modode nuevo convoy semántico definen la sociedad-red y el mundo de laglobalización. No existe ya nostalgia de la gran teoría o del relato perdi-do, que puede aún sobrevivir incluso como rudimento sin función o comomito nostálgico en las generaciones formadas antes de la crisis, pero noen los jóvenes. Por otro lado, se esta exacerbando el papel de la tecnología,y especialmente la relacionada con el mundo de la información y los nuevoslenguajes. Esta, siguiendo la lógica de la racionalidad instrumental,sustituye a menudo como valor a los metarrelatos y adquiere por sí mismael crédito que puede satisfacer ciertos deseos culturales. Este girosociomoral está afirmando la ética de la performatividad, basada encriterios de valor exclusivamente eficientistas.

Hace tiempo que el sociólogo neoliberal Daniel Bell (1977) señaló, alanalizar las contradicciones culturales del capitalismo tardío, cómo el

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triunfo de la racionalidad tecnológica en la sociedad industrial avanzadapodía agudizar la dialéctica entre los valores de la misma ética de laburguesía. De una parte, el orden tecnoeconómico se aboca por su propiotropismo a la eficacia, esto es, a lo que después Lyotard denominóperformatividad (eficiencia de la actuación sin valor añadido). Bajo esteimpulso, la razón y el deseo se orientarían hacia el buen funcionamientodel sistema y al rendimiento de la tecnoestructura. Los actores, en el casode la educación, serían definidos como tecnológos o ingenieros delplaneamiento, gestión y control de los procesos de aprendizaje y enseñanza.

Ahora bien, esta lógica del deseo burgués, tal como opera en lasociedad avanzada no podía ser incompatible con otras dos aspiracionesde las cultura democrática: la oferta de condiciones de igualdad para eldesarrollo de todos los miembros de la comunidad, cualquiera que sea suorigen y situación, y la de facilitar la satisfación a las necesidades deautorrealización y bienestar personal de los individuos. Estos desideratapueden sin duda entrar en contradicción con las estrategias de laperformatividad, toda vez que, como sucede en el mundo de la educación,los intereses y aspiraciones – los deseos, en definitiva – de los sujetos nosiempre guardan concordancia con los valores de logro que los sistemasimponen, o viceversa.

Tales disonancias, que en gran que parte han sido inducidas por elimperio de la racionalidad tecnológica e instrumental, están condicionandolas interacciones del hombre con la cultura y con la educación. En primerlugar, porque abocan hacia una orientación reductiva del deseo en tornoal ámbito de lo tecnoeconómico. También porque aún siendo la tecnología,como es obvio, una producción de la cultura humana, nunca se le atribuyósin embargo el estatuto académico de excelencia que la habría constituidoen contenido deseado de formación general, y no sólo de la especializada.Este asunto, que nos parece crítico y estratégico en el desarrollo actual dela cultura escolar, requiere alguna mayor reflexión1.

Con la Ilustración, la técnica entró en el currículum bajo una lógicaestrictamente utilitaria2. Luego, la revolución industrial y burguesa segregó

1 Véase Benito, 1998a, pp. 11-39.

2 Véase Benito, 1998b, pp. 33-51.

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la educación profesional superior, que orientó bajo un sesgo selectivo ycorporativista, de la menestral o artesana, reducida a subcultura empíricaprecariamente academizada. Humanidades y tecnología configuraron enel pasado lo que los sociológos de la escuela francesa denominaron,hace unos años, las dos redes del sistema educativo. Pero últimamentese han oído voces, entre las que se cuenta la del Collège de France, quepropugnan, como hizo la comisión Bourdieu, una oferta más abierta delas formas de excelencia cultural socialmente reconocidas y rechazanlos viejos esquemas de jerarquización del saber, en los que lo práctico,lo técnico y lo aplicado siempre aparecieron subestimados frente a loteórico y lo humanístico. Este cambio exigiría revisar el papel que lasdisciplinas escolares representan en el cursus honorum de la sociedad, yen consecuencia supondría otorgar a la tecnología y a toda la culturamaterial en general la estimación social y legitimidad académica con-cordantes con el carácter de la nueva sociedad (Bourdieu, 1985, pp. 13-15 y 26-27).

Desde este planteamiento, la crítica de la racionalidad instrumentalno debería orientarse sólo a señalar los límites de una culturaobsesivamente performativa, sino también a estimular el deseo en favorde los valores de la tecnología como contenido de una educaciónhumanística a la altura de los tiempos. Con ello, la técnica se dotaría deun nuevo estatuto epistémico y curricular, esto es, se configuraría comouna disciplina que incluiría, además del estudio de los cambios en losmodos de producción, el análisis de las consecuencias antropológicas ysociales de sus usos, y que se ordenaría también a la formación general yhumanizadora de los individuos.

La reconceptualización de la tecnología que aquí se sugiere com-porta, pues, una visión del poder de la racionalidad instrumental comoforma de cultura que ha de ser críticamente asumida, más allá de susobvias contribuciones al progreso de la civilización material. Desde estaperspectiva, el deseo no puede orientarse sólo al ámbito de loperformativo, sino que ha de buscar también en la cultura técnica unacierta racionalidad emancipadora y humanística. La difusión de loscontenidos intelectuales de la tecnología y de sus usos morales podríacontribuir sin duda a una educación general de los deseos. Este giro

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pedagógico implica, por tanto, grandes virtualidades para una educaciónmoderna orientada para el futuro.

La crisis del deseo se acentúa, por otro lado, con el desconcierto quela pérdida de estabilidad en los relatos y el consiguiente nuevo malestarde la cultura han inducido en el mundo de la educación y en el desempeñodel oficio de enseñante. En algunos análisis se señala cómo el deseo seencauza por la vía pragmática de los ensayos lúdicos en la dialécticadeconstrucción/construcción, frente a las decadentes pretensionesemancipadoras de la gran narrativa, en la que no se cree. En otros, sepercibe una especie de estrategia provocativa, arguyendo que para salirde la crisis precisamos ideas perturbadoras que permitan “pensar de nuevo”la educación y su historia. Henry A. Giroux (1998), en la presentación delos textos del Symposium on Posmodernism and Education, enfatiza laimportancia de repensar la escuela para redefinir el compromiso públicode los profesores como intelectuales. Thinking Again es precisamente eltítulo de la compilación que recoge los materiales de la conferencia de laPhilosophy of Education Society, reunida en Oxford en 1995.

Volver a pensar es pues una derivada ética que nace de la crisis deldeseo que ha suscitado la postmodernidad. Narrativas complejas, historiasdiversas, lenguajes múltiples. Tales son los signos con los que se anunciala nueva cultura. Estos son los fragmentos cuyo análisis y tratamientosólo pueden abordarse desde unas renovadas relaciones entre pedagogíay cultura, experiencia y lenguaje, moral y sociedad. Las democraciascívicas y culturales avanzadas ensayan afrontar esta perturbación deldeseo asumiendo críticamente el debate sobre el pluralismo de identida-des, sin renunciar a un nuevo diálogo con los clásicos de la modernidad,como intentó, por ejemplo, Rorty con Dewey. Desde este planteamiento –algo intrépido ciertamente – se puede incluso releer Democracy andEducation como un texto postmoderno que anticipa la emergencia de lasideas constructivistas de más avanzada vanguardia. Igualmente se puedemostrar cómo las propuestas de Derrida, Foucault o Lyotard pueden ser-vir tal vez para iluminar de forma creativa el puzzle de la educacióncontemporánea y la orientación de las dudosas intenciones y confusosdeseos de los profesores.

Estos son sólo algunos puntos, entre otros muchos que se podrían

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considerar, que deberían debatirse para definir con claridad el perfil de laeducación que deseamos.

El Deseo Cautivo

Derribados los fundamentos de la tradición construida por una bildungcomúnmente aceptada, depuestos los criterios que introducían orden enlos sistemas de valor y en las disciplinas, el discurso que emerge tras lacrisis posmoderna retorna a un revival del deseo y del papel que estepuede jugar en la búsqueda de la reconstrucción del sentido. La vidapersonal y social es inviable sin una comunidad de significados, que es lamatriz de toda cultura, de cuya orientación también dependen en definiti-va la escuela y el desarrollo de los individuos.

Andy Hargreaves (1999) ha llamado la atención recientemente sobreun hecho obvio acerca del cual pocas veces se ha recapacitado: las emo-ciones pertenecen al corazón de la enseñanza, y sin embargo estánprácticamente ausentes en la literatura sobre el cambio educativo. Losenseñantes son seres apasionados, aunque empleen en su trabajo libros ymáquinas. Educar, dice también Fried en su estudio titulado The passionateteacher (1995), es una profesión llena de emociones. No se sugiere conello que una crisis cognitiva como la que deriva del comentado malestarde cultura se vaya a resolver recurriendo a la llamada inteligencia emo-cional o al irracionalismo, pero sí se invita a la estrategia racionalizadade reforzar los impulsos del deseo hacia la responsabilidad.

La ley de la existencia humana es la “ley del deseo” en su significaciónética, que puede adoptar por supuesto diferentes modos de expresión.Esto se lee en el estudio, de corte neolacaniano, titulado “TheResponsability of Desire”, que se incluye en el compendio de Oxfordantes citado (Blake et al., 1998, pp. 111 y ss.). En este mismo volumen seinsertan trabajos que igualmente aluden al mundo de los deseos: “Learningby Heart”, “The Learning Pharmacy”, “Telling Stories out of School”.El mismo Jacques Derrida (1995) se refiere al “aprender con el corazón”como una estrategia que enriquece semánticamente la comprensión deltexto. Esta actitud, lejos de sobrepasar las leyes de la economía de la

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enseñanza, da entrada a un audaz enfoque que puede enriquecer el campointelectual de la enseñanza, conmocionar la moral de la voluntad y esti-mular los deseos de los agentes que en ella intervienen.

Tal vez la inflexión hacia el deseo que esta línea del posmodernismosugiere, bien distinta desde luego de la tecnoperformativa, antes comen-tada, podría parecer a algunos irracional y aun perversa, pero incluso susformas más relativistas son sin duda útiles para remover las presuncionesde etnocentrismo y universalismo que subyacen en muchos discursos ylenguajes convencionales. La lógica de los deseos puede subvertir ydesestabilizar los sistemas culturales clásicos y modernos, sin que tengaque abocarse a argumentos únicos y coherentes, que en el actual estadode crisis ni son posibles muchas veces, ni tal vez deseables. El énfasis enlos deseos podría en cambio encauzar los valores emergentes de lo queGiddens (1993) ha llamado la Alta Modernidad, eludiendo así los riesgosde disolución del sujeto en un mundo fragmentado y sin centro.

Dentro de esta lógica de los deseos se podrían asumir los enfoquespedagógicos recientes que conjugan la razón y la pasión (el logos y eleros) en el tratamiento de las relaciones de género, la atención a ladiversidad, la dialéctica entre lo etnolocal y lo global, los problemasinterculturales, el nuevo ecologismo… Todas estas cuestiones van a serabordadas en este curso3 en ponencias específicas por especialistasreconocidos, lo que me exime de desarrollarlas aquí expresamente. Loque sí me interesa enfatizar en esta introducción, sin embargo, es larevalorización del estatuto epistémico y práctico del deseo en el análisisde la modernidad avanzada. Desde esta perspectiva, la crítica de lamodernidad no sería ya una “corriente emocional” de talante “antimoder-no” que aspiraría a colocarse en la posilustración y aún en la poshistoria,como se temía Habermas, sino una nueva fase de la conciencia históricapor la que discurrían los conflictos que se suscitan desde las mismasfuentes del deseo.

La educación es, en todas las sociedades y en todos los tiempos, unapráctica cultural que emerge del deseo en sus distintas formas de expresión:

3 Refere-se a “La memoria y el deseo”. Curso de verão da Universidad de Vallodolid,oferecido em julho de 2000 (N. da Ed.).

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a) Si los deseos provienen de la cotidianidad del mundo de la vida,esto es, de la cultura empírica de los agentes que intervienen comosujetos en los procesos de formación, se manifiestan en expectativassociales prácticas y en aspiraciones de autorrealización de losindividuos.

b) Si los deseos se formulan en los entornos académicos que losinterpretan y definen como instituciones de mediación, puedenadoptar la forma de intenciones derivadas del conocimiento experto.Los lobbies académicos se erigen a menudo en proyectistas de deseosy objetivos que se promueven en los programas de educación for-mal. Esta cultura es probablemente una forma de arbitrismo.

c) Si, finalmente, la fuente de los deseos radica en la voluntad depoder, es decir, en la moral y cultura políticas, las aspiraciones edu-cativas se expresarán en el lenguaje normativo de los códigos y enlas leyes internas de regulación de las burocracias escolares.

En todos estos planos, el deseo no es energía espontánea e incondi-cionada. Tanto el “cuidado de sí mismo” – tomada esta expresión en elsentido foucaultiano –, como los proyectos sujetos a mediación académica,o las expectativas de la política educativa, son registros regulados,cautivos, gobernados.

Michel Foucault (1982, 1996) explicó bien en sus últimos escritoslos mecanismos por los que se estructuran las llamadas “tecnologías delyo”, o lo que es lo mismo, la “gobernabilidad” de los deseos que construyey configura la nueva subjetividad. Antes, en Surveiller et punir, habíaexaminado el origen de las estrategias de disciplinarización por las quelas instituciones normalizaban a los individuos socializando sus deseosmediante pautas de control y policía social que han llegado a configurartoda una tecnopolítica de los cuerpos y de las mentes.

En realidad, todas estas políticas de vigilancia y gobierno de sí mismoy de la comunidad son formas de la “biopolítica” que incluyen lahermeneútica del sujeto y de la pedagogía, según ha hecho notar MiguelMorey (“Introducción”, em Foucault, 1982, p. 38). En ellas se abordanlos métodos de policía y administración de los sueños y utopías, es decir,de los deseos, técnicas que incluso se llegarán a constituir en disciplinas

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académicas en interacción con las nacientes ciencias del hombre. A estastecnologías de dominación y control de los otros y de uno mismo es a loque se refiere Foucault al hablar de gobernabilidad (1996, p. 49).

Es evidente que las culturas política y académica gobiernan ymanipulan nuestros deseos. La primera con estrategias de policía y gestiónque regulan lo que es plausible desear y de qué modo puede ser satisfechoel deseo posible. La segunda regula este mismo deseo mediante lahermenéutica y la mediación racionalizadora entre el sujeto y lasorganizaciones conforme a reglas aceptadas por la comunidad de teóricos.

Pero también los deseos individuales están cautivos. Las tecnologíasdel yo han creado juegos de verdad en los que se han constituido prácticaspara el gobierno de sí mismo. Foucault estudia a este respecto, en latradición clásica, cómo la noción socrática del “cuidado de sí” fue sufriendometamorfosis entre los estoicos, cínicos y epicúreos del período helenístico,y cómo la pedagogía cristiana fue igualmente ideando prácticas de gobiernodel yo (sí mismo, soi, self) que configuraron toda una tecnología de laregulación del deseo. La Ilustración, al enfatizar el papel político de larazón, también amenazó la relativa autonomía de los individuos, comopuso de manifiesto Kant al denunciar los abusos del poder moderno ennombre de la racionalidad. Y, en general, todos los aparatos de los Esta-dos han terminado por constituirse en lo que Norbert Elias denominócoacciones civilizatorias. Ellas son las que, en definitiva, cautivando laslibertades y los deseos, abocan a la tutela de la felicidad.

La Educacion del Deseo

Mas, aunque cautivo, el deseo también puede ser educado paraemanciparse críticamente de las viejas y nuevas tutelas que le protegen.En una entrevista a Michel Foulcault en 1982 en la Universidad deVermont, el filósofo- historiador francés sostenía que era preciso enseñara la gente que, pese a las sutiles formas de cautividad que acosan a lasmentes y a los cuerpos, los hombres y las mujeres eran más libres de loque se sentían, que los juegos de verdad construidos históricamente podríanser también no sólo criticados, sino incluso destruidos (ver 1982, pp. 142-

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143). Y este era el papel que justamente correspondía a los intelectuales:desvelar la genealogía de las sutiles retóricas que gobiernan el deseo eimpulsan nuevos cauces para la libertad. Para ello habría que ensayarjuegos inéditos, aunque nunca se pudiera prever cómo estos experimen-tos iban a terminar. Esta era la mejor estrategia de apoyo a la espontaneidadde los deseos, en la que se podría confiar. Retomar el deseo podía ensayarvías para crear libertad, aun a riesgo de que el inevitable poder de lasrenovadas influencias pudiera otra vez reducirlo a nuevas formas degobernabilidad.

Ser libre, esto es, elegir libremente, es – lo señalaba ya Aristóteles –“inteligencia deseosa” o “deseo inteligente”. Las pasiones, los deseos,orientan nuestro estar en el mundo, comenta Emilio Lledó (s.d., pp. 85 y146) al hilo de estas notas. Una larga tradición puede enmascarar en laspalabras el orden de los deseos, mas para eludir este riesgo está lahermenéutica. Si se suprimiera la historia, el deseo se consumiría en símismo. De este modo, la interpretación del lenguaje y de la memoria seconstituiría en otra forma de educación histórica del deseo, o lo que es lomismo, en la construcción de un deseo culto y cívico, más allá de lastentaciones psicologistas de fundar la voluntad en el narcisismo o elespontaneísmo irresponsable. Una educación crítica del deseo no puededejar, pues, de ser histórica.

Algunos análisis han querido educar las actitudes ante la crisis deldeseo en nuestra sociedad mediante el recurso a la ejemplificación histó-rica. Se ha subrayado, a estos efectos, que la disolución de los discursosque se gestaron a partir de la racionalidad moderna e ilustrada, así comode los lazos sociales que se asociaron a estos relatos, es comparable enparte a la crisis que siguió a los momentos de esplendor de la Greciaclásica. Según es sabido, la decadencia de la polis y de las filosofíasmayores de Platón y Aristóteles dieron origen a una mentalidad más abiertay a una sociedad más dispersa, del mismo modo que a una cultura y a unaeducación – la helenística – cada vez más ecléctica y relativista. Losgrandes relatos perdieron funcionalidad como fuentes del deseo, y comodiscursos analíticos y dialécticos que lo interpretaban, dando paso afilosofías “menores” como las que se orientaron a la retórica, elenciclopedismo, el epicureísmo o el estoicismo.

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Es evidente que esta analogía es un anacronismo por las diferenciasde tiempo y cultura que se dan entre los hechos comparados, pero laeducación histórica del deseo puede encontrar en ella elementos críticosde reflexión. ¿A qué responde hoy, en este orden de cosas, elcontractualismo ecléctico, esa especie de bonanza consensual que todo loasume, incluso la disidencia? o ¿Cómo entender asimismo el nuevoenciclopedismo del conocimiento en red y las formas retóricas que susci-ta la sociedad de la información? ¿Qué tipo de moral emerge en estasrelaciones entre el saber y la sociedad?

Emilio Lledó ha llamado igualmente la atención en su Memoria de laEtica (pp. 292-293) acerca de las afinidades de nuestra época con lahelenística. Pero en vez de abocarse hacía un pesimismo históricoirreversible, considera que los filósofos que siguieron a la decadencia dela polis supusieron en verdad un paso adelante en la reflexión criticasobre la condición humana. En realidad, entonces como ahora, se empezóa no percibir el mundo como algo oculto por los discursos que lo describían,es decir, como una estructura menos teórica y alienante. La atención alcuerpo, al placer y a la sensibilidad, que no sólo fue postulada por losepicúreos, sino por otras filosofías morales de la época, era una llamadaal encuentro con uno mismo y una reacción a las ideologías que podíanencubrir la realidad con el engaño de una esperanza insaturable. La únicaesperanza legítima sería ahora la felicidad que ciñe el deseo a la ciudadelade nuestra existencia.

Donde los epicúreos dicen placer, los estoicos hablan de virtud, peroen el fondo concurren en el cuidado del “sí mismo”. Para Séneca (1984),los conceptos de Epicuro eran “venerables” y “rectos”. Su escuela “tienemala reputación, y no la merece”. En realidad, el hombre sabio ha deacertar a unir “cosas incompatibles” y hasta “enlazar el placer con lavirtud” (pp. 67-70).

Aquella máxima de Epicuro que invitaba a ser libre en la propia bar-ca, huyendo de toda forma de paideia era en realidad una búsqueda de laimperturbabilidad del ánimo por la superación de la desarmonía de losdeseos mediante la ataraxía y la hedoné. Si la polis no une ya en laesperanza, y la amistad (la philía) no puede ser política, habrá que inda-gar la felicidad y acercarse a ella por el cuidado de sí mismo en armonía

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con la naturaleza y la razón colectiva a través de la comunicación. Lanegación de la cultura y de la paideia sería, así, una especie de ejerciciode prudente escepticismo para el acceso a otro tipo de educación queasegurase la felicidad y el progreso (Lledó, pp. 286, 291).

Tal vez hoy la crisis de cultura impide formular un discurso unívocode educación deseada, y por eso quizás sea más razonable girar hacia laeducación del deseo, es decir, de los ímpetus poíéticos que emergen delmundo de la vida y que se comunican por el diálogo en construccionesintersubjetivas.

Este giro supone una actitud de confianza en la lingüisticidad dellogos que puede permitir, por un lado, deconstruir las representacionespúblicas de la realidad y de la cultura (implícitamente también de losmodos de educación), que desde esta posición crítica han de ser sometidasa sospecha, por cuanto impiden manifestarse al deseo en su autenticidad.Luego, la genealogía y la racionalidad comunicativa ayudarían a elucidarla explicación genética, así como a la búsqueda de consensos críticos.Los análisis de Foucault y las propuestas habermasianas, la exégesishistórica del discurso y la racionalización de los actos de habla que emergendel mundo de la vida, acercarían a emancipar al deseo cautivo y a educarloconforme a las reglas de la ética y la pedagogía de la comunicación.

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Por uma Bibliografia Material dasEscritas Ordinárias

o espaço gráfico do caderno escolar(França – Séculos XIX e XX)

Jean Hébrard*Tradução de Laura Hansen**

A partir de meados do século XIX, na França, a escola não mais restringe suas ambiçõesa uma alfabetização limitada ao “somente ler” ou mesmo ao ler, escrever, contar. Elavisa difundir vários “savoir-faire” complexos que permitem a cada criança entrar nasmúltiplas funcionalidades da escrita. O caderno escolar, que substitue então a simplesfolha de papel, torna-se o espaço de escrita no qual acontecem todas estas aprendiza-gens. O aluno descobre aí não somente como ordenar o espaço bidimensional próprio àordem gráfica, mas também como, pela escritura, dominar o tempo de seus trabalhos ede seus dias. Misturando ao texto esquemas, figuras e mesmo imagens, ele se dá osmeios de dispor de um instrumento próprio a organizar a enciclopédia de seus conheci-mentos. O estudo dos cadernos escolares aparece assim como um exemplo privilegiadoda aplicação dos métodos da bibliografia material aos objetos manuscritos portadores deescrituras ordinárias.HISTÓRIA DA ESCOLA; ESCOLA PRIMÁRIA; APRENDIZADO DA ESCRITA; CADERNOESCOLAR; BIBLIOGRAFIA MATERIAL; A ESCOLA NA FRANÇA.

In France, from the middle of the 19th century, the school doesn’t restrain its ambitions toa limited literacy to the “just reading” or even to the reading, writing and counting anylonger. It seeks to spread several complicated “savoir-fare” that permit each child to gointo the multiple writing functions. The school notebook, that substitutes the simplesheet of paper, becomes the writing space in which all the apprenticeship takes place.The student then finds out not only how to organize the bi-dimensional space proper tothe graphical order, as well as through the writing, control the time of his tasks and hisdays. Mixing to the text, schemes, pictures and even images, he is given the means todispose of a proper instrument to organize his knowledge encyclopedia. The schoolnotebooks study turns up like a privileged example of the material bibliography methodsapplication to the handwritten objects carrying ordinary writings.SCHOOL HISTORY; ELEMENTARY SCHOOL; WRITING LEARNING; SCHOOL NOTEBOOK;MATERIAL BIBLIOGRAPHY; THE SCHOOL IN FRANCE.

* Professor associado ao Centre de Recherche sul le Brésil Contemporain da Écoledes Hautes Études en Sciences Sociales de Paris. Aí desenvolve pesquisas compa-rativas sobre a história social das práticas culturais da escrita. Participou das gran-des investigações francesas sobre a história do livro e da leitura.

** Formada em Psicologia pela PUC-SP (1997). Atualmente, é doutoranda do Laboratoirede Psychopathologie Fondamentale da Universidade Paris-7-Denis Diderot. O textoconta com revisão técnica de João Hansen.

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Ler, escrever, contar não foram sempre os fundamentos obrigatóriosda instrução popular (Hébrard, 1988, pp. 7-58). As escolas, tanto aspertencentes ao mundo da reforma protestante quanto as do mundo dacontra-reforma católica, assumiram tardiamente o objetivo de conduziras crianças da cidade e, depois, as do campo, para além do “somente ler”que, no fim do século XVI, parecia ser o horizonte intransponível dainstrução cristã. Aprender a escrever para fazer contas e para redigiralgumas cartas comerciais exigidas desde o século XVII pela boa direçãode uma loja ou de uma barraca não era uma coisa fácil. É necessária aperspicácia de algumas congregações, como a dos Irmãos das EscolasCristãs, na França, para que a oferta da escrita pareça um dos meiosmais eficazes para levar à escola e, portanto, ao catecismo, as criançasdos meios populares urbanos influenciados pela propaganda reformadaou, mais simplesmente, já descristianizados (Poutet, 1970). Depois dasturbulências da Revolução, a preocupação de uma alfabetização maiscompleta difundida pelas idéias liberais e filantrópicas começa a visar aspopulações dos campos ainda imersas em uma cultura que privilegiava aoralidade. Agora não é apenas a formação cristã que está em jogo, por-que trata-se de subtrair as populações do campo dos rumores, temores epaixões que são as sementeiras das revoltas camponesas. Os notáveis eas elites que atravessaram os tempos convulsionados da Revolução têmainda na memória a lembrança dessas revoltas. Instruindo, a escrita podeerradicar as antigas culturas camponesas e abrir o espaço rural francêspara a modernidade e a paz social1.

Para se redigir um texto simples, é preciso primeiro aprender a escre-ver. Em um mundo onde o papel é caro, onde pluma de ganso, difícil deser cortada pelos dedos pouco hábeis das crianças, é o instrumento obri-gatório da escrita, a aprendizagem desta exige tempo, portanto, dinheiro.É só no começo do século XIX que esta técnica complexa libera-se defini-

1 Sobre o papel da escola entre a Monarquia de Julho e a Terceira República, odebate foi reaberto por François Furet e Jacques Ozouf em 1977. As conclusões dosautores que levam a minimizar o impacto das políticas escolares do século XIX nãoimplicam que não tenham sido pensadas e colocadas em prática de maneira volun-tária por numerosos governos deste período (Hébrard, 1990, pp. 95-109). Sobre umdos aspectos mais originais destas políticas, ver Hébrard (1991, pp. 547-577).

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tivamente das corporações especializadas dos mestres de escrita e de arit-mética (Métayer, pp. 1217-1237), que até então a reservavam aos alunoscujos pais aceitassem pagar caro por um ensino individual, que passavaobrigatoriamente pela redação dessa pequena obra-prima que é o cadernode caligrafia e de aritmética (Chassagne, 1989, pp. 137-144). Então, mes-mo se o professor estivesse plenamente habilitado a ensinar a caligrafia,tal ensino era reservado àqueles alunos que não tinham abandonado asala de aula depois dos dois ou três curtos anos necessários para aprendera ler. Em 1833, a oferta de escola está suficientemente generalizada. Cadamunicípio deve abrir ao menos uma escola para meninos. A demanda dasfamílias rurais supera a simples alfabetização cristã (o “somente ler”),que as satisfazia até então. Assim, mesmo que a França tenha conhecido,desde o século XVIII, uma escola centrada no ler-escrever e no contar, foisomente a partir das grandes reformas escolares da primeira metade doséculo XIX que esse novo trivium se torna o instrumento essencial de umaeducação do povo urbano ou rural pela escola.

Não é suficiente, contudo, que a demanda e a vontade de oferta sejamexplicitamente formuladas para tornar possível a difusão da escrita. Épreciso haver mestres capazes de ensiná-la: o que deveria ser o objetivodas primeiras escolas normais que nascem, aqui e e ali, depois das leisGuizot (Gontard, 1963) . É necessária uma doutrina pedagógica que per-mita orientar eficazmente as aprendizagens; para este uso são destinadosdois instrumentos, a gramática escolar, completamente dedicada à orto-grafia (Chervel, 1977), que nasce nesses mesmos anos; e os novos méto-dos de leitura, que combinam leitura e escrita, e que são publicados porLouis Hachette, editor quase oficial do Ministério da Instrução Pública(Nique, 1987) no período da Monarquia de Julho (1830-1848). São ne-cessários, enfim, os instrumentos que possam permitir a escolarizaçãodessa aprendizagem que durante muito tempo foi artesanal, limitada àrelação dual do mestre com o aprendiz: tal será o papel da ardósia e doquadro negro para os iniciantes; ou o do caderno para os que já têm a mãomais treinada; e também, a partir de 1860, o papel da pena metálica quelibera mestres e alunos da servidão limitadora da pluma de ganso2.

2 Sobre o material escolar no século XIX, ver os artigos correspondentes no

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O caderno é um instrumento comum do aluno de colégio desde oséculo XVI. No Ratio studiorum, é freqüentemente designado pela ex-pressão “livro branco” e seu uso é proposto em alternância com o dotexto impresso com grandes espaços permitindo ao aluno anotar acimada linha a explicação, dada pelo regente da aula, sobre o texto clássico,grego ou latino, trabalhado3. Desde o começo do século XVII, ele tam-bém é o suporte obrigatório da obra-prima caligráfica que se produz naagência do mestre escrivão aritmético. Em contrapartida, o caderno tor-na-se ausente, na maior parte das vezes, das pequenas escolas até o sécu-lo XIX (Chassagne, 1989). Quando a classe tem alguns “escritores”,mais freqüentemente é sobre folhas de papel empilhadas e não-costura-das que realizam os exercícios de escrita. Estes limitam-se à cópia deexemplos caligrafados (ou impressos por meio de chapas gravadas) empáginas que são penduradas na frente do aluno4. As recomendações in-sistentes dos grandes reformistas da pedagogia do século XVII sobre anecessidade de não mais se contentar com folhas soltas5 mostram a con-trario o que devia ser a prática rotineira das aulas.

Dictionnaire de pédagogie et d’instruction primaire, sob a direção de FerdinandBuisson, Paris, Hachette, 1882.

3 Sobre o “livro branco” , ver por exemplo o Ratio studiorum do colégio de Messinaem 1548 ou em 1553 ou ainda o Ratio do colégio romano em 1564 e 1565 (Lukács,1974). Eu agradeço a Dominique Julia que me indicou as referências. Sobre aimpressão dos textos clássicos ver Anthony Grafton (1981, pp. 37-70) (que estudao conjunto de textos clássicos anotados por um estudante do colégio de Reims, emParis, por volta de 1572-1573) e Jean Letrouit, pp. 47-56.

4 H.C. Rulon e Ph. Friot, 1962, e Jean Hébrard, “Des écritures exemplaires: l’artdu maître écrivain en France entre XVIe et XVIIIe siècleî”, Mélanges de l’écolefrançaise de Rome, Italie et Méditerranée, 107, 2, 1995, pp. 473-523 (trad. port.feita pela editora Autêntica, no prelo).

5 Em A Escola Paroquial, Jacques de Batencour escreve: “O mestre da escola teráo cuidado de fazer trazer a cada um dos escritores uma mão de papel [a “mão” éuma medida de contagem do papel: uma mão compõe-se de 25 folhas] encaderna-do e coberto propriamente por uma folha de cartão; o papel não será umidecidomas bem seco, bem colado para que possa receber a tinta sem se borrar, elesmanterão sempre o papel bem limpo, bem claro, sem orelhas o que o professorpunirá rigorosamente (1654, p. 256). Jean-Baptiste de la Salle, um século maistarde recomenda: “O professor tomará o cuidado de que seus alunos tenham sem-pre papel branco na escola. Neste caso, ele fará os alunos pedir papel para os paisquando restam unicamente seis folhas no pacote de papel. Ele terá mesmo o cui-

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A generalização do caderno na escola primária, que pode ser situadano primeiro terço do século XIX, é certamente um acontecimento impor-tante na evolução da alfabetização escolar. As fontes documentais exis-tentes não nos permitem, porém, estabelecer uma verdadeira história docaderno escolar. Se estamos assegurados de sua presença numa parcelanão negligenciável das classes desde 18336, é somente a partir de 1860,quando sua prática é verdadeiramente corrente, que nós encontramosum corpus suficiente de cadernos nas coleções conservadas. Uma razãopode ser alegada para explicar esse déficit de dados das épocas anterio-res: somente durante o Segundo Império (nos anos de 1860) é que come-çaram as grandes exposições internacionais que, dando espaço para asinovações escolares, induzem à coleta de objetos educativos que podemser expostos7. É forçoso constatar, todavia, que não se pode dar a mes-ma explicação para justificar a boa conservação de cadernos redigidosnos colégios no século XVIII: eles são numerosos nas coleções públicas8

dado de, se algum aluno for negligente em trazer papel, ele não levará para casa opapel já escrito antes de vir com papel branco na escola. Todos os alunos trarão, acada vez, pelo menos meia mão [12 folhas] de bom papel... Não se pode aceitarque o aluno traga papel que não esteja costurado, ou que não esteja dobrado emquadrado; é preciso que as folhas sejam costuradas em todo seu comprimento...”(Salle, 1994). Nós salientamos que até esta data o termo “caderno” não é utiliza-do (Cf. Jean Hébrard, 1999, pp. 9-50), tr. port.: Hébrard, 2000, pp. 29-62.

6 Quando François Guizot, ministro da Instrução primária, organiza, no começo dasaulas de 1833, uma grande pesquisa sobre o estado do ensino primário, tenta re-censear todos os signos precursores de uma modernidade pedagógica que desejadesenvolver graças às leis escolares que ele acaba de promulgar. O uso dos cader-nos é um dos sintomas desta modernidade. Os pesquisadores perguntam então aosprofessores se seus alunos escrevem sobre cadernos. O desenvolvimento desta pes-quisa atualmente em curso no Serviço de História da Educação do Instituto Nacio-nal de Pesquisa Pedagógica permite afirmar que, desde essa data, numa academiamais para retardatária como a de Nîmes (departamento do Gard, de l’Archède, doVaucluse e da Lozère), mais de uma classe em duas utiliza cadernos.

7 As primeiras coleções de cadernos do Musée Pédagogique (criado em 1879 sob ainciativa de Jules Ferry) provêm dessas exposições. Os fundos encontram-se hojeno Musée national de l’éducation.

8 O Musée National de l’Éducation abriga uma bela coleção de cadernos do AntigoRegime. Numerosas bibliotecas os conservam em seus fundos antigos, como tes-temunha o Catalogue général des manuscrits des bibliothèques publiques enFrance, Paris, 1888.

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e são negociados com preços a cada vez mais altos nas vendas especia-lizadas. A contradição que se manifesta, portanto, para os cadernos daescola primária, entre testemunho e conservação, deverá ser esclarecida.Enquanto ela aguarda ser explicada, indica-nos um modo de análise queprivilegia o enfoque antropológico em detrimento do enfoque histórico.Na medida em que o caderno escolar não é acessível, na sua realidadefactual, a não ser no momento em que as práticas pedagógicas unifica-ram o seu uso, e isso por várias décadas, ele pode ser constituído em umconjunto de documentos característicos de um período importante dahistória escolar, o que se situa entre os anos 18609 e os anos 196010. Ocaderno escolar é, nesse período, o suporte de uma prática de escrita quepoderia ser a matriz de uma alfabetização escolar específica, a que levaa França rural a entrar definitivamente numa cultura “moderna” do es-crito.

A aprendizagem da leitura e da redação de textos pôde efetuar-sesobre outros suportes além do caderno. Pedaços de papiros egípcios,tabletes de argila mesopotâmicos, cacos de vasilhames gregos (ostraca)têm traços de trabalhos de alunos11. O uso de tabuinhas de madeira co-bertas de cera, freqüente nas escolas da antigüidade greco-romana, foimantido durante toda a Idade Média e são conhecidos alguns trabalhosde pensionistas de escolas monásticas que utilizam o mesmo suporte.Sabe-se também que, desde a mais alta antigüidade, os alunos utilizavamareia fina para escrever; e que somente no século XVIII a ardósia12 subs-titui, parece, essa ancestral muito econômica do rascunho, que ainda eraprescrita pelos zeladores do modo de ensino mútuo na primeira metadedo século XIX.

9 Este limite pode ser justificado pela pesquisa que nós fizemos alhures sobre osexercícios de redação na escola primária (Chartier e Jean Hébrard, 1993).

10 Este segundo limite poderia ser justificado pela aparição, ao longo desta década,de novos instrumentos (caneta esferográfica, caneta hidrográfica), de novos supor-tes em folhas (os de listar, as fichas policopiadas para completar, fichários edita-dos) e, sobretudo, de uma assimilação do caderno aos arcaismos pedagógicos queas inovações dos anos 1970 vão combater.

11 Naissance de l’écriture. [Catálogo da exposição realizada no Grand Palais emParis em 1981], Paris, Reunião de Museus nacionais, 1981; Goody, 1977.

12 E. Brouard, Art. “Ardoises”, em Buisson, op. cit.

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Cada um desses objetos mereceria um estudo aprofundado. É o casodo quadro negro, superfície coletiva apagável, que permite a generaliza-ção do ensino simultâneo inventado pelos Irmãos das Escolas Cristãs(Salle, 1994). É o caso da ardósia, último avatar desses suportes propí-cios aos ensaios que servem ao mesmo tempo ao cálculo escrito (a divi-são e a subtração impõem ensaios e, portanto, apagamentos sucessivos) eao treino de mãos pouco hábeis num tempo em que o papel continua caro.É o caso do caderno, ao qual nós aqui nos restringiremos13.

O caderno, tanto por sua inserção na história da escola quanto pelapreocupação de conservação da qual ele foi objeto, é certamente um tes-temunho precioso do que pode ter sido e ainda é o trabalho escolar deescrita. Graças às coleções do Musée National de l’Éducation14 e a al-guns arquivos privados de que fomos amavelmente comunicados15, dis-pomos, no que se refere à escola primária, de um conjunto de váriosmilhares de peças que se estende sem ruptura de 186016 até hoje. Cader-nos de deveres (deveres da escola e deveres de casa, separados ou junta-dos), cadernos reservados a uma disciplina particular (escrita para asclasses dos primeiros anos escolares, história, geografia, lições de coi-sas17, redações para os alunos maiores), mais raramente cadernos de cor-reções de deveres, constituem o essencial do fundo. É preciso acrescentar,a partir dos últimos anos do século XIX, os “cadernos de rodízio”18 (man-tidos a cada dia por uma criança diferente) e, os que foram conservados

13 O presente estudo retoma os elementos de uma pesquisa cujos primeiros resulta-dos tinham sido publicados em colaboração com Christiane Hubert em Enfanceset Cultures, 2, 1979, p. 47-59, sob o título “Fais ton travail!”

14 Musée National de l’Éducation, 39, rue de la Croix-Vaubois, 76130 Mont-Saint-Aignan. O MNE é um serviço do Instituto Nacional de Pesquisa Pedagógica.

15 Eu agradeço particularmente a M.-A. Touyarout, A. Xerri e J.-C. Pompougnac.

16 O Museu possui também um pouco mais de uma centena de cadernos de escolaprimária do período que vai da Revolução a 1860.

17 “Leçon de choses” (lição de coisas) é o nome da seguinte prática: o professorcoloca frente aos alunos um objeto. Por exemplo, uma maçã. Os alunos devementão descrevê-lo: tamanho, cor, forma, textura, dimensão etc.

18 O “caderno de rodízio” era um caderno coletivo da classe. A cada dia, uma crian-ça é encarregada de escrever as aulas nele. É chamado “de rodízio” pois é umcaderno que “roda” na classe e cada aluno tem sua “rodada”.

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mais tardiamente, os “cadernos de provas mensais” destinados à avalia-ção contínua do aluno ao longo de toda a sua escolaridade.

Há um grande ausente nos arquivos: o “caderno de rascunho” [Docu-mento nº 1]. Parece que o papel não foi uma memória melhor que a ardó-sia ou o quadrado de areia fina. Mesmo sob a impulso de alguns inspetorespreocupados em dar carta de nobreza a tal caderno – ele tornou-se cahierd’essai19 (a expressão ocorre, parece, em 1950) –, ele não foi reconheci-do como digno de ser conservado pelos professores ou pelas crianças esuas famílias. Não se pode esquecer que, sobre a ardósia e sobre o rascu-nho, efetua-se um trabalho caracterizado, contrariamente ao primeiro,pela sua existência precária e efêmera.

É sobre os cadernos, contudo, que nos limitaremos: de um lado, por-que são os únicos documentos disponíveis em grande quantidade duranteuma duração suficiente; de outro, porque o uso deles parece constituir,depois da metade do século XIX até hoje, uma parte essencial do tempoescolar; e, enfim, porque gostaríamos de mostrar que, no momento mes-mo em que o exercício se torna o centro do trabalho escolar de alfabetiza-ção, o caderno não só se oferece como suporte do mesmo, mas ainda lheconfere a sua verdadeira significação.

Exercícios de Todos os Tipos

Examinando detidamente pilhas de cadernos, pode-se constatar a ex-traordinária permanência das produções de alunos por mais de um sécu-lo: os trabalhos de Saint-Just P., aluno normando, em 1893, assemelham-secompletamente aos de Marguerite B., de Asnois na Nièvre, que não seesqueceu de decorar com uma guirlanda de flores um ditado comoventedo começo do ano letivo de 1914, que se intitula “A Mobilização”, noqual ela cometeu dois errinhos. Esses dois cadernos são muito parecidosao de um aluno anônimo de uma escola de Castres, que conserva o estojode penas metálicas, em 1956.

19 A expressão “cahier d’essai” é usada para obrigar os alunos a escrever com apli-cação no caderno de rascunho (“cahier de brouillon”).

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É particularmente a permanência das disciplinas votadas ao cadernoo que chama a atenção. Nele o ditado20 reina soberano, sendo apenassuplantado nas classes dos primeiros anos escolares pelo exercício deescrita; ele é freqüentemente seguido do exercício de análise gramaticalou sintática e de exercícios de vocabulário (famílias de palavras, homô-nimos, sinônimos, antônimos, definições). Só um pouco menos freqüenteque o ditado, o problema de aritmética constitui o segundo pólo do cader-no. Substituído nos primeiros anos escolares por páginas de operaçõesou listas de números, ele incide quase sempre sobre os mesmos temas:despesas, distâncias e pesos, juros e descontos (com muito mais freqüên-cia do que os famosos problemas de “caixa d’água”), cálculos de super-fície e de volumes, assim como problemas de cálculo do número de estacasnecessárias para a demarcação de terrenos e manutenção de casas e depropriedades agrícolas. A isto é preciso acrescentar dois outros exercí-cios que intervêm mais episodicamente: a redação (o exercício de estilonos cadernos mais antigos) e o mapa de geografia, essencialmente regio-nal. Evidencia-se que os conteúdos relativamente variados dos cadernosnão reproduzem exatamente a repartição das disciplinas no emprego dotempo cotidiano da aula. Há disciplinas que aí se encontram absoluta-mente sub-representadas, na medida em que elas não engendram exercí-cios específicos: a história, por exemplo. Porém elas são encontradas emoutros lugares, deslocadas, nos ditados ou nas redações, como testemu-nham estes títulos pinçados ao acaso na produção de 1893: “Marceau”21 ,“Condé em Rocroy”22 , “As cidades no tempo de São Luís”23. Elas seaproximam muito dessas outras disciplinas essencialmente “instrutivas”,as ciências da natureza, a agricultura, a tecnologia, a educação domésti-

20 O ditado, na França, é um ditado de textos e não de palavras.

21 Jovem mártir da Revolução de 1789.

22 Chefe militar do século XVII, vencedor da batalha de Rocroy.

23 É preciso assinalar que o caderno, pela sua capa, é ele mesmo um pequeno ma-nual de história. Ele se apresenta até o fim do século XIX com uma imagemhistórica (freqüentemente dedicada à guerra de 1870 na qual as províncias deAlsácia e Lorena foram conquistadas pela Alemanha) na capa e um breve textopara se aprender o que é a pátria e como é preciso sacrificar tudo por ela.

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ca e a higiene: “Utilidade dos pequenos pássaros”, “A cozinha”, “A vidadas plantas”, “O boi”.

É sobretudo a educação moral que se expressa por meio dos numero-sos exercícios. Quantas linhas de escrita repetem insistentemente “Naescola, é preciso trabalhar bem”? Os ditados também têm títulos elo-qüentes: “A pátria”, “A fraternidade”; as redações propõem pequenosproblemas práticos: “Você encontrou um porta-moeda...”. Às vezes, as-sistimos mesmo a sapientes encadeamentos. Em um caderno de 1930, nodia 11 de fevereiro, as crianças se aplicam a copiar uma máxima: “Omais rico dos homens é o econômico”; no dia 17, eles labutam sobre oseguinte problema: “Um operário ganha 65 francos por dia de trabalho,mas tem o infeliz hábito de não trabalhar na segunda e, além disso, degastar inutilmente no botequim 45 francos por semana. Se ele economi-zasse o dinheiro que deveria ganhar às segundas e o dinheiro que gastasem necessidade, qual soma teria no final de 10 anos e qual seriam oslucros sobre esta soma a juros de 3%?” No dia 18 de fevereiro, paraafinar a reflexão moral, copia-se com muito cuidado uma máxima queestigmatiza o “avaro”.

Assiste-se assim a uma duplicação permanente das finalidades decada prática escolar: tudo serve para tudo e nada se perde! O deslizamentopode até tornar-se circular, quando o conteúdo de um exercício fornece omodo de emprego do seguinte. Por exemplo, esses ditados consagrados àarte de redigir cartas ou à necessidade de conservar o estojo em bomestado para escrever melhor. Produzindo dessa forma pau para toda obra,a escola termina por gerar uma infinidade de exercícios a partir de umalimitada base inicial de conteúdos de conhecimentos ou de técnicas (savoirfaire)24.

Esta relativa mobilidade dos conteúdos do exercício pode fazer suporque o que constitui a sua especificidade encontra-se em outro lugar alémdo recorte disciplinar. Ora, o que chama a atenção, quando se observamas séries de cadernos pondo-se de lado a leitura da litania cotidiana dostítulos de lições e de exercícios, é o trabalho de organização da página aí

24 Sobre este uso do exercício escolar, poder-se-ia consultar a análise muito perti-nente de Guy Vincent, 1980.

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manifestado. Pois os exercícios não são inscritos apenas com letras bemtraçadas; estas são dispostas sobre a página segundo cânones relativa-mente estáveis. Os parágrafos são separados por traços de diversas lar-guras; as margens são organizadas e desenham espaços complexos eperfeitamente regrados; os títulos são hierarquizados com todas as sutile-zas da arte de sublinhar com um ou vários traços. Pode-se levantar, as-sim, a hipótese de que uma descrição do exercício escolar passa por umatipologia da “apresentação” dos trabalhos inscritos nos cadernos25.

Copiar

O que se “apresenta” primeiramente é uma espécie de grau zero daorganização da página, um preenchimento consciencioso de cada linha ecada página, uma densidade máxima de escrita que, ainda que respeite osespaços entre as palavras e a pontuação, não deixa de lembrar esses ma-nuscritos medievais, nos quais o copista parece inicialmente preocupadoem dar a ver a regularidade do espaço gráfico antes de permitir que seleia o texto dele. Adivinha-se que o essencial está aí mesmo, no ato deescrever, ou de “fazer páginas”, como o sublinham em 188726 algunspedagogos preocupados em denunciar práticas que julgam abusivas. Noentanto, percebe-se bem que a “cópia” está no centro mesmo da alfabeti-zação quando esta se propõe a ensinar não somente a ler, mas também aescrever27. Copiam-se linhas de escrita de uma pena mais ou menos hábil[Documento nº 2], ou de uma caneta esferográfica mais ou menos nítida.Em julho de 1907, uma pequena Mathilde repete insistentemente, a cada

25 Esta abordagem do caderno escolar se inscreve, como disse, na perspectiva aber-ta por David McKenzie e Roger Chartier, na qual se aplicam as técnicas da biblio-grafia material à historia dos usos do impresso. Eu procuro estender a pesquisa nadireção dos manuscritos ordinários, privilegiando, no momento, dois tipos de su-portes: os escritos pessoais (Hébrard, 1999) e, no presente trabalho, o cadernoescolar.

26 Art. “Copie”, em Buisson, op. cit.

27 Uma teoria desta entrada da cópia na escrita escolar é dada nas revistas pedagógi-cas do século XIX. Ver Chartier e Hébrard, 1993.

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linha de uma longa página, “Nul bien sans peine” (“Nenhum bem semesforço”) e, como a linha efetivamente não terminou logo após o pontofinal de sua frase, ela acrescenta, com um último cuidado de não perdernada, “Nul b” (“Nenhum b”), e mesmo, algumas vezes, quando apertouas letras, “Nul bi” (“Nenhum be”). Não é com o mesmo espírito que umpequeno Pierre, da região parisiense, pôs-se, em 1965, a recopiar em umquarto de página deixada em branco no fim de seu caderno, no fim dajornada escolar, o começo dos exercícios da manhã do mesmo dia? Nãoexistiam mais exercícios no programa, mas sobrava ainda um pouco depapel para usar: a cópia se impõe por ela mesma, então, como últimotraço da atividade do aluno, mais condicionada pelo suporte que peloprojeto instrutivo. E esse caderno do mês de julho de 1892, atingido antesda sua última página pelo encerramento anual dos trabalhos escolares,que se torna naturalmente um caderno de deveres para as férias “selva-gem”? Ele tem então o traço de cópias de cópias, de linhas de escrita ondeo ar das férias apaga de repente as eternas máximas em proveito de no-mes e prenomes de todas as crianças da família, cuidadosamentecaligrafados com uma bela letra gótica, e também em proveito de afirma-ções solenes, como “Rouget de l’Isle criou a Marselhesa em Strasbourgno momento da Revolução francesa (1789-1793)”, destinadas a mostrarque os conhecimentos não se esvaneceram todos com o verão.

Inspetores e renovadores pedagógicos conservaram exemplares des-sas cópias que constituem o núcleo denso dos cadernos, retendo sobretu-do a quantidade delas. É forçoso constatar que elas também se caracterizampor sua qualidade: escrita e ortografia são as preocupações maiores dosprofessores e eles obtêm bons resultados, ao que parece, pelo menos noscadernos conservados. Imagina-se com boa vontade a aplicação – e avigilância – que presidiram tais esforços quando a cópia é feita do rascu-nho ou da ardósia para o caderno28 ou quando ela é simplesmente cópiade um modelo (de escrita) desenhado no caderno pelo mestre, ou quando,enfim, é a retranscrição do “resumo” escrito na lousa ou tirado do ma-nual. É nessa qualidade da cópia que parece desenhar-se a evolução

28 Como este caderno de “relevé de ditados” conservado no Musée National del’Éducation (caixa 3.4.04, Documento nº 799643).

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diacrônica mais clara. Sobre um caderno datando de 1873 [Documentonº 3], que foi ulteriormente encadernado com couro e que traz as palavraselogiosas de um inspetor geral em visita à escola, o “passar a limpo” estáno centro mesmo da atividade: não há nenhum erro, nem mesmo umarasura. A correção da professora é discreta e feita como que para evitarqualquer traço que não seja o que se inscreve no quadro cuidadosamentetraçado onde se fecha cada página. A escrita é fina e regular, de umalegibilidade absoluta. Para além do que foi assim copiado, à razão deduas ou três páginas por dia de aula (estamos no fim dos estudos), omodelo visado é o livro. Nesse tempo em que o escrito é raro, particular-mente no meio rural, em que as edições para crianças de Hetzel e Hachetteainda só atingem, devido ao seu preço, um público burguês e extrema-mente limitado, o professor sabe que o caderno corre o risco de ser, aolado do manual de leitura, o único “livro” que a criança pode olhar emesmo guardar no termo de sua escolarização. O caderno se esmera,portanto, em imitar o livro, um livro severo, sem ilustrações, que se asse-melha a estes manuais de leitura corrente dos manuscritos, que forampublicados depois da invenção da litografia, durante a Restauração, até aBelle Époque. Mesma organização econômica da página, mesmo uso dotítulo, do traço e do duplo traço e, sobretudo, mesmo conteúdo: umamiscelânea dos saberes diversos que a escola oferece (Ambroise RenduFils, s.d.).

No fim do século XIX, a ilustração se faz mais freqüente: título en-feitado, pequeno desenho ilustrativo colorido nos maiores, pequenos de-senhos geométricos embaixo das páginas (como frisos), ao fim do dia.Como não evocar os manuais de leitura da Terceira República e maisparticularmente o famoso Tour de la France par deux enfants29 ? É ver-dade que a imagem ocupa, desde o fim do Segundo Império, um lugarespecial nessas “lições de coisas” que, graças a Madame Pape-Carpentiere em nome de um empirismo direto, vindo da Grã-Bretanha – AlexanderBain é seu teórico inconteste –, fizeram uma entrada rápida nas “salles

29 Bruno, 1877. Sobre esta obra, célebre na França como Cuore, na Itália, ver Jacquese Mona Ozouf, 1984, pp. 291-322.

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d’asile” (escolas maternais) e, depois, nas escolas30. Os editores escola-res utilizam agora a gravura sobre a madeira de topo, cuja técnica foiexposta nas grandes revistas ilustradas, como o Magasin pittoresque oua Illustration. Ela é menos cara que a gravura sobre cobre de seus pre-cursores da Restauração e, sobretudo, integrável ao próprio texto. Gra-ças ao poder evocador das imagens, o livro não é mais esse objeto austeroque devia ser até então. Ele ensina tanto por suas representações quantopor seus textos. O aluno, fascinado pelas gravuras sem conta que lhe sãooferecidas, procura apresentar seus cadernos de maneira semelhante: de-senhos de observação e ilustrações alternam-se ao longo das páginas[Documento nº 4].

No entre-guerras, desde 1920, a redação ilustrada é um exercício quepermite aos mais hábeis mostrarem sua competência (savoir faire) [Do-cumento nº 5]. No início, exercício de estilo realizado graças ao suportede uma seqüência de imagens que dão ao aluno um fio narrativo paraconstruir seu relato, este exercício o conduz naturalmente a reproduzirou copiar no seu caderno as gravuras que lhe eram oferecidas pelo ma-nual escolar. O caderno de recitação onde se monta com amor uma pe-quena antologia da poesia nacional permite casar da mesma maneira otexto e o desenho mais ou menos colorido31.

Será preciso esperar o começo dos anos 1950 para que os cadernosse abram à fotografia, ao cartão postal ou ao recorte da página de revista.Um professor dos anos finais de estudos de Clermont-Ferrand escreve namargem de um deles: “O caderno está muito bem mantido. Complete suadocumentação”. Nesta data, o caderno não precisa mais substituir o livrodo qual cada aluno está gratuitamente provido. No entanto32, como ocor-

30 Ver os artigos correspondentes no Dictionnaire de pédagogie et d’instructionprimaire, op. cit.

31 Encontra-se um traço do caderno de poesia numa das produções escritas maiscaracterísticas do tempo do serviço militar, o caderno de canções, muito em vogadepois do começo do século XX, ele também ilustrado por ingênuos desenhoscoloridos. Ver Daniel Roche e Fanette Roche, 1979, pp. 15-28, assim como RémyPech, 1982, pp. 3-32.

32 Sobre a evolução do manual escolar, ver Alain Choppin, 1986, pp. 281-306, assimcomo 1990.

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re freqüentemente nas práticas de escolarização, ele continua a evoluircomo evolui o modelo que ele tinha escolhido, mesmo se mantém esseligeiro desnível que o constitui como produto artesanal no momento emque seu modelo de referência há muito foi industrializado.

Fazer Listas e Tabelas

O espaço de escrita dos cadernos dos alunos não é, no entanto, total-mente ocupado por essas páginas de cópias. Aí se intercalam outros tiposde grafismos que economizam mais papel, mas que são, talvez, maisrestritivos: listas e tabelas. A escrita se encarrega aí de uma nova função,mesmo se se trata sempre de reescrever: palavras, frases ou operações.Todavia, a cada reinscrição, o aluno deve operar uma transformação naapresentação gráfica. Por exemplo, em um determinado exercício de gra-mática [Documento nº 6], uma frase antes copiada sobre toda a extensãoda linha (“A preguiça e a gula levam a todos os vícios”) é em seguidacortada em cada uma dessas palavras e depois disposta verticalmente,esta vez à esquerda de um traço que duplica o traço vermelho da margem.O aluno deve, em seguida, escrever em frente de cada palavra a parte daoração correspondente, seu gênero, grau e função na frase.

A preguiça e a gula levam a todos os vícios

A artigo, feminino, singular, determina preguiça.preguiça nome, feminino, singular, sujeito do verbo levam.e etc.agulalevamatodososvícios

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Quase todos os exercícios de gramática ou de vocabulário [Docu-mento nº 7] utilizam, assim, esta “organização em lista”. Esta pode sertanto o ponto de partida, como o objetivo do exercício propriamente dito,mas ela é freqüentemente precedida de uma frase ritual que a justifica ouque inicia o processo. Por exemplo, nas análises sintáticas: “Esta frasecontém três proposições já que ela contém três verbos em um modo pes-soal” (1914) e algumas décadas mais tarde, em 1956: “Esta frase contémtrês verbos em um modo pessoal, portanto três proposições”. A partir doenunciado desta advertência, convém transcrever isoladamente cada umadas proposições reconhecidas, recopiando-as. E sente-se pelo vigor dascorreções que, se um erro na própria análise é desculpável, uma inexati-dão na transcrição da frase de introdução é uma “falta”33. Assim, põe-seem ação um automatismo de escrita, na reprodução de uma fórmula, nosentido quase litúrgico do termo, que é ao mesmo tempo abertura obriga-tória do exercício e planificação da tarefa de “organizar em lista” queserá executada. Na análise gramatical, à disposição regrada acrescenta-se também o ritual das expressões que designam na coluna da direita asclasses gramaticais e as funções sintáticas:

a artigo simples, feminino, singular, determina vestimenta

Ainda aí a criança escreve muito, mas o trabalho de “organizar emlista” não é somente o de escrever num outro sentido, mas o de reorgani-zar profundamente a relação do escritor com a linguagem. Na cópia haviasomente lições transcritas; no trabalho de “organizar em lista”, obtêm-sepalavras escritas, extraídas de seu contexto de enunciação, separadas,recolocadas em ordem e, de algum modo, objetivadas pelo ato da escrita.Neste sentido, estas palavras oferecem-se ao trabalho específico de umaaculturação escrita: elas não falam mais, tornam-se objetos do saber.

Jack Goody ressalta, numa obra que se tornou clássica (Goody, op.cit.) , que a introdução da escrita numa sociedade se traduz por uma rees-

33 Em francês existe uma diferença importante entre erreur (erro) e faute (falta):uma falta na escola é um erro que tem uma dimensão moral (falta de atenção, decuidado, de trabalho etc.).

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truturação dos modos de pensar. O “organizar em lista” lhe aparece comoo lugar originário desta reestruturação no sentido em que ela troca aordem linear e unidimensional da palavra por um espaço onde se tornampossíveis outras ordens e, mais particularmente, classificações própriasà escrita (ordem alfabética, reagrupamentos temáticos, enciclopédicosetc.). Prolongando sua análise, não se poderia pensar que é por meiodesta espacialização da linguagem que a escola procura fazer as criançasentrarem na cultura escrita? É o que parece que se pode ler nos cadernos.

Os problemas de aritmética também repousam sobre exigências grá-ficas. Depois da metade do século XIX, os professores parecem estar àprocura da disposição que permitiria a melhor inscrição desses exercí-cios no espaço do caderno. Primeiro situados em plena página [Docu-mento nº 8] como um simples ditado, os problemas instalam-serapidamente sobre duas colunas, sem com isso especializar cada um dosespaços assim disponíveis [Documento nº 9]. No fim do século XIX, osprofessores descobrem uma organização da página perfeitamente codifi-cada e que se revela um modelo de gestão do espaço do caderno. Primei-ro, e sobre toda a linha, o enunciado do problema; depois, uma divisão dapágina em duas colunas desiguais (um terço, dois terços). Na colunaestreita, identificada pelo título “Operações”, recopiam-se adições, sub-trações ou multiplicações sob forma “de conta”; na coluna larga, consa-grada à “Solução” (às vezes chamada de “Desenvolvimento” ou, parasatisfazer os professores mais exigentes, “Solução desenvolvida”),explicita-se com fórmulas estereotipadas da língua escrita as operaçõescolocadas na outra coluna. Por exemplo, este começo de problema escri-to em 1893:

Um comerciante de vinho recebeu 200 litros de vinho de média qualida-

de. Para melhorá-lo, ele mistura 300 litros de vinho de melhor qualidade.

De quantos litros de vinho misturado ele dispõe?

Operações Solução

300 Misturaram-se 200l de vinho + 300l de vinho =

+ 200 500l de vinho

500

O comerciante tem 500l de vinho misturado

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Para terminar o exercício, na última linha da coluna “Solução”, ou àsvezes mesmo sobre toda a extensão da página, a “resposta” pedida éexplicitamente formulada nos termos tomados do enunciado. Por exem-plo, ao fim de um problema de costureira: “Resposta: o comprimento dofio enrolado na bobina é de 39 metros e 270 milímetros”.

Este modo de “organizar (n)a página” vale para todos os exercíciosde cálculos, não importa o seu domínio de aplicação e a sua complexida-de. As colunas se alongam conforme o fio da escolaridade, mas o proce-dimento permanece o mesmo. Nós encontramos, desde 1882 até hoje[Documento nº 10], esta mesma visualização das diversas dimensões dotrabalho das crianças: a leitura do enunciado e a aplicação das quatrooperações, dimensões que só existem pela mediação evidente de uma ter-ceira, que consiste em “grafar” o processo.

Depois de 1970, o caderno freqüentemente cedeu o lugar ao ficháriono qual o aluno não precisa mais construir sua “organização de página”.Todavia, o fichário implica sempre o mesmo espírito de organização dosaber: organizar em lista e organizar em tabela. Neste sentido, ficháriosde matemática e fichários de gramática assemelham-se ainda mais queos exercícios de cálculo e de análise gramatical de décadas atrás: cadaresposta é esperada no lugar que lhe é designado entre muitas outrastabelas.

Assim, enquanto o caderno se abria ao exercício, uma nova técnicaintelectual e uma nova forma de pensar nasciam. A tabela, bidimensional,estandartizada, que exclui o mais possível a ambivalência, revela umaexigência prioritária de ordem e de exaustividade que nos reenvia ainda àescrita. Como sugere Goody, “uma das características da forma gráfica éa tendência a dispor os termos em linha e em colunas, isto é, linearmentee hierarquicamente, de maneira a dar a cada elemento uma posição únicaque define sem ambigüidade e em permanência sua relação com os ou-tros” (ibidem).

Talvez agora se possa compreender a persistência obstinada de ano-tações do tipo “Mal apresentado”, “Mal disposto”, “Traços mal traça-dos” etc. Elas não são sinal de uma mania absurda do professor quesupostamente não se importaria com o essencial, como a exatidão ou afalsidade do resultado, a elegância do desenvolvimento etc. É preciso ver,

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de fato, o apelo permanente à necessidade de respeitar técnicas propria-mente gráficas para assimilar um processo intelectual específico, um sa-ber repertoriar, ordenar e classificar. Pode-se julgar a assimilação destastécnicas subjacentes aos exercícios por esta última página de um cadernono qual oito linhas não empregadas permitiram este trabalho exemplar,ainda que improvisado (a escrita é subitamente muito pouco caprichada):

Passables: 1

Vu, Bon: 1 + 1 + 1 = 3

Assez-bien: 1+ 1 + 1 + 0 = 3

Médiocre: 0

Points: 1+ 2 + 3 + 1 + 1 + 1 + 2 + 1 + 1 + 3 + 1 + 3 + 1 = 21 bons points

Très bien: 1 + 1 + 1 + 0 = 3

Bien: 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 = 7 biens

Fautes: 2 + 2 + 2 + 1 + 2 + 1 + 0 = 10 fautes

Demi-fautes: 1 + 1 = 2 demi

Vu: 1 + 1 + 1 + 1 = 4 vus34

Esta colagem de uma informação dispersa, esta organização em lista,esta contagem, todo este procedimento constituía em síntese um puroexercício escolar, ainda que ele seja realizado aqui para fins totalmentepessoais. Falta apenas um “muito bem” do professor que, pela sua inscri-ção na margem, viria fechar esta circularidade própria do trabalho esco-lar que só é fiel a ele mesmo quando ele se toma por objeto.

Fazer uma Agenda

Fazer páginas, organizar listas ou tabelas não esgotam a atividadevista nos cadernos. Um outro tipo de organização gráfica merece ser

34 Passable, Vu, Bon, Assez-bien, Médiocre etc. são as apreciações que os professo-res colocam nas margens dos cadernos em frente de cada exercício. Os points (oubons points) são pequenas imagens para gratificar o trabalho bem feito. Nos dita-dos, os erros são contados por fautes (faltas) e demi-faute (meia-falta).

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sublinhada, tanto pela sua freqüência, como por sua importância funcio-nal. Poder-se-ia ver aí a aprendizagem da arte de fazer uma agenda, jáque, neste caso, é a ordem cronológica que governa a disposição dografismo sobre a página. De fato, muito rapidamente, instala-se o hábitode escrever a data no cabeçário de cada série de exercícios. Se até 1914encontram-se ainda alguns cadernos não datados, depois desta data cadadia de aula começa inevitavelmente pela escrita cuidadosa do dia, dasemana, do mês e, freqüentemente, do ano. Alguns professores especial-mente aplicados chegam mesmo a anotar a hora [ver Documento nº 8 jácitado]. Por vezes encontram-se mesmo subdivisões mais estruturais: porexemplo, em “Aula da manhã” e “Aula da tarde” (1907). Ou ainda adivisão se opera entre “trabalho em classe” e “trabalho em casa”, comopor exemplo, “Jornada da segunda-feira, 19 de janeiro” e “Deveres paracasa” (1948). Num primeiro tempo estas inscrições parecem ter somentecomo função mostrar a densidade de um dia de trabalho. Assim, se Saint-Just P. escreve em média somente duas páginas por dia em 1893, navéspera de conseguir passar com sucesso seu certificado de estudos pri-mários35, Marguerite B., em 1913, quando ainda não tinha 7 anos escre-ve, no mesmo tempo, quatro páginas de exercícios. Mas, desde 1900,uma tendência que já se manifestava nas décadas anteriores toma de re-pente importância considerável na economia dos cadernos. Trata-se defazer aparecer, entre os exercícios, todo um memorândum da vida esco-lar, informações sobre as lições do dia que não foram acompanhadas deexercícios ou, simplesmente, um título [Documento nº 11]. No começo,somente as “grandes matérias” parecem ser referidas. Em 12 de abril de1893, sob a rubrica “Instrução moral”, lê-se o título: “Exemplos do pa-triotismo na Grécia Antiga”.

Logo acrescentam-se todas as matérias da escola, mesmo as maisrecentemente inventadas. Em 17 de julho de 1907, faz-se referência à“Economia doméstica”, à “Geometria”, à “Recitação”; segue-se um exer-cício de escrita, depois um problema (trata-se aqui somente da aula damanhã). Vê-se aí o que está em jogo. Certamente trata-se ainda de escre-

35 O “certificat d’études primaires” é o exame (muito esperado) do fim dos estudosprimários.

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ver, mas desta vez de uma escrita cuja função é ordenar o tempo escolar,inscrever o traço de seu curso regular e sem imprevistos, habituar ascrianças a este tempo repetitivo dos dias na escola. Como escreve, em1868, Charles Defodon, redator chefe do Manuel Général de l’InstructionPrimaire36, “Páginas de escrita ditadas, análises gramaticais, resumos deleitura, cartas de geografia, problemas de aritmética com os cálculos e asolução, tudo encontra em seguida e no seu lugar”37. Acrescentando-se,aos exercícios citados por Defodon, a lembrança de cada uma das lições,dá-se à jornada escolar uma coerência definitiva e assim, acaba-se comtodo o tempo ocioso. Deste modo, habitua-se o aluno a pensar o tempo deum dia como uma seqüência regular de tarefas, o tempo da semana comouma seqüência regular de jornadas de trabalho. Dá-se à criança um equi-valente destas agendas tomadas do século XIX onde cada um, particular-mente se ocioso, tem o prazer de redigir suas ocupações cotidianas38.

O caderno-agenda possui talvez uma outra importante função: ele setorna prova irrefutável do trabalho realizado. A discussão pedagógicasobre a utilidade de ter um ou mais cadernos, tão freqüente nos anos1860-1890 toma aqui todo sentido. Ter vários cadernos na escola pri-mária, um para cada matéria, é macaquear um pouco o ginásio, mas ésobretudo dispersar a atenção, tanto a do aluno como a do professor, oumais ainda das pessoas encarregadas da supervisão do trabalho dos doisprotagonistas da escolarização: a família, para o aluno, e o inspetor,para o professor. Se se sabe que existe um registro – o “diário de classe”ou, mais recentemente, o “caderno-diário” (cahier-journal) – no qual oprofessor anota suas atividades, o caderno único parece o meio ideal decontrolar o trabalho efetuado pelo professor sobre cada trabalho de alu-no. Charles Defodon não se engana em 1887: “O diário de classe, quehoje é adotado em todas as escolas do departamento de Yonne, indica,dia a dia, hora por hora, a natureza das lições e dos exercícios; no cader-no único, as datas e a hora em que o dever foi feito, qualquer que seja

36 Esta revista é a mais importante das revistas pedagógicas desde 1833 até o fim doséculo XIX e tem um estatuto oficial.

37 Charles Defodon, art. “Cahiers scolaires”, em Buisson, op. cit.

38 Sobre agendas, ver L. Braida, 1998, pp. 137-167 e Hébrard, 1999, pp. 9-50.

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sua natureza, estão exatamente indicadas, de modo que o caderno doaluno é o meio de controlar o diário de classe” (Charles Defodon, op.cit.).

A instituição, nunca obrigatória mas sempre recomendada, do “ca-derno de roulement” no qual cada aluno, na sua rodada, escreve todosos exercícios do dia, mostra, depois do fim da guerra de 1914-18 até1970, esta preocupação de controle. Assim, num “caderno de roulement”parisiense de outubro de 1948, pode-se verificar que a jornada da sexta-feira foi consagrada sucessivamente ao canto (desempenhado por umprofessor especial), ao cálculo (o problema é colocado, resolvido e cor-rigido), ao desenho (precisa-se novamente a presença de um professorespecial); à geografia (o tema era “A repartição dos continentes e dosmares”) e à leitura (título do trecho: “A sabedoria de um palhaço” deRabelais).

Do lado do controle do aluno, o “caderno de deveres mensais”, obri-gatório desde 1882, permite juntar as provas realizadas durante toda aescolaridade elementar de um mesmo aluno e de verificar assim, numa sóolhada, seus necessários progressos39. Mas o simples “caderno do dia”basta para estabelecer a ligação entre a escola e a família. J. Tronchère,num Guide du Débutant dos anos 1960 (Tronchère, 1967) , escreve aeste propósito: “Os pais de alunos não assistem a vossas lições. O pontode contato entre eles e vocês, por meio das crianças, é o caderno...”. Éisto portanto que permite o caderno: “apresentar” o trabalho escolar paraque ele se ofereça ao controle. É a maneira de escrever, de “bem escre-ver” que é então, em si mesma, um exercício do qual cada um, profissio-nal ou não profissional, poderá verificar a qualidade.

39 Em ocasião da confirmação (1887) da regulamentação (1882) que obriga cadaprofessor a fazer seus alunos manterem um caderno de deveres mensais, W. Marie-Cardine, inspetora da academia da Manche, faz um relatório dos avanços destainovação e das resistências que ainda se manifestam (Le Cahier de devoirs mensuels.Textes réglementaires, études sur le cahier de devoirs mensuels, circulaires desinspecteurs d’académie, bibliographie, Mémoires e documentos escolares publi-cados pelo Musée Pédagogique, fascículo nº 43, Paris, Delagrave e Hachette, 1888).Aí está um notável panorama do uso deste tipo de caderno na França do fim doséculo XIX.

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Cadernos, para Fazer o quê?

O caderno, ao que se vê, não é redutível ao suporte de papel necessá-rio à aprendizagem da escrita. Ordenando o espaço e o tempo do trabalhoescolar nas três dimensões de suas páginas40, ele conduz o aluno a entrarno exercício repetido das suas capacidades de inscrever os saberes e savoirfaire na escrita. Ele dá portanto à escrita escolar seu sentido e sua espe-cificidade: ela é antes de tudo um exercício.

O estudo dos cadernos escolares parece mostrar que, por meio doexercício, passa a acontecer não somente uma técnica do corpo mastambém uma técnica intelectual específica feita do saber de fazer gráfi-cos. Fazer exercícios é aprender a apresentar. É preciso tomar esta ex-pressão em todos seus sentidos. Apresentar, isto é, guiado por umapreocupação constante de limpeza, de boa manutenção, de elegânciaingênua ou afetada, fazer do caderno o pequeno teatro do saber escolar.O professor cuida para que a criança seja o diretor da representação dasua vida escolar num lugar em que tudo deve vir a se visualizar. Tam-bém colocar em ordem, isto é, classificar, repertoriar, indexar etc. sãocompetências que se adquirem através das técnicas gráficas. As listas eas tabelas que a criança organiza cotidianamente na escola recortam eao mesmo tempo organizam o campo de seu saber, saber talvez limita-do, mas que por esta “organização gráfica”, constitui-se sempre comoexaustivo e totalizante.

Fazendo que a totalidade dos alunos que lhe era confiada tivesse acessoao “ler-escrever”, a escola devia dar um sentido a essa nova prática deescrita. Esta não mais se fundamentava na arte retórica veiculada noscolégios após séculos. Graças ao caderno, a escola primária originouuma forma de trabalho da escrita homogênea à sua concepção do saber:um saber elementar sem lacunas, que se situa essencialmente sob as espé-cies da completude e do acabamento.

40 O caderno é um empilhamento de folhas. Ele não é, portanto, bidimensional comoo quadro negro, a ardósia ou a folha isolada. Ele tem, graças à sua espessura, umaterceira dimensão, perfeitamente posta em evidência pelo gesto de folhear. Nestesentido, ele se aparenta à forma do codex (Cf. Chartier, s.d., pp. 269-309).

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Documento nº 4: Caderno de Cyr Bigo realizado em 1869 na escola de Saint-Prest (Eure-et-Loir): A balança [MNE, caixa 3.4.01., doc nº 35089-6]

Documento nº 5: Caderno anônimo s. d.: Desenvolvimento “O céu no outono”[MNE, fotografado por Robert Cahen]

Documento nº 6: Caderno de Anna Gauthier realizado por volta de 1873 naescola de Montigny-sur-Aube (Côte-d’Or), s. d.,: Análise gramatical [MNE,caixa 3.4.01, doc nº 79-11833f]

Documento nº 7: Caderno de Eugénie Marin realizado por volta de 1873 naescola de Malesherbes (Loiret): Exercício de vocabulário [MNE, caixa 3.4.01,doc nº 79-37794-2, fotografado por Robert Cahen]

Documento nº 8: Caderno de Alix Bonin realizado em 1868 na escola de Ligny-le-Châtel (Aube): Aritmética (problema apresentado em página completa)[MNE, caixa 3.4.01, doc nº 9339d]

Documento nº 9: Caderno de Anna Gauthier realizado na escola de Montigny-sur-Aube (Côte-d’Or), s. d.: Aritmética, regra de repartição composta (proble-ma apresentado em duas colunas) [MNE, caixa 3.4.01, doc nº 79-11833i]

Documento nº 10: Caderno anônimo realizado em 1947: Problema (apresenta-do em duas colunas organizadas) [MNE, fotografado por Robert Cahen]

Documento nº 11: Caderno realizado por Madeleine Butti em 1931: Relatodas lições do dia e exercício de escrita [MNE, fotografado por Robert Cahen]

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El Concepto de “EmancipaciónEspiritual” en el Debate sobre la

Educación en Hispanoamérica en laPrimera Mitad del Siglo XIX*

Gabriela Ossenbach Sauter**

Partindo da afirmação de que na primeira metade do século XIX, a luta pela estabilidadepolítica e pela criação de uma nova identidade nacional impregnou o pensamento liberalhispanoamericano de uma preocupação unânime de difusão da educação e de combate àherança colonial espanhola através da escola pública, o artigo debruça-se sobre algunsautores relevantes do pensamento político-educacional na América espanhola, mais es-pecificamente no México, Chile e Argentina, explorando três aspectos: a influência daIgreja católica sobre os valores morais e sociais, o peso do elemento militar nas novassociedades independentes e os conteúdos de ensino.HERANÇA COLONIAL; NACIONALIDADE; ESCOLA PÚBLICA; AMÉRICA ESPANHOLA.

Starting from the affirmation that in the first half of the 19th century, the struggle for thepolitical stability and for the creation of a new national identity impregnated the liberalHispano-American thought of a unanimous concern of education dissemination and ofcombat to the Spanish colonial inheritance through the state school, the article focus onsome relevant authors to the political-educational thought in Hispano-America, specificallyin Mexico, Chile and Argentina, exploring three aspects: the catholic church influenceover the moral and social values, the weight of the military element in the new independentsocieties and the teaching contents.COLONIAL INHERITANCE; NATIONALITY; STATE SCHOOL; HISPANO-AMERICAN.

* Este texto se publicó originalmente en: Nóvoa; Depaepe; Johanningmeier; SotoArango (eds.), Para uma História da Educação Colonial. Hacia una Historia de laEducación Colonial, Oporto y Lisboa, Sociedade Portuguesa de Ciências da Educa-ção/Educa, 1996, pp. 223-235.

** Profesora de Historia de los Sistemas Educativos Contemporáneos en la Facultadde Educación de la Universidad Nacional de Educación a Distancia (UNED) de Madrid(España). Sus trabajos de investigación y sus publicaciones se refieren al Estado ylos sistemas educativos latinoamericanos en el siglo XIX y primera mitad del sigloXX, con una perspectiva comparativa. Su investigación más importante se ha cen-trado en la educación durante la reforma liberal en Ecuador (1895-1912). En laactualidad lleva a cabo la coordinación de un proyecto de investigación sobre lahistoria de los textos escolares (Proyecto MANES), en el que participa la UNED y 14universidades latinoamericanas de Argentina, Brasil, Colombia, Ecuador, México yUruguay.

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La emancipación del espíritu – ese es

el gran fin de la revolución hispano-americana, que se

inició proclamando la independencia estableciendo las

repúblicas que florecen en las colonias que la España

dominaba en este continente

LASTARRIA, 1867, p. 191

Con estas palabras define el chileno José Victorino Lastarria todo unprograma político que los liberales americanos, utilizando términos muysimilares, defendieron en las nuevas repúblicas independientes hasta bienentrado el siglo XIX1. Según Lastarria, que hacía estas afirmaciones en1867, los cincuenta años que habían transcurrido desde la Independenciano habían bastado para terminar con la lucha entre una nueva civilizacióny la vieja civilización española: “cincuenta años no bastan para que losantecedentes históricos viciosos se reformen, para que el nuevo principiohalle su centro, para que el movimiento social adquiera su marcha nor-mal, para que la nueva civilización reemplace a la vieja” (p. 442). Porello, la emancipación del espíritu debía ser un proceso continuo quecontribuyera a culminar la independencia política y en el cual la educacióntenía que jugar un destacado papel: “La masa de la población americanaes ignorante, i este hecho influye infinitamente más que su mezcla en lasituacion convulsiva que todavía impide la realizacion completa de launidad social i política... las instituciones nuevas no tienen todavía en elpueblo esa adhesión que solo puede nacer del interes que inspira elconocimiento de sus ventajas” (pp. 455-456).

No es casual que la idea de “emancipación espiritual” surgieraíntimamente relacionada con una preocupación histórica que buscó en elpasado español las causas de la inestabilidad reinante durante la primeramitad del siglo XIX. El surgimiento de las historiografías nacionales aprincipios del siglo tiene mucho que ver con esta preocupación y tuvo

1 Leopoldo Zea, el más importante historiador de las ideas en América Latina, hadefinido precisamente la historia del siglo XIX como un esfuerzo progresivo haciala emancipación mental respecto de las instituciones y los valores del sistemacolonial español. Cf. Zea (1968, 1976).

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importantes repercusiones en la formación de la conciencia nacional delas nuevas repúblicas. El caso chileno es en este sentido ejemplar en cuantoa la madurez de la producción historiográfica y el elevado nivel de ladiscusión en torno a estos temas2. José Victorino Lastarria es radical ensus juicios sobre el pasado español: “nuestros desastres políticos i socialestienen su causa principal en nuestro pasado español i [...] no podremosremediarlos sinó reaccionamos franca, abierta i enérjicamente contraaquella civilizacion, para emancipar el espíritu i adaptar nuestra sociedada la nueva forma, que le imprime la democracia” (p. 228). La revoluciónamericana encontraba obstáculos en los “sentimientos i en los hábitos”(p. 208) de la sociedad, de manera que la América española estaba“irresistiblemente condenada a reaccionar contra la civilizacion de sumadre patria, i su progreso está en razon directa de la abjuracion de supasado”3 (p. 207).

2 A.M. Stuven explica el interés por escribir la historia de Chile como respuesta ala necesidad de formular un proyecto nacional por parte de la élite ilustrada chile-na de la década de 1840, intentando responder a preguntas que hasta ese momentola urgente tarea de organización del Estado había postergado. Cf. Stuven (1987,pp. 61-80). Sobre el mismo tema véanse, entre otros trabajos, Matyoka Yeager(1977, pp. 173-199); Woll (1982).

3 Para la interpretación del pasado colonial, la generación de Lastarria utilizó confrecuencia aquella literatura, sobre todo de origen inglés y francés, que habíadifundido una “leyenda negra” sobre la historia de España, insistiendo principal-mente en el carácter opresor del absolutismo de los monarcas españoles y de laIglesia católica. En esa visión de España no faltaron alusiones frecuentes tambiéna la opresión que se ejercía a través de la educación dominada por el clero. Lastarria,por ejemplo, en la obra que venimos citando, se remite constantemente como fuentede información y transcribe largos párrafos textuales de la Historia de laCivilización (1857-1861) de H.T. Buckle, cuyo contenido antiespañol es indiscutible(Cf. Lastarria, 1867, pp. 191-206). Otro autor en el cual Lastarria se apoya confrecuencia es el colombiano José María Samper. En las pp. 218-219 le cita tex-tualmente en los siguientes términos: “al cabo de tres siglos de dominacion, cuandolas poblaciones se alzaron en masa para constituirse en Estados, se hallaron com-pletamente novicias en el arte de la administracion, incapaces de consolidar pron-tamente su obra i su poder, ni volver a la obediencia porque con esta se debiarestablecer un réjimen ruinoso, empírico, i detestable; ni avanzar con seguridaden la via de la República democrática abierta por la revolucion, porque para esoera preciso saberse gobernar, contar con hombres de administracion i pueblos; i enel Nuevo Mundo no habia hasta 1810 sinó de un lado una minoría de esplotadores,i del otro turbas estúpidas y paralíticas” (Samper, 1861).

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Aunque la valoración del pasado español no fue siempre tan radical-mente negativa como la expuso Lastarria, la referencia a la herencia co-lonial como un elemento a superar por las nuevas repúblicas independienteses prácticamente unánime en el pensamiento liberal de la primera mitaddel siglo XIX. Andrés Bello, intelectual venezolano de la generación de laIndependencia y radicado luego en Chile, donde ejerció una enorme influ-encia en la vida política y cultural del país, entró precisamente en polémicacon Lastarria en 1844, respondiendo a una Memoria Histórica que éstehabía presentado ante la Universidad de Chile en ese mismo año. En ellaesbozaba Lastarria los mismos argumentos que aparecerían más tarde ensu obra La América, de la cual hemos citado algunos párrafos más arri-ba. Bello alude a España no como a una potencia simplemente opresorade sus dominios americanos, sino que reconoce que el impulso que movióa las revoluciones de Independencia fue precisamente el espíritu españolque seguía vivo en los “hijos de España”, es decir, en los americanos: “elque observe con ojos filosóficos la historia de nuestra lucha con lametrópoli, reconocerá sin dificultad que lo que nos ha hecho prevaleceren ella es cabalmente el elemento ibérico. La nativa constancia españolase ha estrellado contra sí misma en la ingénita constancia de los hijos deEspaña” (Bello, 1957, p. 169)4.

Sin embargo, Bello ve la necesidad de superar el carácter español yconsidera también a la educación como un instrumento idóneo para ello:“si no habíamos recibido la educación que predispone para el goce de lalibertad, no debíamos ya esperarla de España; debíamos educarnos anosotros mismos, por costoso que fuese el ensayo; debía ponerse fin auna tutela de tres siglos, que no había podido preparar en tanto tiempo laemancipación de un gran pueblo” (p. 172). Lo que consideramos másinteresante en la argumentación de Bello es su análisis de aquello queotros autores como Lastarria denominaban “emancipación espiritual”.Bello distingue entre la “independencia política” y la “libertad civil”. Laindependencia política, obra de los guerreros, quedó consumada por laacción del elemento autóctono de tradición española. La libertad civil,por el contrario, elemento extraño que se alió al movimiento de

4 Estudio aparecido en El Araucan, Santiago de Chile, n. 742 y 743, nov. 1844.

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independencia política, debía consolidarse y arraigarse lentamente “enlos duros y tenaces materiales ibéricos” (p. 168): “los gobiernos y loscongresos hacen todavía la guerra a las costumbres de los hijos de España,a los hábitos formados bajo el influjo de las leyes de España: guerra devicisitudes en que se gana y se pierde terreno, guerra sorda, en que elenemigo cuenta con auxiliares poderosos entre nosotros mismos” (p. 171).

Podemos afirmar, pues, que en el siglo XIX la lucha por la estabilidadpolítica y por la creación de la nueva identidad nacional impregnó alpensamiento liberal hispanoamericano de una preocupación unánime porla difusión de la educación, preocupación que iba unida a una crítica a laherencia colonial española. Este interés por la educación convierte al dis-curso político hispanoamericano del siglo XIX en un discurso eminente-mente pedagógico. Algunos de los elementos de la herencia colonial quedebían ser combatidos a través de la educación pública serán analizadosbrevemente en esta comunicación, partiendo del análisis de algunos tex-tos relevantes del pensamiento político-educativo hispanoamericano dela primera mitad del siglo XIX. Los autores considerados han sido JoséMaría Luis Mora (México), Andrés Bello (Chile) y Domingo FaustinoSarmiento (Argentina)5.

La Influencia de la Iglesia Católica sobre los ValoresMorales y Sociales

Si bien la alusión a la influencia negativa de la Iglesia católica sobrelas costumbres y la educación es prácticamente unánime en el pensamientoliberal, es lógico que apareciera con mayor intensidad en aquellos países

5 De los tres autores hemos elegido obras escritas en torno a la misma época, en laprimera mitad del siglo XIX. No hemos considerado la evolución posterior delpensamiento de estos autores, que es significativa sobre todo en el caso deSarmiento, al entrar en contacto con los postulados del positivismo en la segundamitad del siglo. Las obras analizadas han sido: J.M.L. Mora (1794-1850), Revistapolítica de las diversas administraciones que la República mejicana ha tenidohasta 1837 y Pensamientos sueltos sobre la educación pública, ambos contenidosen sus Obras Sueltas (2 vols.), publicadas en París en 1837, así como Méjico y sus

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donde la Iglesia había tenido una implantación más profunda y un mayorpoder social y económico durante la época colonial. Ese es el caso deMéxico, donde el enfrentamiento entre liberales y conservadores en tornoa las relaciones entre el Estado y la Iglesia fue causa constante deinestabilidad política. José María Luis Mora, el teórico liberal mexicanomás influyente durante la primera mitad del siglo XIX y que se ocupó dela reforma educativa de 1833 en su país, es quizás el más representativopensador hispanoamericano en los temas relativos a la influencia de laIglesia en la educación pública.

En el pensamiento de Mora no encontramos literalmente el conceptode “emancipación espiritual”, sino más bien una idea de progreso que secontrapone a la tradición: “Por marcha política del progreso entiendoaquella que tiende a efectuar de una manera más rápida: la ocupación delos bienes del clero; la abolición de los privilegios de esta clase y de lamilicia; la difusión de la educación pública en las clases populares, abso-lutamente independiente del clero... Por marcha del retroceso entiendoaquella en que se pretende abolir lo poquísimo que se ha hecho en losramos que constituyen lo precedente” (Mora, 1963, p. 4). Los elementosque constituían el retroceso eran para Mora precisamente los privilegiosde tradición colonial que el clero y la milicia seguían conservando a pesarde las revoluciones de Independencia: “El clero es una corporacióncoetánea a la fundación de la colonia y profundamente arraigada en ella:todos los ramos de la administración pública y los actos civiles de la vidahan estado y están todavía más o menos sometidos a su influencia... Cuanto

revoluciones, Tomo I (1836). (Para las citas de su obra hemos utilizado unaselección de textos de Mora recogidos bajo el título de El clero, la educación y lalibertad. México: Empresas Editoriales S.A., 1949); A. Bello (1781-1865),“Investigaciones sobre la influencia de la conquista y del sistema colonial de losespañoles en Chile” (1844), 1957; Discurso Inaugural de la Universidad de Chile(1843) (utilizamos la edición de la Academia Venezolana de la Lengua, Caracas,1969); D.F. Sarmiento (1811-1888), Educación Popular (1849) (utilizamos laedición incluida en las Obras de D.F. Sarmiento, publicadas bajo los auspicios delGobierno argentino, Buenos Aires, Imprenta y Litografía “Mariano Moreno”, 1896,Tomo XI); Educación Común (1853) (utilizamos la edición de Ediciones Solar,Buenos Aires, 1987).

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en México se sabía, o era enseñado por el ministerio del clero o estabasometido a su censura...” (1949, p. 59).

Mora habla de la necesidad de sacudir el yugo que suponía la herenciacolonial (“España... creyó que la ignorancia era el medio más seguro deimpedir la emancipación de la América”) (idem, p. 108) y defiende que“para establecer el sistema que reemplace al duro despotismo esindispensable tener conocimientos de la ciencia social; para llevar a cabola obra de la regeneración es preciso formar un espíritu público, es preci-so grabar en el corazón de cada individuo que sus leyes deben respetarsecomo dogmas; en una palabra, es preciso que las luces se difundan almáximo posible” (idem, p. 111). Su proyecto se resume en la necesidadde “formar una nación de lo que antes fué una colonia” (idem, p. 109) ypara ello defiende los principios clásicos del liberalismo republicano, segúnel cual las leyes deben apoyarse “en aquel convencimiento íntimo quetiene todo hombre de los derechos que le son debidos y de aquelconocimiento claro de sus deberes y obligaciones hacia sus conciudadanosy hacia la patria”. Por ello, según Mora, “en el sistema republicano, másque en los otros, es de necesidad absoluta proteger y fomentar la educación”(idem, p. 107).

Esta preocupación por la educación como fundamento del sistemarepublicano es unánime en el pensamiento liberal hispanoamericano de laprimera mitad del siglo XIX, y aparece igualmente en los autores queanalizamos más detenidamente en esta comunicación. Mora insiste, sinembargo, sobre todo en los obstáculos que la influencia de la Iglesia ca-tólica oponía a la consecución de este objetivo. En México, según Mora,es casi imposible establecer las bases de la moral pública, pues los deberessociales se confunden con los religiosos y “las masas todavía ignoran quetienen deberes políticos y civiles, o por mejor decir, se hallan con lapersuasión de que tales deberes no reciben su fuerza sino de la sanciónreligiosa, considerando su infracción no como delito, sino como pecado”(idem, pp. 114-115). La persistencia de esta influencia religiosa sobre laconducta social y moral impedía, según Mora, establecer en México elsistema representativo y construir el espíritu nacional, y ello era debidono sólo a la mera influencia ideológica que la Iglesia pudiera ejercer, sinoal espíritu de cuerpo que persistía en la sociedad gracias a los hábitos

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creados por la antigua constitución del país. “En el estado civil de laantigua España, nos dice Mora, había una tendencia marcada a crearcorporaciones, a acumular sobre ellas privilegios y exenciones del fuerocomún” (1949, p. 44). Por ello, las instituciones de la Iglesia, entre ellaslas educativas, tendían a rebelarse contra aquello que no estuviese enarmonía con las tendencias e intereses de su clase, aunque estuviese, porel contrario, conforme con los intereses sociales (idem, p. 45). Laeducación de los colegios del clero “es más bien monacal que civil...Nada se le habla (al educando) de patria, de deberes civiles, de losprincipios de la justicia y del honor; no se le instruye en la historia ni se lehacen lecturas de la vida de los grandes hombres...” (idem, pp. 80-81).La solución a esta cuestión era para Mora sacar a los establecimientos deenseñanza del monopolio del clero “no sólo por el principio general ysolidísimo de que todo ramo monopolizado es incapaz de perfecciones yadelantos, sino porque la clase en cuyo favor existía este monopolio es lamenos a propósito para ejercerlo en el estado que hoy tienen y supuestaslas exigencias de las sociedades actuales” (idem, p. 90).

Domingo F. Sarmiento añade a estas consideraciones un enfoque degran interés cuando, al comparar a las sociedades hispanoamericanascon la de los Estados Unidos, habla de la existencia en los norteamericanosde un “espíritu público” que él mismo define como “la acción de lossentimientos comunes a una sociedad” que se manifiesta “por actosindependientes de la acción gubernativa”, sobre todo a través de la creaciónde asociaciones con finalidades sociales y benéficas. Al preguntarse siexiste ese “espíritu público” en Chile, Sarmiento afirma con cierta ironíaque sólo existe para asuntos relacionados con la práctica religiosa y depoco trascendencia social, tales como las suscripciones públicas para laconstrucción de iglesias y altares. La idea que Sarmiento tiene del espíritupúblico, que debe crearse y transmitirse a través de la escuela, es algomás, es “la caridad cristiana ilustrada, obrando en escala más dilatadaque la limosna, que envilece sin atacar el origen de la indigencia”(Sarmiento, 1987, pp. 61-71).

Andrés Bello, por su parte, se enfrenta a las fuerzas tradicionales(“ecos oscuros de declamaciones antiguas”), que oponían reparos reli-giosos a la libre difusión de las ciencias. “La moral (que yo no separo de

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la religión) es la vida misma de la sociedad; la libertad es el estímulo queda un vigor sano y una actividad fecunda a las instituciones sociales...Calumnian, no sé si diga a la religión o a las letras, los que imaginan quepueda haber una antipatía secreta entre aquélla y éstas. Yo creo, por elcontrario, que existe, que no puede menos de existir, una alianza estrecha,entre la revelación positiva y esa otra revelación universal que habla atodos los hombres en el libro de la naturaleza” (Bello, 1969, pp. 6 y 8).Estas últimas palabras de Bello son un exponente de que el liberalismohispanoamericano, a pesar de su postura anticlerical, se mantuvounánimemente dentro de la observancia de los principios católicos y viola necesidad de cultivar las enseñanzas religiosas en las nuevas institucioneseducativas. Así, por ejemplo, el fomento de las ciencias eclesiásticas quedórecogido en el plan de estudios de la Universidad de Chile fundada porBello, quien lo justificó con las siguientes palabras: “Si importa el culti-vo de las ciencias eclesiásticas para el desempeño del ministerio sacerdo-tal, también importa generalizar entre la juventud estudiosa... conoci-mientos adecuados del dogma y de los anales de la fe cristiana. No creonecesario probar que ésta debiera ser una parte integrante de la educacióngeneral indispensable para toda profesión, y aun para todo hombre quequiera ocupar en la sociedad un lugar superior al ínfimo” (idem, p. 13).También el mexicano Mora, quien era precisamente clérigo y que afirmabaque “las creencias religiosas y los principios de conciencia son la propiedadmás sagrada del hombre considerado como individuo” (Mora, 1949, p. 65),impulsó dentro de la reforma educativa de 1833 la creación de unestablecimiento de enseñanza superior destinado a los estudios sagrados,si bien dejaba claro que “como la religión reposa toda sobre hechos, suestudio es y debe ser necesariamente histórico y crítico” (idem, p. 96).

El Peso del Elemento Militar en la Nueva SociedadIndependiente

En el pensamiento liberal del siglo XIX existe también unanimidad ala hora de considerar como elemento de la herencia española la influenciasocial que ejercía el elemento militar. Aunque este fenómeno no se discutió

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necesariamente en relación con el tema educativo, nos parece importantedestacarlo para completar la visión que sobre el pasado español tuvieronlos intelectuales liberales de aquella época. Además, la influencia negati-va del poder militar sobre la formación cívica de las masas aparece siempre,aunque sea veladamente, entre las preocupaciones de estos pensadores.

Tanto Andrés Bello como José María Luis Mora llaman la atención,como lo hiciera antes Mora en relación al cuerpo eclesiástico, de lo per-nicioso que resultaba para las nuevas sociedades republicanas la existenciadel fuero militar, “que está en pugna con el principio de igualdad ante laley, piedra angular de los gobiernos libres” (Bello, 1957, p. 171). El po-der del cuerpo militar, además, se acrecentó, según Mora, por “el ejerciciode la fuerza brutal en veintiséis años de guerras civiles (después de laIndependencia), durante los cuales ha ejercido el imperio más absoluto”(Mora, 1949, p. 62), creando en la multitud el error de creer “que alEjército se debe la independencia, la libertad, la federación y quién sabecuántas cosas” (idem, p. 63). La inestabilidad política se entiende, segúnMora, por el dominio de la milicia, pues los gobiernos “no han creídopoderse pasar de esta clase privilegiada; y como, por otra parte, no hanpodido someterla, han quedado enteramente a su dirección” (idem, p. 64).Lo más significativo, sin embargo, es la conclusión que Mora deriva deeste fenómeno en relación al comportamiento cívico del pueblo: el “hábi-to que contraen los pueblos de reconocer como un derecho el resultado dehechos repetidos, aunque éstos no reposen sobre un principio justo y ra-cional” (idem, p. 64).

En Sarmiento el tema del militarismo aparece en términos un tantodiferentes. En su argumentación define claramente las funciones de laeducación pública como antítesis de las funciones del ejército. La existenciade los ejércitos, dice Sarmiento, es necesaria para pueblos “habituados áno sentir otros estímulos de órden que la coerción... el ejército satisfaceuna necesidad de previsión del Estado; como la educación pública satisfaceotra más imperiosa, menos prescindible” (Sarmiento, 1896, p. 40). Paraél el fuerte peso social de los ejércitos americanos tiene también su origenen la tradición española, y reconoce que “todos los gobiernos americanoshan propendido desde los principios de su existencia á ostentar su fuerzay su brillo en el número de soldados de que pueden disponer”, ejércitos

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que se ven “condenados forzosamente a la ociosidad en América cuandono se emplean ó en trastornar el órden, ó en arrebatar la escasa libertad”(idem, pp. 39-40). Ello es motivo de preocupación para Sarmiento, quiena su vez reclama para la educación los recursos que se invierten en elejército: “es muy seguro que no educando á las generaciones nuevas,todos los defectos de que nuestra organización actual adolece continuaránexistiendo, y tomando proporciones muy colosales, á medida que la vidapolítica desenvuelve mayores estímulos de acción, sin que se mejore enun ápice la situación moral y racional de los espíritus. Se gastan en unosEstados más, en otros menos de dos millones de pesos anuales en pertrechosde guerra, y personal del ejército. ¿Cuánto se gasta anualmente en laeducación pública que ha de disciplinar el personal de la nación, para queproduzca en órden, industria y riqueza lo que jamás pueden producir losejércitos?” (1896, p. 40).

Una Enseñanza Carente de Contenidos Útiles

La preocupación utilitarista es otra constante en el pensamiento libe-ral hispanoamericano del siglo XIX. En términos generales, como lo afir-ma C. Hale para el caso mexicano, el liberalismo político hispanoameri-cano contenía un conjunto de supuestos acerca de la sociedad queprovenían del utilitarismo (cf. Hale, 1972, pp. 152-192). La influencia dealgunos pensadores europeos como Jeremy Bentham sobre los intelectualesde la época y sobre la reforma de los estudios superiores de Derecho enmuchos países es, entre otros factores, determinante para explicar estefenómeno. A esta explicación referida a las influencias foráneas, hay queañadir la importancia de la pervivencia de la tradición ilustrada, que tuvoun considerable auge en América a finales del siglo XVIII, así como unalógica preocupación pragmática por las necesidades de la acción inmediata,es decir, por la urgencia de constituir en sus aspectos materiales y culturaleslos nuevos Estados independientes. Este utilitarismo no se plasmósolamente en la teoría política (papel del Estado, teoría de la propiedadetc.), sino también en la necesidad de fomentar la utilidad pública y laprosperidad nacional. En este sentido, el utilitarismo fue adoptado tanto

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por los conservadores como por los liberales, y la educación pública debíajugar un papel fundamental en su fomento.

En el pensamiento del mexicano José María Luis Mora el afán pordifundir conocimientos prácticos aparece unido a su crítica al clero. Lasecularización de la sociedad supone para Mora no sólo la eliminacióndel poder corporativo de la Iglesia y la creación en el pueblo de actitudesacordes con los principios republicanos, sino también la introducción devalores esencialmente utilitaristas en una cultura saturada de religión.Según Mora, la educación impartida en los colegios regentados por reli-giosos “no sólo no conduce a formar los hombres que han de servir en elmundo, sino que falsea y destruye de raíz todas las convicciones queconstituyen a un hombre positivo. El que se ha educado en colegio havisto por sus propios ojos que de cuanto se le ha dicho y enseñado, nadao muy poca cosa es aplicable a los usos de la vida ordinaria... Los ecle-siásticos que hacen y deben hacer su principal estudio de la religión, en lacual todo se debe creer y nada se puede inventar, contraen un hábitoinvencible de dogmatizar sobre todo y de reducir y subordinar todas lascuestiones a puntos religiosos, y de decidirlas por los principios teológi-cos... Así, en lugar de crear en los jóvenes el espíritu de investigación yde duda, que conduce siempre y aproxima más o menos el entendimientohumano a la verdad, se les inspira el hábito de dogmatismo y disputa”(Mora, 1949, pp. 81 y 90).

Para Sarmiento, siempre el más radical en sus apreciaciones sobre elpasado colonial, la causa de ese escaso sentido práctico de las sociedadeshispanoamericanos radicaba en la incapacidad intelectual e industrialinherente a los españoles, la cual se había agravado por la ignorancia eincapacidad de las razas aborígenes con quienes se mezclaron en Améri-ca. En Sarmiento aparecen unidos el rechazo a la herencia española, elmenosprecio de la población indígena y una ferviente admiración por losEstados Unidos. Para él, “el poder, la riqueza y la fuerza de una nacióndependen de la capacidad industrial, moral, é intelectual de los individuosque la componen; y la educación pública no debe tener otro fin que elaumentar estas fuerzas de producción, de acción y de dirección”(Sarmiento, 1896, p. 35). Sin embargo, la difusión de estas capacidadesse veía obstaculizada por el hecho de que “los Estados sud-americanos

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pertenecen a una raza que figura en última línea entre los pueblos civili-zados. La España y sus descendientes se presentan hoy en el teatro delmundo moderno destituidos de todas las dotes que la vida de nuestraépoca requiere. Carecen de medios de acción, por su falta radical deaquellos conocimientos en las ciencias naturales o físicas, que en los demáspaíses de Europa han creado una poderosa industria que da ocupación atodos los individuos de la sociedad” (Sarmiento, 1896, pp. 35-36).

La incorporación de las razas indígenas a la sociedad en el procesode colonización había acrecentado, según Sarmiento, la incapacidad delos españoles, “dejando para los tiempos futuros una progenie bastarda,rebelde á la cultura, y sin aquellas tradiciones de ciencia, arte é industria,que hacen que los deportados á la Nueva Holanda reproduzcan la rique-za, la libertad, y la industria inglesa en un corto número de años” (idem,p. 37). En la colonización de América del Norte no se había establecido“mancomunidad ninguna con los aborígenes, y cuando con el lapso deltiempo sus descendientes fueron llamados á formar Estados independientes,se encontraron compuestos de las razas europeas puras, con sus tradicionesde civilización cristiana y europea intactas, con su ahinco de progreso ysu capacidad de desenvolvimiento...” (idem, p. 37). En la América españolala tarea de crear capacidades intelectuales e industriales en el puebloresultaba, pues, difícil, pero Sarmiento confiaba en que a través de laeducación sería posible “prepararnos para la nueva existencia queasumirán bien pronto uniformemente todas las sociedades cristianas”(idem, p. 39).

El componente racista del pensamiento de Sarmiento no es común atodo el pensamiento liberal hispanoamericano de la primera mitad delsiglo, aunque la integración del indígena formó parte de las reflexiones detodos los intelectuales de la época. La necesidad de fomentar las enseñanzasprácticas, por el contrario, sí aparece como preocupación generalizada alo largo de todo el continente. El Discurso inaugural de la Universidadde Chile de Andrés Bello es una pieza ejemplar en este sentido, aunqueen la obra de Bello en general y en su idea de la Universidad éste concedieratambién mucha importancia a las humanidades y a los contenidos delcurriculum clásico como elementos para elevar el carácter moral: “lautilidad práctica, los resultados positivos, las mejoras sociales, es lo que

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principalmente espera de la universidad el gobierno; es lo que principal-mente debe recomendar sus trabajos a la patria” (Bello, 1969, p. 13). Esecometido de utilidad práctica es el que, en la organización de la nuevaUniversidad de Chile, debían cumplir las Facultades de Leyes y CienciasPolíticas, así como las de Medicina, Ciencias Matemáticas y Físicas, alas que se añadían los estudios de “las especialidades de la sociedad chi-lena bajo el punto de vista económico” con el fin de contribuir a losintereses materiales del país: “porque en éste, como en los otros ramos, elprograma de la universidad es enteramente chileno: si toma prestadas a laEuropa las deducciones de la ciencia, es para aplicarlas a Chile. Todaslas sendas en que se propone dirigir las investigaciones de sus miembros,el estudio de sus alumnos, convergen a un centro: la patria” (Bello, 1969,p. 14).

Mientras que en Chile se erigía en 1842 esta Universidad, en la quelas ciencias prácticas debían ocupar un papel fundamental, en México sesuprimió en 1833, por inspiración de Mora y otros liberales de la época,la vieja Universidad colonial, que se declaró “inútil, irreformable y perni-ciosa” (Mora, 1949, p. 79). El plan de reforma de los establecimientos deenseñanza durante las reformas mexicanas de 1833 incluía la creación,entre otras, de una escuela de estudios físicos y matemáticos, una deestudios médicos y otra de estudios jurídicos, la cual abarcaba ramos tannecesarios para la organización nacional como el derecho natural de gen-tes y marítimo, el derecho político constitucional, el derecho romano y elderecho patrio (idem, pp. 94-96).

Consideraciones Finales

La reacción del liberalismo hispanoamericano frente a la herenciacolonial española revela cómo el siglo XIX estuvo marcado por el intentode definir una nueva identidad cultural, intento en el que la extensión dela educación pública se vio intensamente involucrada. Pero la necesidadde definir a las nuevas sociedades republicanas como americanas nosupuso únicamente una toma de postura frente al pasado colonial español,sino también frente a la integración de la población indígena dentro de la

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estructura y los valores de la sociedad. Por otra parte, la búsqueda desoluciones para los problemas de modernización con que las nuevas so-ciedades se encontraron después de la Independencia política condujo ala imitación de modelos europeos y norteamericanos, lo cual plantearía ala larga nuevos problemas de identidad, todavía hoy fuertemente vigentesen América Latina6.

Los problemas discutidos en la primera mitad del siglo y que aquíhemos querido esbozar de manera necesariamente muy reducida, seacentuaron en la segunda mitad del siglo, impulsados por la fuerte influ-encia que ejerció la filosofía positivista, en sus distintas corrientes, sobreel pensamiento hispanoamericano. La búsqueda de la “emancipación es-piritual” se vería reforzada con los lemas de “orden y progreso”,intensificándose a través de ellos la preocupación utilitarista y la necesidadde secularizar la sociedad. El elemento racista que impregnó el pensamientode algunos intelectuales encontró su fundamentación en el darwinismo yen las concepciones antropológicas y deterministas derivadas delpositivismo. No fue sino hasta la Revolución Mexicana de 1910 quecristalizaron otros argumentos en favor de los valores de la raza indígenay mestiza. La Revolución Mexicana tuvo, prácticamente por primera vezen la historia de la América independiente, consecuencias serias para laextensión de la educación de los indígenas.

Es evidente, finalmente, que los problemas que aquí hemos planteadose manifestaron en el pensamiento hispanoamericano con distintos gra-dos de radicalismo y con diferencias significativas en algunos tópicos,dependiendo en gran medida de las circunstancias sociales y políticas delos distintos países independientes. La mayor o menor presencia depoblación indígena, la fuerza de la influencia social de la Iglesia católicao la magnitud de la inmigración europea determinaron, entre otros

6 El análisis histórico de estos problemas de identidad en el pensamiento hispa-noamericano no ha estado tampoco exento de una intencionalidad filosófica quebusca una definición de lo esencialmente americano. Así lo ha señalado C. Halecriticando la obra del historiador de las ideas mexicano Leopoldo Zea, de quienHale afirma que “lo que hace que su obra sea tan insatisfactoria como obra histó-rica es el hecho de que no podamos separar al Zea filósofo del Zea historiador”(1971, p. 68).

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fenómenos, la intensidad de la discusión en torno a algunos problemas.La educación pública, sin embargo, estuvo siempre presente en laspropuestas de modernización de los intelectuales de la época. Para lacorrecta comprensión e interpretación de estos fenómenos se impone pues,a nuestro parecer, la necesidad de enfocar la historia de América Latinadesde una perspectiva comparativa, que es la que hemos querido ofrecermediante el análisis de distintas tomas de posición frente a problemassimilares que afectaron a todo el continente americano. Concluimos, aligual que lo hiciéramos al principio de este trabajo, con palabras delchileno José Victorino Lastarria:

A estas causas jenerales de las revoluciones americanas, es necesario

juntar otras que son peculiares de las distintas zonas jeográficas en que se

hallan estendidos los pueblos de oríjen español de la América. Desde el

istmo de Panamá al norte existen elementos físicos i sociales distintos de

los que predominan en la zona que ocupan las repúblicas colombianas i en

la que habitan los de la familia peruana, aunque haya entre ellos mui marcadas

analojías; i todos esos elementos son diferentes de los que prevalecen en las

rejiones de los pueblos del Plata, siendo unos i otros mui distintos de los

peculiares que hacen de Chile un pueblo singular en la situacion actual de

las sociedades americanas [1867, p. 231].

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Tempos da Escola noEspaço Portugal-Brasil-Moçambique

dez digressões sobre um programa deinvestigação

António Nóvoa*

Com o objetivo de desenhar os contornos de investigação em desenvolvimento acerca daconstrução histórica da escola obrigatória em Portugal, Brasil e Moçambique, o artigodesdobra-se em dez digressões. As três primeiras privilegiam os sentidos da pesquisa,afirmando a importância de uma história comparada da educação. As três digressõesseguintes sugerem processos de reconstrução teórica que permitam gerar instrumentosde interpretação desse “espaço de relação”, explorando contributos recentes da históriada educação e da educação comparada: prováveis suportes à investigação. As quatroúltimas indicam temáticas de referência, “pontos de entrada” da pesquisa, que possibi-litam operar a comparação histórica.HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO COMPARADA; ESCOLA OBRIGATÓRIA; ATORES EDUCACIONAIS;DISCURSOS PEDAGÓGICOS.

The article extends itself in ten digressions in order to draw the outlines of investigationin progress about the historical construction of the compulsory school in Portugal, Braziland Mozambique. The first three grant a privilege to the research senses, affirming theimportance of a compared education history. The three following digressions suggestprocesses of theoretical reconstruction that permit to produce instruments of interpretationfrom this “relation space”, exploring recent contributions from education history andfrom compared education: probable supports to investigation. The last four indicatethematic of reference, research “entrance points”, that enables to perform the historicalcomparison.COMPARED EDUCATION HISTORY; COMPULSORY SCHOOL; EDUCATIONAL AUTHORS;PEDAGOGICAL SPEECH.

* Professor catedrático e presidente do Conselho Científico da Faculdade de Psicolo-gia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. Tendo recebido o grau deDoutor pela Universidade de Genebra (1986) e de Agregado pela Universidade deLisboa (1994), foi recentemente eleito presidente da Associação Internacional de

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No momento em que parece impor-se a presença de um centro mun-dial de referência (e de um só!), a emergência de uma comunidadeacadémica juntando pelo lado sul as duas margens do Atlântico – e do-brando até, talvez, o continente africano – é intenção que merece apoio.As metáforas da net (da rede) e da web (da teia) têm hoje livre curso,mas, paradoxalmente, deparamo-nos com o reforço de uma comunicaçãoque se fixa quase sempre nos mesmos pólos. Importa, por isso, desdobraros espaços de circulação de ideias, de produção de cultura e de ciência. Anós, compete-nos imaginar – sabendo que nem todos imaginamos damesma maneira – esse lugar simbólico onde habitam os três anéis (euro-peu, africano e sul-americano) que Eduardo Lourenço evoca na sua Ima-gem e Miragem da Lusofonia (1999).

É sobre isto que vos quero falar neste texto inacabado, que procuradesenhar os contornos de uma investigação em curso sobre a construçãohistórica da escola de massas (da escola obrigatória) em Portugal, Brasile Moçambique1.

As três primeiras digressões referem-se aos sentidos desta investiga-ção, colocando como premissa a afirmação radical de uma possibilidade:a possibilidade de conhecer, não apenas como “empiria” (como casos,ilustrações ou exemplos), mas de conhecer como “teoria”, a relação quea história construiu entre estes povos e países. A elaboração do objectode pesquisa faz apelo a uma “reconciliação” entre a história e a compara-ção, o que implica importantes redefinições destas duas disciplinas.

As três digressões seguintes sugerem processos de reconstrução teó-rica que permitam a criação de instrumentos para interpretar um “espaçode relação – três países de três continentes diferentes, recortados por his-tórias parcialmente sobrepostas – que não tem estado presente nos estu-dos comparados. Para além do recurso às “abordagens do sistema

História da Educação, a ISCHE (International Standing Conference for the Historyof Education). É autor de obras publicadas em diversos países, dedicadas essen-cialmente a temas históricos e comparados e à formação de professores.

1 O texto retoma, com pequenas modificações, a intervenção oral proferida na ses-são de abertura do 3º Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação (Coimbra,23 de Fevereiro de 2000).

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mundial” e das “teorias pós-coloniais”, apontam-se contributos recentesda história da educação e da educação comparada que podem apoiar ainvestigação.

Finalmente, as quatro últimas digressões são dedicadas a uma iden-tificação das temáticas de referência, que servem de “pontos de entra-da” da investigação, ajudando a situar as fontes que serão trabalhadasem cada um dos países. É a partir destes elementos que a pesquisa seconcretiza, permitindo imaginar os seus desenvolvimentos e a produçãode conhecimento sobre os alunos, os professores, o currículo e a peda-gogia.

Sentidos de um Programa de Investigação

1ª digressão – Registos do “atraso educacional”

O primeiro lugar é inevitável. Falo da “nossa” Geração de 1870, queinscreveu o script da decadência na cultura portuguesa e, por via dele, otópico do “atraso educacional”. Desde então, não deixámos ainda de nossentir (isto é, de nos pensar) como “país atrasado”, em particular nosector da educação. Lembro o célebre Manifesto de 1897, assinado àcabeça por Bernardino Machado, clamando contra o défice intelectual dopaís: “Basta saber-se que dos cinco milhões de habitantes que constituema população portuguesa, quatro milhões vivem mergulhados na mais som-bria ignorância: são analfabetos”.

A coisa foi dita e repetida. Uma e outra vez. Por todas as gerações. Eveio até aos nossos dias. Como um estigma de que não conseguimoslibertar-nos e que os números foram sucessivamente confirmando: nasprimeiras estatísticas do final do século XIX, nos Anuários Internacio-nais de Educação do pós-Grande Guerra, nos documentos da Unesco dopós-II Guerra Mundial, nos recentes Indicadores publicados pela OCDE,nas bases de dados da União Europeia etc.

Rui Grácio chama a atenção para a literatura que floresce, na décadade 1960, lastimando ou reportando os atrasos do ensino, “bem como a

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deficiente estrutura educacional da população activa com relação às ne-cessidades do desenvolvimento nacional” (1985, p. 73). Reinventa-se nes-ta ocasião, em grande parte nos círculos oposicionistas, a metáfora da“cauda da Europa”, que é mobilizada nos tempos quentes da política. NoEstudo Nacional de Literacia, um dos mais severos registos do nosso“atraso educacional”, que procurou fechar/abrir um ciclo nas políticaseducativas pós-25 de Abril, reencontramos o número mágico de 80%: 4em cada 5 portugueses não são sequer capazes de “seleccionar e organizarinformação, relacionar ideias contidas num texto, fundamentar uma con-clusão ou decidir que operações numéricas realizar” (Benavente et al.,1996, pp. 69 e 122).

Mas, o “problema” parece não se resumir apenas a Portugal. Ape-sar da distinção que António Sérgio (1940) faz, prefaciando GilbertoFreyre, entre os sucessos portugueses na América do Sul e os seus fra-cassos na Europa, uma rápida vista de olhos pelo material estatísticoproduzido pelas organizações internacionais, pelo menos desde a déca-da de 1930, revela os “atrasos” de Portugal, do Brasil ou de Moçambiqueface aos países situados nas mesmas regiões do mundo2. A existênciadeste padrão não pode deixar de nos interpelar, convidando-nos a umainvestigação sobre a construção da escola no Mundo que o portuguêscriou.

Parece evidente que o critério geográfico não explica o que é precisoexplicar, pois tão diferentes são as localizações destes países no mapa-múndi. O critério desenvolvimento económico, utilizado a torto e a direi-to, revela enormes fragilidades interpretativas; veja-se a este propósito oartigo notável de Colette Chabbott e Francisco Ramírez, recentementepublicado no Handbook of the Sociology of Education (2000), no qualse faz uma crítica contundente das análises que procuram estabeleceruma relação linear entre “educação” e “desenvolvimento”. O critério an-tropológico, ensaiado por Emmanuel Todd na sua L’enfance du monde

2 Cf. por exemplo o Annuaire International de l’Éducation et de l’Enseignementpublicado pelo B.I.E. a partir de 1933, o World Survey of Education editado sob aresponsabilidade da Unesco desde 1955 ou a recente série Education at a Glanceda OCDE.

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(1984), recebeu bom acolhimento, mas a sua tese central, associando osprogressos da alfabetização a certos tipos de estruturas familiares, nãoresistiu à contraprova das evidências. Ora, se nenhum destes critériosnos serve, a que outros poderemos recorrer?

Restam-nos, talvez, os critérios político e cultural. Num e noutro,reencontramos a necessidade de uma “teoria do império”, que permitaidentificar a especificidade dos nossos processos de colonização e de in-dependência. Num e noutro, acabamos por ir à procura de uma “singula-ridade”, que, sem cedências ao luso-tropicalismo de Gilberto Freyre, nosintroduza na “cultura de fronteira” que nos define como portugueses,brasileiros e moçambicanos.

Resta-nos, ainda, uma outra solução: mudar a perspectiva... e pousaro olhar, não nos números do atraso, mas nas fórmas e nas fôrmas damedida, isto é, na concepção dos instrumentos estatísticos e na sua inter-pretação com base numa determinada ideologia do modelo escolar(Hacking, 1995).

Os dois caminhos conduzem-nos ao mesmo resultado: investir inte-lectualmente o espaço histórico em que nos movemos, construindo-o comoobjecto de reflexão teórica e de produção de conhecimento científico. Éeste o nosso programa: compreender historicamente os tempos da escolaatravés de uma reflexão comparada que toma como referência o espaçoPortugal-Brasil-Moçambique.

2ª digressão – O espaço-tempo da reflexão histórica

No segundo lugar desta viagem, chamo a atenção para a intensidadeactual do debate historiográfico, que nos tem mobilizado a todos, de umaou de outra maneira. Apesar da complexidade deste debate, há um aspec-to que parece central: a reconceptualização do espaço e do tempo, doespaço-tempo da reflexão histórica. Já não nos serve uma definição pu-ramente física do espaço. Já não nos serve uma definição puramentecronológica do tempo. Não podemos continuar a considerar o espaço e otempo como entidades autónomas, ignorando que tendem a fundir-se numamesma realidade. Mas habituámo-nos de tal modo a pensar num espaçofixo (estável) e a concentrar no tempo a variável da mudança, que temos

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dificuldade em romper com esta esquadria (Popkewitz, 1999). As metá-foras da “flecha do tempo” ou da história como um “rio que corre” ilus-tram bem este entendimento.

E, no entanto, há mais de 30 anos que Michel Foucault tinha pres-sentido que o espaço se transformaria na matéria-prima do historiador.Dizia ele que estávamos a entrar na época do simultâneo, da justaposi-ção, do próximo e do longínquo, do lado a lado, da dispersão. E, naverdade, encontramo-nos hoje face a processos de compressão e de ex-pansão do espaço e do tempo. Um espaço que se alarga e que se restrin-ge, num processo que Roland Robertson (1992) designa de glocalização.Um tempo que se acelera e que se condensa, “um tempo que se solta dosrelógios” para utilizar a expressão poética de José Gomes Ferreira.

Zaki Laïdi fala, justamente, desta fluidez das situações, dos compor-tamentos e das estratégias, que incita a uma renegociação colectiva danossa relação ao espaço e ao tempo: “Um espaço que se alarga e umtempo que se acelera” (1999, p. 10). Por isso, elabora uma crítica à tira-nia da urgência, que tende a transformar-se numa nova medida que so-brecarrega o tempo com exigências inscritas apenas na imediatez: “É porisso que, incapaz de pensar o futuro, a urgência contribui para o destruir”(idem, p. 27). O apontamento perspicaz de Boaventura de Sousa Santosguia-nos o olhar através do exposcópio:

A característica fundamental do exposcópio é comprimir o espaço e o

tempo. Um curto-circuito espacial: o mundo literalmente a dois passos. Um

curto-circuito temporal: o presente de tal modo dramatizado que o passado

parece uma causa sem efeito e o futuro um efeito sem causa. Este efeito de

visão é também um efeito de cegueira, e ambos produzem efeitos simbóli-

cos, políticos e culturais [1998, p. 29].

Estamos colocados perante uma nova concepção que nos convida aolhar para a largura e para a espessura do tempo. Uma largura quepermite a fluidez histórica, concebendo o presente não como um “perío-do” mas como um processo de transformação do passado no futuro (evice-versa). Uma espessura que nos faz viver, simultaneamente, diferen-tes temporalidades, sobrepostas de tal maneira que o tempo deixa de ser

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um “fio” (o fio do tempo) para se representar como uma corda ondemuitos fios estão torcidos uns sobre os outros.

Mas esta nova concepção convida-nos também a olhar para um es-paço, que não é limitado apenas pelas suas margens físicas. Na verdade,como mostra Thomas Popkewitz, os conceitos temporais estão a ser subs-tituídos por conceitos espaciais: mapas, campos discursivos, territórios,comunidades imaginadas, geografias institucionais, espaços ideológicos,topografias da pessoa etc.:

A utilização de conceitos espaciais implica repensar as ideias de história,

progresso e acção tal como foram desenvolvidas desde o século XIX pelas

teorias sociais. O conceito de espaço nas teorias pós-modernas possui qua-

lidades físicas, mas também representacionais. [...] A questão central da

literatura feminista pós-moderna é o modo como os espaços sociais são cons-

truídos, não como conceitos geográficos, mas como discursos que produzem

identidades [1999, pp. 27-28].

Estas mudanças encerram uma nova concepção do espaço-tempo,que, no nosso caso, misturam camadas temporais que recortam históriascomuns. E que nos levam a imaginar comunidades de sentido, que emer-gem da partilha de um mesmo espaço linguístico. São estas comunidadesque tornam possível uma pesquisa sobre a relação Portugal-Brasil-Moçambique, num espaço-tempo assim redefinido.

3ª digressão – A reconciliação entre a história e acomparação

A terceira digressão serve para argumentar a favor de uma históriaque se reconcilia com a comparação, de uma comparação que se reconci-lia com a história. Após várias décadas de ostracismo, o comparatismotem vindo a regressar ao campo educativo. Historiadores, sociólogos,pedagogos e, até mesmo, filósofos, tradicionalmente desconfiados do exer-cício de “tornar iguais as coisas desiguais e desiguais as coisas iguais”(Bourdieu & Passeron, 1967, p. 25), dedicam-se ao jogo da comparação,participando em observatórios e grupos internacionais de pesquisa e inte-

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grando nos seus trabalhos elementos típicos de um raciocínio compara-do. Do mesmo modo, uma série de instâncias supranacionais reconhecema importância de criar instrumentos que facilitem uma compreensão dosfenómenos educativos e das suas consequências (emprego, qualificaçõesprofissionais, mercado de trabalho etc.) que vá além das fronteiras nacio-nais.

Não é este o lugar para referir os perigos da nova “popularidade” daeducação comparada, assinalados por autores como Peter Robinson(1999), que chamou a atenção para a tirania das classificações interna-cionais e para as falsas evidências que elas arrastam, ou Robert Cowen(1999), que denunciou a forma como certos “dados internacionais” estãoa ser integrados nos discursos políticos. Hoje, o terreno é favorável àemergência de uma espécie de “pensamento mundial”, que se organizaatravés da integração do outro e da redução a uma matriz única de ele-mentos recolhidos em diferentes contextos. A razão actual funda-se numaideia do espaço-mundo, que é transformada em referencial por via dotrabalho de “especialistas” e de organizações internacionais (Boli &Thomas, 1999). No passado, a presença do outro justificava-se pela suaexemplaridade (a imitar ou a recusar); actualmente, ela define-se pelacapacidade de organizar uma massa considerável de informações queintegram num mesmo quadro o eu e o outro. Mas este processo de inclu-são é também um processo de discriminação, tendo em conta a panópliade níveis e hierarquias que separam os diferentes mundos que existem nomundo.

Todavia, parece-me útil chamar a atenção para duas característicasparticularmente prometedoras do “regresso” do comparatismo: por umlado, o reforço de um pensamento que inscreve as lógicas de comparaçãono tempo, concedendo-lhes uma historicidade própria; por outro lado, aadopção de perspectivas metodológicas que não consagram modelos deanálise exclusivamente centrados na geografia nacional.

Tradicionalmente, a educação comparada teve como matriz o estado-nação: comparavam-se países do Norte com países do Sul, desenvolvi-dos com subdesenvolvidos; comparavam-se os países do “centro” entreeles; comparava-se pela proximidade geográfica ou pelo exotismo... masa referência era, sempre, o estado nacional. Hoje, as fronteiras diluem-se,

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por efeito de uma “cultura mundial”e pela multiplicidade de níveis defiliação e de pertença. Como diz Benedict Anderson (1991), todas ascomunidades são imaginadas e distinguem-se, não por uma eventual fal-sidade/autenticidade, mas justamente pelos modos diferentes como seimaginam. Eis o que conduz o comparatismo a virar-se para novas reali-dades, que não cabem nas geografias nacionais.

Uma dessas realidades – que tenho vindo a procurar construir comoobjecto de estudo – é essa comunidade imaginada que dá pelo nome im-perfeito de lusofonia. Aqui, a possibilidade de um pensamento histórico ecomparado torna-se tão evidente que nos espantamos com a ausência deestudos e pesquisas. Na verdade, se exceptuarmos alguns trabalhos sobreo “império” e a “colonização”, não há uma reflexão sistemática a partirdesta categoria de análise, que sobrepõe momentos de uma história co-mum e identidades culturais partilhadas (por adesão ou por rejeição).

A nossa localização em África, na América e na Europa – em paísestão diversos, ligados pela distância – concede-nos um estatuto muito es-pecial, abrindo uma série de possibilidades ao inquérito histórico e com-parado. Não se trata de nos considerarmos como um “caso peculiar”, queconfirmaria ou infirmaria certas teses. Trata-se de assumirmos que a nossaespecificidade pode ser elaborada conceptualmente e trabalhada comocampo teoricamente conhecível.

Perspectivas Teóricas de Referência

4ª digressão – As abordagens do sistema mundial

As primeiras palavras vão para as chamadas abordagens do sistemamundial (world-system approaches), tal como têm sido praticadas pelaequipa da Universidade de Stanford ao longo dos últimos 25 anos. Assuas premissas são conhecidas e podem ser rapidamente resumidas:

A educação é um fenómeno mundial, exactamente do mesmo modo que a

ciência, a tecnologia, a teoria política, o desenvolvimento económico, e muitos

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outros fenómenos são, por natureza, transnacionais. Quer isto dizer que o

que a educação é (a sua ontologia), o modo como está organizada (a sua

estrutura) e as razões do seu valor (a sua legitimidade) são características

que se definem, essencialmente, no nível da cultura e do sistema económico

mundial, e não no plano dos estados-nação [Boli & Ramirez, 1986, p. 66].

Munidos destas premissas, estes autores têm produzido uma sérieimpressionante de trabalhos sobre a génese, a consolidação e a expansãoda Escola. Nenhum de nós ignora as críticas sistemáticas, muitas vezespertinentes e certeiras, que têm sido dirigidas a estas teses. Mas, apesarde tudo, as abordagens do sistema mundial têm resistido bem à passa-gem do tempo e têm conseguido manter a sua consistência interpretativa.Os estudos recentes de John Meyer, por exemplo sobre o currículo, mos-tram bem esta evolução, nomeadamente quando apontam para a ideiaque “os sistemas educativos são construídos mais para sociedades ima-ginadas do que para sociedades reais”, o que explicaria situações à pri-meira vista paradoxais como a preocupação com o professor-reflexivoou com o construtivismo (e até o construcionismo) em países onde umaformação mínima dos professores não está ainda assegurada.

Na verdade, a escola desempenha um papel essencial na produção de“sistemas de governo” que trabalham as diversas identidades e filiaçõesindividuais e colectivas: “A escola não constrói apenas os imagináriosnacionais que consolidam a ideia de cidadania nacional. Constrói tam-bém as imagens de subjectividades cosmopolitas que atravessam as múl-tiplas fronteiras que formam o mundo da economia, da política e dacultura” (Popkewitz, 2000, p. 5).

Ao considerarem que o estado-nação deriva de modelos mundiaisconstruídos e difundidos através de processos globais, culturais e simbó-licos, as abordagens do sistema mundial convidam-nos a uma mudançade olhar e de perspectiva (Meyer, Boli, Thomas & Ramirez, 1997). Sãopontos de vista que podem contrabalançar as interpretações exclusiva-mente centradas no critério nacional. A sua pertinência depende da capa-cidade para evitar os desvios “deterministas” que, em vez de umenriquecimento do debate, se limitariam a encerrá-lo no círculo viciosoda pura confirmação dos pressupostos de partida.

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Conscientes desta advertência, creio que é tempo de trazer estas abor-dagens para a reflexão histórica, o que implica alguma ousadia, uma vezque elas tendem a ir contra as explicações habituais. No nosso caso, nãopodemos ignorar um dos textos nucleares da equipa de Stanford, no qualse propõe uma tipologia dos países, surgindo Portugal e Brasil numaposição bastante “atrasada” e Moçambique com os níveis mais baixos dedesenvolvimento escolar no mundo (Meyer, Ramirez & Soysal, 1992).Há duas críticas óbvias a este texto: por um lado, o estabelecimento deuma hierarquia de países que não se limita a descrever uma determinadarealidade, mas que a constrói, de facto, a partir de um implícito ideológi-co; por outro lado, um agrupamento dos países a partir da sua localiza-ção estrutural na sociedade mundial, fazendo sobressair as dimensõeseconómicas e geográficas. Há aqui uma espécie de verticalidade na cons-trução dos argumentos.

Mas – e gostaria de bem sublinhar este ponto – se conseguirmosapropriar-nos desta reflexão, desenhando-a numa perspectiva horizontalde ligação entre três continentes e valorizando, sobretudo, as dimensõeshistóricas e culturais, acredito que estaremos em condições de produzirconhecimento novo (conhecimento teórico) sobre a génese e a expansãoda Escola. Não se trata tanto de estudar a “difusão mundial” do modeloescolar, mas antes de compreender a sua recepção no espaço Portugal-Brasil-Moçambique. Adopta-se, assim, um nível intermédio de análise,entre as concepções do sistema mundial e as aproximações centradas nosestados nacionais.

5ª digressão – Os novos modos historiográficos

O segundo momento da reconstrução teórica que vos proponho dizrespeito à apropriação crítica de ideias produzidas pelos movimentos queficaram conhecidos por “viragem linguística” (linguistic turn) e por “vi-ragem imagética” (pictorial turn). Estes movimentos, a muitos títulosdesgarrados e incongruentes, têm tido a enorme qualidade de nos obriga-rem a reagir, não nos deixando acomodar no conforto de certos paradig-mas científicos.

O mundo científico caracteriza-se, hoje, pela busca de racionalidades

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alternativas, que têm como único denominador comum um sentimentodifuso de insatisfação. Num livro recente, Beyond the Cultural Turn(1999), Victoria Bonnell e Lynn Hunt demonstram o colapso dos para-digmas de explicação científica e a necessidade de um realinhamentodas disciplinas. A este propósito, é útil insistir no sentido inevitavel-mente comparado de toda a investigação, mas também na necessidadede fundar um comparatismo elaborado do ponto de vista teórico econceptual. A intenção de passar das análise dos “factos” à análise do“sentido dos factos” dá origem a uma nova epistemologia do conheci-mento, que define perspectivas de investigação centradas não apenas namaterialidade dos factos educativos, mas também nas comunidadesdiscursivas que os descrevem, interpretam e localizam num dado espa-ço-tempo.

O texto e a imagem estão no centro destes novos modos historiográ-ficos, que transportam distintas maneiras de ler e de olhar:

Nos discursos-práticas da educação, os textos incluem livros escolares,

relatórios de investigação, estudos, documentos de orientação curricular e

materiais de avaliação. Projectos de investigação, dados empíricos, inter-

venções experimentais ou testes estatísticos são também discursos-práti-

cas. O seu sentido depende de textos que estão relacionados ainda com

outros textos. A intertextualidade de discursos e práticas constitui e estrutu-

ra os nossos mundos social e educacional [Cherryholmes, 1988, p. 8].

[A viragem imagética] representa a compreensão de que a lógica do

espectáculo (o olhar, a visão, as práticas de observação, a vigilância e o

prazer visual) pode ser elaborada como um “problema teórico” com a mes-

ma relevância que as diversas formas de ler (decifração, descodificação,

interpretação, etc.); e representa também a afirmação de que a experiência

visual ou a “literacia visual” talvez não possa ser totalmente explicável

através do modelo de textualidade [Mitchell, 1994, p. 16].

Na verdade, é impossível produzir qualquer explicação fora de umquadro linguístico, porque as imagens existem e são mostradas em cam-pos sociais, institucionais e políticos que estão discursivamente saturados.

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Mas, ao mesmo tempo, é importante reconhecer a irredutibilidade daimagem ao texto (e vice-versa). É por isso que as práticas de “ver textos”e de “ler imagens” se encontram hoje intrinsecamente ligadas (Jay, 1996,p. 3). A História – como Hayden White escreve no seu último livro,Figural Realism (1999) – não é apenas um objecto que podemos estudarou o nosso estudo desse objecto; a História é também, e principalmente,uma certa forma de relação com o passado mediada por um discursoescrito ou por um discurso visual.

Não se trata de abdicar da cientificidade do conhecimento histórico,dissolvendo toda a realidade em discurso. Não se trata – como RogerChartier (1998) tem alertado – de confundir a racionalidade que organizaa produção de discursos com a racionalidade que organiza os outros regi-mes da prática. Não se trata de ignorar que o saber histórico pode (edeve) ser controlado por critérios de rigor e de verdade. Trata-se, sim, deafirmar a impossibilidade de separar o texto do seu contexto de produ-ção. Trata-se de compreender o modo como os discursos moldam os fac-tos, configuram as realidades, não se limitando a descrever qualquer coisaque estaria para além deles. Trata-se de identificar as modalidades vi-suais que definem a nossa “civilização da imagem”.

O historiador não é um fotógrafo do passado, é um produtor de sen-tidos sobre o passado. E, por isso, está sempre confrontado com diferen-tes narrativas, quantas vezes opostas e contraditórias, que procuramexplicar os mesmos factos. A sua busca intelectual tem lugar numa “are-na de conflitos”, ocupada por ideologias e identidades várias. Parece des-necessário sublinhar a relevância destas perspectivas para a análisehistórica e comparada das relações Portugal-Brasil-Moçambique que seconstruíram, em grande medida, no espaço da língua... da língua falada,da língua escrita ou da língua imaginada.

6ª digressão – As teorias pós-coloniais

O último percurso de reconstrução teórica refere-se, sem surpresa, àsteorias pós-coloniais. Elas encontram-se no âmago da minha argumenta-ção, quando põem em causa que o “conceito-Europa” funcione comoreferente silencioso de todas as histórias. Ou, o que é o mesmo, quando

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criticam que só a “Europa” seja teoricamente conhecível, remetendo paraum estatuto empírico, isto é para um estatuto de “casos”, todas as outrashistórias (Chakrabarty, 1992). Ora, a crítica à linearidade do chamado“progresso civilizacional” contém a afirmação de que o resto-do-mundotambém pode ser lugar de uma reflexão teórica.

O modo como o sujeito colonial foi constituído como o outro éindissociável dos processos educativos, formais e informais, que cons-truíram a dicotomia “primitivo/moderno” como sinónimo de “selvagem/civilizado” (Spivak, 1999). As “normas universais”, que serviram parajulgar e confrontar o outro, foram difundidas, em grande parte, atravésdas instituições escolares. Robert Young (1990) vai mais longe na suacrítica, quando a estende até aos dias de hoje, afirmando que é precisoanalisar as formas discursivas, as representações e as práticas do racis-mo actual, à luz da sua relação com o passado colonial e do modo comocertas disciplinas e conhecimentos fizeram parte integrante das própriasestruturas educacionais.

Vale a pena chamar a atenção para dois aspectos que se relacionam,directamente, com a missão da escola. Por um lado, as interdependênciasentre a metrópole e as colónias, que transformam os territórios coloniaisem lugares de experimentação para tecnologias de governo que, maistarde, são utilizadas “em casa”. Neste sentido, a formação ética dos colo-nizadores e o desenvolvimento de formas de “auto-governo” revelam-senecessárias à eficácia de um poder que se exerce à distância. NikolasRose (1999) tem toda a razão quando conclui que neste processo são aspróprias características do europeu e os seus estilos de governo que sedefinem e consolidam.

Por outro lado, é preciso registar esta ironia da história que faz dascolónias um elemento essencial na constituição da unidade europeia, dopensamento ocidental e dos seus modelos de educação e cultura. A escolaé uma das instituições onde se difunde esta imagem reflectida pelo “espe-lho dos colonizados”, construindo relações complexas e ambíguas entremundos que se fundem e se guerreiam. As histórias da colonização difun-diram uma visão unidireccional e unívoca da relação colonizador-coloni-zado. Mas, como mostra Thomas Popkewitz, alguns autores têm utilizadoo conceito de hibridação para se referirem a estes encontros, a estas

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“zonas de contacto”, nas quais nos procuramos através do outro e encon-tramos o outro em nós.

O conceito de hibridação permite-nos conceber de forma não hierárquica

a relação entre saber e poder, isto é, permite-nos pôr em causa a ideia de um

movimento que se desenvolveria num único sentido, das nações centrais do

sistema mundial para os países periféricos ou menos poderosos. Bem pelo

contrário, torna-se cada vez mais evidente que o global e o local estão

inextricavelmente ligados através de padrões complexos que são múltiplos

e multidireccionais [2000, p. 6].

O debate não pode esquecer as tendências de mundialização querepresentam, muitas vezes, a redução a uma matriz única. No passado,a presença do outro justificou-se pela sua singularidade. Agora – comose prova pelos sofisticados aparatos internacionais de recolha e trata-mento da informação – há a tendência para integrar numa mesma “foto-grafia-do-mundo”, o eu e o outro. A panóplia de rankings e hierarquiasque separam os diversos mundos que existem no mundo transformam oprocesso de inclusão num dispositivo de exclusão e discriminação.

Actualmente, o nosso esforço intelectual não tem como referência oestabelecimento de dicotomias, mas antes a compreensão do modo comodiferentes práticas discursivas se imbricam e se sobrepõem configuran-do maneiras de pensar e de agir. Importa, por isso, compreender aglobalidade deste processo complexo de “laminação” a que chamamosHistória, ao mesmo tempo que decompomos as diversas “lâminas” que oconstituem. É nesta dupla lógica de “amalgamar” e de “desenovelar” queencontramos zonas de olhar por descobrir. A descoberta destas novaszonas é o desafio mais estimulante da pesquisa comparada.

Eixos e Temáticas de Investigação

A pesquisa comparada Portugal-Brasil-Moçambique, com os “con-tornos” que temos vindo a apresentar, desenvolve-se em torno de doiseixos que fixam quatro pontos de entrada na investigação.

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O primeiro eixo toma como referência os “actores”, em particular osalunos e os professores, procurando compreender:

• por um lado, o modo como a expansão do modelo escolar instaurauma relação pedagógica à infância, transformando as crianças emalunos ou, para recorrer a um termo que caiu em desuso, fazendo-nos olhar para as crianças como se elas fossem (sempre) “escola-res”;

• por outro lado, o modo como o alargamento da escola a todas ascrianças, no quadro de um princípio de “cidadania”, obrigou os pro-fessores a construírem (e reconstruírem) identidades pessoais, quesão também identidades profissionais.

O segundo eixo organiza-se no plano do conhecimento, reportando-se à forma como os “especialistas” do currículo e da pedagogia intervêmna produção e difusão de “sistemas de ideias” e de práticas discursivasque consolidam o modelo escolar, procurando compreender:

• por um lado, o modo como um conhecimento disponível no planomundial foi transformado num “currículo nacional”, que é, ele pró-prio, produto de uma tecnologia mundial de progresso e de moder-nização;

• por outro lado, o modo como os processos de comunicação e detransação do saber pedagógico definem redes e influências querelocalizam nas comunidades nacionais ideias e conceitos que cir-culam no espaço internacional.

Fortemente ancorada numa perspectiva histórica, a investigação de-senvolve-se em ciclos de quarenta anos, concedendo uma particular aten-ção a grandes momentos de viragem do modelo escolar: décadas de 1880,de 1920 e de 1960 (cf. Nóvoa, 1998). Do ponto de vista comparado, nãoqueremos repetir estudos já realizados e, por isso, adoptamos, como nívelde comparação, um espaço “intermédio” composto por três países cominserções políticas, económicas e geográficas muito distintas, mas comalgumas referências comuns no plano da língua e da história.

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7ª digressão – Transformando as crianças em alunos

A primeira “entrada” procura compreender o modo como os alunossão “inventados” (construídos, categorizados, classificados etc.) pela es-cola, isto é, o modo como através da escola de massas as crianças sãotransformadas em alunos. Trata-se, no fundo, de compreender as mu-danças na forma de pensarmos e de nos relacionarmos com as crianças,mas também as continuidades da acção realizada pela escola, em parti-cular na imposição de certas “verdades” e na configuração das “subjec-tividades”.

A construção de uma “norma” de aluno é essencial para a compreen-são das lógicas de inclusão e de exclusão e para a definição do “alunoimaginado”. Estamos perante um processo que mobiliza múltiplasracionalidades, abrangendo discursos médicos, interesses comerciais,observações científicas, práticas sociais etc. Vários autores têm traba-lhado nesta direcção, com particular destaque para Thomas Popkewitzna sua obra Struggling for the Soul (1998). Por isso, é essencial com-preender o modo como a escola configura dispositivos de governo dosalunos, através da prescrição de comportamentos ditos “saudáveis” e“razoáveis”, legitimados, regra geral, pela vontade de assegurar a forma-ção de sujeitos “autónomos” e “responsáveis”.

A nossa atenção centra-se na panóplia de instrumentos que descre-vem as crianças do ponto de vista quantitativo e qualitativo, sugerindodiferentes “tipologias” de alunos. No primeiro caso, confrontamo-noscom a produção de estatísticas, enquanto “aritmética do Estado”, e o seupapel na construção de um “raciocínio populacional”. Ora, a gestão dosalunos como “populações” é indissociável do trabalho que se realiza naescola de massas e do duplo processo de homogeneização-uniformizaçãoe de individualização-diferenciação que ela realiza (Hacking, 1995). Nosegundo caso, estamos à procura de todo o tipo de materiais (inquéritos,relatórios médicos, testes psicológicos, fichas judiciais etc.), produzidospor uma série de “especialistas”, que nos permitam compreender o modocomo os discursos médicos, psicológicos, pedagógicos e assistenciaisconfiguram uma ideia de aluno e reconstroem a sua subjectividade.

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8ª digressão – A fabricação das identidades profissionaisdocentes

A segunda “entrada” analisa as mudanças ocorridas no professora-do, e nos seus modelos de profissionalização, com a expansão da escolade massas. Adoptam-se como ponto de partida algumas reflexões sobrea história da profissão docente, ainda que a análise incida maisdirectamente sobre a questão da(s) identidade(s). O objectivo principal éapreender a forma como os próprios professores vivem e falam da suaprofissão, reconstruindo os sentidos que deram ao seu próprio trabalho,numa tripla perspectiva: social e política, o que remete para os discursossobre a cidadania, o progresso etc.; pedagógica, o que obriga a pensar aproblemática dos saberes, da formação e da inovação; profissional, oque conduz a uma reflexão sobre as questões do estatuto, do prestígio eda imagem social.

Se é possível estabelecer continuidades na forma de os professoresse “identificarem” com a sua profissão, seria inaceitável não assinalaras mudanças num processo que nunca está acabado. A fabricaçãoidentitária produz-se num jogo de poderes e de contrapoderes entre ima-gens que são portadoras de visões distintas da profissão; ela articuladimensões individuais, que pertencem à própria pessoa do professor,com dimensões colectivas, que estão inscritas na história e nos projectosdo colectivo docente. Os debates actuais sobre as cidadanias múltiplas,os “práticos reflexivos” ou a “nova” profissionalidade docente revelambem o trabalho quotidiano de construção identitária a que os professoresestão sujeitos.

Tal como na “entrada” anterior, também aqui seguiremos linhas deargumentação sobre os modos de regulação social e as tecnologias depoder que definiram normas, regras e procedimentos a serem respeitadospor um professor “competente” e “responsável”. Estes regimes de gover-no serão analisados em conjunto com perspectivas dos professores sobreas suas próprias vivências pessoais e profissionais.

As duas principais direcções de trabalho tentam responder a estaspreocupações. Por um lado, a análise de materiais autobiográficos pro-duzidos pelos professores (narrativas, memórias, diários, “romances de

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formação” etc.). Por outro lado, o recurso a documentos centrais dosprogramas de formação, nomeadamente aos manuais das disciplinas docampo pedagógico utilizados desde o final do século XIX: “O nosso ar-gumento principal é que os textos de Didáctica e de Pedagogia consa-gram o pensamento dominante em circulação, o senso comum da práticaprofissional, os modos como se concebe a acção pedagógica dirigida aoaluno/sujeito de aprendizagem, estabelecendo sistemas de verdade a res-peito dos processos escolares” (Correia, 2000, p. 2).

9ª digressão – Lutando pelo currículo da “escola demassas”

A terceira “entrada” procura compreender a evolução do currículoda escola de massas, tendo como referência os estudos da equipa deStanford. Citem-se, a título de exemplo, algumas conclusões do estudoSchool Knowledge for the Masses:

As mudanças principais que se observam no desenvolvimento do currícu-

lo mundial ao longo do século XX foram estruturadas pelas concepções de

educadores profissionais e de investigadores. Estamos perante mudanças

teorizadas, e não apenas perante mudanças que se limitariam a reflectir

situações conjunturais ou de poder. Cada uma destas mudanças – alterações

na aprendizagem da leitura, desenvolvimento da educação científica ou da

matemática, reorganização do ensino das ciências sociais, desenvolvimento

do ensino artístico e da educação física, etc. – são produto de uma elabora-

ção teórica no plano educacional, quaisquer que sejam as suas eventuais

origens em termos de poderes ou de interesses [Meyer, Kamens & Aaron,

1992, p. 175].

O nosso objectivo é reconstruir as principais mudanças (e permanên-cias) neste currículo e, sobretudo, identificar as lógicas de difusão mun-dial de uma idéia de currículo e de um corpo de disciplinas (ou matérias)a ensinar. É importante que a história do currículo nos ajude a ver oconhecimento escolar como um artefacto social e histórico sujeito a mu-

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danças e flutuações, e não como uma realidade fixa e atemporal. Poroutro lado, é necessário reconhecer que o objectivo central da história docurrículo não é descrever como se estruturava o conhecimento escolar nopassado, mas antes compreender como é que uma determinada “constru-ção social” foi trazida até ao presente influenciando as nossas práticas econcepções do ensino (Goodson, 1997). Como escreve António CarlosCorreia: “De alguma maneira pode dizer-se que se trata de uma tentativade apreender, se não o que acontece realmente na escola, pelo menos omodo como os intervenientes se representam a si mesmos e às relaçõesque estabelecem com os outros, com os saberes e com as aprendizagens”(2000a, p. 5).

A análise do currículo não se baseia apenas nos textos formais, in-vestigando também as dinâmicas informais e relacionais, que definemestratégias distintas de aplicar na prática as deliberações legais. Por isso,não deixaremos de olhar para as práticas, que muitos autores conside-ram uma das principais “zonas esquecidas” pela história da educação(Grosvenor, Lawn & Rousmaniere, 1999). É este silêncio que queremosresgatar, através de um inquérito sistemático às práticas de ensino, istoé, às modalidades de concepção e de realização do currículo.

A nossa interrogação tem presente as “abordagens do sistema mun-dial”, mas o que verdadeiramente nos interessa compreender, não é tantoa difusão mundial de modelos curriculares, mas sim o modo como elesforam apropriados e reelaborados nos diferentes contextos nacionais. Aanálise privilegiará uma comparação transversal a Portugal, Brasil eMoçambique, procurando identificar formas particulares de concretiza-ção de um modelo curricular que se imagina “transnacional”.

Esta reelaboração tem lugar no plano teórico, mas concretiza-se empráticas escolares quotidianas. É neste duplo plano – da intervenção dos“especialistas” e da acção dos “professores” – que situamos as nossasperguntas. Interessa-nos identificar as diversas instâncias que partici-pam neste processo, através do qual se vão negociando e configurandoas práticas curriculares na sala de aula. Necessitaremos, para isso, derecompor os diversos estratos de decisão, como camadas que se mistu-ram, sedimentando uma determinada proposta pedagógica.

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10ª digressão – Jogos de discursos e de influências naprodução pedagógica

A quarta “entrada”, claramente situada numa lógica de sociologia doconhecimento, procurará identificar a génese de um discurso pedagógicono contexto da emergência das ciências sociais e humanas no final doséculo XIX. Por um lado, queremos compreender a forma como as ciên-cias da educação estiveram historicamente ligadas à produção de práti-cas políticas e reformadoras; e, ao mesmo tempo, mostrar as diferençasfundamentais entre a racionalidade da decisão política e a racionalidadedo trabalho científico. Por outro lado, pretendemos identificar as liga-ções entre as formulações teóricas no plano educativo e as práticas esco-lares concretas; situando a análise do discurso pedagógico fora datradicional clivagem teoria-prática, que se revela empobrecedora paraapreender o debate educativo.

Para atingir este objectivo, os periódicos revelam-se uma fonteincontornável na medida em que permitem: apreender a multiplicidade docampo educativo, compreender as dificuldades de articulaçãoteoria-prática e identificar os principais grupos e actores numa determi-nada época histórica. Simultaneamente, a análise das revistas facilita umainserção do discurso pedagógico no conjunto dos discursos científicos, oque é da maior importância para o nosso projecto.

É nossa intenção esclarecer os circuitos de comunicação e as redes deexperts que relocalizam nas comunidades nacionais saberes disponíveisno espaço mundial. Hoje em dia, está bem estabelecida a importânciadestes especialistas da razão – que são também especialistas da alma(Popkewitz, 1998) – no governo das coisas da educação. Interessa-nosdesvendar o jogo de influências e de transacções – por adesão ou rejei-ção, por convergência ou afastamento – entre as comunidades pedagógi-cas do Brasil, de Portugal e de Moçambique. Ad intra e Ad extra. Isto é,na forma como os grupos nacionais se confrontam com as modelizaçõesmundiais, mas sobretudo nas ligações que existem historicamente entreeles. No quadro de uma história comparada,

o estudo parte de uma análise crítica das teorias da difusão global de mode-

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los estandardizados de organização educacional, guiada pela compreensão

dos modos como a instituição generalizada de um modo particular de pen-

sar-fazer a escolarização, mais concretamente a escola de massas, resulta,

historicamente, do cruzamento de dinâmicas globais e locais. [...] No qua-

dro de uma sócio-história do conhecimento pedagógico especializado, a

pesquisa observa a construção desse saber a partir da articulação de factores

internos e externos ao território educativo e da interpenetração de saberes e

relações de poder: a produção e a difusão de discursos-expert em educação

é compreendida como parte da afirmação universitária das ciências huma-

nas enquanto teorias reguladoras da vida social [Carvalho, 2000, p. 6].

Aqui ficam, telegraficamente, alguns contornos do programa de pes-quisa que temos vindo, pouco a pouco, a pôr de pé. São bóias de sinaliza-ção que servem de orientação aos diferentes investigadores e que osprocuram ajudar nas suas navegações. Não quisemos construir um textofechado, mas antes apontar os sentidos, as perspectivas e as temáticasque podem contribuir para um estudo dos Tempos da escola no espaçoPortugal-Brasil-Moçambique.

A nossa ambição é, ao mesmo tempo, modesta e, talvez, excessiva.Sabemos do que estamos à procura, mas sabemos também que ainda nãotemos as palavras para o dizer e para o comunicar. Acreditamos que valea pena fazer este caminho intelectual, no interior da história difícil dachamada lusofonia, que é também, queiramo-lo ou não, história comum,como escreve Eduardo Lourenço:

Não está no poder de ninguém nem rasurá-la nem branqueá-la a baixo

preço. O que talvez se imponha é revisitá-la em comum para descobrir,

acaso também a meias, para além do que nela houve de doloroso e inexpiável,

o que, apesar de tudo, emerge ainda desse processo como possibilidade e

promessa de um diálogo que mutuamente nos enriqueça e nos humanize

[1999, p. 119].

Só posso terminar com Paulo Freire:

Evidentemente que nenhum brasileiro escapa – porque História se recu-

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sa, se briga, conta-se, se procura esquecer até, mas não se apaga. O que

passou, passou e marcou. Então, o meu problema aqui não é de voltar a

1500 e acabar com a presença portuguesa colonizadora. Não é isso. Mas o

facto é que eu não posso deixar de passar por isso. Então, em certo sentido,

não há dúvida nenhuma que a minha gostosura em Lisboa e por causa de

Lisboa tem que ver com a passagem de vocês por aqui. Não há dúvida ne-

nhuma. O que eu quero dizer, é que eu não renego isso. Ao mesmo tempo

em que eu brigo, até historicamente, contra o colonialismo – se eu fosse

vivo naquele tempo eu estaria brigando contra os portugueses –, ao mesmo

tempo, eu me sinto atraído. Quer dizer, o colonizado experimenta essa

ambiguidade de ser e não ser [1998, p. 18].

A isto, nenhum brasileiro escapa. Nenhum português, escapa. Ne-nhum moçambicano, escapa. A isto, nenhum de nós escapa. E é por issoque estamos aqui, à procura das nossas histórias comuns, do lugar queelas ocuparam no passado e do sentido que podem vir a ter para nospensarmos no mundo.

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La Historia de la Educación Argentinay la Formación Docente

ediciones y demanda institucional*

Adrián Ascolani**

Preocupado em perceber a maneira como autores de manuais de ensino se apropriaramde saberes produzidos, com viés sociológico, pela academia no campo da História, einterrogando-se sobre a possibilidade desses mesmos autores constituírem novos obje-tos de estudo em função das demandas surgidas pelas sucessivas mudanças na formaçãodocente na Argentina, o presente artigo analisa manuais de ensino de História da Educa-ção, laicos e católicos, elaborados desde o início do século XX.HISTORIOGRAFIA; MANUAIS DE ENSINO; IMPRESSOS FORMAÇÃO DOCENTE.

Concerned about the way teaching manual authors misappropriated the producedknowledge with sociological sloping, by the academy in the History field, and questioningabout the possibility of these same authors of constituting new study objects because ofthe demands emerged by the consecutive changes in the teaching formation in Argenti-na, the present article analyses History of Education teaching manuals, laic and catholic,elaborated since the beginning of the 20th century.HISTORIOGRAPHY; TEACHING MANUALS; PRINTINGS; TEACHING FORMATION.

* Una versión preliminar de este artículo fue presentada bajo el título “Los librosargentinos de Historia de la Educación. Ediciones, circuitos y consumidores” en laXXII Anual Conference of the International Standing Conference for the History ofEducation (ISCHE), Alcalá de Henares, septiembre de 2000.

** Professor titular de História Social da Educação na Universidade Nacional GeneralSan Martín; professor adjunto de História Sociopolítica do Sistema Educativo Ar-gentino na Universidade Nacional de Rosario; secretário executivo da SociedadeArgentina de História da Educação; editor do Boletim da Sociedade Argentina deHistória da Educação. Áreas de investigação: Historiografia da Educação; Educa-ção e Desenvolvimentismo na Argentina, segunda metade do século XX.

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La Historia de la Educación tiene en Argentina un pasado múltiple,en ocasiones fragmentado, debido a los diferentes circuitos de elaboracióny circulación de los saberes que la componen. Si nos atenemos a sudesarrollo como disciplina, con un objeto y campo de trabajo propio,surge una periodización derivada de las continuidades y cambios en lospresupuestos teórico metodológicos1. Pero si nos situamos en la perspec-tiva de la inserción institucional y demanda de este cuerpo de saberes,observaremos que dicha periodización no tiene una total correspondenciacon la real inserción, grado de permanencia y consumo que lectores, ymás específicamente alumnos de los diversos ámbitos de la formacióndocente, han hecho y hacen de los textos que componen este campo delconocimiento.

La Historia de la Educación ha sido un cuerpo de saberes muy asociadoa la formación del magisterio, y a la historia evolutiva – frecuentementeacrítica – de las instituciones, a la vez que constituyó un objeto de estudiono exclusivo de historiadores. Estos factores hicieron que parte de dichahistoriografía fuera influida por un cierto pragmatismo y un reduccionismopedagogista de fenómenos que tuvieron una incidencia social obviamentemás amplia. Paralelamente, la permanencia de obras de factura más tra-dicional, de estilo historicista-acontecimental, modeló la transmisión deuna historia de la educación excesivamente fáctica y narrativa hastatiempos muy recientes.

Con estos recaudos, analizaremos en particular el modo en que losautores de manuales de texto se apropiaron de saberes surgidos en buenamedida con una intencionalidad más vinculada al ensayo sociológico o al

1 Ver Ascolani, 1999a. En esta oportunidad decíamos que “en la Historiografíaeducacional argentina existieron etapas de desarrollo claramente delimitadas:una etapa de pre formación iniciada en 1870; otra fundacional, en la cualpredominaron las crónicas político institucionales, extendida desde 1910 a 1955;una etapa transicional, en la cual convivieron las visiones tradicionales connuevas modalidades críticas, extendida desde 1955 a 1970; un período de revisióncrítica sobre problemáticas vinculadas al Estado y la Sociedad, que se prolongadesde 1970 a 1990; y un último momento, que llega hasta el presente, de inten-sa producción, y en el que conviven las preocupaciones del período anterior conla ampliación del objeto de estudio a partir de temáticas referidas a las ideas yprácticas pedagógicas”.

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interés académico de los historiadores, y sí fueron capaces de constituirnuevos objetos de estudio, alentados por las demandas surgidas de lossucesivos cambios curriculares en la formación docente. Al propio tiempo,analizaremos las expectativas de las editoriales, los ámbitos de circulacióny el público lector-consumidor. No nos ocuparemos en esta ocasión de laproducción historiográfico educacional que no pueda ser considerada comomanuales de estudio, puesto que ya hemos desarrollado sus característi-cas y evolución en oportunidades anteriores2.

La historia del libro y de la lectura aún representan un camino pocotransitado en Argentina, de modo que un abordaje como el que proponemosen esta ocasión posiblemente permitirá visualizar aspectos relevantes delas particularidades, incentivos y obstáculos, que han incidido en la es-critura y edición de obras histórico educacionales, sobre todo teniendo encuenta que la investigación académica ha obtenido canales estables definanciamiento estatal recién en las dos últimas décadas. También permi-te explicar los motivos del éxito comercial de ciertos libros de menorjerarquía científica, pero populares en las instituciones formadoras delmagisterio.

Ediciones y Editoriales

Dejando de lado algunas publicaciones dispersas realizadas duranteel siglo XIX, las primeras obras referidas a la historia de la educaciónsurgidas a comienzos del siglo XX eran resultado de iniciativasinstitucionales y de autores ligados a la conducción del sistema educati-vo, de modo que su aparición y circulación estuvo restringida a circuitosoficiales, y a ámbitos culturales públicos. El mercado editorial estabaaún en vías de conformación, y las grandes editoriales fueron en realidadsólo imprentas hasta la década de 1920, cuando comenzaron a surgiremprendimientos editoriales, que combinaban los objetivos comerciales

2 Ascolani, 1999a. Ver también Ascolani, 1999b, “Historiadores e historia educa-cional argentina: una mirada histórica de su estado actual”, en Sarmiento, AnuarioGalego de Historia da Educación, n. 2, Universidade de Vigo, 1998.

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con una voluntad educadora3. Con intención de llegar a un público am-plio las ediciones económicas de autores internacionalmente célebres yde ensayistas argentinos fueron cubriendo las diversas preocupacionesintelectuales de la época. El pensamiento social, político e histórico ocupóel mayor espacio de estos nuevos circuitos culturales; los ensayoseducacionales no lograban aún el mismo predicamento aunque algunosautores vinculados al ensayo histórico-educacional y político educacio-nal – como Juan María Gutiérrez, Amancio Alcorta y Carlos OctavioBunge4 – no dejaban de estar presentes en voluminosas colecciones quelograron una difusión respetable, arraigándose como parte de la tradiciónintelectual argentina.

Durante los años de 1920 la edición de obras referidas a Historia dela Educación fue relevante en comparación con el período anterior, aunquesu circulación parece haber estado demasiado ligada al ambienteuniversitario y a círculos limitados del profesorado secundario y normal.Esto suponía una limitación en la demanda espontánea del público lectory se correspondía con la también escasa demanda institucional de dichasobras con destino a la formación del magisterio y profesorado. En losámbitos de la Historia académica, la historia de la educación, eradesarrollada como parte de la historia de las instituciones y de la culturanacional, encontrando lugar de inserción en sus publicacionesinstitucionales. No obstante, la educación y su historia convocaban aintelectuales de diversa formación que desenvolvían su carrera profesionaldentro del sistema educativo. La presentación de sesenta ensayos e historiasal Concurso sobre Historia de la Educación Argentina realizado en 1934,muchas de ellas con verdadero valor historiográfico5, comprueba que elmercado editorial y los espacios de publicación académico-educacionalesno eran suficientes para asimilar la oferta de trabajos inéditos. Lapublicación de diez trabajos premiados en este concurso sucesivamenteen la segunda mitad de esa década, por cuenta del Consejo Nacional de

3 Cf. Romero, 1990.

4 Fue la colección La Cultura Argentina la que incorporó las obras de estos autoresen sus ediciones de la década de 1920.

5 Salvadores, 1941; Garretón, 1939; Chaneton, 1936.

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Educación – entidad convocante de dicho concurso – revela la necesidadde financiamiento fiscal para difundir obras a las cuales le sobraba méri-to intelectual pero carecían de un mercado ávido de ellas. Incluso losmanuales generales de Historia de Educación – es decir aquellos conpretenciones de univesalidad –, con potencial destino en la formación delprofesorado Normal, no encontraron un interés manifiesto por parte delas editoriales argentinas, persistiendo el uso de manuales impresos enespaña.

Esta estrechez del mercado editorial cambiaría una década después,cuando repentinamente se multiplicó la demanda institucional de obras deHistoria de la educación, general y argentina, y de Política educacional, almodificarse los planes de estudio del profesorado normal y del magisterio.Esto ocurría al propio tiempo que las editoriales asumían un roldefinidamente empresarial, de modo que la demanda de libros fueacompañada con el crecimiento o aparición de editoriales que se inclinaronal pujante mercado de manuales de texto. Algunas de estas editoriales seespecializaron en temas pedagógicos, como El Ateneo, Losada, Paidós,Atlántida, y otras menores como Itinerarium y luego Huemul, adoptandoobras de docentes del profesorado universitario o normal, las cualesresultaron éxitos comerciales debido al repentino surgimiento de un mer-cado cautivo debido a la demanda de los estudiantes del magisterio. Conmenos diferencias conceptuales que ideológicas, las obras escogidas porestas editoriales, se perpetuaron durante más de tres décadas como ofertaúnica para la formación del magisterio, superando incluso coyunturas po-líticas diametralmente diferentes que tenían una incidencia directa sobre elsistema educativo. La política interna de estas empresas editoriales fue lareedición indefinida y la no innovación, una estrategia que parece habersido compartida por la mayor parte de los formadores del magisterio quehallaban en estas obras un material lo suficientemente aséptico como parareinterpretar a gusto sus contenidos, o bien para tomarlas textualmenteevitando todo juicio que pudiera resultar políticamente comprometido.

En la década de 1960 proliferaron las obras vinculadas a temáticashistórico-educacionales, la mayor parte de ellas con preocupaciones his-tórico-políticas, encontrando ambiente propicio en las institucionesacadémicas para su edición, entre las cuales la Editorial de la Universidad

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de Buenos Aires merece mención particular por la cantidad y calidad desus títulos. La oferta oficial de obras renovadoras se combinó con laaparición de micro experiencias editoriales, generadas por los propiosautores, cuya principal debilidad fue la imposibilidad de lograr una sóli-da distribución nacional. Esta creciente oferta convergía con una crecientedemanda resultante del proceso de politización e intelectualización delestudiantado universitario y de los profesorados, principalmente en loscentros urbanos de mayor importancia.

Este dinamismo del mercado editorial fue capaz de sortear lasrestricciones impuestas por los gobiernos militares que se sucedieron desde1966 a 1972, y por el gobierno peronista desde 1974, pero sufrió uncolapso fatal en el período 1976-1982, debido a las políticas de censuraaplicadas por los gobiernos militares de esos años. La crisis degobernabilidad de 1982 y el proceso de redemocratización iniciado en1984 revirtieron rápidamente este proceso, surgiendo un público lectoren expansión cuantitativa interesado en la historia política de la educacióny en los aspectos pedagógicos asociados a la misma. La demanda deobras críticas fue cubierta con la reedición de obras anteriores a 1976 ycon trabajos nuevos elaborados por una nueva generación de historiado-res de la educación. Nuevamente la estrategia de libros baratos, esta vezpara un público verdaderamente masivo, era puesta en marcha principal-mente por Centro Editor de América Latina, una editorial pequeña, perocon una distribución tan amplia que aprovechaba incluso los canales deventa propios de las publicaciones periodísticas. Este mercado ampliadoy la actualización de demandas académicas dieron lugar al surgimientode colecciones y de nuevas editoriales especializadas en temas educativosorientados a la formación de Pedagogos y del profesorado universitario yterciario, favoreció especialmente el desarrollo de una historia crítica delas ideas e instituciones educativas, cuyo desarrollo corresponde sobretodo a la década de 1990.

La Demanda Institucional

La demanda institucional de libros de historia de la educación tuvo

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limitaciones de diverso tipo: cuantitativamente fue escasa la demanda deobras para la formación superior y universitaria, por el reducido pesonumérico del potencial público lector – cuanto menos hasta la década de1960 –; en la gran masa de maestros la historia de la educación no fuemateria de estudio permanente, y en algunas provincias lo fue sólocoyunturalmente; esta formación docente no promovía incentivos para laformación de intelectuales que pudieran operar como productores deconocimientos en el terreno específico de la asignatura en cuestión –limitación esta que puede extenderse incluso a las carreras universitariasde Pedagogía. Sin pretenciones de exhaustividad, delinearemos seguida-mente los trazos más gruesos de la incorporación de la Historia de laeducación argentina, como contenido y materia de estudio, en las diver-sas instituciones educacionales.

En la formación de los maestros normales nacionales la Historia de laEducación no tuvo presencia como contenido de la enseñanza hasta 1946,momento en que se implementó la reforma de planes de estudios de 19426.El motivo de tal exclusión tenía que ver con el sesgo pragmático, didactista,impreso a los contenidos pedagógicos hasta esa fecha.

En el nuevo Plan, los contenidos referidos a historia de la educacióny a “política y organización de la educación” se desarrollaban en unaúnica materia, a la que se dio la misma relevancia que a asignaturascomo Pedagogía y Didáctica General – según lo que se desprende de lacarga horaria asignada. Incluso en las posteriores reformas de planes, de1948 y 1949, este bloque temático pasó a tener el doble de la cargahoraria – sólo hasta 1951, desprendiéndose como área autónoma la“Historia de la Educación”, comprendiendo dos asignaturas, una queabarcaba hasta el siglo XVIII y la otra hasta el siglo XX. Como señalaS. Gvirtz (1991, pp. 58-62), estos programas de Historia de la Educacióngeneral dedicaban sólo entre una y tres unidades a la historia de laeducación argentina, de modo que los contenidos allí desarrollados eranapenas más extensos que los que se incluían en la asignatura “Política yOrganización”.

6 El nuevo plan era consecuencia de la incorporación de las Escuelas Normales a laenseñanza media, lo cual suponía un ciclo básico común con el Bachillerato, detres años.

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En 1956 entró en vigencia un nuevo Plan de estudios para la EnseñanzaNormal Nacional que estableció el dictado de Historia General de laEducación en primer año y Política Educacional en segundo año del Ci-clo del Magisterio. Su vigencia se prolongaría durante dos decenios, has-ta ser reemplazadas por una materia única llamada Historia de laEducación y Política de la Educación Argentina. Las escuelas normalesde jurisdicción provincial tuvieron sus propios planes de estudio; porejemplo en la provincia de Santa Fe la asignatura Historia de la Educaciónfue suprimida definitivamente en 1956, manteniéndose su ausencia luegode convertirse la enseñanza normal en profesorado de nivel terciario amediados de la década de 1960. El subsistema privado parece habermantenido en mayor grado la Historia de la Educación como asignaturaen las últimas décadas, incluso en el nivel medio, como es el caso de losbachilleratos con orientación pedagógica.

En las Escuelas Normales de Profesores, es decir aquellas escuelasque preparaban para funciones directivas, ya el Plan de Estudios de 1903incluía la asignatura “Historia de la Educación” entre las específicamentepedagógicas. Este plan tuvo vigencia hasta 1953, momento en el cual elProfesorado Normal pasó a formar parte del Profesorado de enseñanzasecundaria – no obstante ya en 1951 Historia de la Educación fue supri-mida, al tiempo que se incluía la materia “Formación y caracteres de lacultura argentina”. La formación del profesorado secundario, en sus dis-tintas especialidades, se desarrolló, desde 1904, en el Instituto Nacionaldel Profesorado Secundario – con sede en Buenos Aires, Paraná yCatamarca –, dictándose en él tres materias pedagógicas: Historia de laEducación, Pedagogía General y Metodología y Práctica de la Enseñanza.

Las universidades también formaron profesores cuyo destino era laenseñanza secundaria. La Universidad Nacional de La Plata7, fue escenariode una de las primeras experiencias en este ámbito de formación delprofesorado. La formación docente estaba a cargo de la Sección Pedagó-gica, dirigida por Víctor Mercante. Su primer Plan de estudios revela unpredominio de la psicología y metodología en los dos primeros años, pero

7 Creada en 1906 sobre la base de la Universidad Provincial del mismo nombre, einspirada en un modelo académico netamente positivista.

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también un lugar significativo a saberes vinculados con la historia de laeducación en los cursos posteriores: en Tercer Año se dictaba Historia yCiencia de la Educación, Metodología, Psicología Anormal; y en CuartoAño, Metodología Especial y Legislación Escolar, Argentina y compa-rada. Según R. Dabat, estas materias histórico-pedagógicas seestablecieron tomando como modelo los planes de estudio de las Univer-sidades de Wisconsin, Harvard, Illinois y Cornell, aunque con una voluntadmenos teórica y más ligada a una línea psicológica-histórica-político-social que sin embargo no se concretaría plenamente puesto que la SecciónPedagógica se destacó especialmente en los estudios de psicopedagogíaexperimental y metodología8. En la Universidad de Buenos Aires, desde1905 a 1918 la materia Ciencias de la Educación fue también dictada conuna modalidad históriográfica por Carlos O. Bunge, quien implementócomo manual de texto las sucesivas versiones de su libro La educación(1920), que intentaba combinar las metodologías de la Historia, Sociologíay Psicología.

Carecemos de datos sobre la presencia de la asignatura Historia de laEducación en los profesorados de otras universidades nacionales hasta1956. Ese año, ni en Buenos Aires, Tucumán ó Cuyo se dictaba estamateria u otra equivalente. De los datos recabados en la UniversidadNacional de Rosario se desprende que en esta institución se dictó PolíticaEducacional Argentina durante la década de 1960, su equivalenteInstituciones Educativas Argentinas en el decenio 1970-80, Socio Políti-ca Educacional durante 1980-85, e Historia Social de la Educación hasta1999. Podemos conjeturar que en las otras universidades nacionales sedio similar desarrollo curricular. En lo que respecta a los Profesorados enCiencias de la Educación, de nivel universitario, ya puede visualizarse laasignatura Historia de la Educación Argentina y Latinoamericana, cuantomenos, desde la década de 1960, al propio tiempo que se dictaban comomaterias afines Historia de la Educación general, Política Educacional ySociología de la Educación.

8 La Facultad de Ciencias de la Educación se creó en 1914. El grupo docente queacompañaba a Mercante era el de profesores que se habían desempeñado en laEscuela Normal de Paraná.

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Los Manuales de Texto

La obra La Educación, de Carlos Octavio Bunge, fue el primer librode historia de la educación elaborado en Argentina con la intención pre-meditada de cumplir la función de manual de estudio para el niveluniversitario, puesto que su autor era, por entonces, titular de la cátedrade “Ciencias de la Educación” en la Facultad de Filosofía de la Universidadde Buenos Aires – desde 1905 hasta su prematura muerte en 19189.Progresivamente, Bunge fue transformando el programa de la materia –elaborado por su antecesor, el prestigioso profesor Francisco Berra –hasta convertirla en una Historia general de la educación, que incluíacontenidos referidos a la evolución de las instituciones educacionales ar-gentinas.

Esta obra, cuyo análisis merece un espacio mayor al que aquí pode-mos asignar, es la muestra más cabal de una Historia de la Educaciónconstruida desde el pensamiento positivista. Con una erudición desplegadasutilmente, Bunge consigue elaborar un relato muy cercano al estilohistoriográfico que hoy designaríamos como historia de las mentalida-des, en el cual se contextualizan y logran explicación las expresioneseducativas escolarizadas. Dice el autor:

Limítanse casi todas las llamadas “historias de la pedagogía” a un estudio

cronológico de los grandes autores, al que se añaden descripciones de ciertos

institutos célebres. Sin embargo, en un estudio sintético de la historia de la

educación, los grandes autores no son más que expresiones de su ambiente

y de su tiempo, y expresiones más o menos exactas … ¿No sería más com-

pleto ir al fondo y estudiar en sí los rasgos culminantes del espíritu de esos

ambientes y esas épocas? Al fin y al cabo, los autores no son más que

síntomas, si bien a veces de los más elocuentes [Bunge, 1920, p. 37].

En contraposición a la modalidad habitual de estas historias de lapedagogía, Bunge adscribe al método que llama “psicosociológico” cuya

9 Si bien la primera edición del libro La Educación fue de 1901, hubo sucesivasactualizaciones de esta obra.

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intencionalidad final era establecer las “ideas madres” que determinaronel desarrollo institucional de las diferentes sociedades estudiadas. Estas“ideas madres” son identificables con el “espíritu” – de carácterinmanente – que ha sobredeterminado el pensamiento de los diferentescolectivos sociales en los distintos momentos históricos, como por ejemploel “naturalismo” en el caso de los pueblos greco latinos. Estos conceptosarticuladores debían ser establecidos en base a un trabajo empírico-com-parativo intenso a fin de lograr una descripción fundamentada de los“sistemas prácticos” – es decir, las instituciones educativas. En este sen-tido, el estudio de las ideas individuales de pedagogos sería apenas unavía de acceso a este nivel institucional más complejo. Los presupuestosde Bunge son cumplidos parcialmente por él mismo, resultando especial-mente el tratamiento de la educación en la Edad Antigua, pero al tratar elperíodo moderno y contemporáneo no logra un resultado demasiado dife-rente de las historias de las ideas pedagogicas de las cuales quiere tomardistancia. Más llamativo es lo que ocurre cuando le toca desarrollar lasparticularidades argentinas de la historia de la educación, puesto que seadvierte una mirada menos cáustica que en los capítulos anteriores enrelación al rol de la Iglesia Católica – particularmente de los Jesuitas –con respecto a la educación de indígenas, y a la vez una mayor cuota deracismo en sus apreciaciones acerca del indígena – el “salvaje” – y delmestizo – carente de la disciplina, en tanto capital cultural. Los desarrollossobre Argentina son proporcionalmente breves, y se vuelven fácticos,probablemente por estar excesivamente inspirados en las escasas obrashistoriográficas por entonces existentes, principalmente las de Garro yAlcorta.

En líneas generales, y dejando de lado el caso especial de Bunge, laproducción de manuales sobre temáticas referidas a Historia de laEducación argentina inicialmente tuvo la función de cubrir las demandasde la asignatura “Política y organización escolar”, es decir referida a laevolución de la legislación escolar. Uno de los primeros libros escritoscon la exclusiva finalidad de ser un manual de texto fue el de HoracioRivarola, titulado Legislación escolar y ciencia de la educación, apare-cido en 1921 y reeditado en 1936 y 1944, cuyo destino era la formacióndel profesorado normal y universitario, y finalmente en 1961, actualizado

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y en coautoría con Delia Danani, pero adaptado para quinto año de lasescuelas normales10.

Rivarola tenía una manifiesta orientación histórica, puesto queconsideraba que el análisis de las instituciones educacionales lograba sustatus como “ciencia de la educación” cuando era capaz de explicar laorganización escolar en tanto “resultado de las necesidades del momento,de problemas múltiples planteados al gobierno y a la sociedad”(Rivarola& Danani, 1961, p. 2)11. Esta historicidad no tenía que ver con la historiatradicional acontecimental, por lo menos en su intencionalidad, puestoque Rivarola planteaba la necesidad de un objeto de estudio constituidoen la confluencia de las ciencias filosóficas, sociales y biológicas (idem,p. 5). Para Rivarola la “organización” escolar se compone de tres partesesenciales, aunque no únicas: el ordenamiento jurídico, el administrativoy el técnico pedagógico. Sin embargo, al momento de desarrollar la“evolución de la política educacional”, no pudo distanciarse de la habi-tual concepción historiográfica que suponía una sucesión acendente yacumulativa de instituciones educacionales, sólo interrumpidacoyunturalmente por el despótico gobierno de Rosas – y en las edicionesmás recientes del libro, también por el gobierno de Perón. En la sucintahistoria trazada por este autor no hay verdaderos elementos explicativos,sólo sirve para trazar una línea de tiempo. Igualmente descriptivas, aunquemenos orientadas a un desarrollo temporal lineal, son las partes siguientesdel libro, que están ordenadas según niveles y modalidades del sistemaeducativo, con énfasis casi absoluto en los aspectos jurídico-institucionales,desde una mirada gereralmente muy identificada con la tradición ilustra-da-sarmientina. Más analítico resulta el tratamiento de las políticas ylegislación escolar posteriores a la Constitución de 1853, en torno a doscuestiones problemáticas: la relación entre Nación y Provincias, funda-

10 Horacio Rivarola era doctor en Jurisprudencia y en Filosofía y Letras. Fue profesory Rector de la Universidad Nacional de Buenos Aires, Subsecretario de Justicia eInstrucción Pública y Presidente de la Academia Nacional de Ciencias de BuenosAires.

11 Esta última versión del libro de Rivarola incorpora contenidos incluso de la déca-da de 1950, aunque con un grado menor de articulación, debido a la relativaparticipación de Rivarola en la actualización de la obra.

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mentalmente en lo que respecta al financiamiento de la educación; y lacomplementariedad entre educación pública y privada. Las característi-cas de esta obra, que desde el presente sin dudas sería juzgada comometodológicamente limitada, no impidieron que el resultado final fueraun compendio erudito y de mirada inteligente, y que, además de habersido inspiración para todos los autores posteriores de la asignatura Polí-tica Educacional, probablemente lo haya sido para los historiadores de laeducación, puesto que representaba un avance sobre la historia recientede dicho momento.

Al tomar mayor relevancia los contenidos referidos a historia de lasinstituciones educacionales como parte de la formación del magisterio,hacia fines de los años de 1940 y en la década siguiente, surgieron otrostextos con el estilo ya trazado por H. Rivarola, y que además era eladoptado por los programas oficiales de la asignatura. Los manuales deManuel Solari, Juan Carlos Zuretti-Enrique Muñiz y Ethel Manganiello-Violeta Bregazzi fueron los principales exponentes de esta tendencia. Ellibro de Manganiello y Bregazzi (1959) era el más sólido, erudito y fielrepresentante del tratamiento historizante de la Política Educacional inau-gurado por Rivarola. Era el que revelaba mayor conocimiento de laproducción historiográfico educacional de las décadas anteriores y tambiénel que más se identificaba con la ortodoxia ideológica y metodológica –liberal y acontecimental – de dicha historiografía.

El texto de M. Solari (1964) probablemente fue el que más buscabaajustarse a la medida del lector. Simplificaba los procesos históricos, losdespojaba – en la mayoría de los casos – de fechas y cronologías, y los traducíaen imágenes globales donde se describía y evaluaba determinada gestiónpolítica o institucional. Es decir que el texto mismo se encargaba de hacer elejercicio de abstracción y síntesis que en los manuales y ensayos previos sedejaba a cargo del lector. La funcionalidad de esta estrategia fue un motivoimportante para la difusión y permanencia de este libro. La descripción delas leyes educacionales vigentes, poco explicativa pero más amena que lalectura directa del texto legal, comparte la misma intencionalidad.

Por su parte, J. C. Zuretti12 , fue uno de los autores de manuales sobre

12 Juan Carlos Zuretti era Profesor de enseñanza secundaria en Historia, Filosofía y

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temas de historia de la educación más difundidos durante el peronismo, ytambién luego de 1955. Su texto de Historia de la Educación es aún,después de cincuenta años de aparecida, uno de los libros generales quesiguen circulando en el mercado editorial13. Zuretti era un autor casi ex-clusivo de la editorial Itinerarium, pues allí publicó sucesivamentemanuales de esta temática y también de Historia de la Cultura, deEducación Democrática, de Filosofía, de Psicología, y de Pedagogía. Juntoal historiador Dr. Enrique Muñiz elaboró, luego de depuesto el gobiernoperonista, uno de los manuales de Política Educacional más populares enla formación del magisterio (Zuretti & Muñiz, 1961). En él se presentaun panorama de historia de la educación argentina muy convencional, enel sentido que es una síntesis de la historiografía liberal de la década de1930, excepto por su consideración adversa a Rivadavia por loextranjerizante14. Su panorama de historia llega hasta la sanción de laLey 1420, y consiste en presentar aspectos de las diferentes épocas sinhacer un desarrollo exhaustivo de las mismas; el período posterior estátratado de similar modo pero con mayor fragmentación debido a la voluntadde responder a las exigencias de los programas oficiales.

El libro de Zuretti está despojado de todo juicio crítico, y de lasexteriorizaciones nacionalistas que su autor hizo en obras de la épocaperonista. Es descriptivo y actualizado. No omite las realizacionesinstitucionales del gobierno justicialista y desarrolla aspectos de laeducación privada. Es un libro equilibrado, con menor vuelo filosóficoque el de Rivarola – al cual remite en repetidas oportunidades – pero másactualizado con respecto al desarrollo institucional más reciente, y conmás precisiones que el libro de Solari. Lograba un punto intermedio encuanto a conocimientos a transmitir y sostenía, pragmáticamente, un dis-curso ascético que daba al docente libertad de interpretación.

Pedagogía, egresado de la Facultad de Filosofía y Letras de Buenos Aires. Fueprofesor de esta institución y del Instituto del Profesorado Secundario de la Capi-tal y en el Instituto del Profesorado del Consejo Superior de Educación Católica.

13 Paradójicamente, es uno de los pocos libros de Historia de la Educación argentinalocalizables por medio de Internet.

14 Esta idea se basa en la interpretación de Antonino Salvadores.

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La formación docente en instituciones católicas tuvo su propia versiónsintética de la historia de la educación, a través de la sección respectivaen los manuales de Política Educacional, los cuales recogían comolineamientos históricos los planteados años antes en los manuales deReligión y Moral.

La Materia Religión y Moral, instaurada en 1943 por la RevoluciónMilitar filofascista que usurpó el gobierno de la Nación, y legalizada porel Gobierno Justicialista – hasta su supresión definitiva en 1954 – fueotro espacio para el dictado de contenidos relativos a la historia de laEducación. En quinto año de las Escuelas Normales esta asignatura sedesarrollaba siguiendo un programa oficial del cual tres de sus diez uni-dades se referían al pasado educativo de América, y particularmente deArgentina. Las otras unidades, estaban relacionadas con la función evan-gelizadora y la estructura institucional de la Iglesia Católica, aunque ador-nadas con expresiones familiares a la tradición normalista argentina, talescomo Iglesia “docente” ó “magisterio” de la Iglesia, término queremplazaba oportunamente a la palabra “evangelización”.

Analizaremos la bibliografía de Moral y Religión a partir del libro ElMagisterio de la Iglesia y la Escuela Argentina escrito por CalixtoSchiganiol (1948) e impreso por la editorial salesiana Apis15. Este autorconsideraba que cinco décadas de laicismo instauradas arbitrariamentedesde el Estado por políticos “intrigantes” – entre ellos nada menos queSarmiento, Roca y su ministro Wilde – habían desfigurado la “verdaderaargentinidad”, expresada en la mentalidad popular y reflejada en lossucesivos textos constitucionales ensayados en el país. El único mediopara recuperar esta esencia tradicional serían, para Schiganiol, laeducación religiosa, que tenía un pasado colonial y post revolucionariointenso, fruto de la obra “privada” de la Iglesia Católica. Esta idea eramuy atendible, aunque resulta fuera de toda lógica su afirmación de quedurante los siglos XVII y XVIII el analfabetismo era “casi nulo” en elRío de la Plata, y también excesivo el planteo de que Mayo no significóuna alteración para la enseñanza religiosa (idem, p. 92). Los referentesde Schiganiol eran principalmente el historiador católico Furlong y algunos

15 El libro había tenido su aprobación para publicación en octubre de 1943.

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ensayistas católicos nacionalistas como Gustavo Franceschi, ambosmiembros de la institución eclesiástica. La instalación de la enseñanzacatólica como contenido de enseñanza en todas las escuelas del país natu-ralmente era interpretado como un rasgo saludable y como motivo dealianza con el gobierno justicialista. A diferencia de la gran mayoría delos manuales anteriores y posteriores, aparece una definición política claraidentificando la Constitución Justicialista de 1949 con la doctrina deJesucristo” (idem, p. 95).

La Constitución de 1949 “es mas cristiana que las anteriores por su

contenido social”. Los derechos sociales y la función social de la propiedad

y la riqueza son de “evidente inspiración evangélica: oficializan principios

que la Iglesia Católica enseña y practica, desde su fundación, por mandato

divino. El Justicialismo […] como doctrina social y programa de vida fue

enunciado e impuesto enérgicamente por Jesucristo” [ibidem].

La supresión definitiva de la materia Religión y Moral en 1954 noimplicó, sin embargo, una efectiva desaparición de todos sus contenidoscurriculares, puesto que una parte importante de ellos fueron incorpora-dos por los autores clericales en sus manuales de Política Educacional.Tomaremos para el análisis de esta el libro Política Educativa, escrito amediados de la década de 1960 por el sacerdote Alberto García Vieyra,doctor en teología y profesor en la Universidad de Buenos Aires y en elInstituto del Profesorado del Consejo Superior de Educación Católica, ydestinado a la formación de pedagogos y profesores universitarios. En laprimera sección del libro el autor desarrolla su visión filosófica del rol dela política educativa, cuyos elementos sustanciales son la desconfianza alpluralismo ideológico; la propuesta de “una Pedagogía de la gracia divi-na, de la Redención, de Cristo” (García Vieyra, 1967, p. 12), para elevarla “naturaleza caída” del niño; y el derecho de los educandos a recibirformación espiritural. Opuesto al estilo historiográfico con que sedesarrollaban los contenidos de política educacional en la formaciónuniversitaria proponía una abordaje teológico, tomista, de los mismos:

El historicismo pedagógico en la enseñanza universitaria es un defecto

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muy actual, porque el profesor comienza por ignorar el objeto formal de la

ciencia que se ha comprometido a enseñar. Entonces la clase no es una

mostración del objeto formal, ni algún aspecto del mismo, sino una

aglomeración de nombres, fechas, opiniones que se entrecruzan sin nada

probar… [idem, p. 300].

Consecuentemente, los desarrollos sobre la política educativa argen-tina contenidos en la segunda sección del libro no fueron desarrolladospor el autor como sucesiones cronológicas de hechos institucionales, perotampoco como procesos explicativos. Las referencias históricas son con-vertidas en asuntos sobre los cuales se expide con juicios de valor acor-des a postulados clericales conservadores tales como:

1. Los jardines de infantes – cuyas referencias llegan apenas a 1900 –son producto del orden capitalista liberal, reemplazan mal a la ma-dre, atentan contra la familia, y estuvieron entregados a educadoresextranjeros no católicos;

2. La Ley 1420, de Educación Común, fue un “triunfo de lamasonería” – representada por Sarmiento, Roca, Leguizamón –, una“traición a la conciencia del país”, que nada entiende de educaciónmoral (idem, p. 224);

3. En forma inversa, valora la implantación de la enseñanza religiosa,en 1943 – convertida en Ley en 1947 – por cuanto la entiende comouna “devolución” de un derecho de la Sociedad por parte del Estado(idem, p. 169);

4. Los programas aplicados desde 1956, inspirados en las teoríaspagmáticas de Dewey, Kilpatrick y Bode, generan un individualis-mo egoísta, orientan a la búsqueda de placeres sensuales y conviertena la experiencia en un valor absoluto;

5. La enseñanza media tiene deficiencias de origen tales como el natu-ralismo de la Escuela Normal, y el enciclopedismo del Bachillerato –derivado del ilumnismo –, a la vez que rescataba la Ley 934 – quepermitió el reconocimiento de títulos expedidos por colegios priva-dos “incorporados” – y el subsistema técnico – particularmente laCENAOP – creado durante el gobierno justicialista;

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6. Con respecto a la Universidad, señala su deterioro desde fines delsiglo XVIII debido al avance del racionalismo, del liberalismo y delpositivismo, y justifica el desentendimiento por parte del gobernadorJ. M. Rosas bajo argumentos de nacionalismo político.

En suma, García Vieyra llevaba al ámbito de la historia de la políticaeducacional los planteos ideológicos del nacionalismo católico de los añosde 1930, algunos de cuyos principales exponentes – Leonardo Castellani,Gustavo Franceschi, Rómulo Amadeo – eran los referentes ideológicosde este libro, como también lo era, en cuanto a historia de la educación,Juan Carlos Zuretti. Estos planteos, además de vetustos, eran aparente-mente obsoletos, no obstante, al año siguiente de ser escrita esta obra, elgolpe militar liderado por Onganía convertía buena parte de estos puntosde vista en bases para sus proyectos de Ley de Educación.

Para finalizar veremos el lugar que ocupaba la Historia de la EducaciónArgentina en los programas de la materia Historia de la Educación, en lasEscuelas Normales de Maestros. Los manuales que más se difundierondurante el gobierno Justicialista, respondiendo a los cambios de planesde 1948, fueron escritos por los mismos autores que ya hemos analizado:Manuel Solari, J. C. Zuretti, y E. Manganiello-V. Bregazzi. El primeroescribió dos trabajos, uno de menor extensión incluido en la Historia dela Educación de Ernesto Codignola (1947), y otro con características decompendio que abarcaba desde la conquista hasta la década de 1920(Solari, 1949). El ejercicio historiográfico de Solari se limitaba a resumirla bibliografía existente y probablemente su aporte más original era trazarun panorama de las ideas pedagógicas del siglo XX a partir del desarrollodel pensamiento de los educadores más relevantes, en el cual, olvidandosu habitual postura distante, se muestra crítico tanto del positivismo pe-dagógico como de la Escuela Activa.

La misma crítica se advierte en otro de los autores mencionados, J.C. Zuretti, en su manual de Historia de la Educación general (1961),quien además, sin demasiado fundamento, recobra el pensamientodecimonónico de Manuel Estrada como principal exponente delantipositivismo pedagógico. Nacionalista y clerical, Zuretti, se expidecontra los diputados liberales que promulgaron la Ley 1420 –

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supuestamente sin consenso popular en lo referente a su carácter laico –, ya favor de la instauración de la enseñanza religiosa realizada por elgobierno de facto de 1943 y por la presidencia de Juan Domingo Perón.Con respecto a éste, es sugerente observar que al tratar las “orientacionesactuales” de la historia de la educación se refiera con total identificacióna la políticas social católicas justicialistas, entre las cuales incluye lapolítica educacional (idem, pp. 216-221).

En el caso de Etel Manganiello y Violeta Bregazzi, su propuesta esdiferente. También último capítulo de un manual general (1970), el refe-rido a la Educación en Argentina se dedica exclusivamente a las ideaseducacionales de los pedagogos y políticos más destacados, hasta la dé-cada de 1930. En este terreno, si bien su visión no es de identificación conel positivismo pedagógico, trata con prudente respeto a los principalesexponentes de dicha línea de pensamiento, y al hablar del antipositivismolo vincula a la irrupción de la Escuela Activa y la Escuela Nueva comotendencias renovadoras.

Estos manuales, como dijimos, se mantuvieron como propuesta edi-torial durante varias décadas, sin representar variantes significativas niel manual de Historia de la Educación argentina publicado por Manganielloen 1980, ni el escrito también en esa época por S. Perazzo, N. Kuc y T.Jové (1986), que era una versión menos lograda e inconclusa de los tex-tos de Solari – quien había además prologado discretamente esta obra.

La versión católica de la historia de la educación argentina llegó fi-nalmente a los manuales específicos de Historia de la educación, con laobra de Fernando Martínez Paz, también en la década de 1980. Dirigidaa la formación universitaria, y sujeta a las dificultades de circulación delas ediciones universitarias, no tuvo la difusión que habían logrado losmanuales a que hicimos referencia. La principal hipótesis que recorre eltexto es que la crisis del sistema educativo comienza en 1916 al fracasarla Reforma Saavedra Lamas, no obstante reconoce como momentos po-sitivos del siglo XX aquellos donde se favorece la ampliación de la funciónde la enseñanza privada y aquellos donde se produce un avance de lareligión, tanto como materia de enseñanza – 1943-1954 –, o como funda-mento de las políticas educacionales – 1966-1972. Metodológicamentehablando, se trata de una historia de la normativa y las instituciones, pero

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donde la dinámica temporal y el conflicto están ausentes, de tal modo quelos movimientos sociales que reconoce – laicismo, socialismo tradicio-nal, catolicismo – se desenvuelven y relacionan casi exclusivamente en elterrero de ideas presentadas estáticamente.

Conclusiones

La Historia de la Educación surgió en Argentina, fundamentalmenteen la primera década del siglo XX, ligada a circuitos intelectuales vincu-lados a la conducción educativa y se desarrolló en el ámbito académicouniversitario hasta mediados de siglo. Esto derivó en una producciónescrita de corte ensayístico o historiográfico dirigida a un público nomasivo, lo cual implicó una evidente limitación en el aspecto editorial. Enlo relativo a este tipo de obras, estas características recién se modificarondurante la década de 1960 como consecuencia de la ampliación del mer-cado consumidor, debido a la intelectualización y politización crecientede los lectores. Los manuales de texto, en cambio, tuvieron una apariciónrepentina y un desarrollo masivo asociado a la demanda de las institucionesformadoras del magisterio, especialmente intensa hacia fines de los añosde 1940 y principios de los de 1950. Ese mercado cautivo, sin embargo,no produjo una variedad ni competencia significativa a nivel de obras yautores, por cuanto las editoriales prefirieron reeditar durante décadasaquellas obras que ganaron, desde un comienzo, la aprobación delprofesorado.

De tal modo, la producción historiográfica de mayor calidad noingresó, sino indirectamente y a través de estos manuales, al ámbito de laformación del magisterio – y presumiblemente también al del profesoradosecundario. Por su parte estos manuales no representaron aportes a lo yaconocido, en los años de 1930, en materia histórico-educacional, exceptopor sus sucintos y biográficos desarrollos acerca de la pedagogía argen-tina a comienzos del siglo XX. Este ejercicio de divulgación sin embargono implicó una mediación del manual como vínculo entre el lector y laobra erudita de la cual se extraía la información, baste para ello tener encuenta que algunos de estos libros prescindieron totalmente de las notas y

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referencias bibliográficas. Estas debilidades contrastan con el desarrollomás erudito que los mismos autores hicieron de los contenidos sobrehistoria general de la educación, como es el caso principalmente deManganiello-Bregazzi, cuya obra sigue pareciendo meritoria aún en laactualidad.

Es interesante resaltar también el hecho de que la Historia de laEducación Argentina tuvo un desarrollo más vale reciente como materiade estudio del magisterio, puesto que primero apareció incluida, con gran-des fragmentaciones, en la asignatura Política Educacional, y luego, re-sumida al máximo, como una parte muy menor de la Historia de laEducación universal. Esto además implicaba otros reduccionismos: en elcaso de la política educacional, un enfoque institucionalista no crítico; yen el de la Historia general una mirada pedagógico-filosófico que limitabasu objeto a la historia de las ideas, despojadas de su devenir y su contex-to. El aporte, en cambio, era que se ocupaba de una historia reciente porentonces no reconocida como terreno de los historiadores. La visión cató-lica de la Historia de la Educación Argentina fue siempre más militante yligada a la política eclesiástica por ocupar espacios educativos. Tuvo suspropias editoriales y circuitos de difusión ideológica, incluso a pesar desostener una manifiesta posición contraria al espíritu de las leyes educa-tivas vigentes.

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A Escola Elementar no Século XIX.O Método Monitorial/Mútuo

autores Maria Helena CamaraBastos e Luciano Mendesde Faria Filho (orgs.)

cidade Passo Fundoeditora Ediupfano 1999

O método monitorial/mútuo necessitava, há muito, de reflexãobaseada em pesquisa. A presente publicação reúne artigos que, alémde expor idéias e práticas pedagógicas do século XIX mediante aimplantação deste método em diferentes países como França, Portu-gal, Argentina e Brasil, ainda caracteriza aquele método em seusaspectos estruturais, físicos e pedagógicos. Escrito por autores bra-sileiros e estrangeiros, apresenta sob a forma de coletânea váriaspossibilidades de leitura e suscita uma multiplicidade de novas in-vestigações.

Na apresentação, assinada pelos organizadores Maria HelenaCamara Bastos e Luciano Mendes de Faria Filho, são explicitadosos pressupostos que norteiam a publicação, a do aprofundamento doconhecimento da realidade educacional brasileira quando da implan-tação do método monitorial/mútuo no município da Corte e nas pro-víncias e da ampliação dos estudos comparados sob a perspectiva dahistória dos sistemas educativos.

“A pedagogia nas escolas mútuas do século XIX”, tema aborda-do por Pierre Lesage, descreve de maneira bastante minuciosa ométodo monitorial/mútuo. Os métodos individual e simultâneo sãoapresentados como precursores do método mútuo, criado na Ingla-terra, em fins do século XVIII, pelo Dr. André Bell, ministro daIgreja anglicana, e Joseph Lancaster, da seita dos Quakers e difundi-do na França por Jomard, de Gérando, de Lasteyrie e de Laborde,tendo como postulados a divisão da escola em oito graus hierarqui-zados conforme as disciplinas e o nível de conhecimento dos alunos,além da divisão de responsabilidade entre professor e alunos, queassumem a função de monitores, tornando-se verdadeiros agentes

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obreiros do método. Caracteriza a escola elementar a partir destenovo sistema, levando em conta o espaço físico, mobiliário, maté-rias, carga horária, materiais de ensino, agentes da ação educativae procedimentos de ensino. Destaca a “revolução pedagógica” criadapelo método de ensino mútuo, por meio da ampliação de estabele-cimentos de ensino noturno, feminino e para adultos; valorizaçãodos professores; implementação de novas técnicas de ensino; mu-dança na relação professor-aluno, entre outras. Por último apontaas causas internas do desaparecimento da escola mútua, entre elas,os problemas relacionados à formação dos monitores.

Em “A difusão do ensino mútuo em Portugal no começo doséculo XIX”, de Rogério Fernandes é feita uma abordagem quetraz interessante perspectiva do ensino mútuo como componenteda modernidade, difusor da disciplina, da ordem e do progresso,por meio de um método pedagógico rápido e econômico. O ensinomútuo constitui-se em Portugal inicialmente como uma rede esco-lar alternativa, tornando-se oficial após o ciclo de guerra civil de1828 a 1834, tendo sua expansão alicerçada na implantação dométodo nas escolas militares, nas escolas destinadas à sociedadecivil, na propaganda e na reflexão sobre o seu campo de aplicação.

Na seqüência, em “El mejor de los métodos posibles; laintroducción del método lancasteriano en Iberoamérica en eltemprano siglo XIX”, Claudina López e Mariano Norodwski ana-lisam as razões do interesse despertado em governantes de paísesda América latina pelo método de ensino mútuo, bem como osmotivos do êxito de sua divulgação.

Discutindo “O método Lancaster. Educação elementar ou ades-tramento? Uma proposta pedagógica para Portugal e Brasil no sé-culo XIX”, Ana Maria Moura Lins situa historicamente o métodoLancaster ou de ensino mútuo introduzido no Brasil por meio daCarta de Lei de 15 de outubro de 1827 e analisa-o como sendo apossibilidade de “por em prática as idéias de Adam Smith, formu-ladas em A riqueza das nações”. Enfatiza que o método representano século XIX uma proposta redentora para os setores da produ-ção, que anseiam por um operário dócil, disciplinado e limitadoem sua capacidade humana aos rudimentos da leitura, escrita earitmética, além de oferecer vantagens econômicas de tempo, es-paço, conteúdos e despesas. Finaliza apresentando o método

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Lancaster como orientação moderna, objetiva e segura para umasociedade imersa num entranhado obscurantismo intelectual.

Já em “O ensino mútuo no Brasil”, Maria Helena Camara Bas-tos centraliza a sua análise nas iniciativas de ensino mútuo ocorri-das entre 1808 e 1827, período que antecede sua adoção oficialpelo governo. Tais experiências foram marcadamente influencia-das pela Societè pour l’Instruction Élementaire, responsável pelaintrodução do ensino mútuo na França e pela propagação de socie-dades congêneres em vários países, por meio da revista pedagógicaJournal d’Éducation. Sugere no final que se prossigam as pesqui-sas sobre a história da escola elementar e do ensino mútuo, apon-tando para vários temas a serem aprofundados.

Os artigos “Abrindo um novo caminho: o ensino mútuo naescola publica do Rio de Janeiro (1823-1840)”, de Tereza Maria R.Fachada L. Cardoso; “O ensino mútuo em Minas Gerais (1823-1840)”, de Luciano Mendes de Faria Filho e Walquíria MirandaRosa; “O ensino mútuo na província de São Paulo: primeiros apon-tamentos”, de Maria Lúcia Hilsdorf e “O ensino mútuo no RioGrande do Sul”, de Jaime Giolo, comparecem nessa publicaçãocomo exemplares de pesquisas sobre a aplicação e repercussão dométodo de ensino mútuo nessas províncias. Levantam questões fun-damentais sobre a escola elementar, no período pós proclamaçãoda independência ao início dos anos 40, muitas vezes organizadasob a forma de ensino mútuo. Há que se destacar ainda, a contri-buição desses artigos no que se refere à discussão sobre a profissãodocente em nosso país.

“O ensino mútuo na origem da primeira escola normal do Bra-sil”, de Heloísa Villela, e “A formação de professores para o ensinomútuo no Brasil: o Curso Normal para professores de primeirasletras do Barão de Gérando (1839)”, de Maria Helena Camara Bas-tos, discutem o tema da formação do professor para o ensino mú-tuo. Villela levanta questões sobre a opção dos quadros dirigentespor este método e aponta preponderantemente para razões políticase ideológicas. Bastos analisa a obra do Barão de Gérando, o primei-ro manual didático-pedagógico publicado no Brasil, adotado pelaescola normal, e destaca o modelo ideal de professor projetado nes-te compêndio, que além de justificar a aplicação do método mútuo,institui uma prática dominante de saberes pedagógicos e sociais.

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Ao final, em “A matemática do ensino mútuo no Brasil”,Wagner Rodrigues Valente traça um panorama do ensino de mate-mática nas escolas de ensino mútuo durante o século XIX. Enfocade maneira bastante rica aspectos da prática pedagógica, por meiodo livro Casa grande e senzala de Gilberto Freire e do Compêndiode Arithmética composto para o uso das Escolas Primárias doBrasil de Cândido Baptista de Oliveira.

Enfim, A escola elementar no século XIX é certamente ummarco nos estudos sobre a história das práticas pedagógicas naescola elementar brasileira do século XIX. Vem, em boa hora, aoencontro da necessidade de investigar a circulação e apropriaçãodas idéias e modelos educacionais no campo pedagógico.

Claudia Panizzolo Batista da SilvaMestranda do programa de Educação: História,

Política, Sociedade da PUC-SP

Nostalgia do mestre artesãoautor Antonio Santoni Rugiucidade Campinaseditora Autores Associadosano 1999

A idéia de artesanato que se projeta em nosso imaginário, hoje,está bastante distante das escuras e barulhentas oficinas da IdadeMédia. Os artesãos modernos reúnem-se em praças públicas, ondeconfeccionam e expõem seus trabalhos aos olhos de passantes cu-riosos de encontrar, ainda hoje, um trabalho que é – pasmem! –feito a mão. Para paladares mais sofisticados, existem também aslojas típicas para turistas, em grandes shoppings centers ou aero-portos, onde se podem adquirir peças artesanais e resgatar umaépoca em que o homem, dono do seu tempo e conhecedor de todo oprocesso de produção em seu ofício, podia reconhecer-se e ser re-conhecido nos objetos que lhes saíam das hábeis mãos. Entretanto,ao nos afastarmos das praças e das prateleiras, percebemos quequase nada sabemos sobre o caráter e o significado histórico do

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artesanato e talvez poucos consigam ver que, nas peças artesanais,repousa, latente, o gérmen do fenômeno educativo.

Antonio Santoni Rugiu insere-se neste seleto grupo, ao buscarnas origens do trabalho artesanal as raízes da história da pedago-gia e da educação, trazendo à luz, em sua obra Nostalgia do mestreartesão, este aspecto ainda pouco conhecido, especialmente por nós,brasileiros, mas de extrema relevância para a compreensão do de-senvolvimento histórico da educação, principalmente no que tangeà sua essência: a importância formativa do artesanato – não so-mente na produção, mas na cultura e na educação.

O professor italiano nos faz atentar para o fato de que o traba-lho artesanal é uma tradição que se mantém graças à pedagogia doaprender fazendo, transmitida, de modo geral, de pai para filho oude mestre para aprendiz ou, ainda, através de escolas organizadas emantidas por cooperativas ou associações de artesãos. Nesse senti-do, segundo o autor, o valor pedagógico das Corporações de Artese Ofícios constituiu-se, tanto no plano ideológico quanto no planoconcreto, em “uma revolução pedagógica tão sensível quanto pou-co considerada pelos historiadores da cultura” (p. 49).

Na tentativa de reverter esse quadro, o livro de Antonio SantoniRugiu vai, num primeiro momento, percorrer os séculos atrás doque ele chama fio invisível – mas nem por isso menos perceptível –da formação artesanal que se manifesta em inovadores pedagógi-cos como Locke, Rousseau, Pestalozzi, Froebel e Dewey, entreoutros. Aos olhos do autor, tais educadores seriam a um só tempomodernos e nostálgicos, pois apesar de suas posições implacáveisem relação aos modelos educativos do passado, era para lá que sevoltavam quando pressentiam as transformações que se avizinha-vam. Ao asseverarem, cada qual a seu modo, o primado pedagógi-co da experiência pessoal ativa, estariam, na verdade, ressuscitandoo aprender fazendo — ideal pedagógico das Corporações. Assim,identificar a experiência artesanal como valor pedagógico “primá-rio e quase insubstituível” (p. 12) seria uma maneira de recuperar afigura tradicional do mestre artesão, “emblema de um sistemaformativo comprovado” (p. 13), que se irá desvanecendo à medidaque o sistema fabril começa a ganhar força, eliminando gradual-mente os “resíduos de vitalidade do associacionismo corporativo e,portanto, também de suas formas reprodutivas” (p. 129).

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Ao longo dos capítulos, Santoni Rugiu leva-nos a um passeiopelo interior das oficinas artesãs, durante o qual nos vai desvelandominuciosamente seu cotidiano: suas regras de funcionamento in-terno, com sua rígida hierarquia e disciplina, e a divisão do traba-lho; a relação entre mestre e aprendiz – praticamente uma extensãoda relação entre pai e filho – e os rituais iniciáticos que cercavam oconjunto do tirocínio artesão e o envolviam, como a um fazer secre-to, numa aura de magia e mistério; e, ainda, as metodologias didá-tico-pedagógicas lá empregadas.

A partir de suas preciosas informações, entramos em contatocom a pedagogia dessas oficinas, que se desenvolvia por meio deum longo exercício de observação e prática, de modo que a parteverbal – oral ou escrita – era praticamente inexistente. Da mesmaforma eram quase inexistentes as fronteiras entre vida profissionale privada, uma vez que o aprendiz, muitas vezes hospedado na casade seu mestre, via seu tempo livre tornar-se também tempo de apren-der. Sua formação “não ocorria só na atividade de oficina, mas tam-bém no clima e nas experiências da comunidade doméstica” (p. 41)e, mesmo que a jornada de trabalho tomasse quase todo o dia, sem-pre restariam “espaços significativos na família hospedeira e nasrelações com o ambiente externo” (p. 41), que propiciassem umaprendizado, mesmo que esse fosse uma experiência de socializa-ção, não menos importante que o aprendizado técnico, frisa SantoniRugiu.

É a esta pedagogia, vale assinalar, que a nostalgia presente notítulo do livro se refere. Uma pedagogia cujo “aspecto da disciplinada personalidade e do adestramento para comportamentos determi-nados para os diferentes momentos da vida, prevalecia sobre o apren-dizado intelectual e cognitivo” (p. 77). Ela não apenas capacitavaos aprendizes para exercerem seu ofício, como também incutia ne-les uma formação moral e um senso de pertencer a um corpo socialreconhecido – que não existirá mais nas manufaturas onde o traba-lhador parcial, privado de sua formação, irá se tornando apenas umcomplemento das máquinas. Educar constituía-se numa ação cujosentido era muito mais amplo do que o termo ainda viria a assumir.

Entretanto, embora essa tenha sido, por muitos séculos, a ma-neira de formar as novas gerações que se dedicavam ao trabalhomanual – mais uma contingência do que uma escolha, dado que o

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trabalho intelectual era direito concedido a uma minoria – ela foisendo substituída pela noção oposta de que “a verdadeira educaçãoe a verdadeira instrução são unicamente aquelas que se assimilamatravés do exercício e do aprendizado intelectual, estudando-se oslivros e escutando-se a voz do mestre, nas carteiras das escolas ouda universidade, e não sujando as mãos” (Prefácio ao leitor de Lín-gua Portuguesa) nas oficinas. Essa noção de cunho aristocrático,somada a outros fatores como o desenvolvimento do setor terciárioe o crescimento desenfreado do consumo impulsionado pela indús-tria, contribuirá para que a atitude pedagógica do artesão vá seenfraquecendo, de modo que a cultura artesanal torne-se cada vezmais desvalorizada, culminando com o colapso das Corporações esuas formas reprodutivas no final do século XVIII.

Entendemos que cada época tem uma idéia própria a respeitodo que seja instrução, bem como a maneira mais apropriada derealizá-la e, por isso, seria esperado que novos tempos trouxessemnecessidades outras, às quais os homens precisariam se adaptar:afinal novos ofícios impõem a criação de novos saberes e estimu-lam o surgimento de novas metodologias pedagógico-didáticas.Porém, as transformações que se impuseram terminaram por banirpara as margens da história da educação a pedagogia artesã e atradição do aprender fazendo, considerando-as artes menores. Es-ses novos tempos exigiam uma outra maneira de educar, cuja ideo-logia pautava-se, agora, por princípios que poderiam ser resumidosna máxima “tempo é dinheiro”, na economia de mercado, na valo-rização do indivíduo (em oposição ao coletivo), cujos dons naturaiscomo iniciativa, vontade, criatividade, perspicácia, honestidadedevem ser exaltados em detrimento daqueles adquiridos por meiodo tirocínio artesão. É um prenúncio da hegemonia liberal que es-tava, então, se configurando.

O fato de as Corporações de Artes e Ofícios terem encontradoseu ocaso, em nada diminui o valor formativo do artesanato e suaimportância histórica, que vão, aliás, fortalecendo-se de modo in-contestável à medida que avançamos na leitura. Tão inegável ele serevela na educação moderna que nos percebemos intrigados comalgumas questões: por que o trabalho artesanal foi, durante tantotempo, relegado a um segundo plano ou mesmo ao esquecimento,quando se pensa nas histórias da educação e da pedagogia? Por que

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razão essas histórias nunca abordaram o artesanato e sua eficáciaformativa? A chave para se responder a essas questões, crê SantoniRugiu, reside no fato de que essa historiografia ainda está submissaà tradicional e rançosa idéia de que a educação, para ser válida,deve ser formal e vir dos livros e do exercício puramente intelec-tual.

Devemos lembrar que esse menosprezo que a pedagogia doaprender fazendo encontra junto ao saber oficial é quase tão antigoquanto sua própria prática e assenta-se sobre a distinção entre o“saber falar e raciocinar” e o “saber fazer”, habilidades eqüidistantes,intrinsecamente relacionadas ao tipo de homem que as detinha: ohomem livre da necessidade de trabalhar com as mãos para viver eaquele que só a elas devia seu sustento, não podendo delas prescin-dir – circunstância que o colocava numa posição social claramenteinferior.

Resgatar o trabalho artesanal e seu valor de formação para ofenômeno educativo é revalorizar o homem, enxergá-lo como umtodo. Num momento histórico tão avesso quanto o nosso à noção detotalidade e de coletividade, Santoni Rugiu, ao redimensionar aatividade artesã, dá um passo importante nessa direção.

Dentre as tantas qualidades deste livro, é necessário apontar,ainda, a interessante introdução do Professor Dermeval Saviani,que contribui para enriquecer o conjunto da obra. Não posso mefurtar, contudo, a uma ressalva em relação ao texto de Nostalgia domestre artesão: o trabalho de revisão e editoração dos originaisdeixou muito a desejar, pois não raro o leitor é pego por erros orto-gráficos graves que, devido à sua insistência, acabam por incomo-dar. Uma obra dessa importância para a história da educaçãomereceria um maior cuidado, principalmente por se tratar de umaeditora séria, cujos trabalhos vêm fomentando o cenário dos deba-tes educacionais.

Ana Elisa de Arruda PenteadoMestranda do Programa de Pós-graduação

em Educação da UNICAMP

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Notas de Leitura

República e Formação de Cidadãos: a educaçãocívica nas escolas primárias da PrimeiraRepública portuguesa

autor Joaquim Pintassilgocidade Lisboaeditora Edições Colibriano 1998

É uma obra que, além de estudar o período identificado no títu-lo, apresenta reflexões que se inscrevem na perspectiva dos estudoscomparados, buscando compreender o que há de idêntico e dediferenciador nas preocupações com a formação de cidadãos e com arenovação pedagógica a ela associada em Portugal e na Espanha.

Já nas primeiras linhas do texto introdutório, o autor explicitasua inquietação diante do quase desaparecimento de valores éticose morais na sociedade atual, preocupação que muito o motivou parao desenvolvimento deste trabalho. Segundo Pintassilgo, esta preo-cupação tem estado presente em reformas de ensino em curso, ou jáconcluídas, em vários países que têm optado por uma formaçãomoral e cívica que atravessa todo o currículo. Mas, na obra, o autorse concentra no resgate histórico. Fiel à sua formação de historia-dor, busca resgatar informações, com base em várias fontes, que lhepermitam responder à que ele chamou de questão central do traba-lho:

Como conciliou a República a vontade de formar os cidadãos necessários

ao funcionamento duma democracia com as necessidades decorrentes da con-

solidação do novo regime? Dito de outro modo: a socialização política

subjacente à educação cívica republicana não terá resvalado para formas de

endoutrinação, implicando a imposição de um determinado sistema de valo-

res? [p. 14].

Em termos de procedimentos metodológicos, o autor privile-giou a análise de conteúdo para analisar “[...] a legislação sobre oensino primário produzida durante o período republicano, os ma-nuais escolares de educação cívica, a imprensa pedagógica, as actas

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dos congressos sobre ensino e educação, bem como as obras deautores do pensamento pedagógico que, directa ou indirectamente,continham reflexões acerca da educação moral e cívica na escolaprimária” (p. 15), materiais estes que lhe serviram como fonte depesquisa.

O trabalho final, inicialmente elaborado para conclusão do cursode doutorado na Universidade de Salamanca – Espanha –, mate-rializado em forma de livro, está organizado em duas partes, que sesubdividem em capítulos.

Na primeira parte, o autor privilegia um “enquadramentocontextual” que situe o problema da educação cívica na escola re-publicana. Assim, no primeiro capítulo explora a questão da edu-cação cívica no pensamento pedagógico internacional. Às idéiasveiculadas por Auguste Comte, Herbert Spencer, Émile Durkheim,John Dewey, Georg Kerschensteiner e Adolphe Ferrière, o autorreservou este capítulo.

No segundo capítulo, Pintassilgo caracteriza a primeira Repú-blica Portuguesa. Da “utopia educativa do republicanismo”, o au-tor se ocupa no terceiro capítulo.

A segunda parte do livro está dividida em seis capítulos, nosquais são analisadas questões relacionadas a Portugal e Espanha.No primeiro capítulo, “a laicização da escola primária” é ampla-mente analisada. As páginas que compõem o segundo capítulo sãodedicadas à reflexão acerca da “socialização política dos cidadãos”.No terceiro capítulo, “a religiosidade cívica republicana” é con-templada a partir do “culto da Pátria na escola primária”; no quar-to, a atenção recai sobre a “festa da árvore”. A análise entre a relação“preparação militar e educação cívica” ocupa as páginas do quintocapítulo. O capítulo final é dedicado à análise da relação entre es-cola nova e educação cívica e é nomeado pelo autor com o título “Anova pedagogia cívica”.

Segundo suas palavras:

a própria investigação veio mostrar, sem pôr obviamente em causa a dinâmica

histórica, como são, por vezes, ilusórias as experiências de inovação pedagógi-

ca, ao permitir filiá-las directamente nos esforços e nos projectos de um passado

mais ou menos distante. Nem tudo é novo nos actuais esforços a favor da

implementação da educação moral e cívica nos currículos escolares e a admis-

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são deste facto, para além dos ensinamentos daí decorrentes, permitem-nos ter

uma consciência mais aguda da inevitável relatividade dos factos sociais e

educativos [p. 13].

Vera Lucia Gaspar da SilvaProfessora da Faculdade de Educação da Universidade

do Estado de Santa Catarina e Doutorando do

Programa de Pós-Graduação em Educação da USP

Tempos de Escola: fontes para a presençafeminina na Educação – São Paulo – Século XIX

autora Maria Lúcia S. Hilsdorfcidade São Pauloeditora Feusp/Plêiadeano 1999

Os pesquisadores empenhados em reverter a imagem, até hápouco tempo bastante divulgada, de que a História da Educaçãobrasileira durante o século XIX foi um período marcado por pou-cas iniciativas em termos de empreendimentos educacionais, so-bretudo quanto à educação das mulheres, foram contemplados comesta cuidadosa publicação de Maria Lúcia Spedo Hilsdorf sobre apresença feminina na educação paulista dos oitocentos.

A iniciativa de trazer a público de forma sistematizada os da-dos coletados ao longo de vários anos de pesquisa em diversosacervos arquivísticos e bibliográficos indica a preocupação da pro-fessora Maria Lúcia em expandir os horizontes da História da Edu-cação brasileira para além do interesse dos pesquisadores dessaárea. Sua postura acadêmica tem sido a de divulgar constantemen-te suas pesquisas e reflexões, buscando oferecer um conjunto deobras de referência que seja subsidiário ao trabalho de futuros pes-quisadores, bem como a de valorizar e divulgar as iniciativas em-preendidas nesse sentido por outros professores. Em sua notaintrodutória a pesquisadora ressalta que “ainda é incipiente entrenós a prática historiográfica de organização de instrumentos detrabalho que, descrevendo acervos e documentos, auxiliem os pes-quisadores a ter acesso mais fácil e rápido ao material de que ne-cessitam” (p. 8).

Com a preocupação em provocar reflexão, seja em seu aluno

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ou em seu leitor, sobre a conscientização do papel desempenhadopelo educador na sociedade brasileira, a professora Maria Lúcianão esquece de ressaltar que os problemas enfrentados hoje peloprofessor/pesquisador são conseqüência da ausência de uma políti-ca pública de preservação do nosso patrimônio cultural, sobretudode nossa memória educacional. Nesse sentido, esse Tempos de es-cola apresenta-se como uma obra de referência que pretende pre-servar essa massa documental bastante variada localizada emdiversos acervos paulistas, divulgando as informações referentes àeducação feminina na segunda metade do século XIX, por meio deum acesso fácil e rápido para pesquisadores e demais leitores cominteresse nesse tema. Ao agrupar e reorganizar os dados de formacoerente em uma única obra, a professora/pesquisadora oferece aoleitor a oportunidade de acompanhar, dentre outras possibilidades,a trajetória profissional de uma professora, aluna ou diretora, ou deum determinado estabelecimento de ensino, como também permiteverificar o processo de crescimento das diversas vilas e cidades daProvíncia/Estado de São Paulo, destacando a quantidade de escolase o número de cadeiras criadas e providas nessas localidades.

Com o propósito de oferecer uma documentação básica sobre aeducação feminina em São Paulo, a partir de meados do séculoXIX, a professora Maria Lúcia vem desenvolvendo e organizando,desde 1993, junto ao Centro de Memória da Educação da FEUSP,um projeto (financiado pela FINEP) envolvendo várias outras pes-quisadoras da mesma Faculdade, intitulado “Impressos, leituras einstituições escolares no Brasil”, que já conseguiu apresentar comoproduto “a revisão, o levantamento, a transcrição e a organizaçãode todo e qualquer material referente à presença feminina na edu-cação escolar (e não escolar) paulista, no século XIX, localizadoem 312 títulos de jornais, almanaques, anuários, revistas e outraspublicações culturais e de variedade da época” (p. 8).

Nesse volume de Tempos de escola foi reunida apenas umaparte do conjunto de dados coletados ao longo desses anos. Cons-tam desse volume somente as informações encontradas emalmanaques, anuários e jornais avulsos de diversos municípiospaulistas, pertencentes aos acervos do Arquivo do Estado de SãoPaulo e do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP). Em funçãoda riqueza dos dados transcritos, este volume foi subdividido em

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duas partes: I) Alunas, Colégios, Diretoras, Escolas, Professoras(es);II) Autores de Livros Didáticos, Livros e Suportes Materiais.

Nessa publicação de Tempos de escola, ficaram ausentes osdados coletados a partir do levantamento feito em jornais da cha-mada grande imprensa, que constam da Hemeroteca do Arquivo doEstado. Isso nos leva a crer que os esforços da pesquisadora cami-nharão no sentido de, nos próximos anos, publicar outros volumesque completem essa interessante série sobre fontes do século XIX.Os dados coletados nos grandes periódicos paulistas merecem ain-da ser divulgados, pois permitem que se acompanhe mais facilmen-te o processo de escolarização feminina, como também auxiliam nacompreensão da trajetória pessoal e ou profissional de algumas dasprofessoras que atuaram em São Paulo na segunda metade do sécu-lo XIX. Por enquanto, cabe a nós apenas esperar e torcer para queesse empreendimento encabeçado por Maria Lúcia Hilsdorf se con-cretize o mais breve possível.

Márcia H. DiasMestranda em História da Educação da

Faculdade de Educação – USP

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Orientação aos Colaboradores

A Revista Brasileira de História da Educação publica artigos,resenhas e notas de leitura inéditos no Brasil, relacionados à histó-ria e historiografia da educação, de autores brasileiros ou estrangei-ros, escritos em português ou espanhol, reservando-se o direito deencomendar trabalhos e compor dossiês. Os artigos devem apresen-tar resultados de trabalhos de investigação e/ou de reflexão teórico-metodológica. As resenhas devem discorrer sobre o conteúdo da obrae efetuar um estudo crítico, podendo versar sobre textos recentes oujá reconhecidos academicamente. As notas de leituras devem trazeruma notícia de publicação recente.

Seleção dos trabalhosOs artigos são submetidos a dois pareceristas ad hoc, sendo ne-

cessária a aprovação por parte de ambos. No caso de divergência dospareceres, o texto será encaminhado a um terceiro parecerista. Aprimeira página deve trazer o título da matéria, sem indicar nome einserção institucional do autor. Deve conter também o resumo emportuguês ou espanhol e o resumo em inglês (abstract), com exten-são máxima de 7 linhas, e cinco palavras-chaves em português ouespanhol e em inglês. Em folha avulsa, o autor deve informar otítulo completo do artigo, seu nome, titulação e instituição a que estávinculado, projetos de pesquisa dos quais participa, endereço, tele-fone e e-mail.

As resenhas e notas de leitura são avaliadas no âmbito da Co-missão Editorial.

Normas Gerais para aceitação de trabalhosOs originais devem ser encaminhados em duas vias impressas e

uma cópia em disquete, observando-se o formato: 3 cm de margemsuperior, inferior e esquerda e 2 cm de margem direita; espaço entrelinhas de 1,5; fonte Times New Roman no corpo 12.

Os trabalhos remetidos devem seguir a seguinte padronização:Extensão mínima e máxima, respectivamente:

• Artigos – de 30.000 caracteres a 60.000 caracteres (aproxi-madamente de 15 a 30 páginas);

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• Resenhas – de 8.000 caracteres a 15.000 caracteres (aproximadamen-te de 4 a 8 páginas);

• Notas de leitura – de 2.000 caracteres a 4.000 caracteres (aproxima-damente de 1 a 2 páginas).

As indicações bibliográficas, dentro do texto, devem vir no formato sobre-nome do autor, data de publicação e número da página entre parênteses, como,por exemplo (Azevedo, 1946, p. 11). As referências no final do texto devemseguir as normas da ABNT NBR 6023:2000. Notas de rodapé, em numeraçãoconsecutiva, devem ter caráter explicativo.

A Comissão Editorial não aceitará originais apresentados com outras con-figurações.

A revista não devolve os originais submetidos à apreciação. Os direitosautorais referentes aos trabalhos publicados ficam cedidos por um ano à Revis-ta Brasileira de História da Educação.

Serão fornecidos gratuitamente aos autores de cada artigo cinco exempla-res do número da revista em que seu texto foi publicado. Para as resenhas enotas de leitura publicadas, cada autor receberá dois exemplares.

Os originais devem ser encaminhados à Comissão Editorial, com sede noCentro de Memória da Educação-FEUSP, Av. da Universidade, 308, Bloco B,terceira fase, sala 40, São Paulo-SP, CEP 05508-900.

Informações adicionais podem ser obtidas no e-mail [email protected] no telefone (0xx11) 3818.3194, das 13h às 18h.

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Contents

REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO(HISTORY OF EDUCATION BRAZILIAN MAGAZINE)January/June, 2001, Number 01

EDITORIAL 7

ARTICLES

The School Culture as a Historical Object 9Dominique Julia

Nowhere Notes: About the Beginning of the Modern Scholarization 45David Hamilton

The Europe Conception in the Fascist Period: Analysis of aPedagogical History Book 75Giovanni Genovesi

The Historical Education of Desire 97Agustín Escolano Benito

For a Material Bibliography of the Ordinary Writing: the SchoolNotebook Graphical Space (France – 19th and 20th Centuries) 115Jean Hébrard

The Concept of “Spiritual Emancipatión” in the Debate aboutHispano-American Education in the First Half of the 19th Century 143Gabriela Ossenbach Sauter

Times of School in the Portugal-Brazil-Mozambique Area:Ten Digressions about an Investigation Program 161António Nóvoa

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The Argentinian History of Education and Teaching Formation:Institutional Demanding and Editions 187Adrián Ascolani

REVIEWS

A ESCOLA ELEMENTAR NO SÉCULO XIX. O MÉTODO MONITORIAL/MÚTUO

[THE ELEMENTAL SCHOOL IN THE 19TH CENTURE],Maria Helena C. Bastos and Luciano Mendes de Faria Filho (dirs.) 211Claudia Panizzolo Batista da Silva

NOSTALGIA DO MESTRE ARTESÃO [THE CRAFTSMAN MASTER NOSTALGIA],Antonio Santoni Rugiu 214Ana Elisa de Arruda Penteado

READING NOTES

REPÚBLICA E FORMAÇÃO DE CIDADÃOS: A EDUCAÇÃO CÍVICA NAS

ESCOLAS PRIMÁRIAS DA PRIMEIRA REPÚBLICA PORTUGUESA

[REPUBLIC AND CITIZENS FORMATION: THE CIVIC EDUCATION INELEMENTARY SCHOOL FROM THE FIRST PORTUGUESE REPUBLIC],Joaquim Pintassilgo 219Vera Lúcia Gaspar da Silva

TEMPOS DE ESCOLA: FONTES PARA A PRESENÇA FEMININA NA

EDUCAÇÃO – SÃO PAULO – SÉCULO XIX

[TIMES OF SCHOOL: SOURCES FOR THE FEMALE PRESENCE INEDUCATION – SÃO PAULO, 19TH CENTURY],Maria Lúcia Spedo Hilsdorf 221Márcia H. Dias